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G N A R U S | 44 Coluna: CINEMA, MATERIALIDADE TEXTUAL E HISTモRIA CULTURAL: ALGUMAS PONDERAヌユES CRヘTICAS SOBRE A RELAヌテO HISTモRIA, CINEMA, PESQUISA E ENSINO. Por: Alexander Martins Vianna m filme está inscrito num processo institucional-social contingente que o torna um efeito, evento e agente necessariamente coletivo, cujos significados, em seu momento de produção e posteriormente podem transcender muitas vezes o intencionado pelo diretor, produtor ou roteirista. Mesmo considerando as novas técnicas de multimídia, que podem fazer a criação de um filme caber num computador pessoal ou tablet, um filme dificilmente poderia ser entendido como o resultado de um trabalho exclusivamente individual, já que a produção de seu complexo afetivo-cognitivo envolve edição, recontextualização ou (re)temporalização de recursos verbais, gestuais-performáticos, sonoros e imagéticos, cada um dos quais sendo polos de sistemas de significados com específicos agentes, recursos, repertórios e tradições estético-expressivas, com os quais se negocia no processo de produção . Por outro lado, os seus significados também são produzidos pelas perguntas que o historiador considera possíveis de um filme responder. Afirmar isso significa igualmente considerar que o filme, a partir da forma material em que se apresenta enquanto resultado para um plano narrativo, também resiste às perguntas do pesquisador, pois, como qualquer artefato sociocultural, possui regularidades internas inexauríveis. Entendo por plano narrativo, ou narrativa, o(s) princípio(s) orientador(es) da sequência de imagens visuais, textos escritos, falas, performance e sons (verbais ou não) de um filme visando a provocar atenção afetivo-cognitiva sobre suas teses ou temas principais, cumprindo ou não as expectativas habituais de um gênero. Os significados intencionais (e não intencionais) do plano narrativo se expressam por meio da forma final em que o filme se materializa. Daí, considero oportuno dizer que os significados do plano narrativo de um filme dependem de sua materialidade textual. ノ a materialidade textual que limita as possibilidades de perguntas do historiador à fonte fílmica. Aqui, valho-me de Donald F. Mckenzie que, em meados da década de 1980, expandiu o conceito de “texto” ao retomar a sua base etimológica “tecer”, ou seja, configurar redes de sentido e significados com intenções comunicativas. Nesses termos, o conceito de “texto” estende-se para formas não escritas e não- librárias que se inscrevem em (ou propõem) sistemas de significados e, portanto, configuram efeitos comunicativos que transcendem a estrutura estritamente morfológica ou sintática da linguagem. Estão implicados no conceito de materialidade textual: (1) o reconhecimento de que os meios e a forma U

Alexander Martins

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Artigo no Escuro do Cinema

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G N A R U S | 44

Coluna:

CINEMA, MATERIALIDADE TEXTUAL E HISTÓRIA CULTURAL:ALGUMAS PONDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A RELAÇÃO HISTÓRIA,

CINEMA, PESQUISA E ENSINO.

Por: Alexander Martins Vianna

m filme está inscrito num processoinstitucional-social contingente que o tornaum efeito, evento e agente necessariamente

coletivo, cujos significados, em seu momento deprodução e posteriormente podem transcender muitasvezes o intencionado pelo diretor, produtor ouroteirista. Mesmo considerando as novas técnicas demultimídia, que podem fazer a criação de um filmecaber num computador pessoal ou tablet, um filmedificilmente poderia ser entendido como o resultadode um trabalho exclusivamente individual, já que aprodução de seu complexo afetivo-cognitivo envolveedição, recontextualização ou (re)temporalização derecursos verbais, gestuais-performáticos, sonoros eimagéticos, cada um dos quais sendo polos de sistemasde significados com específicos agentes, recursos,repertórios e tradições estético-expressivas, com osquais se negocia no processo de produção . Por outrolado, os seus significados também são produzidos pelasperguntas que o historiador considera possíveis de umfilme responder.

Afirmar isso significa igualmente considerar que ofilme, a partir da forma material em que se apresentaenquanto resultado para um plano narrativo, tambémresiste às perguntas do pesquisador, pois, comoqualquer artefato sociocultural, possui regularidades

internas inexauríveis. Entendo por plano narrativo, ounarrativa, o(s) princípio(s) orientador(es) da sequênciade imagens visuais, textos escritos, falas, performance esons (verbais ou não) de um filme visando a provocaratenção afetivo-cognitiva sobre suas teses ou temasprincipais, cumprindo ou não as expectativas habituaisde um gênero. Os significados intencionais (e nãointencionais) do plano narrativo se expressam por meioda forma final em que o filme se materializa. Daí,considero oportuno dizer que os significados do planonarrativo de um filme dependem de sua materialidadetextual. É a materialidade textual que limita aspossibilidades de perguntas do historiador à fontefílmica.

Aqui, valho-me de Donald F. Mckenzie que, emmeados da década de 1980, expandiu o conceito de“texto” ao retomar a sua base etimológica “tecer”, ouseja, configurar redes de sentido e significados comintenções comunicativas. Nesses termos, o conceito de“texto” estende-se para formas não escritas e não-librárias que se inscrevem em (ou propõem) sistemas designificados e, portanto, configuram efeitoscomunicativos que transcendem a estruturaestritamente morfológica ou sintática da linguagem.Estão implicados no conceito de materialidade textual:(1) o reconhecimento de que os meios e a forma

U

G N A R U S | 45material como o artefato é produzido ou se manifestatambém compõem o seu significado; (2) as condiçõesintelectuais e institucionais que tornam possível oartefato cultural existir segundo uma expectativa (oucontra-expectativa) de gosto e uso social, devendo-seconsiderar o quanto isso interfere em sua forma,sentido, ressonância e valor; (3) o cumprimento, acriação, a subversão ou a sobreposição eclética deregimes representativos e regimes estéticos de gênero;(4) a presença de tropos, temas e traços queevidenciem a negociação social da semelhança emfunção do jogo de expectativa em torno da produção,veiculação, crítica e uso do artefato.

Um sistema de significado deve ser entendidocomo algo dinâmico e aberto, atuante sobre (mastambém reconfigurável pelos) agentes sociais. Por estaperspectiva, um filme não é o produto de uma época,pois “época” não é um monólito causal acabado e fixoque produz o filme, mas um processo social aberto doqual o filme faz parte enquanto efeito e agentesimultaneamente. Conforme os seus recursos materiaise imateriais, os seus interesses, os seus vínculos sociais eos seus valores, os agentes sociais podem criar artefatosculturais com capacidade de inscrever-se, tencionar,criticar, variar, ampliar, renovar, romper ousimplesmente reproduzir os repertórios ou patrimôniosretórico-temáticos, morais-emblemáticos,performático-gestuais-comportamentais, de gosto egênero artístico, técnico-expressivos e de suportesmateriais de seu meio sociocultural. Daí, conforme ointeresse de pesquisa, uso ou estudo, um filme pode serentendido como artefato cultural, agente social ouevento que localiza e condensa sistemas de significadosde/em/para um mundo de experiências que é umprocesso aberto e inacabado.

Um filme materializa sistemas de significadosporque é um agente, historicamente circunscrito, emnegociação dialética com o repertório de sentidos,formas e recursos materiais e imateriais que configuramtensamente os campos sociais. Justamente por issotorna-se sem sentido supor que a produção intelectualde um filme seja precedida pela condiçãomaterial/coletiva da sociedade – como propõe aestética marxista, esquecida das Teses contraFeuerbach –, pois ambas nascem juntas e se tencionamdialeticamente num mundo de experiências designificados. Daí, não existe o puramente intelectual eestético (como força demiúrgica autônoma do mundomaterial) e o puramente material (como forçademiúrgica determinante do artefato intelectual eestético) , quando a matéria analisada são os artefatosculturais por meio dos quais as pessoas expressam

intenções comunicativas, que não ocorrem num vaziode relações de poder e de situações de assimetria socialno domínio ou acesso a recursos materiais e imateriaisque definem o jogo das formas e a emoção propostapara um plano narrativo, esteja este marcado porregimes representativos ou estéticos da negociaçãosociocultural da semelhança .

Nesse sentido, o conceito de materialidade textualconvida-nos a pensar, simultaneamente, no modocomo o filme se estrutura e na própria significaçãosociocultural dessa estruturação; a buscar e identificara significação ideológica de temporalidade,subjetividade e causalidade na e da linguagemcinematográfica materializada em filme, já que a suamaterialização se estrutura enquanto intençãocomunicativa e, como tal, visa a criar e/ou captardeterminada emoção significativa, provocando – pormeio de um complexo singular de recursoscomunicativos (verbal-imagético-sonoro), derepertório temático-performático, de elenco e detradições artísticas – uma atenção cognitivo-afetivaque tem força explicativa e categorizante sobre temas,pessoas, instituições, eventos e ideias. Portanto, aforma como um filme emociona, ou pretendeemocionar, é estruturante dos centros de significadosintencionais e não-intencionais a serem analisados.

Considerando isso, é importante enfatizar que,mesmo quando um professor escolhe trabalhar um

G N A R U S | 46filme como recurso didático, ou seja, como instrumentode motivação/complementação para uma temática jáconhecida, não pode ignorar o seu complexo cognitivo-afetivo sobre uma temática, pois isso marcará por maistempo a memória de seus alunos do que qualquer outrareferência previamente debatida com textos verbaisescritos. Portanto, mesmo que um professor pretendausar um filme como recurso didático motivacional, elepróprio deve fazer um trabalho prévio de análise damaterialidade textual do filme, de modo a ter certezade que tal materialidade efetivamente corresponde aosseus propósitos temáticos e pedagógicos. Em outraspalavras: não há uso eficaz do filme como recursodidático sem que previamente o professor o tenhatrabalhado como pesquisador de fonte ao fazer seuplanejamento de aula.

Um filme, por exemplo, pode captar, expressar oupropor a religiosidade ou, em termos mais amplos, anecessidade de crer das pessoas, independentementede tal necessidade estar ou não referida a um sistemainstitucional de crença religiosa. Por associar imagem,som (verbal ou não) e performance para provocaremoção, um filme pode potencializar a atençãocognitivo-afetiva sobre determinados valores e ideiasassociados a crenças, conceitos e preconceitos.Portanto, a emoção provocada faz parte do significadoideológico de um filme e pode ter efeitos muito maispermanentes na memória afetiva dos alunos do que olivro didático . Nesse sentido, é fundamental a análiseda materialidade textual do filme para, a partir desta,ponderar um uso pragmático coerente do mesmo comoinstrumento pedagógico de motivação temática.

Depois deste introito, gostaria de fazer algumasponderações críticas sobre o que entendo estar sendoinstituído, explícita ou tacitamente, como campo deHistória e Cinema em algumas universidades do Brasil.De minha parte, entendo que possa haver especialistasde História do Cinema, História da Comunicação,História da Imprensa, História da TV, História da Arte,História da Propaganda, História da Historiografia,História da Literatura, História da Crítica, etc. Noentanto, fico incomodado com a forma como sãocriados novos entes ou especializações inconsistentes(tácitos ou institucionalizados) em nossasuniversidades, tais como professor/pesquisador deHistória e Cinema. O meu incômodo nasce do queconsidero ser um retrocesso historiográfico: definir acapacidade ou especialidade do trabalho do professor-pesquisador a partir de um artefato, em vez de sevalorizar a forma como o historiador, por meio de seudomínio temático e pergunta de pesquisa, transformaum artefato em fonte para pesquisa.

Como em todo trabalho de caracterização defontes e de proposição de hipóteses contextuais ecausais para as mesmas, o historiador aprenderá aexplorar a sua singularidade conforme a suamaterialidade. Além de inventariar as condiçõesinstitucionais-sociais de produção e a intençãoconfiguradora de uso contida numa fonte, o conceitode materialidade está implicado também com otrabalho de analisar as suas regularidades internas, deforma a observar como isso configura sentidos paraconteúdos e expectativas de usos. Tal trabalho decaracterização da materialidade de uma fonte épressuposto inescapável da pesquisa, mesmo quandonão é explicitado em seu produto final (teses, artigos,ensaios, etc) ou quando o objetivo da pesquisa não éinventariar a dimensão intencional ou suas estratégiasretóricas, estéticas e expressivas. Afinal, não existeconteúdo separado de uma forma na construção deseus significados e usos possíveis de um artefatocultural.

Portanto, um passo importante para a autonomiacrítica da pesquisa e para a ampliação daspossibilidades do uso dos filmes como fontes e recursosdidáticos é entender que não existe um entehistoriográfico História e Cinema como camporegulador necessário das possibilidades de uso dofilme. Afinal, supor que tal ente existe é o mesmo queentender que um tipo de fonte define um campo, emvez dos temas, objetos e questões de pesquisa. Emgeral, o historiador está mais habituado a trabalhar com“fonte escrita”. Como é hábito, não vejo nenhumcolega de profissão reivindicar um campo específico deHistória e Fontes Escritas, mas, estranhamente, algunsacreditam que haja um para “História e Cinema”.Implicada neste tipo de entendimento está, na maioriadas vezes, uma hierarquia tácita entre “fonte ficcional”e “fonte não-ficcional”.

O pressuposto dessa hierarquia seria que a “fonteficcional” é “mais problemática” e, portanto, precisariade uma discussão específica; por antonomásia, haveriaa fonte “menos problemática” porque “não-ficcional”.Por isso, particularmente depois da oportuna crítica àescrita da História trazida pelo modelo de HistóriaCultural que solapou o fazer historiográfico da Históriadas Mentalidades na França, considero antiquada estalógica de categorização que cria “entes” ou “campos” apartir de uma hierarquia tácita do que seria a natureza“mais” ou “menos” ficcional (i.e., “problemática”) de umartefato.

Ora, no meu entendimento, com a virada crítica daHistória Cultural na França desde meados da década de

G N A R U S | 471980 – independentemente da abordagem, objeto outema do historiador –, todos nós ganhamos ao sermosprovocados por um paradigma crítico que nos tornou(ou deveria tornar) mais auto-reflexivos sobre a formade pensar nossa escrita, de construir evidência e deconfigurar hipóteses de referencialidade contextual emnossos estudos. Por isso, em certa medida, ganhou novoalento e novo contexto intelectual a agora clássicapreocupação crítica de Marc Bloch de firmar que cadahistoriador deve constituir método crítico segundo anatureza dos artefatos, pois, dependendo do que sequer de um artefato e das possibilidades de respostasde sua materialidade, este se transforma em fonte paraa pesquisa .

Como é a pergunta do historiador que dará voz àfonte e sofrerá a resistência de sua materialidade, édesta relação dialética entre pergunta, método críticoe resistência da fonte que surgirão as hipótesescontextuais, em duas chaves possíveis, nãonecessariamente convergentes: hipóteses intra-fonte,ou indiciamento intertextual, inventariando sua rede designificados e usos originais, produção, tradição ourepertório de conteúdo e forma, suporte, circulação,apropriações, etc; hipóteses extra-fonte, ouindiciamento extratextual, quando se pondera apossibilidade de um artefato servir como índice oulente de aproximação em relação ao mundo deexperiências sociais que o concebeu, significou eapropriou, entendendo que tal mundo não é umaestrutura conclusa ou acabada, mas algo que se refazpermanentemente por meio das filigranas de agentessociais (indivíduos, grupos, instituições, etc) comrecursos materiais e imateriais díspares, valoradosconforme práticas e códigos específicos de distinção ouassimetria social, em relação aos quais um filme podeser um índice social (parcial) crítico ou conformista .

No fazer de minha pesquisa e de docente, tenhocomo meta ideal equilibrar essas duas ênfases decontextualização, explorando o filme como efeito,evento e/ou agente de um mundo de experiências emprocesso aberto de configuração. Sendo assim, mesmoque a pergunta do historiador foque-se em uma dessasênfases no produto final da pesquisa, considerorecomendável que seu processo de pesquisa estejasensível à dimensão ficcional de seu artefato e aopotencial ficcional de sua pergunta que o transformaem fonte, pois é ficcional à medida que, tanto nomundo social de experiências de um passado/presenteque produz dialeticamente um artefato quanto nomundo social de experiências de um presente quedialeticamente o transforma em fonte para pesquisa,há uma ação social (que não ocorre num vazio derelações sociais e de poder) visando a configurar oufixar formas significativas para usos específicos, o quesignifica visibilizar determinados aspectos daexperiência em função das expectativas de abordagensvalorizadas num momento ou campo social específico,que justamente invisibilizam ou silenciam outrosaspectos de experiências contidos num artefato, quepermanecem na penumbra até que novas perguntassurjam para testar a viabilidade de resposta de suamaterialidade .

Nesse sentido, uma “fonte escrita” não é menoscomplexa do que uma “fonte imagética” e, em váriassituações de pesquisa, há uma relação de referência,citação, sobreposição, justaposição, alegorização ecircularidade entre essas formas de fontes, de modoque distingui-las a prioristicamente em “campos” podeinviabilizar um trabalho mais auto-reflexivo e complexode reconstituição histórica ou de proposição dehipóteses contextuais . Assim, penso que, depois davirada crítica da História Cultural, pensar filme comofonte não é algo que precise de uma defesa especial,justificativa diferenciada ou campo de especialistas,como se ainda estivéssemos vivenciando a polêmicaBraudel/Ferro de paradigma de História Social ecientificidade das décadas de 1960 e 1970 .

Até o momento, infelizmente, quando vejodebates sobre “História e Cinema”, tal comotestemunhei na ANPUH Nacional de 2011 (USP),considero os pressupostos de debate, de objeto e deescrita já muito envelhecidos. O contexto de escrita deMarc Ferro sobre este assunto não é mais o atual, poisnão vivemos mais sob o mesmo regime de historicidadeque tornava “História e Cinema” uma espécie de temapara combate e, reativamente, um tipo de “campo adhoc” em face dos paradigmas de cientificidade daHistória Social à la Braudel. Assim, vejo que,

G N A R U S | 48independentemente do interesse de pesquisa e docampo histórico ou foco de interesse do historiadoratual, a História Cultural – que emergiu como crítica àHistória das Mentalidades e à velha História Social naFrança – trouxe para os historiadores em geral umacontribuição crítica que complexifica a análisequalitativa das fontes ao trazer para nossa operaçãohistoriográfica a noção de materialidade textual .

Por tudo isso, vejo com pesar a situação deprofessores em algumas universidades públicas para osquais são encaminhados “alunos de História e Cinema”porque se entendem (ou são entendidos) como“professores de História e Cinema”, somente porquetais discentes têm interesse em usar como fontes algunsfilmes para os quais trazem perguntas que poderiam terrelação mais coerente com temas e áreas de pesquisaem História do Brasil, História Contemporânea,História dos EUA, Teoria da História e História daHistoriografia (aqui, por exemplo, há um potencialainda pouco explorado para estudos de biografias, poisa operação biográfica em filmes merece nossa atençãotanta quanto aquela manifesta em livros!... ), Históriada América, etc.

Várias são as formas e tradições de repertóriostemáticos e expressivos referidos a agendas de escolhaspróprias de uma época e lugar de produção fílmica. Pormeio de suas regularidades internas de forma, tradiçãoestético-expressiva, repertório temático, escolha deelenco, caracterização de personagens e viabilidadetecnológica, os filmes não apenas podem reproduzir outornar presente uma experiência e/ou expectativaextrafílmica (simplificadamente, vou chamar isso detendência Marc Ferro de estudo), mas também seremencarados como o próprio evento a ser analisado(simplificadamente, vou chamar isso de tendênciaMcKenzie de estudo).

Como qualquer evento, um filme não ocorre numvazio de relações sociais e institucionais, pois éproduzido em meio a, para e/ou por meio de relaçõesassimétricas (antitéticas ou não) de raça, etnia, religião,classe social, recursos materiais e imateriais, etc. Comoevento, um filme não é apenas efeito estruturado, masagente estruturante que propõe/produz ações efetivasou expectativas por meio de sua materialidadeespecífica. Como agente estruturado/estruturante deexperiências e expectativas, portador de umamaterialidade específica e referido a um repertóriosociocultural, um filme pode expor, propor ouquestionar: valores, ideias, comportamentos econcepções (políticas, econômicas, sociais, intelectuais,científicas, estéticas, etc); paradigmas de causalidade,

temporalidade, fé e poder; operações historiográficas,biográficas e dramáticas; entendimentos dos laçoshumanos, das relações de trabalho, de eventos, depessoas, de instituições, etc; narrativas de passado,presente e futuro; padrões de subjetividades, deintimidade, de relações de gênero, de pudor, dedistinção social, etc; padrões e/ou críticas estéticas,morais, sociais, etc.

Em suas primeiras discussões sobre “História eCinema”, Marc Ferro ainda fazia uma distinçãohierárquica entre “filme ficcional” e “cinejornais”, poisentendia que estes últimos seriam índices maisadequados para quem pretendesse inventariar os“conteúdos latentes” da “realidade externa” que seimprimia em seus fotogramas . Da década de 1970 atémeados da década de 1980, a escrita de Ferro sobrecinema estava muito marcada por um viés crítico quepensava a sua (contra)análise de uma forma que sereduzia a um jogo de decifração ideológica quesuscitasse consciência e desvelamento para o grandepúblico e, deste modo, propunha uma operaçãohistoriográfica cujo viés crítico não se diferenciava, porexemplo, dos objetivos da operação filmográfica deRossellini nas décadas de 1960 e 1970 . No entanto,depois da virada crítica da História Cultural, este tipode distinção não teria mais sentido para nenhum tipode fonte, pois nosso regime atual de historicidade estácada vez mais consciente da indissociabilidade entreforma e conteúdo, assim como, do efeito estruturanteda pergunta do historiador na configuração dehipóteses contextuais. Além disso, as expectativasoriginais de Marc Ferro sobre o filme como fonte nãorespondem aos desafios de “indiciamento derealidade” do cinema digital pós-Matrix.

Ademais, contextualizar significa, atualmente,fazer uma reconstituição conscientemente hipotéticade realidade a partir de recortes provocados pelapergunta do historiador, pela tradição crítica queenforma a sua pergunta/olhar e pela resistência dasfontes às suas perguntas e métodos, estando ohistoriador consciente de: (1) que sua fonte éestruturada por/para um lugar institucional-social deuso que pode mudar com o tempo, sofrendodeslocamentos de significados e usos; (2) que sua fontepode se posicionar (crítica ou conformativamente) emrelação a regras de gosto e decoro; (3) que sua fontepode sofrer apropriações e deslocamentos que nãonecessariamente se conformam com a materialidadeque definia para ela uma intenção original de uso esignificado; (4) que o suporte físico e forma decomposição de sua fonte também fazem parte de seusignificado; (5) que a sua fonte pode ser também um

G N A R U S | 49agente estruturante do campo social das experiências enão mero produto passivo deste.

Considerando isso, um historiador pode ter umapergunta estruturante de pesquisa que se foque em (ouoscile entre): o evento-filme, a figuração de um eventono filme (pessoas, ideias, valores, instituições,acontecimentos individuais, naturais e coletivos, etc) eos indícios do extrafílmico no filme. O importante éperceber que não existe um único modo de transformarum artefato fílmico em fonte. Um bom cuidado comcaracterização da fonte é comum a todo trabalho dohistoriador, com ou sem artefatos fílmicos. A tarefa decaracterizar qualitativamente uma fonte dependerá doentendimento que se constrói do que seja a suamaterialidade, de modo a se aferir a suacapacidade/resistência de responder as perguntas dohistoriador. Um filme cinematográfico é um complexoespecífico (pático-racional-linguístico-imagético-sonoro-performático) , mas é apenas um tipo decomplexo entre vários outros artefatos produzidos nasociedade.

Por isso, a sua caracterização enquanto fonte nãoé mais difícil, complexa ou problemática do que a fonteescrita, mas simplesmente distinta, pois toda fonte temsuas regularidades internas – felizmente para nós –inexauríveis. É assim que gostaria que fosse entendida aminha afirmação de que não entendo que hajaespecialista de “História e Cinema” ou especialista de“História e Imagem”, etc, da mesma forma que nãoexiste especialista de “História e Fonte Escrita”, pois, nomeu entendimento, não existe especialista em formasde fontes, mas em temas para os quais os artefatos sãoapenas condições de possibilidade para o desafio dapesquisa – e tais temas podem ou não criar, conforme ointeresse e a pergunta do historiador, recorrência notrato de um tipo de fonte.

Por fim, há de se considerar que não existe fonte,mas somente matéria inerte, até o momento em queum artefato sofre o recorte e resiste à perguntaestruturante do historiador. De acordo com otema/interesse de um historiador, a sua pesquisapoderá abarcar diferentes tipos de fontes, cujasmaterialidades criarão padrões diferenciados dereferencialidade e resistência à pergunta estruturantedo seu tema de pesquisa. É desta relação dialética deresistência entre a pergunta conscientementeestruturante do historiador e as materialidades dasfontes que nasce, em minha opinião, uma operaçãohistoriográfica mais auto-reflexivo e a possibilidade deaferir mérito intelectual de uma pesquisa que sejaefetivamente desafiadora e seminal. Trata-se de um

ganho crítico do qual não deveríamos abrir mão, umganho crítico que a História Cultural trouxe para todosos tipos e formas de historiadores.

Alexander Martins Vianna é Mestre e Doutor emHistória Social pelo PPGHIS-UFRJ e Professor AdjuntoII de História Moderna do DHIST-UFRRJ.

Para saber mais: