Alexandre Herculano - A Morte Do Lidador

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Alexandre Herculano - A Morte Do Lidador

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A MORTE DO LIDADOR (1170)

Fonte:HERCULANO, Alexandre. A morte do lidador. So Paulo : Logos, 1959. p. 41-51 (Antologia da Literatura Mundial).

Texto proveniente de:A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de So PauloPermitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:Simone Rosales

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A MORTE DO LIDADOR

Alexandre Herculano

- Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e vs dai-me o meu lorigo de malha de ferro e a minha boa toledana. Senhores cavaleiros, hole contam-se noventa e cinco anos que recebi o batismo, oitenta que visto armas, setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia fazendo entrada por terras da frontaria dos mouros.

Isto dizia na sala de armas do castelo de Beja Gonalo Mendes da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelejara e por seu valor indomvel, chamavam Lidador. Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz, e feitas pazes com el-rei Leo, o nomeara fronteiro da cidade de Beja, de pouco tempo conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam com le, e outro muiots cavaleiros afamados, entre os quais D. Ligel de Flandres e Mem Moniz - que a festa de vossos anos, Senhor Gonalo Mendes, ser mais de mancebo cavaleiro que de capito encanecido e prudente. Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem a haverdes de guardar, e no sei se arriscado sair hoje campanha, que dizem os escutas, chegados ao romper d'alva, que o famose Almoleimar correr por stes arredores com dez vzes mais lanas do que tdas as que esto encostadas nos lanceiros desta sala de armas.

- Voto a Cristo - atalhou o Lidador - que no cria em que o senhor rei me houvesse psto nesta trre de Beja para estar assentado lareira da chamin, como velha dona, a espreitar de quando em quando por uma seteira se cavaleiros mouros vinham correr at a barbac, para lhes cerrar as portas e ladrar-lhes do cimo da trre da menagem, como usam os vilos. Quem achar que so duros de mais os arneses dos infiis pode ficar-se aqui.

- Bem dito! Bem dito! - exclamarem, dando grandes risadas, os cavaleiros mancebos.

- Por minha boa espada! - gritou Men Moniz, atirando o guante ferrado s ljeas do pavimento - que mente pela gorja quem disser que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez lguas em redor lide com mouros. Senhor Gonalo Mendes, podeis montar em vosso ginete, e veremos qual das nossas lanas bate primeior em adarga mourisca.

- A cavalo! A cavalo! - gritou outra vez a chusma, com grande alarido.

Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros descendo os degraus de mrmore da trre de Beja e, passados alguns instantes, soava s o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadia das fortificaes exteriores que davam para a banda da campanha por onde costumava aparecer a mourisma.

2

Era um dia do ms de julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silncio dentro da crca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiadas dos muros e trres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que avizinhavam o tso sbre que a povoao est assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mos de agarenos para seus novos senhores cristos. Regados por lgrimas de escravos tinham sido sses campos, quando formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lgrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando, no ms de julho, a paveia, cercada pela fouce, pendesse sbre a mo do ceifeiro: chro de amargura havia a, como, cinco sculos antes, o houvera: ento de cristos conquistados, hoje de mouros vencidos. A cruz hateava-se outra vez sbre o crescente quebrado: os coruchus das mesquitas convertiam-se em campanrios de ss, e a voz do almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam orao entendida por Deus.

Era esta a resposta dada pela raa goda aos filhos d'frica e do Oriente, que diziam, mostrando os alfanges: - " nossa a terra de Espanha". - O dito rabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito sculos a escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astrias; a ltima gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros de suas bambardes, nos panos das muralhas da formosa Granada: e esta escritura, estampada em alcantis de ontanhas, em campos de batalha, nos portais e trres dos templos, nos bancos dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a mo da Providncia - "assim para todo o sempre!"

Nesta luta de vinte gera;'oes andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam as serranias do Algarve: de l esperava le salvao ou, ao emnos, vengana; ao menos, um dia de combate e corpos de cristos estirados na veiga para pasto dos ares bravios. A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lgrimas, embora as aves de rapina tivessem, tambm, abundante ceva de cadveres de seus irmos! E ste ameno dia de julho devia ser um dsses dias por que suspirava o servo ismaelita.

Almoleimar descera com os seus cavaleiros s campinas de Beja. Pelas horas mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos pncaros das serras remotas, semelhantes s luzinhas que em descampados e tremedais acendem as bruxas em noites de seus folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger das flhas scas, e o tinir a espaos de alfange batendo em ferro de caneleira ou de coxote. Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saam mais de dois tiros de besta alm das muralhas de Beja; tudo porm estava em silncio, e s, aqui e ali, as searas calcadas davem rebate de que por aqules stios tinham vagueados almogaures mouros, como o leo do deserto rodeia, pelo quarto de modrra, as habitaes dos pastres alm das encostas do Atlas.

No dia em que Gonalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa e cinco anos, ningum sara, pelo arrebol da manh, a correr o campo; e, todavia, nunca to de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha fra pregada a mo em um grosso sovereiro que sombreava uma fonte a pouco mais de tiro de funda dos muros do castelo. Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristos: Lidador pedira aos pajens o seu lorigo de malha de ferro e a sua boa toledana.

Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam rdea slta pelas campinas de Beja; trinta, no mais, eram les; mas oravam por trezentos os homens d'armas, escudeiros e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como flocos de neve, sbre o peitoral da cota d'armas, e o terrvel Loureno Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro. Eram formoso espetculo o esvoaar dos balses e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das cervillheiras, as cres variegadas das cotas, e as ondas de p que se alevantavam debaixo dos ps dos ginetes, como se alevanta o bulco de Deus, varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de vero.

Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no horizonte no se vem seno os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavaleiros caminham. Nem um pendo mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao longe sbre um cavalo murzelo. Os corredores cristos volteiam na frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos e transpem-nos em breve; entram pelos canaviais dos ribeiros; aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas se ouvem o trote campassado dos ginetes e o grito montono da cigarra, pousada nos raminhos da giesteira.

A terra que pisam j dos mouros; j alm da frontaria. Se olhos de cavaleiros portuguses soubessem olhar para trs, indo em som de guerra, os que para trs de si os volvessem a custo enxergariam Beja. Bastos pinhais comeavam j a cobrir mais crspo territrio, cujos outirinhos, aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em vio de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavaleiros cobertos de p corria o suor em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as rdes de ferro acaireladas d'ouro que so defendiam. A um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessrio repousar, que o sol ia no znite e abrasava a terra; descavalgaram todos sombra de um azinhal e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho.

Tinha passado meia hora: por mandado do velho fronteiro de Beja um almogvar montou a cavalo e aproximou-se rdea slta de uma selva extensa que corria mo direita: pouco, porm, correu; uma frecha despedida dos bosques sibilou no ar: o almogvar gritou por Jesus: a frecha tinha-se embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e le, erguendo os braos ao ar, com as mos abertas, caiu de bruos, tombando para o cho, e o ginete partiu desenfreado atravs das veigas e desapareceu na selva. O almogvar dormia o ltimo sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar eterno.

- A cavalo! A cavalo! - bradou a uma voz tda a lustrosa companhia do Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes, soou unssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo; e os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.

Grita medonha troou ao mesmo tempo, alm do pinhal da direita. - "Al! Almoleimar!" - era o que dizia a grita.

Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros rabes saram rdea slta de trs da escura selva que os encobria: o seu nmero excedia em conco vzes o dos soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal: mas as lanas dstes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a fra da raa gtico-romana ia, ainda mais uma vez, provar-se com a destreza e com a percia rabes.

4

Como longa fita de muitas cres, recamada de fios d'ouro e refletindo mil acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaa na veiga entre as searas plidas que cobriam o campo. Defronte dles, os trinta cavaleiros portuguses, com trezentos homens d'armas, pajens e escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltrios e lanas em riste, esperavam o brado de acometer. Quem visse aqule punhado de cristos, diante da cpia d'infiis que os esperavam, diria que, no com brios de cavaleiros, mas com fervor de mrtires, se ofereciam a desesperado transe. Porm, no pensava assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a tmpera das espadas e lanas portuguses e a rijeza dos braos que as meneavam. De um contra dez devia ser o iminente combte; mas, se havia a algum corao que batesse descompassado, algumas faces descoradas, no era entre os companheiros do Lidador, que tal corao batia ou que tais faces descoravam.

Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embbido debaixo dos ps dos cavalos, como no trculo se embebe a flha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanas iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Al soara em um s grito por tda a fileira mourisca.

Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balouadas por violento terremoto, desabando, no fariam mais rudo, ao bater em pedaos uma contra a outra, do que ste recontro de infiis e cristos. As lanas, topando em cheio nos escudos, tiravam dles um som profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despedaadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram ao cho: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as armas e trapassou o peito com o ferro de sua grossa lana. Deixando-a depois cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador, que perto dle estava:

- Senhor Gonalo Mendes, ali tendes, no peito daquele perro, aberto a seteira por onde eu, velha dona assentada lareira, costumo vigiar a chegada de inimigos, para lhes ladrar, como alcatia de vilos, do cimo da trre de menagem.

O Lidador no lhe pde responder. Quando Mem Moniz proferia as ltimas palavras, le topara em cheio com o terrvel Almoleimar. As lanas dos dois contendores haviam-se feito pedaos, e o alfanje do mouro cruzou-lhe com a toledana do fronteiro de Beja.

Como duas trres de sete sculos, cujo cimento o tempo petrificou, os dois capites inimigos estavam um defronte do outro, firmes em seus possantes cavalos: as faces plidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a imobilidade que d, nos grandes perigos, o hbito de os afrontar: mas no rosto de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor colrico e impetuoso. Cerrando os dentes com fra, descarregou um golpe tremendo sbre o seu adversrio: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje se embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldo e a couraa; mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo coxote do mouro, que j desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudao dos dois cavaleiros inimigos.

- Brando o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado o metal do meu arns. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios dste alfanje.

Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a cimitarra bateu no fundo do vale penedo desconforme desprendido do pncaro da montanha.

O fronteiro vacilou, deu um gemido, e os braos ficaram-lhe pendentes: a espada ter-lhe-ia cado no cho, se no estivesse prsa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rdeas frouxas, fugiu um bom pedao pela campanha, a todo o galope.

Mas o Lidador tornou a si: uma forte sofreada avisou o ginete de que seu senhor no morrera. rdea slta, l volta o fronteiro de Beja; escorre-lhe o sangue, envolto em escuma, pelos cantos da bca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar!

Semelhante ao vento de Deus, Gonalo Mendes da Maia passou por entre os cristos e mouros: os dois contendores viram-se, e, como o leo e o tigre, correram um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu violenta estocada; e o dangue, saindo s golfadas, cortou a ltima maldio do agareno.

Mas a espada dste tambm no errara o golpe: vibrada na nsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a grossa malha do lorigo, penetrara na carne at o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue gdo misturado com sangue rabe.

- Perro maldito! Sabe l no inferno que a espada de Gonalo Mendes mais rija que a sua cervilheira.

E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido; um dos seus homens de armas voou a socorr-lo; mas o ltimo golpe d'Almoleimar fra o brado da sepultura para o fronteiro de Beja: os ossos do ombro do bom velho estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado envltas nas malhas descosidas do lorigo.

5

Entretanto os mouros iam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes Gedeo e os outros cavaleiros daquela lustrosa companhia tinham praticado maravilhosas faanhas. Mas, entre todos, tornava-se notvel o Espadeiro. Com um pesado montante nas mos, coberto de p, suor e sangue, pelejava a p; que o seu agigantado ginete cara morto de muitos tiros de frechas lanadas. De roda dle no se viam seno cadveres e membros destroncados, por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou baquearem no cho, os mais ousados cavaleiros rabes. Como um promontrio de escarpados alcantis, Loureno Viegas estava imvel e sabranceiro n meio do embate daquelas vagas de pelejadores que vinham desfazer-se contra o terrvel montante do filho de Egas Moniz.

Quando o fronteiro caiu, o grosso dos mouros fugia j para alm do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda roda do seu moribendo. O Lidador sse tinha sido psto em cima de umas andas, feitas de troncos e franas de rvores, e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que consigo trouxera, o haviam transportado para a saga da cavalgada. O tinir dos golpes era j muito frouxo e sumiam-se no som dos gemidos, pragas e lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga ensangentada. Se os mouros, porm, levavam, fugindo, vergonha e dano, a vitria no sara barata aos portuguses. Viam perigosamente ferido o seu velho capito, e tinham perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte dos homens de armas, escudeiros e pajens.

Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer uma nuvem de p, que voava rpida para o lugar da peleja. Mais perto, aqule turbilho rareou vomitando do seio basto esquadro de rabes. Os mouros que fugiam deram volta e gritaram:

A Ali-Abu-Hassan! S Deus Deus, e Maom o seu profeta!

Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tnger, que estava com seu exrcito sbre Mertola e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.

6

Cansados de largo combater, reduzidos a menos de metade em nmero e cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem, que estava ao p das andas, que nova revolta era aquela.

- Os mouros foram socorridos por um grosso esquadro - respondeu tristemente o pajem. - A Virgem Maria nos acuda, que os senhores cavaleiros parece recuarem j.

O Lidador cerrou os dentes com fra e levou a mo cinta. Buscava a sua boa toledana.

- Pajem, quero um cavalo. Onde est a minha espada?

- Aqui a tenho, senhor. Mas estais to quebrado de fras!...

- Silncio! A espada, e um bom ginete.

O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que andavam j sem dono. Quando voltou com le, o Lidador, plido e coberto de sangue, estava em p e dizia, falando consigo:

- Por Santiago que no morrerei como vilo da beetria onde entrou cavalgada de mouros!

E o pajem ajudou-o a montar o cavalo.

Ei-lo o velho fronteiro de Beja! Semelhava um espectro erguido de pouco em campo de finados: debaixo de muitos panos que lhe envolviam o brao e o ombro esquerdo levava a prpria morte; nos fios da espada, que a mo direita mal sustinha, levava, porventura, ainda a morte de muitos outros!

7

Para onde mais travada e acesa andava a peleja se encaminhou o Lidador. Os cristos afrouxavam diante daquela multido de infiis, entre os quais mal se enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portuguses. Dois cavaleiros, porm, com vulto feroz, os olhos turvados de clera, e as armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o pso da batalha. Eram stes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o fronteiro assim os viu oferecidos a certa morte algumas lgrimas lhe caram pelas faces e, esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre infiis e cristos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante nas mos, faziam larga praa no meio dos inimigos.

- Bem-vindo, Gonalo Mendes! - disse Mem Moniz. - Quiseste assistir conosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feiot, que estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado l na saga, enquanto eu, velha dona, espreito os mouros com meu sobrinho junto desta lareira...

- Implacveis sois vs outros, cavaleiros de Riba-Douro, - respondeu o Lidador em voz sumida- que no perdoais uma palavra sem malcia. Lembra-te, Mem Moniz, de que bem depressa estaremos todos diante do justo juiz.

Velho sois; bem o mostrais! - acudiu o Espadeiro. - No cureis de vs porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que no ousam chegar-se a ns. Avante, e Santiago!

- Avante, e Santiago! - responderam Gonalo Mendes e Mam Moniz: e os trs cavaleiros deram rijamente nos mouros.

8

Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no ms de julho de 1170 se deram na veiga da fronteira de Beja, not-los- de fbulas sonhadas; porque ns, homens corruptos e enfraquecidos por cios e prazeres de vida afeminada, medimos por nossos nimos e fras, a fra e o nimo dos bons cavaleiros portuguses do scuo XII; e todavia, sses golpes ainda soam, atravs das eras, nas tradies e crnicas, tanto crists como agarenas.

Depois de deixar assinadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrara pela ltima vez a espada e abrira o elmo e o crnio de um cavaleiro rabe. O violento abalo que experimentou lhe fz rebentar em torrentes o sangue da ferida que recebera das mos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao p do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso Hermingues de Baio, que com les se ajuntara. Repousou, finalmente, Gonalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!

J a ste tempo cristos e mouros se haviam descido dos cavalos e pelejavam a p. Traziam-se assim vontade, e recrescia a crueza da batalha. Entre os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capito, e no houve ali olhos que ficasem enxutos. O despeito do prprio Mem Moniz deu lugar dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluos:

- Gonalo Mendes, s morto! Ns todos quantos aqui somos, no tardar que te sigamos; mas ao menso, nem tu, nem ns ficaremos sem vingana!

- Vingana! - bradou o Espadeiro com voz rouca, e rangendo os dentes. Deu alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha em cu proceloso.

Era Ali-Abu-Hassan: Loureno Viegas o conhecera pelo timbre real do morrio.

9

Se j vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas vzes um vulto negro que em linha diagonal corta os ares, sussurrando e gemendo. Rpido, como um pensamento criminoso em alma honesta, le chegou das nuvens terra, antes que vos lembrsseis do seu nome. Se encontrou na passagem ngulo de trre secular, o mrmore converte-se em p; se atravessou, pelas ramas de rvore basta e frondosa, a flha mais virente e frgil, o raminho mais tenro dividido, como se, com cutelo sutilssimo, mo de homem lhe houvera cerceado atentamente uma parte; e, todavia, no um ferro aacalado: um globo de ferro; a bomba, que passa, como a maldio de Deus. Depois, debaixo dela, o cho achata-se e a terra espadana aos ares; e, como agitada, despedaada por cem mil demnios, aquela mquina do inferno estoura, e de roda dela h um zumbir sinistro: so mil fragmentos; so mil mortes que se derramam ao longe. Ento faz-se um grande silncio vem-se corpos destroncados, poas de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos feridos e o estertor dos moribundos.

Tal desceu o montante do Espadeiro, rto dos milhares de golpes que o cavaleiro tinha descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em pedaos pelos ares, e o ferro cristo esmigalhou o crnio do infiel, abriu-o at os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.

- Lidador! Lidador! - disse Loureno Viegas, com voz comprimida. As lgrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o p e com o sangue do agareno, de que ficou coberto. No pde dizer mais nada.

To espantoso golpe aterrou os mouros. Os portuguses seriam j apenas sessenta, entre cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam como desesperados e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos juncavam o campo, de envlta com os cristos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.

Os portuguses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitria. Poucos havia que no estivessem feridos; nenhum que no tivesse as armas falsadas e rtas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja. Aps aqule tristssimo prstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templrio, que fra na cavalgada com a espada cheia de sangue metida na bainha, salmodeava em voz baixa aquelas palavras do livro da Sabedoria:

"Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum mortis".

FIM