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1 “Questão Nacional” e “Questão Racial” no Pensamento Social Brasileiro Alexandro Dantas Trindade 1 O objetivo do texto é apresentar algumas das principais controvérsias a respeito da formação social brasileira, através da leitura que intelectuais, considerados “intérpretes do Brasil”, elaboraram ao longo dos séculos XIX e XX. Temos como foco central a formação da nação e a chamada “questão racial”, explorando suas dimensões intelectuais e os efeitos políticos de certas teses sobre nossa constituição nacional. 1 INTRODUÇÃO O objetivo deste texto é percorrer algumas leituras do pensamento social brasileiro desde o século XIX, tendo como foco central a formação da nação e a “questão racial” no Brasil. Exploraremos como esta dimensão foi pensada por alguns intelectuais que se colocaram como intérpretes do Brasil e da formação do povo. Especificamente, buscaremos compreender como a chamada “questão racial” foi lida ao longo do século XX no Brasil, tanto pelo pensamento social mais amplo como pelas análises sociológicas comprometidas em entender nossa complexa formação social. Além disso, discutiremos as pesquisas mais recentes sobre as relações raciais, o papel e a trajetória dos movimentos sociais de combate às desigualdades, assim como os efeitos das recém-implantadas políticas públicas que visam reduzi-las, como as ações afirmativas, por exemplo. No entanto, para que possamos começar a discutir os temas acima propostos, acreditamos que uma breve introdução aos temas da construção da 1 Professor Associado I do Departamento de Ciência Política e Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2004, com a tese intitulada: “André Rebouças: da Engenharia Civil à Engenharia Social”. Coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq “Pensamento Social, Intelectuais e Circulação de Ideias” (UFPR) e membro do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB / UFPR). (E-mail: [email protected])

Alexandro Dantas - Pensamento Social

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Alexandro Dantas - Pensamento Social

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    Questo Nacional e Questo Racial no Pensamento Social Brasileiro

    Alexandro Dantas Trindade1

    O objetivo do texto apresentar algumas das principais controvrsias a respeito da formao social brasileira, atravs da leitura que intelectuais, considerados intrpretes do Brasil, elaboraram ao longo dos sculos XIX e XX. Temos como foco central a formao da nao e a chamada questo racial, explorando suas dimenses intelectuais e os efeitos polticos de certas teses sobre nossa constituio nacional.

    1 INTRODUO

    O objetivo deste texto percorrer algumas leituras do pensamento social

    brasileiro desde o sculo XIX, tendo como foco central a formao da nao e a

    questo racial no Brasil. Exploraremos como esta dimenso foi pensada por alguns

    intelectuais que se colocaram como intrpretes do Brasil e da formao do povo.

    Especificamente, buscaremos compreender como a chamada questo racial foi lida

    ao longo do sculo XX no Brasil, tanto pelo pensamento social mais amplo como pelas

    anlises sociolgicas comprometidas em entender nossa complexa formao social.

    Alm disso, discutiremos as pesquisas mais recentes sobre as relaes raciais, o papel

    e a trajetria dos movimentos sociais de combate s desigualdades, assim como os

    efeitos das recm-implantadas polticas pblicas que visam reduzi-las, como as aes

    afirmativas, por exemplo. No entanto, para que possamos comear a discutir os temas

    acima propostos, acreditamos que uma breve introduo aos temas da construo da

    1 Professor Associado I do Departamento de Cincia Poltica e Sociologia da Universidade Federal do

    Paran (UFPR). Doutor em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2004, com a tese intitulada: Andr Rebouas: da Engenharia Civil Engenharia Social. Coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq Pensamento Social, Intelectuais e Circulao de Ideias (UFPR) e membro do Ncleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB / UFPR). (E-mail: [email protected])

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    nao, da escravido e das interpretaes elaboradas pelo pensamento social acerca

    da miscigenao e da formao do povo so fundamentais para entendermos tanto o

    alcance e os limites das pesquisas sobre as relaes raciais como o papel dos

    movimentos sociais e as respostas do Estado frente a esse fenmeno. Assim,

    esperamos que este texto possa contribuir como uma leitura preliminar para esta

    tarefa.

    2 PECULIARIDADES DA FORMAO SOCIAL BRASILEIRA: O BRASIL-NAO COMO

    IDEOLOGIA

    Para entendermos o alcance e o sentido que o tema das relaes raciais teve e

    ainda tem na sociedade brasileira, no poderamos deixar de compreender um aspecto

    que tem apresentado desafios s cincias sociais e historiografia contemporneas: o

    processo de construo da identidade nacional. Como entender, afinal, o Brasil-

    nao. Mais precisamente, o que entender por nao?

    A rigor, no h uma definio unvoca, unnime e universalmente aceita para o

    termo nao. Embora saibamos que a humanidade subdivide-se em diversas

    culturas, que se diferenciam por lnguas, costumes, religies, e que comportam

    unidades polticas, cujos grupos comprometem-se com a ajuda mtua e submetem-se

    a estruturas de autoridade, nem por isso podemos identificar, com nitidez absoluta,

    suas fronteiras culturais ou polticas - as tradies culturais, como linguagem, devoo

    religiosa ou costume popular, frequentemente se entrecruzam; as jurisdies polticas

    podem sobrepor-se umas as outras; e, de maneira geral, as fronteiras polticas e

    culturais raramente so convergentes.

    De acordo com um terico poltico contemporneo, Ernest Gellner, num verbete

    para o Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX (1996), impossvel aplicar o

    termo nao a todas as unidades que so cultural ou politicamente caracterizveis,

    j que isso implicaria tanto num nmero excessivo de naes, como no fato de que

    vrios indivduos teriam mltiplas identidades nacionais (OUTHWAITE; BOTTOMORE,

    1996, p. 507). A pergunta sobre como um grupo que compartilha uma identidade

    lingustica, cultural, religiosa, tnica etc., poderia se constituir numa nao, ou em que

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    medida uma unidade poltica pudesse representar uma ou mais identidades culturais,

    a rigor, s teria sentido a partir de um processo histrico especfico. Mais

    precisamente, com o advento da modernidade e do Estado-nao. Isto , a sociedade

    urbana e industrial, palco da mobilidade social e de um estado organizado, ao

    substituir comunidades locais, tribais, baseadas em grupos de parentesco ou

    desprovidas de uma autoridade central, construiu igualmente a ideia de nao como

    aspecto central para garantir a legitimidade diante destas transformaes na estrutura

    social.

    Assim, foi na virada do sculo XVIII para o XIX que o termo nao passou a ter

    uma importncia central para a vida de milhes de indivduos, a ponto de legitimar

    rebelies em massa, processos de independncia poltica, domnio de outros povos,

    formas de resistncia a outros grupos, e assim por diante.

    Segundo a filsofa Marilena Chau, a etimologia da palavra nao remonta ao

    verbo latino nascor (nascer), e de um substantivo derivado deste verbo, natio ou

    nao. Originalmente significou indivduos nascidos ao mesmo tempo de uma mesma

    me, e, depois, os indivduos nascidos num mesmo lugar (CHAU, 2006, p. 14). No

    final da Antiguidade e no incio da Idade Mdia, a Igreja Catlica passou a usar

    nationes, no plural, para se referir aos pagos e distingui-los do populus Dei, o povo

    de Deus. Ou seja, enquanto a palavra povo designava um grupo de indivduos

    organizados institucionalmente, obedientes a regras e leis comuns, traduzindo,

    portanto, um conceito jurdico-poltico, a nao era um conceito biolgico, que

    significava apenas um grupo de descendncia comum, usado para referir-se tanto aos

    pagos (em contraposio aos cristos), como aos estrangeiros (os judeus, que eram

    os homens da nao em Portugal, por exemplo, ou as naes indgenas que viviam

    sem f, sem rei e sem lei, segundo a tica dos colonizadores).

    Assim, antes da inveno histrica da nao, como fruto do processo de

    unificao poltica e do advento do Estado-nao, os termos polticos empregados

    eram povo e ptria. Esta ltima era derivada do vocbulo latino pater, pai,

    entendido no como genitor dos filhos, mas como senhor, chefe ou aquele que

    possui a propriedade absoluta da terra e do que nela existe, isto , do patrimonium.

    (Idem, p. 15). A partir do sculo XVIII, com as revolues norte-americana, holandesa e

    francesa, ptria passou a significar o territrio cujo senhor o povo organizado sob

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    a forma de Estado independente, e este vocbulo esteve presente tambm nas

    revoltas que antecederam o processo de Independncia no Brasil, quando se falava em

    ptria mineira, ptria pernambucana, e no em uma ptria brasileira (Idem, p.

    16).

    Todavia, o significado etimolgico de palavras como nao, nacionalidade,

    nacionalismo, em si mesmas, nos diz muito pouco acerca dos usos polticos, das

    representaes com que foram usadas, em suma, dos processos histricos que as

    tornaram uma referncia ideolgica central no mundo moderno. Contudo, a escassez

    de teorias plausveis sobre o fenmeno da nao e do nacionalismo no tem sido

    obstculo para que autores como Eric Hobsbawm (1990) e Benedict Anderson (2008),

    para citarmos talvez os mais influentes, realizassem estudos importantes visando sua

    compreenso.

    Para o primeiro, alm da nfase quanto ideia de vincular a nao ao

    desenvolvimento do Estado moderno, o elemento de artefato, da inveno e da

    engenharia social que entra na formao das naes de fundamental importncia. A

    viso da nao como algo natural, divino, ou como destino poltico de um povo,

    presente em muitos discursos nacionalistas, no passa de um mito. Na verdade, o

    discurso nacionalista do Estado o que cria as possibilidades para se pensar a nao, e

    no o oposto. (HOBSBAWM, 1990, p. 19).

    Esta ideia de construo, inveno ou artefato , digamos, radicalizada em

    Benedict Anderson (2008), para quem tanto a condio nacional quanto o

    nacionalismo so entendidos enquanto produtos culturais especficos do final do

    sculo XVIII. Mais precisamente, o autor prope definir nao, antropologicamente,

    como sendo uma comunidade poltica imaginada: ela imaginada, porque mesmo

    os membros da mais minscula das naes jamais conhecero, encontraro, ou sequer

    ouviro falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a

    imagem viva da comunho entre eles (ANDERSON, 2008, p. 32). Neste exerccio de

    imaginao da nao, os intelectuais desempenharam e continuam a desempenhar um

    papel destacado, pois so os artfices dessa construo de imaginrios coletivos

    (COSTA, 2008, p. 10).

    Seguindo essa ltima ideia, cabe-nos agora indagar sobre como teria sido o

    processo de constituio do Brasil-nao, sendo um caminho possvel o estudo das

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    distintas representaes elaboradas pelos intelectuais. Na verdade, um tema que tem

    intrigado socilogos, historiadores, economistas, cientistas polticos e outros

    pesquisadores tem sido o tema do descompasso entre a criao do Estado e a

    formao da Nao brasileira, ou mais exatamente, da complexidade da nossa

    identidade nacional.

    O fascnio pela chamada questo nacional algo que perpassa a histria do

    pensamento brasileiro. Sobretudo em pocas de crise, a questo nacional mobiliza

    diversos intelectuais, geraes inteiras que se voltam para tentar repensar a nao,

    esboar-lhe um sentido, dar-lhe alguma coerncia.

    Algumas representaes tm sido mais vigorosas, mais frequentes ou

    hegemnicas, tais como o motivo ednico, isto , a viso paradisaca do Brasil. Esta

    viso presente, pelo menos desde a carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500, foi

    expressa de modo exemplar por Rocha Pita, em Histria da Amrica Portuguesa,

    publicado em 1730:

    Em nenhuma outra regio se mostra o cu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfrio tem raios to dourados, nem os reflexos noturnos to brilhantes; as estrelas so mais benignas e se mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasa o sol, ou se sepulte, esto sempre claros; as guas, ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povoaes nos aquedutos, so as mais puras; enfim o Brasil Terreal Paraso descoberto, onde tem nascimento e curso os maiores rios; domina salutfero clima; influem benignos astros e respiram auras suavssimas, que o fazem frtil e povoado de inumerveis habitadores. (ROCHA PITA, 1730, p. 3-4, apud CARVALHO, 1998, p. 2).

    A ideia de que o Brasil gigante pela prpria natureza, terra de um povo

    pacfico e ordeiro, sem revolues, terremotos ou grandes rupturas, igualmente

    parte deste grande mito sobre a identidade nacional. Da mesma forma que a ideia

    de sermos um povo formado pela mistura de trs raas unidas por uma democracia

    racial. Entretanto, ao lado destas, houve diversas outras representaes,

    correspondentes a momentos distintos do nosso processo de formao social. Foram

    vrios os smbolos e emblemas criados pelas elites intelectuais ao longo do tempo. Em

    momentos de crise das instituies, de mudanas sociais intensas, ou em tempos de

    incerteza, elas podem ser vistas como tentativas de se criar uma narrativa que d

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    sentido e uma certa homogeneidade ao que, na verdade, catico e contraditrio,

    sujeito a vrias leituras possveis.

    Segundo Octvio Ianni, visto numa perspectiva histrica ampla, o Brasil revela-se

    como uma formao social caleidoscpica, um arquiplago, uma espcie de

    labirinto de elementos culturais e tnicos, simultaneamente s diferentes formas de organizao do trabalho e da produo. Essa uma formao social em que convivem formas de sociabilidade constitudas em distintas pocas e em diferentes regies; regies que por muito tempo, at meados do sculo 20, compunham uma espcie de arquiplago, em lugar de um pas socialmente articulado. (IANNI, 2004, p. 160).

    Uma nao em busca de um conceito - ainda segundo o autor, o Brasil ainda

    no propriamente uma nao, embora possa ser um Estado nacional, no sentido de

    um aparelho estatal organizado, abrangente e forte, que acomoda, controla ou

    dinamiza tanto estados e regies como grupos raciais e classes sociais (IANNI, 2004, p.

    199). Em suma, o Brasil revela uma vasta desarticulao, a despeito de seus

    smbolos, como a lngua, a bandeira, a moeda, o mercado, seus santos e heris, etc.

    Apenas aparentemente podemos pensar uma cultura brasileira. Todavia, a

    identidade nacional forte o suficiente a ponto de naturalizarmos nossa condio de

    brasileiros.

    Este aspecto contraditrio , na verdade, produto de uma situao paradoxal

    que se verificou no apenas no Brasil, mas que foi extensivo s naes do Novo

    Mundo. que, diferentemente das naes europeias, cuja estratgia fora a de

    estreitar os vnculos com um passado tanto mais glorioso quanto mais remoto, na

    Amrica a Independncia significou o rompimento poltico com metrpoles que eram

    importantes matrizes identitrias (COSTA, 2008, p. 4). Ou seja, ao mesmo tempo em

    que os pases americanos rompiam com suas metrpoles, no podiam renunciar sua

    ligao com o mundo europeu do ponto de vista cultural e poltico, tampouco afastar-

    se do sistema mundial de Estados-naes, mas teriam que pertencer a ele de outra

    maneira.

    No caso brasileiro, o paradoxo deste processo de Independncia foi at mais

    evidente, pois a manuteno da unidade territorial do domnio portugus

    correspondeu muito mais a uma viso da antiga metrpole do que a uma demanda

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    dos prprios colonos, ao contrrio do que aconteceu no restante do continente sul-

    americano. A Amrica Espanhola fragmentou-se em tantos pases independentes

    quanto eram suas antigas subdivises administrativas coloniais. Alm disto, enquanto

    aqueles pases experimentaram processos mais ou menos intensos de balcanizao,

    caudilhismo e instabilidade poltica, embora com maior mobilizao popular, o Brasil

    assistiu a um processo de reduo do conflito nacional, juntamente com a limitao da

    mobilidade social e da participao poltica. O resultado foi que o Estado brasileiro se

    constituiu numa espcie de flor extica no contexto latino-americano ao manter-se,

    ao longo da maior parte do sculo XIX, como uma monarquia e um pas escravista ao

    lado de repblicas formalmente livres.

    Uma explicao para o fenmeno dada por Jos Murilo de Carvalho, para quem

    tal quadro teria sido o resultado da maior unidade ideolgica da elite poltica

    brasileira, em comparao com as dos demais pases (CARVALHO, 1996, p. 209).

    Segundo o autor,

    a maior continuidade com a situao pr-independncia levou a manuteno de um aparato estatal mais organizado, mais coeso, e tambm mesmo mais poderoso. Alm disso, a coeso da elite, ao reduzir os conflitos internos aos grupos dominantes, reduziu tambm as possibilidades ou a gravidade de conflitos mais amplos da sociedade. A ausncia de conflitos polticos que levassem a mudanas violentas de poder tinha tambm como conseqncia a reduo de um dos poucos canais disponveis de mobilidade social ascendente. Em vrios outros pases da Amrica Latina, os caudilhos eram frequentemente recrutados em camadas populares. A manuteno da escravido, um compromisso da elite com a propriedade da terra, reforou mais ainda o aspecto de reduo da mobilidade social. (Idem, p. 36).

    exatamente sobre esta questo que Carvalho aponta um trao singular do

    processo poltico brasileiro: tratar-se-ia do paradoxo de o canal de mobilidade mais

    importante para os elementos no inseridos no sistema econmico agrrio-escravista

    ter sido a prpria burocracia. O Estado, ao mesmo tempo em que dependia da

    manuteno da grande agricultura e da escravido, tornava-se refgio para os

    elementos mais dinmicos que no encontravam espao de atuao dentro dessa

    agricultura. Tal quadro, entretanto, tendia a favorecer a atuao da prpria elite

    poltica: Instalava-se dentro do prprio Estado uma ambigidade bsica que dava

    elite poltica certa margem de liberdade de ao (Idem, p. 38). Isso permitiu a

    concordncia acerca de pontos bsicos, tais como a manuteno da unidade do pas, a

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    condenao dos governos militares, a defesa do sistema representativo e da

    monarquia, e, sem dvida, tambm a necessidade de preservar a escravido.

    Tais questes estavam no cerne da reflexo e da ao poltica de um funcionrio

    de alto escalo do Imprio Portugus que, pela fora das circunstncias, acabou

    ficando frente do processo de independncia do Brasil, em 1822: Jos Bonifcio de

    Andrada e Silva (1763-1838). Podemos dizer que o pensamento poltico e social de

    Bonifcio exemplar de um tipo de reflexo, ou de um estilo de pensamento, que tem

    como pressuposto uma sociedade civil que carece de formas de auto-organizao,

    dependendo por sua vez de um Estado forte. Nesta representao, a sociedade, o

    povo, a nao, devem ser orquestrados, tutelados por este ator poltico fundamental

    que o Estado.

    Vejamos um pouco o contexto em que este autor formulou questes

    posteriormente retomadas pelos intelectuais. Entre 1808 e 1821, o Rio de Janeiro fora

    a capital de Portugal e das possesses portuguesas na frica e na sia. Este

    acontecimento, sem precedentes na histria colonial, marcaria profundamente a

    evoluo nacional brasileira. A transferncia da administrao e da Coroa portuguesas

    lanava as bases da Independncia do Brasil, numa relao direta com o

    enfraquecimento do sistema colonial metropolitano. Alm disto, assolada pelas

    guerras napolenicas, a Dinastia de Bragana s pde ser salva mediante a interveno

    da Inglaterra, e isto traria graves desdobramentos polticos, o principal deles incidindo

    sobre a manuteno do trfico negreiro. Um fato at ento incomum no mundo

    colonial seria responsvel por meio sculo de atritos diplomticos entre Inglaterra,

    Portugal e Brasil: a internacionalizao da questo do trfico negreiro. As presses

    britnicas pela sua abolio deslocariam aquele comrcio do mbito exclusivo da

    poltica colonial portuguesa para um domnio internacional, sujeito covigilncia

    britnica. Presses essas que levaram Portugal a coibir o comrcio de escravos, mas

    que tiveram uma consequncia imprevista: sua clandestinidade. (ALENCASTRO, 1986,

    p. 430). Ao longo da primeira metade do sculo XIX, e a despeito da mquina de guerra

    naval britnica, a sndrome da falta de africanos do Brasil levou o comrcio negreiro

    ilcito a propores jamais vistas at ento. Desde o sculo XVI, o Brasil era, de

    longe, o agregado poltico e econmico que recebeu o maior nmero de escravos

    africanos. Todavia, entre 1810 e 1850, o Brasil exerceu um quase monoplio na

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    compra de escravos: do sculo XVI at 1850, perto de 10 milhes de africanos foram

    transportados para o outro lado do Atlntico, sendo que desta cifra, perto de 38%

    vieram para o Brasil, 17% para a Amrica espanhola, 17% para as Antilhas francesas,

    17% para as Antilhas britnicas, 6% para as Antilhas holandesas, e 6% para os Estados

    Unidos. No perodo entre 1810-1850, dos cerca de 1.900.000 africanos

    clandestinamente desembarcados na Amrica, o Brasil captou 80% daquele conjunto

    (Idem, passim).

    A importncia do trfico negreiro e da escravido, mais do que simples heranas

    da era colonial, repercutiriam diretamente sobre a ordem poltica da nova nao. O

    projeto civilizador de Jos Bonifcio pretendia viabilizar este novo pas, e tinha que

    contar com a adeso dos proprietrios de terra e de escravos e com os traficantes e

    escravos, isto , a base econmica essencial de uma economia agrcola montada sobre

    o trabalho escravo africano. E isso num momento em que esta mesma base de

    sustentao poltica e econmica comeava a ser posta em causa pelo contexto

    internacional, fator que trazia problemas para a legitimidade da soberania nacional.

    Assim, de um lado, como obter o consenso dos poderosos proprietrios rurais e

    dos traficantes de escravos? De outro lado, como viabilizar uma ordem poltica com a

    presena de escravos africanos de diversas procedncias, escravos estes que, ao

    compor a essncia das relaes de trabalho e, portanto, fator constitutivo dos

    interesses da classe senhorial, isto , interesses privatistas por excelncia, punham em

    causa a prpria sobrevivncia do Estado moderno e da ordem liberal, calcada na

    igualdade poltica? Em suma, como fazer com que estes interesses, que se excluam

    mutuamente e, mais do que isto, expressavam a mais gritante heterogeneidade e

    desigualdade, constitussem uma s e mesma nacionalidade?

    Assim que a reflexo de Jos Bonifcio situa-se num momento mpar da

    histria do Brasil. Nos dois anos em que esteve frente dos principais acontecimentos

    polticos entre 1821 e 1823, como ministro de Estado , Bonifcio teve um papel

    fundamental na articulao da Independncia, da construo de um Estado nacional e

    da conquista de um imprio brasileiro (DOLHNIKOFF, 1998, p. 19).

    O conjunto fragmentado de seus escritos, reunidos sob o ttulo de Projetos para

    o Brasil, expressam muito bem suas oscilaes e ambiguidades, mas tambm suas

    convincentes certezas. Em sua Representao Assemblia Geral Constituinte e

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    Legislativa do Imprio do Brasil sobre a Escravatura, escrito em 1823, Bonifcio atenta

    para a essncia do que seria uma nao homognea. Sua crtica dirige-se

    diretamente contra o trfico negreiro para, a partir de sua extino, ir constituindo

    uma ordem social e poltica que subvertesse, gradualmente, o legado da escravido.

    Afirma Bonifcio:

    tempo pois, e mais que tempo, que acabemos com um trfico to brbaro e carniceiro; tempo tambm que vamos acabando gradualmente at os ltimos vestgios da escravido entre ns, para que venhamos a formar em poucas geraes uma nao homognea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitveis e felizes. da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade fsica e civil; cuidemos pois desde j em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrrios, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogneo e compacto, que se no esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulso poltica. (ANDRADE E SILVA, 1998, p. 48-9).

    O sistema colonial teria fomentado um povo mesclado e heterogneo, sem

    nacionalidade, e sem irmandade porque interessava sua prpria manuteno.

    Todavia, uma vez nao independente, como poderia haver uma Constituio liberal

    e duradoura em um pas continuamente habitado por uma multido imensa de

    escravos brutais e inimigos? (Idem, p. 48). Com efeito, Bonifcio compreende que

    sem a abolio do trfico negreiro e a gradual emancipao da escravatura, no

    apenas a liberal Constituio, como a prpria estrutura do Estado moderno, ficariam

    comprometidos.

    No entanto, o que nos parece ilustrar melhor sua argumentao, embora no se

    esgote nela, est na sua perspectiva sobre a formao nacional. O incentivo

    miscigenao, a proteo famlia num sentido amplo, fosse ela composta por

    escravos, por negros livres, brancos ou ndios , bem como o incentivo imigrao

    europeia, delineiam uma poltica populacional que deveria estabelecer os parmetros

    da nacionalidade. Nesse sentido, o Estado, para Bonifcio, deveria ser uma espcie de

    escultor prudente, que de pedaos de pedra faz esttuas. Misturemos os negros com

    as ndias, e teremos gente ativa e robusta tirar do pai a energia, e da me a doura

    e bom temperamento (idem, p. 155-6).

    Esta preocupao tambm est presente nos seus Apontamentos para a

    civilizao dos ndios bravos do Imprio do Brasil, apresentado Assembleia

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    Constituinte em 1823. Dentre as medidas do Tribunal Conservador dos ndios, que

    tambm postula, est a de introduzir nas aldeias j civilizadas brancos e mulatos

    morigerados para misturar as raas, ligar os interesses recprocos dos ndios com a

    nossa gente, e fazer deles todos um s corpo da nao, mais forte, instruda e

    empreendedora, e destas aldeias assim amalgamadas [ir] convertendo algumas em

    vilas (...) (idem, p. 119).

    Bonifcio considerava que o Estado deveria ser o gerenciador dos conflitos e das

    relaes de trabalho, anulando o arbtrio senhorial. Defende uma espcie de

    despotismo esclarecido que daria ao governo a legitimidade da tutela de uma

    sociedade que, a seu ver, era profundamente heterognea, disforme e incapaz de

    guiar-se por si mesma.

    Algumas reflexes de Jos Bonifcio seriam recuperadas no final do sculo XIX

    por um poltico e intelectual que, comprometido em recriar o pas altura do que se

    considerava a civilizao, buscou compreender as condies e possibilidades de

    progresso, de industrializao, urbanizao, modernizao; em suma, buscou explorar

    as diversas possibilidades de civilizar o pas. Assim, Joaquim Nabuco (1849-1910) fez

    da anlise sobre os efeitos sociais e polticos da escravido seu principal tema. Em seu

    livro O Abolicionismo, escrito em 1883, Nabuco percebia a necessidade de um projeto

    civilizatrio nos trpicos. A escravido, segundo ele, operava uma ciso social, poltica

    e jurdica entre a boa sociedade, assimilada ao modelo europeu e projetada como o

    que deveria ser a nao, e sua base social real, identificada com a natureza e a

    barbrie. Mais importante, Nabuco percebeu que a escravido produzia efeitos

    perversos no apenas sobre o escravo, mas principalmente sobre as camadas livres da

    sociedade, resultando com isso a ausncia efetiva de cidadania. Nabuco entendia a

    escravido como uma instituio totalizante, e tal interpretao era, em si, uma

    intuio quase sociolgica. Mais do que isso, tratava-se de uma perspectiva radical,

    reveladora de um pensamento liberal democrtico: ao compreender a escravido

    como um fato global, e demandando, portanto, uma reforma global, Nabuco teria

    introduzido, segundo Marco Aurlio Nogueira, uma novidade poltica: considerando

    com inteligncia a distino entre escravido visvel e escravido que no se v,

    [Nabuco] realizou uma devastadora crtica da instituio e de seu regime social, dando

  • 12

    ao abolicionismo uma consistncia doutrinria at ento inexistente (NOGUEIRA,

    1984, p. 111).

    Segundo Nabuco, a escravido em si constitua o principal obstculo

    construo da nao. Citando Jos Bonifcio, afirmava que com a escravido no

    haveria patriotismo nacional, mas somente patriotismo de casta, ou de raa. Assim,

    o sentimento que serv[iria] para unir todos os membros da sociedade subverter-se-

    ia com a presena da escravido, passando a ser explorado para o fim de dividi-los:

    Para que o patriotismo se purifique, preciso que a imensa massa da populao livre, mantida em estado de subservincia pela escravido, atravesse, pelo sentimento da independncia pessoal, pela convico da sua fora e do seu poder, o longo estagio que separa o simples nacional que hipoteca tacitamente, por amor, a sua vida defesa voluntria da integridade material e da soberania externa da ptria do cidado que quer ser uma unidade ativa e pensante na comunho a que pertence. (NABUCO, 1999, p. 188).

    Entretanto, a perspectiva de Nabuco a despeito de sua plataforma poltica

    liberal-democrtica, de sua esperana na difuso da cidadania e do diagnstico dos

    entraves para a modernidade, recai no mesmo dilema de Jos Bonifcio: diante de

    uma sociedade civil dilacerada por interesses conflitantes, amorfa e fragilizada, no

    restaria seno ao Estado a incumbncia de destruir a escravido, instaurar a cidadania

    e formar a nao. Na verdade, o poder da escravido era de tal magnitude que o

    Governo no seria mais do que o resultado da abdicao geral da funo cvica por

    parte do nosso povo. Contudo, mesmo sendo o resultado desta apatia poltica, o

    Governo seria a nica fora capaz de destruir a escravido,

    da qual, alis, dimana, ainda que, talvez, venham a morrer juntas. Essa fora, neste momento, est avassalada pelo poder territorial, mas todos vem que um dia entrar em luta com ele, e que a luta ser desesperada, quer este pea a abolio imediata, quer pea medidas indiretas, quer queira suprimir a escravido de um jato ou, somente, fechar o mercado de escravos. (NABUCO, 1999, p. 211).

    A representao do Brasil-nao em Jos Bonifcio e Joaquim Nabuco, para

    ficarmos apenas com estes dois autores emblemticos do sculo XIX, figurava numa

    perspectiva modernizadora, ainda que em compasso de espera: diante de uma

    sociedade em processo de formao, de uma nacionalidade heterognea e amorfa,

  • 13

    sem identidade, restava a promessa de um futuro moderno a ser conduzido pelo

    Estado, Estado este tutelar para Bonifcio, civilizador para Nabuco. Apesar do

    diagnstico negativo sobre a sociedade, no lhes ocorria deixar de apostar numa

    perspectiva positiva de superao do atraso.

    3 MOTIVOS IBRICOS E A MODERNIDADE NO BRASIL

    Contudo, um outro conjunto de representaes sobre o povo e a nao

    sinalizava para algo diverso ao desta perspectiva progressista. Embora tambm possua

    razes nos momentos chave da construo do Estado brasileiro isto , durante a

    Independncia e ao longo dos anos 1850, quando o Estado consolidou-se, viabilizado

    mediante um processo de centralizao poltica e administrativa , tal representao

    foi melhor exposta ao longo das primeiras dcadas do sculo XX.

    Em geral, atribui-se a certas representaes que avaliam positivamente a

    herana portuguesa e o legado colonial, ou ainda que os consideram como ilustrao

    inequvoca de uma cultura genuinamente luso-brasileira, o nome de iberismo.

    Sinteticamente, podemos entender o iberismo como sendo a valorizao ou a

    recuperao das razes ibricas da nacionalidade brasileira, caminho trilhado por

    autores que desconfiavam que a modernizao das relaes sociais, que o liberalismo

    poltico, ou que o princpio da representao poltica e mesmo da democracia

    pudessem ser adotados no Brasil, uma vez que estas instituies no corresponderiam

    realidade das nossas tradies e costumes polticos. O iberismo pressupe a ideia de

    que Portugal e Espanha no teriam sido formaes culturais e polticas tipicamente

    europeias ou ocidentais, mas regies nas quais valores centrais do mundo

    moderno, como o individualismo, o contratualismo, o mercado, a competio, o

    conflito de interesses e a democracia burguesa no teriam sido importantes no

    estabelecimento de suas tradies polticas. Ao invs destes valores, estabelece outros

    ideais para a sociedade, tais como a cooperao, a integrao, o predomnio do

    interesse coletivo e comunitrio sobre o individual, o personalismo, o patriarcalismo,

    etc. Pode-se dizer que o iberismo uma tradio alternativa ao Ocidente anglo-

  • 14

    saxo, puritano, calcado numa tica do trabalho de matriz protestante. (CARVALHO,

    1991, p. 89). Trata-se, portanto, de uma tese antiliberal.

    Um dos autores mais influentes desta linha de reflexo foi Paulino Jos Soares

    de Souza, o visconde de Uruguai (1807-1866). Escrevendo e atuando politicamente em

    meados do sculo XIX, Uruguai foi uma das principais figuras do ncleo duro do

    Partido Conservador durante o Imprio. Partido este que tinha tambm Rodrigues

    Torres e Eusbio de Queirz como os membros do que se entende por Trindade

    Saquarema: este grupo se notabilizou como um rduo defensor do processo de

    centralizao do Estado e da manuteno da unidade territorial, contra as ideias

    federalistas e as teses liberais representadas pelas elites regionais. (FERREIRA, 1999).

    Para estadistas como Uruguai, os usos, costumes, hbitos, tradies, carter nacional

    e educao cvica de cada povo eram particularidades que deveriam ser levadas em

    conta para a ao poltica. Isto , os povos tinham diferentes tradies polticas, e

    implantar instituies de uns em outros podia ser desastroso ou, no mnimo, incuo

    (CARVALHO, 1991, p. 87).

    Um autor muito representativo desta tradio saquarema, j nos anos 1920,

    foi Oliveira Viana (1883-1951). Pode-se dizer que sua obra revela orientaes comuns

    a vrios intelectuais do perodo compreendido entre a Abolio da Escravatura, em

    1888, e os primeiros anos da Repblica Velha. Em vrias interpretaes do Brasil,

    embora com resultados analticos diversos, os intelectuais se debruaram sobre a

    colonizao portuguesa, procurando os nexos fundamentais que constituram a

    formao do Pas. A pergunta fundamental era esta: somos ou no uma efetiva nao?

    A originalidade de Oliveira Viana foi a de, ante ao desafio de desvendamento colocado

    acima, ter elaborado uma anlise da realidade que transcendeu os limites do discurso

    de seu tempo, predominantemente de carter jurdico, debruando-se antes num

    amplo leque de disciplinas que ia da Antropologia Histria, da Sociologia ao Direito e

    Etnologia. Neste sentido, poderamos situar a mesma pergunta sob dois registros

    diferentes: o que constitui uma nao? e, concomitantemente a ela, quais as tarefas

    necessrias para a sua constituio?, de tal forma que a originalidade do autor estaria

    em equacion-las e elaborar uma viso prospectiva e de conjunto do Brasil.

    Ao lado de uma atitude fatalista e racialista, ponto comum do debate intelectual

    daquele contexto, Viana superou alguns dos dilemas de seu tempo. De uma forma

  • 15

    geral, apontou solues mais otimistas, dadas particularmente pela eugenia e pelo

    papel destinado s elites. Vem dele uma atitude nova perante a heterogeneidade da

    populao brasileira. Alm disto, prescreveu uma nova ordem social que pudesse

    superar o que entendia ser o divrcio entre o Brasil legal e o Brasil real, isto ,

    entre as instituies e a realidade, entre a letra da Lei e a frgil e amorfa sociedade.

    Para isso, Viana criticou os pressupostos do evolucionismo de cunho darwinista, que

    concebia uma linha evolutiva nica para a humanidade, com povos superiores e

    inferiores.

    Na verdade, o autor descarta esta vertente universalista ao postular uma

    pluralidade de linhas evolutivas, cujas raas se desenvolveriam a partir de um conjunto

    de causas, como o espao geogrfico, a histria, as instituies, a cultura, alm do

    aspecto propriamente biolgico. Deste particularismo, Vianna conclua ser impossvel

    uma perfeita integrao intertnica: cada agregado humano hoje, para a crtica

    contempornea, um caso particular, impossvel de assimilao integral com qualquer

    outro agregado humano, e a atuao de todo um complexo causal acabaria por

    promover entre eles diferenas irredutveis, mesmo entre os que vivem mergulhados

    na mesma atmosfera de civilizao (VIANA, 1933, p. 19-24). que das diferenas de

    estrutura social, histrica, etc., surgiriam diferenas sutis de mentalidade que o

    autor denomina de complexos. Uma decorrncia fundamental desta afirmao a

    crtica transplantao das ideias e das instituies. A defesa que faz do realismo

    e da objetividade frente s solues idealistas e liberais desta ordem. Da ao

    poderosa de uma complexidade de agentes resultaria a singularidade de um povo, e,

    portanto, a no intercambialidade de seus valores e modos de vida;

    consequentemente, de suas instituies polticas:

    O grande movimento democrtico da Revoluo Francesa; as agitaes parlamentares inglesas; o esprito liberal das instituies que regem a Repblica Americana, tudo isto exerceu e exerce sobre os nossos dirigentes polticos, estadistas, legisladores, publicistas, uma fascinao magntica, que lhes daltoniza completamente a viso nacional dos nossos problemas. Sob esse fascnio inelutvel, perdem a noo objetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial, e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europe sorte do cosmorama extravagante, sobre cujo fundo de florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassam cenas e figuras tipicamente europias. (VIANA, 1987a, p. 19).

  • 16

    Por fim, a defesa da eugenia foi outro aspecto importante nas teses de Oliveira

    Viana: atravs dela, fez consideraes sobre a potencialidade do branqueamento da

    populao (via imigrao europeia), e estabeleceu uma interpretao sobre a

    formao da sociedade brasileira que passava pela valorizao positiva do papel do

    latifndio. Este, por exemplo, era assim concebido por Vianna, em sua obra mais

    conhecida, Evoluo do Povo Brasileiro, escrita em 1923:

    O latifndio cafeeiro, como o latifndio aucareiro, tem uma organizao complexa e exige capitais enormes: pede tambm uma administrao hbil, prudente e enrgica. , como o engenho de acar, um rigoroso selecionador de capacidades. S prosperam, com efeito, na cultura dos cafezais as naturezas solidamente dotadas de aptides organizadoras, afeitas direo de grandes massas operarias e concepo de grandes planos de conjunto. O tipo social dela emergente , por isso, um tipo social superior, tanto no ponto de vista das suas aptides para a vida privada, como no ponto de vista das suas aptides para a vida pblica. Da formar-se, nas regies onde essa cultura se faz a base fundamental da atividade econmica, uma elite de homens magnificamente providos de talentos polticos e capacidades administrativas. (VIANA, 1933, p. 104).

    Com base nestas consideraes, a identidade nacional brasileira passaria pela

    prpria histria do latifndio, como organizador e selecionador dos indivduos no

    brancos, de acordo com suas potencialidades. O latifndio seria assim, o grande

    medalhador do povo brasileiro, cuja essncia era e permaneceria rural aos olhos de

    Viana. Alm disto, em funo mesmo do papel do latifndio, o autor elabora uma

    histria do Brasil na qual no existem rupturas, conflitos, revolues, e que culminaria

    na fixao de uma particular psicologia poltica no povo. Ou seja, Oliveira Viana

    defende explicitamente a adoo de formas autoritrias de poder poltico, com base

    num suposto diagnstico de fragilidade da sociedade, das instituies liberais, da

    ausncia de esprito de associao. Seno, vejamos:

    O nosso homem do povo procura um chefe, e sofre sempre uma como que vaga angstia secreta todas as vezes que, por falta de um condutor ou de um guia, tem necessidade de agir por si, autonomamente. (...). essa certeza intima de que algum pensa por ele e, no momento oportuno, lhe dar o santo e a senha de ao, essa certeza ntima que o acalma, o assegura, o tranqiliza, o refrigera. Do nosso campnio, do nosso homem do povo, o fundo da sua mentalidade esta. Esta a base de sua conscincia social. Este o temperamento do seu carter. Toda a sua psicologia poltica est nisso. (VIANA, 1987b, p. 67).

  • 17

    H um aspecto importante a ser analisado aqui. As chamadas ideias

    raciolgicas ou racistas, tiveram sua origem por volta de 1840, mas estavam sendo

    severamente questionadas j no final do sculo XIX na Europa, de onde tambm

    haviam surgido. Elas haviam exercido uma forte influncia intelectual e poltica nos

    discursos nacionalistas de ento, discursos estes que fizeram dos estudos raciais

    uma chave importante de legitimao para a valorizao de uns e inferiorizao de

    outros povos. Mas o que dizer a respeito de autores brasileiros que escreveram ainda

    em 1920, como no caso de Oliveira Viana, com base em pressupostos questionados

    cientificamente?

    Segundo Renato Ortiz, tais teorias raciolgicas tornavam-se precisamente

    hegemnicas no Brasil no mesmo momento em que entravam em declnio na Europa,

    onde a explicao sociolgica e cultural ganhava fora frente ao discurso biolgico das

    raas humanas (ORTIZ, 2006, p. 29). que parte da elite intelectual brasileira

    preocupava-se, na passagem do sculo XIX para o XX, em efetivamente construir uma

    identidade nacional, e para isso, tinham que se reportar s condies reais de

    existncia do pas, isto , a Abolio, o aproveitamento do ex-escravo como

    proletrio, a imigrao estrangeira, a consolidao da Repblica, questes particulares

    daquele contexto no Brasil. Se a nao vivia, por exemplo, a questo da imigrao

    estrangeira, at como forma de resolver a transio para a ordem capitalista,

    a questo da raa [era] a linguagem atravs da qual se apreend[ia] a realidade social, ela reflet[ia] inclusive o impasse da construo de um Estado nacional que ainda no se consolid[ara]. Nesse sentido, as teorias importadas [tinham] uma funo legitimadora e cognoscvel da realidade. (ORTIZ, 2006, p. 30).

    Este cenrio comea a mudar ainda em 1920, com a ascenso do modernismo

    enquanto movimento intelectual, e se cristaliza ao longo de 1930. Com a Revoluo

    que levou Getlio Vargas ao poder, o Brasil viveu uma espcie de precipitao das

    potencialidades das crises e controvrsias herdadas do passado, delineando mais

    claramente distintas correntes de pensamento.

    A marcha do processo poltico e das lutas sociais, de par com a crise da cafeicultura, os surtos de industrializao, a urbanizao, a emergncia de um proletariado incipiente, os movimentos sociais de base agrria, tais

  • 18

    como o cangao e o messianismo, tudo isso repunha, desenvolvia e criava desafios urgentes para cada setor e o conjunto da sociedade nacional. (IANNI, 2004, p. 24).

    Assim, ao longo daquela dcada, algumas das interpretaes clssicas sobre a

    sociedade brasileira foram desenvolvidas tendo como fio condutor um processo de

    sistematizao do conhecimento sociolgico acerca da identidade nacional.

    Paralelamente, aquela dcada foi decisiva para a reorientao da historiografia e das

    cincias sociais. Ao lado de grandes transformaes polticas, de acelerao do

    processo de urbanizao, de complexificao das relaes sociais, um Estado

    centralizado procurava ento orientar o prprio desenvolvimento social e econmico.

    Neste quadro, as teorias raciolgicas tornavam-se obsoletas, precisavam ser superadas

    em razo de novas demandas sociais e polticas.

    Precisamente naquele contexto histrico, um autor se destacava no conjunto

    dos chamados intrpretes do Brasil por recuperar e revalorizar a representao da

    nao nos termos do iberismo: Gilberto Freyre (1900-1987). Com a publicao de seu

    Casa Grande & Senzala, em 1933, Freyre reeditou a temtica racial e a identidade

    nacional, constituindo-as em chave para a compreenso do Brasil. Contudo, no as faz

    a partir do critrio racista, ou raciolgico, como na abordagem de Oliveira Viana.

    Tampouco elegeu o Estado como o agente central do processo de formao social. Ao

    contrrio, Gilberto Freyre opera uma dupla inverso de termos: ao invs da raa,

    pensa a cultura; ao invs do Estado, pensar a Sociedade.

    No que diz respeito questo racial, a utilizao do conceito de cultura

    permite a superao de uma srie de dificuldades anteriormente encontradas a

    respeito da herana atvica negativa da mestiagem, e Freyre a transforma em valor

    extremamente positivo. Na verdade, muito mais do que ter superado alguns temas

    anteriores baseado em novos recursos metodolgicos, Freyre foi o primeiro a lanar

    mo de uma viso positiva sobre o pas, tal qual ele era de fato. De um lado, rejeita as

    consideraes de ordem racial, particularmente a sociobiologia, e introduz novos

    instrumentos tericos como as anlises culturalistas. No sem razo que grande

    parte de sua popularidade tenha advindo da desconstruo, ao menos em tese, do

    discurso racista da inferioridade atvica por conta da hereditariedade biolgica de

    negros e ndios. Ao menos em tese, porque, na verdade, h um remanejamento da

  • 19

    questo racial: Freyre adota, segundo Ricardo Benzaquem Arajo, uma noo

    neolamarckiana de raa, segundo a qual se admite a hereditariedade de caracteres

    adquiridos, isto , a possibilidade de raas artificiais ou histricas (ARAJO, 1994, p.

    39). Por exemplo, Freyre alude experincia colonial portuguesa no Brasil atribuindo

    ao brasileiro o carter de ser quase outra raa, com apenas um sculo de distncia

    da pennsula ibrica (FREYRE, 2005, p. 36). Alm disto, supe uma hierarquia, no mais

    racial, mas cultural, vale dizer, tendo como parmetro a maior ou menor complexidade

    cultural ou grau de cultura. Assim sendo, empreendeu um estudo das etnias africanas

    presentes no Brasil, tendo em vista a caracterizao deste grau cultural. Ser escravo

    ladino ou boal (isto , j aclimatado ou recm-chegado) seria precisamente uma

    referncia origem e ao grau desta cultura. Da a refutao do argumento racista que,

    todavia, repunha a desigualdade, embora aparentemente disfarada. Diz ele,

    revelando sua ambiguidade em relao a esta temtica:

    Fique bem claro, para regalo dos arianistas, o fato de ter sido o Brasil menos atingido que os Estados Unidos pelo suposto mal da raa inferior. Isto devido ao maior nmero de fula-fulos e semi-hamitas falsos negros e, portanto, para todo bom arianista, de estoque superior ao dos pretos autnticos entre os emigrantes da frica para as plantaes e minas do Brasil. (FREYRE, 2005, p. 388).

    Evidentemente, permanece a distino entre maior e menor capacidade

    intelectual, a meno a vocaes profissionais, a valores e orientaes religiosas como

    marcas e elementos que no se alteram, mas que, postos em contato com outros

    povos e etnias, resultam numa composio hbrida. Isto porque uma outra

    particularidade da anlise gilbertiana acerca da miscigenao precisamente a ideia

    de que no haveria uma fuso de valores e aptides entre etnias distintas: a

    miscigenao seria antes de tudo um processo de hibridizao, sob a qual

    permaneceriam as caractersticas e propriedades de cada agrupamento humano.

    (ARAJO, 1994, p. 44).

    Outra questo importante refere-se reinterpretao da eugenia. Percebe-se

    que a preocupao com a mobilidade e o carter eugnico da participao do negro na

    sociedade brasileira constantemente colocado. Concorreria para isso o carter

  • 20

    liberal do patriarcalismo, liberalidade esta entendida no sentido de certa frouxido

    moral, promovendo o livre

    intercurso sexual de brancos dos melhores estoques inclusive eclesisticos, sem dvida nenhuma, dos elementos mais seletos e eugnicos na formao brasileira com escravas negras e mulatas (...). Resultou da grossa multido de filhos ilegtimos mulatinhos criados muitas vezes com a prole legtima, dentro do liberal patriarcalismo das casas-grandes; outros sombra dos engenhos de frades; ou ento nas rodas e orfanatos. (FREYRE, 2005, p. 531).

    A miscigenao teria promovido ainda a construo de um elemento social e

    eugenicamente superior que seria o mestio. Percebe-se, todavia, que a questo da

    inter-relao entre etnias e culturas acompanha a caracterizao que o autor faz da

    famlia patriarcal. Sua importncia concorreria para a constituio no pas de uma

    democracia racial, e questes como a eugenia podem ser lidas a partir da anlise do

    papel da famlia patriarcal, precisamente, do sistema patriarcal e do complexo da

    casa grande. A importncia deste sistema decorreria de sua capacidade singular em,

    face escravido, ter mantido a harmonia e o equilbrio sociais.

    Para Gilberto Freyre, a escravido no Brasil, longe de fortalecer a desigualdade e

    estabelecer um fosso intransponvel entre dominantes e dominados, teria sido

    desenvolvida de maneira singular, diferenciando-se, por exemplo, daquela praticada

    no sul dos Estados Unidos, alis comparao bastante recorrente. Freyre chama a

    ateno para a lenincia, ou brandura, do regime escravocrata por conta da ao

    eficaz da famlia senhorial em contemporizar dominantes e dominados, brancos e

    no brancos, reduzindo as distncias entre a casa grande e a senzala.

    Em suma, para Freyre, a histria da formao do povo brasileiro confunde-se

    com a histria da famlia patriarcal. Responsvel pelo clima edulcorado do regime

    escravo, teria sido a base essencial para a miscigenao em larga escala, criando

    zonas de confraternizao entre vencedores e vencidos, e promoveu a eugenia dos

    negros ladinos ou islmicos, bem como a das mulheres, possibilitando sua ascenso

    social. A meno ao equilbrio pode ser lida aqui como a evidncia de uma cultura

    poltica da conciliao: ela seria expresso da competncia da famlia senhorial em

    no permitir que momentos de crise desembocassem em rupturas profundas. Alis, o

    prprio mtodo de anlise de Freyre condiz com esta interpretao: foca sempre o

  • 21

    espao da casa, a esfera ntima, as cartas e os dirios deixados pelas grandes famlias

    senhoriais. Assim, as transformaes que culminaram na Repblica so interpretadas

    por Freyre tendo como referncia, no a mudana vinda das ruas, dos movimentos

    sociais, das novas relaes sociais advindas com a transio para a modernidade, mas

    to somente como indcios da decadncia da famlia patriarcal frente aos processos

    de urbanizao. Embora profundas, tais transformaes no chegariam a romper com

    esta cultura da conciliao. Pelo contrrio, para Freyre a casa grande no

    desapareceu, mas continuou influenciando, como nenhuma outra fora, a formao

    social do brasileiro, agora no espao urbano.

    Por fim, h um ltimo aspecto em Gilberto Freyre que revela seu compromisso

    com certos motivos ibricos, qual seja, a defesa da rusticidade como um trao,

    aparentemente ingnuo, dos portugueses vindos ao Brasil. Atravs da rusticidade,

    Freyre revela sua resistncia homogeneizao burguesa, admitindo contudo a

    aceitao de inmeras formas culturais dificilmente assimilveis dentro do gabarito

    estreito da civilizao (BASTOS, 1998, p. 51), conforme definida pelas sociedades

    industriais. Assim, para Freyre o analfabetismo no seria um problema, na medida em

    que culturas grafas, isto , sem escrita, seriam transmitidas oralmente e mesmo

    beneficiadas pelo Rdio e pela TV. A rigor, o processo de alfabetizao em massa era

    visto por Freyre como potencial destruidor da riqueza imaginativa de formas

    culturais pr-modernas.

    Por um lado, como resultado da leitura leniente da escravido e da ao sbia do

    patriarcado em contemporizar dominantes e dominados, pode-se perceber o quanto

    para Freyre a democracia poltica seria desnecessria, substituvel pela democracia

    racial, resultado, esta sim, da sabedoria com que o patriarcalismo exerceu a

    conciliao entre dominantes e dominados; por outro lado, resultante da defesa da

    rusticidade, encontramos uma leitura desconfiada da modernizao, entendida por

    Freyre como destruidora de formas culturais mais ricas em nome da homogeneidade e

    igualdade entre os indivduos. Em suma, trata-se da formulao de que haveria certas

    vantagens do atraso, tais como a conciliao e a acomodao frente a processos que

    poderiam desencadear rupturas e conflitos agudos na sociedade.

    Todavia, vale pena observar que tanto a tese de que o Estado seria o formador

    da sociedade, presente, por exemplo, em Oliveira Viana, como a de que a sociedade

  • 22

    civil seria patriarcal, como a exposta em Gilberto Freyre, complementam-se e servem-

    se reciprocamente. Como afirma Octvio Ianni, se a sociedade inocente, logo se

    depreende que o Estado se defronta com uma misso excepcional: construir, orientar,

    administrar ou tutelar a sociedade, isto , o povo, os setores sociais subalterno.

    Justifica-se que o Estado seja patriarcal, oligrquico, benfeitor, punitivo, deliberante,

    onisciente, ubquo (IANNI, 2004, p. 46). Em suma, so ambas manifestaes distintas

    de uma mesma perspectiva iberista quanto formao do Brasil-nao, e que como tal

    impem resistncias s mudanas e rupturas em direo ideia de um Brasil moderno.

    4 MODERNISMO E IDENTIDADE NACIONAL

    Como pudemos notar, desde as ltimas dcadas do sculo XIX, quando

    importantes teorias cientficas foram incorporadas pelos intelectuais, estes se

    empenharam em compreender as condies de modernizao do pas. Tornava-se

    cada vez mais evidente a preocupao com as implicaes sociais, econmicas,

    polticas e culturais da extino do regime de trabalho escravo, do trmino da

    monarquia, da imigrao europeia, da implantao da Repblica.

    As diferentes ideias de Brasil moderno tornam-se ainda mais explcitas conforme

    determinadas regies do pas se industrializavam, se urbanizavam e se tornavam cada

    vez mais complexas em sua estrutura social. Na passagem do sculo XIX, assiste-se ao

    avano do capital nas florestas da Amaznia, com a extrao da borracha, a construo

    da ferrovia Madeira-Mamor, a urbanizao de Manaus e Belm; a economia cafeeira

    expande-se para alm do Vale do Paraba e do oeste de So Paulo; o Rio de Janeiro

    vivencia sua primeira grande reforma urbana, expulsando do urbe a populao pobre

    para dar lugar ao panorama de uma higinica e saneada capital do pas; a cidade

    de So Paulo crescia a taxas galopantes, dobrando de tamanho a cada ano (20.000

    habitantes em 1872, 70.000 em 1890, 300.000 em 1919, 1 milho em 1931), tornando-

    se o destino da maioria dos estrangeiros que ingressavam no pas; tambm em So

    Paulo assistem-se s primeiras greves gerais de 1917 a 1919 e emergncia da

    questo social. Diversas regies do pas engrenavam na esteira da Segunda

    Revoluo Industrial, ou revoluo cientfico-tecnolgica, iniciada em meados do

  • 23

    sculo anterior na Europa, em que a base eram os avanos tecnolgicos que tornaram

    possvel a utilizao de novas fontes de energia, sobretudo o petrleo, o gs e a

    eletricidade.

    Vivenciava-se, ao menos naquelas regies do pas melhor sintonizadas com o

    capitalismo internacional, um novo ritmo: ferico, galopante, cosmopolita; mas

    tambm explosiva, revelando novos mecanismos de explorao da fora de trabalho e

    reiterando padres histricos de desigualdades. Uma nova forma de compreenso

    igualmente se fazia presente, uma atitude melhor condizente com esse esprito do

    tempo. O centro da vida nacional tambm se deslocava com o avano do capital: do

    nordeste, simbolicamente Recife, para o centro-sul, simbolicamente So Paulo.

    Em certa medida, a realizao da Semana de Arte Moderna em So Paulo, em 1922, simboliza a emergncia de outras inquietaes e propostas, que passaro a predominar. Mas o deslocamento no nem rpido nem drstico. Alguns escritores revelam dvidas, ambigidades, vacilaes, falta de clareza. Foi complicado esse processo de deslocamento do centro da vida nacional, desde o nordeste at o centro-sul, simbolizado por Recife e So Paulo. (IANNI, 2004, p. 32).

    O ano de 1922 uma data carregada de dramaticidade e peso simblico: ano do

    Centenrio da Independncia, da fundao do Partido Comunista e do Centro Dom

    Vital, de orientao catlica, do episdio do Forte de Copacabana, indicando a

    ascenso do movimento tenentista, da Semana de Arte Moderna. Episdios que

    demandavam aos intelectuais uma nova narrativa da nao. O movimento modernista

    surge neste contexto, e de certa forma pode ser visto como a expresso de uma

    ruptura histrica.

    como se a sociedade como um todo, e em alguns de seus setores em especial, estivesse entrando em outro patamar, quando se abrem outros dilemas e horizontes. Est em curso o desafio de compreender, esclarecer ou explicar a formao da sociedade brasileira. Procuram-se as razes do que teria sido o Brasil Colonial, quais as peculiaridades do Brasil Monrquico e quais as dificuldades e perspectivas do Brasil Republicano. Escritores, cientistas sociais e filsofos buscam as origens e as transformaes, de modo a esclarecer os momentos decisivos da formao sociocultural e poltico-econmica do Brasil. So vrias e notveis as narrativas que expressam e instituem o Modernismo na arte e no pensamento. (IANNI, 2004, p. 181).

  • 24

    Estar sintonizado com este esprito do tempo , na verdade, abraar a

    modernidade. Esta pode ser lida como uma determinada experincia de tempo e

    espao, de situaes, vivncias etc., que tm unificado a espcie humana desde o

    momento em que um conjunto de grandes transformaes permitiu aos homens e

    mulheres reinterpretarem o mundo, a natureza e a prpria ideia de indivduo e

    humanidade. Segundo o Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX, a modernidade

    um conceito de contraste: extrai seu significado tanto do que nega como do que

    afirma, e seu dinamismo implica necessariamente conflito. Ao contrrio das

    sociedades tradicionais, a sociedade moderna sente que o passado no tem lies para

    ela, seu impulso constantemente em direo ao futuro, ao novo, s potencialidades

    transformadoras do homem, ainda que esse mesmo movimento ponha em risco todas

    as conquistas materiais, cientficas e culturais criadas em virtude da modernidade

    (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996, p. 473).

    Este aspecto contraditrio j se manifestava nos primeiros textos dos jovens

    escritores modernistas: compreender a exigncia de modernizao com uma

    caracterizao mais precisa da prpria identidade nacional, ou, em suma, conciliar a

    modernidade com a tradio, o universal com o particular. Tratava-se de acertar as

    contas com o passado, no caso, representado pelas manifestaes artsticas

    classicistas, como o parnasianismo e o romantismo, assumindo muito do que as

    vanguardas estticas europeias elaboravam (futurismo, cubismo, impressionismo,

    etc.). Vejamos melhor como ocorreu esta configurao.

    De um lado, a exigncia da incorporao ordem moderna requisitava o acesso

    racionalidade. Nesse sentido, os primeiros escritos modernistas faziam uma crtica ao

    Romantismo, interpretando-o como o estgio pr-moderno da civilizao e como

    sentimento irracional.

    O Romantismo brasileiro pode ser lido como o incio de uma literatura nacional,

    cujo trao mais marcante foi o indianismo. Por exemplo, Jos de Alencar, alicerado

    no iderio romntico europeu, expunha em Iracema, de 1865, uma representao

    heroicizada do ndio, sacralizando uma historiografia que, ao idealizar os tipos

    formadores da nao brasileira, o alava condio de smbolo de origem do nosso

    povo. Outra caracterstica do romantismo era a valorizao do amor terra,

    paisagem ancestral, comunidade, em suma, a formulao de um carter nacional.

  • 25

    Nesse sentido, o romantismo de Jos de Alencar aproveitava essa valorizao do

    passado mtico para fundamentar o sentido de identidade do brasileiro, que, assim,

    poderia se orgulhar de sua ascendncia (nobre e bela) (BALBO, 2006, p. 2). Tambm

    Silvio Romero e Euclides da Cunha podem ser inscritos neste contexto romntico, ao

    elegerem, respectivamente, o mestio e o sertanejo como smbolos da nao.

    J em seus primeiros desdobramentos, o movimento modernista propunha

    construir uma outra narrativa, no mais a da valorizao deste passado mtico e

    paradisaco, mas a captao do prprio fluxo desconexo, catico e intenso da vida

    moderna. Estar sintonizado com a modernidade enquanto o esprito de uma poca

    era captar a vida em movimento, marcada de forma impressionista pelo ritmo da

    cidade onde se abrigam desordenadamente os mais variados elementos. Velocidade e

    variedade so atributos da vida urbana e moderna e como tal positivamente

    qualificada (MORAES, 1988, p. 225). Assim, num primeiro momento, o modernismo

    se propunha a estabelecer uma literatura que pudesse inscrever o Brasil no concerto

    das naes, al-lo altura das exigncias da condio moderna, da a crtica ao

    passadismo, ao romantismo, etc.

    Contudo, no podemos entender o movimento modernista como uma corrente

    de pensamento homognea, sem conflitos internos. Havia inmeras polmicas acerca

    do sentido da modernidade, assim como da misso que deveria ser empreendida pelos

    intelectuais, e aos poucos, o modernismo foi ganhando novas dimenses.

    Na tica de Mrio de Andrade, um dos expoentes do movimento modernista, o

    que estava em jogo era a necessidade de dessacralizar ou desconstruir, sobretudo, o

    olhar estrangeiro com que se imaginava o Brasil e os brasileiros. Por exemplo, ao

    escrever Macunama, em 1928, Mrio de Andrade retratava o brasileiro como sendo o

    heri sem nenhum carter, criado a partir da integrao entre os mitos indgenas e

    africanos e a presena do colonizador branco. Na verdade, a ausncia de carter do

    heri brasileiro indicaria um carter ainda em formao, que representaria a cultura

    brasileira e seu carter inacabado. Em Macunama inexistem, portanto, traos

    inalterveis de carter, nele, como na mentalidade cultural brasileira, o escritor v

    inmeras possibilidades de mudana (BALBO, 2006, p. 10). Enquanto o ndio, o

    mestio ou o sertanejo eram concebidos como personagens-modelo

    exclusivamente virtuosos, o anti-heri modernista possua virtudes, mas, igualmente,

  • 26

    defeitos, pois, supostamente livre de ideologias, no precisaria se restringir a nenhum

    modelo pr-concebido. Esta destruio de modelos ritualizados foi uma das primeiras

    propostas do movimento modernista, caracterizando a Antropofagia:

    termo utilizado pelos modernistas, cujo sentido metafrico consistiu em devorar e digerir os valores culturais herdados dos colonizadores, ou seja, sob uma viso crtica, assimilar ou rejeitar estes valores e ainda destacar os valores nacionais anulados pela situao de dependncia cultural do Brasil. (BALBO, 2006, p. 10).

    Entretanto houve, ao longo da dcada de 1920, uma reorientao do movimento

    modernista. Recuperava-se aos poucos um iderio nacionalista e uma proposta de

    brasilidade, mantendo, contudo, o reconhecimento da dimenso moderna da ordem

    mundial. Era como se o ingresso do Brasil nesta ordem exigisse uma produo cultural

    prpria, tornando sua literatura um caso particular e especfico de modernidade. Era

    assim que se expressava Mrio de Andrade em 1924, numa carta a Joaquim Inojosa:

    (...) ns temos que criar uma arte brasileira. Esse o nico meio de sermos artisticamente civilizados. (...) Veja bem: abrasileiramento do brasileiro no quer dizer regionalismo nem mesmo nacionalismo = o Brasil pros brasileiros. No isso. Significa s que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das naes que hoje em dia dirigem a civilizao da Terra, tem que concorrer pra esse concerto com a sua parte pessoal, com o que o singulariza e individualiza, parte essa nica que poder enriquecer e alargar a Civilizao. (...) ns teremos nosso lugar na civilizao artstica humana no dia em que concorrermos com o contingente brasileiro, derivado das nossas necessidades, da nossa formao por meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e clima, pro concerto dos homens terrestres. (MRIO DE ANDRADE apud MORAES, 1988, p. 232-3).

    Este impulso levou escritores, artistas, cientistas sociais e historiadores a

    elaborarem uma srie de retratos do Brasil, valorizando a dupla sensibilidade:

    quanto ao sentido de modernidade e quanto releitura da nossa histria cultural. Era

    preciso, portanto, desvendar os prprios fundamentos da nacionalidade, e atingir o

    pas para alm das aparncias, da superfcie, e da viso calcada na importao de

    ideias estrangeiras. Como prova da impossibilidade de concebermos o modernismo

    como uma corrente homognea de pensamento, possvel perceber que, apesar de

    suas diferenas explcitas, autores como Oliveira Viana e Gilberto Freyre podem ser

    entendidos como beneficirios desta produo de retratos do Brasil. Todavia, talvez

  • 27

    o autor que em 1930 pode ser considerado um representante tardio do modernismo

    seja Srgio Buarque de Holanda (1902-1982).

    Em seu livro Razes do Brasil, publicado em 1936, Srgio Buarque procurou

    identificar quais traos arcaicos e tradicionais estavam sendo superados, e quais as

    perspectivas de mudana avistavam-se no horizonte. Srgio Buarque no reconstruiu

    historicamente a sociedade brasileira, mas examinou, em cada perodo histrico

    distinto, formas de sociabilidade, padres culturais, inquietaes intelectuais,

    instituies e mentalidades, que tiveram continuidade e/ou foram ou estavam sendo

    superados. Buscou compreender a cultura personalista, presente nas sociedades

    ibricas (Portugal e Espanha), e como elas foram difundidas atravs da colonizao nas

    Amricas; os efeitos da ausncia de uma tica do trabalho e o predomnio de uma

    tica da aventura sobre as relaes sociais, originando com isso formas de

    associao extremamente frgeis entre os indivduos; o peso que o patriarcalismo

    teve na cristalizao de nossas heranas rurais; o valor dado pelos brasileiros s

    relaes pessoais em detrimento dos valores tipicamente burgueses, tais como o

    princpio da impessoalidade, do individualismo etc., os quais tinham pouco a ver com

    uma sociedade tipicamente liberal e burguesa. Srgio Buarque preocupava-se com a

    implantao efetiva e segura de uma ordem social e poltica plenamente democrtica.

    No Brasil, afirma o autor, a democracia sempre foi um mal entendido, visto

    predominarem traos personalistas, clientelistas, autoritrios e, portanto, ibricos,

    distantes de um padro ideal anglo-saxo democrtico e universalista. Em terra onde

    todos so bares no possvel acordo coletivo durvel, a no ser por uma fora

    exterior respeitvel e temida (HOLANDA, 2006, p. 21), dizia o autor.

    Contudo, uma lenta revoluo acontecia. Propiciada pela independncia poltica,

    pelo contnuo processo de urbanizao, pela substituio da aristocracia aucareira

    pela cultura empresarial da cafeicultura, pela abolio da escravatura, Srgio Buarque

    percebia uma nova mentalidade emergindo, deixando para trs as

    [...] sobrevivncias arcaicas, que o nosso estatuto de pas independente at hoje no conseguiu extirpar. Em palavras mais precisas, somente atravs de um processo semelhante teremos finalmente revogada a velha ordem colonial e patriarcal, com todas as conseqncias morais, sociais e polticas que ela acarretou e continua a acarretar. (HOLANDA, 2006, p. 199).

  • 28

    Em suma, pudemos notar o quanto a temtica da identidade nacional tem sido

    no apenas uma construo simblica, mas, igualmente, uma questo poltica,

    implicando tanto no passado quanto no presente, perspectivas que remetem a

    distintas formas pelas quais possvel conceber formas de solidariedade ou conflito,

    manuteno ou mudana. O prximo item tem como objetivo, de um lado, concluir

    este texto, e de outro, iniciar nossa discusso sobre o alcance das pesquisas sobre as

    relaes raciais, entendendo que elas no podem ser desvinculadas do debate acerca

    da identidade nacional e do processo de modernizao por que passou a sociedade

    brasileira.

    5 OS DILEMAS DO BRASIL MODERNO E A GNESE DAS PESQUISAS SOBRE AS

    RELAES RACIAIS

    Acompanhamos nos itens anteriores o seguinte fato: entre o incio do sculo XIX

    e meados do ano de 1930, um conjunto de representaes, ideias e teorias sobre a

    sociedade brasileira foram formuladas por escritores dos mais distintos campos do

    conhecimento (Direito, Medicina, Engenharia, Histria, Geografia, etc.). Esses

    indivduos no tinham preocupaes puramente intelectuais, mas tambm polticas.

    Tambm vimos as primeiras reflexes de carter scio-histrico ou pr-sociolgico

    presentes nas grandes snteses sobre o Brasil no incio do sculo XX. Em todas elas, os

    dilemas a respeito da formao da sociedade, da identidade nacional e das

    expectativas de um futuro a ser construdo cruzavam-se com as cogitaes que se

    faziam a respeito do processo de modernizao do Brasil.

    Esse processo de modernizao foi acelerado entre o final de 1930 e 1970. Neste

    perodo, o Brasil passou por vrias transformaes polticas: a ditadura do Estado

    Novo (1937-1945), a redemocratizao a partir de ento, os sucessivos governos com

    perfil industrialista e modernizante (segundo governo de Vargas, governo JK) e a

    instaurao de uma ditadura militar em 1964. Nessa mesma temporada, sofremos

    profundas modificaes em nossa dinmica demogrfica, duplicamos nossa populao

    e nos tornamos urbanos em pouco mais de 30 anos: em 1940, ramos 41,2 milhes de

    habitantes, j em 1970, 93 milhes; em 1940, 28 milhes de pessoas (68,7%) viviam no

  • 29

    campo, contra 12,8 milhes nas cidades (31,2%); J em 1970 a populao urbana

    ultrapassaria em 11 milhes a populao rural (55,9% urbana, 44% rural). Alm disso,

    vivenciamos um intenso processo de migraes internas, principalmente do Nordeste

    para o Sudeste, mas tambm do Sul para o Centro-Oeste.

    No plano econmico, o Brasil diversificou sua produo deixando de ser uma

    economia exclusivamente agrria: no final de 1950 completou-se o processo de

    substituio de importaes de bens de consumo no durveis e uma infraestrutura de

    transportes e energia foi construda. Durante o governo JK (1956-1961), intensificou-se

    a produo industrial, que cresceu a uma taxa mdia de 10% ao ano e ramificou-se em

    setores como produo de ao, petrleo, metais, celulose, papel, qumica pesada, etc.

    Esse processo se desacelerou no incio de 1960, e foi retomado de forma intensa entre

    os anos 1969 e 1973, quando se assiste ao que ficou conhecido como o milagre

    brasileiro, perodo em que o PIB cresceu a uma mdia anual de 11,2%.

    Podemos refletir aqui no tanto sobre essas mudanas em si (assunto

    preferencial da economia, da demografia, ou da geografia urbana), mas sobre a

    compreenso sociolgica que se construiu sobre elas.

    A anlise sociolgica foi uma das formas privilegiadas para a compreenso desse

    processo todo de modernizao. A partir dos anos 1930, a Sociologia passou a ter um

    discurso prprio, no mais comprometido com preocupaes filosficas, morais,

    jurdicas ou polticas. A Sociologia brasileira converteu-se num tipo de anlise crtica,

    realizada atravs de instrumentos metodolgicos de alcance universal. O que ela

    buscava era, basicamente, explicar as dimenses estruturais do processo de mudana

    social do pas.

    Neste sentido, cabe a pergunta: como a Sociologia acadmica interpretou o

    processo de modernizao capitalista do Brasil? A partir da obra de Florestan

    Fernandes (1920-1995), pode-se dizer que um novo estilo de pensar a realidade social,

    bem como os dilemas da mudana social, inaugurado entre ns.

    Seus primeiros estudos, ainda em 1940, so reveladores desse interesse: ao

    pesquisar o papel do folclore na cidade de So Paulo, Florestan preocupava-se com a

    funo social dos antigos costumes, trocadilhos, brincadeiras infantis, cantigas,

    prticas de cura numa cidade que se urbanizava rapidamente e congregava imigrantes

    das mais distintas nacionalidades (italianos, japoneses, srio-libaneses, etc.).

  • 30

    Os estudos anteriores sobre o folclore valorizavam costumes e prticas

    ancestrais como se esses fossem representativos apenas de pessoas analfabetas e das

    reas rurais. Para Florestan, ao contrrio, o folclore era parte do conjunto maior da

    sociedade, e deveria ser analisado a partir de suas funes para o processo de

    socializao dos indivduos. Assim, atravs de pesquisas sobre o folclore na cidade de

    So Paulo, de urbanizao recente e de populao heterognea, Florestan

    demonstraria que sua presena tinha uma funo precisa: garantir a ordem social.

    Numa sociedade cuja estrutura social no correspondia mais aos laos de

    parentesco, vizinhana e identidades locais, mas que se abria para novas formas de

    convivncia (maior individualismo, racionalizao, secularizao, etc.), o folclore

    permitia, por exemplo, integrar os imigrantes, reproduzir certos esteretipos, manter

    e recriar hierarquias sociais. Longe de ser uma mera sobrevivncia do passado, um

    resto cultural, ou se restringir s pessoas pobres e analfabetas, o folclore perpassava

    todas as classes sociais, embora com funes diferentes em cada uma delas. Um dos

    aspectos do folclore que mais tarde receberia um tratamento aprofundado por

    Florestan Fernandes seria o preconceito racial.

    A sociologia da mudana social no se restringiu ao estudo das cidades. Alm de

    Florestan Fernandes, autores como Antonio Candido (1918-) e Jos de Souza Martins

    (1938-) tambm focaram as transformaes por que passava o mundo rural.

    No caso de Antonio Candido, seu livro Os parceiros do Rio Bonito, publicado em

    1964, mas reunindo pesquisas feitas entre 1948 e 1954 no interior do estado de So

    Paulo, um estudo clssico sobre o lugar ocupado pela cultura tradicional camponesa,

    mais precisamente caipira, no processo de modernizao. Segundo Antonio

    Candido, a sociedade caipira caracteriza-se por sua estrutura simples, pela

    precariedade dos recursos materiais, pelo cunho coletivo das invenes, pela

    obedincia estrita a certas normas religiosas. A sociedade caipira tradicional no Brasil,

    tendo assimilado traos culturais indgenas e portugueses, havia elaborado tcnicas

    que permitiam estabilizar as relaes do grupo com o meio, atravs do conhecimento

    satisfatrio dos recursos naturais, de sua explorao sistemtica e de uma dieta

    compatvel com o mnimo vital, formando em seu conjunto uma economia de

    subsistncia de tipo fechado, isto , sem trocas com o exterior. A convivncia, o auxlio

  • 31

    mtuo e as atividades ldico-religiosas (festas, principalmente) eram componentes

    fundamentais da sociedade/cultura caipira.

    Essa cultura caipira de subsistncia, contudo, convivia em graus diversos de

    contato com as primeiras vilas e, sobretudo, com as grandes fazendas de cana, gado e,

    depois, caf, cujos proprietrios tinham uma relao mais direta com as cidades e seus

    circuitos de troca. A grande agricultura mercantil, embora predominantemente de

    base escravista ao longo da Colnia e do Imprio, abrigava tambm essa categoria de

    sitiantes, posseiros e agregados que define a economia caipira de subsistncia. O

    caipira, vivendo sem garantias jurdicas mnimas quanto ocupao da terra, tambm

    no conseguiu desenvolver uma cultura que o predispusesse ao progresso e

    mudana. Ou seja, o acesso terra era fundamental para a manuteno da cultura

    camponesa em seu estado tradicional de isolamento, trabalho domstico, cooperao,

    lazer, etc. Com a expanso da lavoura cafeeira e mais tarde das cidades mdias em seu

    entorno, e diante da impossibilidade da posse ou ocupao de fato da terra, o caipira

    ou se tornava agregado nas grandes fazendas, ou era empurrado para as reas

    despovoadas do serto, ou ainda se tornava retirante, vivendo nos subrbios das

    grandes cidades. Tais condies eram responsveis pela desestruturao social que,

    em linguagem sociolgica, se conhece por anomia social.

    No imaginrio social, a figura do caipira preguioso, desleixado, morando em seu

    casebre precrio, desconfiado e ressentido em relao ao comrcio do turco, ou a

    operosidade do italiano, uma representao forjada pela literatura de Monteiro

    Lobato (1882-1948), particularmente em seu livro Urups (1918), e ganha ampla

    repercusso nos filmes de Amncio Mazzaropi (1912-1981).

    Ao longo dos anos 1950 e 1960, o pensamento sociolgico paulista

    problematizou as razes, o perfil e os efeitos do atraso no Brasil. Em linhas gerais, as

    vrias pesquisas dessa escola tinham como pressuposto a recusa da viso dualista. A

    viso dualista concebia o processo de modernizao a partir da oposio entre

    princpios bsicos: o tradicional e o contemporneo; o atrasado e o adiantado; o rural

    e o urbano; o industrial e o comercial, etc. Esses princpios dessemelhantes seriam

    essencialmente antagnicos e o desenvolvimento de um (da economia industrial, por

    exemplo) implicaria na decadncia de outro (da economia rural, no caso).

  • 32

    Segundo a viso dualista, haveria dois Brasis, um atrasado e outro moderno.

    Para a escola sociolgica paulista, tal distino era incorreta: as transformaes

    afetavam de maneira desigual as classes, os grupos sociais e as diferentes regies do

    pas, e isso tanto no espao urbano como no rural. Assim, a reproduo da

    desigualdade social mesmo num contexto de mudana estrutural intenso era o x da

    questo.

    Em A integrao do negro na sociedade de classes (1964), Florestan Fernandes

    voltou a um tema caro aos intrpretes do Brasil que escreveram na dcada de 1930: a

    questo racial. Nessa obra, Florestan entende que a integrao do negro um

    problema numa sociedade de classes como a brasileira. O autor busca explicar o

    porqu a prpria sociedade de classes no Brasil foi, ela mesma, problemtica. Para

    isso, analisa o entrelaamento entre a sociedade de castas e a sociedade de classes,

    pois uma no teria sucesso sem a outra. Assim, a integrao precria dos ex-escravos

    na sociedade de classes se deu em funo de obstculos estruturais plena vigncia

    daquilo que Florestan denomina de ordem social competitiva, isto , uma ordem

    social que contemplasse as virtudes da meritocracia, da igualdade de oportunidades,

    da competio justa, etc. Ao contrrio, o que o Brasil conheceu logo aps a Abolio

    da escravatura foi a completa desateno ao antigo contingente de trabalhadores

    cativos que, sem condies materiais e morais para competir com os trabalhadores

    imigrantes j acostumados tica do trabalho, tiveram o pior ponto de partida no

    contexto de emergncia da sociedade capitalista. Segundo Florestan:

    Evidencia-se, a, como a modernizao tem ocorrido, na esfera das relaes raciais, como um fenmeno heterogneo, descontnuo e unilateral, engendrando um dos problemas sociais mais graves para a continuidade do desenvolvimento da ordem social competitiva na sociedade brasileira. Por conseguinte, a anlise converte-se em um estudo da formao, consolidao e expanso do regime de classes sociais no Brasil do ngulo das relaes raciais e, em particular, da absoro do negro e do mulato. (FLORESTAN, 2008, p. 22).

    O verdadeiro dilema do processo de transio para a modernidade no Brasil

    que, para Florestan, nossa sociedade nunca chegou a se constituir, efetivamente,

    como uma sociedade de classes. Isto , a ordem social competitiva enfrentou

    obstculos quase intransponveis. No caso da pesquisa, ela revelou que o negro

  • 33

    encontrou pela frente toda sorte de dificuldades em seu processo de ascenso social.

    Entre tais dificuldades, talvez a principal fosse o preconceito racial, que se traduzia em

    resistncias abertas ou dissimuladas para sua admisso em p de igualdade com os

    brancos. Em outras palavras, o preconceito de cor e a discriminao racial atuaram

    como elementos impeditivos, verdadeiros obstculos formao de uma sociedade de

    classes. Na verdade, tais manifestaes eram indicadores de padres socioculturais

    tradicionalistas, conservadores, muitas vezes opostos racionalidade capitalista.

    Contudo, atuavam como mecanismos sutis de reproduo de desigualdades em meio

    ao processo de modernizao.

    REFERNCIAS

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    INDICAES DE FILMES Histrias Cruzadas Quase Dois Irmos (Lucia Murat, 2004) 5 vezes Favela (as duas verses) Relao com Integrao do Negro na Sociedade de Classes Cadillac Records Para discutir mobilidade social Hans Staden Como era gostoso meu Francs Para discutir a questo indgena, inclusive a partir do texto de Jos Bonifcio O Som ao Redor Para discutir o patriarcalismo, as relaes entre classe media e pobres, etc