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ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O ACORDO ORTOGRFICO.
Geraldo CINTRA1
RESUMO: O Acordo Ortogrfico de 1990 tem sido objeto de muitas crticas de lingistas, fillogos, escritores e jornalistas, e tambm tem causado preocupao a professores que consideram problemtico o seu ensino nas escolas. O Acordo tem por meta a unificao da ortografia da lngua portuguesa em todo o mundo de lngua portuguesa (Angola, Brasil, Cabo-Verde, Guin-Bissau, Moambique, Portugal, S. Tom e Prncipe e Timor-Leste), objetivo sem dvida desejvel. Seus crticos, contudo, consideram que ele contm muitas imprecises, equvocos, omisses e que, por permitir muitas formas facultativas, em vez de simplificar d origem a uma grande variedade de grafias possveis, o que no contribui para a unificao pretendida. Em nossa anlise tecemos algumas consideraes acerca de pontos que nos parecem problemticos nas normas propostas pelo Acordo, quer por no serem suas formulaes suficientemente explcitas, quer por dependerem de informao especializada de que o leigo (e, em particular, o aprendiz) no dispe, quer por no levarem em considerao usos caracteristicamente brasileiros que divergem do uso em Portugal.
PALAVRAS-CHAVE: acordo ortogrfico; lngua portuguesa; ortografia; reforma ortogrfica.
Para muitos de ns, o novo Acordo Ortogrfico (que j no to novo, tendo sido
estabelecido em 1990) constitui uma segunda mudana nas regras ortogrficas, visto que
as atualmente vigentes datam de 1971.
O acordo atual, contudo, tem dado origem a bastante discordncia. Em Portugal,
um manifesto2 contra o acordo foi proposto por dezenove signatrios e encaminhado
ao governo com mais de 35 mil assinaturas. No foi essa a nica manifestao contrria.
Outros lingistas, escritores, intelectuais tambm se fizeram ouvir, combatendo
a proposta. Nos meios de comunicao e na Internet muitas opinies discordantes foram
e continuam sendo divulgadas. 3
1 Universidade de So Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Departamento de Letras Clssicas e Vernculas. So Paulo - SP, Brasil. E-mail: [email protected] 2 Cf. Manifesto em defesa da lngua portuguesa contra o acordo ortogrfico (2008) 3 Cf. Emiliano (2008, b, c); Guinote (2008); Moura (2008); Schwartzman (2008), entre outros.
2
Se a implementao do Acordo Ortogrfico dependesse apenas dos resultados do processo de consulta, h muito que o projeto teria sido abandonado. Das 27 entidades contactadas, apenas duas se manifestaram favorveis. (Jornal de Notcias, Lisboa, 11 de julho de 2008)
Ainda assim, contudo, o acordo foi aprovado e dever entrar em vigor no Brasil
gradativamente a partir de 2009.4 At esta data (5 de setembro de 2008) j foram publicados
no Brasil dois livros sobre o Acordo, Silva (2008) e Vieira (2008), que explicam as novas
regras. Com certeza outros viro.
Reforma ortogrfica.
Uma reforma ortogrfica decorre da constatao da inadequao da ortografia vigente
ou da inteno de aperfeio-la.
Convm destacar, contudo, que as formas escritas que se pretende modificar no so
inerentemente problemticas. O portugus desde a reforma de 1911 abandonou as grafias
etimolgicas5 que continham ph, th, rh, consoantes dobradas (com exceo
de rr e ss, que permanecem) e diversos outros grupos consonantais, grafias mantidas em
outras lnguas, entre elas o francs (orthographe, rythme, appliquer, attitude, anne, collge),
o ingls (orthography, rhythm, apply, attitude, annual, college) e o alemo (Orthografie,
Rhytmus, Theologie; Sonne, Mutter, doppel).
O portugus passou de uma ortografia etimolgica (ou pseudo-etimolgica)
a uma ortografia freqentemente referida como fontica (ou por vezes snica), mas
a rigor parcialmente fonmica, e essa orientao se mantm no acordo atual.
Uma grafia estritamente fonmica impraticvel, pois confundiria palavras
homfonas (ao, asso; hora, ora; tacha, taxa, etc.), alm de no ser adequada em face da
4 Todos os livros didticos devero estar de acordo com as novas normas em 2010. A nova ortografia ser obrigatria aps o final de 2012. 5 Muitos exemplos dessas grafias, extrados de jornais do sculo XIX, podem ser encontrados em Guedes & Berlinck (2000).
3
existncia de variantes regionais com pronncias diversas (como no caso da palavra Recife,
cuja primeira vogal pode ser um e fechado ou aberto, ou ainda um i, conforme
a regio considerada). A ortografia vigente, antes e depois do acordo, mista, combinando
critrios fonmicos com alguns elementos etimolgicos (como sc em descer, ascender,
h em homem, honra, hora. Cf. italiano uomo, onore, ora). Gleason (1961: 435) considera
que tais grafias provm um sistema de escrita semi-morfmico para a lngua, ou seja, uma
grafia fica associada a determinado morfema lexical, distinguindo-o de outro homfono
(pao, passo; tacha, taxa).
Em reformas anteriores6, certos processos j estabelecidos de indicao de fenmenos
fnicos foram substitudos por diacrticos. Por exemplo, a antiga grafia vogal + z indicava
a slaba tnica em palavras oxtonas como cortez, montez, (em oposio a crtes, montes,
cuja slaba final tona), portuguez, pedrez, etc. Uma mudana da ortografia levou a slaba
tnica das palavras oxtonas a ser escrita com s. Palavras oxtonas com outras vogais
na slaba final mantiveram a grafia com z (fugaz, capaz, feliz, algoz, capuz), quebrando
o paralelismo antes existente.
Com o emprego do acento diferencial (que s foi abolido no acordo de 1971),
multiplicou-se o nmero de acentos nas palavras, o que levou Luft (1972: 47) a dizer Enfim,
ficamos quase trinta anos semeando circunflexos.
O novo acordo pretende contribuir para a unificao ortogrfica, mas muitas das
regras nele contidas apresentam aspectos que tm sido considerados problemticos.
No decorrer deste texto analisamos alguns desses aspectos.
6 Para informaes sobre os acordos ortogrficos e questes correlatas cf. Em defesa da lngua portuguesa contra o acordo ortogrfico e Portal da Lngua Portuguesa. Cf. tambm Aguiar (2008)
4
Consoantes mudas
As consoantes no pronunciadas, que Portugal manteve, de h muito j haviam sido
eliminadas no Brasil. O novo Acordo Ortogrfico determina sua eliminao tambm na grafia
lusitana, passando-se a escrever, por exemplo, direo, recesso em vez de direco,
recepo o que levou muitos crtica de que se impunha a Portugal uma grafia brasileira.
Contudo, tais consoantes, embora no pronunciadas, atuavam como se fossem
diacrticos, indicando o timbre aberto da vogal precedente. Com a eliminao da consoante
perde-se, assim, essa indicao. Isso obviamente no afeta a pronncia das palavras nem
as confunde, pois a grafia simplificada no elimina a distino entre, por exemplo,
recesso e receo (este ltimo com e aberto na segunda slaba).
No Brasil, entretanto, o p de recepo, o c de caracterstica e de perspectiva e outros
tm de ser mantidos por serem pronunciados (alm de que, na fala corrente, essas consoantes
so iniciais de slaba, em virtude da insero de uma vogal / i / epenttica: /peRsep(i)su/,
/karak(i)teristika/, /peRspek(i)tiva/). Ao eliminar essas consoantes na grafia lusitana,
o acordo, que se prope unificador, cria mais diferenas de grafia entre Portugal e Brasil, sem
explicitar as condies de uso especficas.
J o h inicial, embora no pronunciado, mantido, por razes etimolgicas (como em
haver; cf. francs avoir, italiano avere).ou para distinguir homfonos (hora, ora), ou em
nomes prprios, como Heitor (cf. italiano Ettore), Hlio, Homero, Holanda, etc. De h muito
j havia sido eliminado o h medial que indicava ocorrncia de hiato, como em ahi, sahida,
prohibir, mantendo-se em Bahia por ser grafia tradicional, sem motivao lingstica7,
bem como em marcas comerciais (Brahma).
7 A distino grfica entre o topnimo e o nome do acidente geogrfico (na realidade a mesma palavra) j marcada pela inicial maiscula no primeiro.
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Hfen
As regras para o emprego do hfen talvez sejam as mais controversas do Acordo, o que
levou Russo & Harnick (2008) a intitularem seu texto Hfen novo vilo da reforma.
Expressas nas Bases XV (7 itens e 5 subitens), XVI (3 itens e 8 subitens) e XVII
(2 itens e 2 subitens) do Acordo, num total de 12 itens e 15 subitens, essas regras deixam
muitas dvidas quanto grafia que ser adotada, dvidas acentuadas pelo uso de etc. ao final
de listas de exemplos, mesmo quando se trata de excees regra.
As regras, tal como formuladas, no se dirigem ao aprendiz ou pessoa que deseja
saber qual a grafia correta para uma determinada palavra; pressupem um leitor especializado,
um professor, um especialista no assunto:
OBS. Certos compostos, em relao aos quais se perdeu, em certa medida, a noo de composio, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, pontap, paraquedas, paraquedista. (Acordo, Base XV, item 1)
Quem tem dvida quanto grafia de uma palavra, em particular o aprendiz,
dificilmente ter condio de decidir se foi ou no perdida (e em certa medida)
a noo de composio.
A Base XVI, item c, determina o emprego do hfen com os prefixos circum- e pan-
quando o segundo elemento comea por vogal, m ou n, relacionando entre os exemplos
a forma pan-africano. No considera, contudo, o fato de que no Brasil, ao lado de