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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O LATIM DE GIL VICENTE jD. Carolina Michaclis dedicou a parte segunda da sua Quarta Nota Vicentina a «Gil Vicente — o Latinista». No intuito de provar que os conhecimentos da língua de Roma, possuídos por Mestre Gil, eram de origem eclesiástica, coleccionou mesmo todas as frases latinas das suas personagens e tentou identi- ficá-las com a ajuda do seu colega da Faculdade de Letras de Coimbra, Doutor António Garcia Ribeiro de Vasconcelos (1) que fora catedrá- tico da Faculdade de Teologia, até à sua extinção. Era, portanto, o guia ideal para referenciar citações bíblicas, naturalmente com a ajuda de índices e concordâncias dos respectives textos. A propósito da frase Amor vincit omnia, que ocorre na Farsa das Fadas e de que Gil Vicente indica a fonte mais conhecida (D. Carolina também não conhece outra), a ilustre romanista escreveu: «Por ser parcela única de um hexâmetro clássico que se encontra na Copilação, e por ser humorística a interpretação que o pceta lhe dá, citando namo- rados da corte, suspeito que mal conhecia o original, mas apenas a tão importante vulgarização de Encina (Antologia, XII, p. 109): todo lo vence el amor. Essa retroverteu-a, dando-lhe depois a forma portu- guesa de pouca elegância El amor vence a todas las cosas. Por causa do verso de arte maior, cuja primeira parte constituem termos latinos, inverteu-os acentuando Amor vincit omnia (^_-^_^)» (2). (1) Sobre o grande mestre conimbricense, ver  Memória do Dr. António de Vasconcelos, Primeiro Presidente da Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1948, pelo Dr. Domingos Maurício Gomes dos Santos. S.J., e pelo Prof. Doutor Mário Mendes dos Remédios de Sousa Brandão. (2) Notas Vicentinas. Ed. da revista «Ocidente», Lisboa, 1949, p. 238. Tive ocasião de verificar que idêntica maneira de escandir se encontra já na l. a edição.

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O LATIM DE GIL … · parisiense de António de Gouveia, de 1556, em que foram sublinhadas a tinta todas as frases scntenciosas e de bom conselho, proferidas

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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O LATIM DE GIL VICENTE

jD. Carolina Michaclis dedicou a parte segunda da sua Quarta Nota Vicentina a «Gil Vicente — o Latinista».

No intuito de provar que os conhecimentos da língua de Roma, possuídos por Mestre Gil, eram de origem eclesiástica, coleccionou mesmo todas as frases latinas das suas personagens e tentou identi­ficá-las com a ajuda do seu colega da Faculdade de Letras de Coimbra, Doutor António Garcia Ribeiro de Vasconcelos (1) que fora catedrá­tico da Faculdade de Teologia, até à sua extinção. Era, portanto, o guia ideal para referenciar citações bíblicas, naturalmente com a ajuda de índices e concordâncias dos respectives textos.

A propósito da frase Amor vincit omnia, que ocorre na Farsa das Fadas e de que Gil Vicente indica a fonte mais conhecida (D. Carolina também não conhece outra), a ilustre romanista escreveu: «Por ser parcela única de um hexâmetro clássico que se encontra na Copilação, e por ser humorística a interpretação que o pceta lhe dá, citando namo­rados da corte, suspeito que mal conhecia o original, mas apenas a tão importante vulgarização de Encina (Antologia, XII, p. 109): todo lo vence el amor. Essa retroverteu-a, dando-lhe depois a forma portu­guesa de pouca elegância El amor vence a todas las cosas. Por causa do verso de arte maior, cuja primeira parte constituem termos latinos, inverteu-os acentuando Amor vincit omnia (^_-^_^)» (2).

(1) Sobre o grande mestre conimbricense, ver  Memória do Dr. António de Vasconcelos, Primeiro Presidente da Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1948, pelo Dr. Domingos Maurício Gomes dos Santos. S.J., e pelo Prof. Doutor Mário Mendes dos Remédios de Sousa Brandão.

(2) Notas Vicentinas. Ed. da revista «Ocidente», Lisboa, 1949, p. 238. Tive ocasião de verificar que idêntica maneira de escandir se encontra já na l.a edição.

SOBRE O LATIM DE GIL VICENTE 199

As objecções que podem fazer-se ao conteúdo desta citação resu-mem-se assim: 1. a versão de Gil Vicente é em castelhano e não em português; 2. se não há deslizes tipogiáficos no texto das Notas Vicen­tinas, a escansão do hexâmctro dactílico ai impressa contém erros; 3. D. Carolina Michaëlis estava pouco a par do movimento huma­nístico da corte, que conhecemos hoje através da correspondência de Cataldo Sículo, para imaginar que o conhecimento de Vergílio seria coisa tão extraordinária para Gil Vicente, quando sabemos que o poeta romano era lido na corte portuguesa por crianças talvez com menos de dez anos de idade.

Ainda a propósito da frase poética Omnia vincit amor, acrescente-se que ela aparece também na Ciris, um texto da Appendix Vergiliana muito tempo atribuído a Vergílio, mas considerado hoje imitação do Mantuano, carregada de reminiscências das suas obras.

Na Ciris, a frase vem no pretérito e ocupa a mesma porção de verso que na Écloga X, 69, de Vergílio, mas alguns manuscritos documentam a existência do presente;

— I U \J

Omnia vincit amor: et nos cedamits amori

(VERG., Ed. X, 69)

<J u

Omnia vicit amor: quid enim non vinceret illel

(Ciris, 437)

A frase Omnia vincit amor é constituída pela primeira parte do hexâmetro até a cesura semiquinária, isto é, forma aquilo a que os metri-cistas ingleses chamam um hemiepes.

A respeito desta citação escreveu D. Carolina Michaëlis no mesmo estudo sobre Gil Vicente: «Uma única citação é clássica. De Vergílio. Não palavra alada tirada da Eneida. Sentença do Bucolista, cujas Éclogas já estavam traduzidas em castelhano» (1).

Sem querer desmentir a sábia romanista, notarei que há, pelo menos, outra citação clássica, e esta da Eneida, embora em castelhano.

(1) Ibidem, p. 220. Cf. p. 154: «Trezentase tantas citações de Liturgia romana. Uma só clássica. De Vergílio. Por sinal, o conhecido e muito citado Omnia vincit amor».

200 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO

Quando Gil Vicente escreve na Tragkomédia de Amadis de Gaula

que la salud de los perdidos es no esperar por ella.

está a verter um dos versos mais conhecidos da Eneida, hexâmetro que no todo ou em parte é hóspede tradicional das páginas cor de rosa dos dicionários onde se incluem citações latinas: Vna salus victis nullam sperare saltitem (VERG., Aen., II, 354).

Os dicionários apresentam, às vezes, só o primeiro hemistíquio até a cesura semiquinária (hemiepes): Vna salus victis... (—" v / — /—).

O verso já fora traduzido, antes de Gil Vicente, pelo poeta do Cancioneiro Geral, D. João Manuel, falecido em 1499:

nem nos vencidos saúde senam nam na esperar.

Tanto salud em Gil Vicente, como saúde em D. João Manuel, são claramente latinismos, correspondentes ao latim satutem, «sal­vação».

D. João Manuel foi um dos correspondentes de Cataldo Sículo que lhe escreveu cartas latinas e enviou poemas em metro dactílico que se encontram nas suas Obras.

E de estranhar que jD. Carolina Michaëlis não tenha reconhecido um verso tão divulgado de Vergílio.

Na tragi comédia Triunfo do Inverno, há um diálogo travado entre a Serra de Sintra e uma Forneira, em que as duas interlocutoras citam latim.

Fala a Serra e responde a Forneira:

— Meu Senhor, contra verbosos Noli contendere verbis. — Qui semetipsum laudat despicit honorem suum.

D. Carolina Michaëlis dedicou uma nota à expressão Noli con­tendere verbis, nunca lhe ocorrendo que contra verbosos também era latim. E outra nota a Qui semetipsum laudat j despicit honorem suum.

SOBRE O LATIM DE GIL VICENTE 501

Para não ser injusto com a sábia Mestra, vou citar na íntegra a primeira nota e discuti-la seguidamente:

«NOLI CONTENDERE VERBIS.— Completado pela fórmula Meu Senhor, contra verbosos, é conselho sentencioso que a Serra de Sintra dá, na segunda parte do Triunfo do Inverno (TI, 488), à Forneira que, com demasiado ímpeto, dissera mal da estação quente. Desta vez é a Epístola TI de São Paulo a Timóteo (2) que Gil Vicente fixara na memória, segundo, interrogado, o Dr. Vasconcelos logo me indicou. Integrado, o versículo 14.° motiva a proibição de centenas de palavras, que para nada servem, senão para perversão dos ouvintes (ad nihil enim utile est nisi ad subversionem audientium). (1).

Verifiquei a citação e está certa para a expressão Noli contendere verbis.

Todavia, não pude deixar de notar que esta frase latina é o segundo hemistíquio dum hexâmetro dactílico, depois da cesura semiquinárja, afinal mais uma parte de hexâmetro, uma segunda metade, quando D. Carolina Michuëlis afirmara peremptoriamente, por três vezes, sublinhando a afirmação, que omnia vincit amor é «parcela única de um hexâmetro clássico que se encontra na Copilação»:

B - I - - U - » I - -noli contendere verbis.

E daqui comecei a pensar onde poderia descobrir a frase, em qual das obras de paremiologia latina se encontrariam provérbios expressos em hexâmetros dactílicos.

Uma das fontes de sentenças morais na tradição latina eram os poetas cómicos, sobretudo Plauto e Terêncio. Deste último, por exemplo, possuímos no Instituto de Estudos Clássicos, uma edição parisiense de António de Gouveia, de 1556, em que foram sublinhadas a tinta todas as frases scntenciosas e de bom conselho, proferidas pelas personagens terencianas.

Mas os versos da comédia são, na sua maioria, iambos e troqueus, e a frase latina da Serra de Sintra é em ritmo dactílico.

Das colecções de ditos morais, reunidas nos Poetae Latini Minores, os de Publílio Siro são em senários iâmbicos, mas uma parte dos Dieta ou Disticha Catonis são cm ritmo dactílico.

(1) Ibidem, p. 278.

202 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO

E foi nos Disticlui Catoms, no decimo dístico do livro I. que fui encontrar literalmente o texto latino de Gil Vicente, posto na boca da Serra de Sintra:

Contra verbosos noli contendere verbis: sermo datur Ctmctis, animi sapientia paucis.

Fiquei assim a saber que contra verbosos no verso do Triunfo do Inverno, que precede a frase noli contendere verbis, embora pareça por­tuguês, é na realidade o primeiro hemistíquio até a cesura pentemímere. do hexâmetro inicial dos Disticha Catoms:

- - I - - I -Contra verbosos.

Penso que esta particularidade não foi até agora notada pelos editores de Gil Vicente, que apenas imprimem em itálico Noli contendere verbis.

O mais curioso, todavia, é que a Forncira responde à Serra de Sintra como se conhecesse o segundo hexâmetro do dístico, aquele que de facto contém um elogio em boca própria, justificativo da frase latina da Serra: «Contra os faladores, não disputes com palavras, /' a fala é dada a todos, a sabedoria a poucos».

A Forneira de facto censura:

Qui semetipsum laudat despicit honorem suum.

«Quem a si próprio louva. / rebaixa a sua honra». D. Carolina Michaëlis traduziu de forma libérrima por: «Não pede louvor quem o merece». E acrescentou: «Um refrão latino, em boca duma forneira, descida da Serra de Sintra, a fim de maldizer o Verão, talvez seja a única incoerên­cia linguística cometida por Gil Vicente».

Já em outra ocasião me ocupei da possível intenção humorística do latim correcto em boca de incultos c, inversamente, das tiradas macarrónicas de juristas e outros com obrigação de saber latim (1).

(1) Cf. o artigo «Uma Bucólica Grega em Gil Vicente» in Humanités, XV-XVI (1963-64), pp. 328-347, sobretudo na p. 330 e p. 331, n. 1.

SOBRE O LATIM DE GIL VICENTE 203

Hoje quero apenas desenvolver uma sugestão que em outro lugar fiz também e olhar mais de perto o latim da Forneira: Qui semetipswn laudat, f despicii honorem situm.

Não se trata de latinidade tão correcta como D. Carolina Michaëlis deixa entender: semetipswn é uma forma pronominal desnecessaria­mente reforçada, se considerarmos apenas o latim. Com efeito, semet ou se ipsum bastariam, se Gil Vicente não pretendesse acertar o número de sílabas da frase latina com dois versos portugueses de sete sílabas.

Este tipo de começo, a saber, a cláusula relativa cem uma cons­trução de verbo reflexo, ocorre nas máximas de Publílio Siro, onde o provérbio correspondente ao de Gil Vicente é: Qui se ipse laudat, cito der isor em invertit.

O texto de Publílio Siro documenta também o tipo de construção reflexa mais correcto: ipse cm concordância com o sujeito e não com o complemento directo.

Por outro lado, a construção com semet não é desconhecida nas máximas de Publílio Siro: Qui semet accusât, ab alio non potest criminar i.

Ora bem. Sc suprimirmos nos dois versos de Gil Vicente ou -met ou ipsum, isto é, se tirarmos o que está a mais, encontraremos um senário iâmbico como os da comédia latina ou das sentenças de Publílio Siro:

Qui semet laudat, despicit honorem suum l l i I I

Qui se ipsum laudat, despicit honorem suum,

com cesura semiquinária. Durante algum tempo, tive dúvidas sobre a legitimidade da cons­

tituição do quarto pé, dado que o tríbraco apresenta uma divisão das sílabas menos perfeita do que seria, se as duas breves que correspondem à longa do iambo ficassem juntas na mesma palavra.

Todavia, posso citar um arranjo métrico semelhante nos Captivi de Plauto, verso 159:

1 1 1 ' I

muitis et muitigeneribus opus est tibi.

Ao contrário do que acontece com a fala da Serra de Sintra, não consegui ainda encontrar a fonte do latim da Forneira que, como acaba de ver-se, é menos elevado, na construção e na mécrica, que o da sua mais nobre interlocutora.

204 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO

Os Disticha Catonis, donde veio o hexâmetro da Serra, são uma colectânea constituída tardiamente, talvez no século terceiro depois de Cristo, e usada largamente na Idade Média e em pleno Renascimento como livro de leitura de latim. Entre nós, recorda-se a sua existência, em manuscrito, na biblioteca do rei D. Duarte (1). D. João III ainda ouviu do seu professor de Latim os «conselhos de Catão» (2), lidos certamente em texto impresso.

Foi um dos livros mais populares no século xv e daqueles repre­sentados ainda hoje por maior número de incunábulos, nada menos de 178, segundo Marcus Boas, o sábio editor do melhor e mais moderno texto crítico dos Disticha (3).

Quanto à origem do título, penso que ainda é plausível a expli­cação de Erasmo, no prefácio da sua edição, datado de 1 de Agosto de 1513: «Porro cuius auctoris sit hoc opus, & utrum unius an plurium, non admodum referre puto. Catonis ob id tantum arbitror dici, quod sententias habeat Catone dignas» (4).

É evidente que o nosso poeta podia ter encontrado o hexâmetro dos Disticha, de muitas maneiras diferentes, desde as miscelâneas manuscritas até às edições impressas, da mais variada natureza e pro­cedência. Podia ter mesmo consultado o texto de Erasmo, existente há quinze anos (se não houve alguma edição erasmiana anterior), quando a tragicomédia «chamada Triunfo do Inverno» foi representada em 1529.

£ por falar em Erasmo: estarei a pretender transformar Gil Vicente em humanista? De modo algum. Creio até, que os humanistas lhe não votariam grande simpatia.

(1) Joaquim de Carvalho, Estudos sobre a Cultura Portuguesa no Século XVI. Coimbra, 1949, pp. 306-307. Com o nome de «Gaton», os Disticha Catonis são possivelmente mencionados no alvará de D. Pedro I, de 1357, entre os livros que podiam ser ensinados fora das escolas do «Studo da cidade de Cojmbra». (Cf. Cor­rêa de Oliveira e Saavedra Machado, Textos Portugueses Medievais, Coimbra, 1964, pp. 418-420).

(2) Francisco de Andrade, Chronica do Muyto Alto et Muyto Poderoso Rey destes Reynos de Portugal Dom João, o í[f deste Nome... Coimbra, 1796, I, p. 8.

(3) Disticha Catonis recensait et apparatu critico instruxit Marcus Boas. Opus post Marci Boas mortem edendutn curauit Henricus loannes Botschuvver, Amste-lodami, MCML1I.

(4) Catonis Disticha Moralia, cum scholiis Des. Eras. Rot. [...]. Basileae. An. MDXXVI.

SOBRE O LATIM Dli GIL VICENTE 205

A tradição humanística herdara a atitude pouco amistosa de Boécio na Consolatio Philosophiae, que era também a dos escritores cristãos, a respeito da Comédia. Os humanistas não exceptuaram senão Plauto e Terêncio, considerados mestres da vida. Para os autores de comédias em romance ia o seu desprezo de eruditos.

Cataldo Sículo não constitui excepção. Ao elogiar o seu antigo aluno D. Jorge (a quem mais vezes censurou veladamente), diz: «E dá do que é seu prémios de justo valor. Dá como convém a um rei, mas pouco a actores, e isto mesmo contra o seu costume e inclinação.

Nada considera mais miserável, desprezível e baixo, e nada mais prejudicial e fétido, do que o adulador, o mentiroso e os bobos cho-carreiros...

Mas agradam-lhe os homens doutos, graves e moderados, aos quais manda presentear, mesmo quando lhe são desconhecidos...» (1)

D. Jorge assim descrito por Cataldo, num poema em que o rei D. Manuel recebe também a sua quota-parte de elogios, é um suzerano muito diferente daquele que Cataldo, seu vassalo, nos deixou pintado na correspondência, quer em alusões veladas, quer em queixas sem véus.

É visível que o Duque de Coimbra dos versos de Cataldo se apre­senta sobretudo como o humanista desejaria que ele fosse.

Qual a importância deste testemunho de Cataldo sobre os mimi, a quem D. Jorge não dá senão pequena ajuda, e sobre os scurrae dicaces, a quem despreza?

O interesse do trecho que traduzi é reforçado pela circunstância de conhecermos, com alguma segurança, a data cm que foi composto.

(1) Daí que suo ius tis praemia pondérions. Vtque decet regem dat, sed mediocria mi mis,

Idque suos mores contra animumque facit. Nil miserabilius, despectius, inferiusque.

Et nil deterias\ put id'iusque pu tat, Quam sit adulator, mendax, scurraeque dicaces

At doctique grauesque placent hominesque modesti, Quis etiam ignotis distribuenda iubet.

(Cataldi Visiomtm liber quart us, E vj)

Um scurra dicax é mencionado vagamente e condenado, na fantasia de Cataldo, uma punição jocosa:

Hic aderat Petrus resonanti gututre foedus Scurra uorax, salibus turpior illepidis.

{Ibidem, E iij)

206 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO

Com efeito, o Visioman líber quartus tem por pretexto uma queda de cavalo, dada por D. Jorge, cm fins de 1505, em Almeirim. Grassava a peste em Lisboa e por essa altura a corte aí estava também (1). Terá sido então que se verificou a entrada solene da Rainha D. Maria em Santarém, para a qual Cataldo compôs uma oração em latim? Assim o supus em artigo publicado na revista Panorama (2). colocando a entrada oficial da nova rainha em Janeiro ou primeiros dias de Feve­reiro de 1506. Na verdade, a 14 deste mês já os soberanos se encon­travam em Abrantes onde, a 3 de Março, nasceu o Infante D. Luís. Nessa mesma data, teve lugar o «sermão feito à cristianíssima Rainha D. Leonor, e pregado cm Abrantes ao muito nobre Rei D. Manuel, primeiro do nome.»

Cataldo muito provavelmente acompanhou a corte, que fugia à peste, quando D. Manuel e os nobres se refugiaram em Abrantes.

Por essa altura, andaria ele compondo o Visioman liber quartus em cujo final ocorrem os versos que traduzi c comentei.

É possível que o humanista, ao faiar dos mimi «actores», — para excluir os scurrae dicaces «bobos chocarreiros» — se referisse a outrem que não Gil Vicente? Peço licença para duvidar.

Outro testemunho de que os «bacharéis latinos» não gostariam de Gil Vicente pode encontrar-sc na longa epístola em verso que Pedro

(1) Est locus A liner im lato pulcherrimus agro Oppositus medio flumine Sancterenae.

Hoc castro Emmanuel lecta cum gente perosus Pestent, dum prima uitat ab urbe, manet.

(Ibidem, D v)

Cf. Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Nova Edição, Coim­bra, 1949, I, p. 229.

(2) N.° 11/IV Série, Lisboa, Setembro de 1964. Hoje, creio que a entrada solene se realizou antes. Com efeito, uma carta

de Cataldo a D. Jorge, Duque de Coimbra, datável de 1501, mostra Cataldo a pre­parar o seu discurso de recepção: «(...) Respondit te iam unius esse filii patrem (...) Dixi anno praeterito, si profundissimam memoriam tuam colliges: si hanc coniugem tibi copulabis, ad annum, Deo auetore, Ioanni regi nepotem generabis. (...) Cum primum quaedam a Rege mihi commissa pro Reginae receptu, et in hoc oppidum introitu expediero, ad te celerrimc ibo.» (Epistolae II, B ij).

Chamou-me a atenção para o problema cronológico posto por esta carta, a minha antiga aluna Senhora D. Maria Beatriz Silvestre, licenciada em Filologia Clássica.

SOBRL O LATIM DF. GIL VICENTE 207

Sanches enviou a Jerónimo Cardoso e vem no MS. 6368 do Fundo Geral da Biblioteca Nacional de Lisboa.

Da primeira vez que li esses hexâmetros em que o jurista Pedro Sanches, alta figura da administração real, lamenta o desprezo dos poderes públicos pelos homens letrados e aconselha ironicamente Jerónimo Cardoso a imitar a adulação c maledicência de Perilo, que alcançou protecção e benesses na corte, logo me ocorreu que Perilo pudesse encobrir Gil Vicente.

Tive posteriormente ocasião de verificar que na sua tese de licen­ciatura (I) sobre os irmãos Pedro e Rodrigo Sanches, fundada exacta­mente no MS. F.G. 6368, já o Dr. Cândido Aparício Pereira fizera idêntica sugestão.

Traduzirei agora o passo e farei uma tentativa de discussão crono­lógica. Sanches propõe a Cardoso que se faça adulador à maneira do parasita Gnatho de Terêncio e continua: «Ou então imita o dissimulado e cauteloso Perilo, ambos chocarreiros de género diverso, a quem uma língua desrespeitosa, petulante e muito livre trouxe benefícios por muito tempo. Pois quê? Não poderás tu, cem mais graça do que estes parasitas, rir de todos e dizer sarcasmos contra todes, tornar este seme­lhante a um bode e aquele a um bezerro marinho?

Desprezando, pois, as Musas e o templo de Apolo, toma este caminho. Ele te dará vestidos e o fulvo metal, ele te proporcionará dinheiro c as mais altas honras que não pôde oferecer-te a pobre Talia. Mas se, por ventura, ressalvada a dignidade de poeta, ambicionas obter riquezas, aumentar o teu património, e não merece a tua aprovação a norma do mordaz Perilo...» (2).

(1) Intitulada Subsídios para a História do Humanismo em Portugal, Pedro e Rodrigo Sanchez, Coimbra, 1955 (dactilografada).

(2) Vel tu sec ret um cautumque imitare Per iHum, scurras diversi generis, queis longa paravit Dona procax, petulansque et multam libera lingua. Quid? tu non poteris parasitis salsius istis O mues ridere et dicteria dicere in omîtes, Hune capro atque ilium vitulo assimilare marino'/ Hanc îgitur, Musis spretis et Apollinis aede, Carpe viam, dabit liaec vestes, fulvumque metallum. Haec dabit argentam et summos praebebit honores, Quae tibi non potuit pauper donare Thalia. At si forte cupis, salva gravitate poetae, Quaerere divltias, censumque augere patentant, Nee placet omnino mordacis dogma Perilli. (...)

208 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO

Se bem se repara, o ignoto Perilo era «dissimulado e cauteloso», tinha uma «língua desrespeitosa, petulante e muito livre» que lhe pro­porcionou «benefícios por muito tempo». Costumava «rir de lodos e dizer sarcasmos contra todos, tornar este semelhante a um bode c aquele a um bezerro marinho».

Dada a simpatia de que Gil Vicente — se é dele que se trata — desfrutava entre a família real, Sanches não podia levar a caracterização do desconhecido Perilo, mais longe do que levou. Quanto às criações do mundo animal, recordemos que Gil Vicente nas «Cortes de Júpiter» assim dizia:

Juyzes e ouvidores, délies pcyxes voadores, e délies peyxes cavalos.

Yram certos bacharés em forma de tubarões

Sabeis vós quem yrá bem em figura de balea?

O Príncipe nosso senhor yrá em quatro rocins marinhos, em hum andor

E o Estribeyro-mor, convertido em peyxe mu,

0)

Os disfarces da gente da justiça não deviam agradar nada ao jurista Pedro Sanches.

Consideremos agora brevemente o nome do desconhecido: Penllus. Na tradição mitológica, Perilo foi o artífice de metais que inventou,

para uso do tirano Fálaris, o suplício do boi de bronze, dentro do qual os supliciados eram assados em vida, obrigando assim o touro a mugir com os seus gritos. E consolador saber que Perilo foi a primeira vítima do seu invento.

(1) O texto deste e dos outros trechos citados é o da ed. do Prof. Dou­tor A. J. Costa Pimpão.

SOBRE O LATIM DE GIL VICENTE 209

Gil Vicente era artifice de ouro e prata e as suas figuras, como dramaturgo, também algumas vezes devem ter feito a tortura dos visa­dos. Estamos hoje fora de poder entender todas as alusões coxitidas nas suas peças...

Outro aspecto a discutir é o da data. infelizmente, não podemos aqui localizar no tempo o texto de Rodrigo Sanches com a mesma segurança com que situámos cronologicamente os dísticos elegíacos da Visão Quarta de Cataldo Sículo.

Da leitura da correspondência de Jerónimo Cardoso ficou-me a impressão de que as relações deste com os irmãos Sanches devem ser posteriores à Oração de Sapiência de Cardoso na Universidade de Lisboa, em 1536, c anteriores à sua publicação em 1550. Com efeito, em uma das cartas, o humanista lisbonense mostra desejo de que a Oratio seja revista por Rodrigo Sanches.

Como, logo no ano seguinte àquele em que pronunciou a De Dis­ciplinarian Omnium Laudibus Oratio, a Universidade foi transferida para Coimbra, é natural que Jerónimo Cardoso, mestre de artes com escola no bairro da Universidade, se tenha sentido desorientado. Ainda no Prefácio do seu Epistolarum Familiarium Libellus, datado de 29 de Agosto de 1555. Cardoso felicita D. João IH, por ter enviado bolseiros a Paris, mas não menciona sequer o Colégio das Artes conimbricense, fundado pelo mesmo rei em 1548. Silêncio significativo!

Portanto, em 1537, não teria sido má ocasião para Sanches acon­selhar Cardoso a mudar de vida, enquanto era tempo, uma vez que as letras, em Portugal, não faziam a fortuna de ninguém. Ora julga-se que nesse ano morreu Gil Vicente e a alusão contida no Perillus tinha, assim, pleno significado, embora não convenha exagerar o valor sim­bólico do nome, pois Perillus foi usado, possivelmente, mais de uma vez pelos humanistas, como pseudónimo depreciativo (1).

Nos hexâmetros de Sanches, existe a cláusula temporal «dum tibi membra ualent iuuenilia» («enquanto estás na força da juventude») que teria valor decisivo, se estas considerações sobre a idade não fossem então, como hoje. demasiado subjectivas.

( 1 ) Lembro os dois epigramas In Periilum, de Lourenço de Cáceres, insertos no seu Epigrammaton Libellus, que Eugénio Asensio data de 1518 aproximadamente (cf. E. Asensio, «Lourenço de Cáceres o el Latin al servicio del Português», in Boletim Internacional de Bibliografia Lttso-Brasileira ff (1961), p. 243.

210 AMÉRICO DA COSTA RAMALHO

Todavia, nada impede que a Epistola de Pedro Sanches seja muito posterior.

Com efeito, entre as Elegias de Jerónimo Cardoso, publicadas em 1563, encontram-se duas em que o poeta agradece a Pedro Sanches a defesa que dele tem feito contra os seus detractores e as com­posições cm verso latino que lhe tem dedicado, animando-o e encorajando-o.

As poesias contra os inimigos de Cardoso encontram-sc, por exemplo, no final do poema De Terrae Motu e contêm ocasionalmente vitupérios à maneira de Marcial.

Mas um poema que encerre, na expressão de Cardoso, vários multa cum dignitate sales (Elegiae, A vi), e não seja apenas uma defesa violenta de Cardoso, como os atrás mencionados, pode ser. por exemplo, esse de que tirei o trecho relativo a Perillus e se encontra no MS. 6368 da Biblioteca Nacional de Lisboa.

Em qualquer caso, escrita com certeza entre 1536 e 1569. ano da morte de Jerónimo Cardoso, a Epistola de Pedro Sanches refere-se com muitas probabilidades a Gil Vicente. Uma data tardia pode tornar a Epistola contemporânea da Copilaçam, publicada em 1562.

Se assim for, aqui temos mais uma prova de que os humanistas e os humanizantes não consideravam o que fazia «os aitos a El-Rei» como um dos seus.

Todavia, continuo convencido de que D. Carolina Michaëlis exagerou a sua ignorância do latim.

AMéRICO DA COSTA RAMALHO