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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES
Ana e Mira fios de escrita ou
trama amorosa entre Ana Hatherly e Mira Schendel
Alice Varginha Monteiro da Palma
Dissertação
Mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte
Dissertação orientada pelo Prof. Doutor Tomás Santos Maia
2021
RESUMO
O presente trabalho propõe-se a investigar, de maneira não exaustiva e tampouco
categórica, as poéticas das artistas Mira Schendel (1919-1988) e Ana Hatherly (1929-2015),
buscando aproximá-las a partir de algumas noções centrais como: escrita, gesto, letra/carta,
silêncio/vazio/branco, texto/tecido, mancha e ilegibilidade. Ambas as artistas trabalharam
na fronteira entre artes visuais e poesia, imagem e escrita, texto e visualidade. Elas
partilham do desejo do entre da imagem e da escrita, de um pensamento poético-visual em
que pintar e escrever – pensar com as mãos – é como o trabalho de Penélope, Aracne e
Ariadne, i.e., fiar e tecer, dar forma à existência. Pretende-se, enfim, colocar estas artistas
em um possível diálogo amoroso, abrindo pequenas brechas – veredas – para novas
miradas em suas obras. Este trabalho é como uma carta de amor.
Palavras-Chave:
Ana Hatherly; Mira Schendel; escrita; arte
ABSTRACT
The present essay aims to investigate, with no intention of being exhaustive or categorical,
the poetics of the artists Mira Schendel (1919-1988) and Ana Hatherly (1929-2015), trying
to bring them closer through some central notions, such as: writing, gesture, letter,
silence/emptiness/white, text/fabric, stain and illegibility. Both artists worked at the
border of visual arts and poetry, image and writing, text and visuality. They shared a
common desire for the between of image and writing; a poetic-visual thinking where to paint
and to write – to think with one’s hands – is analogous to the work of Penelope, Ariadne
and Arachne, ergo, to spin and to weave, to give form, manually, to existence. Finally, it is
intended to put both artists in a possible love dialogue, opening small gaps – paths – that
give view to new forms of seeing their works. This essay is a love letter.
Keywords:
Ana Hatherly; Mira Schendel; writing; art
Para o Augusto, sempre
Agradecimentos
Para sempre grata
Ao Tomás, pelas palavras gentis, o incentivo e a generosidade.
Aos meus pais, Ludmilla e Idemar, pela paciência e apoio.
Aos queridos amigos – Ana, Léo, Clara, Ju e Mari – pelas trocas e pelas risadas.
Às novas amizades que fizeram do tempo além-mar mais leve e feliz.
A você, caro leitor, por cair-amar comigo.
Obrigada.
A linguagem
sem cessar
arma
armadilhas
O amor
sem cessar
arma
armadilhas
Resta saber
se as armadilhas
são as mesmas
Mas como sabê-lo
se somos nós
as presas?
Ana Martins Marques
Lista de figuras
Figura 01. Jiangwen. China, província de Henan, próximo a Anyang, Yinxu, época
tardia da dinastia Shang (c. 1200 – 1050 a.C.). Coleção Chinesa, Museu Nacional
da Escócia ............................................................................................................................... 25
Figura 02. Impressão de Tieyun Canggui, catálogo de jiangwen compilado em 1903
(época tardia da dinastia Qing [1902-1912]), com ilustrações por cima ........................... 25
Figura 03. Epopeia de Gilgamesh, tábua 11. Conhecida como “Tábua do Dilúvio”.
Tábua neo-assíria de argila, Biblioteca de Ashurbanipla, século VII a.C. Museu
Britânico ................................................................................................................................. 28
Figura 04. Sarcófago de Portonaccio, c. 180 d.C. Mármore. Museu Nacional
Romano, Palazzo Massimo alle Terme, Roma ................................................................... 31
Figura 05. Book of Kells, folio 292r. Incipit do Evangelho de João (“in principio erat
verbum”), c. 800 d.C. Biblioteca Liberty College, Dublin .................................................. 32
Figura 06. Altar-mor, 1726-43. Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da
Penitência, Rio de Janeiro .................................................................................................... 32
Figura 07. Ana Hatherly. Metáfora da “mão inteligente”, 1975. Nanquim sobre
papel.
Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna ............................................................. 44
Figura 08. Ana Hatherly. Sem título. Publicada em Mapas da Imaginação e da
Memória (1973), 1971. Nanquim sobre papel ...................................................................... 46
Figura 09. Capa de 463 Tisanas, 2006 ................................................................................... 48
Figura 10. Contracapa de 463 Tisanas, 2006 ........................................................................ 49
Figura 11. Mira Schendel. Sem título, 1954. Óleo sobre tela. 50x65cm
Coleção Andrea e José Olympio Pereira ............................................................................. 51
Figura 12. Mira Schendel. Sem título, 1964. Óleo sobre papel japonês. 47x23cm.
Museu Blanton de Arte, Austin, EUA .................................................................................. 57
Figura 13. Mira Schendel. Sem título, 1965. Óleo sobre papel japonês. 47x23cm ............ 57
Figura 14. Mira Schendel. A criação do mundo (série Monotipias), 1965. Óleo sobre
papel japonês. 47x23cm (cada) ............................................................................................. 58
Figura 15. Fotografia da exposição retrospectiva Mira Schendel 2014
Pinacoteca do Estado de São Paulo ...................................................................................... 59
Figura 16. Mira Schendel. Sem título, 1964. Técnica mista sobre madeira. 92x91cm
Coleção Gérard Loeb ............................................................................................................ 64
Figura 17. Mira Schendel. Sem título, sem data. Técnica mista sobre juta.
50,5x50,5cm
Coleção particular ................................................................................................................. 64
Figura 18. Ana Hatherly. A romã, 1971. Colagem, ponta de feltro e lápis de cor
sobre postal. 14x8,9cm.
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa .............................................................................. 67
Figura 19. Ana Hatherly. A romã, 1971. Colagem, ponta de feltro e tinta-da-china
sobre postal. 14x8,9cm.
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa .............................................................................. 67
Figura 20. Ana Hatherly. A romã, 1971. Tinta-da-china sobre papel. 14x8,9cm.
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa .............................................................................. 67
Figura 21. Mira Schendel. Sem título (da série Paisagem noturna de Itatiaia), 1978.
Nanquim e aquarela ecoline sobre papel japonês. 47x23cm .............................................. 70
Figura 22. Mira Schendel. Sem título (da série Objetos gráficos), 1972. Letraset
sobre papel japonês entre chapas de acrílico transparente. 95x95x1cm
Coleção Clara Sankovsky ..................................................................................................... 74
Figura 23. Ana Hatherly. Sem título. Publicada em O Escritor, 1967-72, p. 17.
Letraset sobre papel .............................................................................................................. 76
Figura 24. Ana Hatherly. Carta Secreta II - Ah!. Publicada em A idade da escrita,
1998, p. 48 ............................................................................................................................... 78
Figura 25. Ana Hatherly. Margarida ao tear. Publicada em A reinvenção da leitura:
breve ensaio crítico seguido de 19 textos visuais, 1975, p. 42 ............................................ 82
Figura 26. Ana Hatherly. Le plaisir du texte. Publicada em A reinvenção da leitura:
breve ensaio crítico seguido de 19 textos visuais, 1975, p. 48 ............................................ 83
Figura 27. Ana Hatherly. Variação XIX. Publicada em Leonrana, Livro III de
Anagramático, 1970, p. 219 ................................................................................................... 85
Figura 28. Fio de urdidura (1) e Fio de trama (2) ................................................................. 86
Figura 29. Mira Schendel. Ondas paradas de probabilidade, 1989. Instalação com
fios de náilon e texto entre chapas de acrílico. Dimensões variáveis ................................ 89
Sumário
introdução - primeiros fios
................................................................................................................................................. 11
parte I - escrita
................................................................................................................................................. 17
1 escrita - introito ................................................................................................................... 18
2 iconicidade ........................................................................................................................... 18
3 céu, cascos, ossos ................................................................................................................ 22
4 gesto ..................................................................................................................................... 27
5 letra ....................................................................................................................................... 28
6 vazio/branco/silêncio ........................................................................................................... 31
7 texto/tecido ........................................................................................................................... 34
8 mancha .................................................................................................................................. 35
9 ilegibilidade .......................................................................................................................... 37
parte II - ana e mira
................................................................................................................................................. 39
1 ana ....................................................................................................................................... 40
2 mira ...................................................................................................................................... 51
parte III - desfios e aproximações
................................................................................................................................................. 62
1 Do silêncio e tumulto dos nascimentos ................................................................................. 63
2 Fios para labirintos e mortalhas .......................................................................................... 80
conclusão - últimos fios
................................................................................................................................................. 93
Referências bibliográficas ..................................................................................................... 48
5 notas acerca desta dissertação
1. Esta dissertação é uma trama tripartida. Compõem-na, portanto, três partes. Três
partes cuja sequência não é categórica, mas aberta a combinações – se assim o
leitor o desejar. A ordem apresentada aqui foi pensada para, quiçá e com sorte,
facilitar a leitura, seguindo a lógica dinâmica de um < (crescendo musical), ou
talvez de um adensamento da trama de um tapete que, a cada nó e a cada fio, faz
surgir novas imagens. Porém, por sua natureza fragmentar e de autonomia, as
partes podem assumir novas posições.
2. A lógica que dita este texto é a de um mapa constelar, i.e., não se pretende
apresentar cronologicamente as obras das artistas, mas sim apresentar linhas de
aproximações possíveis, nem sempre óbvias, entre elas.
3. Este não é um trabalho de análise exaustiva. Digo isso tanto por não ter pretensões
de abordar todas as obras que compõem os corpora de ambas as artistas (as duas,
inclusive, muito prolíficas), e também por não entender as análises aqui presentes
como definitivas. As obras são um mapa em que há várias portas de acesso e
inúmeros caminhos a serem percorridos.
4. Esta dissertação está escrita em português brasileiro; contudo, manteve-se a grafia
de Portugal em citações de livros escritos com a grafia lusitana (como, por
exemplo, em poemas e citações de Ana Hatherly).
5. Apesar de escrever em brasileiro, optou-se pela tradução portuguesa do termo
francês écriture, ou seja, ao invés de usarmos escritura (como na maioria das
traduções brasileiras), escrevemos escrita (como na tradução lusitana mais usual).
Isso se dá por algumas razões: a. o termo escritura em português traz em si a
associação tanto com os textos religiosos (como as Sagradas Escrituras cristãs)
como com o termo jurídico homônimo (o documento lavrado em cartório, como a
escritura de um imóvel – termo que contém em si um valor de verdade); b. a mim,
parece-me que o termo escrita carrega em si uma certa indecidibilidade, i.e., uma
impossibilidade de apreensão instantânea, algo que o termo escritura, por não ser
corrente seu uso em português (salvo nos casos já comentados antes), não
permite; indecidibilidade esta que gostaríamos de preservar.
11
introdução
- primeiros fios
Era essa a questão; em que ponto fazer o primeiro traço?
Mas deve-se correr o risco; dar o primeiro traço.
Virginia Woolf
12
Tu remarquas, on n’écrit pas, lumineusement, sur champ obscur,
l’alphabet des astres, seul, ainsi s’indique, ébauché ou interrompu:
l’homme poursuit noir sur blanc.
Mallarmé
O presente texto pretende investigar, ainda que brevemente, as experiências
artísticas da poeta e artista portuguesa Ana Hatherly (1929 – 2015) e da artista
naturalizada brasileira Mira Schendel (1919 – 1988), ressaltando as afinidades entre as
poéticas de ambas. Ambas as artistas trabalharam nas fronteiras, dissolvidas, entre artes
plásticas e poesia, imagem e escrita, texto e visualidade. Suas obras recorrem a escritos,
grafismos, caligrafias, tipografias, no que poderíamos chamar, na esteira de Rosalind
Krauss 1, de um campo ampliado tanto da imagem quanto da poesia, ou então de espaço
híbrido onde letra e imagem se encontram.
Ana e Mira partilham, em suas práticas artísticas, o desejo do entre da imagem e
da escrita (escrever é criar brancos, vazios), i.e., o espaço intercalar onde é possível
“despertar nas superfícies seu luminoso segredo” (nas palavras do poeta Mallarmé):
verdadeira poética do branco, do vazio e do intervalo; como nas pinturas chinesas (o
encontro com a tradição oriental, aliás, é ponto em comum entre as artistas) em que o
branco representa o universo longínquo, mas sem perder a imediatidade física do seu
suporte, tornando-se o ar, o sopro que anima toda imagem (em termos zen, seu qi). E o
que está vazio, o lacunar, produz eco. [“A escritura consiste exatamente no intervalo ...”
(AGAMBEN, 2001, p. 33).]
A relação entre arte e escrita, o fascinante e paradoxal entrelaçamento delas, não é
nova; em verdade, podemos remontá-la à Antiguidade – ora, a escrita nasce da imagem! 2 , estendendo-se por épocas e lugares. A própria Ana Hatherly traça uma possível
(dentre tantas outras) genealogia em seu ensaio crítico sobre a poesia concreta, A
reinvenção da leitura (1975). A poesia concreta, aliás, é outra afinidade partilhada por
1 O artista e pesquisador brasileiro Ricardo Basbaum vai no mesmo sentido em seu texto Migração das palavras para a imagem: “É em Rosalind Krauss que encontraremos a noção de ‘campo ampliado’ possibilitando considerar diferentemente a prática do artista, localizada não mais, evidentemente, dentro da noção pré-moderna dos ‘gêneros artísticos’, nem nas particularidades dos diversos meios empregados (e em suas possíveis misturas e hibridizações) para a realização do projeto plástico. (...) Um dos termos que localizam, a nível estrutural, o campo ampliado da prática artística dentro do âmbito cultural dos desenvolvimentos da arte moderna e pós-moderna é, exatamente, o par imagem/linguagem” (BASBAUM, online. pp. 3-4) 2 Nesse sentido, remeto o leitor ao capítulo um, intitulado parte I. escrita, desta investigação.
13
elas, Mira tendo sido influenciada pelo grupo brasileiro Noigandres (capitaneado pelos
irmãos Campos, Haroldo e Augusto, de quem fora amiga) que afirmava o espaço em
branco do papel e a tipografia como elementos substantivos da composição poética, e
Ana produzindo poemas concretos (inclusive, o primeiro poema deste estilo publicado
em Portugal é de sua autoria).
A prática de Ana e Mira remonta à língua gráfica do ideograma oriental – que é
um signo que interrogamos: como em um movimento duplo, especular, o não alcançar a
alteridade (o significado) e o a ela ser lançado; ou, nas palavras de Ana: “estava perante
textos ilegíveis para mim – por exemplo em chinês arcaico – mas que eu, não obstante,
lia” (HATHERLY, 1975, p. 148) – , remonta ainda à arcaica escrita das cavernas 3, a
Mallarmé e seu Un coup de dés, a Apollinaire e seus caligramas... Nelas, não há mais
avesso nem direito, nem anverso nem verso, é tudo respiração e ritmo das coisas, do
mundo. Pensamento poético-visual em que pintar e escrever, pensar com as mãos, é
como o trabalho de fiandeiras (como Aracne, Penélope e Ariadne) a tecer e destecer
tapetes, dando forma, artesanalmente, à existência (a vida e a morte, a lembrança e o
esquecimento), tornando-se linguagem pura do cosmos: a abóboda celeste foi um dos
primeiros, senão o primeiro, suportes que interrogamos 4.
Ambas as artistas se dedicaram ao uso da escrita entregue ao gesto, i.e., à sua
dimensão artesanal e pictórica, pura medialidade. Palavra e imagem postas a nu em seus
gestos inaugurais. A escrita, para elas, manifesta-se nos espaços vazios, nos brancos
entre e ao redor – a tinta mancha o papel para suscitar novos espaços, novos brancos,
paisagens e passagens. Escrevem o que não se destina a ser compreendido. Escrita que
está além dos efeitos da significação: ilegível, insignificante e impermanente. Escrita
3 “a escrita está sempre do lado do gesto, nunca do lado da face: ela é tátil, não oral; compreende-se melhor, então, que ela possa ir ao encontro, superando a fala, das primeiras marcas da arte parietal, as inscrições rupestres, na maioria das vezes abstratas, rítmicas antes de serem figurativas; em suma, apesar de ter surgido recentemente (alguns milenares antes de nós) a escrita guarda algo de original – assim como nossa arte abstrata, tão próxima da arte pré-histórica”. (BARTHES, 2000, p. 72) 4 Penso aqui nas origens lendárias da escrita – na Mesopotâmia, no Egito e na China – , fundadas na observação do céu estrelado (CHRISTIN, 2013, p. 6). Assim, escreve Christin: “[c]e n’est pas un hasard si le spectacle du ciel etoilé et le modèle de rationalité visuelle qu’offre l’agencement de ses constellations ont hanté les premières civilisations de l’écriture, et qu’elles y ont établis à peu prés toutes leur mythe de fondation” (ibid., p. 12) Tradução nossa: “Não é coincidência se o espetáculo do céu estrelado e o modelo de racionalidade visual que oferece o agenciamento de suas constelações tenham assombrado as primeiras civilizações da escrita, e que elas tenham estabelecido aí praticamente todos os seus mitos de fundação”. Nesse sentido, o mito chinês conta que o imperador Pao Xi teria inventado a escrita após contemplar, erguendo os olhos, “as figurações que estão no céu e, baixando os olhos (...) os fenômenos que estão sobre a terra” (citação completa na página 65).
14
sem fim. Ana e Mira, duas mulheres que se colocaram à escuta do vazio. Interrogando-
o. Este vazio que não é o nada, na verdade o vazio é o todo.
No primeiro capítulo, intitulado parte I. escrita, vamos explicar alguns conceitos
fundamentais para as análises das poéticas das artistas estudadas, numa espécie de
pequeno vocabulário de termos. Partimos, neste capítulo, de escritos de Anne-Marie
Christin, Roland Barthes, Jacques Derrida, Villém Flusser, da própria Ana Hatherly,
dentre outros. Este vocabulário comentado, se assim o podemos chamar, traz algumas
entradas (ou verbetes): escrita (introito); iconicidade; céu, ossos e cascos; gesto; letra;
vazio/branco/silêncio; texto/tecido; mancha e ilegibilidade.
Em escrita (introito), tratamos de uma primeira e decerto breve definição do
termo – que é seminal para este trabalho. Em iconicidade e céus, ossos e cascos
apresentamos investigações acerca da relação entre escrita e imagem, tendo como
suporte especialmente as análises dedicadas de Anne-Marie Christin e Roland Barthes.
Nesse sentido, abordaremos a origem da escrita e a sua filiação às práticas divinatórias
dos povos antigos, citando, especificamente, a prática chinesa dos ossos do oráculo.
Em gesto, letra, vazio/branco/silêncio, texto/tecido, mancha e ilegibilidade
buscamos trazer definições comentadas acerca destes vocábulos. Assim, em gesto
falamos de rastro e gestação e parto. Em letra, na esteira de Derrida, de cartas e canções
de amor, desvio e errância. Vazio/branco/silêncio nos remete ao horror vacui ocidental
e nos leva ao Extremo Oriente para uma outra concepção possível para esses termos.
Texto/tecido faz o texto virar tecido, trama e urdidura; faz da linha fio. A mancha, aqui
mancha textual que é um fenômeno visual, revela paisagens, cartografias e anunciações.
Etimologicamente, puxamos – com Benjamin e Molder – o fio da mancha até chegar à
pintura e ao sangue. Por fim, ilegibilidade ganha contornos de garatuja e
desaparecimento e deslocamento da esfera semântica da escrita, abrindo o escrito para
diferentes formas de leitura (ou para sua reinvenção, como diria Hatherly).
No segundo capítulo, parte II. ana e mira, entramos, enfim, no tempo das artistas.
Nessa seção, vamos abordar brevemente a trajetória dessas duas mulheres e elucidar
algumas questões caras a cada uma. Assim, em ana esboçaremos sua relação com o
Barroco a partir da noção do labirinto e do anagrama, além de comentar brevemente
acerca de dois livros seus, Mapas da imaginação e da memória (1973) e 463 Tisanas
15
(2006). Em mira, traçaremos sua busca por fazer de sua arte uma passagem, o que se
desdobra em suas investigações e experimentações acerca da noção de transparência,
especialmente em sua série de monotipias. Nesta parte entram também escritos de
ambas, de forma que as linhas-fios por elas escritas também entrem na trama deste
texto-tecido.
O terceiro e derradeiro capítulo, parte III. desfios e aproximações, traz a análise
mais demorada de alguns trabalhos das artistas na tentativa de colocá-los em uma
conversa que propicie afetações mútuas, primeira estação da paixão: “[s]er afectado,
não absorver, deixar cair, eis as três estações da paixão expressiva, que caminha por
palavras (...)” (MOLDER, 2017, p. 131). Arriscaremos, por exemplo, aproximar
Leonorama (variação XIX) de Ondas paradas de probabilidade, a série Metamorfoses
da romã de uma paisagem de Itatiaia, e assim por diante. Há também um movimento de
envio contínuo entre todos, criando uma espécie de desenho-escrita constelar 5. Além
disso convocamos três figuras femininas da mitologia grega para participar desta trama:
Aracne, Ariadne e Penélope. Este capítulo talvez seja o mais fragmentar deles, pois
cada obra analisada tece um texto próprio, mas que, apesar disto, cria relações com
outras análises. Para tanto, o leitor deve permanecer atento não apenas à proximidade
física – que é sim um recurso da trama para proporcionar esses diálogos – como
também aos fios de cada texto que permitem costurar novas aproximações. Este texto nasce de um encantamento – que é a um só tempo deslumbrar-se,
seduzir-se e enfeitiçar-se, feitiço que requer palavras mágicas 6 – e um apaixonamento
meu pelas escritas dessas duas mulheres. As linhas que se seguem são uma primeira
tentativa, decerto falha (por não ser exaustiva, e por assumir toda e qualquer linguagem
5 Benjamin, no primeiro capítulo de seu livro Origem do drama barroco alemão (1928), vai falar justamente de uma metodologia constelar. É um “pôr em constelação”, no sentido em que constelações são agrupamentos de estrelas – aqui obras – que se ligam umas às outras sem, contudo, perder suas particularidades e singularidades. Ou seja, é um movimento de criar relações e afetações mútuas preservando a heterogeneidade das coisas. Nesse sentido, é interessante pensar que, apesar de dispostas num mesmo plano celeste, as estrelas se encontram a anos-luz de distância umas das outras, i.e., são os intervalos entre elas que as conectam, o vínculo que lhes dá sentido enquanto constelação. “Pôr em constelação” é, portanto, um procedimento que envolve olhar e agrupar, percebendo a realidade em fragmentos, respeitando as diferenças entre eles e sabendo que nos intervalos reside a possibilidade de união e de abertura. 6 Encantamento nasce de encantar que, por sua vez, tem origem no latim incantare; in, em + cantare, emitir palavras mágicas.
16
como falha, posto que há sempre algo que lhe escapa, que extravaga 7 – todo dizer é só
meio-dizer), de ir ao encontro das obras de Mira e Ana evidenciando os seus pontos de
contato. Ir ao encontro significa abrir-se para escutar o eco do não-dito em todo dizer 8.
Linhas falhas e abertas, fios soltos. À espera.
Como numa carta de amor impossível, escrevo para quem aqui não está. Escrevo
meu amor a essas duas artistas que me acompanham por tanto tempo. E escrevo também
a ti, leitor, meu cúmplice e minha testemunha.
Amor falhado, eis minha dissertação.
7 “savoir que l’écriture ne compense rien, ne sublime rien, qu’elle est précisément là où tu n’es pas – c’est le commencement de l’écriture”. (BARTHES, 1995, p. 549) 8 “Qual o risco em que qualquer um, ao tentar interpretar uma obra de arte, pode cair? No risco de querer dizer mais ou menos do que a obra diz; no risco de tratá-la de maneira inadequada, fazendo uso de uma linguagem que não vai ao seu encontro. ‘Ir ao encontro’ talvez seja um caminho, a saber, aquele em que se pode escutar o eco do ‘não-dito’ em todo dizer”. (VIEIRA DA COSTA, A.H., 2016. p. 53)
17
parte I.
escrita
A escrita nunca foi senão representação: imagem.
Ana Hatherly
18
Esta primeira parte, de caráter introdutório certamente, esboçará alguns pontos
teóricos seminais para as análises dos trabalhos e poéticas das artistas Mira Schendel e
Ana Hatherly. Arriscaremos, nestas linhas iniciais, questões acerca de termos que nos
seguirão no percurso deste texto; são eles: escrita, iconicidade, adivinhação (céus, ossos
e cascos), gesto, letra, texto, mancha, vazio (e silêncio e branco) e ilegibilidade. Após
este primeiro esforço passaremos, nos próximos capítulos, ao tempo das duas artistas, o
tempo exato de uma pausa, ou de um desvio – quiçá desfio – em que a escrita derrama-
se em imagem.
*
1 escrita (introito)
Quando se fala em escrita do que se fala? Convém começar este trabalho por
definir, ainda que de maneira breve, o que se entende quando se fala “escrita”. Para fins
do presente texto, entendemos escrita, na esteira de Barthes em suas Variações sobre a
escrita (1973), como o gesto de traçar formas sobre uma superfície, scription: “o gesto
pelo qual a mão segura um utensílio (punção, cana, pena), o apoio sobre uma superfície,
o peso desse objeto deslizando com mais ou menos intensidade (...)” (BARTHES, 2009,
p.33). E, para além de Barthes, Derrida nos ensina que escrita é “tudo o que pode dar
lugar a uma inscrição em geral, literal ou não, e mesmo que o que ela distribui no
espaço não pertença à ordem da voz: cinematografia, coreografia, sem dúvida, mas
também a ‘escritura’ pictórica, musical, escultural etc.” (DERRIDA, 1973, p. 10).
Escrita é corpo que traça/risca/sulca/marca um espaço-superfície, em suas mais variadas
possibilidades, é gesto que não se resume à necessidade ou à imperiosidade de produzir
significado. Pensar a escrita assim é afastar-se do sentido e aproximar-se do gesto.
A seguir, algumas considerações sobre a escrita acerca de sua origem e as
implicações disso.
*
2 iconicidade
19
A escrita nasceu da imagem e, seja qual for o sistema escolhido, o do
ideograma ou o do alfabeto, sua eficácia procede unicamente dela.
CHRISTIN apud ARBEX, 2006, p. 17
A escrita é filha da imagem. Dizer isso implica partilhar – ao lado de Anne-Marie
Christin, Roland Barthes, Ana Hatherly e outros – da noção de uma origem icônica da
escrita, que desloca a origem dos sistemas escriturais da voz para o grafismo.
Com essa tentativa experimentava, por um lado, alargar o campo da leitura
para fora da literalidade; por outro, ainda, alargar o campo criador da própria
escrita, metafórica e factualmente, pois que chamando a atenção para a
escrita como desenho ou pintura de signos (tornando-a ilegível para
desalojar do hábito da leitura conteudística) estava tentando restituir a
escrita à sua força original, semiótica, icônica, autonomamente semântica.
HATHERLY, 1981, p. 149 – itálicos nossos
Muitos, ouso dizer a maioria, dos trabalhos que se propõem pensar a história da
escrita vão em sentido oposto, pensando a escrita como uma espécie de réplica da fala,
criando assim uma clara hierarquia. A primazia da fala é respaldada, entre outros, por
Ferdinand de Saussure: “o objeto da análise linguística não se define pela combinação
escrita com a palavra falada; a palavra falada constitui unicamente o objeto”
(SAUSSURE apud CULLER, 1997, p. 115-116). Essa hierarquia entre a palavra falada
(voz) e a palavra escrita (gesto, imagem) – hierarquia presente no próprio termo
palavra, oriunda do grego parabolê, que significa falar –, se desdobra em outra que se
dá agora entre os sistemas de escrita, sendo, por esta lógica, a escrita alfabética
concebida como uma progressão natural de toda escrita: é como se a evolução natural
de toda forma escrita fosse, um dia, chegar ao alfabeto, sua forma mais sintética e justa.
Nesse sentido, ou melhor, num excerto que vai justamente contra esta noção,
escreve Albertine Gaur (1992):
After the ending of the Second World War a mission consisting of twenty-
seven American educationists recommended to General McArthur a drastic
overhauling of the Japanese education system. They called specially for the
abolition of the “Chinese-derived ideograms”, since otherwise Japan could
20
never hope to achieve technological parity with the West. Today Japan has
not only achieved this parity, but seems uncomfortably close to overtaking
the West, and this despite the fact the Japanese still use their “Chinese-
derived ideograms”, and that it takes the Japanese schoolchildren two years
longer than their western counterparts to learn how to read and write. As we
move towards the 21st century, the 19th-century concept of the alphabet as a
Platonic idea towards which all writing (and information storage) must by
necessity progress becomes less and less tenable. 9
GAUR, 1992, p. 34 – itálicos nossos
Essa ideia, sem dúvida platônica como aponta Gaur, de uma evolução natural de
todos os sistemas escritos rumo ao alfabeto, apoia-se num fonocentrismo (ou um
fonologocentrismo 10, como escreve Derrida) tipicamente ocidental, que considera a
escrita uma espécie de duplo imperfeito da fala, conferindo-lhe, portanto, menos
legitimidade. Em Platão, encontramos uma desconfiança enorme de todo tipo de
representação, desconfiança essa que se estende à escrita, entendida, no sistema
alfabético de origem grega, como representação do discurso, i.e., como registro da
oralidade. A voz, na tradição grega, é associada à vida e, em contrapartida, a escrita, sua
inscrição, é concebida como uma “fala ausente” e, portanto, posta sob suspeita. Em
Fedro:
A escrita (graphé), Fedro, tem essa estranha qualidade, e é muito
semelhante à pintura (zoographía); pois ela coloca as suas criações
como seres vivos (zônta), mas se alguém lhes perguntasse algo,
continuariam a preservar seu silêncio solene. Assim são as palavras
em um texto. Podemos pensar que elas falam como se tivessem
inteligência (phronoûntas), mas se lhes perguntamos algo desejando
9 Tradução e grifos nossos: “Após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma missão com vinte e sete educadores americanos recomendou ao Gen. McArthur uma drástica revisão do sistema educacional japonês. Eles pediam sobretudo a abolição dos “ideogramas de origem chinesa”, uma vez que, caso contrário, o Japão não poderia nunca ter esperanças de atingir paridade tecnológica com o Ocidente. Hoje o Japão não só alcançou esta paridade como parece estar desconfortavelmente perto de ultrapassar o Ocidente, e isto apesar de os japoneses ainda usarem os “ideogramas de origem chinesa” e de os alunos japoneses demorarem dois anos a mais para aprender a ler e escrever do que seus pares ocidentais. Ao avançarmos rumo ao século XXI, o conceito novecentista do alfabeto como uma ideia platônica para qual toda escrita (e armazenamento de informação) deve necessariamente evoluir se torna cada vez menos sustentável”. 10 O logos é o campo da racionalidade onde a consciência impera, e este domínio da consciência se dá pela palavra, daí fonologocentrismo. É essa associação entre logos e fala que fundamenta o pensamento ocidental, baseado na metafísica platônica nascida com o alfabeto fonético.
21
saber mais sobre seus dizeres, elas sempre indicam só uma única
coisa, o mesmo. E toda palavra quando é escrita uma vez, está
fadada a dizer o mesmo entre aqueles que compreendem e aqueles que
não têm o mínimo interesse, e não sabe a quem se deve falar e a quem
não se deve. Quando mal tratadas ou injustamente reveladas, sempre
precisam de seu pai para ajudá-las, não têm poder de protegerem a si
mesmas.11
PLATÃO, Fedro, 275d-276a
A escrita tem, então, a sua existência atrelada àquela da fala, funcionando como
mero lembrete e registro; atribui-se a ela, portanto, um papel secundário e reprodutivo.
De Platão a Hegel 12, a escrita traria em si o perigo do simulacro, por fugir de seu
contexto de origem (aqui, a fala). Esta visão implica, como já comentamos, uma
hegemonia do oral sobre o visual que leva também a uma hierarquia dos sistemas
escriturais, com o alfabeto ocidental como forma mais elevada, posto que
exclusivamente fonético (acredita-se) 13. Contudo, o intuito principal, a força motriz que
levou ao surgimento da escrita, não foi a de “armazenamento da fala”, mas sim a de
comunicação 14 . Antes de guardar apontamentos meramente burocráticos, e mesmo
11 Esta crítica de Platão à escrita, especialmente quando ironiza sobre a impossibilidade do texto escrito de pensar, remete ao que ele considera o verdadeiro lugar do pensamento: a alma. Portanto, esta hierarquia fala/escrita é derivada de outra mais fundamental dentro da metafísica, a hierarquia alma/corpo, espírito/matéria. 12 Em Derrida: “a história da metafísica que, apesar de todas as diferenças e não apenas de Platão a Hegel (passando até por Leibniz) mas também fora dos limites aparentes, dos pré-socráticos e Heidegger, sempre atribuiu ao logos a origem da verdade em geral: a história da verdade, da verdade da verdade, foi sempre, com a ressalva de uma excursão metafórica de que deveremos dar conta, o rebaixamento da escritura e seu recalcamento fora da fala ‘plena’” (1973, p. 04) 13 Christin vai falar justamente de uma origem híbrida do alfabeto grego (de onde derivam os alfabetos ocidentais de hoje): “L’alphabet grec reproduit une structure graphique préexistante, celle du phénicien – structure qui, elle, faisait participer normalment son support de sa lecture – pour y inscrire le seul schéma phonétique plus ou moins adapté à sa langue qui pouvait y trouver place”. (CHRISTIN, Anne-Marie, Poétique du blanc: vide et intervalle dans la civilisation de l’alphabet, Paris: VRIN, 2016, p. 10) Tradução nossa: “O alfabeto grego reproduz uma estrutura gráfica preexistente, aquela do fenício – estrutura que, por sua vez, fazia participar normalmente o seu suporte na leitura – para aí inscrever o único esquema fonético mais ou menos adaptado a sua língua que se podia encontrar”. 14 Tanto Barthes como Christin se opõem à ideia de uma escrita meramente estocástica, e isto desde seu nascimento. Christin vai usar a escrita divinatória chinesa e aquela dos arúspices mesopotâmios para advogar a comunicação com o invisível como o motivo principal que levou as civilizações a criarem signos escritos. Barthes procura compreender a escrita para além de uma dita vocação comunicativa e imediatamente utilitária e, nesse sentido, ao invés de atribuir o surgimento dela ao serviço fiscal e contábil na civilização suméria (o que mais comumente é repetido por teóricos), ele retorna aos grafismos rupestres do final do período musteriano, 35.000 a.C., como um princípio não-burocrático para a escrita. Acredito que, apesar de Christin falar em comunicação e Barthes se opor a esse termo, ambos pensam numa mesma direção, i.e., ambos falam de uma escrita nascida para além da mera informação e transmissão intra-social, ambos falam de signos nascidos de imagens e não decalques da fala.
22
antes de querer comunicar entre membros de uma mesma sociedade, a escrita nasce
para ampliar o campo de comunicação para além das fronteiras da língua: surge para a
comunicação com os deuses (o que implica também que este nascimento se relaciona a
uma vocação da escrita de esconder o que lhe fora confiado, uma vez que este acesso ao
invisível e à comunicação com o divino era restrita aos arúspices – escrita é
criptografia: revela e, ao mesmo tempo, esconde).
A escrita, na verdade, nasce da combinação da linguagem – que estrutura as
sociedades e regula suas trocas internas – com a imagem – que permite a este grupo
acessar o invisível. No princípio era o verbo e a imagem, ou melhor, era a imagem e o
verbo: nesta combinação, o médium determinante é antes a imagem e não a fala. As
consequências dessa iconicidade da escrita são importantes para as análises que se
seguem. Dentre elas, destaco: 1. a escrita não reproduz a palavra, torna-a visível; 2. o
suporte assume caráter seminal posto que nessa concepção mista da escrita deve levar-
se em conta, além das figuras, a superfície em que se inserem; e 3. o sujeito da escrita
fica, então, deslocado da posição de “locutor” para a de leitor da mesma forma que o
adivinho é o mestre silencioso dos deciframentos sagrados. Estas três principais
consequências se articulam no que Anne-Marie Christin chama “pensamento de tela”,
pensée de l’écran, no original.
*
3 céu, ossos e cascos
É preciso reconhecer, entretanto, que se o homem pôde ter a ideia de
combinar figuras-símbolos sobre uma superfície, e isto de tal maneira que
seu espectador pudesse compreender que elas formavam, em conjunto, um
sentido, ele teve necessariamente que conceber previamente, isto é, antes de
as escolher e até mesmo de as imaginar, o suporte do qual iria fazê-las surgir
e ordenar sua distribuição.
CHRISTIN, 2006, p.65
A expressão “pensamento de tela” designa, como se depreende da citação acima,
o processo de formação de signos a partir das superfícies. Para Christin, é pela
23
demarcação – contemplatio/templum – de espaços enquanto áreas específicas para
relações entre signos que se pôde, posteriormente, desenvolver linguagens escritas.
Pensar a etimologia da palavra contemplação pode ajudar: o termo latino contemplatio
tem a mesma raiz de templum, i.e, espaço delimitado (/tem/ significa “cortar” ou
“recortar para”) e consagrado para a leitura de auspícios; contemplar advém dos rituais
mágicos e divinatórios, era deitar a visão, olhar atentamente, sobre estas superfícies
especiais consagradas para a leitura de presságios.
O suporte, então, é indissociável da condição que gerou a escrita. É preciso, então,
voltar ao momento anterior à inscrição de qualquer traço para entender como essas
superfícies iniciais eram vistas e experimentadas: superfícies como os cascos de
tartarugas e ossos de animais, as paredes de cavernas e até mesmo a abóboda celeste. A
escrita é filha da adivinhação 15.
Se essa leitura a partir dos astros, das vísceras e dos acasos era para o
primitivo sinônimo de leitura em geral, e se além disso existiram elos
mediadores para uma nova leitura, como foi o caso das runas, pode-se
supor que o dom mimético, outrora o fundamento da clarividência, migrou
gradativamente, no decorrer dos milênios, para a linguagem e para a escrita
(...). Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação da
faculdade mimética: um medium em que as faculdades primitivas de
percepção do semelhante penetram tão completamente, que ela se
converteu no medium em que as coisas se encontram e se relacionam, não
diretamente, como antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em
suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios
aromas. Em outras palavras: a clarividência confiou à escrita e à
linguagem as suas antigas forças, no decorrer da história.
BENJAMIN, 1987, p. 112 – itálicos nossos
15 Nesse sentido, escreve Christin: “A adivinhação é a última etapa da metamorfose da imagem em escrita. Seu papel se deixava prever desde sempre, pois se o céu estrelado é a primeira tela que se ofereceu aos olhos dos homens, os agenciamentos de suas constelações devem ter-lhes deixado esperar muito em breve que poderiam ler aí seu destino. O recurso a objetos cujo valor simbólico era particularmente intenso (o fígado de carneiro na Mesopotâmia, o casco da tartaruga na China, sendo sua superfície, alias, concebida como uma projeção do céu), introduziu, com a ideia de que uma mensagem explicitamente destinada aos homens pelos deuses devia aí se encontrar concentrada, duas noções fundamentais que não eram indispensáveis à imagem, mas que podiam ser deduzidas a partir de suas lições: a da leitura – a função social do adivinho era decifrar textos e não mais contemplar enigmas – e a de um sistema de signos que transformava esses enigmas em textos” (CHRISTIN, 2004, p. 291).
24
O objetivo primeiro do desenvolvimento da escrita, portanto, tem mais a ver com
o invisível do que com o visível; i.e., o signo escrito “resulta do mesmo exercício de
observação de superfícies anunciadoras de revelações (...)” (CHRISTIN, 2006, p. 68). A
escrita nasce, portanto, da necessidade do homem de comunicar-se com o que é
invisível, que pertence a outros mundos e se manifesta em superfícies escolhidas e
sacralizadas para a prática divinatória. Esses suportes eram meios de revelação e
comunicação do e com o sagrado; e os traços, mensagens de deuses a serem
interpretadas por adivinhos. O vínculo gerador, o cordão umbilical, por assim dizer, da
escrita a une de modo mais forte ao olhar e à leitura do que à fala.
Nesse sentido, a piroescapulomancia (/piro/ - fogo + /scapula/ - escápula +
/mancia/ - adivinhação) 16 – a interpretação divinatória de rachaduras produzidas pelo
fogo em ossos e cascos de animais, i.e, os adivinhos (em chinês: zhenren 貞人) liam o
futuro a partir das rachaduras (em chinês: bu 卜) criadas pelo fogo –, praticada por
diversas populações do norte da Ásia desde a pré-história e disseminada na China
antiga, especialmente durante a dinastia Shang (c. 1600 – 1046 a.C) – onde recebeu o
nome de jiangwen (甲骨文), “Oráculo de ossos” – constitui uma das primeiras e mais
elementares formas de escrita ideográfica, tendo fundamental importância para a
invenção da escrita chinesa 17 (figs. 01 e 02). Foi a partir da organização das inscrições
em cascos de tartarugas, concebidos como superfície e espaço para afinidades visuais,
que os sinais começaram a estabelecer relações entre si. Assim, a compreensão de um
ideograma se altera de acordo com os outros ideogramas próximos a ele e também de
acordo com a superfície em que estão inscritos.
16 Literalmente, piroescapulomancia significa a leitura divinatória a partir de escápulas (ossos da região do ombro) de animais (normalmente bois e cervos) submetidos ao fogo. O termo é também usado, de maneira mais abrangente, em relação à prática divinatória de povos do norte da Ásia não apenas tendo como suporte esses ossos, mas também os cascos de tartarugas (a plastromancia, de plastrão, parte do casco de tartarugas constituída por placas ósseas revestidas de escudos córneos). 17 Hoje, desde a descoberta fortuita em 1899 desses oráculos ancestrais, já foram mais de 150.000 peças oraculares encontradas e por volta de 5.000 caracteres identificados de jiangwen, porém, apenas um terço deles foi decifrada.
25
Fig. 01 Jiangwen. China, província de Henan, próximo a Anyang, Yinxu, época tardia da dinastia Shang (c. 1200 – 1050 a.C.). Coleção Chinesa, Museu Nacional da Escócia 18, Edimburgo.
Fig. 02 Impressão de Tieyun Canggui 19, catálogo de jiangwen compilado em 1903 (época tardia da dinastia Qing 20 [1902-1912]), com ilustrações por cima 21.
Porém, como vimos, no Ocidente - que tradicionalmente se mostrou contrário a
essa visão da iconicidade da escrita, adotando uma postura de desconfiança e também
de subjugação do texto à fala – , apesar de o sentido das palavras se modificarem a
partir da relação com os demais termos de uma frase, a influência do espaço sobre elas é
considerada nula, sendo-lhe também, em grande medida, negada sua própria
visualidade.
18 Imagem disponível em: <https://www.nms.ac.uk/explore-our-collections/stories/world-cultures/chinese-collection/> 19 Tieyun Canggui é o primeiro catálogo de jiangwen publicado na China em 1903, foi compilado por Liu E (1857-1909). Em seus seis volumes, apresentava impressões em tinta de 1058 peças oraculares (com 7 delas aparecendo duplicadas). 20 A dinastina Qing foi a última dinastia imperial da China, estabelecida em 1636 na Manchúria e em 1644 para todo o território chinês com o fim da dinastia Ming (1368-1644). Em fevereiro de 1912 os Qing dão lugar à República da China após a Revolução Chinesa de 1911. 21 Imagem disponível em: <https://www.nms.ac.uk/explore-our-collections/stories/world-cultures/oracle-bones/>
26
Quando falamos de escrita, no contexto da literatura, falamos de texto, dum
tipo de composição em que o processo de representação, a sua visualidade, se
tornou de tal modo implícito que passou para a região da invisibilidade.
HATHERLY, 1995, p. 12
É somente na segunda metade do século XX, especialmente com o movimento da
Poesia Concreta, que a visualidade é definitivamente restituída à escrita e, portanto, à
leitura a partir da espacialização do texto. Restituição de uma liberdade fundamental,
filha da relação solene e íntima entre escrita e seu suporte – relação essa que no
Ocidente, com sua tradição helênica22, foi considerada como indiferente e até mesmo
rejeitada – que faz com que a inteligência visual do leitor participe ativamente da
leitura, que demanda não apenas o pensamento, mas também o olhar de quem percorre
o texto. Reintegração do elemento visual e espacial ao alfabeto iniciada por Mallarmé
com seu Un coup de dés (1897) 23 , e continuada nos Calligrammes (1918) de
Apollinaire, nos Cantos (1915-1962) de Pound, no Finnegans Wake (1939) de Joyce 24,
nas experiências surrealistas e dadaístas, e, já no âmbito da poesia concreta, pelo grupo
brasileiro Noigandres, “Insubordinação”, “subversão” e “liberação” (como escreveu
Hatherly) da escrita em todas as suas esferas (visual, semântica, sintática, tipográfica...)
22 De novo Platão nos traz essa rejeição, agora no célebre “mito da caverna” onde a parede da caverna, i.e., o suporte das sombras (imagens), é apenas locus de depósito e nunca de criação. 23 Sobre Mallarmé escreve E. M. de Melo e Castro: “ante a solicitação da página em branco, joga e concebe o poema como se de um jogo de dados se tratasse. Dados que, no entanto, nunca esgotam as possibilidades totais do acaso, deixando-as sempre intocadas e as mesmas, após a concretização de cada resultado. E termina o poema dizendo: cada pensamento, cada ato, cada imagem descobre e propõe uma jogada. Põe em equação todas as potencialidades da vida e apresenta um resultado livre, resultado que é válido em si próprio, mas não esgota as potencialidades nem da vida, nem de quem cria o poema, de quem encontra o resultado e o propõe. Por isso, cada poema é sempre um retorno ao começo. É sempre um trabalho de reinvenção do mundo”. (HATHERLY e MELO E CASTRO, 1981, p. 99) Esse excerto, não podemos deixar de ressaltar, aproxima-se muito da noção de obra aberta proposta por Haroldo de Campos e retomada pelo pensador italiano Umberto Eco. Este escreve: “[c]ada fruição, assim, é uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original”. (ECO, 1976, p. 28) 24 Sobre Joyce escreve Haroldo de Campos: “[n]inguém como Joyce levou a tal extremo a minúcia artesanal da linguagem. Seu macrocosmo – seu romance-rio – traz, em quase cada uma das unidades verbais que o tecem, implícito um microcosmo. A palavra-metáfora. A palavra-montagem. A palavra-ideograma. (...) No Finnegans Wake abole-se o dualismo fundo-forma em prol de uma dialética perene de conteúdo-e-continente, de um onipresente isomorfismo: se o entrecho é fluvial, nomes de rios se imbricam nos vocábulos, criando um circuito reversível de reflexos do nível temático ao nível formal”. (JOYCE, 2001, p. 27-28)
27
– e que se deu não somente em literatura mas também na música e nas artes plásticas 25.
Reintegração que evidencia que mesmo a escrita ocidental não rompeu completamente
com a origem visual da escrita.
*
4 gesto
Se a escrita é gesto da mão – como definimos no começo deste capítulo – convém
pensar então o que vem a ser um gesto. Recorro, uma vez mais, a Barthes. Em O óbvio
e o obtuso (1982), o pensador francês assim escreve:
O que vem a ser um gesto? Algo como o complemento de um ato. O ato é
transitivo, objetiva apenas suscitar um objeto, um resultado; já o gesto é a
soma indeterminada e inesgotável das razões, das pulsões, das preguiças que
envolvem o ato em uma atmosfera (no sentido astronômico do termo).
Façamos a distinção entre a mensagem, que quer produzir uma informação, o
signo, que quer produzir uma intelecção, e o gesto, que produz todo o
restante (o “suplemento”) sem querer obrigatoriamente produzir alguma
coisa.
BARTHES, 1990, pp. 145-146
O gesto é aquilo que excede o ato, o que resta. Aquilo que derrama e suspende e
sobra. É o rastro de razões, pulsões e preguiças de um corpo – o gesto começa antes
mesmo do ato. É o rastro-resto que não quer necessariamente produzir – o gesto, na
esteira de Agamben, comunica não um significado, mas a própria possibilidade de
comunicar.
O gesto é uma suspensão, um tempo infinito. Sendo tempo infinito, o gesto é
também uma forma de abismo, já que não finda, é um sem-fim. A artista Elida Tessler,
25 Na música, podemos citar Anton Webern com sua klangfarbenmelodie (melodia-de-timbre) caracterizada pela fragmentação das linhas melódicas, e os experimentos de John Cage com o não-intencional e o aleatório em suas composições. De forma semelhante, artistas visuais do começo do século XX empreenderam uma retomada do caráter plástico (sua condição visual) de letras, palavras e textos. Lembramos aqui dos papiers collés de Picasso e Braque, do uso de letras em quadros de Paul Klee, da presença constante de palavras e frases em Magritte.
28
em prefácio ao livro Gestos inacabados, relembra a Epopeia de Gilgamesh 26 (fig. 03),
poema épico da Mesopotâmia escrito no século XXII a.C. e cujo nome original seria
Sha naqba īmuru, “ele que o abismo viu”. A epopeia em fragmentos – doze tabuinhas
compõem a narrativa – e com brechas entre si – essas tabuinhas, quando descobertas,
apresentavam-se lascadas – , nos mostra, segundo Elida, que o gesto é sempre da ordem
do inacabado, pois: “[u]m gesto gesta. Depois do parto, outras formas continuam a
reivindicar espaços inéditos para os seus contornos em movimento. Por menor que seja
o intervalo entre a intenção e a realização, é ali que a criação tem lugar” (2013, p.19).
Fig. 03 Epopeia de Gilgamesh, tábua 11. Conhecida como “Tábua do Dilúvio”. Tábua neo-assíria de argila, Biblioteca de Ashurbanipla, século VII a.C. Museu Britânico 27, Londres.
*
5 letra
A letra é o menor sinal gráfico possível em sistemas linguísticos de alfabeto
fonético. Sinal que corresponde a um som, fonemático, portanto. A letra é a forma
visual desse sinal. Caractere mínimo e indivisível desse sistema escritural. Em Platão, a
letra é unidade tanto distintiva – por permitir isolar um som da língua – , como também
imitativa – por representar o som que designa, função que partilha com a pintura e que,
para o filósofo, a torna condenável. Ora, soa no mínimo estranha esta última função,
posto que o alfabeto se vangloria de seus signos abstratos, ao contrário de outros
26 A epopeia foi encontrada no século XIX em Nínive no que seria a biblioteca do rei assírio Ashurbanipal (reinado 668-627 a.C.). Consiste em doze tabuinhas de argila incompletas contendo inscrições cuneiformes da língua acádia. 27 Imagem disponível em: <http://www.britishmuseum.org/collection/object/W_K-3375>
29
sistemas de signos figurativos (como o hieróglifo e o ideograma oriental), considerados
“menos evoluídos”.
Apesar da premissa equivocada de Platão, ele acerta quando traça esse paralelo
com a pintura, pois, como já vimos, a escrita e, por conseguinte a letra, nasce do estado
visual que a precede (CHRISTIN, 2016, p. 10) 28. A letra é, por sua origem na imagem,
veículo gráfico da palavra. A própria palavra “gráfico” tem sua etimologia no grego
graphikós, que deriva de graphein que se refere tanto à ação de escrever como de pintar,
revelando a proximidade entre estes gestos.
Letra é também sinônimo de caligrafia (do grego kalli-, de kallos, que significa
beleza + graphia, também do grego, que significa escrita); como quando dizemos: “que
letra bonita você tem”.
Em outras línguas que não o português, letra e carta partilham o mesmo nome 29.
Será esse um indício de que toda letra é endereçada a um outrem, mesmo que esse
outrem seja desconhecido, ausente, morto ou apenas imaginado (como nas escritas
diarísticas em que, via de regra, começa-se uma entrada nova com um adorável
“querido diário”)? Indício também de um trajeto a esse percorrido até esse outrem, e das
possibilidades de desvio (errâncias 30 ) nesse deslocamento – extravio, perda,
interceptação, roubo, entrega equivocada a um destinatário não pretendido, não-entrega,
letra/carta não reclamada, destruição? A tragédia da destinação, i.e, a possibilidade de
destinerrância 31: “[u]ne tragédie, mon amour, de la destination. Tout redevient carte
postale, lisible pour l’autre, même s’il n’y comprend rien” 32 (DERRIDA, 1987, p. 27).
Sim, o que te escrevo não é ninguém. E essa liberdade de ninguém é muito
perigosa. É como o infinito que tem cor de ar. (...) De que cor é o infinito
espacial? É da cor do ar. Nós – diante do escândalo da morte.
LISPECTOR, 1998, p. 59
28 “Elle [la lettre] est née de l’état visuel de l’écriture qui la précédait”. Tradução nossa: “ela [a letra] nasceu do estado visual da escritura que a precedia”. 29 Na verdade, consta de alguns dicionários a acepção da palavra “letra” como “carta, missiva, epístola”. Este uso, porém, não é corrente em língua portuguesa, ao contrário do que ocorre com termos similares em outras línguas. Alguns exemplos: lettre no francês, letter no inglês, lettera no italiano. 30 Interessa-nos na noção de errância tanto o movimento que ela indica, sem destino definido, como a sua proximidade com o erro. Afinal, às duas palavras corresponde o mesmo verbo: errar. 31 Termo derridiano – destinérrance no original – que designa justamente o percurso errante, após o envio, do texto escrito. 32 “[u]ma tragédia, meu amor, da destinação. Tudo se torna cartão postal, legível a um outro, mesmo se ele não compreende nada dele”. (tradução nossa)
30
E o cartão postal (de que fala Derrida) é, em francês, o anagrama de desvio e
rastro: carte – écart – trace. A letra/carta, que é sempre um endereçamento, carrega em
si o rastro e o desvio, desvio/errância da língua na sua travessia para a sua inscrição.
Errância que é uma busca infinita, um percurso que se desdobra num espaço que se abre
sempre e cada vez mais, é imensidão, tangível e in-dimensionável. Não há fechamento e
tampouco exatidão na letra/carta. Há apenas a expectativa do percurso e da entrega e da
resposta. Toda letra/carta é expectativa e esperança, desejo amoroso (quiçá um amor
falhado?). Letra/carta enviada com o coração nas mãos: “como saltar dos meus versos /
para os teus braços?” (HATHERLY, 2005, p. 5).
Se letra e carta escrevem-se da mesma forma em outras línguas, em português a
letra é também música, i.e., o texto de uma canção. Letra é o ritmo do escrito e do gesto,
a letra é canção. E como na música Não identificado de Caetano Veloso, a letra/canção
é um objeto não identificado, uma carta de amor não reclamada (uma lettre en
souffrance, uma carta que sofre, em expectativa e desejo) que vira o cartão postal de
Derrida, como a escrita de Lispector, que não é mais de ninguém mas brilha no infinito
espacial.
Eu vou fazer uma canção de amor
Para gravar num disco voador
Uma canção dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho, apaixonado
Para lançar no espaço sideral
Minha paixão há de brilhar na noite
No céu de uma cidade do interior
Como um objeto não identificado
VELOSO, 1969.
Desfiando a letra encontramos a carta e a canção, e já está sempre lá o risco e a
errância e o ritmo.
*
31
6 o vazio, o branco, o silêncio
O vazio na tradição ocidental é menos que o negativo. É indiferente, como se nem
ao menos existisse: é nada. Completamente invisibilizado, pois só se dá valor (seja ele
positivo ou negativo) ao que se constitui como Verbo. Uma compulsão pelo cheio (ou
preenchido ou coberto) manifestada na expressão latina horror vacui, o vazio que causa
medo (literalmente: aversão ao vazio). Em arte, o horror vacui é uma tendência a
preencher todos os espaços compulsivamente ao limite, até não sobrar vazios, tendência
essa expressa, por exemplo, no sarcófago de Portonaccio (fig. 04) de circa 180 d.C.,
em manuscritos iluminados das Ilhas Britânicas (especialmente nas páginas conhecidas
como carpet pages 33 - fig. 05) e, outrossim, na arte maneirista e barroca (como no
exuberante interior da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência no Rio
de Janeiro, terminada em 1773 – fig. 06).
Fig. 04 Sarcófago de Portonaccio, c. 180 d.C. Mármore.Museu Nacional Romano, Palazzo Massimo alle
Terme, Roma.
33 Carpet pages ou páginas tapete são características da arte insular de manuscritos iluminados católicos. Refere-se a páginas decoradas normalmente com padrões geométricos (que lembram justamente o desenho de tapetes), com nenhum ou pouquíssimo texto e que tradicionalmente eram colocadas no começo de cada um dos Evangelhos.
32
Fig. 05 Book of Kells, folio 292r. Incipit do Evangelho de João (“in principio erat verbum”), c. 800 d.C.
Biblioteca Liberty College, Dublin.
Fig. 06 Altar-mor, 1726-43 34. Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, Rio de Janeiro.
Chamamos de branca a página vazia, como se o branco fosse a cor mesma das
superfícies virgens – é o não-traço por excelência, a ausência de mancha 35. Mas o
34 A decoração interna da Igreja foi realizada entre 1726-43; a talha é de autoria dos portugueses Manuel de Brito (? – 17??) e Francisco Xavier de Brito (? – 1751), a douração e as pinturas, de Caetano da Costa Coelho (? – 175?).
33
branco é também o cheio, sua opacidade funcionando como impenetrabilidade,
característica do intransponível: “me deu um branco”, dizemos. O branco é, então, um
grande enigma: “le vide papier que la blancheur défend” 36, para citar Mallarmé. E
nessa construção mallarmaica temos já o branco como, a um só tempo, vazio e cheio – o
papel vazio é branco, e esta sua brancura, opaca (para não repetir: cheia), o defende da
mão-gesto-traço do poeta.
Há também o intervalo, o espaço entre as coisas, a que comumente damos o nome
vazio. Ou então, espaço em branco. Na história da escrita ocidental foram os monges,
ainda na época dos manuscritos, que introduziram os vazios entre as palavras como
forma de facilitar a leitura.
O sentido se torna possível a partir das palavras entremeadas de espaços,
unidades de significação que somente desenham a ideia por serem cercadas
pelo branco do espaço vazio que nos permite uma respiração, pausa fundante
do campo semântico. A própria literatura é estruturalmente presença e
ausência, letra e espaço, categorias que forjam as palavras e estas a frase e
assim sucessivamente.
HOMEM, 2011, p. 36
O espaço intercalar não é neutro, o “entre inscrições” não constitui uma ausência,
mas antes se traduz em presença. É o suporte que de certa maneira detém a energia da
escrita, seu fundo espesso – o foro íntimo da língua, como escreveu Maldiney 37. O
fundo é matricial, gerador. E é nele que se inscreve a própria existência.
Espaço intercalar. Inter/calar, ainda que etimologicamente o /-calar/ aqui se ligue
ao /calare/ (proclamar publicamente), é curioso pensar este /-calar/ em intercalar como
o verbo calar, vindo de /chalare/, i.e., baixar a voz, fazer silêncio. O vazio/branco se
transmuta então em espaços de silêncio no interior dos textos e das palavras e das letras.
Silêncio, palavra que anuncia sua própria morte: dizê-la é já matá-la (todo traço é rastro
e é testamento); assim também escreveu Bataille: ela, a palavra “silêncio”, é “entre
todas as palavras a mais perversa, ou a mais poética: ela é a própria garantia de sua
35 Interessante notar como essa acepção do branco enquanto signo de superfície imaculada se transpõe também para outras áreas da experiência humana: basta lembrarmos do vestido de noiva na tradição cristã, branco para simbolizar a pureza (leia-se, virgindade) da noiva. 36 Tradução nossa: “o papel vazio que a brancura defende”. 37 Ver página 52 e nota 50.
34
morte” (BATAILLE, 1992, p. 24). Silêncio que é o oposto do discurso, mas é também a
sua condição enquanto respiração e ritmo, o fundo da língua: “speech is but a broken
light upon the depth of the unspoken” 38 (ELIOT apud FLUSSER, 2007, p. 173).
Espaço que está entre as palavras e também no interior delas: o vazio-silêncio-
respiração, passeia por entre as letras, ali, no coração da palavra, “o coração é um
misterioso recinto” (HATHERLY, 2005, p.25). Recorro aqui ao pensamento do pintor
chinês Chang Shih, tão diferente de nossa tradição 39, em que o vazio não é o inexistente
e tampouco o vago, mas sim elemento dinâmico e ativo, ligado à respiração vital, é o
espaço onde o cheio pode atingir sua mesura exata:
[S]obre um papel quadrado de três pés, a parte [visivelmente] pintada ocupa apensa um terço. No restante do papel, parece não haver nenhuma imagem, entretanto, as imagens têm ali uma existência eminente. Assim, o Vazio não é o nada. O Vazio é o quadro. CHANG SHIH apud CHENG apud CHRISTIN, 2006, p.76 – itálicos nossos
*
7 texto, tecido
Etimologicamente, a palavra ‘texto’ quer dizer tecido, e a palavra ‘linha’, um
fio de tecido de linho. Textos são, contudo, tecidos inacabados: são feitos de
linhas (da ‘corrente’) e não são unidos, como tecidos acabados, por fios (a
‘trama’) verticais. A literatura (o universo dos textos) é um produto
semiacabado. Ela necessita de acabamento. A literatura dirige-se a um
receptor, de quem exige que a complete. Quem escreve tece fios, que devem
38 Tradução nossa: “o discurso é tão somente uma luz rompida por sobre as profundezas do inarticulado”. 39 François Cheng, em seu livro Vide et Plein (Empty and Full), explica que, apesar de central para o pensamento chinês, a noção de vazio não foi sistematicamente estudada, pois sempre se apresentou como entidade natural que prescindia de definição. Cheng então, neste livro, vai tomar essa tarefa para si, de sistematizar esse conceito a partir de textos clássicos. Escreve ele: “Empitness is the very foundation of the Taoist ontology. That which is before heaven-earth is nonbeing, nothing, emptiness. Two terms are used to refer to the idea of emptiness: wu and hsü (though the Budhists were later to highlight a third term: k’ung). (...) Thus wu, which has its corollary you (being), is generally translated in the West as ‘nonbeing’ or ‘nothing’; whereas hsü, which has shih (fullness) for a corollary, is translated as ‘emptiness’”. (CHENG, François. Empty and Full: the language of Chinese painting. Boston: Shambhala Publications, 1994, p. 43) Tradução nossa: “Vazio é a fundação mesma da ontologia taoísta. Aquilo que existe antes do céu-terra é o não-ser, o nada, o vazio. Dois termos são usados para se referir à ideia de vazio: wu e hsü (embora os Budistas depois tenham enfatizado um terceiro termo: k’ung). (...) Assim, wu, que tem seu corolário you (ser), é geralmente traduzido no Ocidente por ‘não-ser’ ou ‘nada’; enquanto hsü, que possui shih (cheio) como corolário, é traduzido por ‘vazio’”.
35
ser recolhidos pelo receptor para serem urdidos. Só assim o texto ganha
significado. O texto tem, pois, tantos significados quanto o número de
leitores. (...) Portanto, o texto não ‘tem’ um destino, ele ‘é’ um destino.
FLUSSER, 2010, pp. 63-64
No seu estado de dicionário 40, texto é o conjunto de letras, palavras e frases que
se organizam em começo, meio e fim nos suportes da matéria escrita. Porém, ao
despertarmos a palavra desse seu estado (mudo e solitário) descobrimos que o texto vem
de textum que, por sua vez, deriva de texere, raiz comum de aparentados seus: tecido,
tessitura, tecer, têxtil e textura. Escrever um texto é, então, análogo ao tecer, ou seja, é a
construção de uma trama pelo entrelaçamento de fios. No texto-tecido cada fio alterna-
se com os demais em movimentos de pontos, nós, laçadas que mantêm sua coesão.
Assim, cada tecido vai constituir a sua trama em texturas (uns mais sedosos, outros,
ásperos) e espessuras únicas, formando sua própria tessitura.
O texto é tecido, escrever é tecer.
E quem, no silêncio da noite, tal qual uma Penélope, vira o tecido e desfaz os nós,
desentrelaça as laçadas, separa as palavras e depois as letras, apaga o traço... ela escreve
também, assim, desescrevendo?
escrevo porque descrevo e descrevo porque descrevendo
o tempo inscreve-se nas linhas imaginárias por onde
escrevo o que descrevo as parábolas que descrevo
escrevendo descrevendo desescrevendo
HATHERLY, 1987, p. 44
*
8 mancha
As sequências e combinações de caracteres letra-palavras-frases-parágrafos geram
uma forma. A essa forma, chamam-na mancha. A mancha é o encontro e o contato. É a
40 Chamo aqui estado de dicionário em oposição a um estado de poesia em que as palavras despertam sua potência de silêncio e de reverberação, potência essa que se encontra adormecida no dicionário.
36
capacidade que as coisas (aqui caracteres) têm de se transformar e se confundir
mutuamente formando uma imagem singular.
Define-se como mancha textual a percepção em conjunto dos signos de um texto,
como se perdessem seu caráter individual e fossem percebidos como uma só mancha
colorida (uma mistura ótica) em contraste com a superfície em que se inscrevem. As
manchas de um texto formam uma espécie de paisagem que apresenta itinerários de
leitura que podem ser unívocos ou múltiplos, revelar ou esconder determinadas
topografias. Escrever é criar paisagem. “De qualquer ponto em que se estava partia-se
para o longe. Nunca se viu tanto caminho” (LISPECTOR, 1999, p. 490).
Pontos de partida, talvez as manchas - nódoas de imagens, como escreveu Manoel
de Barros 41 – sejam anunciações. E o que são anunciações? Promessas: na Anunciação
católica (Lc 1, 26-38) é o anjo Gabriel que faz uma promessa à Maria, “[e]is conceberás
no teu ventre, e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus”. Profecias: é aquilo
que se profetiza – retornamos aos adivinhos lendo os tempos num fígado de carneiro ou
em ossos de boi.
Eis a primeira etapa da leitura, a paisagem-mancha: você percorre e completa com
o olhar a promessa-profecia anunciada na mancha.
Mancha é, outrossim, pintura e cor e sangue (a cor do corpo vivo), como nos
ensina Benjamin 42. No rastro cromático que é a mancha encontramos estes termos, que
em português precisamos recorrer à etimologia para trazer à tona essas afinidades
(diferentemente do que acontece na língua alemã, em que Malerei, pintura, vem de Mal,
mancha ou mácula).
Basta ir à procura das raízes etimológicas da palavra pintura e somos de
imediato surpreendidos por afinidades que nos colocam no rastro da relação
entre pintura, mancha e cor do sangue. Vejamos: pintar procede de pingo,
verbo latino que reveste os significados de bordar, enfeitar, tatuar, isto é,
alterar a cor do nosso corpo, a mancha do nosso corpo e, evidentemente,
pintar como colorir. Pintar é colorir, no uso mais antigo que se faz de pingo.
A raiz peig é atestada em sânscrito em palavras cujo sentido é claramente
pictórico e que têm a ver com o acto de pintar e pintar com uma cor
41 “Seria antes uma anunciação. Enunciados como que constatativos. Manchas. Nódoas de imagens. Festejos de linguagem” (BARROS, Manoel, 2010, p. 197). 42 No ensaio Sobre a pintura ou Signo e mancha (BENJAMIN, 2013. pp. 81-88).
37
determinada, sempre variações da cor do sangue: pinkle, ele pinta; pingah,
castanho avermelhado; pinjárah, amarelo avermelhado; pêgu, manchado.
MOLDER, 2017, p. 34.
A mancha que é o percurso, a paisagem-cor de todo texto, é também a cor de
sangue, a cor do corpo que corre secreta e invisível cá dentro e se alastra (como no
rubor e no corar-se) e verte (como na ferida e no sacrifício) em acontecimentos. Sangue
que está intimamente ligado à vida e à morte e suas cerimônias.
*
9 ilegibilidade
Ilegível, o revés da legibilidade (a verdade está no verso, como olhar o avesso de
um bordado que revela então sua estrutura), seria uma escrita indecifrável (garatuja
ininteligível) mas também uma escrita aberta a um “plural ilimitado” que depende da
leitura para se realizar. Existem também escritas ilegíveis que não são propriamente
indecifráveis, uma vez que não se encontram na esfera do deciframento: escritas em que
o significante não se sustenta num significado, escritas de deslocamento e
desaparecimento do sentido.
[N]em tudo é sempre legível, como nem tudo é sempre dizível, como nem
tudo é sempre decifrável. E é justamente nessa zona de obscuridade
determinada pelas limitações da expressão e da interpretação que se inscreve
a ilegibilidade essencial do objecto de arte – o que nele fica por dizer, em
silêncio, indizível – que é o que vai precisamente permitir inúmeras, talvez
infinitas leituras criadoras.
HATHERLY, 1981, p. 149
Pensar a ilegibilidade implica pensar seu oposto: a legibilidade. O que é ser
legível? Existem textos completamente legíveis? Ser legível é ser decifrável?
Prontamente acessível? Será que existe mesmo um limite tangível entre o legível e o
ilegível? Ou será que o limite é antes um umbral, risco e borda, lugar ambíguo que
marca um entre?
38
Nesse sentido, interessante pensar que identificamos o ato de leitura ao de
decifrar, i.e., ler é decifrar. Ora, se ler é decifrar, escrever é cifrar. A ilegibilidade é,
portanto, natural à toda escrita – mesmo as mais literalmente legíveis, ou acessíveis ou
inteligíveis – , posto que ambígua: revela e esconde. Escrita é criptografia.
Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro,
a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás,
sempre imperceptível.
DERRIDA, 2005, p. 7
39
parte II.
ana e mira
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca:
a palavra pescando o que não é palavra.
Clarice Lispector
40
Nesta segunda parte iremos abordar as trajetórias de Ana e Mira, duas mulheres
que produziram escritas assêmicas em um mesmo período, apesar de apartadas por um
oceano. Ana e Mira, até onde se sabe, não se conheciam. Estas duas artistas, contudo,
desenvolveram trabalhos que possuem diversas áreas de contato, áreas de encontros
possíveis entre suas produções.
A seguir, trataremos das especificidades de cada uma e das questões que
informam suas pesquisas acerca do gesto escritural, começando por Ana (talvez um
reflexo da lógica alfabética em que nos encontramos) e partindo, depois, para Mira.
Em Ana abordaremos a geografia labiríntica desenhada pela artista. Do seu estudo
de textos visuais do Barroco português, ela retira o material para a reinvenção da leitura,
submetida agora ao imperativo do olhar e a uma ideia de jogo que chamamos ana-
gramática (como uma gramática de ana, que é seu nome e também prefixo que significa
uma inversão).
Passando à Mira, esboçaremos algumas questões caras à artista: o desejo de fazer/
captar passagem que se desdobra num interesse pela transparência. Para isso,
arriscaremos algumas linhas mais gerais acerca de suas monotipias, série que julgamos
exemplar para a análise dessas questões.
*
1 ana
Ponte pensada
arquitecto do não-útil
por entre o cosmos e o caos
o poeta
olha o mundo
e reinventa-o
no seu jardim feito de tinta.
HATHERLY, 1998, p. 19
41
Ana Hatherly 43 foi poeta, precursora em Portugal da poesia concreta (o primeiro
poema concreto a ser publicado neste país, no ano de 1959, é de sua autoria), artista
visual, performer, escritora e professora catedrática em Lisboa com inúmeras
publicações acerca do período Barroco 44. Em suas práticas, sempre plurais e múltiplas,
Ana transpôs fronteiras entre as categorias tradicionalmente fechadas de arte e
literatura. Nela, o ofício de poeta se cruzava com o de pintora, calígrafa, performer. Se
podemos encontrar um ponto em comum no corpus de Hatherly será sempre, de acordo
com Ana Marin Martinho, o de subtrair a legibilidade da escrita, devolvendo-a à
imagem (MARTINHO, 2007, p. 69):
[O] que fiz para a escrita (...) foi desmontar os elementos da escrita. As
pessoas matavam-se para ler e eu não quero que leiam. Eu digo sempre que
quero que vejam o escrito, quero que vejam a escrita. É uma maneira de
desconstruir o hábito e obrigar as pessoas a uma nova leitura. Ao que
chamo de a reinvenção da leitura.
HATHERLY in FERNANDES, 2000, p. 41
À Ana, interessa-lhe a dimensão plástica e gestual da escrita, que é o
prolongamento extensíssimo da mão, a mão inteligente. Suas inscrições (in-scription,
traços no interior da matéria) são caracteres abertos que dão a ver o ato da escrita, seu
valor pictórico, abrindo-a a várias direções de uma leitura além-palavra.
Podemos pensar outra continuidade em Ana, a apologia ao silêncio. Silêncio
entendido como espaço do indizível (a palavra não é segura, como nos ensinamentos de
Zhuang-zi sobre o Tao): espaço deixado em branco, silenciosamente.
43 Ana Hatherly (1929-2015) nasceu na cidade do Porto em Portugal, licenciou-se em Filologia Germânica pela Universidade Clássica de Lisboa e obteve diploma em técnicas cinematográficas pela International London Film School. Fez doutorado em Estudos Hispânicos do Século de Ouro pela University of California, Berkeley. Na década de 1960, integrou o grupo da revista Poesia Experimental, tendo escrito alguns dos textos seminais do movimento. Entre 1981 e 1999, foi professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Enquanto acadêmica, contribuiu decisivamente para a redescoberta e revalorização da poesia barroca portuguesa. 44 Ana inclusive aponta a defesa do Barroco por parte dos experimentalistas portugueses das décadas de 1950/60, grupo de que fazia parte: "[q]uando os experimentalistas portugueses se comprometeram a defender a poesia da época barroca, período da nossa cultura sistematicamente condenada a partir do Neoclassicismo, fizeram-no em plena consciência. (...) Assumiam, ao mesmo tempo, outra re-descoberta, a dos valores operativos da poética barroca: a sábia manipulação da linguagem, em que o carácter performativo da palavra, da imagem e da retórica em geral é concebido a partir de uma imensa criatividade conceptual, e em que o profundo sentido do acto criador como jogo se alia a uma aguda percepção do valor da forma, passa a ser motivo de admiração". (HATHERLY apud PIRES DO VALE, 2017, p. 07)
42
Tudo é sintoma de tudo?
É.
Então tudo é Verdade?
É.
Então tudo é Beleza?
É.
Então não há Beleza nem Verdade, há só Tudo?
Há só Tudo.
E o que é Tudo?
Tudo é o que em tudo é.
Como é que se conhece?
Reconhecendo-o.
Onde?
Em tudo.
Como?
Silenciosamente.
HATHERLY, 1962, p. 150
O silêncio da escrita – a escrita é uma fala simbólica, muda – conduz o
escritor à reflexão sobre o silêncio das palavras, implícito nela.
idem, 1975, p. 24
Desse apreço ao silêncio, aos espaços brancos, vazios, advém outra constatação.
Em Ana, a escritura desafia a noção clássica de arte temporal – assim classificada em
função da sequencialidade das palavras, desenrolando-se no tempo – desdobrando-se
em “visualidade/espacialidade dos planos e vazios das páginas que Stéphane Mallarmé
inaugurou” (MONTEJO NAVAS, 2017, p. 20). Acrescentaríamos, apenas, que
Mallarmé inaugurou este pensamento espacial da escrita entre nós, ocidentais,
lembrando que a tradição oriental (notadamente a chinesa) esforçou-se sempre por
dispor as palavras no espaço, o elemento visual sendo cúmplice do texto (NUNES DE
ALMEIDA, 2013, p. 18).
Em texto para exposição individual sua, intitulada Desenho no espaço, na Galeria
Tempo em 1979, Ana assim descreve seu trabalho:
O meu trabalho começa com a escrita - sou um escritor que deriva para as
artes visuais através da experimentação com a palavra. A Poesia Concreta foi
43
um estádio necessário, mas mais importante foi o estudo da escrita, impressa
e manuscrita, especialmente a arcaica, chinesa e europeia.
O meu trabalho também começa com a pintura - sou um pintor que deriva
para a literatura através dum processo de conscientização dos laços que unem
todas as artes, particularmente na nossa sociedade.
HATHERLY, 1992, p.75
*
Cada imagem é um pictograma, um fotograma congelado na página, cujo
significado é posto em movimento pela leitura. A leitura será sempre
múltipla porque à ilusão de ver se acrescenta a ilusão de ler. Todo o
pictograma é criptograma.
O autor e o leitor são exploradores sistemáticos – o autor fornece o mapa dos
itinerários e o leitor percorre-os, mas os percursos são livremente
condicionados.
idem, 1975, nota introdutória s/p.
A escrita nunca foi senão representação: imagem. Imaginar é igual a
codificar: a escrita surge como um sistema de sinais para indicar um roteiro
específico, o que faz com que toda página escrita seja um mapa.
idem, 1973, p. 09
A escrita é uma imagem de percurso
–– o rio antigo, a seta temporal.
Como os pré-socráticos verificamos
–– o fluir, o irreversível do tempo.
Ainda não sabemos pensar de outro modo.
De caminho, o arabesco insinua-se. É uma qualidade da escrita, uma qualidade da sua origem asiática. A escrita prolonga a mão. É o prolongamento extensíssimo da mão. Indica: –– disciplina, explosão
contida
44
onda surda é a escrita.
Não escrevo para dizer mas para saber.
idem, 1987, p. 44
Confeccionar imagens é elaborar um roteiro para as mais imprevisíveis
viagens porque as imagens constroem-se a si próprias na diferente
observação. O criador de imagens é um cego a quem é dado a ver numa
pequena pausa fria.
idem, 2006[a], p. 107
*
Fig. 07 Ana Hatherly. Metáfora da “mão inteligente”, 1975. Nanquim sobre papel. Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna.
o poema é
para ver-se
ler-se
45
(às vezes ouvir-se)
mas
sobretudo
adivinhar-se
o poeta é
uma sombra
um perfil
um desaparecimento
mas
sobretudo
a despedida mão feito poema
idem, 2001, p. 306
*
Em 1973, Ana publicou Mapas da imaginação e da memória (fig. 08), reunindo
poemas-desenhos sob forte influência de seus estudos das tradições orientais. São
caligrafias, um novo alfabeto ideogramático, caracteres pontilhísticos, estruturas
geométricas, letras diluídas em manchas, quirografias desviantes... A experimentação de
Ana, identificando eikôn e logos, preocupa-se não com o que se escreve, mas com o
como se escreve. Ana cria verdadeiras geografias, topografias de gestos inscrevendo
segredos indecifráveis numa folha de papel.
46
Fig. 08 Ana Hatherly. Sem título. Publicada em Mapas da Imaginação e da Memória (1973), 1971. Nanquim sobre papel.
Os dezenove poemas visuais publicados ao lado do ensaio crítico A reinvenção da
leitura, em 1975 – dois dos quais analisaremos mais de perto no próximo capítulo – ,
apresentam grafos da escrita ocidental em vertigem (figs. 25 e 26). Acumulados na
folha de papel, não se prestam à legibilidade (e nem se querem legíveis – mesmo
quando conseguimos identificar palavras, elas se tornam ambíguas, equívocas,
labirínticas na complexa trama barroca inventada por Ana – toda escrita é criptografia)
mas sim à visualidade, retomando uma medialidade pura da escrita, escapando
significações e sendo apenas (apenas!) gesto de mão.
Escritas ilegíveis do ato de escrever, mil escritas da ilegibilidade. São poemas-
desenhos traçados para serem percorridos com os olhos.
*
As Tisanas, “pequenas narrativas, que pertencem à área do poema em prosa”
(HATHERLY, 2006[a], p. 14), era um work in progress, como o definia a própria Ana,
que começou a ser publicado em 1969 com as 39 Tisanas e terminou com a versão de
47
2006, 463 Tisanas. Como pode-se ler na orelha e no final da apresentação desta última
versão do livro (2006): “[a]s Tisanas são uma meditação poética sobre a escrita como
pintura e como filtro da vida. (...) O mundo das Tisanas é um mapa emotivo de uma
conjuntura cultural em que os agentes do sentido têm por arbítrio o espírito” (ibidem, p.
15).
Olhando a capa da edição (fig. 09), produzida por Ana, nos deparamos com uma
espécie de retrato de escritor (Tisana 130), ou autorretrato, constituído de vários borrões
de tamanhos e espessuras diferentes. Um rosto que se deixa entrever pelo contraste
entre os traços escuros e o seu suporte branco. Veja o ombro maior, o direito, parece um
rio de sangue que escorre – “[h]á linhas soltas um pouco sangrentas” (ibidem, p. 70).
Tomando o livro em minhas mãos – a leitura também é tátil – atrevo-me a girá-la para a
direita – a leitura também é jogo. Revela-se a imagem duma tartaruga manca (vemos
apenas uma de suas patas) que aponta com a cabeça para o céu. Céu que ela mesma
parece carregar dentro de seu ventre, por debaixo da carapaça, algo que me lembra a
leitura divinatória dos chineses. Giro novamente e me deparo com uma gota de sangue
vista num microscópio, com sua parte fluído, parte hemácia e parte leucócito – talvez
seja uma gota do sangue que escorre do ombro. Mais um giro e se apresenta um peixe
ornamental (sabe qual, aqueles com nadadeiras que parecem fitas) nadando no grande
Vazio. Giro uma última vez e retorno ao começo.
48
Fig. 09 Capa de 463 Tisanas, 2006.
A capa então é mapa de uma espécie de bestiário próprio, como também o é o
próprio livro, um bestiário com tendências ao absurdo e à fábula, inspirada nos koans
budistas 45 . E o movimento feito por mim, circular, remete à imagem, também de
autoria de Ana., que se encontra na contracapa (ou quarta capa 46 - fig. 10), a de um
labirinto circular formado pela palavra Tisanas. Ou talvez seja a imagem de uma
serpente enroscada.
45 Com escreve a própria Ana: “No que diz respeito à estrutura da narrativa aí pode detectar-se algo herdado da tradição Zen: Todas as Tisanas obedecem a um princípio semelhante ao do Koan budista, são sempre, directa ou indirectamente, um acontecimento, um evento, mesmo que seja apenas linguístico. Todas as Tisanas dizem sempre respeito a algo que acontece, ao significado ou à questionação do significado de um acontecer que se depara ao narrador e que se oferece ao leitor como um desafio. Em todas as Tisanas encontra-se algo dessa ‘indeterminação deslizante’ do pensamento Zen, associada a uma técnica de destruição da certeza, mas também consequência de uma meditação sobre a natureza da linguagem baseada em pressupostos da linguística moderna...” (2006, p. 14) 46 A quarta capa é também comumente chamada de contracapa. Chama-se assim, quarta, pois a primeira capa é aquela denominada apenas de capa, sua parte interna é a segunda capa; seguindo o fluxo da leitura, a parte interna da quarta capa é a terceira capa e, portanto, a capa final é a quarta.
49
Fig. 10 Contracapa de 463 Tisanas, 2006.
*
Anagrama é a transposição de letras de uma palavra (ou palavras em uma frase)
para formar nova palavra (ou frase). Assim, meu nome, Alice, se torna Célia; e o de
Iracema, América. Vem do latim anagramma que, por sua vez, se origina no grego aná
(inversão, movimento de baixo para cima ou para trás) + grámma (letra) 47. Ana o
define assim:
[C]omutação das letras duma palavra (ou palavras) duma frase de modo a,
por novo(s) arranjo(s), se formar(em) outra(s) diferente(s) da(s) primeira(s),
sem que seja portanto necessário respeitar a ordem da sua colocação original.
47 AH transcreve em seu livro A casa das musas uma passagem de Alfonso de Alcallá y Herrera, autor de Jardim Anagramático de Divinas Flores Lusitanas, Hespanholas e Latinas (publicado em 1654 e que contém 686 anagramas em prosa e verso), em que ele assim explica o anagrama e sua origem: “He pois ANAGRAMMA nome Grego, cõposto de duas dicções – ANA – preposição, & – GRAMMA – nome q significa – Letra – q deles tãbe˜ se deriva – Grãmatica –. E assi ANAGRAMMA val o mesmo q trãsposição de letras porq se deriva de – Anagrammatizin – q he o mesmo q trãsposição dellas, assi no escrever, como no falar: de sorte, que com as mesmas letras de hum nome, ou nomes, & periodos, trocadas as syllabas, ou as letras, se pronuncie, ou escreva outro nome, ou nomes, & periodos differentes, sem que se tire, nem acrecente letra algu˜a, porque em se lhe tirando, ou acrecentando, ja não fica verdadeiro o Anagramma”. (apud HATHERLY, 1995, p. 19)
50
HATHERLY, 1995, p.185
A técnica do anagrama foi utilizada em diversas obras literárias do Barroco, em
seus labirintos poéticos. Labirintos são construções que remontam à Antiguidade, cuja
origem tem natureza essencialmente religiosa, com um centro mágico-místico. Numa
das etimologias possíveis para a palavra, ela deriva-se de labor (trabalho) e intus (lugar
fechado), daí labyrinthos (em grego) e depois labyrinthus (em latim); assim, teria o
sentido de “trabalho para sair” (se é uma prisão) ou de “trabalho para entrar” (se é uma
proteção a um tesouro). Segundo uma tradição que remonta a Plotino, o próprio
universo seria um enorme labirinto criado divinamente e cuja solução equivaleria ao
sentido de iluminação. O caráter lúdico dos labirintos se traduz nos textos visuais
barrocos em que a disposição espacial de palavras, letras e linhas além do uso de
recursos como o anagrama (e também o acróstico, o emblema e a “escrita diabólica”)
desenvolvem um novo modo de ler subvertendo o percurso tradicional da leitura (da
esquerda para a direita) e possibilitando uma pluralidade de leituras.
O anagrama, enquanto procedimento labiríntico, é sempre uma forma de dobra-
desdobramento da palavra, é a metamorfose. Ou é como o movimento encantatório de
uma serpente que troca de pele incessantemente. “A serpente é o sujeito animal do
verbo enlaçar e do verbo insinuar-se” (BACHELARD, 1990, p. 216).
Enlaçando e insinuando escrita, letra, traço, linha, dobra... , Ana faz circular –
pela caligrafia e pela mancha e pelo branco – a experiência do ver/ler de volta à escrita,
de volta à imagem, de volta à mão.
Serpente com pele de escrita, ana-gramática é jogo de morder o próprio rabo.
*
51
2 mira
O que me preocupa é captar a passagem (...)
SCHENDEL
Na mesma época em que Ana Hatherly produzia em Portugal, Mira Schendel 48
também produzia, mas do outro lado do Atlântico, no Brasil. Mira, que nasceu na Suíça
e emigrou para o Brasil em 1949, começa sua produção artística já em solo brasileiro,
na década de 1950, pintando. Pintava naturezas-mortas no começo (fig. 11), naturezas
emudecidas. Penso aqui no artigo A Imagem Emudecida, do pensador alemão Hans-
Georg Gadamer do livro A Relevância do Belo e Outros Ensaios (1966) 49, em que ele
escreve: “(...) quando dizemos que alguém se calou ou se tornou emudecido
(verstummt), não queremos simplesmente dizer que esse alguém cessou de falar.
Quando as palavras nos fogem, o que queremos dizer se coloca tão próximo de nós
como algo para o qual precisamos procurar novas palavras” (1988, p. 123).
Fig. 11 Mira Schendel. Sem título, 1954. Óleo sobre tela. 50x65cm Coleção Andrea e José Olympio Pereira
48 Mira Schendel, nascida Myrrha Dagmar Dub em Zurique, Suíça, de família de origem judaica. Passa sua infância e juventude na Itália, em Milão. Fugindo da perseguição dos regimes de Mussolini e de Hitler, Mira vaga pela Europa e acaba em Sarajevo, na antiga Iugoslávia, onde se casa, adotando o sobrenome do marido, Hargensheimer (nome com o qual assina suas obras até 1953). Após a Guerra, Mira permanece em Roma de 1946 a 1949, quando consegue permissão para emigrar para o Brasil. Primeiro ela se instala em Porto Alegre, mudando-se para São Paulo posteriormente. No Brasil ela se casa novamente, com Knut Schendel, adotando o sobrenome do novo marido, com o qual é conhecida. 49 Artigo publicado na Gávea: Revista de História da Arte e Arquitetura, n.06, Dezembro 1988.
52
Ao longo de sua carreira, Mira vai trabalhar com técnicas – pintura, gravura,
escultura, desenho, instalação... – e materiais os mais diversos – desde a finíssima folha
de papel japonês (material das famosas séries de Monotipias, Droguinhas e Trenzinhos,
por exemplo) até a madeira, ou a areia e as placas de acrílico (como em Objetos
Gráficos, série que a artista apresentou na Bienal de Veneza de 1968).
Seu gesto, contudo, permanece, ao longo desse percurso vasto e prolífico, um
gesto de escrita, mesmo quando esse gesto decompõe e simplifica seu traço até ele se
tornar apenas um balbucio que irrompe da superfície.
Mira encontrou na linguagem sua principal matéria de trabalho, desde frases e
citações até o mais simples e silencioso risco – risco que ativa os espaços vazios, posto
que imbuído do tumulto do nascimento. Coisa que só os poetas sabem fazer, dotar a
língua desse tumulto.
Les aîtres de la langue sont, en deçà de son état construit, les demeures de la
pensée non encore thématisées en signes mais dont la lucidité puissancielle,
instante à tous le signes, fonde, avant tout savoir, la possibilité même du
signifier. (…) Seuls les poètes habitent encore les aîtres de la langue, qui sont
le fond sur lequel ils bâtissent la langue à chaque fois singulière d’un poème.
(…) La question des rapports entre langue et pensée ne peut être posée
authentiquement qu’à ce niveau radical, où elles s’articulent intérieurement
l’un à l’autre à l’état naissant.50
MALDINEY, 2012, p. 07 – itálicos nossos
Em seus textos, até nos momentos mais silenciosos e íntimos, está a linguagem,
nas suas mais diversas formas. Silêncio, afasia, sussurro, balbucio, gaguejo, palavra,
frase, prece, poesia, risco…
Para a historiografia da arte brasileira, Mira traz uma experiência existencial
nova, aquela do pós-guerra, isto é, do exílio após o holocausto. Neste sentido, talvez
50 Tradução nossa: “Os foros íntimos da língua são, além de seu estado construído, os locais do pensamento ainda não tematizado em signos mas onde a lucidez potencial, instante a todos os signos, funda, antes de todo saber, a possibilidade mesma do significar. (...) Apenas os poetas ainda habitam os foros íntimos da língua, que são o fundo sobre o qual eles constroem a cada vez a língua singular de um poema. (...) A questão das relações entre língua e pensamento não pode ser autenticamente posta a não ser nesse nível radical, onde eles se articulam internamente um ao outro no estado de nascença”. Cabe notar aqui que, em francês, a palavra aître, para além de significar o foro íntimo, traz em si a semelhança sonora com être, i.e., ser.
53
possamos reconhecer na subjetividade introspectiva e interrogativa de Schendel a
impossibilidade de se comunicar essa experiência, um procedimento de recuperar ou
reconstituir uma linguagem possível, perdida na guerra e no exílio. Uma linguagem que
busca a si mesma.
Why do we write? A chorus erupts.
Because we cannot simply live.
SMITH, 2017, p. 93 51
Ou talvez possamos pensar em sua poética como uma que deseja não significar a
qualquer custo, mas esvaziar a tagarelice do mundo, traçando silêncio. Em oposição a
um mundo cada dia mais habitado por imagens e slogans (tanto se pensarmos na época
em que a artista produzia, mas também no momento em que arrisco essas palavras), ela
propôs (e propõe) um vocabulário de sinais mínimos, manuscritos e anacrônicos. Assim
– quiçá –, possamos encontrar em Mira, em seu traço e em sua escritura, um gesto de
corrosão.
Acredito que em Mira, em sua escrita, existam esses dois instantes, que existem
concomitantemente. O instante do silêncio (ou do emudecimento) e o do desejo da
linguagem. Ela busca, creio eu, fundar uma nova língua e, por conseguinte, um novo
vocabulário. E, de maneira semelhante ao que fazemos ao aprender uma língua nova,
Mira recorre primeiro às línguas que conhece: português, alemão, italiano, inglês (fig.
15). Porém elas não são mais suficientes, falham, como toda língua falha. Eis então que
brota uma nova língua, deflagra-se, sem, contudo, ser ainda língua, antes, é o momento
entre o inarticulado e a língua. Mira escreve os lampejos desse entre.
*
O que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a sua
força empírica, para o símbolo, com toda a sua memorabilidade e relativa
eternidade. (...) Reformulando, é esta minha obra a tentativa de imortalizar o
fugaz e dar sentido ao efêmero. Para poder fazê-lo é óbvio que devo fixar o
próprio instante, no qual a vivência se derrama para o símbolo, no caso, para
a letra.
51 Tradução nossa: “Por que escrevemos? Um coro irrompe, / Porque não podemos apenas viver”.
54
No começo, pensava que para tanto bastava (...) sentar-me a esperar que a
letra se forme. Que assuma sua forma no papel e que se ligue a outras numa
escrita pré-literal e pré-discursiva. Mas sentia, desde o início, que isto
poderia ter êxito apenas se o papel fosse transparente. Agora sei melhor
avaliar porque tinha então aquela impressão: a letra, ao formular-se, deve
mostrar o máximo de suas faces, para ser ela mesma.
Surgiu, no entanto, um segundo problema. A sequência de letras no papel
imita o tempo, sem poder realmente representá-lo. São simulações do tempo
vivido, e não captam a vivência do irrecuperável, que caracteriza esse tempo.
Os textos que desenhei no papel podem ser lidos e relidos, coisa que o tempo
não pode. Fixam, sem imortalizar, a fluidez do tempo. Por isso, abandonei
esta tentativa.
Abandonei, porque descobri o acrílico, que parece oferecer as seguintes
virtualidades: a. torna visível a outra face do plano, e nega, portanto, que o
plano é plano; b. torna legível o inverso do texto, transformando portanto o
texto em anti-texto; c. torna possível uma leitura circular, na qual o texto é
centro imóvel e o leitor é móvel. Destarte, o tempo fica transferido da obra
para o consumidor, portanto o tempo se lança do símbolo de volta para a
vida; d. a transparência que caracteriza o acrílico é aquela falsa transparência
do sentido explicado. Não é a transparência clara e chata do vidro, mas a
transparência misteriosa da explicação, de problemas.
SCHENDEL apud SALZSTEIN, 1996, p. 256
Lembra-me Clarice:
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão
fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também
não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é
da coisa. (...) Quero possuir os átomos do tempo. E quero capturar o presente
que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade
me escapa, a atualidade sou eu sempre no já. (...) Só no ato do amor – pela
límpida abstração de estrela do que se sente – capta-se a incógnita do instante
que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável,
maior que o acontecimento em si (...).
LISPECTOR, 1998(a), pp. 09-10.
*
55
Na década de 1960, entre 1964 e 1967, Mira dedicou-se a uma série de trabalhos,
suas Monotipias (figs. 12 - 14) – que somam mais de 2000 exemplares – , em papel-
arroz japonês, material que ganhara de presente.
Uma vez ganhei um papel japonês finíssimo aos montes (...). Tempos
depois, mais ou menos um ano, comecei a mexer com aquele papel, mas
não dava, porque ele rasgava, não aguentava água (...). Aí conheci uma
moça que fazia monotipias e [usei] a técnica da monotipia, mas não
visando a monotipia, mas simplesmente por uma razão prática de não
rasgar o papel cada vez que eu o manuseasse, [para que] pudesse desenhar
em cima dele.
SCHENDEL in DIAS, 2009, p. 189
A translucidez do material escolhido por Mira, o papel japonês finíssimo, revela a
buscada artista pela transparência, num desejo de mostrar que o lado de trás está no lado
da frente, o dentro e o fora ao mesmo tempo; ou, como disse a artista em entrevista, um
desejo de “acabar com o atrás e o a frente, com o antes, com o depois” 52. Mas o
transparente do papel de arroz não é evidente como o do vidro, possui uma diafaneidade
que obriga o olhar a redefinir o que é opaco e o que é transparente. A opacidade, ainda
que mínima, dessas folhas revela uma espessura, como uma pele condicionando nossa
visibilidade: vemos através.
Na técnica da monotipia, menos badalada dentro das artes visuais, coexistem
características da gravura, do desenho e da pintura: “pinta-se ou desenha-se com tinta
qualquer sobre a superfície, para posteriormente se pressionar de forma manual ou
mecânica até se conseguir uma estampa única e irrepetível” 53. A característica mais
importante dessa técnica está justamente nesse termo “irrepetível”, como revela a
própria etimologia do termo: /mono/ - prefixo de origem grega (mónos) que significa
um só (sozinho, unidade, único) -, + /tipia/ - sufixo de origem também grega (typo) que
significa figura impressa e, por extensão, impressão.
Mira teve que adaptar essa técnica a seu suporte. Para fazer suas monotipias Mira
colocava tinta em uma placa de vidro, salpicando de talco (para impedir que a tinta
encharcasse o fino papel) e deitando o delicado papel-arroz sobre o vidro para,
52 SCHENDEL, Mira. Entrevista ao Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira da FAAP, São Paulo, 19 de agosto de 1977. In: PÉRES-ORAMAS, Luís., 2010. p. 60. 53 CATAFAL, Jordi; OLIVA, Clara. A gravura. Lisboa: Editorial Estampa, 2003. p. 158.
56
posteriormente, fazer marcas nas costas do papel com a própria unha ou outro
instrumento de ponta a sua disposição.
Mira Schendel faz grande quantidade de desenhos em papel de arroz,
conhecidos também como Monotipias, de 1964 e 1966. Ela os realiza
entintando uma lâmina de vidro sobre a qual o papel é pousado para, então,
traçar sobre ele as linhas, pelo avesso, usando a unha ou algum
instrumento pontiagudo. A opção em desenhar pelo verso tem uma
importância conceitual para a artista, que pesquisa assiduamente um meio
de chegar mais próximo da transparência.
(Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, online)
O resultado da operação monotipia, à unha, de Mira, são linhas, traços, formas,
letras, palavras e até mesmo frases que parecem ter sido secretadas pelo próprio papel,
parte de sua trama, impossibilitando o uso dos termos recto (anverso) e verso. A
absorção de tinta se dá em ambos os lados, i.e., apesar de pressionado no verso, o traço-
desenho é feito nas duas faces. O gesto-risco, repetido à exaustão, evidencia, pela
saturação inebriante de aparecimentos, o que há de ilegível em toda escrita. A escrita de
Mira (aqui incluídas as experiências em que ela, a escrita, se decompõe e se atomiza em
linhas reta ou circular) resiste ao sentido, recusa significações impositivas. Ela
desorganiza as palavras, a sintaxe, insubordina a escrita ao insistir no fazer. No final, ela
é o traço, o movimento da mão.
E a folha de papel de arroz, a frágil e exigente folha japonesa, se afirma,
ativamente, não apenas como suporte, mas como o próprio trabalho. Ora ele manifesta
sua leveza, como que alçando voo (algo notado especialmente em seus Trenzinhos,
desdobramento das experiências com este papel), ora suga a tinta impregnando sua
trama, como se fosse a própria pele. Pode-se dizer, então, que a escrita de Mira nasce do
e com o suporte, essa superfície de papel, nunca virgem. Ao mesmo tempo premeditada
e impulsiva, esta escrita vem à luz na textura e no grão deste papel. Espécie de
palimpsesto.
A série de monotipias é um marco na obra de Mira, pois permite que ela explore a
transparência e desenvolva, ao longo dos anos subsequentes, outras séries de trabalhos
emblemáticos em sua trajetória que desdobram essa questão e o próprio uso do papel
japonês, como Objetos Gráficos, Droguinhas e Toquinhos.
57
Mira queria articular a vivência imediata com a perenidade do símbolo, i.e., “fixar
o próprio instante, no qual a vivência se derrama para o símbolo, no caso, para a letra”.
A superfície fértil e infinita dos papéis (a seiva), seu vazio ativo, parece ecoar esse
desejo (vão?) de captar a vivência fugidia, reinterpretando o instante no símbolo
gráfico. Os vazios de Mira reverberam seus traços, fazem-nos vibrar, dotam-nos de luz.
Vazio de palavra, vacilação, balbucio.
As páginas das Monotipias de Mira, em “papel japonês finíssimo”, constituem
verdadeira constelação silenciosa, a ordem que emerge do caos do céu, fixa, porém
aberta. Cada folha é como uma estrela, singular em seu brilho. Juntas, uma interage com
a outra, contagiando-se mutuamente com seus brilhos, refletindo-se, iluminando-se.
Fig. 12 Mira Schendel. Sem título, 1964. Óleo sobre papel japonês. 47x23cm Museu Blanton de Arte, Austin, EUA. Fig. 13 Mira Schendel. Sem título, 1965. Óleo sobre papel japonês. 47x23cm
58
Fig. 14 Mira Schendel. A criação do mundo (série Monotipias), 1965. Óleo sobre papel japonês.
47x23cm (cada)
*
uma arte de vazio
onde a extrema redundância começa a gerar informação
original
uma arte de palavras e de quase palavras
onde o signo gráfico veste e desveste vela e desvela
súbitos valores semânticos
uma arte de alfabetos constelados
de letras-abelhas enxameadas ou solitárias
a–b –i(li)–aa
onde o dígito desperta seus avatares
num transformismo que visa ao ideograma de si mesmo
que força o digital a converter-se em analógico
uma arte de linhas que se precipitam
e se confrontam por mínimos vertiginosos de espaço
sem embargo habitados por distâncias insondáveis
de anos-luz
59
uma arte onde a cor pode ser o nome da cor
e a figura o comentário da figura
para que entre significante e significado
circule outra vez a surpresa
uma arte-escritura
uma semiótica arte de ícones índices símbolos
que deixa no branco da página seu rastro numinoso
esta a arte de Mira Schendel.
Entrar no planetarium onde suas composições
se suspendem desenhos estelares
e ouvir o silêncio como um pássaro de avessos
sobre um ramo de apenas
gorjear seus haicais absolutos
CAMPOS, 1966 54
Fig. 15 Fotografia da exposição retrospectiva Mira Schendel 2014. Pinacoteca do Estado de São Paulo
*
54 Publicado no catálogo da retrospectiva de Mira Schendel no MAM, em 1966.
60
“O que me preocupa é captar a passagem”. E o que é a passagem? Passagem é
um lugar-não-lugar, um entre-lugares, o intervalo em que o pensamento se detém a um
passo de alguma coisa (o sentido?). É o lugar daquilo que ainda não tem nome, estado
de nomadismo em que a palavra não se fixa, abismo da língua. A passagem se orienta
ao mesmo tempo para duas direções opostas, para trás (verso) e para frente
(recto/prosa). Talvez a passagem seja o ovo de Clarice 55 – “[o] ovo é uma coisa
suspensa. Ter uma casca é dar-se. (...) O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo,
quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa (...). (...) Ele é um
dom” (LISPECTOR, 1998(b), pp. 50-51) – , ou a transparência que tanto encantou
Mira. A passagem é o caminho da incerteza e da indiscernibilidade que revela o vazio
em torno do qual se cria a palavra. Deixar transparecer a potência negativa, i.e.,
inacabamento, inconclusibilidade e incerteza no coração da língua.
Por que Mira escreve? “O que me preocupa é captar a passagem”, ela nos
confessa novamente. Ainda que seja impossível de fato captá-la (i.e, fixá-la) – “[v]er o
ovo é impossível” (ibidem, p. 49) – , escrever é correr o grande de risco de fazê-la
irromper – “Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora”
(ibidem)– , transitoriamente – por um breve segundo apenas – , para desaparecer logo
em seguida.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar
vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente, mal vejo o ovo e já
se torna ter visto um ovo há três milênios. – No próprio instante de ver o ovo
ele é a lembrança de um ovo. – Só vê um ovo quem já o tiver visto. – Ao ver
o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um
dia chegar a ver o ovo. (...)
Ibidem – itálicos nossos
A passagem – que é o ovo e também o instante-já: “[v]er um ovo nunca se
mantém no presente”, “quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é
interdito” – só se capta no ato do amor: “[a] galinha ama o ovo”. Escrever é aceitar o
55 Interessa-me também nessa analogia da passagem com o ovo, o fato de a palavra “ovo” ser um palíndromo perfeito: o ovo, para além de permitir uma leitura que poderíamos chamar de circular ou a contrapelo, é o inverso do ovo. Assim como a passagem, que se orienta para direções opostas: ir e voltar.
61
mistério da galinha, de ser agente perpetuador do ovo e buscar descobrir o quase
inalcançável ovo. Nesse sentido, a escrita de Mira configura-se como escrita-galinha,
depositária e disfarce da passagem-ovo; é o próprio buscar-chocar.
*
Mira é o nome que Myrrha escolheu para si e com o qual assinou seus textos (suas
imagens-poema). Em português “mira” designa também um verbo, “mirar”, do latim
mirari, contemplar, admirar. Mais que isso, mira é um imperativo. Um imperativo ao
olho, “mira”, “veja”. É, ainda, um indicial, ou seja, aponta para algo. Indica algo que
permanece, na maioria das vezes, inominado. Entrelaçado a uma insuficiência da
linguagem para dizer, mas que mostra (dizendo 56 ), e o mostrar é o instante de
desvelamento (HOMEM, 2011, p.36). “Mira” é a voz e o movimento do corpo (o dedo a
apontar) que indicam a coisa, não dizendo, mas mostrando enquanto diz.
Olhe para o que permanece inaudito.
*
56 Dizer que, etimologicamente, já é mostrar. Vem do latim dicere, da raiz indo-europeia –deik, que significa indicar ou apontar (raiz que também está presente na palavra “dedo”).
62
parte III.
desfios e aproximações
imagino como seria te amar
teria o gosto estranho das palavras
que brincamos
e a seriedade de quando esquecemos
quais palavras
Ana Cristina César
63
Terceira parte desta investigação, as linhas que se seguem constituem uma
tentativa de aproximar ainda mais Ana Hatherly e Mira Schendel, desta vez a partir de
algumas poucas obras selecionadas – cuja sequência de aparecimento não é cronológica
– que analisaremos mais atentamente, demorando nosso olhar sobre elas de forma a
revelar afinidades poéticas e mesmo formais, propiciando afetações mútuas e conversas
entre essas duas fiandeiras. Fiandeiras porque são duas mulheres cuja poética é a do
fiar, i.e., de transformar em fio, de um saber e um fazer manual que desnovela o tecido
da linguagem.
Rasgada em duas, essa trama começa por falar de trabalhos que revelam
nascimentos da escrita, no tumulto e no silêncio original antes de todo escrever (ou
ousar escrever); terminando, talvez abruptamente, numa queda amorosa da carta-letra
(um cair de amores). Depois, junta-se à trama as figuras de três mulheres mitológicas,
famosas por seus gestos de tecer e fiar: Aracne, Ariadne e Penélope. É a partir delas que
as análises de algumas obras tomam corpo; para de três chegar a dois, Mira e Ana;
entrelaçando cinco mulheres (ou melhor seis – é uma outra mulher quem tece esses fios)
neste tecido.
As análises (que chamo desfios no título desta parte; análise vem do grego aná +
lysis, indicando um gesto de afrouxar ou soltar, daí, desfiar) de cada trabalho se dão de
forma independente, podendo ser lidas em qualquer ordem, tecendo um texto em
fragmentos. Fragmentos que se comunicam e tecem um conjunto, cada um deles a
iluminar e escurecer os outros. Evidentemente, aqui se estabelece um fio condutor que,
acredito, fará brilhar em cada um desses desfios as conexões com os demais.
Este é o último capítulo.
*
1 Do tumulto e o silêncio dos nascimentos; e da impossibilidade amorosa
64
Fig. 16 Mira Schendel. Sem título, 1964. Técnica mista sobre madeira. 92x91cm Coleção Gérard Loeb
Fig. 17 Mira Schendel. Sem título, sem data. Técnica mista sobre juta. 50,5x50,5cm Coleção particular
65
A escrita de Mira nasce com seu suporte, da própria superfície de papel (ou da
tela) – nunca virgem. Como palimpsesto, essa escrita, premeditada e impulsiva a um só
tempo, vem à luz na textura e no grão do suporte. Suporte que é, ainda, a parede das
inscrições de outrora, ou ainda as tábuas e pedras de antigas escritas. Fronteira e suporte
sensível entre visível e invisível (dizível e indizível). Talvez o caminho de Mira seja
justamente um caminho de volta. Do alfabeto à adivinhação e à caverna. Reconquistar,
como o quis Mallarmé e também os poetas concretos, esse espaço que, a nós utentes do
alfabeto fonético, por tanto tempo nos escapara. Percurso de reaprender o suporte
enquanto parede (ou casco de tartaruga, ou víscera de animais); recriar a parede, suas
texturas e camadas, acúmulos de tempos imemoriais. Religar o traço (wen) ao olhar, o
gesto da mão ao gesto de contemplar.
Nos tempos antigos, Pao Xi reinou sobre o mundo. Erguendo os olhos,
contemplou as figurações que estão no céu e, baixando os olhos, contemplou
os fenômenos que estão sobre a terra. Considerou as marcas (wen) visíveis
sobre o corpo dos pássaros e dos animais, bem como as disposições
vantajosas oferecidas pela terra [...]. Começou então a criar os oito trigramas
a fim de comunicar-se com o poder da Eficiência infinita.
ZHOUYL apud JULLIEN apud CHRISTIN, 2008, pp. 343-344
A escrita é filha da adivinhação. Escrever é criar (“começou então a criar”),
revelar, em silêncio, a cifra do mundo. É possível sondar o silêncio linguisticamente,
fazer o dito brilhar pelo não-dito: “só a palavra nos põe em contato com as coisas
mudas” (AGAMBEN, 1999, p. 112).
Reconstruir essa parede inaugural parece ser o intento de Mira num grupo de
pinturas, chamadas Pinturas matéricas 57 , em que a saturação da têmpera acrescida de
outros materiais (gesso, areia, argila, pedra, cimento) sobre suportes diversos (como
madeira, tela de lona, juta) se dá até revelar, na densidade matérica da textura
construída, os grânulos da antiga parede. Nessa parede recriada é registrado um
acontecimento físico mínimo, o traço. Em Sem Título (1964) [fig. 16], ele, o traço,
57 As Pinturas matéricas são: “(...) têmperas de superfícies acidentadas e encorpadas, em cuja composição entram materiais diversos, como areia, argila e fragmentos de pedras, sobre telas de lona, juta ou placas de Eucatex” (SALZSTEIN, 1996, p. 25).
66
assume a forma de um quadrado irregular em suas arestas finas e escuras sobre uma
superfície densa e monocromática, granítica.
Em outros momentos da sua pintura, como em Sem título (s/d) [fig. 17] já
aparecem palavras (como win / ter), expressões e fragmentos de letras e palavras que
dividem o espaço da tela encorpada com incisões e linhas aleatórias. As próprias partes
inteligíveis partilham dessa característica sulcada, escavada. Lembram-nos que a letra
também já foi oca.
*
67
Figs. 18 Ana Hatherly. A romã, 1971. Colagem, ponta de feltro e lápis de cor sobre postal. 14x8,9cm Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Fig. 19 Ana Hatherly. A romã, 1971. Colagem, ponta de feltro e tinta-da-china sobre postal. 14x8,9cm Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Fig. 20 Ana Hatherly. A romã, 1971. Tinta-da-china sobre papel. 14x8,9cm Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.
No início da década de 1970, período em que viveu na capital inglesa, Ana
Hatherly produziu, a partir de uma imagem de uma romã datada do século XVI, uma
série de vinte e três desenhos-pinturas de pequenas dimensões. À série, dá o nome
Metamorfoses da Romã. Em suas romãs, Ana empreende uma jornada que vai da
legibilidade da forma da fruta até a indiscernibilidade de uma mancha cromática, pura
visualidade. Submersão da fruta-imagem-palavra no papel. Percorre um caminho de
68
volta, da pintura à mancha. Pintura que, como ensina Benjamin 58, é sempre mancha (o
gesto do pintor é o de manchar o papel) mas que, pela composição – que é uma
impregnação, uma fecundação da palavra na mancha – , deixa de ser mancha para ser
pintura, ou mancha composta ou ainda mancha dita. Ana retorna, então, ao momento
antes da nomeação da mancha, i.e., ao momento original que é o instante da mancha, o
instante antes da língua falar, antes da mancha ser atravessar por um querer dizer.
E a mancha é também um avivar da imagem, que se extrai de dentro (da romã)
para fora: é um corar-se de vermelho sanguíneo – “a mancha se destaca, de dentro para
fora” (BENJAMIN, 2013, p. 83); o sangue vem sempre de dentro. Como num sacrifício
da fruta 59, aberta e explodida (granada, em espanhol, é a fruta, a cor e a arma) em seus
grânulos, manchando de suco-sangue-carmesim o papel: romã fecundante 60, deixa atrás
uma nódoa vermelha úmida, baba alcaçuz 61. O sacrifício tem sempre a ver com um
rasgo, e para rasgar é preciso fazer correr o sangue (MOLDER, 2017, p. 29) 62. A romã
explodida em grânulos inundando o campo do possível – “o sentido é uma mala fechada
que nunca teve fecho” (HATEHRLY, 2006, p. 110). “O sangue tinge, o sangue é
pintor” (ibidem, p. 29).
A romã é como o coração, organismo vivo e fibrilar, que se inscreve na página
branca: “na página branca / o coração indelével” (ibidem, 2005, p. 61). Minhas
Senhoras, estamos numa sala de anatomia 63: “[d]eve ser por aqui, aurícula direita,
aurícula esquerda, ventrículo direito, ventrículo esquerdo, aorta, um pouco mais para
cima, é aqui!” (idem, 2006, p.117). “O coração é como um fruto / cresce / amadurece /
58 No ensaio Sobre a pintura ou Signo e mancha, publicado no livro Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2013 (2ª edição), pp. 81-88. 59 Na arte cristã, em imagens do Jesus menino, a romã muitas vezes aparece como símbolo da Paixão, as gotas vermelhas de seu suco prefigurando o sangue que ele irá derramar. 60 Iconograficamente, além da referência ao sacrifício crístico (ver nota anterior), a romã é associada, pela abundância de suas sementes, com fertilidade e fecundidade. Na mitologia grega era símbolo de Hera e Afrodite. Era também a fruta do submundo dada por Hades à Perséfone como forma de enganá-la e raptá-la, levando-a aos seus domínios. 61 Do poema Alcoólicas V de Hilda Hilst; transcrevo aqui a primeira estrofe: “Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito / Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado / Salpicado de negro, de doçuras e iras. / Te amo, Líquida, descendo escorrida / Pela víscera, e assim esquecendo”. 62 “A nossa tradição mais antiga do ponto de vista da linguagem (o sânscrito) é a tradição védica (Índia), e nessa tradição a concepção do universo procede de uma ideia de que, para haver existência, é preciso haver sacrifício. O sacrifício tem sempre a ver com um rasgão no tecido do todo, com separação por desmembramento (isto é, a existência do mundo é concebida por consequência de um desmembramento), com o correr de sangue. Para rasgar, para desmembrar, é preciso fazer correr o sangue” (MOLDER, 2017, p. 29) 63 Referência ao romance O Mestre, em que se lê: “Meus Senhores, estamos numa sala de anatomia” (2006, p. 91).
69
mas não cai: / se alguém o quiser / não morre” (idem, op. cit., p. 47). Coração que é
anagrama e metáfora de tudo, “essa palavra vale por todas as espécies de movimentos e
de desejos” (BARTHES, 1981, p. 60). Que se alguém o quiser, não morre. Como não
morre o amor quando dado, em ofertório. Como não morre o fruto, a romã. Rasgada,
aberta e espremida, seus grânulos vertem o suco sanguíneo: “o sangue é uma rosa
líquida / que a si própria se persegue / nunca chega ao fim / só para de correr” (idem, p.
67).
As metamorfoses da fruta-víscera em mancha-sangue – metamorfoses
apaixonadas, autodilaceradas (todo corte é um dar-se) e impelidas pelo desejo amoroso
– traçam esse movimento labiríntico de perseguir-se a si própria, e nessa perseguição a
romã explode e, de ROMÃ, passa a escrever, dentro da nódoa mesma (a mancha apela o
nome), AMOR. Arte amatória que é sempre também da ordem da impossibilidade (“nós
é sempre um dito de um só (...)” [DERRIDA, 1996, p. 61]. Não se pode amar
separadamente e não se pode amar senão separadamente (...) [idem, apud BERNARDO,
2014, p. 258]), como nos revela a artista portuguesa em seu romance O Mestre (1963),
ou em À tua espera, poema de A Neo-Penélope (2007):
(...)
O outro é TU-EU
Paradoxal oxímoro
Impossibilidade ansiosa.
Amar é uma tempestade de areia
Uma bruma vítrea.
(...)
HATHERLY, 2007, p. 16
A mancha, o borrão: a marca de uma ausência. Ausência retratada enquanto
excesso de cor – “A palavra vem e depois vai / em tudo sangra / o signo da ausência”
(idem, 2005, p. 81) – , que é também carta-mapa para voltar à romã, porque há sempre
70
algo que se mostra na mancha, como se ela procurasse um intermediário vivo 64: a
mancha é cartografia.
– (...) O que aqui está na vossa frente é um mapa enrolado. Não temos
mais que desenrolá-lo e podemos seguir as múltiplas sugestões de viagens
que nele se encontram apontadas. O que está na vossa frente é uma
mensagem selada. Portanto, teremos que a violar para a interpretarmos.
Comecemos por quebrar o selo. Queira passar-me este bisturi. (...)
idem, 2006[b], p. 92
*
Fig. 21 Mira Schendel. Sem título (da série Paisagem noturna de Itatiaia), 1978. Nanquim e aquarela ecoline sobre papel japonês. 47x23cm
64 “A mancha vem de dentro para fora, e nela se impregna a força da palavra linguística; o sinal marca-se de fora para dentro, como uma linguagem que se escrevesse, não havendo nele nem impregnação nem concepção da palavra como na mancha. Pela mancha não se indica, não pode dizer: é este; mas, por este, há sempre algo que mostra, como se a mancha procurasse um intermediário vivo” (MOLDER, 1986, pp. 191-192).
71
Na obra Sem Título (série Paisagem noturna do Itatiaia), de 1978 (fig. 21),
aguadas quase transparentes de cinza e preto parecem inundar o frágil papel japonês nos
dois terços superiores da imagem (como um abismo onde o vento se afoga). Paisagem
de bruma ou nuvens que borram o papel deixando ver a luz que há na sombra do
anoitecer. Que nos pede que sejamos videntes, ou seja, que façamos da vista a visão 65
ao adivinhar na fumaça a presença das montanhas. O terço inferior é dominado por um
maciço em nanquim preto, contrastando com o aparente vazio branco e cinza claro à
esquerda. É desse espaço vazio, que se deixa ver também entre a névoa em cima, que
emerge a paisagem, como se pela primeira vez. Ou talvez para o vazio ela esteja a
regressar. No movimento cíclico de aparecer-desaparecer que caracteriza o pensamento
Ch'an (zen) 66.
Na cultura do ideograma, poesia, caligrafia e pintura estão intimamente ligadas.
Filhas de um mesmo gesto original - a primeira pincelada - todas fazem parte de um
sistema linguístico que não procura descrever o mundo, mas sim organizar e revelar as
conexões entre as coisas no universo. Tomemos os conselhos do pintor chinês de
paisagens Chen Koua expostos no século XII por Mong-k'i pit'na:
Você deveria inicialmente procurar uma parede em ruína, e estender
cuidadosamente sobre essa parede uma peça de seda branca. Então apoie-se
sobre essa parede em ruína, e dia e noite a contemple. Quando a tiver olhado
por bastante tempo através da seda, verá sobre a parede arruinada saliências e
trechos planos cujo traçado sinuoso formará perfeitamente o desenho de uma
paisagem. Guarde bem em seu espírito a imagem percebida por seus olhos, e
então as saliências formarão as montanhas, os fundos formarão as águas, os
vazios formarão os vales e as falhas os cursos d'água. As partes claras
constituirão os primeiros planos e as partes escuras os planos afastados.
Graças à faculdade que o espírito tem de apreender as coisas à ideia de as
instaurar, você acreditará ver ali personagens e animais, arbustos e árvore,
65 Visão aqui tem acepção dupla; é o ato de perceber o mundo pelos olhos e, ao mesmo tempo, enxergar divinatoriamente. 66 Mira, como muitos de seus contemporâneos – aí incluída Ana Hatherly – estudou a filosofia oriental do Zen Budismo. O encontro de Mira com a tradição oriental, notadamente a chinesa – intensificada durante seu período em Londres para a exposição Signals, em 1965, ocasião em que se aproximou do artista e poeta chinês Li Yuan Chia, que serviu de tradutor para Mira, uma vez que ela não entendia muito bem o idioma local: “Mira e Li tornaram-se bons amigos, porque ela tinha uma admiração pela cultura zen, taoísmo, I Ching. Eles se sentiram bem próximos quando ela estava em Londres” (MEDALLA, D. apud DIAS, 2009, p. 218) – pode ser igualmente sentida em outras séries da artista, como I Ching (década de 1970) e Paisagens Chinesas (década de 1980).
72
criaturas que voam e se movem, indo e vindo. Quando [esse espetáculo] se
impuser a seu olhar, você governará seu pincel ao sabor de seu pensamento.
Então no silêncio da contemplação, em estado de comunhão espiritual, a
paisagem lhes aparecerá em sua verdade espontânea, como que trabalhada
pela Natureza, sem nada que lembre uma obra humana. Eis o que chamamos
de pintura viva.
VANDIER-NICOLAS apud CHRISTIN, 2008, p. 344
Percebemos então que a pintura de paisagens tradicional chinesa não está
interessada em representar minuciosamente a forma exterior, o que lhes deve soar como
um contrassenso. Na verdade, a esses artistas interessa criar algo vivo através do olhar e
da contemplação, i.e., revelar em silêncio o momento de origem das coisas. Origem,
como nos ensina Benjamin, difere substancialmente de gênese. Origem, Ursprung, é
antes aquilo que emerge do processo de devir e desaparecer 67.
Reconstituição que se assume incompleta e inacabada, a paisagem oriental se quer
ilimitada, dotada de um ponto de vista que parece flutuar e borrar a linha do horizonte.
Assim ele, o horizonte – linha que no Ocidente manifesta um limite – , se transforma,
no Oriente, não em signo de separação, mas em um verdadeiro traço de união entre a
terra, o homem e o céu, tríade que é fundamental para cosmologia chinesa.
Através da justaposição de um plano terrestre e um plano celeste (uma espécie de
“perspectiva vertical”), a paisagem chinesa visa criar a impressão de uma profundidade
incomensurável. A paisagem oriental, em verdade, não é um espetáculo exterior, mas
um verdadeiro horizonte em que se articulam com igual importância o que pode e o que
não pode ser visto, mas apenas adivinhado. O horizonte, aqui, é o que dá acesso aquilo
que não se pode ver no que é visto (o que respira em toda imagem). A paisagem
exprime, portanto, o ensinamento da comunicação mágico-divinatória entre o visível e o
invisível (o dizível e o indizível), já que restaura o momento de encontro do eu com o
mundo.
67 “A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano do factual, do cru e manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado...” (BENJAMIN, 2013, p. 34)
73
Todas as coisas sob o Céu têm seu visível-invisível [...]. A paisagem que
fascina um pintor deve, assim, comportar, por sua vez, o visível e o invisível.
Todos os elementos da natureza que parecem finitos são na realidade ligados
ao infinito.
YEN-T'U apud CHENG, 1991, p. 86-87
A paisagem-horizonte oriental é uma pele, aberta em seus poros, deixando ver a
paisagem além de toda a paisagem. Nesse sentido então, talvez a “perspectiva vertical”
do extremo oriente se aproxime mais da acepção original do termo perspectiva, do latim
perspicere, literalmente “ver através”.
As paisagens de Mira se dão assim, orientalmente. Oscilam entre o cobrir e o
revelar. Como nessa obra da série de Itatiaia, uma paisagem revelada (ou melhor seria
adivinhada) em papel de arroz, o papel tão importante na trajetória de Mira. Papel-pele
que se transforma na seda sobreposta à parede arruinada do ensinamento do mestre
chinês.
A ausência da perspectiva linear em Mira, ou seja, do ponto de vista fixo, abole o
lugar de mero espectador a que nos acostumamos, é como se estivéssemos não olhando
de fora, de um lugar privilegiado, mas antes estamos dentro da imagem, no papel-
existência tão inexplicavelmente prenhe do tudo e do nada de onde emergem as dez mil
coisas 68. Estamos no mesmo sopro, partilhando dos segredos desse movimento-origem.
Céu, terra e homem, os Três Espíritos 69, unidos.
Olhar a paisagem de Mira é reconstruir com a visão o elo entre as coisas e o sopro
que as anima, é preencher a mente com esse sopro. No final, a paisagem não é
simplesmente o que se manifesta, mas também o vazio que circunda e como o cheio e o
vazio se animam mutuamente. Ativamente o vazio, escreveu Mira. Como nas paisagens
em pergaminho de Gao Kegong (1248-1310), vazio-cheio opera como procedimento
poético que permite olhar além.
68 Numa formulação de Lao-zi (Lao Tzu, literalmente "o velho mestre"), fundador do Taoísmo, sobre a cosmologia chinesa, no capítulo 42 de Tao Te Ching (Dao-de-jing ou O livro do Caminho e sua Virtude) lê-se: "O Tao da Origem dá à luz ao Um / O Um dá à luz ao Dois / o Dois dá à luz ao Três / o Três produz as Dez Mil Coisas / As Dez Mil Coisas tomam Yin em suas costas / E abraçam Yang em seus seios / Harmonia nasce no Vazio, a partir do Sopro Mediano" (tradução nossa a partir do inglês em CHENG, 2016) 69 Os Três Espíritos ou Entidades, em uma interpretação do número Três gerado a partir do Dois (ver nota anterior), designaria Céu (Yang), Terra (Yin) e Homem (que possui as virtudes de Terra e Céu em seu espírito, e o Vazio em seu coração).
74
(em sussurro: Escrevi essas linhas olhando pela janela da casa de meus pais. Daqui, vejo o conjunto de
montanhas que forma a Serra da Mantiqueira, e que parece querer se esconder na penumbra de um céu
que anoitece. Daqui, através da janela, vejo as mesmas montanhas que Mira viu outrora, talvez também
sob um céu invernal a anoitecer. Não estou em Itatiaia, mas vejo as mesmas montanhas daqui, de
Resende. Itatiaia, quando da visita de Mira, ainda fazia parte do território desta minha cidade natal 70. Li em algum lugar que não há paisagem sem horizonte; aqui o horizonte tem sempre o contorno da
rocha em contraste com o firmamento) 71.
*
Fig. 22 Mira Schendel. Sem título (da série Objetos gráficos), 1972. Letraset sobre papel japonês entre chapas de acrílico transparente. 95x95x1cm Coleção Clara Sankovsky
70 Itatiaia, antes distrito de Resende, emancipou-se em 1989. 71 Escrevi para a revista Círculo de Giz um artigo, intitulado Da janela: Itatiaia, Mira e o Oriente, que é uma versão ampliada das análises feitas aqui sobre esta obra de Mira. O artigo está disponível em: <http://www.circulodegiz.org/edição-atual>.
75
Toda a série Objetos Gráficos é uma investigação acerca da espessura do signo
gráfico. Sua estrutura – as obras desta série são produzidas sobre papel japonês
finíssimo, de onde surgem letras, palavras, citações (em decalque, caligrafia, letraset...),
e colocadas entre duas chapas de acrílico transparente (por vezes, Mira coloca também
do lado exterior dessas chapas signos gráficos que, vistos pelo lado da outra chapa,
aparecem como sombras ou fantasmas) – e seu modo de exposição – são pendurados
por fios de náilon quase invisíveis que os suspendem e afastam da parede,
possibilitando assim que sejam circundados permitindo vários pontos de acesso. São a
um só tempo escultura escrita e quadro escrito.
Aqui, neste objeto gráfico de 1972 (fig. 22), Schendel nos revela uma nuvem de
poeira tipográfica, um rastro de letras embaralhadas que parecem a um só tempo
registrar um movimento de desenrolar-se da mancha escura em seu núcleo, e também o
sentido inverso, como se esse núcleo fosse um buraco negro que suga e devora uma
nebulosa espiralda de signos em letraset. Duvidoso movimento virtual de um “alfabeto
enfurecido”.
A explosão de letras talvez seja uma outra forma de captar o instante de
nascimento do signo, aquele em que “um acontecimento se derrama em letra”, seu big
bang. Um movimento centrífugo, de dentro para fora do sujeito, tornando-se linguagem.
Concomitantemente, há também um movimento centrípeto, de fora para dentro,
sugerindo que todo nascimento comporta em si o seu revés, ao nascer já se começa a
morrer. Ou talvez seja o inverso disso, nasce-se (e não “morre-se”) sempre, até chegar à
morte e, lá chegando, recomeçar.
O rastro helicoidal descrito por esta espiral de letras de Mira (e que também
descreve o silêncio que a acompanha) é como um labirinto ou palíndromo, em que
ambos os movimentos em direções contrárias – centrípeta e centrifuga – coexistem.
Labirinto cujo centro é ao mesmo tempo o monstro devorador (o buraco negro que
devora estrelas e constelações inteiras) e a iluminação de um dar à luz.
*
76
Fig. 23 Ana Hatherly. Sem título. Publicada em O Escritor, 1967-72, p. 17. Letraset sobre papel
A escrita-desenho de Sem título (O Escritor, p. 17, [fig. 23]) é um emaranhado
vertical (ou horizontal, se o leitor quiser, curioso, virar o livro) que parece querer apenas
afirmar a sua existência enquanto imagem, seu caráter original – a sua iconicidade.
Sem, contudo, perder sua abertura para leituras (inclusive, é a leitura que a põe em
movimento); leituras assintáticas, ou seja, não destinadas a significar e, por isso mesmo,
que não se esgotam (“a leitura será sempre múltipla”, nos confessa Ana no livro – p.
05), pois refere-se sempre ainda à linguagem, “como se as palavras agora regurgitassem
seu conteúdo” (DELEUZE, 2008, p. 128). O leitor pode/deve “ler o texto sob o texto.
(...) receber a mensagem não dita” 72 (HATHERLY, 1995, p. 196), que é “algo que
simultaneamente existe e não existe” (idem, 2011, p. 315).
Essa escrita-desenho (ou “um pictograma, um fotograma congelado na página”
como a ele Ana se refere na nota introdutória do livro – p. 05) de Ana foi publicada em
seu livro O Escritor, livro em 27 fases – esta é a fase 8 – que tenciona o próprio fazer de
quem escreve. Um fazer que, nas palavras de Barthes, “é procurar claramente a maior
72 Nesse sentido, escreve Paul Celan: “[o] poema, sendo como uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção – decerto nem sempre muito esperançada – de um dia ir dar a alguma praia, talvez uma praia do coração. Também nesse sentido os poemas estão a caminho – têm um rumo” (1996, p. 34)
77
linguagem, aquela que é a forma de todas as outras”; e segue: “[o] escritor é um
experimentador público: ele altera aquilo que recomeça; obstinado e infiel, ele
reconhece apenas uma arte: a do tema e das variações” (2009, p. 12). O escritor altera
aquilo que recomeça. Esse é um poema de desescrever, de reinventar a escrita no ponto
em que ela recomeça. O alfabeto está no começo e no fim desse livro.
Aqui, na fase 8, o alfabeto se desescreve em letras e símbolos gráficos – feitos em
letraset – a cair, em delírio, ou talvez formando um grande tornado – adivinhamos uma
forma cônica no centro e que se afunila na ponta – de grande violência, girando
velozmente, prestes a tocar o solo. Alfabeto em turbilhão. Um grande tornado de letras e
símbolos, convulsionando e a tudo sugando e expelindo. No olho do furacão, o alfabeto
se adensa, vira uma mancha de tinta, ilegível. Ou talvez seja uma fissura, uma fenda a
partir da qual a escrita brota, num movimento dinâmico de expulsão – se deitarmos a
imagem no chão, parece mesmo que estão a pular sobre nós os símbolos, com alguns já
expelidos já a cair. Assistimos a um parto 73.
O papel de escritor e leitor é sempre parir, assumindo posições simétricas e
complementares, pois um oculta o outro e são ambos, face à obra, ninguém. Tudo é
começo e recomeço. Parir é assegurar e manter a obra em constantes re-nascimentos. A
escrita e a leitura formam uma dança em que o parceiro está sempre invisível e distante,
uma dança alegre e apaixonada. Pacto de amor, entre escritor e leitor, pacto impossível.
Duas pessoas dançando
a mesma música
em dias diferentes
formam um par?
MARQUES in MARQUES e JORGE, 2017, p. 07
*
73 Assistir, em português, possui vários sentidos, como presenciar, testemunhar, ver, acompanhar, auxiliar... Dentre eles, no modo transitivo direto e transitivo indireto, significa servir de parteira. Assim, o uso deste verbo não é despropositado, pois além de indicar uma ação de presença e de olhar, coloca a nós, que contemplamos a imagem, na posição da parteira. E, assim, retomando o que Ana escreveu, de um “por em movimento”, somos nós, enquanto parteiras, que induzimos o parto. A obra, então, requer um pacto de cumplicidade entre o autor e o leitor, entre quem gesta e pari, e quem assiste.
78
Fig. 24 Ana Hatherly. Carta Secreta II – Ah!. Publicada em A idade da escrita, 1998, p. 48
Em A carta secreta II – Ah! (1998) 74 [fig. 24], observamos-lemos a interjeição
“Ah!” repetida à exaustão na página de papel, manualmente (i.e., caligraficamente), em
diversos tamanhos (algumas grandes e discerníveis, outras tão pequeninas que mais
parecem um aglomerado de linhas e pontos – espécie de código Morse explodido),
sobrepondo-se, acelerando-se... Irônica, a carta é a um só tempo suspiro de amor e
gargalhada. Toda carta de amor é a um só tempo trágica e ridícula: “As cartas de amor,
se há amor/ Têm de ser/ Ridículas” (PESSOA, 1993, p. 84).
Ela, como sugere seu título, é a segunda missiva de amor de três que compõem as
cartas secretas do livro A idade da escrita (1998). Secretas como quando adolescentes
escrevíamos cartas que nunca chegamos a enviar, ficaram guardadas e talvez esquecidas
em alguma gaveta ou caixa. São três as cartas secretas, como três atos de uma peça
sobre uma história de amor, que começa leve, num paquerar envergonhado e silencioso
em Le début e termina num mal d’amour em Despedida.
A carta II, composta de duas letras e um sinal gráfico, parece precipitar-se para o
abismo do limite inferior da folha, descrevendo um movimento vertiginoso de queda em
74 Escrita-desenho publicada em A idade da escrita, p. 48.
79
que nós também nos precipitamos, juntos, como num salto infinito: “ (...) movimento
insensato pelo qual queremos abrir para a vida olhos já fechados; movimento ligado ao
desejo que, como a inspiração, é um salto, um salto infinito: Eu quero ler o que, no
entanto, não está escrito” (BLANCHOT, 1987, p. 195).
E o salto infinito é também um cair em amor – to fall in love, em inglês, ou ainda
tomber amoureuse, em francês – ; não nos esqueçamos que esta é uma carta de amor.
Escrever uma carta de amor é escrever sobre um fundo de ausência – pressupõem a
separação entre os amantes – , querendo suprir a falta e a solidão; cartas de amor são
amores impossíveis. Aqui, nesta carta secreta II, ela é endereçada a um anônimo (não
existe um “tu” identificado), ou talvez se dirija ao próprio amor ou ao enamorar-se.
Espécie de cópula escritural entre ausentes – e aí o “Ah!” torna-se também interjeição
de gozo. Cartas de amor são em si mesmas um gozo, “elas falam de mim, da minha dor,
da minha falta, da minha raiva, do meu desespero, e... da volúpia de sofrer por amor”
(SOLER, 2011, p. 14).
Não nos foge o fato de as duas letras que constituem a carta, A e H, serem
também as iniciais da artista. A carta-letras secreta se transforma, metonimicamente, na
queda vertiginosa e delirante da própria Ana Hatherly, AH, ( AH!
Ah!
ah!
�|.! )
que nos lembra a Discípula de O Mestre quando afirma: “eu quando caio é sempre na
vertical”, como explica o narrador: “[p]rovavelmente cai como uma espada que
atravessasse o mundo como uma faca que atravessasse um melão maduro e caísse
depois sobre sua própria ponta” (HATHERLY, 2006[b], p.53). Ou como um ponto de
exclamação, “sobre sua própria ponta”.
!
“A cabeça da Discípula está trespassada por um punhal” (ibidem, p. 117).
*
80
2 Fios para labirintos e mortalhas
Conta o mito que Aracne foi uma tecelã da Lídia75 cuja excepcional habilidade
para tecer e costurar era admirada até mesmo por ninfas, que iam contemplar suas belas
criações. Porém, a vaidade da tecelã a levou a se comparar com a deusa Atena, que,
enraivecida, a desafiou. Aracne teceu uma tapeçaria narrando os amores dos deuses; e a
deusa, por sua vez, tece uma contando os feitos dos seres olímpicos e dos heróis. Atena,
não encontrando defeito no trabalho de sua rival, rasga a tapeçaria. Desesperada com o
ciúme de Atena, a jovem tecelã acaba se enforcando nos fios de sua obra despedaçada.
Atena, então, se apiedada de Aracne e solta os fios que apertavam seu pescoço, fios
esses que se transformam em uma teia; a jovem lídia, por sua vez, metamorfoseia-se em
uma aranha, destinada a tecer eternamente.
(...) o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo;
perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma
aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia.
BARTHES, 2015, p. 75
Aranha, o bicho que tece, que transforma sua baba em fio e, do fio-baba, tece
teias, teias que, como complexos labirintos 76, prendem suas presas e depois as enredam
num casulo mortuário (o casulo é a vida que urge em morte).
(Seria a aranha a um só tempo arquiteto que projeta e constrói o labirinto e o
monstro que devora quem nele fica preso?)
De cada mulher sai um único fio que se estende pela sala, como se elas
fossem aranhas, como se o fio saísse direto das suas barrigas. (...) Elas estão
fiando, e estão presas na teia.
SOLNIT, 2017, p. 52
75 Território na Ásia Menor que hoje corresponde à porção ocidental da Anatólia. 76 Existe, inclusive, uma espécie de aranha que recebe o nome de “aranha do labirinto” (Agelena labyrinthica). Esta espécie fia uma teia branca e densa com uma zona tubular (onde ela se esconde) e que é aberta em ambas as extremidades.
81
*
Em 1972, um amigo disse-me que às vezes pensava em mim vendo-me como
uma aranha especial tecendo as minhas redes-escritas. Pensei nisso e depois
vi-me como uma grande aranha de alumínio, cuspindo fitas de letras de
arame de aço. Sempre tive medo de aranhas.
Hatherly, 2006[a], p.106
Ana, apesar de sua aracnofobia – sempre tive medo de aranhas – , traz a imagem
da aranha para o centro de sua poética, seja em acepções mais literais, mais líricas e até
mesmo gráficas. Ela transformou-se nessa “aranha especial” a tecer “redes-escritas” em
diversos momentos, como em Margarida ao tear (fig. 25) e Le plaisir du texte (fig. 26),
escritas-desenho de A reinvenção da leitura (pp. 42 e 48, respectivamente). Duas glosas
visuais, a primeira do poema Gretchen (am Spinnarade allein) 77– comumente traduzido
para o português como “Margarida ao fiar” ou “Margarida à roca de fiar” – do autor
alemão Goethe 78; e a segunda do livro homônimo de Barthes.
77 Poema de Fausto, Parte I, primeiramente publicado em 1808. 78 Johann Wolfgang von Goethe, 1749-1832, escritor e estadista alemão, considerado um dos maiores nomes da literatura alemã e do Romantismo europeu.
82
Fig. 25 Ana Hatherly. Margarida ao tear. Publicada em A reinvenção da leitura: breve ensaio crítico seguido de 19 textos visuais, 1975, p. 42
Em Margarida ao tear (fig. 25) é o nome da personagem, Gretchen, repetido por
Ana no centro da composição, que ganha destaque, virando uma espécie de coluna
vertebral do texto. O nome, repetido sozinho nessa coluna, reverbera o título do poema
não somente no nome da personagem, mas também na condição em que se encontra
Gretchen frente à roda de fiar, sozinha – allein. No topo, a cabeça – “meu pobre senso /
se desatina / a mísera alma / se me alucina” 79 (GOETHE, 2004, p. 273) – acima da
coluna, lembra a imagem de uma aranha com suas várias pernas de onde se desgarra o
nome da mulher atormentada pela paixão – “[...] em igualmente provisórias patas que
singularmente / davam origem a uma excrescência vertical e / rendilhada uma espécie
de cauda aberta rígida que / aqui se chamavam singularmente costas” 80 (HATHERLY,
2001, p.137). Desgarra-se e escorre vertical, como a baba que vira fio para logo abaixo
convulsionar-se em uma teia espessa e caótica – se me alucina – de onde saem novos
fiapos até uma pequenina aranha sobre um solo de escrita na horizontal. Nesse
79 No original, em alemão, lê-se: “Mein armer Kopf / Ist mir verrückt / Mein armer Sinn / Ist mir zerstückt”. 80 Excerto do poema Eros frenético, publicado em Um calculador de improbabilidades.
83
movimento vertiginoso, Ana descreve visualmente o movimento de queda da
personagem, queda em pecado – ela afasta-se de Deus para deitar-se com o amado – e
também em loucura – passa a sofrer de alucinações. Ilegíveis, a não ser por algumas
palavras (como o nome Gretchen) e sinais (como as interrogações e exclamações – que
também elas descrevem o tumulto interno da personagem, da dúvida – ? ? ? – ao cair –
! ! !) os versos de Goethe se deixam adivinhar nesse movimento.
Fig. 26 Ana Hatherly. Le plaisir du texte. Publicada em A reinvenção da leitura: breve ensaio crítico seguido de 19 textos visuais, 1975, p. 48
Ainda mais ilegível é a escrita-desenho de Le plaisir du texte (fig. 26), em que o
texto glosado torna-se uma trama de garatujas fibrilares, um tecido vibrátil sobre o qual
passeia uma aranha espessa e peluda. Se olharmos bem, são as próprias aranhas,
fiadeiras, que secretam (e aqui nos interessa também a secreção como segredo) o texto
sob o texto tramando-lhe a textura e nela se dissolvendo. Já não importa a palavra ou o
significado, mas a própria escrita. O texto barthesiano se transforma visualmente em
hyphos, e “hyphos é o tecido e a teia de aranha” (BARTHES, 2015, p. 75). E Ana se
84
metamorfoseia na aranha, a tecelã Aracne metamorfoseada, e se impregna no tecido – se
dissolve, como escreveu Barthes – , deixando o vestígio de seu trabalho de fiar (ou
desfiar) o texto de outrem, seu gesto de glosa.
*
Ariadne completa 16 anos e descobre que o Minotauro, monstro que habita o
centro do grande e complexo labirinto de Creta projetando por Dédalo, é seu meio
irmão. Descobre também que a cada nove anos sete rapazes e sete moças são enviadas
de Atenas para serem devoradas pelo monstro. Dentre os sacrifícios deste ano encontra-
se Teseu, por quem Ariadne se apaixona, e que pretende matar o monstro. Ela, então,
tece um plano para garantir que seu amado vença o monstro e também o labirinto,
conseguindo dele sair. Entrega-lhe a espada de bronze de seu pai, o rei Minos, e, junto à
arma, um novelo de lã vermelha para que, desembaraçando-o, encontre o caminho de
volta até a saída do labirinto.
O fio de Ariadne, seu ardil para assegurar o retorno do ser que ela gostaria de
amar, tornou-se expressão para resolução de um problema. Expressão filha do gesto de
desenrolar o novelo para seguir seu traço – vestígio pensado por esta mulher. O fio de
Ariadne é o fio da escrita que se deixa puxar e seguir, desembaraçando o novelo. É,
outrossim, gesto de amor para enfrentar a morte; seria este o designo do fio da escrita,
enfrentar (tentar vencer, por amor) a morte?
*
85
Fig. 27 Ana Hatherly. Variação XIX. Publicada em Leonorana, Livro III de Anagramático, 1970, p. 219
Em Leonorana, terceiro capítulo de Anagramático (1970), a partir de um
vilancete camoniano “Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura; / vai fermosa e
não segura”, Ana realiza trinta e uma experimentações, trinta e uma variações através de
procedimentos não tradicionais que visam multiplicar e desdobrar (ou melhor seria
dizer, nas esteira de Blanchot, “desobrar” 81?) o vilancete em seus sonidos 82, sentidos e
visualidade.
81 Tradução do termo désœuvrement introduzido no pensamento por Maurice Blanchot. Grosso modo, pode-se defini-lo como uma ausência e impossibilidade de obra, um estado de potência: “[e]sse ponto é aquele em que a realização da linguagem coincide com o seu desaparecimento, em que tudo fala (como ele [Mallarmé] disse, ‘nada subsistirá sem ser proferido’), tudo é fala, mas em que a fala já não é mais do
86
Na Variação XIX (1965-1966) [fig. 27] a escrita segue as regras do bustrofédon,
i.e., ao chegar ao fim de uma linha, tal qual o serviço de um boi a puxar o arado para
abrir regos na terra – a etimologia do termo relaciona-se justamente com essa atividade:
/bus/ [do grego boûs] significa boi; /strofé/ [do grego strophé] significa virar; e /–don/
[do grego –dón], ao modo de – , ao invés de recomeçar na segunda, descreve um
semicírculo e continua no sentido inverso. Movimento que lembra também o dos fios de
trama, no processo da tecelagem (fig. 28). Os versos camonianos são copiados
manualmente dessa forma, num percurso vai-e-vem, e repetidos exaustivamente. O
resultado é uma escrita-desenho que se dobra sobre si mesma, com linhas que se cruzam
e se encrespam, movimentam-se por cima e por baixo de outras e, assim, mancham a
folha, criando uma trama de diferentes densidades cromáticas.
Fig. 28 Fio de urdidura (1) e Fio de trama (2)
O vilancete, repetido assim na folha de papel, ganha espessuras e, nesse adensar-
se, transforma-se, por fim, em um emaranhado de linhas ou uma tapeçaria vista em seu
verso, quando se pode observar sua trama formadora. E dessa forma, adensando-se, a
escrita também se torna topografia: faz saltar da extensão da planície-folha clareiras,
morros e mirantes. Como escreve Benjamin sobre o gesto do crítico enquanto copista,
gesto topográfico:
que aparência do que desapareceu, é o imaginário, o incessante, o interminável” (BLANCHOT, 1987, p.38) 82 O próprio nome escolhido por Ana para suas releituras do vilancete nos remete à música. Variação é a técnica em que determinado material é alterado durante várias repetições com mudanças que podem ser harmônicas, melódicas, rítmicas, de timbre, de orquestração...
87
A força com que uma estrada no campo se nos impõe é muito diferente,
consoante ela seja percorrida a pé ou sobrevoada de aeroplano. Do mesmo
modo, também a força de um texto é diferente, conforme é lido ou copiado.
Quem voa, vê apenas como a estrada atravessa a paisagem; para ele,
desenrola-se segundo as mesmas leis que regem toda a topografia envolvente.
Só quem percorre a estrada a pé sente o seu poder e o modo como ela, a cada
curva, faz saltar do terreno plano (que para o aviador é apenas uma extensão
da planície) objetos distantes, mirantes, clareiras, perspectivas, como a voz
do comandante que faz avançar soldados na frente de batalha. Do mesmo
modo, só quando copiado o texto comanda a alma de quem dele se ocupa,
enquanto o mero leitor nunca chega a conhecer as novas vistas do seu
interior, que o texto – essa estrada que atravessa a floresta virgem, cada vez
mais densa, da interioridade – vai abrindo: porque o leitor segue docilmente o
movimento do seu eu nos livres espaços aéreos da fantasia, ao passo que o
copista se deixa comandar por ele. A arte chinesa de copiar livros era
garantia, incomparável, de uma cultura literária, e a cópia, uma chave dos
enigmas da China.
BENJAMIN, 2013, p. 14
O que resta de Camões ao final do trabalho manual – trabalho que é ao mesmo
tempo o de uma tecelã, fazendo a trama do tecido, e o de uma copista à moda antiga,
que imprime seu gesto, a sua quirografia, no texto que copia – é esse vestígio, do
avesso, em forma de mancha têxtil-textual, espécie de cartografia topográfica de onde
se veem fios ou fiapos soltos (ou perninhas de aranhas tecelãs escondidas na trama da
urdidura densa e encaracolada: a aranha tece puxando o fio da teia), caminhos, talvez,
para se desemaranhar a escrita. Faz de nós Penélopes noturnas, a puxar os fios de sua
tapeçaria.
*
Penélope tece com fios tirados da memória. Tecer imagens com os dedos.
Lembrar o mundo acumulando fios. Criar imagens com a pele. No fundo
simétrico e constante tecer a irregularidade das imagens. Quando depois de
tecida se considera a imagem contra a pele do corpo sente-se a irregularidade
a incerteza a descontinuidade do processo o movimento regular mas as
diferenças do ritmo.
88
HATHERLY, 1979, p. 48
Penélope, esposa de Ulisses, persiste em sua espera pelo retorno do marido e, para
ludibriar seus pretendentes e os que insistiam em um novo casamento seu, afirma que só
se casará ao terminar um sudário83 para seu sogro, Laerte. Durante os dias, aos olhos de
todos, ela tece a mortalha para, às noites, desfazer seu trabalho diurno.
Homère, quand il présente le personnage de Pénélope, écrit que le jour, la
reine tisse, que la nuit, ella ‘analyse’. Ce sont les mots qu’emploie Homère
lui-même. Ana-lysis c’est exactement auf-lösen. La reine distingue les fils
entre eux, elle démêle les fils un à un, ele dénoue les noeuds, ele sépare les
mots, puis les lettres, puis les sens.84
QUIGNARD, 2014, p. 328 85
O trabalho de Penélope, então, é um trabalho de escrita. Escrever é rasgar o tecido
da linguagem. A escrita deseja perpetuar o vivo, salvá-lo, afirmando e confirmando sua
ausência (ao anunciar sua morte). Desenha-se, na escrita, o vulto da perda, a fragilidade
da existência e o esforço de dizê-la (GAGNEBIN, p. 11). Túmulo e palavra se revezam
no trabalho da memória (ao canto poético correspondem as cerimônias de luto e
enterro). Sèma, em grego, significa a um só tempo túmulo e signo, indício claro de que
todo trabalho de escrita e narração é também um trabalho de luto. Memória, escrita e
morte são inseparáveis.
[T]oda obra escrita pode ser considerada como prólogo de uma obra jamais
escrita, que permanece necessariamente como tal, pois relativamente a ela, as
obras sucessivas (por sua vez prelúdios ou decalques de outras obras
ausentes) não representam mais que estilhas ou máscaras mortuárias.
AGAMBEN, 2008, p.09
83 A mortalha que tece é metáfora do trabalho de lembrar – o marido ausente – e também do próprio texto enquanto tecido da narrativa que se prolonga astuciosamente. 84 Tradução nossa: “Homero, ao apresentar o personagem de Penélope, escreve que de dia, a rainha tece, de noite, ela ‘analisa’. Estas são as palavras que o próprio Homero utiliza. Ana-lysis é exatamente auf-lösen. A rainha distingue os fios entre eles, ela desemaranha os fios um a um, ela desfaz os nós, ela separa as palavras, depois as letras, depois os sentidos”. 85 Entrevista concedida em 2014 a Stéphanie Boulard e Sylvain Santi.
89
Por vinte anos, Penélope tece, sem nunca chegar ao cabo de sua tarefa: eis seu
ardil e também o seu segredo, sua resistência silenciosa. Quem tece, aguarda,
mergulhando-se no silêncio do gesto solitário. Penélope, aquela que nunca fala, mas
tece-destece: “A tela de Penélope / surge de seus dedos mudos” (HATHERLY, 2005, p.
75). Ela tece então o seu próprio silêncio e a morte: silêncio é palavra que anuncia sua
própria morte, dizê-la é já matá-la.
*
Fig. 29 Mira Schendel. Ondas paradas de probabilidade, 1969. Instalação com fios de náilon e texto entre chapas de acrílico. Dimensões variáveis
Dentro do corpus da produção artística de Mira, a instalação Ondas Paradas de
Probabilidade (fig. 29), pensada para e apresentada na X Bienal de São Paulo (1969),
tem lugar bastante singular. Isto se dá tanto pela solução plástico-espacial como também
pelas circunstâncias em que foi produzida, durante a ditadura militar brasileira e para
uma Bienal que ficou conhecida como a Bienal do Boicote 86 . A instalação era
86 A X Bienal de São Paulo ficou conhecida como a Bienal do Boicote pois, estimulados pelo crítico brasileiro Mário Pedrosa, diversos artistas e delegações internacionais não participaram dela como forma de protesto contra os ataques sofridos pelo campo das artes (como censura e perseguição política) e contra as violações de direitos humanos cometidas pelo governo brasileiro de então, um regime militar ditatorial
90
composta de três estruturas de madeira e arame, com 200 x 200 cm, fixadas no teto.
Destas estruturas pendiam feixes de fios de náilon, fios que ultrapassavam a altura do
pé-direito da sala do pavilhão, fazendo suas pontas deitarem e arrastarem-se pelo chão.
Ocupavam uma área de aproximadamente cinco metros quadrados. Fios quase
invisíveis, transparentes, de uma espessura mínima. É como se a limpidez, a
diafaneidade, fosse prolongada infinitamente no espaço daquela sala. Derramando-se
como o céu ou o espaço.
Junto a uma parede, mas suspensa, ficava uma placa de acrílico com a gravação
de texto bíblico do Livro dos Reis (I Reis, 19. 11-12). O texto refere-se à passagem em
que o profeta Elias busca, após vagar quarenta dias e quarenta noites no deserto, a voz
divina. Transcrevo aqui a passagem tal qual aparece na obra:
E ele falou, saia e suba nesta montanha perante a face do Senhor. Eis que o
Senhor passou. E um grande e forte vento que quebrava as montanhas e
rasgava as rochas precedia o Senhor. Mas o Senhor não estava no vento. Mas
do vento veio um terremoto. Mas o Senhor não estava no terremoto. E depois
do terremoto veio um fogo. E depois do fogo veio a voz de um suave
sussurrar.87
A palavra de Deus que tanto se busca é “um suave sussurrar”, que beira o
inaudível. Não se encontra na tempestade, no terremoto e tampouco no fogo. A voz de
Deus se ouve quando tudo cessa, na verdade, a voz Dele já está dentro. É, talvez
possamos dizer, a transparência: “Bienal de São Paulo, setembro de 1969. Esta é uma
tentativa de mostrar que o ‘lado atrás’ da transparência está na sua frente e que ‘o outro
mundo’ é Este” (Mira, em seu diário, 1969). Lembro-me de uma tisana de Ana
Hatherly: “[o] mistério supremo é a claridade” (HATHERLY, 2005. p. 45).
instaurado cinco anos antes, em 1964. Lembro também que fora apenas alguns meses antes da Bienal, em dezembro do ano de 1968, que tal regime promulgou o AI-5, ato que endureceu o já violento regime militar ao, dentre outras coisas, suspender o habeas corpus em crimes de motivação política e instaurar censura prévia. Nesse sentido, o silêncio visual da instalação de Mira parece reverberar criticamente o silêncio imposto pela ditadura. 87 Outras versões da Bíblia usam termos diferentes como “E depois do fogo o murmúrio de uma brisa suave” (Edições Paulinas). A versão escolhida pela artista parece querer enfatizar a ideia de uma voz divina direta, sem a metáfora de um fenômeno natural (“a brisa suave”).
91
Vilém Flusser, em carta que escreve à Mira em 1974, fala da sua escrita como um
processo de sucessivas traduções. Após explicar seu processo, ele escreve acreditar que
o trabalho de Mira se dá – ou se dava – de forma semelhante.
O que procuro é isto: penetrar as estruturas das línguas até um núcleo muito
geral e despersonalizado, para poder, com tal núcleo pobre, articular a minha
liberdade. Não sei se você compreendeu? Creio que em certo momento você
trabalhava de maneira semelhante. Lembraste dos fios transparentes: pois só
por trás das línguas têm mais fios.
FLUSSER apud GODOY, 2007, p. 107
Falava, portanto, dos fios transparentes de Mira como tradução: “[c]reio que em
certo momento você trabalhava de maneira semelhante”, i.e., traduzia. Traduzir é
desfiar. Desfiar o enigma, decompô-lo, analisá-lo. Penélope, cujo trabalho noturno em
grego se diz “análise”, é figura do desfiar.
A instalação de Mira, enquanto escrita e tradução, leva o gesto de Penélope, o
desfiar da língua e das palavras, às últimas consequências. Escrever, desfiar, separar fio
a fio a palavra, deixar a claridade inscrever-se nas linhas, nas entrelinhas, descrever o
tempo. Ela rasga a linguagem até o limiar em que a língua desfalece. Os fios estão
suspensos, nesse limiar ou promontório, desertados pela língua, tentando iluminar a
palavra escondida. É a língua como resto, que se refunda (i.e., tira sentido) a cada
instante, a cada nova enunciação-escuta balbuciante.
Os fios de Mira nos fornecem o rastro, a lembrança de uma presença que não
existe mais e que está em constante risco de se apagar definitivamente. Signo (ou
túmulo) de uma ausência dupla: da palavra pronunciada (ou sussurrada) e do objeto real
que ela indica. A escrita – ou o gesto de escrita – como resto, inscrito na cesura entre a
possibilidade e a impossibilidade de dizer. É um gesto de rememoração, no sentido
benjaminiano 88 do termo que podemos, ainda hoje, encontrar na obra de Mira.
Rememoração, ao contrário de comemoração, implica uma atenção ao presente, às
ressurgências do passado, abrindo-se ao esquecido e recalcado (e não somente repetindo
88 Rememoração, Eingedenken, possui uma dupla significação na obra de Walter Benjamin. Ao mesmo tempo em que serve para entender a escrita proustiana de mémoire involontiare enquanto alternativa para a narração quando esta perde sua força de origem, o termo significa também um trabalho de salvação do passado através de sua atualização no presente, tarefa cara à filosofia da história em Benjamin.
92
o que se lembra) para proferir, gaguejante, aquilo que não teve direito à lembrança, não
teve direito à palavra. Gesto análogo ao da rainha grega de outrora, a costura entre o
lembrar e o esquecer.
A “visibilidade” do invisível. O “silêncio visual”. Esta experiência tende ao
arracional, além do irracional e do racional. (...) Com o trabalho da Bienal (O
“sussurrar do invisível”) talvez inicie uma fase de maior silêncio. E também
nos desenhos. Escutar (também o silêncio). Para isto, para a libertação. (...)
Sei (hoje) que não se chega esta vida. Embora a vida “comece” com o
“saber” da libertação. Sei que é um caminho de libertação. Cheguei à
evidência. Que vivemos a tirar cascas. (...) Pois o “eu” (embora sua soberania
indispensável nesta vida) é limitação. (...) Esta é uma ponte. Temos que atravessá-la. Hindurch. Não fugir dela, não morar nela. No relativo, esta é nossa liberdade. Dizer sim e não. Amar e não atar-se, ter prazer (se possível). Es stimmt ZUTIEFST. SCHENDEL apud DIAS, 2009. p. 147 – grifos nossos
Assim, o trabalho de Mira nasce de uma demanda que é ao mesmo tempo poética
e política: escrever, tornar memória a palavra esquecida/escondida/invisível; desafiar a
morte – que atrevimento do amor! – para, após atravessar o deserto da língua (a ponte,
seus fios a perder de vista, a imensidão árida), ousar revelar, iluminar, sussurrar, fazer
vibrar esta palavra. Copertencimento da presença e da ausência, do revelar e do
esconder, eis a morada da experiência do amor e do pensamento 89.
*
89 Apresentei uma versão ampliada desta análise no XXII Encontro de Pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ, o artigo, intitulado Mira e Penélope, ondas e urdiduras: escritura e memória na instalação Ondas Paradas de Probabilidade, foi publicado em ALBERTONI, F.; CORRÊA, P. e FERNANDES, T. (orgs.). Arte e memória em tempos de crise. Rio de Janeiro: Circuito, 2020. E-book. pp. 211-217.
93
conclusão
- últimos fios
Mas arrisco, vivo arriscando.
Clarice Lispector
94
Ana e Mira se encontram na respiração mesma das coisas, do mundo. Respiração,
ato que envolve a inspiração e a expiração. Inspiração é o instante mesmo em que
partilhamos o mundo, tornando-o nosso (o vazio no meio das coisas, o Tudo).
Expiração é a capacidade de seguirmos o fluxo da vida, traduzindo-o em gesto (seu
poder de silêncio e de reverberação).
para a potência do viver
armas que se podem concretar:
- ........................................
- ........................................
- ........................................
- ........................................
- ........................................
- ........................................
os campos abertos do dizível.
(HATHERLY)
A capacidade de escrever silêncio é uma definição possível para os trabalhos de
Ana Hatherly e Mira Schendel, duas fiandeiras que tecem o silêncio – silêncio que está
no coração da palavra, silêncio do nascer, silêncio do esquecer, silêncio do viver – ,
confessando, furtivamente, o balbucio que vai ao mais profundo das coisas.
Cada uma, com sua poética própria, articula palavras e imagens em trabalhos
poderosos e, ao mesmo tempo, delicados. Delicadeza: palavra que designa tanto
fragilidade e doçura, como também complexidade, sutileza e apuro; Barthes fala de um
princípio de delicadeza 90, algo como um deslocamento sutil da violência inerente à
toda língua, “tudo que esquiva, desmonta ou torna irrisórios a exibição, o domínio, a
intimidação” (BARTHES, 1977, p. 142). Elas revolucionam a linguagem,
abandonando-a à liberdade e à delicadeza do gesto de traçar formas imprecisas,
resultando em escritas que se dão na parte da linguagem que a excede, no que sobra e
não se prende ao núcleo principal comunicativo da língua (não que elas não
90 “Em todos os nossos exemplos, ou em quase todos, uma constante: todas as condutas marcadas pelo princípio de delicadeza: espécies de declarações ativas ou de esquivas inesperadas contra a redução, não do indivíduo (não se trata de uma filosofia do individualismo) mas da individuação (= momento frágil de um indivíduo): toda vez que, em meu prazer, meu desejo ou minha tristeza, sou reduzido pela fala de outro (muitas vezes bem-intencionada, inocente), a um caso que se enquadra normalmente numa explicação ou numa classificação geral, sinto que há violação do princípio de delicadeza” (BARTHES, 2003, p. 80).
95
comuniquem, comunicam, porém não da maneira tradicional, reta; comunicam sinuosa
e subterraneamente). Encontram-se naquilo que escorre da linguagem e inunda brechas,
fundando novas línguas, no gesto de possibilitar uma nova experiência da palavra e do
traço, profanatória e libertária.
Procedimento de ilegibilidade. Ilegibilidade que se dá não apenas no
obscurecimento e/ou ocultamento do texto, mas também, e antes de tudo, no travamento
do processo de produção do nível semântico. Ana e Mira se defrontaram com essa
ilegibilidade na experiência com a escrita chinesa: capta-se a beleza dos signos sem
conseguir de fato lê-los como texto. Movimento duplo: o não alcançar a alteridade (o
sentido) e a ela ser lançada (mesmo no âmbito do indecifrável, ler). A ilegibilidade se
abre para o silêncio e suas possibilidades infinitas: “o escritor habita o silêncio da
palavra” (HATHERLY, 1995, p. 195) [cada letra, cada linha, cada gesto] – objetivo da
poesia desde Mallarmé, revelar esse núcleo silencioso que persiste em cada palavra
(Clarice sussurra em nossos ouvidos: no coração da palavra está o silêncio).
Impulso de reter o poema enquanto gesto, aquilo que excede o ato, é um querer
mostrar a escrita, não o escrito. De exibir o próprio ato de escrever, escrita é gesto – o
gesto específico de grafar. Gesto não autoritário, fragmentário e de criação do
múltiplo. Para liberá-lo, elas concentraram-se na unidade mínima da escrita: da palavra
à letra; depois, decompondo-se a letra, a linha. A linha-fio é o elemento dinâmico que
engendra o ritmo, a trama e a urdidura. Da letra à linha, do símbolo ao ícone: ascese da
linguagem. O poder criador de um gesto manual, escrever-tecer, desescrever-destecer,
escrever desescrevendo, tecer destecendo. Espécie de retorno ao momento do
nascimento mesmo da palavra, desse gesto de traçar: erguer a mão, registrar a imagem
do movimento, o gesto de inscrever um signo sobre um suporte – “Im Anfang war die
Tat”, no princípio era o gesto, escreveu Goethe em seu Fausto.
Ambas pensam a imagem como acontecimento poético e não mera redundância
ilustrativa. Da antiga e matricial união entre escrita e imagem – ambas postas a nu em
seus gestos inaugurais – revela-se como o gesto de grafar (enquanto rasgo e mancha,
cartografia) é arte amatória: da explosão da romã, seus grânulos se recombinam e da
granada (a cor, a fruta e a arma) emerge a palavra amor. Arte amatória que é sempre
também da ordem da impossibilidade, como nos revela a artista portuguesa em seu
romance O Mestre, de 1963. Mas, talvez, nem sempre tão trágico como no citado
96
romance. A impossibilidade da palavra é como uma promessa que não promete o além
da promessa.
Mira e Ana trabalham a superfície com deslizamentos, escorregando a letra em
imagem e vice-versa: escrevem manchas que são paisagens. Elas trabalham na dobra,
abrindo espaços no mesmo lugar, o oco da dobra: é origami. Paisagens-origami. Ambas
liberam, cada uma a sua maneira, o vazio (que não é o nada, é tudo) fundador das
superfícies e que acolhe e faz ecoar os traços. O vazio é a chave silenciosa para
constelações infinitas de imagens, veredas para alcançar um “ponto que não se pode
atingir, o único, porém, que vale a pena atingir” (BLANCHOT, 2011, p. 51).
O que é, aliás, um poema, senão aquela operação linguística que consiste em
tornar a língua inoperativa, em desativar suas funções comunicativas e
informativas, para abrir a um novo possível uso? Ou seja, a poesia é, em
termos de Espinosa, uma contemplação da língua que traz de volta para o seu
poder de dizer. Assim, a poesia de Mandelstam é uma contemplação da
língua russa, os Cantos de Leopardi são uma contemplação da língua italiana,
as Iluminações de Rimbaud, uma contemplação da língua francesa, os hinos
de Hölderlin, e os poemas de Ingeborg Bachmann, uma contemplação da
língua alemã, etc. Mas em todo caso trata-se de uma operação que ocorre na
língua, que atua sobre o poder de dizer. E o sujeito poético não é o indivíduo
que escreveu os poemas, mas o sujeito que se produz na altura em que a
língua foi tornada inoperativa, e passou a ser, nele e para ele, puramente
dizível.
AGAMBEN, 2007, p. 48
Ana e Mira, duas mulheres apartadas por um oceano e cujas vidas permaneceram
separadas, seus trabalhos partilham de um vocabulário comum de questões envolvendo
a linguagem e a escrita. Este trabalho, modesto ensaio 91 , pretendeu colocar estas
artistas em um possível diálogo amoroso, abrindo, esperamos, pequenas brechas para
novas miradas em suas obras.
91 Penso, aqui, ensaio tanto em sua acepção de "tentativa" como também pego emprestado do gênero literário de mesmo nome o caráter livre e a não-pretensão de esgotar um assunto.
97
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________________. O Neutro: anotações de aulas e seminários ministrados no Collège
de France, 1977-1978. Trad. I. Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________________. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Trad. Léa Novaes. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
________________. O prazer do texto. Trad.: J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,
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________________. O prazer do texto precedido de Variações sobre a escrita. Lisboa:
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________________. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix, 1977.
BENSE, Max. Pequena Estética. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
98
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_________________. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo:
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Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). Trad.: Susana Kampff Lages e Ernani
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