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ALIMENTO E BIODIVERSIDADE: fundamentos de uma
normatização
Profa. Dra. Cristiane Derani
CONPEDI - Outubro/2006
“ ... a passagem do cru ao cozido, tem a ver com o conhecimento. ... A santa Ceia não consagrou a uva nem
o trigo. Ela dá atenção às coisas comidas, degustadas, feitas, compostas, que o calor modificou”. [...]
“ A natureza, por uma única vez, não faz as coisas tão bem quanto nós. O saber fazer magnífica o dado:
este, cru, continua subordem. O aroma do café tostado faz os músculos e a pele, desde de manhã cedo,
estremecerem de contentamento, os perfumes do assado que antecede um pouco o tostado, deslumbram os
espíritos,...Não compreendo bem a cultura da fervura,... e vivi o bastante na onda de uma fast food para
conhecer a ignomínia da cultura. [...]
O fogo funde mais coisas juntas. O cru dá simplicidades tenras, frescores elementares, o cozido inventa
coalescências. A análise, ao contrário, fatia ou recorta cruamente, a síntese pede chamas. Esta, por
conseguinte, inclina-se para o lado do saber e da cultura, a primeira permanece da natureza bruta”.
(Michel Serres. Os cinco sentidos, pp. 167/8)
1. Alimento, uma questão de cultura
O alimento nutre o corpo, a mente, o espírito e o modo de produção. “Toda existência humana
decorre do binômio Estômago e Sexo. A Fome e o Amor governam o mundo, afirmava Schiller”.1
A produção de alimentos está diretamente ligada à relação primordial do homem com seu meio e a
cultura na qual ele está imerso e a que ele reproduz por suas práticas.
O que é produzido, como, a que destino é definido pela cultura, a partir da capacidade desenvolvida
de reconhecimento e controle do meio em que se estabelece uma sociedade.
Cada cultura em seu ambiente desenvolve práticas alimentares que se constroem do cultivo ao
consumo. As etapas do preparo do alimento são práticas coletivas de cultivo/ criação, transformação
e preparo.
Com exceção do preparo que ocorre (porém não exclusivamente) na esfera privada, as demais
etapas são socializadas, i.e. envolvem a participação de pessoas integradas em relação de emprego,
parceria etc. É ilusório pensar que o ato cotidiano de alimentar-se seja uma decisão pessoal. A cada 1 Cascudo, L.da C. História da Alimentação no Brasil, 3a. ed., São Paulo, Global editora, 2004, p. 17.
opção por refeição, é invocado um processo coletivo construído na esfera pública, por decisões
políticas, econômicas, administrativas. A refeição do dia sacia o apetite pessoal, remunera uma
cadeia de produção, circulação e venda, e, na raiz de tudo, satisfaz a opção política, tecnológica e de
investimento que vem orientando a oferta de determinados produtos para o consumo humano.
A relação do modo de produção de alimentos com a formação econômica e política de uma
sociedade é inexorável, demonstrada pelas histórias das distintas civilizações. O alimento não
apenas é responsável pela compleição física do indivíduo, mas constrói o corpo coletivo de uma
sociedade. Jarred Diamond vincula a formação da política à disponibilidade alimentar. Para o autor,
a condição de caçador-coletor tende a não permitir a especialização da sociedade com chefes e
outros especialistas. Ao contrário, a formação da agricultura, a estocagem e a sedentarização
puderam criar condições para a formação de um corpo político, sustentando chefes reis, sendo de
grande importância para alimentar soldados profissionais, decisivo nas guerras de conquista2.
Este autor esclarece a relação estabelecida entre produção de alimento e política atual:
“O desenvolvimento da agricultura é hoje um esforço consciente e altamente especializado,
realizado por cientistas profissionais. Eles já conhecem centenas de culturas e continuam
desenvolvendo outras. Para atingir esse objetivo, plantam sementes e raízes, de vários tipos,
selecionam os melhores produtos e plantam suas sementes, aplicam o conhecimento de genética
para desenvolver boas variedades e talvez usem até as técnicas mais recentes da engenharia genética
para transferir alguns genes específicos”.3
A questão da produção de alimentos, ontem como hoje, não é uma simples resposta à necessidade
alimentar, que se responderia quase que por caminhos aleatórios, segundo disposições ambientais.
A produção de alimentos (o que, como, quanto, para quem é produzido) é uma decisão de ordem
política e econômica, determinante para os rumos políticos e econômicos de uma sociedade. A
complexidade da sociedade, estratificada em esferas distantes de decisão política e econômica,
permite muito pouco a influência de gostos e paladares individualizados. A ocupação da área
cultivável de um país, o preenchimento de prateleiras de grandes mercados de alimentos, os aditivos
(conservantes, corantes, estabilizantes, etc) que comporão a alimentação, não são respostas a
demandas individuais, mas respondem à lógica complexa de produção e circulação e remuneração
da atividade econômica.
Parece, a princípio, estranha a afirmação de que a decisão pelo prato do dia esteja distante do sujeito
faminto. Todavia, é importante lembrar que, talvez a alimentação seja uma das ações mais sensíveis
a construção da cultura. No momento que a orientação cultural é fortemente influenciada pela forma
de reprodução monetária e pelas decisões de expansão de mercados, os gostos e as relações em
2 Cf. Diamond, J. Armas, Germes e Aço. 6ª. Ed. Rio de Janeiro, editora Record, 2005, p.88. 3 Diamond, J. Armas, Germes e Aço. 6ª. Ed. Rio de Janeiro, editora Record, 2005, p. 114.
micro esferas de terrenos (terroirs), e costumes, não resistem à publicidade convincente dos
produtores de gostos e necessidades ‘prêt-à-porter’.
“La imposicion de una metodologia de la acción social como si fuese la única, la universal, la
racional, lleva consigo el desprecio, la humillación y el deseo de exterminio del otro, del diferente,
del rival. Éste no es más que un bárbaro, un tártaro, un lobo estepario que odia los valores humanos
y sus productos excelsos, es decir, nuestra literatura, nuestra ciencia, nuestros valores, en fin,
nuestros sentimientos delicados y refinados; todo ello, en nombre de lo irracional, de lo anti-
humano, de la barbarie”.
A afirmação de uma cultura como a cultura nos remete ao “cierre colonialista e imperialista que no
sólo impone una sola forma de actuar a un nivel nacional, sino que se lanza a una expansión global
de sus presupuestos particulares como si fueran lo universal, lo racional, lo cientifico, lo ‘delicado’,
dejando de lado toda investigación y toda reflexión acerca de la necesidad para todo sistema de
dominacion de ocultar bajo el concepto de ‘conflito cultural’ lo que no es más que una exigencia de
controlar los recursos materiales e inmateriales y de obtener ventajas geoestrategicas de
dominación”. 4
Por serem decisões que independem de necessidades e demandas individuais de satisfação da fome
e do paladar, as preferências individuais pouco têm para influir no processo macro de escolha do
produto. Estas decisões voltadas a questões políticas e econômicas deixam um rastro indelével
sobre a segurança da saúde humana e do meio ambiente.
Alimentos são construídos originalmente por e para seres humanos, a partir das condições
ambientais que lhes são oferecidas. O afastamento destas condições originárias tem provocado
efeitos sobre a saúde humana e sobre o equilíbrio do ambiente de forma constante e crescente,
chamando atenção da sociedade e especialistas. A persistência de efeitos negativos à saúde humana
e ao meio ambiente, desde a denúncia de Rachel Carson,Pois, há quarenta anos, só tem aumentado
com a intensidade de culturas e aprimoramento da produção com novos agrotóxicos e modificações
genéticas. Se até recentemente estes efeitos eram ignorados ou tomados como ‘preço do progresso’,
hoje sua consideração deve ingressar no processo de decisão de produção, pelo potencial
desestruturante que trazem, seja pela exaustão dos recursos naturais, seja pelas comprovações
científicas de danos à vida causados por alimentos. Alimentos que negam a sua essência, que de
força vital se comportam como ingrediente letal, têm chamado atenção da mídia, do meio
intelectual e da sociedade civil, quando se defrontam com descobertas de elementos carcinogênicos,
males oriundos de produção intensiva como o mal da vaca louca, e mesmo a gripe aviária, mais um
vírus que surge e ameaça a vida humana pelo contato intensivo com animais domésticos que, por
sua vez desenvolveram a doença graças a uma concentração gigantesca de aves em confinamento.
4 Flores, J.H. El Proceso cultural. Materiales para la creatividad humana. Sevilla, Aconcagua Libros , 2005, p. 73.
[H1] Comentário: trazer o livro primavera silenciosa
A fábrica de alimentos distante das relações pessoais de convívio, paladar e demandas ambientais,
tem retirado das relações humanas um importante momento para seu desenvolvimento e, o que lhe é
essencial, para solidez das redes de solidariedade, e cumplicidade afetiva. A comida industrializada
tem, também, graças a isso, implicações ambíguas para a saúde.
De fato, estas inovações na culinária devem-se às mudanças do mundo do trabalho, que altera as
relações familiares, seja pelas modificações nos horários das refeições, como no tempo a ela
dedicado5.
“A comunhão de comer junto é facilmente rompida por um aparato que livra os habitantes do
domicílio de ter de esperar pela hora das refeições. Aliado às refeições prêt-à-porter, o microondas
possibilita o fim do cozinhar e do comer como atos sociais. Há um grande risco de que a primeira
grande revolução na história da comida esteja sendo desfeita. O companheirismo ao lado da
fogueira, do caldeirão e da mesa comunitária, que ajudou a unir os seres humanos em uma vida
cooperativa por pelo menos 150.000 anos, pode estar sendo estilhaçado6.”
Além da relação direta entre produção de alimentos, construção de extratos sociais e
desenvolvimento de produção econômica, os alimentos também sempre mantiveram com deuses,
com forças físicas e metafísicas. São caminhos para a beleza, saúde, inteligência e espiritulaidade.
Os tabus alimentares são preceitos religiosos estreitamente ligados à saúde pública ou a
diferenciação social, e a origem e modo de cultivo de muitos alimentos são atribuídos a vontades
divinas.
“Dietas e hábitos alimentares são inseparáveis do resto da cultura: em particular, eles interagem
com a religião, com a moral e com a medicina. Eles se conectam também com as percepcões
espirituais em programas de comer para ‘alimentar a alma’ e com ideais seculares como saúde,
beleza e preparação física”. Em uma espécie de provocação, reclamando os poderes metafísicos dos
alimentos ainda presentes na sociedade tecnológica e materialista, prossegue Fernandez-Armesto:
“Os obcecados por comida saudável – ou outros adeptos de novidades que comem para ter beleza,
5 « Nos EUA e na Grã-Bretanha, o dia de quatro refeições já acabou há muito tempo. O almoço quase desapareceu em benefício de um lanche diurno e um ‘jantar noturno’. Aquela instituição britânica – le fifoclock – quando ‘tudo pára para o chá’, desapareceu. Até na Alemanha e na Itália – países que almoçam – a refeição principal tem de ser feita nas cantinas do trabalho para economizar tempo. Na Espanha é praticamente impossível imaginar a cultura nacional sobrevivendo se o horário das refeições for modificado: na década de 1920, a ditadura do general Primo de Rivera foi condenada quando ele decidiu ‘modernizar’ o horário das refeições espanholas em linha com a jornada de trabalho industrial, instituindo ‘almoço com garfo às 11 horas da manhã’. Hoje as necessidades da economia moderna são satisfeitas na espanha por meio de dois recursos: o dia intensivo, que permite que a pessoa trabalhe continuamente das 8 horas da manhã às 3 da tarde, antes de se retirar para a refeição familiar tradicional, e o telefone celular, que significa que os que tirarem a hora de almoço podem estar em contato com o resto do mundo durante o longo descanso para o almoço”.(Fernandez-Armesto, F. Comida – uma história. Rio de Janeiro, ed. Record, 2004, p. 320). 6 Idem, p. 324.
energia mental, impeto sexual, tranquilidade ou espiritualidade – estão na categoria dos canibais”7.
A relação existencial com o alimento está muito além da manutenção das funções vitais. O alimento
é revelação dos deuses (mandioca, guaraná em lendas indígenas), é fonte de poder (chocolate) e
caminho de encontro com o divino (ayhuasca). É momento de convívio, e meio de liberação do ser,
como poeticamente nos ensina Horkheimer:
“Quando alguém se pergunta, o que seria enfim a Liberdade (e não simplesmente no seu sentido
político), responderia que ela pode ser encontrada, em grande parte, nos diversos verdadeiros
prazeres, e se pode ser feliz de diversas maneiras. Um exemplo para precisar este campo de
experência é o vinho e o ato de degustá-lo, da forma como o degustador o executa, que por si
expressa todo um contexto cultural de paladar e, sobretudo, traz a alegria. A palavra cultura está
ligada sobremaneira ao cultivo, crescimento, e degustação do vinho. A alegria torna o homem um
homem melhor, que por si é feliz, e que pode se alegrar e que enxerga inúmeras possibilidade para a
alegria, e menos para o rancor. E não é coincidência. E não é coincidência que a palavra gosto,
mesmo para as coisas mais elevadas, mesmo para os objetos de arte se torna prazer. Dizem de Kant
e Goethe que foram grandes conhecedores de vinho,o que significa no entanto que quando estavam
sozinhos, eles não se consumiam na inveja, mas tinham a possiblidade do prazer como ampliação
de experiências”8.
Decisões voltadas a construir ou modificar hábitos alimentares atuam por sobre toda a estrutura das
relações sociais, como se tocasse a peça inferior da pirâmide de relações de uma sociedade. Todas
as relações são movidas com a alteração na forma de alimentar-se e devem se reacomodar, em
função da construção de novos comportamentos de interrelacionamento entre as pessoas na
sociedade.
Um exemplo contundente deste papel transformador das relações sociais pelo ingresso de novos
hábitos alimentares está na abertura da rota das especiarias pelo ocidente no século XVI. Este fato
foi uma das maiores intervenções militares do ocidente, que revolucionou a Europa e transformou o
mundo, devido à rota comercial de especiarias para a conservação de alimentos.
Para o mercado que germinava na urbanização e no capitalismo, a conquista de novos territórios e
de rotas exclusivas necessita a conquista de sabores diferenciados e exclusivos, que a exemplo dos
deuses devem ser revelados apenas aos detentores do poder político, econômico, quiça religioso. As
especiarias não eram uma necessidade de saúde pública.
“A idéia de que a demanda por especiarias era resultado da necessidade de disfarçar a carne ou o
peixe contaminados é um dos grnades mitos da história de comida. É um ramo do mito do progresso
7 Idem, p. 59. 8 Horkheimer, M. Gesellschaft im Übergang. Frankfurt a/M, Fischer Verlag, 1981, pp. 127-8.
– a premissa de que as pessoas em épocas anteriores eram menos competentes, ou menos
inteligentes, ou menos capazes de prover suas próprias necessidades do que somos hoje. Na
verdade, é mais provável que os alimentos frescos na Idade Média fossem mais frescos que os de
hoje, pois eram produzidos localmente; além disso, embora fossem preservados de maneiras
diferentes – pela salga, pela conserva em salmoura ou vinagre, por dessecamento – os alimentos em
conserva daquela época eram tão bem preservados quanto os nossos na idade das latas, da
refrigeração e do congelamento a seco ( uma técnica que, a proposito, já era conhecida na
Antiguidade e foi desenvolvida a um alto nível pelos plantadores de batata andinos naquilo que
consideramos como Idade média). O fato de não serem tratados com fertilizantes químicos também
fazia com que tanto os alimentos frescos como os conservados provavelmente fossem mais sudáveis
naqueles dias. De qualquer forma, o papel das especiarias na culinária era determinado pelo gosto e
pela cultura. Uma cozinha rica em especiarias era cara e, portanto socialmente diferenciadora. Para
aqueles com dinheiro suficiente para obte-la, ela era um luxo irrefutável. E era apreciada por ser
uma característica que definia o modelo da haute cuisine da época, copiada dos árabes”910.
O alimento individualiza uma cultura e integra as civilizações em um caldo colorido e saboroso,
onde não se distingue o iniciador, o conquistador, o dominador, o submetido, o destemido, o
conservador. Somos convivas de um único banquete que não termina jamais. Compartilhamos todos
o mesmo repasto da busca humana pela satisfação dos sentidos, e dos apetites corporais e
espirituais, desenhada pela a alegoria do trajeto da pimenta dióica:
Cristóvão Colombo, buscando nova rota comercial chamou os nativos da américa de índios e ao
encontrar “a pimenta-da-jamaica, que viu em abundância por toda a região, imaginou ter encontrado
uma variedade avantajada da pimenta-da-índia. Com sabores do cravo, da canela, da moscada e da
pimenta, a frutinha redonda e marrom foi, de qualquer forma, uma deliciosa descoberta. Levada
para a Espanha, seca e moída imprimiu seu buquê de perfumes a pratos doces e salgados. Os árabes
9 Fernandez-Armesto, opus cit. , p. 234. 10 Um exemplo mais recente, porém não menos contundente sobre até que ponto a faina humana para prazeres do sabor e estratificação social correspondente, podem chegar está na saga do caviar trazida por Inga Saffron : “Para os europeus, muito da sedução do caviar vinha de sua associação com a rica aristocracia russa.quando as estradas de ferro vulgarizaram as viagens de longa distância, os nobres russos começaram a aparecer cada vez mais em lugares como Paris e Berlin, arrastando zibelinas e criados. Os europeus ocidentais tinham um fascínio sem fim por seus excessos. (...) Na rússia, comia-se caviar o ano todo apesar dos desafios de mante-lo fresco no calor. Cristãos ortodoxos devotos tinham caviar à mão para os quatro grandes períodos de jejum, que incluíam os 39 dias antes do natal e as quatro longas semanas da quaresma. (...) No reinado de Catariana, a grande, o caviar perdeu a associação com a autonegação e passou a ser associado definitivamente às fetividades da semana da Manteiga (Mardigras). O caviar passara do âmbito do sagrado ao mundo material do profano. » « Tendo transformado o caviar num luxo material, a classe alta russa inventou então os rituais para usufruir o privilégio.”, Caviar pode não ser nada mais que ovos de peixe crus, porém, essa iguaria tem algo que faz as pessoas sonharem com outros mundos e outras identidades. » (Caviar a estranha história e o futuro incerto da iguaria mais cobiçada do mundo, Rio de Janeiro, editora intrínseca, 2004, p. 96 e 296)
a misturaram ao cominho (África), à canela (India), ao cravo (Molucas) e à pimenta-do-reino
(Sudoeste da Índia) e criaram a pimenta síria ou tempero sírio”11.
Muito além de buscar a conservação de alimentos, satisfazer um refinamento e reforçar um
diferenciamento social, proporcionando à elite produções culinárias exóticas, que apartariam o
nobre do camponês, a rota das especiarias modificou relações de comércio, produção e consumo,
marcando o início de uma nova forma de organização social que se espalharia e conformaria o
mundo contemporâneo.
Talvez seja difícil, imerso na cultura da utilidade, da abstração dos sentidos pela maximização do
proveito, a compreensão sobre a importância do prazer da degustação, e as guerras e os desafios que
foram vencidos para a satisfação da aristocracia enriquecida e extasiada pelas vividas Cruzadas que,
com o saque, trouxeram a experiência de outros modos de viver e ... comer.
Acredito que a mesma dificuldade assistiria à alta nobreza do século XVI e XVII quando ouvisse
que, em outros tempos, a alta burguesia passa horas em esforço físico, fechada em salas cheias de
peso e disciplina, e que, após isto, consome pílulas e alimentos ascéticos formados em laboratório
chamados funcionais, de maneira extremamente moderada, submetendo-se a cirurgias para corrigir
o que o esforço e a renúncia alimentar não foram capazes de obter.
Disto se extrai, sem preconceito, que o tipo de alimento usufruído por uma sociedade revela uma
discussão que está além de posições científicas e higienistas sobre qualidade e propriedades
alimentares. É uma discussão filosófico-social-econômica sobre as relações de produção,
distribuição, convívio e interação, desde o ponto de vista familiar até a estruturação dos mercados
internacionais.
2 Produção de alimentos: ciência e mercado
A ciência é um facilitador da produção. A partir do conhecimento da física, química, meteorologia,
biologia, técnicas são desenvolvidas atuando diretamento sobre o modo de produção de alimentos.
Todavia, estas pesquisas e conclusões não são aleatórias. O desenvolvimento da ciência tem os
olhos nas demandas apresentadas por aqueles que a incentivam e a suportam. A atividade científica,
ao contrário da imagem do pesquisador encerrado em seu laboratório com as vistas presas ao
microscópio, é uma prática social vinculada às políticas e aos interesses que a financiam e lhe
emprestam credibilidade.
11 Nepomuceno, R. O Brasil na Rota das Especiarias. Rio de Janeiro, José Olympio, 2005. p. 60.
Na Idade Média, o plantio era definido pelas estações e sua prática era intercalada com festas pagãs
e religiosas que o celebrava, disciplinava e o integrava na sociedade. A ciência moderna vai
conquistando espaço e afastando as forças religiosas e os conhecimentos ‘não científicos’ da magia,
astrologia, alquimia, tornando-se aliada do poder político e econômico, que a reconhece como
eficiente componente de sua conservação.
A Ciência como locus do desenvolvimento tecnológico, prontamente, dedicou-se a fornecer os
aparatos para melhor desenvolver a dinâmica da produção econômica. No campo da produção de
alimentos, o empenho da ciência se faz sentir com muita insistência já no período do iluminismo.
A natureza deve se ajustar ao artifício da produção na emergente escala industrial. Em função desta
força, apresenta-se o engenho humano. Engenho técnico e científico, assim como político e jurídico
são os instrumentos da criação dos novos alimentos.
São os pensadores do século XVIII, os sensualistas franceses, que num misto de cientista,
naturalista e filósofo servirão à organização da prática agrícola e ao desenvolvimento da produção
de alimentos na Europa em processo de industrialização.
Lavoisier, considerado o pai da química, sintomaticamente, repousa seu sistema sobre o princípio
newtoniano de economia: “nada se cria, nem nas operações de arte, nem naquelas da natureza, e
pode-se afirmar em princípio em todas operações que há uma igual quantidade de matéria antes e
depois da operação, elas apenas se transformam”.
Lavoisier desenvolveu uma série de pesquisas sobre a fermentação do vinho e elogiou fortemente
suas propriedades terapeuticas, fazendo-o uma bebida saudável, e, claro, incentivando o seu
consumo. Também a agricultura e suas relações com a química faziam parte dos seus estudos
favoritos. Para encorajar a cultura do solo, experimentou processos de cultivo e aumentou a
produção da área experimentada, com aplicação de novas técnicas12.
Era eminente a relação entre ciência e alimentação, na aurora da ciência moderna, e difícil saber
onde termina o conhecimento técnico e se inicia o interesse economico.
Após a revolução industrial e, sobretudo, após a “revolução verde” na década de cinqüenta do
século vinte, o Estado Moderno organiza a produção de alimentos, do mesmo modo como ordena as
práticas sociais em geral, subsumindo-a à lógica industrial, gerando as “moedas agrícolas”
commodities que regularam a bolsa de futuros, onde o negociado são valores de bens escassos e não
alimentos. Em uma inversão total de valores morais, a riqueza é gerada na medida da escassez de
alimento produzida, pois a falta aumenta o valor da commodity.
12 Hoefer, F. Histoire de la Chimie, tome deuxiéme, Paris, 1869, p.491.
A modificação da estrutura fundiária, com o avanço da urbanização e o deslocamento do poder
político, apoiado no mercantilismo e na circulação monetária, contribuem para que o alimento
assuma a forma de mercadoria, e sua produção - do cultivo ao consumo - insere-se no mercado.
Até esse momento de aumento de urbanização e revolução industrial, o comércio de alimentos era
feito como troca de excedente. A expansão mercantil, sobretudo com as grandes viagens e
colonizações, com o ganho de área de cultivo e exploração, fizeram do mercado o destinao
almejado, o verdadeiro objetivo da produção dos alimentos.
A produção destina-se à formação de capital e não à alimentação. Logo, o quê, como e para quem
produzir, coloca-se na dependência das forças de mercado. Ninguém se interessa por arroz, mas
pelo seu preço (B.Brecht). Neste sentido, o tempo da produção deve ser o tempo do mercado. A
forma de produção deve ser aquela que permita melhor eficiência, o que em outras palavras é maior
produtividade e maior lucro.
O tempo da produção e o que produzir rompe com a lógica das exigências ambientais e adere à
lógica artificial do movimento de mercadorias. A agricultura encarna o paradoxo temporal-espacial
da produção de e para o mercado. Pois, ao mesmo tempo em que necessita romper com os tempos
naturais e vencer os condicionamentos da história e geografia para imperar o seu próprio tempo de
produção e troca, o qual deve ser mais ágil e rápido; necessita reconhecer e apreender o diferente,
incorporando-o à massa uniforme, monótona e estéril resultante da monocultura do capital,
fecundando com o adultério a relação que expulsa toda a diferença e que considera as paixões “acsi
questio de lineis, planis aut de corporibus esset” .
Para fazer valer esta máxima, a agricultura privilegia a monocultura, mais adequada à eficiência da
produção, à formação de commodities, à sua circulação.
Numa relação de massificação, a monocultura é a estratégia mais adequada, muito embora mais
danosa ao solo, à biodiversidade, ao sabor, nutrientes e, mesmo, à estética. A relação com a
natureza mantém-se, porque dela não se pode privar a sobrevivência humana, porém se faz com o
elo imediato de sujeito sobre objeto, abstraído de valoração que não à de proveito para o sujeito
explorador. A inversão dos valores e a mudança de pesrpectiva trazem as palavras de Michel Serres
definidoras da forma de cultura que se impõe neste tempo, a monocultura.
“Monocultura. Nada de novo sob o sol, só as fileiras intermináveis, homogêneas, expulsam ou
apagam o chamalote; o isótropo exclui o inesperado; o agrônomo afasta o agrícola; umas poucas
leis tomam o lugar dessas permutas pontilhistas feitas de pequenos toques. Em vez da cultura,
reinam a química e a administração, o lucro e as escritas. Um panorama racional ou abstrato
expulsa mil paisagens, em espectros combinatórios. Diante de nossos olhos, exibidas, duas visões
da razão ou da inteligência apresentam seu espetáculo.
As dificuldades não-lineares de mil exigências logo desmoronam ante as longas séries de trigo, de
milho, todas simples e fáceis. O único toma o lugar do múltiplo. E a desordem pura, ante a ordem
homogênea, expulsa as misturas refinadas”13.
Além da monocultura, a expansão do mercado trouxe a diversidade de oferta de alimentos e a
constância da oferta, pela possilidade do trânsito dos alimentos pelos continenetes, escapando da
sazonalidade e das intempéries climáticas.
Não é porque os homems se encontram em um país temperado que sua alimentação será privada das
delicias dos trópicos e vice e versa. Esta riqueza para o consumidor é, no reverso, oportunidade de
mercado para os produtores e fornecedores.
Para facilitar a circulação dos produtos agrícolas e garantir o aumento do retorno financeiro, é
importante diminuir a diversidade e aumentar a uniformidade do consumo, que se torna
independente da diversidade bilógica de um país.
Apenas uma dúzia de espécies representa mais de 80% do todo mundial anual de todas as culturas
no mundo moderno. Essa dúzia de exceções são os cereais trigo, milho, arroz, cevada e sorgo; o
legume soja, as raízes e os tubérculos batata, mandioca e batata-doce; fontes de açúcar como a cana-
de-açucar e a beterraba; e a fruta banana14.
Produção e consumo se ajustam na medida do poder do produtor de impor sua produção e no poder
aquisitivo do consumidor. Não há clima nem fronteiras para a moeda. O maná jorra para aqueles
que tem a disposição a pagar. Existe uma submissão da produção de alimentos aos interesses de
investimento. Não se produz para alimentar-se, mas para gerar retorno financeiro. Logo, quanto
mais sólido for um país em capital, maior sua riqueza alimentar e maior o seu poder em determinar
o alimento que consumirá.
A história das colonias inglesas na África mostra que, enquanto se planta sorgo para alimento dos
animais, mingua-se em desnutrição e miséria. O processo de colonização da África introduziu
alimentos que eram estranhos à alimentação daqueles povos, trouxe exaustão da terra e dos recursos
hídricos, e passaram a fazer parte de sua alimentação básica.
O sorgo foi plantado no século XIX pelos ingleses em suas colonias e hoje, a população disputa sua
alimentação com a exportação para alimentação de animais europeus.
Este comércio motivou a denúncia de Robert Kurz:
“Os navios container que transportam cestas básicas como modestas contribuições para as regiões
de fome da África, retornam, levando das mesmas regiões, produtos de luxo e de monoculturas,
13 Serres, M. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001, p. 260. 14 Diamond, J. Opus cit. , p. 132.
sobre os quais a grande maioria da população local não obtém qualquer vantagem, seja como
produtores, ou consumidores.
Na atual forma de desenvolvimento do comércio intrnacional, não se padece de fome por escassez
de alimentos, mas por falta de meios financeiros”.15
Países produtores e autosuficientes em alimentos, mas dependentes financeiramente, são
submetidos à miséria.
Em conclusão, a produção de alimentos é construída pelas exigências do mercado, isto é, pelo poder
de decisão de investimento e de exploração dos recursos naturais.
Como estas decisões são desenvolvidas depende, entretando, do estado da ciência e da técnica
disponíveis. Por sua vez, o desenvolvimento desta ciência e técnica é estimulado por aqueles que as
desejam para majorar seu rendimento.
3. Produção de alimentos: ciência e riscos
A ciência é o locus da razão moderna, a redenção humana e sua escravização, base de sua
conservação e ameaça a sua existência.
Segundo Adorno e Horkheimer: “com o desenvolvimento do sistema econômico, no qual o domínio
do aparelho econômico por grupos privados divide os homens, a autoconservação confirmada pela
razão, que é o instinto objetualizado do indivíduo burguês, revelou-se como um poder destrutivo da
natureza, inseparável da autodestruição”16.
Produção de riquezas, fundada no aumento da produtividade sempre ignorou os riscos que são
produzidos com ela.
O desenvolvimento da ciência avança freqüentemente antes do conhecimento sobre seus riscos,
tornando difícil uma contraposição ao discurso científico que se torna hegemônico e se impõe como
política.
As ciências naturais e a técnica converteram-se num dogma, mas com a diferença fundamental que
várias das insígnias do seu poder a definir são ainda válidas e ainda se confirmam em outros
campos. A aspiração das ciências ao monopólio da racionalidade na percepção dos riscos é
equivalente a um papa clamando infalibilidade convertida num dogma evangélico.
15 Kurz R. Der Kolaps der Modernisierung. Frankfurt am Main, Eichborn, 1991, pp. 270. 16 Adorno/Horkheimer. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1985,p.89.
Assumindo o lugar da religião e mediando intensamente a relação do homem com a natureza, a
ciência direciona a forma da produção, apazígua quanto aos riscos da produção, sendo um
instrumento bastante poderoso na formação de hábitos alimentares.
“Olhando-se as coisas mais de perto, percebe-se que as decisões técnicas são ao mesmo tempo
decisões políticas, não necessariamente condizentes com as aspirações de uma sociedade
democrática e livre. A evolução atual da biotecnologia reflete um processo de tomada de decisão
onde interesses comerciais prevalecem sobre as preocupações sociais e ecológicas. Esta contradição
fundamental está no cerne da política das novas biotecnologias agrícolas”17.
Os riscos da civilização dão ensejo a uma espécie de novo reino das trevas, comparável aos deuses e
demônios dos tempos primordiais, os quais decidem entre si por traz do mundo visível e põe em
perigo a vida humana nesta nossa terra. Hoje em dia, as pessoas não se comunicam com os
espíritos das coisas, mas, por outro lado, elas se vêem como expostas a radiações, ingestão de
ingredientes tóxicos18.
Riesgos se interpretan aquí (en principio de forma similar a la idea predominante) como
inseguridades determinables y calculables que l misma modernidad industrial produce como
consecuencias secundarias, advertidas o no, subyacentes a determinadas ventajas y ante las que
reacciona – o precisamente no reacciona – con regulaciones sociales. Los riesgos son
“determinables” mediante dispositivos técnicos, cálculos de probalidad, etc., pero también – lo que
muchas veces no se toma en consideración- mediante instituciones sociales que fijan la imputación,
la responsabilidad civil y la prevencion de los tratamientos pos-traumáticos. En este sentido se
dibuja un consenso a escala internacional en las publicaciones del ámbito de las ciencias soiales
para distinguir entre: peligros preindustriales, que no proceden de decisiones tecico-economicas y
pueden, por lo tanto, atribuirse a factores externos (naturaleza, diose), y riesgos industriales, que
son producto de decisiones sociales, que deben ser podnderados desde las ventajas ofrecidas y
analizados, negociados o, también, cargados sobre los individuos en función de las reglas
científicas, jurídicas, etc.19
Estes dizeres de Ulrich Beck é uma fiel descrição da sociedade industrial que avança, ciência a mão,
rumo ao progresso, futuro incerto e desejado pelos sujeitos insatisfeitos do presente.
As carnes com hormônios, as inúmeras vacinas com inoculação de vírus vivo, os pesticidas,
conservantes, corantes, emulsificantes, estabilizantes são exemplos de como não consumimos
qualquer alimento que não tenha o seu quinhão de produtos químicos.
17 Gerad Middendorf et al., 1998 18 Beck, U. Políticas Ecológicas en la edad del riesgo. Barcelona, El roure, 1998. p.162. 19 Beck, U. opus cit. p. 131
“From the nineteenth century, ceall, synthetic (or chemical) fertilizers began to be used in Europe.
At the beginning of the twentieth century, their use grew in the industrialized countries.”20
A produção de pesticidas sintéticos ganha seu verdadeiro impulso após a segunda guerra mundial,
dando destino aos resíduos químicos da guerra. Produtos elaborados para morte, passam a fazer
parte da manutenção da vida. Seu uso indiscriminado atingiu todas as partes do planeta. While in
1900 the world consumption of the three principal mineral fertilizers, nitrogen (N), phosphoric acid
(P205), and potassium (K20) did not reach 4 million tons of fertilizer units, in 1950 it was a little
over 17 million tons, and, at the end of the 1980s, it reached 130 million tons. O valor por atacado,
de tais produtos situou-se bem acima de um quarto de bilhão de dólares.
No Brasil, o índice de aplicação destes produtos por hectare plantado é um dos maiores do mundo.
Rachel Carson, em sua obra revolucionária de 1962 determinava:
“Se a Declaração de Direitos não contém garantia alguma, que afirme que o cidadão deve ser
protegido contra os venenos letais, distribuidos seja por indivíduos particulares, seja por
funcionários públicos, isso se dá por certo, apenas porque os nossos antepassados, a despeito de sua
considerável sabedoria e do seu notável descortino, não poderiam conceber o aparecimento de
semelhante problema”21. A servidão da ciência ao poder econômico debilita seu papel na previsão e
avaliação de riscos da produção, pois não se pode servir a dois senhores.
Valores-limite para traçar a quantidade permitida de poluentes e toxinas no ar, água e comida têm
em relação à distribuição de riscos uma função comparável àquela da realização do princípio em
relação à desigual distribuição de riquezas. Ambos permitem a produção de toxinas e legitima-a nos
limites restritos. Limitação da poluição é equivalente à aceitação dela.
Formalmente, valores, mesmo valores limites são assuntos da ética e não da química.
Esta ética hoje modificou-se do “Não se deve envenenar um ao outro” para “Não se deve envenenar
totalmente um ao outro”.
O desconhecimento quanto à existência de riscos permitiu a escalada de venenos que foram tidos
sem qualquer resalva como os promotores da grande expansão agrícola. Neste sentido, manifesta-se
Ulrich Beck, “our productive forces create a liberation which ends up enslaving us, that we are
captives of a rationality that has flipped over into irrationality”.22
Para minimizar este fenômeno deve-se evitar a colonização das pesquisas pelo mercado, a ciência
deve guardar sua independencia para que possa servir ao bem-estar da sociedade.
20 Mazoyer, M. A History of World Agricultura. London, Earthscan, 2006. p. 385 21 Carson, R. Silent Spring. Boston, First Mariner Books edition, 2002, p. 12. 22 Beck, U. Ecological Enlightment, Essays on the politics of Risky Society, New York, Humanity Books, 1995, p. 77.
O movimento de construção de um espaço da ciência livre do mercado não é ‘natural’, isto é, a ele
são oferecidas resistêmcias de poderes econômicos a que a ciência deve seu apogeu e legitimidade.
A imposição de diversidade de movimentos e a resistência a poderes sociais pré-estabelecidos
dependem de contra-poderes engendrados no interior mesmo desta sociedade. O direito pode ser
construído como uma opção de contrapeso ao poder econômico hegemônico, organizando o campo
de influencia do poder econômico, impondo limites a sua expansão ou colonização dos domínios do
conhecimento e da cultura.
Por outro lado, é este mesmo direito que apresenta normas de introdução de novas tecnologias,
legitimando aditivos alimentares, permitindo a construção de novos alimentos para o consumo,
liberando o mercado de produção e circulação de sementes modificadas geneticamente, construindo
uma base quase que invisível para a formação de hábitos alimentares e de um conformismo cultural
e social sobre a impossibilidade de comer diferente, enquanto que o grande mercado agradece a
ordem estabelecida e os espaços conquistados.
4 . Produção de alimentos: Direito, uniformidade e diversidade
O desenvolvimento do processo produtivo depende do direito para amparar e regulamentar os meios
empregados por ela, garantir as regras de intercâmbio, assentar e divulgar hábitos de consumo. O
direito traduz as aspirações da produção e ampara-se no conhecimento tecnico-cientifico para
regular e estimular a produção de alimentos. Portanto, a introdução de novos ingredientes químicos,
como conservantes, corantes etc, que são indispensáveis à conservação e à atração do consumidor, é
regulada a partir de avaliações técnicas de tolerância para saúde humana.
As normas sobre uniformização da viticultura na Europa, a regulamentação do teor alcoolico dos
vinhos e dos aditivos químicos que podem ser adicionados, desde o século XVIII, são responsáveis
pela construção de um mercado competitivo que opera, paradoxalmente, graças à diminuição do
espectro das diferenças e, de uma certa forma, pela imposição de gostos. Até hoje, este antigo
mercado ampara-se em regras estritas, agora impostas pela União Européia, que impõe a
apresentação de informações por todos os que pretendem plantar uvas para vinícolas.
A regulação dos alimentos é dependente da uniformização das regras sobre aditivos na produção.
Estas regras devem ser aceitas amplamente pelas instituições dos diversos mercados consumidores,
para permitir uma homogeneização dos produtos e sua aceitação generalizada.
Dentro da mesma dinâmica de regulação, é possível citar as normas relativas à autorização do uso
de pesticidas e medicamentos, assim como o estabelecimento de níveis de toxidade etc. Este
desenvolvimento culmina com a controvertida regulamentação dos OGMs.
O mercado necessita de regras gerais e homogênas. Ao tratarmos do mercado mundial de alimentos
é importante que as preferências e as regras sejam também uniformizadas. Afinal, o alimento
necessita circular por longas distâncias e ser armazenado; os paladares necessitam estar
aproximados para a produção menos diversificada possível. Com isto alguns fenômenos em
alimentação têm ocorrido por todos os cantos da terra, atingindo culturas das mais diversas,
alterando-as em direção a perda de suas especificidades. O alimento transformado em mera
mercadoria, não tem a personalidade da origem e o consumidor reage com superficial racionalidade
voltada à aparência da embalagem, dados nutricionais ou calóricos, preço, praticidade, perdendo as
observações sensuais própria à escolha dos alimentos, como olfato, textura, paladar, visão do
alimento propriamente e não do seu envólucro. Assim, nos traduz Horkheimer no verbete ‘ciência
da mercadoria’.
« Como se o genérico não residisse justamente dentro das mais finas nuances do particular ! Assim
é a carne de boi assada que se oferece aos convidados por ocasião do banquete de casamento. Há
ainda nela alguma coisa da refeição do inverno prolongado, em que se sabia apreciar o macio e o
suculento, o sabor próprio às diferentes partes do animal, a forma como ele foi alimentado. Ainda é
possível perceber algum rastro desta percepção na família urbana do século XIX, quando a mãe se
dirigia ao açougueiro e os dois discutiam como ‘connaisseurs’ sobre a parte que ela adquiria para o
preparo da refeição doméstica. As crianças também participavam desta percepcção, assim como das
formas mais apropriadas para o preparo da refeição. No consumo de massa da atualidade, um tal
conhecimento, inseparável da cultura, está perdido. Já é bastante quando se sabe distinguir uma
bisteca de um escalope de vitela, e para as dietas, as carnes magras das gordas. Calorias e empresas
de embalagem (packing firms) ocupam o lugar das nuances aprendidas pela experiência. Mas dentro
da « Heinz Beef-soup » aparece a essência da carne bovina, o genérico, a idéia do banquete – na
qual se apaga o particular. Bem distinta é a idéia do belo ».
A alimentação é uma realização da cultura. A culinária marca a passagem da natureza à cultura, ela
se impõe redefinindo a condição humana, desde aquilo que parece o mais natural como a fome até o
mais refinado complexo gastronômico.
O direito, ao normatizar os alimentos, está tocando em um momento fundamental de formação e
reprodução da cultura, que é o da produção e consumo de alimentos. Alimentação mantém uma
estreita relação com o modo de vida. Uma cultura massificada, voltada aos impulsos provocados
pelo mercado, tem uma alimentação massificada dependente da oferta e das atrações construídas em
mercado. Opções geográficas, sazonais, tradicionais são prejudicadas em nome da escolha definida
pelo ofertado nas prateleiras do mercado mais atraente.
A cultura é colonizada pelo mercado e a prática de produção dos alimentos que era vinculada a
religião, costumes comunitários, disponibilidade ambiental passa a ter nos imperativos do mercado
a sua conformação, onde a uniformização de gostos, a durabilidade e a atratividade pela quantidade
serão os princípios condutores.
Este movimento massificado não é vivido sem uma crescente resistência. A reação à cultura da
uniformidade é sentida na filosofia, e mesmo na ciência e direito – originais instrumentos da
uniformização. Michel Serres proclama:
“A inteligência regozija-se ao discernir a veriedade, cultivemos o variado para que viva, ativa, a
inteligência”23.
O movimento pela diversidade é um interesse cultural e uma necessidade ciêntifica, ambiental e
paradoxalmente, reclamada pelo próprio mercado, responsável pela uniformização de gostos e
preferências. A ambivalência se instala definitivamente. As instituições que viabilizam e impõem
mudanças culturais são aquelas que também passam a comunicar as alternativas para o regional, o
‘terroir’, o artesanal, o livre de aditivos, o responsável ambiental e socialmente.
O mercado, por um lado, necessita de uniformidade das regras e limitação das opções, por outro,
requer constante inovação para expansão da produção e renovação do movimento de acumulação.
Deve haver bancos de diversidade material e intelectual a que ele deve recorrer. A diversidade
biológica, a diversidade cultural são dois destes depositários de diversidade que são mantidas por
estarem afastadas da relação de mercado, e, por este mesmo motivo, são tão atraentes ao mercado
que homogeniza o diverso e pelo diverso se renova.
Identifica-se na relação diversidade e mercado uma relação tensionada como o amor do Minotauro
por Ariadne, em que a aproximação pode gerar a destruição. A força reificadora e niveladora do
mercado, capaz de transformar o diferente em equivalente deve ser controlada, para que a
diversidade venha a ser incorporada e lhe seja garantida a força de permanecer diverso no ambiente
de consumo de mercadorias.
Para gerar esta ‘artificialidade’ do mercado, vem sendo construídas normas jurídicas no campo
internacional, regional e nacional, criando espaços, refúgios, para a produção reacionária à
uniformização e revolucionária perante o rolo compressor do mercado. São normas de cumprimento
voluntário, produzidas pelo direito estatal, ou criadas em esferas privadas de regulação,
comprometidas com a responsabilidade ambiental e social, cuja averiguação se faz por um
complexo sistema de auditorias, ao qual, voluntariamente, submetem-se as empresas que queiram
23 Serres, M. Opus cit., p. 260.
entrar neste novo nicho comercial. Produção orgânica, sustentável ambientalmente, sustentável
socialmente, livre de transgênico, valorizadora de etnias indígenas e modos de vida tradicional etc.,
são poderosos capitais diferenciadores da mercadoria apresentada, vinculado a organizações
administrativas, mistas ou privadas que possuem a expertise para certificar e auditar o produto e o
processo distinto do genérico, que reelabora a aproximação da cultura às raízes estéticas-sensitivas
da relação com a natureza.
5. Caminhos escolhidos
- diversidade biológica e produção de alimentos
A Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB - é um documento internacional de 1992, em que
participam 168 países, destinada à conservação da diversidade biológica do planeta. Além da
preocupação com a manutenção da variedade dos ecossistemas terrestre, a Convenção busca a
valorização das culturas locais, como meio para a conservação da diversidade bilógica selvagem e
cultivada. No que tange à biodiversidade cultivada, as decisões sobre biodiversidade agrícola na
CDB frequentemente fazem referência à FAO – Food and Agricultural Organization of the United
nationse ao International Treaty on Plant Genetic Resources for Food and Agriculture, buscando
com esta entidade uma sinergia para a valorização e proteção das culturas locais.
A importância da biodiversidade para a segurança alimentar foi reconfirmada no compromisso
número três da Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar realizada no Encontro Mundial
sobre Alimentos em Roma em 1996, o que faz da FAO um parceiro na implementação do Programa
de trabalho em Biodiversidade agrícola da Convenção sobre Diversidade Biológica. A Convenção
Internacional sobre Proteção Vegetal, o Código de Conduta para Pescaria Responsável e o Tratado
Internacional sobre Recursos Genéticos Vegetais, adotado em 2001, são exemplo de ações
internacionais para promover uma política de proteção da biodiversidade.
Ecossistemas agrícolas são comunidades dinâmicas e organismos vivos manejados por seres
humanos para produção de comida, combustível, energia e outros bens. Eles estão constantemente
em evolução para adaptar a variações ambientais, dinâmica populacional, conhecimento e avanço
tecnológico, mercados e comércio, e a política de meio ambiente. Pessoas e sua diversidade cultural
são um componente integral para os ecossistemas agrícolas, e a construção do seu sistema e da sua
organização social é indispensável para o desenvolvimento sustentável da agricultura.
Referidas decisões começaram a ser adotadas a partir da COP 3 – Terceira Conferência das Partes
da Convenção sobre Diversidade Biológica - a qual adotou a decisão III/11, sobre conservação e
uso sustentável da diversidade biológica agrícola, que estabeleceu um programa plurianual de
atividades sobre diversidade biológica agrícola. Os objetivos desse programa de trabalho são
promover:
- Efeitos positivos e mitigar os impactos negativos das práticas agrícolas sobre diversidade
biológica em agro-ecossistemas e sua interface com outros ecossitemas;
- Conservação e uso sustentável dos recursos genéticos de valor atual ou potencial para a
alimentação e agricultura;
- Repartição justa e equitativa de benefícios oriundos da utilização dos recursos genéticos (decisão
III/1, § 1).
Além da cooperação com a FAO, a decisão III/11, § 24 recomendou colaboração e consulta com a
Orgtanização Mundial do Comércio (WTO) para desenvolver uma apreciação melhor da relação
entre comércio e diversidade biológica agrícola. A COP em sua quinta reunião (decisão V/5, §5)
reconheceu a contribuição dos agricultores, povos indígenas e comunidades locais para a
conservação e o uso sustentável da biodiversidade agrícola, e a importância da biodiversidade
agrícola para os seus modos de existência, enfatizando a importância da sua participação na
implementação do programa de trabalho.
A decisão da sexta reunião da partes (VI/5) definiu a implementação do programa de trabalho
voltado a uma mais ampla compreensão das funções da biodiversidade nos agro-ecossistemas e a
intereção de seus elementos, a promoção de métodos de agricultura sustentável que empregam
práticas de manejo, tecnologias e políticas que promovem os impactos positivos e mitiga os
negativos sobre a biodiversidade, enfocando as necessidades dos agricultores, povos indígenas e
comunidades locais para participar eficientemente no processo alcançando estes objetivos
específicos.
A sétima Conferência das Partes (COP 7) realizada em Kuala Lampur, Malásia, estabeleceu
objetivos para 2010 e apresentou um quadro para dirigir sua implementação. No que tange à
biodiversidade agrícola (decisão VII/3), destaca o necessário trabalho com a FAO, a importância do
intercambio de tecnologias, sublinha a necessidade de ratificação do Tratado Internacional de
Recursos Genéticos Vegetais para alimentacão e agricultura, como um importante instrumento para
a conservação e uso sustentável dos recursos genéticos voltado à redução da fome e pobreza.
Também é reafirmado que ações fundamentais para a conservação da agro-biodiversidade devem
estar voltadas ao controle do plantio de sementes geneticamente modificadas. O artigo 15 da CDB
traz esta problemática, chamando o instrumento de avaliação de riscos para afastar estes impactos
negativos, o que foi posteriormente detalhado no Protocolo de Cartagena sobre Biosegurança,
assinado durante a quinta reunião das partes da Convenção sobre Diversidade Biológica.
A manutenção da diversidade agrobiológica depende da valorização da conservação da diversidade
de sementes, sobretudo, incentivando a formação de bancos genéticos de variedades locais,
resultado de séculos de tradição de cultivo, denominadas ‘variedades crioulas’.
O estudo e a conservação de variedades locais, formando-se um banco de sementes oferece uma
fonte de material de qualidade com grande diversidade genética, suprindo as perdas de habitats por
invasão de espécies estrangeiras, destruição ou mudanças climáticas. São utilizadas para a pesquisa,
reabilitação de ecossistemas empobrecidos, restabelecimento de hábitos alimentares esquecidos pela
fugaz facilidade apresentada pela oferta de sementes beneficiadas, e produtos industrializados no
mercado. Os bancos de sementes produzem um conjunto de dados e de resultados de pesquisa úteis
que sustentam os objetivos mais amplos da conservação das plantas.
O relatório da FAO publicado em 1996 sobre o estado dos recursos fitogenéticos do mundo que
somente 15% das coleções ex situ no mundo guardam espécies selvagens ou invasoras ou seus
parentes cultivados. A maior parte das coleções de espécies selvagens são conservadas por jardins
botâncios. A maior parte dos bancos genéticos encontram-se em climas temperados. Apenas trinta
cultivos fornecem 95% da dieta vegetal humana. Trigo, arroz e milho suprem mais da metade desta
energia (FAO, 1996).
A manutenção de variedades locais é vital para o ambiente e para o desenvolvimento das sociedades
que ganham independência alimentária, na medida que deixam de recorrer necessariamente ao
trânsito internacional de alimentos e ao cultivo de espécies exóticas pouco adaptadas ao clima e à
geografia, e que, por tal motivo, requerem maior quantidade de insumos químicos. A manutenção
da diversidade biológica é importante para a produção de comida e para conservar as funções
ecológicas necessárias para sustentar a vida e o modo de existência das populações rurais.
A FAO nos ensina que, a nível genético, diversidade em plantas e animais é particularmente
importante para a adaptação à gama de condições de cultivo e os estresses ambientais, como
temperaturas extremas, seca, pestes e doenças, salinização do solo, qualidade da água. A
disponibilidade de um vasto conjunto de recursos genéticos também contribui para Independência
alimentar, é um elemento importantíssimo para força política e econômica de uma sociedade,
sobretudo em países em desenvolvimento.
A nível das espécies, a diversidade de organismos em ecosistemas contribui para o desempenho de
importantes funções dos ecossitemas, como ciclo de nutientes, regulação de pestes e doenças e
polinização. A produção de uma diversa gama de espéices contribui também para a conservação e a
tomização dos recursos existentes. A nível de ecossistema, a resiliência de um ecosistema depende
da diversidade biológica para reduzir a vulnerabilidade (ambiental, econômica e social) e aumentar
a adaptabilidade dos ecossistemas às mudanças e necessidades ambientais. A diversidade biológica
em sistemas agrícolas também contribui para mais vastos serviços dos ecossistemas, como controle
biológico, manutenção da qualidade da água, saúde do solo e controle da erosão, sequestro de
carbono e controle das mudanças climáticas, além das funções recreativas, estéticas culturais e
espirituais.
A valorização econômica do plantio de sementes locais, acompanhada de políticas de distribuição e
consumo adequadas, gera riquezas, diminui o êxodo rural, forma cidadania pela identificação com a
terra e suas raízes culturais tradicionais. É bom sublinhar que a diversidade biológica no ambiente
agrícola é importante tanto para países em desenvolvimento como para os desenvolvidos, dada a
necessidade para controle dos riscos inerentes à prática agrícola como um todo.
A manutenção desta variedade genética para a produção de alimentos depende diretamente dos
conhecimentos autoctones. São os modos de fazer tradicionais que guardam a maior parte das
informações sobre diferentes alimentos e sua forma de cultivo. O compartilhamento destes saberes
com as novas tecnologias permite às comunidades locais afirmarem seus valores, sem se manterem
encerradas em um museu vivo, tendo capacidade para gerar bem-estar e projetar-se em relações
globais.
- Organismos Geneticamente Modificados – GMO e alimentos
Uma ameaça a este esforço está na expansão da indústria de sementes geneticamente modificadas.
Sementes são a essência do alimento, o início e a marca do que se consome. Quais sementes são
empregadas, como elas são conservadas, quem as detém, são questões determinantes na sociedade
moderna para identificação de quem detém o poder sobre a vida. A manutenção da pluralidade de
sujeitos que cultivam a terra, a diversidade de sementes, a distribuição do poder sobre a
conservação e reprodução das sementes são fundamentais para a diluição do poder sobre a
manutenção da vida e a garantia de que alimentos sejam destinados às mais distintas comunidades,
até nos mais áridos ecossistemas.
É a semente “um símbolo fundamental nas lutas contemporâneas. Como mercadoria, ela simboliza
a disposição e o poder do mercado, reforçados pelas inovações técnicas e mecanismos legais, de
penetrar domínios que até agora haviam resistido a tal invasão. Como recurso regenerativo, ela
simboliza as possibilidades do fortalecimento local, da autogestão, de toda a população ser bem
alimentada, da preservação da diversidade cultural e biológica, da sustentabilidade ecológica, de
alternativas à uniformidade das instituições neoliberais e da genuína democracia”24.
A discussão sobre a introdução de sementes geneticamente modificadas em culturas agrícolas e, por
outro lado, a valorização de bancos genéticos de variedades cultivadas ancestralmente por povos
indígenas e agricultores tradicionais, são questões políticas altamente sensíveis, em que a ciência,
coadjuvante fornecendo uma visão parcial mas necessária, toma parte evitando tomar partido.
A modificação genética de sementes é um processo biotecnológico, como são os melhoramentos de
espécies, a domesticação de plantas ou animais, os biocombustíveis. Todavia, representam um risco
inexistente nas demais ações biotecnológicas, em função de quatro grandes tipos de riscos próprios
a esta nova tecnologia:
“1. Riscos sanitários (por exemplo, potencial alergênico dos novos alimentos recombinantes, ou
difusão de novas infecções por meio de xenotransplantes).
2. Riscos ecológicos (por exemplo, redução da biodiversidade silvestre, ou contaminação de solos
ou lençois aquíferos por bactérias geneticamente manipuladas para expressarem substâncias
químicas).
3. Riscos sociopolíticos (por exemplo, redução da biodiversidade de agropecuária, ou aumento das
desigualdades Norte-Sul em decorrência de uma “terceira revolução verde” com base na engenharia
genética).
4. Riscos para a natureza humana por exemplo, difusão de ideologias e práticas eugênicas, ou
criação de novas “raças” de seres humanos para fins específicos)”.25
A relação agro-biodiversidade e organismo geneticamente modificado é uma relação de confronto e
conquista de espaço. A ameaça às variedades impostas pelos OGM é descrita pela FAO:
OGMs podem competir ou cruzar com espécies selvagens. Plantações geneticamente modificadas
podem ameaçar o cultivo de variedades existentes, especialmente se crescidas nas áreasque sejam
os centro de origem daquele cultivo. Ademais, as plantações com OGMs podem competir com e
substituir variedades de agricultores tradicionais e seus parentes que tenham cruzado ou evoluído
com as tensões locais. Por exemplo, variedades locais na América Latina permitiram salvar da
catástrofe a ferrugem da batata na Irlanda no ano de 1840. Hoje estas plantas frequentemente
ajudam a melhorar a tolerância climática e a resistência a doenças. Se os cultivos com variedades
geneticamente modificadas substituirem eles, estes podem ser perdidos, mas o mesmo vale para
melhorar variedades desenvolvidas a partir do cruzamento por métodos convencionais.
24 Lacey, H., Oliveira, M.B. Prefácio, in Shiva, V. Biopirataria, Petrópolis, editora vozes, 2001, p. 13. 25 Riechmann, J. Cultivos e Alimentos Transgênicos, Petrópolis, editora vozes, 2002, p. 58.
Do ponto de vista socio-econômico, pode-se anotar efeitos sobre a perda do acesso dos agricultores
ao material vegetal. A pesquisa em bioecnologia é conduzida predominantemente pelo setor privado
e traz, portanto, considerações sobre dominação de mercado no setor agrícola por algumas
poderosas companhias. Isto pode trazer um impacto negativo para os pequenos agricultores por todo
o mundo. Agricultores temem que eles terão até mesmo que pagar por variedades de cultivo
cruzadas a partir de material genetico que originalmente veio de seus próprios campos, caso eles
comprem sementes das companhias detentoras de patentes sobre “eventos” específicos de
modificação genética. Alguns argumentam que o acordo sobre comércio de direitos de propriedade
intelectual (TRIPS) da Organização Mundial do Comércio encoraja tal atitude. Todavia, há algumas
opções para proteger as práticas tradicionais dos agricultores dentro deste acordo. Também o novo
Tratado Internacional sobre recursos genéticos vegetais para alimentação e agricultura reconhece a
contribuição dos agricultores para a conservação e uso dos recursos genéticos vegetais pela
histpória e para as futuras gerações. Ele oferece um quadro internacional para regular o aceso aos
recursos genéticos vegetais e estabelece um mecanismo para dividir os benefícios oriundos de tal
uso.
Também há o temor sobre o impacto das tecnologias “terminator”, que basicamente impede a
cultura ser renovada no ano seguinte por suas sementes serem impossibilitadas de germinar.
(http://www.fao.org/english/newsroom/focus/2003/gmo8.htm)
Companhias de biotecnologia desenvolveram uma tecnologia de restrição de uso (GURTs) genetic
use restriction technologies, para controlar a fertilidade das sementes. A tecnologia desenvolvida
por companhias de biotecnologia multinacionais é controversa porque o codigo genético está
programado para produção de sementes estéreis impedindo o agricultor de plantar, por isto é
também conhecida como tecnologia “terminator”, criadora de sementes suicidas. Nos Estados
Unidos a patente foi conquistada nos anos 90. Desde 5 de outubro de 2005 a ‘tecnologia
terminator’ tem sua patente garantida na Europa. A patente Terminator foi aprovada para todas as
plantas que são geneticamente construidas para que suas sementes não germinem. As plantas
criadas com a tecnologia Terminator vão produzir sementes estéreis, criando um monopólio e um
controle artificial sobre as sementes. Os agricultores não poderão usar as sementes de tais plantas
para o cultivo da próxima estação. As sementes vão apodrecer no solo sem germinar.
(1) A patente Terminator, EP 775212B, foi concedida para US-based Delta & Pine e United States
of America, representado pelo Secretário da Agricultura. De acordo com posteriores pesquisa em
banco de dados, a patente já havia sido concedida em versões similares nos EUA, demandas
posteriores já foram feitas na Austrália, Brasil, China, Hong Kong, Japão, Turquia e Africa do Sul.
(2) http://www.banterminator.org http://slogefree.org/news05/news_item.2005-10-28.6599411525
A CBD solicitou à UPOV26 que se manifestasse sobre sua decisão VI/5 relativa à tecnologia
Terminator ao que recebeu a seguinte resposta evasiva:
UPOV has not to-date, in the context of its work or otherwise, examined substantively the
intellectual property implications of GURTs, as identified in the decision above. No entanto,UPOV
gostaria de aproveitar a oportunidade deste convite para comentar a necessidade dos produtores
de ter um sistema de proteção de modo a reaver seus investimentos e receber incentivos, a fim de
possibilitar as suas atividades de produção. A este respeito, UPOV anota que a Convenção UPOV
oferece um sistema efetivo e equilibrado para a proteção de novas variedades vegetais que
assegura os interesses dos produtores. Onde existem sistemas efetivos de proteção, criadores não
precisam confiar em outros sistemas de proteção. A respeito das varietades contendo CURTs, deve
ser anotado que tais variedades podem estar assegurada pelos direitos dos produtores desde que
satisfaçam as condições.
A rede Food Rights Network (FORINET), aliada a organizações de agricultures e de comunidades
de base e sociedade civil, baseada no leste de Uganda, escreveu ao corpo de pareceristas cientistas
da CBD afirmando que há pouco conhecimento sobre o potencial risco à saúde e ao ambiente no
uso da tecnologia terminator.
Um temor bastante significativo é referente à polinização cruzada. Isto é, sementes contendo a
tecnologia terminator podem cruzar com as sementes da vizinhança e tornar estas sementes nativas
estéreis também, o que provocaria uma catástrofe ambiental pela destruição de espécies, além de
econômica e social, pela invialibização do cultivos pelos agricultores que não são consumidores das
sementes produzidas pelas companhias de biotecnologia.
Povos africanos também estão preocupados com o fato de que novas liberalizações das regras do
comercio internacional – que estão sendo negociadas na Organização Mundial de Comércio –
podem facilitar o ingresso do Terminator e outros GMOs em países como Uganda, onde foram
banidas as sementes geneticamente modificadas.
"Talvez seja difícil de compreender por aqueles oriundos de países desenvolvidos o que a semente
significa para nós. Mas nós podemos assegurar que quando descrevemos essa tecnologia aos
26 A International Union for the Protection of New Varieties of Plants (UPOV) é uma organização intergovernamental com sede em Genebra (Suiça). A UPOV foi criada pela Convenção Internacional para a proteção de novas variedades de Plantas. A Convenção foi adotada em Paris em 1961. O objetivo da Convenção é a proteção das novas variedades de plantas por meio dos direitos de propriedade intelectual.
agricultures, a resposta deles é unânime em descrença, medo e ultrage”.
http://biotech.indymedia.org/or/2006/03/4911.shtml
A introdução de novas sementes oriundas de modificações biotecnológicas pelos produtores, onde
se encontra a modificação genética também, interfere no ecossistema e na economia de produtos
agrícolas. Por tais motivos, a adoção de rotulagem e certificação tem sido uma prática adotada
compulsoriamente por alguns países e voluntariamente por outros. Japão, inglaterra e Argentina
sendiam no governo o conrole de certificação de sementes. A OECD (Organisation for Economic
Cooperation and Developpment) fornece uma gama de ‘Esquemas Voluntários para Certificação
Varietal de transito de Sementes no Comércio Internacional” e a União Européia prescreve uma
ampla série de standards minimos de qualidade. Nos Estados Unidos, a certificação de sementes é
voluntária, e é administrada por autoridades independentes. Rotulagem pode ser requerida também
para todas as sementes ou apenas para aquelas certificadas. Os testes realizados para homologação
da comercialização de sementes relatam sobretudo os critérios de distinção, uniformidade e
estabilidade – dirtrizes estabelecidas pela UPOV e se a nova variedade tem valor para cultivo e uso
(VCU).27
A rotulagem e a certificação têm sido práticas de comércio distintivas das mercadorias oferecidas,
permitindo ao mercado escolher e reconhecer o produto adquirido que em sua aparência pode
parecer uniforme. De fato, a rotulage e certificação, são dois importantes instrumentos para o
fortalecimento dos caminhos que são construídos no mercado de alimentos, alternativos à
massificação e indiferenciação impostas pelo processo de formação da mercadoria. Isto ocorre tanto
para as sementes, como também para os produtos elaborados conforme se apontará a seguir.
- Indicação Geográfica, Certificações de Origem
Uma das certificações que influenciam a manutenção da diversidade biológica no campo é aquela
referente à produção de alimentos sem aditivos químicos como pesticidas e adubos. São os
alimentos orgâncos que encontram o consumidor pela certificação adotada, eficiente meio de
divulgação do diferencial que possibilita o exercício da escolha pelo cidadão urbano. No Brasil,
existe hoje 1% da área cultivada com alimentos orgâncios, apresentando um crescimento em 300%
durante dois anos (2001-2004). A certificação alimentar para produtos alimentícios diferenciados da
massificação construída no mercado tem sido um instrumento fundamental para diversificar a oferta
e possibilitar novas escolhas ao consumidor.
27 Kerry ten Kate e Arah A Laird. The Commercial Use of biodiversity – Access to Genetic Resources and Benefit-Sharing. London, Earthscan Publications, 200, p. 130.
Este instrumento vai atuar exatamente nos dois eixos de uniformização adotados pelo mercado: 1.
aditivos voltados à conservação; 2. standartização dos produtos alimentícios pela eliminação das
suas origens e singularidades qualitativas.
No caso da reação à uniformização pela maior conservação, destacam-se as certificações para
produtos orgânicos, para a isenção de organismos geneticamente modificados, para a valorização
dos pequenos entrepostos (movimento mais sensível em países da Europa, como a França). Pela
atuação en vista do aumento de diferencial qualitativo dos produtos em função da sua origem e do
seu modo de elaboração, cite-se basicamente as indicações geográficas e certificações de origem.
Estas são espécies de rotulagem previstas pelo tratado internacional sobre propriedade intelectual –
TRIPS. A certificação da origem não é mero indicativo de lugar, ela traz uma noção de causalidade,
conforme explica Berard: “além da indicação de local de produção, ela exprime o conjunto de
fatores ligados a este lugar que conferem ao produto suas qualidades específicas”28.
Desde a antiguidade, o comércio mediterrâneo se organizou proclamando a origem dos produtos
comercializados. Esta ‘traçabilidade’ informa os compradores sobre as caracterísitcas dos produtos,
segundo o meio natural e os saberes dos produtores ligados a sua região ou localidade.
A partir do século XVIII, e sobretudo no século XIX, as designações de origem e de autenticidade
dos produtos são sacrificadas em razão das vantagens das marcas de fabricantes. Para os produtos
agrícolas, a extenção das trocas intercontinentais engendrou desordens ecológicas, econômicas e
sociais por causa da importação dos organismos destruidores dos sistemas biológicos e agrícolas
(crise do mildiou sobre as batatas, o phyloxéra sobre os vinhedos)29.
Desde o começo do século XX, o legislador francês reconhece o uso de um nome geográfico para
identificar e proteger de contrafações de um produto cujo caráter está ligado a uma área e a um
saber-fazer. O conceito de apelação de origem controlada (AOC) – sobre a qual repousa esta
regulamentação – é forjado pouco-a-pouco para dar o sistema original que se conhece hoje: um
sistema que associa a qualidade de um produto a sua origem geográfica e se apóia sobre a iniciativa
e organização dos produtores e sobre a coordenação de um organismo público, o INAO30.
Em 30 de julho de 1935, a França promulga um decreto lei instaurando as apelações de origem
controlada para os vinhos e destilados (eaux-de-vie) e confia sua regulamentação ao instituto
nacional das apelações de origem (Inao), que foi depois estendido para produtos leacteos e
agroalimentares em 199031.
28 Bérard, L. e all. Biodiversité et savoir naturalists locaux en France. Paris, CIRAD-IDDRI, 2005, p. 180 29 Idem, p. 177. 30 Idem, p. 170. 31 Cf. Idem, p. 178.
Em 1992 a União européia se inspira nas lições francesas e expande. Ela adota um regulamento
relativo à proteção das indicações geográficas e às apelações de origem.
Em 1994, a Organização Mundial do Comércio (OMC) reconhece as disposições particulares para
proteger, em escala internacional, os produtos beneficiados pela indicação geográfica de um país. O
artigo 22 do Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual que tocam o comercio aplica-se
aos nomes geográficos ou assemelhados na medida onde há confusão ou concorrência desleal com
um produto similar, mas ele exclui toda a possiblidade de proteção por nome de raça de animais ou
de variedades vegetais32.
Não se deve esquecer que o sucesso e a permanência das produções vinculadas à área geográfica
(terroir) e aos saberes e saber-fazer que lhe são associados depende em última análise de um grupo
de atores essenciais, os consumidores. O consumidor conhecedor ou curioso, vinculado a uma
ampla paleta organoléptica, não se submete à oferta, mas aspira a ter um papel ativo na manutenção
da diversidade, envolvendo-se decididamente dentro da demanda. Ainda é necessário que ele possa
se encontrar na selva dos sinais. Os avanços da qualidade, da proteção e valorização, tanto oficiais
como privados, multiplicam-se, obscurecendo cada vez mais o panorama.
Face a esta situação, informações confiáveis sobre a dimensão cultural das produções poderiam, ao
mesmo tempo, interessar o consumidor exigente e curisoso e asssegurar a valorização local do
produto, na condição todavia de ultrapassar as aproximações de abundantes lugares comuns.33
Assim que os produtores optam por engajar-se no processo de proteção, eles devem preparar juntos
um programa de tarefas. Os atores locais que se ignoram e tem por hábito agir de modo
individualista são assim levados a se conhecerem e a trabalharem juntos em torno de um projeto
comum. É, em primeiro lugar, da qualidade deste processo coletivo que depende o sucesso
econômico do projeto, mesmo que seja sempre necessário fazê-lo ser acompanhado por uma
política governamental própria.
A apelação de origem é uma proteção jurídica que permite tornar competitivo produtos e modos de
produção que não o seriam livremente: o direito cria micromercados a partir de sistemas de
produção que seriam condenados pelas regras clássicas da competitividade. Ao mesmo tempo, para
justificar e fazer valer sua especificidade, os produtos de apelação se inscrevem em um percado
global. As Apelações de Origem Controlada contribuem, assim, para manter aberto o debate sobre
as alternativas técncias, sobre a pluralidade dos modelos de produção e dos sistemas econômicos34.
32 Idem, p. 179. 33 Idem, p. 172/3. 34 Idem, p. 189.
A pertinência economica e a legitimidade deste tipo de proteção respondem a objetivos de política
pública, tais como a proteção do consumidor e do meio ambiente, a manutenção da paisagem, a
valorização dos conhecimentos tradicionais e dos recursos biológicos coletivos, o desenvolvimento
rural, etc. 35
Entre uniformizar e diferenciar, oscila o direito e a política nacional e internacional. Na verdade,
este balanço retrata a ambigüidade da sociedade que seduz-se com as vantagens e facilidades da
circulação, conservação e globalização dos alimentos, mas, ao mesmo tempo, deseja melhor sabor,
menor interferência química, e manutenção de seus trabalhos, quando o assunto é o trabalho no
campo. Um movimento internacional ganha força com base na oposição semântica e de conteúdo à
vertente dominante do fast food. O movimento slow food, sob o mote de proteger e promover o
gosto, ganha força. “Mudar de vida para mudar a vida, comer menos e melhor para que os
produtores possam produzir melhor, educar seu paladar e das crianças, buscar, na convivialidade, o
prazer do gosto, pagar o justo preço dos produtos alimentícios autenticos, tais são alguns dos
objetivos da associação ‘Slow Food, que conta com 80.000 membros em 80 países.”36
A experiência da Slow Food alia à biodiversidade os aspectos culturais do gosto e do prazer pela
boa comida, acentuando os saberes locais dos produtores além de divulgar conhecimentos e
apreciação dos consumidores.
Concluindo, paralelamente ao avanço desenfreado da técnica e da ciência que colocam em risco a
segurança alimentgar e a diversidade cultural e das espécies vegetais, o mercado vem propiciando,
talvez para um consumo de elite que esteja desposta a pagar pelo retorno ao belo e ao substancial do
gosto e da consciência moral social e ambiental, opções que tragam como consequência uma
sociedade ambientalmente e socialmente mais sustentável.
Ao final das considerações feitas, é definida uma indagação sobre a eficiência deste mecanismo e a
provocação para o aprofundamento de uma discussão que se faz tarde, e que impõe o ingresso
aberto e franco na política do assunto alimentação, que é uma questão vital para a existência, saúde,
cultura, economia e conservação dos recursos naturais. Seu debate político, considerando todas
essas implicações, deve indicar medidas jurídicas indispensáveis aos princípios da CDB, e à
decantada sócio- biodiversidade.
35 Bérard, L. e all. Biodiversité et savoir naturalists locaux en France. Paris, CIRAD-IDDRI, 2005, p. 215. 36 Idem, p. 211.