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Alimento e Nutrição No Contexto Dos ODM

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Conferência sobre alimentação e nutrição no contexto dos objetivos do desenvolvimento do milênio. Unisinos

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  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    Cadernos IHU em formao uma publicao em formato digital que oferece edies

    monotemticas, com debates de problemticas atuais atravs da colaborao de especialistas de

    diversas reas. Este caderno busca reunir entrevistas e artigos produzidos na Revista IHU On-Line,

    no Notcias do Dia do IHU, nos Cadernos IHU ideias, alm de colaboraes inditas.

  • 3

    Cadernos IHU em formao

    Alimento e Nutrio no contexto dos

    Objetivos de Desenvolvimento do Milnio

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Reitor

    Marcelo Fernandes Aquino, SJ

    Vice-reitor

    Jos Ivo Follmann, SJ

    Instituto Humanitas Unisinos IHU Diretor

    Incio Neutzling, SJ

    Gerente administrativo Jacinto Schneider

    Cadernos IHU em formao

    Ano 10 N 47 2014 ISSN 1807-7862

    Editor

    Prof. Dr. Incio Neutzling Unisinos

    Conselho editorial

    Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta Unisinos Prof. MS Gilberto Antnio Faggion Unisinos Prof. MS Lucas Henrique da Luz Unisinos

    Profa. Dra. Marilene Maia Unisinos Dra. Susana Rocca Unisinos

    Conselho cientfico Prof. Dr. Celso Cndido de Azambuja Unisinos Doutor em Psicologia

    Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos UFJF Doutor em Sociologia Profa. Dra. Maria Victoria Benevides USP Doutora em Cincias Sociais

    Prof. Dr. Mrio Maestri UPF Doutor em Histria Prof. Dr. Marcial Murciano UAB Doutor em Comunicao Prof. Dr. Mrcio Pochmann Unicamp Doutor em Economia

    Prof. Dr. Pedrinho Guareschi PUCRS Doutor em Psicologia Social e Comunicao

    Responsvel tcnico Caio Fernando Flores Coelho

    Reviso

    Carla Bigliardi

    Projeto grfico e editorao

    Rafael Tarcsio Forneck

    Bibliotecria responsvel: Carla Maria Goulart de Moraes CRB 10/1252

    Universidade do Vale do Rio dos Sinos

    Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 So Leopoldo RS Brasil

    Tel.: 51.35908223 Fax: 51.35908467

    www.ihu.unisinos.br

    Cadernos IHU em formao / Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Instituto Humanitas Unisinos. Ano 1, n. 1 (2005)- . So Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2005- .

    v. Irregular, 2005-2012 ;Semestral, 2013-.

    Publicado tambm em forma impressa, 2005-2008.

    Publicado exclusivamente on-line (desde 2009): . Descrio baseada em: Ano1, n. 1 (2005); ltima edio consultada: Ano 9, n. 45 (2013).

    ISSN 1807-7862

    1. Sociologia. 2. Religio. 3. tica. I. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Instituto Humanitas Unisinos. CDU 316

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  • 5

    Sumrio

    Apresentao: Sobre o XV Simpsio Internacional IHU.............................................................................10

    Vdeos das palestras........................................................................................................................................11

    Cida & Ado: jogo sobre a importncia da alimentao e nutrio...............................................................12

    Parte 1: Entrevistas realizadas para o XV Simpsio Internacional IHU

    Eliminar a fome requer inteligncia e tica.

    Entrevista especial com Jos Esquinas-Alczar.......................................................................................15 O mundo no um sistema de vasos comunicantes.

    Entrevista especial com Walter Belik. ....................................................................................................21 Um sistema alimentar que produz famintos e obesos.

    Entrevista especial com Esther Vivas.......................................................................................................26 A desnutrio invisibilizada.

    Entrevista especial com Maria Emlia Lisboa Pacheco...........................................................................30 Superar a mercantilizao para garantir segurana alimentar adequada e saudvel.

    Entrevista especial com Francisco Menezes............................................................................................35 O Brasil segundo a FAO Para alm dos objetivos do milnio.

    Entrevista especial com Alan Bojanic......................................................................................................38

    O ato de comer enquanto prtica poltica.

    Entrevista especial com Renata Menasche..............................................................................................41 A lightizao da existncia humana.

    Entrevista especial com Ligia Amparo da Silva Santos...........................................................................44 ''O carrinho de compras deve ser transformado em carro de combate''.

    Entrevista especial com Jos Esquinas Alczar.......................................................................................47 A rdua tarefa de medir o desperdcio.

    Entrevista especial com Walter Belik......................................................................................................50 ''Jogamos fora 30% dos alimentos que compramos, metade sem nem abrir o pacote''.

    Entrevista especial com Jos Esquinas-Alczar.......................................................................................54 "O meu desperdcio a privao do consumo do outro".

    Entrevista especial com Altivo de Almeida Cunha.................................................................................57 Por uma alimentao sustentvel e ecologicamente correta.

    Entrevista especial com Paulo Waquil....................................................................................................62 A potente mensagem contra o desperdcio.

    Entrevista especial com Alfons Lpez.....................................................................................................68

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    Reduo do desperdcio trabalho para toda a sociedade.

    Entrevista especial com Celso Luiz Moretti............................................................................................71 preciso elevar as motivaes polticas e econmicas.

    Entrevista especial com Patrcia Barbieri.................................................................................................74 Dos ultraprocessados aos alimentos: resgatando a boa nutrio?

    Entrevista especial com Signor Konrad.................................................................................................77 Acordo para reduo de sdio nos produtos industrializados no eficiente.

    Entrevista especial com Ana Paula Bortoletto.........................................................................................81 Transgnicos e Agrotxicos. Tudo a ver?

    Entrevista especial com Alan Tygel................................................................................................................84 Para alm dos dados. Observatrios de Segurana Alimentar no Brasil e em Cabo Verde.

    Entrevista especial com Rumi Regina Kubo............................................................................................88

    Acesso alimentao uma questo de direito humano, e no s de poltica pblica.

    Entrevista especial com Paulo Leivas......................................................................................................91 Desnutrio: um problema de sade pblica.

    Entrevista especial com Maria Luiza Garnelo Pereira............................................................................93 65% a 75% do volume global de alimentos que ns consumimos tm origem na agricultura familiar.

    Entrevista especial com Newton Narciso Gomes Junior.........................................................................95 O meu desperdcio a privao do consumo do outro.

    Entrevista especial com Altivo de Almeida Cunha...............................................................................101 A conta ambiental e econmica do desperdcio.

    Entrevista especial com Paulo Waquil..................................................................................................106

    " preciso outro modelo de desenvolvimento".

    Entrevista especial com Maria Emlia Lisboa Pacheco.........................................................................112 Combate fome precisa de transformaes estruturais.

    Entrevista especial com Francisco Menezes..........................................................................................116 11,5 milhes de brasileiros passam fome.

    Entrevista especial com Francisco Menezes..........................................................................................118 Combate fome: o desafio de equacionar problemas estruturais.

    Entrevista especial com Dom Mauro Morelli.......................................................................................120 Parte 2: Artigos e entrevistas relacionados ao tema do Simpsio

    Realidade do Vale do Sinos: desafios para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento do Milnio ODMs.

    Artigo especial de Marilene Maia, lvaro Klein Pereira da Silva, tila Alexius e Thas da Rosa Alves............123

    O desperdcio nosso de cada dia.

    Reportagem especial por Ricardo Machado, Luciano Gallas e Julian Kober......................................129 Alimentos 0 km, alm do marketing.

    Artigo de Esther Vivas...........................................................................................................................133

  • 7

    O Grande Irmo no supermercado.

    Artigo de Esther Vivas...........................................................................................................................134 Uma dieta globalizada.

    Artigo de Esther Vivas...........................................................................................................................137 Sem direito a comer.

    Artigo de Esther Vivas...........................................................................................................................138 Fome e direitos humanos.

    Artigo de Jean Ziegler............................................................................................................................139 " preciso um Nuremberg dos especuladores".

    Entrevista com Jean Ziegler...................................................................................................................142 Parte 3: Resumos de trabalhos apresentados

    A contribuio das universidades na promoo do direito humano alimentao adequada.

    Ivete Maria Kreutz .................................................................................................................................................145

    Direito humano alimentao adequada, com segurana e soberania alimentar.

    Ivete Maria Kreutz .................................................................................................................................................145

    Segurana alimentar entre beneficirios do Programa Bolsa Famlia de Colombo PR. Flavia Monteiro, Daniela Ferron Carneiro, Suely Teresinha Schmidt..................................................................145

    Projeto Convnio de Cooperao Tcnico Cultural entra a Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS. Adriana Lockmann, Carolina Prates, Denise Dadalt, Maria Brito, Denize Ziegler, Denise Zaffari....................................146

    Sobrepeso e obesidade: dilemas do cotidiano brasileiro.

    Irio Luiz Conti, Angelita Bazotti, Manuela Finokiet..............................................................................................146

    Plantas alimentcias no-convencionais, patrimnio alimentar esquecido.

    Ana Alice Silveira Correa, Suely Sani Pereira Quinzani Vincius Martini Capovilla............................................146

    Alimentao das crianas de centros municipais de educao infantil na perspectiva dos Grupos Alimentares

    Renata Cordeiro Fernandes, Cristie Regine Klotz Zuffo, Denise Yukari Inoue, Claudia Almeida.....................................147

    Reflexiones sobre el derecho humano la alimentacin y las polticas pblicas en Costa Rica.

    Luis Fernando Fernndez, Shirley Rodrguez Gonzlez, Patricia Sed Mass......................................................147

    Estudo de uma experincia de poltica pblica integrada de segurana alimentar e nutricional sustentvel: educao,

    sade e agricultura.

    Mrcia Helena Batista Corra da Costa, Cecilia Ferreira de Aquino, Sandra Meire Guimares, Fernanda Maria

    Francischetto Rocha, Tnia Cristina Garcia...........................................................................................................148

    Aceitabilidade da alimentao escolar por adolescentes de escolas pblicas.

    Iasminy Aparecida Bertolin, Emanuele de Araujo Valentim, Suely Teresinha Schmidt.....................................148

    Observatorio socioambiental em segurana alimentar e nutricional: anlise dos indicadores de produo dos

    indicadores de produo de alimentos em nvel municipal no Rio Grande do Sul.

    Anglica Cristina da Siqueira, Daniela Garcez, Irio Conti, Tathiane Muriel Medeiros, Natany Schreiber, Rumi

    Regina Kubo, Gabriela Coelho-de-Souza..............................................................................................................149

    Segurana alimentar e nutricional no meio rural do municpio de Gravata: uma discusso sobre indicadores de

    diagnsticos locais e de nvel municipal.

    Tathiane Muriel Medeiros, Leonardo Xavier, Gabriela Coelho-de-Souza...........................................................149

    Prticas alimentares de crianas menores de 2 anos e a influncia materna na formao dos hbitos alimentares.

    Cristie Regine Klotz Zuffo, Cludia Choma Bettega Almeida..............................................................................150

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    Feira Ecolgica de PF espao e oportunidade de educao nutricional. Cntia Gris, Valria Hartmann, Paula Santos, Ana Luisa Alves, Nair Luft, Lauro Foschiera.............................................150

    Consumo alimentar de adolescentes em Colombo PR. Julliane Moreira Veloso Antoniacomi, Alexsandro Wosniak, Emanuele de Arajo Valentim, Suely Teresinha

    Schmidt...................................................................................................................................................................150

    Segurana alimentar e nutricional na Chapada dos Veadeiros: estudo de caso na regio rural e urbana do municpio

    de Alto Paraso de Gois.

    Lvia Penna Firme Rodrigues, Gabriela Bielefeld Nardoto, Raissa Carvalho, Agatha Maciel............................................151

    Sustentabilidade e responsabilidade socioambiental: identificao de condutas, para a otimizao de processos em

    unidades de alimentao e nutrio.

    Luciana Dias de Oliveira, Claudia Rossi Stern, Martine Elisabeth Kienzle..........................................................151

    Caracterizao de cantinas de escolas pblicas de Passo Fundo (RS): adequao legislao.

    Kelen Heinrich Schmidt, Joana Isaura Mrz.........................................................................................................152

    Misin Alimentacin: a construo de uma poltica pblica de soberania e segurana alimentar.

    Aragon rico Dasso Jnior, Clucia Piccoli Faganello, Rodrigo Almeida Soares, Thas Recoba

    Campodonico.........................................................................................................................................................152

    Os agricultores familiares e a alimentao escolar.

    Regina Aparecida Leite de Camargo, Joo Paulo Galvo Travassos Souza, Denise Boito Pereira da Silva, Jos

    Giacomo Baccarin..................................................................................................................................................152

    Programa de educao permanente para nutricionistas que atuam no Programa Nacional de Alimentao Escolar no

    Rio Grande do Sul.

    Ana Luiza Scarparo, Roberta Capalonga, Janana Guimares Venzke, Vanuska Lima da Silva e Luciana Dias de

    Oliveira...................................................................................................................................................................152

    Por uma perspectiva ecoteolgica: a discusso sobre soberania e segurana alimentar.

    Willian Kaizer de Oliveira......................................................................................................................................153

    PASEC promovendo sade na comunidade. Luiz Fiorentin; Camila Hofmann; Gabriela Kunz Silveira; Denise Maria Schnorr..............................................153

    Avaliao de fibra alimentar em produtos alimentcios enviados para anlise no Instituto Adolfo Lutz So Paulo Brasil.

    Maria Lima Garbelotti; Maria Auxiliadora de Brito Rodas; Jessica Veridiana Gonalves Santiago; Luciana de

    Oliveira; Regina Sorrentino Minazzi-Rodrigues.....................................................................................................153

    ObservaSinos e o monitoramento de polticas pblicas no Vale do Rio dos Sinos no contexto dos ODMs e do

    alimento e nutrio.

    Marilene Maia, lvaro Klein Pereira da Silva, tila Alexius, Thas da Rosa Alves..............................................154

    Avaliao do Programa de Bancos de Alimento na tica da segurana alimentar e nutricional.

    Luciene Burlandy Campos de Alcntara, Clarice Soares Carvalhosa, Mara de Oliveira Chaudon, Ana Luiza

    Sant'Anna da Costa.................................................................................................................................................154

  • 9

    Apresentao

    Sobre o XV Simpsio Internacional IHU

    As civilizaes e a rica diversidade cultural entre

    os povos atestam a centralidade do alimento e da

    nutrio para a realizao das pessoas, das famlias

    e das naes. Alimento e nutrio so exigncias

    inegociveis da nossa vida no planeta, portanto um

    direito humano bsico e determinante para tudo

    mais.

    A garantia do alimento fundamenta a prpria

    paz. Alimentar o corpo, a alma e o esprito, uma

    questo de cidadania planetria e razo primeira

    do progresso e do desenvolvimento.

    Integrados na cadeia alimentar que constitui a

    riqueza e a originalidade do planeta em que fomos

    dados luz, cabe-nos zelar e cuidar das fontes da

    vida e de sua sociobiodiversidade.

    Para aprofundar essas questes, sobre a reali-

    dade brasileira, o Instituto Humanitas Unisinos -

    IHU e o Instituto Harpia Harpyia - INHAH

    propuseram a realizao do XV Simpsio Interna-cional IHU Alimento e Nutrio no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento do Milnio, de 05 a 08 de maio de 2014, com o objetivo principal de

    debater e indicar perspectivas para o direito ao

    alimento e nutrio nas dimenses sociais, eco-

    nmicas, ambientais, culturais e polticas no

    contexto brasileiro.

    Cabe salientar que o Instituto Humanitas

    Unisinos IHU tem como seu principal objetivo apontar novas questes e buscar respostas para os

    grandes desafios de nossa poca, a partir da viso

    do humanismo social cristo, participando, ativa e

    ousadamente, do debate cultural em que se

    configura a sociedade do futuro. Na continuidade,

    o Instituto Harpia Harpyia comprometido com a

    preservao da cadeia alimentar, tem na sua

    centralidade o objetivo de fortalecer a democracia

    atravs da promoo do bem comum e direito

    humano bsico, de assegurar ao ser humano o

    acesso ao alimento e nutrio para uma vida

    saudvel, pelo desenvolvimento local, integrado e

    sustentvel que defenda, preserve, recupere e

    conserve o meio ambiente para a atual e futuras

    geraes.

    A partir de apresentaes de realidades

    regionais do territrio brasileiro props-se

    contextualizar os Objetivos do Milnio ODMs, que foram estabelecidos por lderes mundiais no

    ano de 2000, buscando reduzir a pobreza extrema

    e a fome, garantir o acesso aos cuidados de sade

    universais e educao, igualdade de gnero, reduzir

    a mortalidade materna e a infantil, garantir a

    sustentabilidade ambiental, e estabelecer uma

    parceria mundial para o desenvolvimento,

    estabelecendo o cumprimento desses objetivos at

    o final do ano de 2015.

    Apresentamos nesta edio dos Cadernos IHU

    em formao uma iniciativa que contou com a

    participao e generosidade de vrios parceiros no

    processo de montagem deste XV Simpsio Inter-nacional IHU Alimento e Nutrio no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento do Milnio - ODMs para que nos proporcione avanos no di-logo para a superao da excluso social, da degra-

    dao ambiental e dos males da fome em nosso

    pas e no mundo.

    Objetivo Geral do Simpsio

    Debater e indicar perspectivas para o direito ao alimento e nutrio nas dimenses sociais, eco-

    nmicas, ambientais, culturais e polticas no

    contexto brasileiro.

    Objetivos Especficos do Simpsio

    Avaliar os cenrios da alimentao e da nutrio, na perspectiva da sociobiodiversidade e dos Obje-

    tivos do Desenvolvimento do Milnio.

    Analisar a poltica de segurana alimentar e nutricional sustentvel como eixo e diretriz deter-

    minante no processo de planejamento e desen-

    volvimento do pas, bem como suas relaes

    internacionais.

    Debater as polticas pblicas, o protagonismo da famlia, da sociedade e do Estado na promoo,

    garantia e defesa do direito ao alimento e nutri-

    o no mbito rural e urbano.

    Reconhecer o direito ao alimento e nutrio como um direito humano determinante e impres-

    cindvel para o desenvolvimento do ser humano

    em todos os ciclos de vida, respeitando suas espe-

    cificidades tnicoraciais. Discutir a produo, circulao e comer-cializao dos alimentos nos diferentes biomas e

    agroecossistemas visando o acesso, a escolha e o

    consumo de alimentos saudveis, adequados e

    solidrios.

    Identificar e analisar os processos de educao alimentar e nutricional em diferentes espaos,

    culturas e mdias.

    Apresentar e problematizar pesquisas, produo de conhecimentos e tecnologias em relao

    alimentao e nutrio e sua aplicao numa

    perspectiva tica, solidria e sustentvel.

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    Dar visibilidade s experincias nas reas de ali-mentao e nutrio, promovendo o dilogo e

    articulao entre os seus agentes.

  • 11

    Links de Vdeos das palestras do

    XV Simpsio Internacional IHU

    Conferncia da Profa. Dra. Tnia Bacelar de Arajo no XV Simpsio Internacional IHU:

    Desenvolvimento luz da sociobiodiversidade para superao da misria e dos males da fome

    Conferncia de Dom Mauro Morelli no XV Simpsio Internacional IHU:

    Atualidade do testemunho e da profecia de Josu de Castro

    Conferncia de Profa. Dra. Noemia Perli Goldraich e

    Prof. Dr. Valdely Ferreira Kinupp no XV Simpsio Internacional IHU:

    Pesquisa e construo do conhecimento em relao alimentao e nutrio e sua aplicao numa

    perspectiva tica, solidria e sustentvel

    Conferncia de Prof. Dr. Walter Belik no XV Simpsio Internacional IHU:

    Cenrio Nacional da alimentao e nutrio na perspectiva dos Objetivos de Desenvolvimento do Milnio ODMs

    Painel de Dr. Paulo Leivas no XV Simpsio Internacional IHU:

    Direito Humano ao alimento e nutrio: fundamento da democracia brasileira

    Painel de Dr. Dr. Marcelo de Oliveira Milagres no XV Simpsio Internacional IHU:

    Direito Humano ao alimento e nutrio: fundamento da democracia brasileira

    Conferncia de Prof. Dr. Jos Esquinas-Alczar no XV Simpsio Internacional IHU Alimento e Nutrio no contexto dos Objetivos de Desenvolvimetno do Milnio

    Mesa redonda com Prof. Dr. Jos Esquinas Alczar e

    Bel. Maria Augusta Henriques no XV Simpsio Internacional IHU:

    Sociobiodiversidade: A riqueza planetria para a Segurana alimentar e nutricional

    Vdeo-resumo do IHU ideias com Profa. Dra. Signor Konrad em preparao ao Simpsio

    Dos Ultra processados aos Alimentos: resgatando a boa Nutrio?

    Entrevista com Dom Mauro Morelli durante o XV Simpsio Internacional IHU

    Entrevista com Dom Mauro e Marilene Maia durante o XV Simpsio Internacional IHU

    Aula inaugural com Profa. Dra. Gleny Terezinha Duro Guimares

    dos Cursos de Nutrio e Servio Social da Unisinos 2014/1:

    Segurana Alimentar, Polticas Sociais e Interdisciplinaridade

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    Cida & Ado

    Jogo sobre a importncia da alimentao e nutrio

    (Para acessar, clique na imagem abaixo):

  • 13

    Parte 1

    Entrevistas realizadas para o

    XV Simpsio Internacional IHU

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    Eliminar a fome requer inteligncia e tica

    Entrevista especial com Jos Esquinas-Alczar

    "A crise alimentar provocou, em 2008, revoltas

    em mais de 50 pases. Hoje, o aumento nos preos

    dos alimentos est novamente contribuindo para a

    instabilidade poltica no mundo", enfatiza Jos

    Esquinas-Alczar.

    Por: Luciano Gallas / Traduo: Andr Langer. A fome e a pobreza so o caldo de cultivo no

    qual crescem problemas que tanto preocupam o

    Ocidente, como a migrao ilegal e a violncia

    internacional. Quando, em consequncia da fome

    e da pobreza, o valor da vida humana em muitos

    pases pobres quase desprezvel e quando o risco

    de embarcar num barco menor que o de ficar em

    casa, a deciso est tomada, destaca o professor Jos Esquinas-Alczar. A FAO anunciou, em 2007, que o aumento dos preos de alimentos

    poderia levar a um aumento nos conflitos globais.

    De fato, a crise alimentar provocou, somente em

    2008, revoltas em mais de 50 pases e a

    consequente queda de vrios governos. Hoje, o

    aumento nos preos dos alimentos est novamente

    contribuindo para a instabilidade poltica em

    diferentes partes do mundo, complementa. O pesquisador lembra que mesmo o Frum

    Econmico Mundial de Davos incluiu h alguns

    anos a insegurana alimentar entre os riscos mais

    graves humanidade, pois no afeta mais apenas

    aqueles que sofrem diretamente com o flagelo da

    fome. Por estarmos em um mundo interconectado

    pela informao e pela tecnologia, em que o capital

    e a diviso do trabalho se organizam em escala

    global, no qual somos todos interdependentes um

    dos outros e dependentes da natureza, a segurana

    alimentar se torna um dos principais pilares da paz

    e da segurana mundial. Nossos destinos esto unidos, e o destino comum: ou nos salvamos

    todos ou podemos perecer juntos. O que no

    passado no soubemos fazer ou queramos fazer

    movidos pela caridade ou pela solidariedade, hoje

    teremos que fazer, mesmo que seja por egosmo

    inteligente, frisa ele na entrevista a seguir, concedida por e-mail IHU On-Line.

    Jose Esquinas-Alczar doutor em Engenharia

    Agrnoma pela Universidade Politcnica de

    Madri, na Espanha, alm de mestre em

    Horticultura e doutor em Gentica pela

    Universidade da Califrnia, Estados Unidos.

    Trabalhou na Organizao das Naes Unidas

    para a Alimentao e a Agricultura - FAO por 30

    anos, lidando com temas como recursos genticos,

    biodiversidade agrcola, cooperao internacional,

    tica na alimentao e agricultura. Atualmente

    professor titular da Universidade Politcnica de

    Madri e diretor da Ctedra de Estudos sobre a

    Fome e a Pobreza - CEHAP da Universidade de

    Crdoba, Espanha.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line - Por que ainda morrem 40 mil

    pessoas por dia no mundo em consequncia da

    fome? No produzimos uma quantidade suficiente

    para alimentar a populao mundial ou a

    distribuio de alimentos que feita de maneira

    desequilibrada?

    Jos Esquinas-Alczar - O que realmente

    paradoxal e indignante que a fome no

    consequncia, como acreditam muitos, da falta de

    alimentos. Hoje, segundo dados da Organizao

    das Naes Unidas para Alimentao e Agricultura

    - FAO, h alimentos no mundo para alimentar

    folgadamente a populao mundial. Os alimentos

    esto no mercado internacional, mas no chegam

    s mesas nem s bocas dos que tm fome. Em

    outras palavras, o problema no a produo de

    alimentos, mas o acesso aos mesmos. O problema

    , essencialmente, de ndole poltica. Isto foi

    reconhecido explicitamente h mais de 50 anos

    por um grande presidente dos Estados Unidos. Em

    1963, John F. Kennedy, em seu discurso no

    primeiro Congresso Mundial de Alimentos, disse:

    Em nossa gerao temos os meios e a capacidade de eliminar a fome da face da Terra.

    Necessitamos, para tanto, apenas de vontade

    poltica. Se h 50 anos j existiam os meios e a capacidade para acabar com a fome, imagine hoje!

    No entanto, continua faltando vontade poltica para

    isso.

    Os dados falam:

  • 15

    No mesmo dia em que morrem de fome

    40.000 pessoas, por exemplo, o mundo gasta

    quatro bilhes de dlares em armamentos, ou seja,

    100.000 dlares por morto, o que teria permitido

    alimentar o morto, ao preo dos alimentos nos

    pases em que morrem, durante mais de 100 anos.

    Em 1953, outro grande presidente norte-

    americano, Dwight D. Eisenhower, em seu

    discurso Oportunidades para a paz, denunciava: Cada fuzil fabricado, cada barco de guerra construdo, cada bomba que se joga, significam, em

    ltima instncia, um roubo daqueles que tm fome

    e no tm comida. Observemos tambm como se encontraram

    rapidamente fundos ingentes para que os bancos

    pudessem fazer frente atual crise financeira. 2%

    dos fundos empregados desde 2010 no mundo,

    para salvar bancos, teriam bastado para resolver o

    problema da fome no mundo.

    O oramento ordinrio da FAO, a Organizao

    das Naes Unidas cujo objetivo principal acabar

    com a fome no mundo, para dois anos o

    equivalente ao que dois pases desenvolvidos

    gastam com comida para cachorros e gatos em

    uma semana. O oramento ordinrio da FAO de

    10 anos o equivalente ao que o mundo gasta em

    armamentos em apenas um dia.

    Observe a energia, deciso e eficcia com que a

    humanidade e, sobretudo, os pases desenvolvidos

    enfrentaram recentemente pandemias muito

    menos mortais que a fome, mas contagiosas, como

    a gripe aviria, a febre suna ou, mais

    recentemente, a gripe A. No entanto, o nmero de

    mortos pela gripe A, no mundo, durante estes anos

    foi da ordem de 17.000 pessoas; menos da metade

    dos que morrem em um s dia de fome.

    Embora seja verdade que a fome no

    contagiosa, ela sumamente perigosa. A fome

    constitui uma bomba-relgio, que pode explodir a

    qualquer momento e no podemos permitir-nos a

    miopia poltica de ignorar isso.

    IHU On-Line - Que estratgias de cooperao

    e tica podem ser desenvolvidas para eliminar a

    fome?

    Jos Esquinas-Alczar - As estratgias aplicadas

    no sculo passado baseadas nas receitas nicas, no

    produtivismo, no mercado mundial e na padro-

    nizao demonstraram sua falta de eficcia.

    Permita-me desenvolver alguns pontos para um

    novo enfoque, baseado na experincia e na tica:

    1) No existem solues nicas, nem receitas

    universais

    A situao de cada pas, considerando sua

    histria e cultura, suas condies edafoclimticas

    [relacionadas ao clima, relevo, humidade do ar,

    tipo de solo, vento e precipitao pluvial] e

    socioeconmicas, a evoluo da sua populao, ou

    seu grau e tipo de desenvolvimento, so diferentes

    e, portanto, diferentes devem ser as solues para

    os seus problemas agrcolas e alimentares.

    Tentar impor um nico tipo de agricultura

    irresponsvel e irrealista, e, alm disso, com

    frequncia chegou a situaes de no

    sustentabilidade ecolgica e degradao social. A

    diversidade de sistemas agrcolas deve ser protegida

    e incentivada como um valor positivo e um

    importante amortecedor em pocas de mudanas.

    2) Reconhecimento do valor dos diferentes

    usos da agricultura

    A agricultura no pode ser considerada como

    mero exerccio econmico. A agricultura, alm de

    produzir alimentos rao, fibras, biocom-bustveis, medicamentos e plantas ornamentais , tem outras funes essenciais: social, ambiental, de

    estabilidade cultural, etc., de difcil contabilidade

    econmica e que muitas vezes so consideradas

    como externalidades do sistema. Esta uma das causas pelas quais os preos e os valores dos produtos agrcolas no necessariamente se

    correspondem. Isso constitui tambm uma

    importante dificuldade para avaliar a relao

    custos/benefcios das atividades agrrias e da

    eficcia comparativa entre os diferentes tipos de

    agricultura. Faz-se necessrio, por isso, introduzir

    em nosso sistema econmico os indicadores,

    correes e elementos necessrios para poder

    integrar nas anlises e avaliaes agrcolas todos os

    custos e benefcios, incluindo, naturalmente, os

    no monetrios.

    3) Investimento em agricultura e cooperao

    internacional

    Segundo o Banco Mundial, o crescimento do

    setor agrcola elimina ao menos duas vezes mais a

    pobreza do que fazem idnticos nveis de cresci-

    mento em qualquer outro setor econmico.

    importante, portanto, investir em agricultura para

    combater a fome e a marginalizao econmica.

    No esqueamos que a agricultura segue sendo o

    principal setor produtivo nos ltimos anos nos

    pases mais pobres do mundo, o qual emprega

    mais de 65% da sua populao economicamente

    ativa e responsvel, em mdia, por mais de 25%

    do Produto Interno Bruto - PIB.

    No entanto, a participao da agricultura na

    Assistncia Oficial ao Desenvolvimento - AOD

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    reduziu-se de 29%, em 1980, para 3% em 2006, e

    agora se situa em torno de 5%.

    A histria tambm nos diz que pases como a

    ndia ou o Vietn, que protegeram seu

    desenvolvimento agrcola dos mercados interna-

    cionais, conseguiram redues substanciais na

    pobreza agrcola.

    Investir para conseguir a independncia de

    alimentos foi, justamente, o enfoque que, a partir

    de 1945, ajudou a Europa do ps-guerra a

    conseguir a soberania alimentar em menos de 20

    anos. Cada pas deveria dotar-se dos meios para

    alimentar a si mesmo. Isto significa que essencial

    que a agricultura se converta em uma prioridade

    internacional e os pases mais pobres sejam

    ajudados a garantir a segurana e a independncia

    de seu prprio abastecimento de alimentos.

    A FAO considera que, com o objetivo de

    alcanar o nvel de investimento em agricultura

    necessrio para enfrentar a situao atual de fome

    e m nutrio, necessrio que:

    a) A parte da AOD destinada agricultura

    chegue aos 44 bilhes de dlares por ano,

    voltando, assim, ao nvel inicial que permitiu, na

    dcada de 1970, evitar a fome na sia e na

    Amrica Latina;

    b) Os gastos oramentrios destinados

    agricultura em pases de baixos ingressos e com

    dficit de alimentos que, atualmente, represen-tam cerca de 5% deveriam ser aumentados para atingir um mnimo de 10%;

    c) O investimento privado nacional e

    estrangeiro, prximo, atualmente, dos 140 bilhes

    de dlares anuais, deveria subir para 200 bilhes

    de dlares ao ano.

    Estes nmeros podem parecer altos, mas

    recordemos que os pases da Organizao para a

    Cooperao e Desenvolvimento Econmico -

    OCDE proporcionam uma ajuda equivalente a

    cerca de 365 bilhes de dlares anuais aos seus

    agricultores.

    4) Combater a especulao nos preos

    agrcolas. Regulao do mercado de alimentos na

    Bolsa de Valores

    Uma srie de estudos atribui especulao at

    30% do aumento dos preos dos cereais no

    mercado internacional, em 2008. A especulao

    exacerbada pelas medidas de liberalizao dos

    mercados de futuros de produtos agrcolas em um

    contexto de crise econmica e financeira permitiu

    a transformao dos instrumentos de arbitragem

    do risco em produtos financeiros especulativos que

    substituem outros investimentos menos rentveis.

    Este problema exige solues ticas e urgentes,

    entre as quais deve-se considerar a possibilidade de

    tirar os alimentos da Bolsa de Valores. Tambm

    com o objetivo de reduzir a especulao,

    importante evitar os monoplios e monitorar as

    grandes cadeias de alimentao. Para reduzir a

    volatilidade dos preos e enfrentar a especulao

    nos mercados de futuros de produtos agrcolas,

    pode contribuir a introduo de novas medidas de

    transparncia e regulamentao que permitam aos

    poderes pblicos influir nos preos dos alimentos

    bsicos. Assim como aumentar o armazenamento

    de produtos agrcolas e alimentares e sua liberao

    na medida em que os preos disparem.

    5) Biocombustveis

    Atualmente, as subvenes e protees

    alfandegrias a favor dos biocombustveis tm o

    efeito de desviar cerca de 120 milhes de toneladas

    de cereais do consumo humano para o setor dos

    transportes. Para reduzir esse impacto,

    importante e urgente regular e desacelerar, ao

    menos temporariamente, a produo de bio-

    combustveis, especialmente aqueles de primeira

    gerao.

    6) Reduzir a distncia das cadeias alimentares

    com a finalidade de reduzir custos energticos e

    econmicos

    Para isso, pode contribuir a aproximao entre

    os centros de produo e de consumo, promo-

    vendo o aumento da produo local e o consumo

    de produtos locais e estacionais.

    IHU On-Line - Em entrevista ao jornalista

    Gumersindo Lafuente, publicada pelo jornal El

    Pas em junho de 2011, o senhor disse que a caridade deve ser substituda pelo egosmo

    inteligente. De que forma esta declarao est relacionada com a preservao da Terra?

    Jos Esquinas-Alczar - A fome e a pobreza so

    o caldo de cultivo no qual crescem problemas que

    tanto preocupam o Ocidente, como a migrao

    ilegal e a violncia internacional. Quando, em

    consequncia da fome e da pobreza, o valor da

    vida humana em muitos pases pobres quase

    desprezvel e quando o risco de embarcar num

    barco menor que o de ficar em casa, a deciso

    est tomada.

    A FAO anunciou, em 2007, que o aumento dos

    preos de alimentos poderia levar a um aumento

    nos conflitos globais. De fato, a crise alimentar

    provocou, somente em 2008, revoltas em mais de

    50 pases e a consequente queda de vrios

    governos. Hoje, o aumento nos preos dos

    alimentos est novamente contribuindo para a

    instabilidade poltica em diferentes partes do

    mundo, incluindo o Meio Leste. Em 2009, o

    relatrio do Frum Econmico Mundial de Davos

    incluiu pela primeira vez a insegurana alimentar

    como um risco importante para a humanidade.

  • 17

    Num mundo to inter-relacionado e

    interdependente como o atual, a fome passou de

    flagelo para os que a sofrem a um perigo para toda

    a humanidade. Sem segurana alimentar no h,

    nem poder haver nunca, paz, nem segurana

    mundial.

    Atualmente, no sculo XXI, erradicar a fome

    em nossa pequena Aldeia Global no uma

    opo, uma necessidade imperiosa, se queremos

    ter um futuro. Estamos em uma pequena

    astronave, a aeronave Terra. Estamos a,

    literalmente, dando voltas, com recursos limitados

    e perecveis; com uma interdependncia cada vez

    maior. Se vier a acontecer que essa astronave ou

    essa nave ou esse barco sofra um buraco, tanto faz

    se o buraco se deu na ndia, na frica, no Brasil,

    nos Estados Unidos ou na Espanha; todos

    afundaremos. Nossos destinos esto unidos, o

    destino comum: ou nos salvamos todos ou

    podemos perecer juntos. O que no passado no

    soubemos fazer ou queramos fazer movidos pela

    caridade ou pela solidariedade, hoje teremos que

    fazer, mesmo que seja por egosmo inteligente.

    IHU On-Line - Como filho de agricultores, que

    importncia o senhor concede s pequenas

    propriedades camponesas na luta contra a fome?

    Jos Esquinas-Alczar - No foi por acaso que

    este ano de 2014 tenha sido declarado pela ONU

    como o Ano Internacional da Agricultura Familiar.

    A maior parte dos alimentos que consumimos no

    mundo procede da agricultura familiar, que , em

    geral, uma agricultura baseada em pequenas

    propriedades.

    Como dissemos anteriormente, existem hoje

    alimentos mais que suficientes para alimentar a

    humanidade; entretanto, os famintos no tm

    acesso aos mesmos. Os alimentos esto disponveis

    no mercado internacional, mas isso no

    suficiente para que cheguem aos que passam fome,

    especialmente em tempos de carestia alimentar e

    grande volatilidade dos preos dos alimentos, j

    que a fome e a pobreza andam muitas vezes de

    mos dadas. A falta de acesso deve-se escassez de

    alimentos produzidos em nvel local, por um lado,

    e falta de recursos para comprar os alimentos

    procedentes de onde h excedentes, por outro. Os

    sistemas tradicionais de luta contra a fome, atravs

    dos programas de distribuio de alimentos e

    assistncia humanitria, proporcionam alimentos

    ou fundos para obt-los no mercado internacional.

    No entanto, a eficcia destas medidas tem sido

    muito limitada por tratar-se de solues a curto

    prazo.

    Se levarmos em conta que a maior parte (70%)

    da populao faminta vive em zonas rurais,

    promover a produo in situ parece ser a soluo

    mais eficiente e talvez a nica duradoura.

    Requerem-se melhorias na produo em nvel

    local para proporcionar um aumento das opes

    para os agricultores de pequena escala e as

    comunidades rurais, e para melhorar a qualidade,

    assim como a quantidade, dos alimentos dispo-

    nveis. Isso significa apoiar os pequenos agricul-

    tores e suas comunidades no desenvolvimento e

    melhoria dos seus prprios sistemas agrcolas.

    Infelizmente, a assistncia tcnica ao pequeno agri-

    cultor e a pesquisa internacional para melhorar a

    produo nos sistemas agrcolas tradicionais de

    baixos insumos, incluindo a melhoria gentica dos

    cultivos marginais e variedades locais adaptados a

    estes sistemas, foram muito escassas e, muitas

    vezes, inexistentes.

    Sistemas agrcolas tradicionais

    A FAO, no seu relatrio Os caminhos para o xito (nov. 2009) , assinala que uma das melhores e mais rentveis vias para sair da pobreza e da

    fome no meio rural apoiar os pequenos

    camponeses. Cerca de 85% das propriedades agr-

    colas no mundo tm menos de dois hectares, e os

    pequenos agricultores e suas famlias representam

    cerca de dois bilhes de pessoas, um tero da

    populao mundial.

    Alm disso, os pequenos agricultores so a base

    da soberania alimentar e esta deve ser considerada

    parte essencial da segurana alimentar. Para no

    criar-se uma dependncia dos preos agrcolas

    internacionais, no se pode fomentar siste-

    maticamente o desmantelamento dos sistemas agr-

    colas tradicionais. Com frequncia, preciso

    apoiar seu desenvolvimento e uma evoluo

    paulatina que permita aumentar sua produtividade

    e sua capacidade de se adaptar s necessidades

    cambiantes do meio e sociedade nas quais se

    desenvolvero.

    Na sequncia, damos um exemplo ilustrativo

    das consequncias do desmantelamento dos

    sistemas agrcolas tradicionais:

    Em Benin, o desenvolvimento de grandes

    cultivos de algodo para satisfazer a demanda do

    Ocidente levou ao deslocamento de milhes de

    pequenos agricultores produtores de alimentos,

    que venderam suas terras para passar a ser

    diaristas, muitos deles nas novas plantaes de

    algodo. Isto, no entanto, no foi percebido como

    um problema, j que as dirias recebidas lhes

    permitiram comprar alimentos procedentes do

    mercado internacional a bom preo e, por isso,

    muitas vezes em maior quantidade que aqueles que

    produziam antes em suas pequenas propriedades.

    No entanto, o aumento dos preos internacionais

    dos alimentos nos ltimos anos deixou-os numa

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    situao de indigncia e fome sem precedentes.

    Agora, j no podem voltar sua agricultura

    tradicional, j que, com a venda das suas terras,

    criaram uma situao de dependncia prati-

    camente irreversvel.

    Muitas vezes, os processos desencadeados com

    a venda das terras e o desmantelamento dos siste-

    mas agrcolas nacionais passam a ser irreversveis.

    Ao perder a capacidade de produzir seus alimen-

    tos, os pases podem hipotecar sua prpria sobe-

    rania.

    IHU On-Line - Em que etapa esto os debates

    no Conselho de Direitos Humanos das Naes

    Unidas acerca de uma possvel Declarao

    Universal Sobre os Direitos dos Camponeses?

    Jos Esquinas-Alczar - Em outubro de 2012, o

    Conselho de Direitos Humanos da ONU decidiu

    criar um grupo de trabalho intergovernamental de

    composio aberta encarregado de negociar,

    finalizar e apresentar ao Conselho de Direitos

    Humanos um projeto de declarao das Naes

    Unidas sobre os direitos dos camponeses e de

    outras pessoas que trabalham nas zonas rurais.

    O grupo de trabalho intergovernamental,

    presidido pela embaixadora da Bolvia na ONU,

    em Genebra, em sua primeira reunio, em julho

    de 2013, considerou um primeiro rascunho da

    declarao e fez comentrios sobre o mesmo.

    Atualmente, o rascunho est sendo modificado em

    consulta com os pases, com o objetivo de

    apresentar um novo rascunho na segunda reunio

    negociadora do grupo de trabalho, prevista para

    novembro de 2014.

    IHU On-Line - Qual o impacto do capital

    internacional sobre a biodiversidade agrcola e os

    recursos genticos? Por que os dois ltimos so

    importantes?

    Jos Esquinas-Alczar - O capital internacional

    e as grandes companhias de produo de sementes

    esto promovendo um tipo de agricultura industrial

    baseada na uniformidade, onde um pequeno

    grupo de variedades vegetais e raas animais

    uniformes e homogneos esto substituindo em

    todo o mundo uma enorme diversidade de

    espcies alimentares. Alguns acordos

    internacionais com o comrcio, certificao de

    sementes e direitos de propriedade intelectual,

    assim como a prpria legislao nacional de muitos

    pases, esto contribuindo para este desatino.

    A Diversidade Biolgica Agrcola (DBA) e mais

    concretamente os Recursos Genticos para a

    Agricultura e a Alimentao (RGAA), tambm

    conhecidos com ouro verde, constituem a despensa da humanidade, a matria-prima sobre a

    qual se baseia o desenvolvimento agrcola e a

    produo de alimentos. Sem o uso da diversidade

    gentica existente dentro de cada espcie animal

    ou vegetal, no seria possvel o combate das pragas

    e doenas das plantas cultivadas e dos animais de

    granja, o aumento da sua produtividade, sua

    adaptao a condies adversas do ambiente (por

    exemplo, excessivo frio ou calor, seca ou

    umidade), nem a melhoria das suas caractersticas

    nutritivas, e se perderia a capacidade destas

    espcies de se adaptar s mudanas climticas.

    Quando se perde a DBA de uma espcie agrcola,

    priva-se a espcie da sua capacidade de evoluo e

    adaptao ao ambiente, e o ser humano do mate-

    rial bsico onde selecionar o material desejado; as

    consequncias podem ser catastrficas.

    Um exemplo conhecido e sumamente

    ilustrativo a fome que estremeceu a Europa na

    metade do sculo XIX e que provocou a morte

    por fome de milhes de pessoas. O que muitos

    ignoram que a sua causa foi a destruio em

    massa dos cultivos de batatas europeias, atacadas

    por um fungo, o Phytophtorainfestans, para o qual

    no se encontrava resistncia devido

    uniformidade extrema das batatas cultivadas no

    continente. O problema foi resolvido graas

    resistncia doena encontrada no Peru, centro de

    origem e diversidade da batata.

    Outro exemplo mais recente o do ataque do

    Helmintosporiusmaydes, que destruiu os milhos

    comerciais uniformes do sul dos Estados Unidos

    no comeo da dcada de 1970. O problema foi

    resolvido graas aos genes de resistncia encon-

    trados nas variedades heterogneas de milhos

    africanos.

    O nmero de casos, embora nem sempre to

    trgicos, se multiplicaram durante os ltimos anos

    em muitos cultivos, e a soluo passou quase

    sempre pela identificao de resistncia s doenas

    e s condies adversas entre as variedades

    heterogneas tradicionais que seguem sendo

    cultivados pelos pequenos agricultores, sobretudo

    nos pases em desenvolvimento. Uma vez

    identificada esta resistncia, os cientistas podem

    incorpor-la s variedades comerciais atravs de

    cruzamentos.

    Recursos genticos

    Ao longo do ltimo sculo, houve uma enorme

    perda de diversidade gentica dentro das chamadas

    principais espcies alimentcias. Centenas de milhares de variedades heterogneas de plantas

    cultivadas ao longo de geraes foram substitudas

    por um reduzido nmero de variedades comerciais

    modernas e enormemente uniformes.

    S nos Estados Unidos j desapareceram mais

    de 90% das rvores frutferas e espcies hortcolas

    que ainda se cultivavam no comeo do sculo XX,

    e to somente algumas poucas so conservadas em

    bancos de genes. No Mxico, s se conhecem,

    atualmente, 20% das variedades documentadas em

  • 19

    1920. Na Repblica da Coreia, apenas 26% das

    variedades locais cultivadas em hortas e pomares

    familiares em 1985 continuavam sendo utilizadas

    em 1993. Em geral, pode-se dizer que, em nvel

    mundial, entre 80% e 95% das variedades

    conhecidas para os cultivos mais importantes no

    incio do sculo XX se perderam para sempre.

    Alm disso, em nvel de espcie estamos

    ignorando e desaproveitando a maior parte da

    diversidade biolgica agrcola existente. Segundo a

    FAO, estima-se que, ao longo da histria da

    humanidade, foram utilizadas cerca de 10.000

    espcies para a alimentao humana e a

    agricultura. Atualmente, no mais de 120 espcies

    cultivadas de plantas nos proporcionam 90% da

    alimentao calrica humana, e to somente quatro

    espcies vegetais (batata, arroz, milho e trigo) e trs

    espcies animais (gado, suno e frango) nos

    proporcionam mais da metade.

    As sistemticas aes internacionais para frear a

    perda de recursos genticos e assegurar a

    cooperao internacional nesta matria comearam

    na FAO nos anos 1970. Em 1983, a Conferncia

    da FAO criou a Comisso Intergovernamental de

    Recursos Genticos para a Agricultura e a

    Alimentao - CRGAA. Atualmente, a comisso

    conta com 170 pases membros e o frum

    intergovernamental permanente para a discusso e

    negociao das questes relacionadas aos RGAA.

    Nesta comisso, foi negociado nos anos 1990 e

    aprovado em 2001 o Tratado Internacional sobre

    Recursos Genticos para a Agricultura e a

    Alimentao, acordo que, at o momento, foi

    ratificado pelos parlamentares de 136 pases.

    IHU On-Line Nesta perspectiva, comente, por favor, o episdio no qual um campons lhe

    cedeu um punhado de sementes de meles que,

    mais tarde, descobriu-se eram resistentes ao fungo

    que ameaava as demais espcies do fruto no

    mundo. O que estes episdios nos ensinam?

    Jos Esquinas-Alczar - A diversidade gentica

    que permitiu salvar a batata na Europa no sculo

    XIX e o milho nos Estados Unidos no sculo XX

    no estava ali por acaso. Era o produto da seleo

    realizada por milhares de geraes de pequenos

    agricultores tradicionais; eles seguem sendo ainda

    hoje, no mundo que muitas vezes os ignora e s

    vezes os v como uma carga social devotada ao

    passado, os autnticos guardies da maior parte da

    diversidade biolgica agrcola com que ainda

    podemos contar; aqueles que continuam

    desenvolvendo, conservando e colocando dis-

    posio de outros agricultores, dos aperfeioa-

    dores profissionais e, inclusive, dos modernos

    biotecnlogos, a matria-prima necessria para

    enfrentar condies ambientais cambiantes e

    necessidades humanas imprevisveis. So estes

    simples camponeses os que seguem tendo as

    chaves do futuro alimentar da humanidade.

    Ilustrarei isso com o exemplo dos meles e

    outros casos significativos:

    Em julho de 1970, nas Hurdens, no corao da

    Espanha rural, um agricultor ancio, que seguia

    com seu asno, encontrou-se com um jovem

    estudante que recolhia sementes de melo. O

    velho agricultor perguntou ao jovem estudante o

    que estava fazendo, e o rapaz lhe explicou que

    queria coletar os meles autctones da Espanha

    antes que desaparecessem. Vem ver meus meles disse o agricultor. Nunca ficam doentes. O estudante acompanhou o idoso at sua

    propriedade. O velho agricultor deu-lhe algumas

    sementes, que o jovem levou para fazer anlises em

    laboratrio. As sementes continham um gene

    resistente a um fungo do melo, que poste-

    riormente foi transferido para outros meles, bene-

    ficiando os agricultores de todo o mundo. Eu era

    esse jovem estudante, mas no sei quem era o

    ancio. como tantos milhes de homens e

    mulheres. Ningum lhes agradece, mas eles so os

    possuidores da sabedoria capaz de produzir e

    conservar suas sementes e suas tradies para as

    futuras geraes.

    O tempo e a experincia me mostraram que

    no se tratava de um caso isolado. Em 1983,

    coletando quinoa, um dos cultivos mais impor-

    tantes da agricultura tradicional andina, na Bolvia,

    encontramos na granja de um agricultor, em uma

    zona onde predomina a quinoa amarela, um tipo

    de quinoa escura, cujas plantas tinham um aspecto

    doentio e cuja produtividade parecia muito baixa.

    Comentamos com este agricultor que estas plantas

    estavam doentes e talvez por isso produzissem

    pouco gro e de cor escura. Ele nos respondeu que

    no, que esta variedade assim. Embora no tenhamos ficado muito convencidos, a cena se

    repetiu nos campos de outros agricultores vizinhos.

    O ltimo nos confirmou que esta variedade produzia muito pouco. E quando lhe pergun-tamos por que a cultivava mesmo assim, ele res-

    pondeu que era muito boa para curar da

    tuberculose. No demos muito crdito ao

    comentrio, mas coletamos algumas amostras que

    foram enviadas com as outras a alguns laboratrios

    para anlise. Quando, alguns meses depois,

    obtivemos os resultados das anlises, soubemos

    que aquela quinoa negra, supostamente doente,

    tinha um contedo em protenas e, sobretudo, em

    aminocidos essenciais muito superiores s outras

    quinoas cultivadas na zona.

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    O nmero de exemplos infindvel. Uma

    variedade local de trigo coletada na Turquia pelo

    Dr. Harlan em 1948 no campo de um pequeno

    agricultor, e ignorada depois durante muitos anos,

    foi uma fonte de resistncia a fungos em todo o

    mundo. Algumas variedades tradicionais de alfafa

    encontradas no Ir permitiram introduzir

    resistncia a nematides em muitas variedades

    comerciais de outros pases. Uma variedade de

    trigo encontrada em zonas remotas do Japo, em

    1946, passou a ser a base da chamada revoluo verde em todo o mundo um quarto de sculo depois, graas aos seus genes de nanismo que

    permitiram maiores doses de adubo nitrogenado.

    Uma raa tradicional de sunos chinesa permitiu

    aumentar a fertilidade de muitas raas europeias. A

    resistncia malria nas vacas do sul dos Estados

    Unidos procede de uma raa local do norte de

    Roma.

    O trabalho essencial dos agricultores

    tradicionais no desenvolvimento, conservao e

    disponibilidade da diversidade biolgica agrcola

    foi formalmente reconhecido pelo Tratado

    Internacional de Recursos Fitogenticos da FAO,

    cujo artigo 9, Direitos do Agricultor, define os

    agricultores como guardies dos recursos genticos

    e lhes assinala direitos.

    IHU On-Line Gostaria de acrescentar algo mais?

    Jos Esquinas-Alczar - Sim, creio que a

    questo da fome e da conservao dos recursos

    naturais da Terra no pode ser tratada de maneira

    isolada. preciso integrar a crise alimentar ao

    contexto das demais facetas da crise global em que

    nos encontramos imersos e cujo combate s

    possvel associando-a ao desenvolvimento de um

    mundo melhor, solidrio e sustentvel, onde o

    objetivo no seja simplesmente o crescimento econmico, mas a felicidade, e onde o motor do processo no seja o consumo e a sobre-explorao dos recursos naturais, mas a relao harmnica entre e com todos os componentes do

    ecossistema Terra. Um mundo no qual o

    crescimento material no seja sinnimo de

    desenvolvimento e onde a cincia, as tecnologias, o

    mercado e, inclusive, a democracia, no sejam

    deuses infalveis que devemos glorificar, mas

    meros instrumentos que podem nos ajudar a

    transformar a nossa casa, a Terra, em um Paraso.

  • 21

    O mundo no um sistema de vasos comunicantes

    Entrevista especial com Walter Belik

    Professor da Unicamp, Walter Belik, um dos

    idealizadores do Fome Zero, explora as dimenses

    ligadas ao conceito de segurana alimentar e o

    modo como elas se atualizam em um mercado

    internacionalmente conectado

    Por: Andriolli Costa

    Em 1946, o intelectual brasileiro Josu de

    Castro, que h anos debruava-se sobre a questo

    da fome e da nutrio, escreve um livro seminal

    para a discusso do assunto: Geografia da Fome O Dilema Brasileiro (Rio de Janeiro: Civilizao

    Brasileira, 2001). Na obra, articulando reflexes

    tericas com dados empricos e observao in loco,

    o autor articula em seu quadro geogrfico as reas

    de fome e subnutrio endmicas no Brasil,

    alinhavando tambm as causas de sua misria.

    Para Walter Belik, um dos idealizadores do

    Fome Zero e ex-integrante do Conselho de

    Segurana Alimentar (Consea), a obra de Josu de

    Castro ainda hoje permanece atual, tendo sido ele

    um grande incentivador da ONU para a criao do

    que seria a Organizao das Naes Unidas para

    Alimentao e Agricultura - FAO. Josu de Castro tambm foi muito importante como idealizador de

    alguns programas sociais que at hoje esto em

    curso e que tentamos aperfeioar. Projetos como

    os restaurantes populares e a alimentao escolar

    foram todos iniciados por ele, destaca. No entanto, a obra de Castro era fruto de sua

    poca, e cabe aos pesquisadores contemporneos

    envolvidos com as questes de fome e nutrio

    atualizarem o conceito em uma sociedade

    globalizada, com mercados internacionalmente

    integrados. Nesta atualizao, desponta a ideia de

    segurana alimentar, que vai ultrapassar os dilemas

    da fome e da pobreza.

    Em entrevista concedida por telefone IHU

    On-Line, Walter Belik explora conceitualmente as

    caractersticas deste conceito, trabalhando suas

    relaes com outros problemas alm da prpria

    fome. Muitas pessoas associam a segurana alimentar com a fome e, portanto, com a

    subnutrio. No entanto, a m nutrio e, com ela,

    a obesidade, tambm so problemas de segurana

    alimentar. toda uma linha de pesquisa que

    precisa ser desenvolvida, esclarece. Mais do que isso, pensando nas articulaes em

    nvel global, temos uma realidade em que a mdia

    de produo mundial teoricamente seria suficiente

    para alimentar a populao global sem problemas.

    No entanto, como problematiza Belik, o mundo no um sistema de vasos comunicantes. Pelo contrrio, o excesso de alimentos mais propenso

    a gerar desperdcio do que o escoamento para as

    zonas mais crticas, dificultando o combate fome.

    Belik ministra a palestra Cenrio Nacional da

    alimentao e nutrio na perspectiva dos

    Objetivos de Desenvolvimento do Milnio,

    durante o XV Simpsio Internacional lHU -

    Alimento e nutrio no contexto dos Objetivos de

    Desenvolvimento do Milnio, no dia 07-05, s 9h.

    Mais informaes, incluindo a programao

    completa, pelo linkhttp://bit.ly/XVSIHU.

    Walter Belik graduado e mestre em

    Administrao pela Escola de Administrao de

    Empresas de So Paulo, da Fundao Getulio

    Vargas, com doutorado em Cincia Econmica

    pela Unicamp. Possui ainda ps-doutorado na

    University of London, na Inglaterra, e

    no Department of Agricultural & Resource

    Economics da Universidade da Califrnia,

    Berkeley, nos Estados Unidos. Em 2000, recebeu

    o ttulo de professor livre-docente pelo Instituto de

    Economia da Unicamp, universidade onde est

    vinculado desde 1985. De uma trajetria de

    pesquisas relacionadas avaliao da poltica

    agrcola e agroindustrial, concentrou as atenes

    nos aspectos do processamento e da distribuio

    de alimentos. Atua principalmente na discusso

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    das alternativas de polticas de segurana alimentar,

    analisando o papel do abastecimento alimentar e a

    logstica da distribuio.

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line - De que forma a obra do

    brasileiro Josu de Castro influencia o seu trabalho

    de pesquisa?

    Walter Belik - Josu de Castro o principal

    nome neste campo. Ele foi precursor e teve essa

    caracterstica tanto de trabalhar teoricamente as

    questes da segurana alimentar como de atuar

    diretamente em nvel de governo, influenciando as

    polticas pblicas e a constituio de toda uma

    frente que comeou a discutir a fome no mundo.

    Ele pode ser considerado o pai da FAO, no

    sentido de que l no incio, em 1947, influenciou

    as Naes Unidas para que houvesse um

    organismo internacional que desse conta dessas

    questes.

    interessante que os primeiros trabalhos de

    Josu de Castro estivessem baseados em questes

    empricas. Ele, como mdico, como pesquisador,

    analisava as condies dos trabalhadores no Recife

    e verificou que a incidncia de doenas e a baixa

    produtividade estavam muito mais relacionadas

    questo da alimentao do que a problemas de

    doena. Esta uma lio importante para todos

    ns, para que no percamos contato com a

    realidade. A realidade o que nos inspira. Ns

    temos que buscar as informaes, buscar os dados

    e, a partir da, escrever e tentar interferir na

    realidade.

    Josu de Castro tambm foi muito importante

    como idealizador de alguns programas sociais que

    at hoje esto em curso e que tentamos

    aperfeioar. Projetos como os restaurantes

    populares e a alimentao escolar foram todos

    iniciados por ele. Josu de Castro continua atual e

    fonte de inspirao para todos que trabalham

    com segurana alimentar.

    IHU On-Line - Como conceitos como a

    geografia e a geopoltica da fome se atualizam hoje

    no Brasil? Algo mudou?

    Walter Belik - Mudou sim. Josu de Castro

    avaliava um ambiente da economia e do

    capitalismo bem diferente do atual. Nesta poca, o

    mercado era prioritariamente local, pois no

    tnhamos um mercado internacional constitudo,

    mas pontual, ligado a produtos, o que fazia com

    que boa parte dos pases ainda trabalhasse com a

    ideia de autossuficincia. Hoje, as coisas mudaram.

    Ns temos um mercado global, com presena

    muito forte das tradings e das multinacionais, que

    fazem com que os alimentos circulem no mundo

    todo. Os mercados e os prprios preos esto

    internacionalmente integrados, o que fez com que

    o conceito mudasse. A autossuficincia era uma

    questo de segurana nacional mesmo, uma

    questo militar, e que hoje passa a ser analisada em

    nvel de blocos e relaes comerciais. Isso traz uma

    srie de outros problemas: a dependncia, por

    exemplo, e a impossibilidade de governana sobre

    esses mercados. O governo passa a ser um

    tomador de preos, passa a no ter poder sobre as

    relaes que so colocadas. Ao mesmo tempo,

    preciso lembrar que a produo agrcola apenas

    uma face da agricultura. A agricultura um modo

    de vida. Ela implica em uma relao cultural, uma

    relao social, e destruir isso por uma demanda de

    produtividade muito problemtico, porque se

    destri um setor, uma esfera da economia muito

    importante.

    IHU On-Line - O que segurana alimentar?

    Que outros fenmenos esto ligados a este termo

    alm da prpria fome?

    Walter Belik Segurana alimentar uma questo complexa. Tanto que se voc analisar os

    escritos do Josu de Castro, ele no fala em

    segurana alimentar, mas em fome. Talvez este

    termo seja uma sofisticao do nosso tempo para

    tratar um fenmeno que bastante cru, que a

    fome. De qualquer forma, a segurana alimentar

    engloba quatro dimenses importantes ligadas

    questo da fome, e que devem ser analisadas.

    Primeiramente a disponibilidade, ou seja, que

    haja uma quantidade suficiente para que as pessoas

    possam se alimentar; depois o acesso, pois no

    basta ter a quantidade adequada de alimentos, mas

    deve haver possibilidade das pessoas de acessar

    este mercado tanto pensando na questo da renda quanto do acesso fsico ao mercado, que

    muito importante. Josu de Castro trata bastante

    do acesso fsico quando fala da fome africana, por

    exemplo.

    Teramos ainda uma terceira dimenso, que a

    da inocuidade do alimento. No basta que haja

    alimento disponvel ou que as pessoas tenham

    acesso a ele, mas que este alimento seja apropriado

    para o consumo humano. Que seja saudvel. A

    quarta dimenso a da estabilidade, que uma

    questo temporal. O alimento deve estar

    disponvel ao longo do tempo. No se resolve o

    problema da segurana alimentar com uma cesta

    bsica, por exemplo. preciso que haja acesso

    permanente a este alimento.

    Essas quatro dimenses nos levam a uma srie

    de outras aberturas para a questo da fome. Muitas

    pessoas associam a segurana alimentar com a

    fome e, portanto, com a subnutrio. No entanto, a

    m nutrio e, com ela, a obesidade, tambm so

    problemas de segurana alimentar. toda uma

    linha de pesquisa que precisa ser desenvolvida.

  • 23

    IHU On-Line Se mais barato e mais rpido comer junk food, voc acaba fazendo essa opo e

    ficando malnutrido por causa disso, certo?

    Walter Belik Exatamente. Muitas vezes os critrios nutricionais so feitos em funo das

    calorias, mas, se eu tenho uma caloria vazia, a

    pessoa est bem alimentada apenas teoricamente.

    Na verdade ela est malnutrida. Ainda falando na

    questo do acesso, muitas vezes ele est ligado

    pobreza e renda. Ento programas de combate

    pobreza esto ligados diretamente ao consumo de

    alimentos. No entanto, importante haver

    programas voltados especificamente para a

    alimentao, pois um aumento de renda que se

    converte em qualquer tipo de alimento tambm

    no interessa.

    Quando voc abre o leque de fome para

    segurana alimentar, voc tem uma interdis-

    ciplinaridade muito grande que antes no havia.

    Antigamente este era um problema dos

    nutricionistas, dos mdicos, quando em verdade

    uma questo muito maior com uma srie de temas

    correlatos.

    IHU On-Line Existe diferena entre segurana e soberania alimentar?

    Walter Belik Esta outra discusso sobre o assunto. A definio oficial da segurana alimentar levaria em conta a ideia de soberania

    alimentar. Na prtica voc tem duas definies.

    Muita gente prefere trabalhar com a ideia de

    soberania, que a capacidade de autossuficincia no s nos aspectos quantitativos, mas tambm

    culturais e sociais. voc consumir produtos

    relacionados sua cultura. promover a produo

    sustentvel. Acredito, no entanto, que segurana

    alimentar um conceito amplo o suficiente, e j

    daria conta da soberania. Mesmo porque h uma

    discusso sobre soberania relativa a qu? A um

    pas? Uma regio? Uma comunidade? Como se

    trata dessas questes? Imaginar que as

    comunidades tm que ser autossuficientes dar

    um passo atrs no progresso, pensando que estas

    devem se isolar e produzir para elas mesmas.

    Existe uma relao, existe a possibilidade de troca

    que muito positiva. Voc no pode sobrepor uma cultura outra, como se fazia no passado. No

    Brasil, por exemplo, para resolver o problema da

    fome, impuseram um padro de consumo baseado

    no trigo; esta cultura acabou se consolidando no

    pas, mas era um cultivo imposto. Ou, ento,

    resolver o problema da frica atravs de doaes

    de carne. No por a. Olhar o lado social da

    segurana alimentar tem tudo a ver com a

    soberania.

    IHU On-Line Existem estgios diferentes de insegurana alimentar?

    Walter Belik Os dados de subnutrio so medidas diretas. Ento, no recai nenhuma dvida

    sobre eles. Existe uma tabela antropomtrica e as

    pessoas que tm ndice de Massa Corporal - IMC

    inferior a 17 esto subnutridas. Mas existem

    medidas indiretas, e hoje, cada vez mais, levam-se

    em conta os dados subjetivos da segurana

    alimentar. Afinal, uma pessoa pode estar com o

    IMC dentro dos padres e ao mesmo tempo ter

    uma percepo negativa em relao sua

    segurana alimentar. Ento, os indicadores

    antropomtricos de uma pessoa que se alimenta de

    junk food podem estar dentro do parmetro, mas

    ela no est em segurana. Do mesmo modo,

    algum que pode estar desempregado talvez tenha

    os ndices dentro do parmetro, mas no est em

    uma situao estvel. uma percepo de

    insegurana alimentar. Assim, duas pessoas na

    mesma condio social podem ter perspectivas

    diferentes sobre sua segurana.

    O IBGE tem pesquisado esta situao. Existem

    trs nveis de insegurana: grave, moderado e leve.

    O grave caiu muito, e os outros dois um pouco

    menos. De qualquer forma, o nmero em geral se

    reduziu. Todos os questionamentos que ns temos

    mostram que no existe uma correlao direta

    entre pobreza e a percepo de insegurana

    alimentar. Tem gente pobre que tem uma

    percepo boa, e gente rica que pode ter uma

    percepo ruim. Hoje difcil algum morrer de

    fome no Brasil, afinal, se recebe bolsa famlia, tem

    o banco de alimentos, seu filho recebe merenda na

    escola...

    IHU On-Line - Qual sua avaliao sobre as

    polticas pblicas adotadas pelo Brasil nos ltimos

    anos para ampliar o direito alimentao?

    Walter Belik Ainda estamos tentando definir uma matriz de polticas que possa garantir o pleno

    direito humano alimentao. Penso que no

    existe uma poltica s que d conta disso. Pelas

    estimativas do Ministrio, no Cadastro nico, ns

    teramos em torno de 20 milhes de famlias em

    situao de vulnerabilidade. O Bolsa Famlia

    atende 14 milhes. Muitos acreditam que o Bolsa

    Famlia uma resposta que o governo estaria

    dando em contrapartida ao direito humano

    alimentao. Penso que no, afinal, ele no diz

    respeito a alimento, uma transferncia de renda.

    preciso compor esta matriz e garantir totalmente

    este direito.

    O Brasil certamente avanou muito e se destaca

    como case internacional em termos de poltica de

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    combate fome. Ns conseguimos reduzir a

    desnutrio crnica de uma forma espetacular,

    assim como a insegurana alimentar, mas existem

    outras coisas que seriam complementares.

    IHU On-Line - O que falta ao pas para ir alm

    das metas do objetivo do milnio e levar o acesso

    alimentao para um maior nmero de pessoas?

    Walter Belik Vamos comear pelo lado mais fcil. Ns avanamos bastante em termos de

    polticas federativas, mas nada pelo lado judicirio.

    Ns falamos em direito humano alimentao,

    mas quem o juiz que julga estes casos? Existe

    alguma vara que trabalha com esta questo? Est

    no cdigo civil ou penal alguma regulamentao

    com relao a isso? No. Este um problema

    srio. No Brasil, muitas vezes, acredita-se que ao

    fazer uma coisa todo o resto est resolvido, mas

    no. Houve a emenda constitucional da PEC 47,

    que inclui o alimento nos direitos sociais, mas o

    sistema judicirio no est preparado para isso. Se

    algum morrer de fome no Brasil, eu fao um

    Boletim de Ocorrncia? Como isso? A

    alimentao est no artigo 6 da Constituio, mas

    no tem estatuto jurdico. Ela est em conjunto

    com outros direitos sociais, como o Direito

    Educao. Se eu tenho uma criana e a escola no

    tem vaga, eu vou ao Ministrio Pblico, denuncio a

    escola e abro um processo contra o prefeito. Com

    alimentao eu no consigo fazer isso. Se algum

    passa fome, qual o procedimento?

    Do lado do executivo, temos vrios programas

    que so responsabilidade de outros entes

    federativos. A Unio tem feito muitos esforos

    para implementar polticas de alimentao no

    Brasil, mas os outros entes da Federao, no.

    Haja vista o caso da merenda escolar. A merenda

    um repasse que o governo federal faz s

    prefeituras. Sobre esse repasse, cabe prefeitura

    dobrar a quantia, mas elas no fazem isso e nem so punidas por no fazer.

    A legislao avanada. A sociedade civil

    trabalhou bem e, atravs das conferncias de

    segurana alimentar, fez uma abordagem correta

    que contemple as minorias, os diversos setores,

    enfim. Com relao legislao est tudo bem. No

    entanto, temos um judicirio que no se mexe. A

    Controladoria Geral da Unio CGU controla as aes do governo federal, mas sobre estados e

    municpios no h controle nenhum. Deveria

    haver, afinal uma lei orgnica. Temos que sair do

    nvel federal e atingir nveis de aplicao das

    polticas.

    A partir de 2006 foi implantado o Sistema

    Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional Sisan, que seria anlogo ao que o SUS para a

    sade. No entanto, em So Paulo, pelo menos, ele

    no andou nada. uma responsabilidade

    compartida entre os trs entes federados, mas

    governos e municpios no esto cumprindo seu

    papel. E isso seria muito importante. Minha

    avaliao que ns andamos a passo de gigante,

    mas ainda temos muito o que fazer.

    IHU On-Line - Se a fome resultado da m

    distribuio dos alimentos, e no de uma produo

    insuficiente que atenda a demanda mundial, por

    que ainda no conseguimos implementar medidas

    eficazes que contemplem o direito alimentao e

    nutrio?

    Walter Belik Porque o mundo no um sistema de vasos comunicantes. Se est sobrando

    alimento em uma parte do mundo, no

    necessariamente este alimento vai chegar a quem

    tem fome. Eu diria ainda que muito pelo

    contrrio, normalmente esse alimento que est

    sobrando jogado fora. Temos, afinal, estimativas

    alarmantes em relao ao desperdcio. Esse

    assunto muito importante, e foi analisado

    tambm na poca da formao do Sistema

    Mundial de Alimentos, que deu origem a FAO.

    Havia uma proposta colocada por alguns pases

    que previam a criao de uma espcie de banco

    mundial de alimentos. Ento, assim como se tem o

    FMI, que fiscaliza os fluxos e a sade financeira

    dos pases, haveria uma espcie de organismo

    multinacional que deveria cuidar desta

    movimentao de estoques, cuidar de suprimentos,

    permitir que os preos no variassem tanto... Ele

    teria funo de interveno no mercado. O que

    aconteceu foi que o Sistema acabou se

    transformando na FAO, que muito importante,

    mas que apenas normativa. A FAO orienta, faz

    levantamentos de safra, promove informaes de

    assistncia tcnica, difuso de tecnologia, etc., mas

    no um mecanismo de interveno direta nos

    mercados. Mais tarde, foi criado o PMA, o

    Programa Mundial de Alimentos. No entanto, este

    funcionou durante muitos anos como um brao

    dos Estados Unidos e da Europa, que

    descarregavam seus recipientes de alimentos de

    forma a dar sustentao ao preo. Assim, ao invs

    de soltarem os produtos no mercado, baixando o

    preo, faziam doao para o PMA. Hoje essa

    poltica mudou, ainda que os EUA sejam o

    principal financiador do PMA que ainda est em busca de um papel. Talvez isso que voc

    perguntou seja este papel: a organizao dos fluxos

    para abastecimento em nvel mundial.

    IHU On-Line - Que iniciativas de cooperao

    internacional contribuem para a ampliao do

    acesso alimentao?

    Walter Belik Esse tambm um tema controverso. Em minha opinio, penso que a

    Organizao Mundial do Comrcio OMC

  • 25

    poderia fazer este papel. E faz, de certa forma, este

    papel. Barreiras comerciais s prejudicam os

    pobres. Existe uma parte do movimento de

    trabalhadores rurais que defende a necessidade de

    barreiras como forma de proteger a sua produo.

    Eu vejo outras formas de proteger sua produo,

    pois as barreiras servem para que produtores

    europeus, principalmente, garantam sua reserva de

    mercado. Penso, ento, que isso deveria ser

    aperfeioado. Movimentos de proibir a exportao

    da carne ou do frango brasileiros so barreiras

    extraeconmicas que se inventa para proteger

    determinados mercados. E o pblico interno paga

    mais caro por isso.

    Eu no sou liberal ou neoliberal a ponto de

    pensar que no deve ter barreira nenhuma. Tem

    que ter, lgico, pois existem crises alimentares

    em que voc deve estabelecer determinadas

    protees. Por exemplo, quando houve, em 2008,

    uma alta generalizada no preo dos alimentos,

    muitos pases colocaram barreiras proibindo a

    exportao dos seus alimentos, no sentido de que

    o pblico interno ficaria desabastecido. Penso que

    estas so solues positivas, como medidas

    emergenciais a serem tomadas. Agora, o que

    precisa ter um equilbrio. Se houvesse equilbrio,

    muito provavelmente o alimento circularia de

    forma mais livre no mundo. Seria possvel baixar

    preos, ou permitir que organizaes de

    produtores participassem dos mercados. Hoje

    quem participa dos mercados so as tradings,

    porque to complexo, que uma cooperativa no

    Rio Grande do Sul no consegue fazer isso. So

    mecanismos que permitem equilibrar um pouco o

    jogo nesse campo.

  • CADERNOS IHU EM FORMAO

    Um sistema alimentar que produz famintos e obesos

    Entrevista especial com Esther Vivas

    O problema da fome tem a ver com a falta de democracia. Temos alimentos suficientes no

    mundo, mas no h acesso a eles para todas as

    pessoas, pondera a ativista Esther Vivas. Por: Luciano Gallas / Traduo: Andr Langer

    "O problema, hoje, quando falamos de

    alimentao, no tem a ver somente com a fome,

    mas tambm com a m nutrio. Porque vivemos

    num mundo de famintos, mas tambm de obesos.

    O sistema alimentar atual no satisfaz corretamente

    as necessidades de comer das pessoas. um

    sistema que produz simultaneamente pessoas que

    passam fome e pessoas que so obesas, fruto

    tambm de uma m alimentao. E este paradoxo

    de viver num mundo de famintos e de obesos

    mostra como o sistema alimentar atual no satisfaz

    as necessidades alimentares das pessoas.

    Fundamentalmente, o que o move a lgica do

    capital, do dinheiro, do benefcio econmico",

    afirma a ativista espanhola Esther Vivas.

    Nesta entrevista, concedida por telefone IHU

    On-Line, Esther Vivas enfatiza que o problema da

    fome , fundamentalmente, poltico. Segundo ela,

    apesar de produzirmos uma quantidade de

    alimentos suficiente para alimentar uma populao

    adicional de mais 5 bilhes de pessoas no mundo,

    temos hoje um bilho de pessoas passando fome

    entre os 7 bilhes de habitantes do planeta ou seja, um a cada sete habitantes passa fome. H um problema de democracia no sistema agrcola e

    alimentar. A resposta pergunta de por que h

    hoje fome num mundo de abundncia de

    alimentos, a encontramos quando analisamos

    quem determina as polticas agrcolas alimentares,

    quem sai ganhando com este modelo. O atual

    sistema agroalimentar est pensado basicamente

    para que umas poucas empresas ganhem dinheiro,

    mesmo que para isso muitas pessoas tenham que

    passar fome, frisa. A ativista lembra que a chamada revoluo

    verde resultou na privatizao da agricultura, j que

    os insumos agrcolas (todos aqueles elementos,

    entre bens e servios, necessrios para a produo

    de alimentos) so controlados por poucas

    empresas. Em consequncia, a capacidade de

    decidir sobre o que e de que forma plantar, que

    antes era exercida pelo agricultor, agora retida

    pela indstria alimentar. Atualmente, no sabemos o que comemos, no sabemos o que est

    por trs do que consumimos. Alimentamo-nos

    com produtos quilomtricos, que vm do outro

    lado do mundo. Perdemos a capacidade de decidir

    sobre aquilo que levamos boca, adverte, ressaltando que essas polticas resultaram na perda

    da diversidade agrcola e alimentar e em uma

    sociedade que contrai doenas a partir daquilo que

    ingere.

    Esther Vivas ativista poltica e social,

    posicionando-se a favor da soberania alimentar e

    do consumo crtico. Participou dos movimentos

    altermundialistas, em vrias edies do Frum

    Social Mundial e nas campanhas contra as

    mudanas climticas. autora de diversos livros,

    entre os quais Resistencias globales. De Seattle a la

    crisis de Wall Street (Madrid: Editorial Popular,

    2009, com JM Antentas), Del campo al plato

    (Barcelona: Icaria Editorial, 2009, com X.

    Montagut), En pie contra la deuda externa

    (Barcelona: El Viejo Topo, 2008) e Super-

    mercados, no gracias (Barcelona: Icaria Editorial,

    2007, com X. Montagut).

    Confira a entrevista.

    IHU On-Line - Quando falamos de fome, a

    que estamos nos referindo exatamente? Por que

    ainda h fome no mundo?

    Esther Vivas - Atualmente, vemos que o

    problema da fome um problema poltico. Dados

    do ex-relator especial das Naes Unidas sobre

    temas da fome, Jean Ziegler , indicam que, no

    mundo, produzem-se alimentos que poderiam dar

    de comer a 12 bilhes de pessoas. Somos

    atualmente 7 bilhes de pessoas no mundo.

    Apesar desta abundncia em que vivemos, uma de

    cada sete pessoas passa fome. O problema , em

    consequncia, a existncia de fome num mundo de

    abundncia. O problema da fome tem a ver com a

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    falta de democracia. Temos alimentos suficientes

    no mundo, mas no h acesso a eles para todas as

    pessoas. H um problema de democracia no

    sistema agrcola e alimentar. A resposta pergunta

    de por que h hoje fome num mundo de

    abundncia de alimentos a encontramos quando

    analisamos quem determina as polticas agrcolas

    alimentares, quem sai ganhando com este modelo.

    O atual sistema agroalimentar est pensado

    basicamente para que umas poucas empresas

    ganhem dinheiro, mesmo que para isso muitas

    pessoas tenham que passar fome.

    IHU On-Line - A fome afeta todo o planeta ou

    regies especficas?

    Esther Vivas - A fome afeta hoje todo o

    planeta. Ainda que, evidentemente, as situaes

    mais severas da fome ocorram principalmente em

    pases do Sul e em territrios como o chifre da

    frica [nordeste africano] ou a Amrica Latina temos visto fomes peridicas no Haiti. Mas, alm

    de ocorrer nos pases do Sul, a fome est presente

    tambm em pases ocidentais. Atualmente, no

    Estado espanhol, calcula-se que mais de um

    milho de pessoas passem fome. Entretanto, o

    problema, hoje, quando falamos de alimentao,

    no tem a ver somente com a fome, mas tambm

    com a m nutrio. Porque vivemos num mundo

    de famintos, mas tambm de obesos. O sistema

    alimentar atual no satisfaz corretamente as

    necessidades de comer das pessoas. um sistema

    que produz simultaneamente pessoas que passam

    fome e pessoas que so obesas, fruto tambm de

    uma m alimentao. E este paradoxo de viver

    num mundo de famintos e de obesos mostra como

    o sistema alimentar atual no satisfaz as

    necessidades alimentares das pessoas.

    Fundamentalmente, o que o move a lgica do

    capital, do dinheiro, do benefcio econmico.

    IHU On-Line - O sistema capitalista gera

    riqueza a partir da desigualdade nas sociedades

    humanas e do desequilbrio na relao entre o

    homem e a natureza. A fome inerente ao

    funcionamento do capitalismo?

    Esther Vivas - Fizeram-nos crer que as pessoas

    compartilham os valores inerentes ao sistema

    capitalista. Quando nos falam da natureza, nos

    dizem que na natureza o que impera a lei da

    selva, a lei da competio. Na realidade, quando

    olhamos a natureza, vemos que o que impera a

    lei da cooperao. Querem nos fazer crer que a

    pessoa e a natureza por si mesmas tm os valores

    do capitalismo, os valores da competio, do

    individualismo. Mas, na realidade, no assim.

    Hoje, entre as diferentes crises mltiplas que

    afetam o sistema atual, uma crise importante a

    crise dos valores. Entendemos que preciso apelar

    para outras relaes entre as pessoas, para outras

    relaes com a natureza, para fazer frente s

    relaes antagnicas impostas pelo sistema

    capitalista, relaes antagnicas ao individualismo,

    competio, busca do benefcio acima de tudo.

    Temos que romper com esta lgica do capitalismo

    que nos impem e apelar para outra lgica, a lgica

    da cooperao, da solidariedade, dos bens

    comuns. Est