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'i 'I i I I ' / ' " ERIC ALLIEZ MICHEL FEHER i I I 1 1, , I , · DIDIER GILLE I, i ISABELLE STENGERS CONTRATEMPO • I Ensaios sobre Algumas Metamorfoses do Com um Posfácio de FÉLIX GuATTARI e ERIC ALLIEZ Traduçãà de MARIA DE LOURDES MENEZES FORENSE•UNIVERSIT ÁRIA Rio de Janeiro '• ' . . 'I!J :I ' ,. - 1 :• I I · ·-.:I

Alliez, Eric. A Cidade Sofisticada.pdf

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ERIC ALLIEZ

MICHEL FEHER

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ISABELLE STENGERS

CONTRATEMPO • I Ensaios sobre Algumas Metamorfoses

do Capit~l

Com um Posfácio de FÉLIX GuATTARI

e ERIC ALLIEZ

Traduçãà de

MARIA DE LOURDES MENEZES

~ FORENSE•UNIVERSIT ÁRIA

Rio de Janeiro '• ' . . 'I!J

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Ferozmente exteriores aos impérios, os nômades, ffente à máquina imperial, assumem atitudes ambivalontea e~ cam­biantes. Ora acampam miseravelmente às portas do,1impé~ rio, ora fazem-se utilizar como mercenários - formando, se é que podemos dizer isto, um exército de tempo parcial. Ora se entregam a alguma razia violenta, súbita mas sem futuro, ora, finalmente, se unem e saqueiam o império: menos para conquistá-lo, pois sufocam dentro de seus , muros, do que para atravessá-lo. Todavia, quer vendendo seus serviços, quer cobrando seus tributos, existem entre o nômade mongol e o burguês funcionário chinês dema.sia­das diferenças para que elas .se articulem, ainda que sob forma de contradição. Poderíamos, então, esboçar uma homologia entre essa incompatibilidade e, por exemplo, a incompatibilidade qu0 reina entre o jovem desempregado que não sabe como perder o seu tempo e o novo funcioná­ri-o do capital (o trabalhador integrado) que só procura ganhar mais dinheiro? Essa diferença, demasiado radical para transformar-se em antagonismo, não é a mesma que assusta o burguês de Pequim que, ao ver os nômades es­palharem-se pelo império só consegue lamentar-se: "Como acabará isso? É o que todos se perguntam. ( ... ) O Palácio Imperial uLrniu o.::; nômadcs c nuo snbc mais como desem­baraçar-se deles. ( ... ) A tarefa de salvar a Pátria foi con­fiada a nós, artesãos e comerciantes. Mas somos incapazes disso. Ademais, nós nos gabamos alguma vez de poder cumpri-la? Existe apenas um malentendido, mas nós mor­reremos por ele 1 " a1

37 Kafka, F., La muraille de Chine, Gallimard, 1950, p. ,97-98.

dos homens, à otimização de suas satisfações finais (Mille plateaux, op. cit., p. 571 e 572).

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A CIDADE SOFISTICADA

ERIC ALLIEZ

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1 J?l~de Runner. Imagens surpreendent-es de uma metró-pole. em yia.s de aparição; de uma cidade arcaico-futurista, mas ~ ~ujo futurismo não deve nada às visões modernistas

·de uma cH:Htde-fábrica e cujos . arcaísmos não remetem a nenhum dos arquétipos caros à tcntnllldnde pós-moderna . .

Cidade colagem, que não se contenta em sobrepor pe­daço$, ~ teterogêneos como se fossem camadas arqueológicas, mus que 'os ugunclu cm umu mulilpllddudü consl9tento. Cidade-montagem onde a homoge~eização .cabe à projeção das imagens:

Cida<ie sofisticada, '1' e trataremos de mostrar em que sentido, •onde o poder se torna verdadeiramente imanente a · seu objeto: .mais uma simulação d o que simples mime­tismo, poiE.1 "não se trata de combinar com o fundo, mas sobre um fundo matizado mesclar matizes". 1 **

'' Sofisticada evoca, por sua vez, sof is ta , f igura que se tem revelado uma das mais problemáticas da história da filosofia. I~sinuantes, os sofistas associa m o paradoxo ao pensamento, · tornando-'se escândalos para a eternidade das essências e para as unidades objetivas de significação. Fundadores de uma onto­logia dos acidentes, tornam secundárias as identidades as con­tradi.ções, o universal e o necessário. (N. da Ed. Bras.)'

I Lacan, ' J ., Sémina.ire XI, Éd. du Seuil, p. 92 - que esda­, ~ece: "exatam~nte como se realiza a t écnica da camuflagem em

operações de guerra humana."

. . ; * ,"Il ne s 'agit pas de se mettr e en accord avec le fond, mais sur un ' f~nd bigarré, de se .faire bigarrure." <N. da .Trad.) .

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218 CONTRATEMPO

O cinema americano de science fiction freqüentel'Il;ente se compraz na utopia: uma viagem interplanetâria ou . uma guerra mundial anterior ao filme e apresentada como ~xer­go servem de tam.üa rasa sobre a qual se pode esboçar em traços gerais um despotismo implacável ou, pelo contrário, o estado de anarquia de um mundo entregue a serihores da guerra orgulhosos e cruéis. Esses dispositivos permitem a reutilização· de dois grandes gêneros: o homem livre con­tra a organização inumana ou as aventuras do herói pi­care.sco:

O "Homem Livre" enfrenta um império análogo, em seu €spírito e seus fins, ao nazismo e/ ou ao co­munismo dos filmes hollywoodianos de espionagem (com seus ideólogos dementes, sua polícia secreta oniprescnte, seus militares honestos mas, sobretudo, patriotas). E a imaginação que se desdobra ao nível dos meios técnicos de que esse poder maléfico dispõe é - que se há de fazer! - freqüentemente compen­sada pela pobreza do projeto político a que são desti­nados. Na verdade, qualquer que seja o luxo de aparelhos de controle ou de extermínio apresentados, trata-se de alcançar rapidamente o essencial: o duelo, homem a homem, entre o herói libertador e o tirano.

Quanto ao aventureiro picaresco, ele circula em um mundo selvagem e desolado (o pós-guerra mun­dial), povoado por pequenos grupos de sobreviventes matizados; o que autoriza uma mistura, ou, melhor dizendo, uma superposição de todos os subgêneros que participam desse tipo de filme: aventuras pré-histó-­ricas, novelas de cavalaria, piratas, hell's angels ...

Em ambos os casos, a diferença principal entre a' ver­são "science fiction" e os modelos de origem tem a ver. com

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A CIDLDE SOFISTICADA 219

o desenraizamento do herói: o liomem da liberdade não tem mnis nenhum "mundo livre" correlato, mas apenas t;tm p~queno grupo de aliados; portanto, os tentáculos do

· .lmpéric do Mal podem, em 'princípio, estender-se ao infi-·. !l!to . . ':qa; mesma forma, o avcntm:olro picu.resco não tem

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, mais .•UIP porto de origem, uma terra natal à qual deve r.~·toma:r · no fim do "conto".,* Süa busca, na verdade não · pas.Sa: de ' uma errância ilimitada.

A produção recente explora essa dupla potencialidade, que ela compreendeu muito bem, redescobrindo os encan~ tos tio folhetim: a dominação infinita do Império e a série Star wars, a corrida sem limites e a série Mad Max.

. Blade Runner, que no entanto se apresenta como um grande espetâculo "popular" - mas nós sabemos que o filme foi de início . um grande fracasso comercial ant~s

de se tornar um "cult fíhn" -, ele rompe com esse· duplo esquema e mais profundamente com o cinema de scíence fiction utópico. A ênfase é colocada na continuidade entre o mundo contemporâneo e o do filme: não no sentido de. uma invariância ou de uma permanência dos traç.os e valo­res da soCiedade, mas p~Ia procura de linhas cujo traçado já. está estabelecido.

Sem dúvida, ele não é o único nem mesmo o primeiro filme a proceder dessa maneira: Warriors [Guerreiros da noite], que certamente se apoiava no relato picaresc·o -

. ou mais exatamente na anâbase - e levou bastante longe . ' a estilização de seus bandos de vadios, utilizava com muita

• i ·felicidade e intensidade a geografia novaiorquina, em parti­' cular, o seu metrô, e a noção de malta, adequada à metró­

, .. i pole. E Escape from New York [Fuga de Nova Iorque]

• " ... 11 doit en fln de 'eor1Le' revenir'': ai se observa um , jdgo de palavras intraduzível para. ·o português - "en fin de · · cúnt~'.' ~ "en fin de compte" (isto é, "no fim do conto" e "no fim ,das contas"). (Nota dos Revisores)

I I' 220 CONTRATEMPO

partia de uma idéia muito forte - infelizmente bastante mal desenvolvida -, a de Manhattan transformada em zona carcerária, em depósito de delinqüentes.

Mas Blade Ruiíin,er vai mais longe, revela-se mais ambi­cioso na medida er.l que não se contenta em jogar, com uma idéia - a guerra das gangs ou a da cidade-pen:tten­ciária -, em desenvolver só uma linha, mas tenta trlitçar várias ao ~esmo tempo, e, dessa maneira, faz da cidade o seu próprio <>bjeto.

Blade Ru.nner rompe com a via utópica, mas perma­ne<le na órbita do cinema americano e dos seus gêneros. No caso, o filme de Ridley Scott se refere ao f~lm noir. Mas essa aproximação entre o filme de science ficti.on e o film noir revela-se adequada à expressão e ao prolongamento das linhas de força da metrópole contemporânea. O thriller dos anos 40 apresenta, de fato, uma afinidade particular com um imaginário de tipo urbano, sendo a cidade filmada segundo uma perspectiva rasante, imanente à multip!Jci­dade de suas corrente. Esse ponto de vista é ocupado por um herói cm fuga ou pelo menos envolvido num "deslize" irreprimível, incapaz de dominar a situação, mas que, desis­tindo de consertá-la, procura conjugar-se com o curso . dos acontecimentos, seguir seus meandros; apreensão "em ca­tástrofe" das escarpas mais apruptas e dos pontos de m~nor resistência (Talvez encontremos aqui uma relação essencial com a escrita, com a escrita como queda: cf. Contad; prosseguindo nessa direção, deveríamos colocar o problema da escrita cinematográfica.) ·

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Nesse percurso prevalecem dois tipos de imagens. 1.0 )

As imagens de massas, fendidas pelo herói, com seus escoa­mentos laminares em grandes avenidas, suas turbulências locais, mas suscetíveis de se ampliar a qualquer momento, sua súbita coagulação que paralisa uma cidade onde! não existem mais espaços reservados às aglomerações; :' es.c:;es

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A CIDADE SoFÚ)rrcADA 221

mqvimentos de massas drenam e misturam os grupos mais heterogêneos, ou para homogeMizá-los (substância coex­'tebsiva à fonna de escoamento !~minar) , ou, pelo contrário, para provpcar os efeitos mais d'e~toantes (matérias singu­l~r~l) gesfacadas pelas turbulências). 2.o) As imagens de e.sp~ços1 de.sativados, ou seja, desligados de suas atividades a qp.~, foram destinados: móveis ou imóveis atingidos pela obsolescência (cais, arma:;~éns, becos sem .saída ... implici­tamente situados na. periferia dâ cidade, no limite dos movi­mentos ,de massas).

Entregue à scienC'e fictíon, o dispositivo do film noir I , J I

pode ao :mesmo tempo: ~- desenvolver as imagens de massas urbanas do ponto

de vista rasante que é o delas; nésse sentido, B~ade Runner é p:recedido pelo cinema "critico" dos anos 60-70 de Lumet, Altma~, eassavetes e Scorcese (G. Deleuze; L'ima;ge-mou­vement, p. 227-284);

- C<i:mplicar, talvez até mesmo inverter, a relação centro-periferia: centro das cidades desertificado, circulação na periferia; imagens coextensivas ao êxodo urbano que afcta as grandes cidades americanas há mais de 10 anos;

- definir novos lugares e obj etos desativados não mais por ob~olescência, mas à força de sobrecarga - veículos ou

·barracas, compostos de elementos os mais heteróclitos, superposição de camadas ora futuristas, ora arcaicas. .

A descrlção dar: massas heterogêneus upreendidas atra­yés de um herói imanente a seus movimentos e a apresen­tação de lugares ctesativados e de objetos sobreativados são as prinieitas tarefa~ a que se dedica Blade Runner. A cidade .constituída por esses elementos é, além disso, "envolvida" ppr uma ehuva lancinante, outra herança do film noir e pela ~·stre~e:t language", mescla de alemão, espanhol, chi-

, nê.s. . . .que procede da jmisção dos diversos grupos que formam a . população da metrópole. ·

222 CONTRATEMPO

Quanto ao herói, inicialmente ele se apresenta como um equivalente de detetive particular na tradição do rdman noir: ao mesmo tempo uma bela alma desgostosa c~m o estado do mundo e um platónico que acossa um sofista. Ele deve abrir caminho na atmosfera confusa da metrópole, distinguir o autêntico da falsa aparência chegando até ao mais indiscernível (encarnado nos thriUers originais' por homens cosmopolitas demasiado polidos e, sobretudo, por mulher·c.s demasiado bolas, marcadas por algum segredo terrível). A busca no âmbito da grande cidade é entravada pela ausência de horizonte que torna os indícios ambiva­lentes e o perigo imprevisível. Por isso, o detetive deve reagir a cada golpe mas igualmente deixar-se levar pela multiplicidade das correntes que atravessam a cidade, e o solicitam. Nesse jogo o protagonista do roman noir torna-se logo o herói do film noir: a errância pela cidade, a vertigem da cidade, sub.stituem a busca e os fios de que ela tenta se reupropl'lar enquanto objeto do relato e preocupação do próprio detetive. BZade Runner ultrapassa esse limiar onde o caçador não apenas se deixa cativar pela presa que ele deve capturar, mais ainda, através dessa presa, pelo ter­reno de caça em que ela se move e ao qual se amolda. o indiscernível, as falsas aparências a serem desmacaradas, para o herói de Blade Runner, não são mais escroque.s de alto coturno ou mulheres fatais, mas "replicantes", andrói­des q_ue se tornaram indiferenciáveis dos homens graças aos progressos da "montagem" genética. Do·tados de uma vida de quatro anos, o.s replicantes serão em seguida "aposerita­dos". Produzidos para o uso das colônias, eles são proibidos de permanecer na terra desde a rebelião de quatro deles -e a tarefa de· Deckard, o blade runnet· (caçador de recom~ pensas ou de cabeças), é localizá-los e eliminá-los. Pois Deckard, na verdade, não é um "detetive particular", mesmo que dele mantenha o ar e.a postura; é um ex-poli-

A CIDADE SOFISTICADA 223

çial especializado em ac~ar replicantes. É verdade que já ~bfl.ndonou a polícia - da mesma forma que os private

, · ê?Je~ i~ãp·,~ptigos policiais demitidos por insubordinação ou .' demi~si~nârios por desgosto - mas ,se deixa reengajar: ~Ornl!l ' seU' Hchefe" chega a lh,e observar, fora da polícia ele , não' é. iliai.s nada ..

A utilização pela polícia de agentes por assim dizer "secretos", na medida em que são encarregados de confun­c!ir-se com o meio que devem controlar e onde trabalham numa relação frouxa e mais ou menos elástica com a hie­rarquia policial, constitui um plano de investigação assu­mido pelo cinema americano contemporâneo: esses novos agentes correspondem a uma nova estratégia de controle que se tornou necessária por causa da complexidade e dàs obsessões características da metrópole. Eles devem ser capazes não apenas de deslizar num determinado meio ambiente, mas também de esgueirar-se, de percorrê-los todos. NL'io lm.stn dizer quu c~le.s dnvcm a:;.Sl'tnClhar-se a mar~ ginais nutna cidade onde toda margem está, desde sempre, v~tada à "recuperação", mas também onde toda categoria "sócio-profissional" é potencialmente marginalizável; onde as passagens das margens para o centro são, à maneira do acesso ao Castelo de Kafka, marcadas por intermlnúveis voltas, mas também por incríveis atalhos (cf. a figura de

· geometria variável do traficante de drogas). , Assim sendo, o esquadrinhamento da cidade por um

corpo policial homogêneo, distinto do obj eto a ser contra­. lado, é substituído pela prática muito mais eficaz da infil­tração, talvez mesmo da .simulação de todas as co·rrentes

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da metrópole por agentes que tendem a se tornar indiferen-ciáveis dos meios onde ntuum. E.::;.sa 6. portanto, a mutação que ',;:tfeta o modo de funcionamento da máquina policial

·"em terra". Mas essa inversão ~ e sua expressão n•o filme de R. Scott - tem um alcanc~, mais geral: ela indica e pa~ticipa de uma mudança do !regime da própria cidade.

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O "antigo regime", tal como foi encenado no cinema, revestiu-se de duas formas. A primeira, ao mesmo tempo 11taylorista" e "panóptica", apresenta o organograma de uma cldade-fábdcr, com suas multidões homogeneizadas em função do processo de trabalho (modelo da linha de montagem), tendo como cérebro um chefe de em~resa

invisível oue controla numa bateria de telas o bom anda­mento da atividade industrial. A invervenção da policia do Estado ocorre, de fato, excepcionalment~, e tem apenas como objetivo evitar as disfunções da máquina produtiva. É o mundo dos Tempos MOdernos de Chaplin e do inicio da Metrópole de Lang. Em contrapartida, a segunda forma, "totalitária", dá um lugar preponderante ao aparelho po­licial que se instala entre o topo ocupado por um tirano mais ou menos delirante, mais ou menos fantoche, e a base onde vive um povo mais ou menos aterrorizado, mais ou menos apático.

Polícia onipresente mas sempre reconhecível, diferente da população civil -mesmo que o traço distintivo se limite a um impermeável ou a uma expressão do rosto-- que se torna autônoma do topo e modifica a orientação do ,pro­cesso de produção de tal maneira que o desenvolvim,ento dos meios de controle e de repressão parece tornar-se o objeto privilegiado da atividade económica.

O cinema americano "critico", através da sua fasci­nação pela CIA, freqüentemente debruçou-se sobre a ' pas­sagem de uma forma para outra na própria Américà. A esse respeito, é preciso citar um filme recente, Blue T'hun­der [Trovão Azul] que, para além de um simples duelo entre um policial honesto - isto é, que participa da pri- , · meira forma - e a CIA, apresenta todo o problema de controle à meia-altura de um ponto de vista moral,, 11 mas também logístico. Blue Thunder mostra de início qpe "à meia-altura" deve ser compreendido tanto espacial quanto institucionalmente. Em virtude de seus problemas ' "em

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A CIDADE SoFISTICADA

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, terra", a polícia deve conquistar um plano debruçado sobre a Cidade. Entretanto, esse' plano .não deve ser elevado de­'mais par~ que o controle não perca em sensibilidade, em capacidade de registro, aquilo que ele ganha em genera· lid~de·;: ora, 'antes de mais nada o perigo provém da coales-

. cên.oi'a ' de movimentos locais .que é necessário apreender o mais prÓximo possível de seu clinâmen. De mais a mais, esse plano não pode limitar-se a uma série de pontos fixos s~bre a cidade, mas, pelo contrário, deve constituir U:n;lA zona de circulação sem entraves, de máxima mobi­lidade. '

l:Jlue Thunder demonstra então que esse plano é ideal­ment0 ocupado ou, mais exatamente, traçado, pelo par helicópte+o-câmera; no caso; trata-se de um helicóptero ultra-i:âpido, capaz de registrar o som e a imagem através

· das paredes mais grossas. (A perseguiÇão sobre a qual se estrutud o filme afirma a superioridade do helicóptero tanto sobre os carros de polícia . engarrafados no trânsito, quantG sobre os aviões . do exército imprecisos e desajei­tados à meia-altura.) Além disso, Blue Thunder conta que; uma vez que a utilização dessa "arma absoluta" le-

. vanta ·problemas éticos, a CIA tenta impô-la fomentando uma psicose d0 terrorismo, através da intermediação de seus agentes "bandidos".* Mas estes, seguros de sua auto­norrqia, compr\omc·tcm u operação ,Jíríglndo-a como um a.ss11nto pessoal.

O 1 to,rnar-se segredo de Estado (o poder oculto da

CIA), q fato de seu..c; agentes se tornarem malandros ou ·.terrqristas, a meia-altura que se torna todo-poderosa, são temas a:tuais que este filme traz à reflexão. Ora, Blade Runner realiza uma mutação nova exatamente em relação a esse modelo.

• Agents tnterlopes, no original. (N. da Trad.)

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226 CONTRATEMPO

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A cidade que o filme apresenta, comporta, no entanto, os três níveis clássicos; ela é mesmo piramidal, coni seus gigantescos arranha-céus que evocam estranhas pirâmides ' astecas futuristas. Além disso, por mais surpreendentes que sejam as imagens de multidões e de espaços desat1vados que o filme oferece, elas não são realmente novas, pois já aparecem nos films noi1·s e, conforme a expressão de Deleuze, nos filmes "baladas" nos anos 60-70. A meia­-altura, por sua vez, é, como já se notou, ocupada .Pelo aparelho policial, e o topo por um chefe de empresa. Mas nesses três níveis ocorre uma mesma inversão do ponto de vista da função do poder e do tipo de produção que ele promove.

Em terra, como já vimos, os novos agentes-bandidos não devem tentar esquadrinhar o labirinto metropolitano, nem entravar a sua crescente complexidade, mas conju­gar-se com ela. Trata-se menos de represar as correntes perigosas do que de infiltrar-se nelas para infleti-las ou, melhor ainda, para "pilotá-las".

A meia-altura, Blade Runner mostra, de início, que o aparelho policial, enquanto apoiado no controle dos mo­vimentos urbanos, no registro das turbulências bem pró­ximo do limiar do perigo, é necessariamente ultrapassado pelos acontecimentos (cf. as belíssimas imagens das delew gacias de polícia que tresandam a impotência burocrática). Por isso, deve remeter-se a seus agentes franco-atiraci.orcs "em terra", mais eficazes, porém menos seguros.

Entretanto, se a meia-altura perde sua qualidade ,como ponto de visão - ainda que móvel - e de análise, enquan­to plano de circulação, ela será doravante idealmente ocupada por engenhos do tipo helicóptero, equipados mais com projetares do que com câmeras filmadoras e foto.grá­ficas.

A CIDADE SOFISTICADA 227

.. . "· :Ess~s · veículos, vetares de uma difusão móvel é ins-••• • • ' I I . . I ·' •

·· tantâ:hea, :.sulcam a cidade, ~o mesmo tempo que a varrem . '· com,, imagens. Estas consistem essencialmente de spots pu-

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', JjUoft{tdos que enaltecem os encantos uns colôn1as de po.:. voamentol esses subúrbios . artificiais que gravitam em torno da terra ...

IA.i também a simulação substitui o esquadrinhamento, mais exatamenté a projeção substitui o registro; a função de homogeneização, através da imagem projetada, suplanta a função de controle e de detecção. "Big Brother" dedica-se menos a espionar uma comunidade cm vias de desapare-

. cimento como essa do que a "realizá-la" no sentido cine­matográfico do termo. Espetáculo cujos habitantes "reais" da metrópole niio são csp.ectndorc.s, brincando de identifi­car-se com os atares ou com o diretor, mas sim os figu­rantes do filme. Essa evolução alcança e, estende aqu€la que Bradbury atribui à televisão que, de objeto central que interpela o telespectador, se torna uma verdadeira parede da casa, que faz do usuário muito mais uma engrenagem e um retransmissor interno à rede televisiva do que o sujei­ta (como um alvo exterior) . ~

Essa mudança de inflexão no exercício do poder encon­tra eco nos trabalhos de Paul Virilio. Num primeiro texto

. , ,intitulado "A cidade super-exposta" (ín L'insécurité du territoire, 1976), ele insiste principalmente na função de

' , · registro e de controle preenchida, em especial, pelo par câ;rncru-hcl~cóptero: "De fato, jú hú algum tempo somo.1

· os feixes de um onipresente circo eletrônico: desde os saté­·lites até os helicópteros (símbolo que poderia substituir co'm ' vantagem a águia dos bra.sões), passando pela tela tie televisão do metrô onde aparece o resultado último do

2 Deleuze, G. & Guattari, F. Mtlle plateaux, Éd. de Minuit, 1980, p. 573.

220 OONTTII\'fiilMPO

gênio dos irmãos Lumiêre, somos contados, pesados, auscul­tados- até a nossa temperatura os sensores de infraver­melho testam, pan •. adivinhar nossos deslocamentos, sur­preender nossos gestos". . . (p. 210). :m o modelo ' Blue Thunder. Porém, num texto mais recente, com o mesmo título (in Change International I, retomado em L'Espac·e Critique, 1984), Virilio parece privilegiar a função de ho­mogeneização preenchida pela tela e pelo projetar. · Dai a importância da montagem das imagens que tendem a ocultar toda profundidade real, em proveito de uma pura superfície de projeção "a tal ponto que os planos do arqui­teto são sucedidas pelos planos-seqüência de uma monta­gem inaparente"; a importância crescente da interface e da comunicação "imaginária" ou eletrônica que tem como correlato o declínio do construido (paredes divisórias, · por-. tas, fachadas ... ) . E, segundo Vírilio, a conseqüência últi­ma desse processo seria o deslocamento da metrópol(;!, ou seja, a desativação da cidade material-histórica em proveito de uma concentração pós-urbana cuja única unfdad~ é a de um espaço-tempo sintético, e de colónias de ppvoa­mento disseminadas em todas as · direções do espaço geo- · físico.

É cxatumcnto esse estado de coisas que Blade Runner descreve: os veículos projetares e seus comerciais par.a as colónias (o livro de Philip K. Dicl<::l de onde é tirado o fUme, insiste ainda mais na desagregação da cidade' real, no êxodo para os subúrbios satelizados) não apenas reco­brem as fachadas com imagens, mas redefinem a fachada, ·. já não mais como uma superfície separadora, mas ,,como . , uma tela potencial. Correlativamente, a partir do momen- · to em que uma fachada não funciona mais comp tela, em que não é mais ocupada por uma imagem, im~diata­mente tende a se esboroar, e· mesmo a desmoronax: imó­veis arruinados, espaços-fósseis. Esse é, portanto, o novo

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.e duplo estatuto da fachada: ora polida, homogeneizada p(ir uma !im~gem, plano verti c a~ · onde se opera a redução da 'prb~un~i~ade· a uma pura sup~rfíCie,3 ora esburacada e deixa,n~o desdobrar-se em plano horizontal a profundidade de 'rw. c~mpo ilimitado mas sem horizonte.1 A coexistên­cia ,desses dois estados confere ao filme imagens surpr€­endentes: passagem de um veículo projetar ao largo de um ,bai'rro em ruínas, cabine videofônica coberta de gra­fitfs I e q.e rachaduras.

No topo, afinal, assenta-se um chefe de empresa, o do11tor Tyr~ell, presidente da Tyrrell corporation que cons­trói os replicantes. É preciso sublinhar que a fabricação deles n~o ,ocorre em grandes fábricas nem mesmo em labo-

, ' . ratório,3 ,de tecnologia-de-ponta, mas em oficinas dissemi-nadas pe1a cidade, cujo aspecto é mais artesanal. A "me­trópole à.Jiusa" pós-industrial sucede à cidade-fábrica orgâ­nica e. industrial, à cidade t zia-de-aranha burocrática. Estranha aplicação da "cspcciulizac;ito flexível" preconiza­da por M. Piore e C. Sabei como rumo futuro do capita­lismo, onde a :Jficina do artesão ou até mesmo o laboratór!o

. do al~tümista tornam a emergir. 5

3 Pensamos m, Architectonica, esse grupo de arquite.tos da Flórlda quo reeobom 'lruilrlúl.fl .. clu!u:.·; para 1:n!:m l.ran~formttdotJ o ~xecu'tam o seu trai,amento, sem modificá-los realmente, colo­cando em primeiro pl.ano uma tela-retícula - ao mesmo tempo qundro q mó.sco.rn -· Qlle selcciona, ng\'tH~in \' aLrni para sl deton'nl-

' nada porção do edifício, determinada porção da paisagem. 4

I Lembramos o tral:Jalho do escultor Matta-Ciark: perfura­ç·Qes de imóveis desativados. . r. Uma tal mutação, com os efeitos de ' retorno que envolve, decorre, ~egundo Piore e Sabei, do fato de que a crise de que somos contemporâneos, está ligada à exaustão de um capitalismo ,fundamentado na "produção c~e massa" de bens homogêneos por grnndoll , unldndos elo vro<lu ·.~fio. l'lon:, M .• J. & Srtbol, o., The second industrial divide, Basic Books, 1984. o recente desempenho !'JCOnô:plico, da Itália incontestavelmente cqnfere peso a essa aná-

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Obtidos por manipulação genética, os replicadtes fo­ram concebidos para substituir vantajosamente a mão-de­-obra humana no quadro da conquista militar-industrial do espaço. Assistimos aí a uma extrema e paradoxa:! con­seqüência do que Marx chama de subsunção real do tra­balho pelo capi·tal. Enquanto a subsunção formal do traba­lho recobre a instauração da relação salarial, onde o trabalhador "livre" vende a sua força de trabalho como a única "mercadoria" que possui, a subsunção real, que é também a da sociedade inteira, corresponde ao surgimento do universo capitalístico propriàmente dito. Universo ·"onde a atividade do operário: reduzida a uma pura abstração é determinada em todos os sentidos pelo movimento das máquinas: o inverso não é mais verdadeiro. A ciência obri­ga, pela sua construção, os elementos inanimados da má­quina a funcionarem como autômatos úteis . Essa ciência, · portunlo, nClo muis existe no cérebro dos trabalhadores: através da máquina, age sobre eles muito mais cDmo uma força estranha, como a própria potência da máquina" .G A acumulação do saber, da habilidade, o conjunto das forças produtivas, aquilo que Marx chama o "Cérebro social'', de agora em diante aparece como uma propriedade do capital fixo - ·- "meio do produção" na tcnnínologia marxiana -, e este, como uma megamáquina cujo processo de trabalho é apenas um elemento, cada vez mais reduzido a uma sim­ples função de vigilância. Essa subsunção do conjun~o das forças sociaill pelo capital acontece · através da intermedia-

6 Marx, K, Grundrisse III, 10/18, p. 328.

lise. Muito haveria que dizer sobre este termo "pós-industrial", que se transformou na bandeira dos apóstolos de uma sociedade "clean" ·e pacificada. Só retomamos essa noção para assinalar uma mutação de estratégia que envolve uma remodelação do próprlo tecido industrial. A crise, ou seja, o processo constante de deses­truturação-reestruturação, se inscreve no seio desse dispositivo.

A CID/IDE o OF'ISTIC/\UA 231 ' ' · .. , .· 11 ,

·· .. · .. Ção · dd 'capital circulante ' ~obj.etú' da produção" que as · "preficfe'.> , ao duplo sentido 'de que ele as atribui ao capital · fixo ··_:

1

.erigido em sujeito da atividade social- e d~ .que as conjugam permitindo que "um ramD da produção prDs­siga a sua atividade em ligação com o trabalho fornecido por Jlffi out:ro" .. 7

Ora, em Blade Runner, sob a espécie dos replicantes (máquina humana, inteligência artificial. .. ) , o capital

· circulante atinge seu apogeu - e a subsunção real, um estágio supremo: como já vimos, sua construção é sabida-

. ment-e disseminada em pequenas oficinas-laboratórios espe­cializadas na elaboração de um único órgão ("eu só me ocupo dos olhos!" - exclama o infeliz velho chinês inti­mado pelos replicantes rebeldes a lhes revelar o segredo de sua fabricação). O "ofício", portanto, ressurge, mas numa relação exclusiva d e subcont ratação com o capital: modelo dn cspccinlizn<,; il.o flexí vel, ou, melhor dizendo da "fábrica difusa" coextci:lsiva à meti·ópole, exemplarm~nte analisada pela corrente operaista italiana. * Além disso, os replicantes conferem à função de vigilância reservada a? trabalho humano o seu sentido verdadeiramente poli­cialesco: "fora da polícia , você não é mais nada" - diz o .chefe de p-olícia a Dcekard, d csc'mprCf';<tdD, no início do filme.

Entretanto, os comentaristas recentes dos Grundrisse m.?stram ~uito bem que a marginalização do trabalho humano no processo de valo~ização, tendência imanente ao desenvolvimento do capitalismo, paradoxalmente coloca em

· périgQ ,,a · dominação do capital na medida em que esta se apóia no assujeitamento dos indivíduos . de acordo com a subsunção formal, isto é, na sul:J. constituição como "tra-

v Marx, K., op. cit., p. 333. ,* Courant opéraiste italien. (Ver nota especial da ed. bras.

no 'capitulo "Os Estilhaços do Ca pital", p. 160.) •, 'I

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balhadores liv:-es". Dai vem a necessidade de manter a diferença formal 0ntre o homem e a máquina, no próprio momento em que a distinção real tende a se diluir. Assim sendo, em Blade Runner, por mais que o prolongamento do tempo de vida dos replicantes esteja de acord.a com a efi­ciência da máquina produti_va, sua "aposentadoria" após quatro anos, longe de corresponder a um limite tecnoló·

gico consiste num dispositivo imposto: limiar além do ' . qual a interface homem/máquina se torna incontrolavel.

Transposto esse limiar, o fluxo de "trabalho" maquínico escapa ao seu próprio código e anula a última articulação que permite distinguir o modelo da cópia, o objeto de afe­tação do sujeito de afeição.

Limitar a des-subjetivação d>os homens, conjurar .a eclosão de uma subjetividade replicante, são as preocupa­ções principais do aparelho policial a serviço do capital - e Tyrell é o nome próprio do capital - e que para alcançá-las desloca uma boa parte das forças do cérebro social para funções de controle e de discriminaçã-o ..

A gênese de tal subjetividade replicante - de sua afetividade, de onde vêm suas reivindicações: prolonga­mento da duracão da vida e reconhecimento de uin esta­tuto humano :.._ certamente não foi desejada por seus construtores. o ldeal econômico, com efeito, passa por um

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encadeamento entre percepção e açao, esquema sensorJa-motor onde a percepção ampliada sem cessar multiplk;:J.. igualmente' o poder de agir do corpo. Quanto às sensações, aos afetos, longe de se increverem nesse, encadeam~nto, de assegurarem a passagem da percepção à ação, aparecem, conforme a expressão de Bergson, como à "imp1:1!reza que se mistura a eles", já que é a afe~ção que escapa à lei de necessidade e mede a quantidade de atividade liv!e e criadora. Como Tyrell, seu criador, explica a :peckard, é da necessidade técnica de aumentar sua memóril:l., da

A CIDADE SOFISTICADA 233

sedim~ntâção de suas lembrança$, que nasceu a afetiv'idade dos' re~liC!:lU~8S, e no mesmo instante a sua reivindicação por ".r~conhecimento" - ou, melhor dizendo, a violência de 1~a. aspiração à autonomia.

,Entretanto, inicialmente, essa afetividade ainda é um tanto q::~.de, pois os replicantes não estão lá muito prepa­rados - é mais apropriado dizer programados - para

I' I , I encara-la. Encarregada de separar o original da falsa apa-rência desde que os replicanu;s rebeldes, as "más cópias", se. tornaram simulacros fazendo-se pnssar por humanos "'aütênticos",8 a policia irá apostar no caráter embrionário da sul;:Jjetividade dos replicantes utilizando para localizá-

' ' -los, mr. .. teste cujo objetivo é quantificar a emotividade. Porém, em virtude da sofisticação crescente de suas ima­gens mentais, os afetos dos replicantes não deixam de se apurar e IJ teste se revela logo inapto para distingui-los. Esse teste desenvolvido pelo aparelho policial corresponde ao modelo operatório "clássico" df;stc último, isto é, à dis­crimin,aÇão, à seleção entre o original e a boa cópia. Ora, é esse modelo, platónico, que é malversado pelo ptóprio. capital na medida em que se "sofistica", dedicando-se a produzir simulacros cada vez mais indiscerníveis.

E, co7ll efeito, a Tyrell Company, que parece manter a polícia em suas mãos, não cessa, ao mesmo tempo, de aperfeiÇoar seus replicantes, tornando assim a tarefa dos

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seus esbirros quase impossível. Estranha duplicidade a '

8 A dialética platôntca manda distinguir o modelo de suas cópias e, entre essas, as beas cópias das más cópias. Ora, uma má cópia é mais um simul~,cro (eidôlon) do que uma pífia imi­,.tação - e o sofista é, por e1:celência, o fautor disso, um usur­.Pador ~ue se fa~ passar pelo original ou, pior ainda, aquele que embaraiha a diferença entre o modelo e a cópia. Sobre essa "re-.versã? c".o platonismo", ver Deleuze, G., Logique àu sens, Éd. du Minu,it, 1969, p. 292-307. ·

I li,

234 CON'l'RATEMPO

desse poder que ordena uma de-cisão sobre o que ele mesmo se obstina a tornar indecidível ...

No topo não ocorreria, portanto, uma substituição da - '

vigilância pela simulação, mas antes uma colocação em circuito das duas funções. Circuito próximo do círculo vi­cioso e que, no filme, dá lugar a um humanismo um tanto irónico: a humanidade crescente dos replicantes que juri­dicamente lhes é denegada, combina-se com a inumani­dade crescente dos homens encarregados de "aposentá-los". E a ironia culmina quando Deckard, o herói, não se detém em seu dever inumano senão porque se apaixona por uma IJclu. repllcuntc c u partir daí se to.rnu um fugitivo ao.s olhos do poder. (Assistiremos igualmente ao curioso balé dialétíco a que dá lugar a luta final entre Nexus 6, o · chefe dos rebeldes, e Deckard, salvo in extrernis por esse replicante que, no momento de se extinguir, se apaixona pelo elã original da Vida.)

Ainda que exista um circuito entre simulação e con­trole, entre produção de simulacros e discriminação, pare­ce, entretanto, que a primeira função cada vez mais se aperfeiçoa, e a segunda, por isso mesmo, está na corda bamba. A maneira de Sócrates, Tyrell se·ria mais sofista do que dialético. Quanto à solução que ele apresent.a para esse desequilíbrio, ela terá novamente a forma da inversão que Blade Runner descreve em todos os níveis: para· evitar a revolta dos replicantes sem ter que contar COJJf uma polícia enfraquecida ou com ublade runners'' pouco segu­ros, Tyrell resolve dotar os replicantes de uma falsa me­mória, de programar-lhes um falso passado. Convencidos de sua condição humana, demasiado humana- con:t lem­branças, fotos, um Édipo ... -, os últimos replicantes nada mais têm a desejar. Homogeneizados, eles se aposentarão por si mesmos, quando for chegada a hora, na treva mis­teriosa de sua criação.

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Num [;entido quase matemático parece aqui que o poder muda de função, na medida de uma aglomeração pós-urbana, que supõe uma sofisticação ampliada que se combina com os dispositivos primitivos de vigilância e os substitui progressivamente, da mesma forma com esses últimos tinham eles próprios sucedido aos procedimentos do grande encarceramento. Assim sendo, vimos sucessiva­mente que em terra a infiltração de agentes-bandidos ate­nua a fraqueza do esquadrinhamento da cidade por um corpo de polícia homogêneo. A meia-altura, a projeção de uma urbanidade artificial tende a completar, senão a subs~ tituir, o registro dos movimento.'! rcai:J. No topo, final· mente, a produção de simulacros cada vez mais sofistica~ dos põe em perigo a distinção formal entre o homem e a

· máquina. Situação potencialmente perigosa até que mais uma vez a projeção de uma humanidade artificial no cérebro dos replicantes aniquile neles qualquer reivindica­ção de humanidade real.

Indício de uma transitividade pós-industrial, o termo sofisticação (complexidade, artificialidade e produção de simulacros) é apreendido em um dr1plo registro: o da pro­jeção sintética, que resulta da f'parasitagem" crescente do registro analítico e o da simulação que substitui - no li~ite das ,Possibilidades de experimentação de simulacros -os model·os-padrão da di.scriminação. Em suma, à socie­dade disciplinar sucede a cidade sofisticada.

1' ·.Poder-se-ia objetar o caráter alegórico e, portanto, não

científico da demonstração? Wiilter Benjamin dizia, a pro­pósito, uma coisa muito bonitra: a alegoria, diferente­m~nte do símbolo, está sempre 'no presente ...