23
Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na Medicina Chinesa Hilary A. SMITH Pesquisa, Organização e Tradução Adaptada: Ephraim Ferreira Medeiros Projeto www.medicinachinesaclassica.org Ano IX

Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

Além da Indulgência: Doenças

Induzidas pela Alimentação

na Medicina Chinesa

Hilary A. SMITH Pesquisa, Organização e Tradução Adaptada:

Ephraim Ferreira Medeiros

Projeto

www.medicinachinesaclassica.org

Ano IX

Page 2: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

Hilary A. SMITH Departamento de História, Universidade de Denver, 2000 E. Asbury Ave., Denver, Colorado 80208, EUA. Email: [email protected]

Resumo

Este artigo explora como os médicos chineses pensavam sobre as relações entre

alimentação e doença antes do período moderno. Identifica dois grandes períodos no

desenvolvimento destas ideias. No primeiro, desde o final da dinastia Zhou até as

primeiras dinastias Tang, os médicos escreveram sobre a importância do equilíbrio e da

moderação para uma dieta saudável, e os tipos de doenças induzidas por má

alimentação que eles focavam suas dicussões eram geralmente associados com a

superindulgência. Estas ênfases não desapareceram no final do período imperial, mas

assumiram uma nova faceta que foi marcada por uma atenção renovada às doenças

associadas à privação de alimentos e à fome. Essa mudança refletiu forma como Li

Dongyuan , médico do século XIII, elevou a conexão entre doenças e alimentação

para um novo nível de significância, e também a forma como as mudanças sociais e

econômicas no final da China imperial focaram mais atenção nos hábitos dos ricos e na

situação dos pobres.

Palavras-chave: desnutrição, obesidade, China imperial, medicina chinesa, dieta

Page 3: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

1. Introdução

Quando os mongóis cercaram a capital do Império Jin, Kaifeng 開封, em 1232, os

residentes da cidade previsivelmente sofreram. Eles tentaram dividir rações escassas,

comeram toda reserva de grãos, e então começaram a subsistir comendo tudo o que

podiam encontrar: ervas daninhas, cascas de arvore e o ocasionalmente ratos para os

afortunados. Ainda assim, Li Dongyuan 李東, médico do século XIII (ca. 1180-1251),

observando como este episódio afetou a saúde do povo de Kaifeng, afirmou que foi

depois que o cerco foi levantado e a vida começou a voltar ao normal que a doença

eclodiu em grande escala. De acordo com Li, isso ocorreu porque os moradores da cidade,

que sofriam há muito tempo, se banquetearam. Ele escreveu:

Tão logo as pessoas se enchiam demais, elas sentiam [sua deficiência estomacal] e

[a comida] as machucava, e além disso elas estavam sendo [medicamente] tratadas

de forma inadequada; não é de se admirar que tenham morrido. E não foi só em

Daliang [i.e., Kaifeng] que isso ocorreu. Em 1213-1222 também havia cidades

como Dongping, Taiyuan e Fengxiang, onde depois que um cerco foi levantado as

pessoas ficaram doentes e morreram.1

Este episódio oferece um vislumbre de como um médico chinês pensou sobre

doenças induzidas pela alimentação e, particularmente, doenças associadas à fome. Para

Li, cujas teorias tem uma importância singular em informar as discussões sobre

alimentação, a privação por si só não causou doença, mas a privação a longo prazo

seguida de indulgência súbita é que foi muito perigosa. Sua observação destaca nossa

escassez de conhecimento sobre como os médicos chineses perceberam a fome e como

suas percepções mudaram ao longo do tempo.

A fome, é claro, foi uma grande preocupação administrativa na China; já no século

IV a.C. o filósofo Mencius castigou o rei Hui de Liang por ter cavalos gordos, mas a

população "com o olhar da fome que as rodeava" (min you ji se 民有飢色)2, e no período

Qing recursos sem precedentes foram usados para o alívio da fome. Como Lillian Li e

Pierre-Étienne Will demonstraram, os sistemas burocráticos para aliviar a fome, como os

celeiros do Estado, atingiram o auge de sua eficácia no século XVIII e declinaram depois

disso.3 Embora a fome tenha atraído muito interesse acadêmico por suas ramificações

políticas, econômicas e culturais, poucos pensaram sobre o efeito do conhecimento

1 Li Gao, Nei wai shang bian, in Bai bu cong shu ji cheng 百部叢書集

成 ,ed. Yan Yiping 嚴一萍 (Taipei: Yiwen yinshuguan, 1967), 3. Ênfase minha. 2 Mencius Capítulo IV., 4. 3 Pierre-Étienne Will, Bureaucracy and Famine in Eighteenth-Century China (Stanford:

Stanford University Press, 1990); Lillian M. Li, Fighting Famine in North China: State,

Market, and Environmental Decline, 1690s-1990s (Stanford: Stanford University Press,

2007).

Page 4: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

médico sobre as respostas à fome. O estudo meticuloso de Kathryn Edgerton-Tarpley

sobre a fome que devastou o norte da China em 1876-1879, por exemplo, considera

tópicos como : "trauma e memória, relações de classe em Shanxi, 'alimentos da fome' e

folclore, celeiros e rotas de grãos, ideologia do estado Qing, teorias da causa da fome,

cultivo de ópio", política faccional na capital imperial, a venda de mulheres, gênero e

relações familiares em tempos de crise, demografia da fome, canibalismo, cobertura da

imprensa sobre desastres, representações visuais da fome, tradições filantrópicas em

Jiangnan, nacionalismo chinês primitivo e movimentos de reforma do tratado-porto," mas

não aborda medicina.4

É possível que na China, dada a forte ênfase à alimentação das pessoas como um

aspecto benevolente do governo, os médicos pensassem na fome como um problema

administrativo e não como um problema médico e, portanto, não escrevessem sobre ela.

Mas há fortes indícios de que, por vezes, os conhecimentos médicos foram utilizados

para combater a privação alimentar. Por exemplo, o texto médico do primeiro ou segundo

século, o Clássico das Questões Difíceis (Nan jing 難經) inclui uma discussão sobre

como uma pessoa morre de fome, detalhando os sintomas que acompanham cada dia

sucessivo sem comida ou água. Ao calcular o volume de alimentos e bebidas que devem

permanecer no estômago e intestino, e o volume perdido diariamente para a excreção, a

passagem conclui que "pessoas saudáveis morrem depois de não comer ou beber por sete

dias."5 E Ellen Nakamura nos mostrou que, na epidemia de fome do Japão do século XIX,

os médicos alfabetizados começaram a produzir livros sobre a fome, aplicando seus

conhecimentos sobre plantas para ajudar as pessoas a sobreviver à extrema escassez de

alimentos.6 Tais livros também apareceram no final da China imperial, mas os estudiosos

da atualidade apenas começaram a explorá-los.7 Ainda não temos um sentido mais amplo

do que os praticantes da medicina clássica do Leste Asiático pensavam sobre a relação

entre privação alimentar e doença, e como isso mudou ao longo do tempo. Na verdade, a relação entre alimentação e doença de forma mais ampla é uma lacuna

na nossa compreensão da história da medicina chinesa e da história da comida chinesa. A

maioria das pesquisas sobre alimentação na China tem focado na alimentação como um

aspecto da identidade social, e na alimentação como metáfora, e sobre as proibições e

práticas alimentares religiosas. 8 Vivienne Lo explorou a relação entre alimentação e

4 Kathryn Edgerton-Tarpley, Tears from Iron: Cultural Responses to Famine in Nineteenth-

Century China (Berkeley: University of California Press, 2008), 4. 5 Nan jing: The Classic of Difficult Issues, trans. Paul U. Unschuld, Second Edition (Berkeley: University of California Press, 2016), 357. 6 Ellen Gardner Nakamura, Practical Pursuits: Takano Choei, Takahashi Keisaku, and

Western Medicine in Nineteenth-Century Japan (Cambridge, MA: Harvard University Asia

Center, 2006). 7 Tim Sedo, “The Art of Eating Whatever You Can: Environmental Statecraft

and Famine Foodstuff Manuals in Late Imperial China,” presented at Foodways in China:

New Scholarly Trajectories, University of Oregon, May 9‒10, 2013. 8 Por exemplo, Roel Sterckx, Food, Sacrifice and Sagehood in Early China (Cambridge: Cambridge University Press, 2011); James A. Benn, Tea in China: A Religious and

Page 5: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

medicina, destacando a fronteira difusa entre essas categorias e o impacto que o

conhecimento culinário teve no conhecimento médico.9 E alguns estudiosos têm escrito

sobre o valor nutricional dos alimentos pré-modernos na China a partir de uma

perspectiva moderna. 10 Isso aprofundaria ainda mais a nossa compreensão sobre a

relação entre eles a fim de melhor compreender empiricamente como os médicos

pensavam como a fisiologia da alimentação afetaria a forma como um alimento produz

um corpo, seja ele doente ou saudável do ponto de vista dos clássicos médicos.. Este artigo, é uma exploração preliminar de como os médicos chineses pensaram

sobre doenças induzidas por alimentação. Argumenta que, nos textos médicos anteriores

ao século XIII, as doenças associadas à privação alimentar, o que hoje pode ser chamado

de fome são pouco visíveis. No final do período imperial, o interesse médico pelas

doenças relacionadas à fome tornou-se mais evidente, refletindo as crescentes

desigualdades sociais e econômicas da comercialização da China e da diversificação da

literatura médica, bem como a influência dos médicos do período jin-yuan, que se

interessaram especialmente pelas patologias do estômago.

2. Medicina chinesa precoce: comendo demais o caminho para o esgotamento

Na China primitiva e medieval, a contenção e a regularidade eram características-

chave de uma dieta ideal, que fomentaria não só a saúde, mas também a retidão moral.

Aqui, examino as discussões sobre dietas medicamente aprovadas e doenças relacionadas

com a alimentação desde o período pré-Qin até aos textos do século VII. Uma das

principais características destas discussões é que, embora a forma como elogiam o

equilíbrio e a proporção na alimentação, em teoria, tanto comer em demasia como comer

em demasia são problemáticos, na prática, os tipos de doenças induzidas pelo consumo

alimentar derivam quase exclusivamente do consumo alimentar em demasia.

Considerando isto, dois enigmas emergem. Um deles é que, como Shigehisa Kuriyama

mostra, a preocupação paradigmática com a saúde no início da medicina chinesa era com

"esgotamento" (xu 虛), não repleção; pode-se, então, esperar que os médicos tenham se

preocupado mais com pacientes com falta de nutrição suficiente do que excessivamente

nutridos. A segunda é que os autores destas fontes parecem geralmente despreocupados

com a gordura corporal, que eles geralmente entendem como um sinal de boa saúde e não

o contrário. Nesta seção, proponho formas de dar sentido a estes enigmas.

Cultural History (Honolulu: University of Hawai'i Press, 2015); Geoffrey Barstow, Food of Sinful Demons: Meat, Vegetarianism, and the Limits of Buddhism in Tibet (Nova York: Columbia University Press, 2017). 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and pain: food and medicine in traditional China," in

Of Tripod and Paladar: Food, Politics, and Religion in Traditional China, editado por Roel

Sterckx, 163-185 (New York:Palgrave Macmillan, 2005). 10 H.T. Huang, Science and Civilisation in China, Vol. VI: Biology and Biological

Technology, Part V. Fermentations and Food Science (Cambridge: Cambridge University

Press, 2000); Paul D. Buell e E.N. Anderson, A Soup for the Qan: Chinese Dietary Medicine

in the Mongol Era as seen in Hu Szu-hui's Yin-shan cheng-yao (Londres: Kegan Paul, 2000).

Page 6: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

Uma das primeiras evidências que temos da dieta considerada como uma

preocupação médica vem dos Ritos de Zhou (《周禮》 ). Os estudiosos modernos

consideram os Ritos de Zhou principalmente um produto do período da Primavera e do

Outono de 770-480 a.C.. É um compêndio de documentos do governo dos reinos Zhou,

Lu, Song e outros reinos contemporâneos, descrevendo a organização e as funções dos

escritórios do governo, e entre os tipos de oficiais que descreve estão os mestres

terapêutas. Eles são "responsáveis por decretos e ordens médicas e pela coleta de drogas

potentes, a fim de fornecê-las para [uso em] assuntos médicos", e diz-se que todos

aqueles que têm doenças internas ou externas se beneficiam de sua existência.11

Os Ritos de Zhou decretam que os mestres médicos devem ser divididos em categorias,

testados anualmente, e receber salários que correspondam ao seu sucesso no exame, e

depois segue especificando o âmbito de cada um dos diferentes tipos.

O primeiro tipo de mestre médico descrito nos Ritos de Zhou é o nutricionista (shiyi 食

醫), uma posição oficial que persistiu pelo menos através da Dinastia Yuan de 1276-1368 AD.

12O seu encargo era "coordenar as prescrições do rei para os seis grãos, as seis bebidas, as

seis carnes finas, os cem molhos e os oito alimentos preciosos. "13

Eles se baseavam em

um elaborado sistema de correspondências para estruturar combinações apropriadas de

alimentos de diferentes categorias. Ao combinar grãos e carnes, por exemplo, "A carne

bovina se serve com arroz descascado; a carne de carneiro se serve com milho pegajoso;

a carne de porco se serve com milho não glutinoso [ou sorgo descascado]; o cão é servido

com milho de alta qualidade; o ganso servido com trigo; e o peixe servido com arroz

selvagem. " 14

Eles modulavam o menu de acordo com a estação do ano, também,

adicionando mais elementos azedos na primavera, mais elementos amargos no verão,

mais elementos pungentes no outono, e mais elementos salgados no inverno. Para

harmonizar corretamente os elementos em uma refeição, faziam uso de alimentos e

molhos úmidos e doces. Uma refeição promotora de saúde, do ponto de vista do médico da dieta, era aquela

que promovia o equilíbrio cósmico. Ao combinar diversos itens em um conjunto saboroso

e harmonioso, levando em conta a constituição e a condição atual do consumidor, bem

como o clima e a estação do ano, um chef contribuia para garantir que seu empregador

11 Zhou Li 周禮 (Taipei: Zhonghua shuju), juan 5, página 1a. 12 A evidência de que o shiyi não era apenas uma figura no passado idealizado representado nos ritos de Zhou vem de histórias dinásticas posteriores. Aqueles das dinastias Sui e Tang indicam que entre os oficiais médicos na corte imperial estavam quatro a oito shiyi. E embora os shiyi não estejam listados nas histórias dinásticas depois do período Tang, há sinais de que eles continuaram a existir. Sabemos, por exemplo, que nos séculos XIII e XIV, os imperadores mongóis empregavam nutricionistas, embora os chamassem por um nome ligeiramente diferente, shanyi 膳醫.Um deles, Hu Sihui, deixou-nos um grande livro de cozinha-cum-dietário manual chamado Yin shan zheng yao. 13 Zhou Li, juan 5, p. 1b. 14 Ibid., 2a.

Page 7: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

seria não apenas fisicamente robusto, mas também politicamente eficaz. Um governante

que come uma dieta simbolicamente completa, equilibrada e moderada cultiva em sua

própria pessoa o tipo de equilíbrio e virtude exigida de um bom líder. E, já que ele era o

exemplo moral, para não mencionar a ligação entre o mundo dos vivos e os ancestrais e

espíritos, o estado da sua saúde e virtude afetava todos os outros, influenciando até

mesmo a estabilidade da sociedade.15 Não admira que alguns textos antigos comparem o

trabalho de um cozinheiro com o trabalho de governança, apresentando um guisado bem

equilibrado como metáfora para um estado bem governado. Ainda mais fantasiosamente,

em alguns textos antigos, o corpo de um consumidor era comparado a um caldeirão ritual.

Enquanto o caldeirão fornecia "uma forma externa de se comunicar com os espíritos",

cozinhando oferendas de sacrifício para alimentá-los, Roel Sterckx sugere que "o corpo

[faz] o mesmo mas de forma interna". "16

16Portanto, selecionar os alimentos adequados

para "cozinhar" (através da digestão) dentro do corpo pode ser tão importante quanto

encher um grande caldeirão de bronze com ingredientes apropriadamente puros e

significativos.

A arte do nutricionista requeria um aprendizado profundo; como a descrição do

trabalho acima sugere, ele precisava saber como implementar vários conjuntos de

alimentos em combinação. No mínimo, havia os seis tipos de grãos , seis tipos de bebidas

e seis tipos de carnes. Ainda havia os oito alimentos mais preciosos sendo a maioria a

base de carne e até onde elas podem ser identificadas hoje, como carne de leitão. Tirando

isso, há os cem molhos. Curiosamente, não é feita qualquer menção a vegetais neste texto,

mas presumivelmente estes foram catalogados de forma semelhante. Mesmo que não

fossem, no entanto, a complexidade da tarefa do nutricionista era espantosa.

Claramente, só a própria elite teria sido capaz de pôr em prática essas ideias sobre uma

alimentação simbolicamente completa. Os terapêutas a que se referem os Ritos de Zhou não

tratavam pessoas comuns. Serviram o rei e talvez a sua família e outros altos funcionários.

Mas, como reconhece o escritor dos Ritos de Zhou, as ideias sobre uma dieta saudável e moral

expressas nesse texto iam além da figura de elite do nutricionista e de seus pacientes: "O

alimento de uma pessoa cultivada (junzi 君子 ) é geralmente modelado segundo [estes

princípios] (fan junzi zhi shi heng heng fang yan 凡君子之食恆放焉 ). " 17

De fato,

15 Refeições reais com uma grande variedade não só significava simbolicamente integridade cósmica, mas também servia para expressar a extensão do poder de um monarca, apresentando ingredientes trazidos de grandes distâncias ou preparados no estilo dos povos conquistados. No tribunal mongol do século XIV AD, por exemplo, os banquetes apresentavam pratos de origem mongol, chinesa e islâmica, tal como indicado no manual compilado pelo nutricionista de khan. Buell and Anderson, A Soup for the Qan: Chinese Dietary Medicine in the Mongol Era como é visto em Hu Szu-Hui’s Yin-Shan Cheng-Yao. (London: Kegan Paul, 2000): 6. 16 Roel Sterckx, “Food and philosophy in early China” in Sterckx, ed. Of

Tripod and Palate: Food, Politics, and Religion in Traditional China (New York:

Palgrave Macmillan, 2004): 37, 48. 17 Zhou Li, 2a.

Page 8: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

evidências posteriores sugerem que a dieta teve um papel importante no pensamento e na

prática da maioria dos médicos instruídos na China pré-moderna. A má alimentação foi

entendida como um convite à doença, pelo que dar conselhos sobre alimentação saudável era

uma responsabilidade rotineira de qualquer médico.

No primeiro século a.C., como evidenciado pelo Cânone Interior do Imperador

Amarelo (Huangdi neijing 黄帝内經), alguns médicos eruditos se baseavam nas cinco

fases (wu xing 五行), uma matriz explicativa subjacente ao pensamento sobre o mundo

natural, para informar seus conselhos dietéticos. As cinco fases incorporaram estações,

clima, planetas, números, animais domesticados, grãos, notas musicais, cores, cheiros,

órgãos do corpo, orifícios e emoções, atribuindo a essas características da vida relações

regulares e transparentes e limitando sua variabilidade em cinco categorias: madeira, fogo,

terra, metal e água. Entre as coisas assim categorizadas estavam os cinco sabores: azedo,

amarga, pungente, salgada e doce.18

A colocação de um alimento na matriz de cinco

fases transmite sucintamente uma grande quantidade de informação sobre as

circunstâncias em que se deve comer. Qual foi a época mais adequada para comer

milheto glutinoso? Que combinações melhorariam ou compensariam a sua natureza

amarga? A constituição física do consumidor e o estado atual de saúde eram compatíveis

com milheto glutinoso? Nas discussões médicas, portanto, os cinco sabores às vezes

identificavam as funções dos alimentos, além ou até mesmo em vez de seus sabores na

língua. A cada alimento também foi atribuída uma "natureza" ou "personalidade" (xing

性), que novamente refletia o sistema de cinco partes: podendo ser frio, fresco, neutro,

morno ou quente. A "natureza" de um alimento pode ter apenas uma tênue relação com

sua temperatura física. Em vez disso, pensava-se que o alimento tinha uma função de

arrefecimento ou aquecimento depois de ingerido. Conhecer a sua natureza ajudou a

determinar que tipos de alimentos podem ser apropriados para tratar uma condição

decorrente de calor ou frio perversos, ou quais alimentos seria mais apropriados para

servir numa determinada estação.19

18 Como muitas das palavras descritivas usadas no sistema de correspondência em cinco

fases, os cinco sabores (azedo, amargo, pungente, salgado e doce) provavelmente se

originaram na experiência sensorial, mas seu uso foi posteriormente complicado por seu

significado em um sistema abstrato e cada vez mais abrangente. Neste contexto, associar a

milheto glutinoso ao amargo, como faz o Cânone Interior, pode indicar tanto sobre o seu

lugar no quadro idealizado das recomendações e proibições como também sobre o seu gosto.

Para o argumento sobre a abstração das qualidades físicas nas cinco fases, ver Manfred

Porkert, The The The Theoretical Foundations of Chinese Medicine: Systems of

Correspondence (Cambridge, MA: M.I.T. Press, 1974) e Nathan Sivin, Traditional Medicine

in Contemporary China (Ann Arbor, MI: Center for Chinese Studies, The University of

Michigan, 1987). 19 Uma compreensão das naturezas de aquecimento ou resfriamento de vários alimentos se transformou no pensamento popular chinês hoje em dia. Muitos chineses hoje em dia sabem sobre o xing de uma série de alimentos, mesmo sabendo pouco mais sobre medicina tradicional, sugerindo que essa crença pode ter raízes profundas, historicamente, tanto na evidência documental quanto no conhecimento popular e não escrito.

Page 9: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

Ignorar as contra-indicações sugeridas pela matriz das cinco fases e consumir

demasiada comida associada a um dos cinco sabores, causaria um declínio físico

particular. O Cânone Interior do Imperador Amarelo delineia as consequências da

seguinte forma:

Se alguém come muito salgado, o pulso endurece, as lágrimas aparecem, e a pele

muda; se alguém come muito amargo, a pele murcha e os pêlos do corpo caem; se

alguém come muito pungente, os músculos se tornam nodosos e as unhas se

deterioram; Se alguém come demais o sabor azedo, a carne endurece primeiro,

depois as rugas, e os lábios ficam frouxos; se alguém come doce demais, os ossos

doem e o cabelo da cabeça cai.20

Note-se que na descrição do Cânone Interior sobre declínio físico causado por não

equilibrar os cinco sabores não há menção em não se obter o suficiente. É comer demais

salgado, amargo, pungente, azedo ou doce que desencadeia o declínio físico. No Cânone

Interior não se encontra nenhum aviso sobre as consequencias de se comer muito pouco

algo que seja salgado ou muito pouco que seja amargo, etc. Em contraste com as

discussões abundantes sobre comer em excesso, os primeiros textos médicos têm muito

pouco a dizer sobre comer pouco. Isso pode parecer estranho no início, já que o princípio

da moderação implica simetria: comer muito pouco deveria ser tão prejudicial quanto

comer muito. Mas as pessoas para quem e para quem estes textos foram escritos eram de

um estrato alto e estreito da sociedade chinesa primitiva. Esses pacientes e médicos

viviam em um ambiente privilegiado, e pouco era provável que manifestassem sintomas

de fome crônica. Como Nathan Sivin mostra, médicos alfabetizados educados nos

clássicos constituíram uma proporção extremamente pequena dos vários especialistas que

as pessoas procuravam para ajuda quando ficavam doentes. Toda população, exceto a

maioria das pessoas que vivia na elite, era mais propensa a consultar sacerdotes populares,

budistas e taoístas para buscar a cura.21

Assim, não é surpreendente constatar que, para além do tipo de equilíbrio acima

descrito, a promoção da vitalidade através da dieta dependia da contenção do exercício

físico. A moderação é elogiada em texto após texto, começando pelo Canon Interior do

Imperador Amarelo. No início do livro, o Imperador Amarelo pergunta ao seu ministro

Qi Bo 岐伯 por que as pessoas em alta antiguidade viveram duas vezes mais tempo (do

que ele acreditava) do que as pessoas da época em que o livro foi escrito. Qi Bo explica:

20 A tradução aqui é de Livia Kohn. Veja Livia Kohn The Taoist Experience: An Anthology,

ed. Roger T. Ames and David L. Hall, Suny Series in Chinese Philosophy and Culture

(Albany, NY: State University of New York Press, 1993): 166. 21 Nathan Sivin, Health Care in Eleventh-Century China (Cham, Switzerland:

Springer,2015).

Page 10: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

As pessoas de alta antiguidade,

Aqueles que conheciam o Caminho,

Eles modelaram [seu comportamento] em yin e yang

e cumpriram com as artes e os cálculos.

O comer e beber era moderado [yin shi shi you jie 飲食有節]. O levantar e o descanso eram regulares.

Eles não se impunham com trabalho sem sentido.

Daí,

Eles eram capazes de manter a aparência física e o espírito unidos,

E esgotar os anos [atribuídos à eles pelo] céu.

A sua esperança de vida excedia os cem anos antes deles partirem.22

A moderação continuou a ser considerada como a principal característica de uma dieta

saudável séculos depois do Cânone Interior ter sido compilado. Em seu trabalho mais

influente, as Fórmulas Essenciais que Vale Mil em Ouro (Qian jin yao fang 千金要方)

de 652 A.D., o eminente médico Sun Simiao exalta a contenção em todas as coisas. Isto

começa com dieta: "Não se force a comer demais; não se force a beber demais; não seja

muito ativo fisicamente; não se aborreça demais; não se enfureça demais; não seja muito

ansioso; não tenha muito medo; não se antecipe demais; não fale muito; não ria muito ou

muito alto. Não vás atrás dos teus desejos, e não te deixes levar pelo ressentimento. "Em

última análise, ele conclui: "Se você é uma pessoa que pode ser assim, você poderá viver

no meio de uma epidemia sem preocupação ou dúvida. "”23

Sun, como outros médicos eruditos, enfatiza que o vinho e os alimentos oleosos e

pesados são um perigo particular. Ele escreve: "Quando estiveres a beber vinho, não te

deixes levar por muito dele; se você faz, então é melhor vomitar rapidamente, e não se

deixar embriagar, porque [caso contrário] até o fim da sua vida você não vai se livrar das

cem doenças. Aqueles que bebem vinho por muito tempo apodrecem suas visceras,

perfuram suas medulas ósseas e vaporizam seus nervos, ferem seus espíritos e diminuem

sua longevidade. "24

Em outro lugar, ele lembra a seu leitor: "Aquele que é hábil em

nutrir sua natureza come antes que esteja faminto e bebe antes que esteja ressecado. Ele

come muitas vezes, mas em pequenas quantidades. Não coma muito de uma só vez, pois

assim é difícil digerir a comida.25

22 Huang Di nei jing su wen, trans. Paul U. Unschuld and Hermann Tessenow in

collaboration with Zheng Jinsheng (Berkeley: University of California Press, 2011): 30‒32. 23 Sun Simiao, Qian jin yao fang, edited by Li Jingrong et al. (Beijing:

Renmin weisheng chubanshe, 1996): 927. 24 Ibid., 930. 25 Ibid., 929.

Page 11: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

Os autores médicos valorizavam não só a economia na alimentação, mas também a

regularidade. Su Gong 蘇恭 , médico da dinastia Tang é citado no Arcano Médico

Essencial do século VII da Biblioteca Imperial (Wai tai tai mi yao fang 外台秘要方)

como dizendo que aqueles que sofrem de um tipo particular de desordem chamada jiaoqi

腳氣, que mais tarde passou a ser percebido como o transtorno de deficiência nutricional

beriberi, “Devem comer bem de manhã, comer pouco ao meio-dia e não comer à

noite.26

Esta recomendação foi repetida século após século; no século XIII, Li Dongyuan

advertiu contra se estar " esfomeado ao nascer do sol e abarrotado ao pôr do sol" (zhao ji

mu bao 朝饑暮飽).27

A abstinência intermitente, por outras palavras, era tão grave

quanto nenhuma contenção. Jejum e compulsão eram tão insalubres quanto comer

demais de forma consistente.

A ideia dos antigos médicos chineses sobre um distúrbio relacionado com a dieta era, por

conseguinte, uma ideia cujos sintomas provinham de uma alimentação irregular e, em

particular, excessiva. Autores descreveram as consequências para a saúde em comer

demais de duas maneiras. Havia as implicações morais e cósmicas de uma dieta adequada

e conseqüências a longo prazo de alimentação desmedida: encurtamento da vida média,

perda de vitalidade corporal, enfraquecimento do Qi do baço e do estômago e então

haveria repercussões imediatas, estreitas e mecânicas. Este último centrou-se no baço e no

estômago, onde ocorria o excesso de alimento acumulado, congelado e não digerido. Os

dois caracteres no termo xiaohua 消化, atualmente traduziram-se como "digestão",

separadamente significam "diminuição e transformação", referindo-se ao que esses

escritores pensavam que normalmente acontecia com o que era ingerido. Comida e bebida

recém-chegadas na barriga seriam armazenadas no estômago, e então transformadas pelo

baço em qi que o corpo incorporaria em sua própria substância e atividade, perdendo seu

volume original ao longo do caminho. Mas quando comida e bebida subitamente inundam

o interior em grandes quantidades, o estômago é incapaz de acomodá-la e o baço não

consegue transformá-la. A enciclopédia de doenças do século VII sobre fontes e sintomas

de todos os distúrbios (Zhu bing yuan hou hou lun 諸 病 源 候 論) nos diz que poderiam

ocorrer problemas como "comida acumulada de um dia para o outro, transtorno de falha de

digestão" (su shi bu xiao bing 宿食不消病) .28

Outros sintomas comuns relacionados à alimentação imprudente incluíram a coagulação do

qi em um caroço que ficaria retido em algum lugar no tronco; vômitos ou reversão do qi; e

incapacidade transportar a comida para baixo. A observação que os antigos médicos eram preocupados com o comer demais parece,

a princípio, contradizer o argumento de Kuriyama de que a patologia característica da

26 Wang Tao, Wai tai mi yao fang, editado e anotado por Gao Wenzhu (Pequim: Huaxia

chubanshe,1993): 340. 27 Li Gao, Nei wai shang bian, juan 1, 3a.

28 Chao Yuanfang, Zhu bing yuan hou lun jiao zhu 諸病源候論校注 ,edited by Ding

Guangdi 丁光迪 (Beijing: Renmin weisheng chubanshe, 1991), 629.

Page 12: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

medicina chinesa antiga era a depleção, xu. Kuriyama contrasta isto com a ênfase

característica dos antigos gregos na repleção, chamada plethora, argumentando que a

preocupação dos médicos chineses com o xu ajuda a explicar porque a prática da sangria

perdeu popularidade na China, enquanto persistiu até à era moderna da medicina

ocidental. Os médicos chineses viam os pacientes sangrando como se esgotassem ainda

mais as vitalidades, os deixando ainda mais vulneráveis, enquanto os médicos ocidentais

viam isso como uma liberação necessária de acumulações estagnadas.29

Como diz Ruth

Rogaski, nos textos chineses antigos as "vitalidades primárias" são "suscetíveis a lesões,

esgotamento e exaustão". O Espírito, associado às faculdades da inteligência, da

sensibilidade e da compreensão humanas, poderia ser desgastado pela emoção extrema e

pelas preocupações da vida cotidiana. O Qi original concedido a um ser humano antes do

nascimento declina com a idade e cessa com a morte. A Essência Seminal, a própria

essência da vida, era gasta através da indulgência sexual ou escaparia inadvertidamente

através das emissões noturnas. "30

Numa tradição atravessada pela ansiedade sobre a

perda e o vazio, não seria de esperar que os médicos se preocupassem em comer muito

pouco?

Uma razão pela qual isso não ocorreu é que eles não pensaram num tipo de de

deficiencia causada por privação alimentar. Em vez disso, eles refletiam sobre uma

deficiência causada por abundancia excessiva de alimentos. Como Rogaski sugere, em

muitos casos, era descontrolando emoções, sexo e comida rica e se embriagando

frequentemente que se abusaria desnecessariamente da vitalidade. O problema com o

excesso de alimentação era que, assim como trabalhar muito ou ficar muito zangado ou

fazer muito sexo, isso esgota o sistema. O que provoca a depleção no sentido dietético

não era portanto, ingerir muito pouco de um determinado ingrediente no corpo, mas

desgastar o corpo, inundando-o com excessos.

Outra aparente contradição que emerge nos textos médicos medievais é que a

gordura corporal é muito pouco associada a doenças. Dado seu interesse sobre o excesso

de alimentação poderia-se também esperar que os autores médicos se preocupassem

sobre a gordura. Em vez disso, a robustez era vista como um marcador consistente de boa

saúde. Isto é impressionante particularmente quando se examina a etimologia dos termos

que, em chinês moderno, passaram a ser usados para a obesidade insalubre: pang 胖 e

fei 肥.O Hanyu Da Cidian 漢語大辭典, que tenta fornecer o primeiro uso de caracteres

e compostos únicos, atesta que os usos anteriores do pang são bastante diferentes.31

Os

primeiros significados do caractere tinham a ver com a anatomia dos animais,

particularmente dos animais abatidos indicando as costelas (ou a carne dos flancos) de

29 Kuriyama, The Expressiveness of the Body and the Divergence of

Greek and Chinese Medicine (Cambridge, Massachusetts: the MIT Press, 1999):

Chapter 5. 30 Ruth Rogaski, Hygienic Modernity: Meanings of Health and Disease in Treaty-Port

China (Berkeley: University of California Press, 2004): 44.

31 Hanyu da cidian 漢語大辭典 ,o dicionário multi-volume padrão de chinês clássico.

Page 13: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

uma ovelha sacrificial, por exemplo. O terceiro uso, que remonta a um dos mais antigos

clássicos chineses, indica um estado físico de saúde, conforto e tranquilidade. O Registro

de Ritos (Li ji 禮記) descreve assim a disposição ideal de uma pessoa: "Quando a

riqueza enriquece a própria residência e a virtude enriquece a própria pessoa, a mente

alarga-se e o corpo engorda (胖). "(fu run wu, de run shen, xin guang ti pan 富潤屋,德

潤身,心廣體胖 ) . O estudioso Zhu Xi, comentando esse texto no século XII,

acrescentou que, neste caso, "Pan 胖 significa pacífico e confortável. "32

Aqui o caráter

é especificamente associado ao corpo humano, mas descreve um estado de ser além da

aparência exterior. Além disso, esse estado que ele descreve é desejável. Em seus

primeiros usos, então, esse caractere parece não ter tido nenhuma das conotações

negativas pouco atraentes ou insalubres para gordura que ele carrega atualmente.

Outro caractere agora comumente usado para descrever a obesidade é fei 肥,que

é mais comum em documentos históricos do que pang. Uma busca eletrônica no Si ku

quan shu 四庫全書 , coleção de 3.471 livros reunidos pelos oficiais do Imperador

Qianlong em 1770, retorna 39.161 aparições do caractere fei, enquanto pang aparece

apenas 1.841 vezes. A entrada de Fei no Grande Dicionário lista dezoito significados,

comparados com os quatro de Pang. Nos antigos textos médicos, amplamente lidos, fei é

usado mais frequentemente para descrever tipos carnes do que para descrever pessoas, e

os autores médicos geralmente contra-indicam as carnes fei porque elas põem em perigo

a recuperação de doenças. Sobre as Fontes e Sintomas de Todos os Transtornos adverte

que, quando se recupera recentemente por uma desordem causada pelo Frio (shanghan

傷寒) , alimentos fei, e em particular peixes fei, irão induzir diarréia copiosa. Esta é uma

condição que "a medicina não pode fazer nada para tratar, e sempre vai levar ao óbito.

"(yi suo bu neng zhi ye, bi zhi yu si 医所不能治也,必至于死) . O paciente pode ter

recuperado, mas seu sistema ainda está delicado: "os fluidos vitais não foram

reabastecidos, o Sangue e o Qi ainda estão esgotados" (qinye wei fu, xueqi shang xu 津

液未复,血气尚虚), e "o qi do estômago ainda está esgotado e fraco, incapaz de digerir"

(weiqi shang xuruo, bu neng xiaohua 胃气尚虚弱,不能消化 ). Deve-se evitar

cuidadosamente alimentos ricos e gordurosos durante a convalescença. Fei também era frequentemente usada para descrever a carne humana. Exemplos de

fei em clássicos da medicina demonstram, no entanto, que este não é o tipo de gordura

que se procura reduzir ou eliminar numa clínica de perda de peso. É geralmente usado em

contraste para descrever um estado de saúde e força. O termo composto feijian, gordo e

robusto, é muito mais comum em textos médicos imperiais do que o feipang moderno

(obeso) que desde então o eclipsou. Em um exemplo das Fórmulas de Eficácia

Comprovada (Xiao yan fang 效驗方) por Tao Hongjing 陶弘景 (456-536), uma fórmula

para a Infusão de Dentes Dourados (jin ya jiu 金牙酒) vem com o seguinte elogio:

32 Luo Zhufeng 罗竹风 ,chief ed. Han yu da ci dian (Shanghai: Han yu da ci dian

chubanshe, 2001), volume 6, 1237.

Page 14: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

"Trata a fraqueza dos pés, o vento e o frio, a dormência e a fadiga. Também torna as

pessoas gordas e saudáveis (feijian), e elas recuperam o seu [estado de saúde] anterior

cem vezes mais. "33

Nos primeiros textos médicos, este é o uso mais comum de fei

quando aplicado às pessoas: ou seja, como um estado ideal de saúde.

Considerando o que vimos acima, mostrando que o tipo de alimentação que induz a

doença, segundo os primeiros textos chineses, significa quase invariavelmente comer em

excesso, a aparente falta de preocupação com os corpos gordos nesses mesmos textos é

intrigante. É possível, naturalmente, que a gordura da China antiga e medieval não fosse

a nossa gordura: ser gordo então pode não ter significado o grau de obesidade que é

relativamente comum hoje em dia. E assim, talvez, fosse incomum ver uma pessoa tão

obesa que seu peso corporal obviamente impactava sua vida diária de forma negativa. Por

outro lado, alguns dos corpos retratados na arte e medicina como belos ou saudáveis as

pessoas retratadas em ilustrações de manuais médicos, por exemplo, ou nas esculturas

femininas da dinastia Tang seriam provavelmente classificadas como obesos em um

ambiente médico moderno. Os cavalheiros têm barrigas proeminentes, e todas as

superfícies das damas são convexas (ver Figuras 1 e 2). Então, afinal de contas a

diferença pode não ser tão absoluta.

Em vez disso, sugiro que, apesar da sua preocupação com os excessos alimentares

dos doentes, os autores médicos antigos não viam o peso principalmente como uma

consequência da dieta, mas sim como uma espécie de característica inata que a

modificação da dieta pouco poderia fazer para mudar. Considere, por exemplo, a seguinte

declaração de Bei ji qian jin yao fang, descrevendo o tipo de pessoa mais propensa a

contrair o transtorno jiaoqi 腳氣: "aqueles que têm pele escura e são magros são fáceis

de tratar; aqueles com muita gordura, carne grossa e vermelho e branco [tez] são difíceis

de curar. Pessoas de compleição escura podem tolerar [qi do] vento e Umidade, [mas]

pessoas de compleição vermelha e branca não toleram vento. A musculatura das pessoas

magras é firme, e das pessoas gordas é flácida. Quando a carne é flácida [como nas

pessoas gordas] a doença penetra profundamente. "34

Textos posteriores elaboram que os

corpos fei têm aberturas maiores no espaço logo abaixo da pele, por onde a doença

primeiro entra, enquanto os poros das pessoas magras são mais apertados e resistem

melhor a penetração de qi perverso. As pessoas Fei também suam mais frequente e

profusamente do que as pessoas magras, abrindo seus poros e tornando-as ainda mais

vulneráveis a doenças – causadas pelo qi perverso que ataca o exterior do corpo e penetra.

Essa idéia, entretanto, não sugere que a dieta ou outros aspectos do estilo de vida tenham

causado a predisposição para essa condição.

33 Como citado no compêndio do século oitavo por Wang Tao 王焘,Wai tai mi yao fang, editado por Gao Wenzhu 高文铸 (Beijing: Huaxia chubanshe, 1993), 358. 34 Sun Simiao, Bei ji qian jin yao fang, 270. Sobre Jiao Qi, ver Hilary A. Smith: Forgotten

Disease: Illnesses Transformed in Chinese Medicine (Stanford: Stanford University Press,

2017).

Page 15: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

Figura 1. Canal da vesícula biliar Shaoyang do pé, por Gao Wu, 1537 AD. Cortesia da Wellcome Library,

Londres.

Em vez disso, implica uma diferença inata entre as pessoas: algumas são escuras e

magras por natureza, enquanto outras são robustas e fortes. Marta Hanson observou que

no final da China imperial, os médicos às vezes associavam tais diferenças

constitucionais com a percepção de que os habitantes do Norte eram robustos e em

oposição aos do sul que cuja constituição era delicada e também a percepção de

diferenças de classe social.35

Os trabalhadores braçais pobres eram provavelmente

escuros e magros, enquanto os estudiosos ricos eram provavelmente corados e robustos.

Mas este era tanto um aspecto constitucional quanto um marcador relacionado com classe

social alta ou baixa e raízes setentrionais ou meridionais. Entre todos os danos que uma

alimentação desmedida poderia fazer o dano de engordar uma pessoa era uma coisa que

35 Hanson, Speaking of Epidemics in Chinese Medicine: Disease and the Geographic

Imagination in Late Imperial China (London: Routledge, 2011), especialmente capítulo 3.

Page 16: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

aparentemente não ocorria, a partir desta perspectiva. Indigestão, refluxo, alimentos

persistentes e esgotamento da vitalidade eram conseqüências da gula; já a obesidade não.

Da mesma forma, a magreza ou a emaciação não refletiam abstinência ou inanição.

Figura 2. Dinastia Tang (século VIII) figura do túmulo. Presente de Eunice Shatzman, classe de 1949, e Herbert M.

Shatzman. Fotografia cortesia do Museu de Arte Herbert F. Johnson, Universidade de Cornell.

Ao contrário da gordura corporal, a magreza aparece consistentemente nestas fontes

como um marcador de problemas de saúde. Shou 瘦, termo mais frequentemente

utilizado para "magro" nos textos médicos (frequentemente emparelhado com outro

caractere como em leishou 羸瘦 ou xiaoshou 消瘦), sinaliza diretamente para uma

patologia, encerrado como está dentro de um radical "doença" (疒) . Tal como a gordura,

no entanto, a magreza parece ter apenas uma relação ténue com a alimentação nos textos

antigos. O jejum extremo, por exemplo, não resulta necessariamente em Shou 瘦. Textos

taoístas que promovem a prevenção da ingestão de grãos (bigu 辟谷) como uma rota

para a imortalidade prescrevem dietas tão restritas que qualquer pessoa que aderisse a

elas certamente seria notavelmente magra (isto é, se sobrevivesse!) subsistindo à base de

Page 17: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

resina de pinheiro, gergelim, pimenta, gengibre como, por exemplo, a obra Taishang

lingbao wufuxuxu 太上靈寶五符序) recomenda.36

Contudo, quando a sua aparência física é descrita, os adeptos de tais dietas especiais não

são descritos como magros ou Shou 瘦 , mas sim como tendo recuperado

significantemente um dos aspectos físicos da juventude: os cabelos pretos.37

Em suma, os médicos eruditos advertiram severamente contra comer e beber demais,

mas apresentaram o esgotamento como a causa típica da doença; eles se preocupavam

com os pacientes que comiam demais, mas geralmente viam a gordura corporal como um

sinal de saúde. Estes aparentes paradoxos são compreensíveis, sugiro, quando se entende

o esgotamento como causado pelo excesso de trabalho (neste caso, do sistema digestivo),

e a gordura corporal como ligada à constituição inata. Mais tarde, porém, como a

comercialização exacerbou as distinções entre ricos e pobres no final da China imperial, e

a fluidez social aumentou, as idéias dos médicos sobre doenças induzidas pelo consumo

alimentar tornaram-se mais pronunciadas e diversificadas, começando pela primeira vez a

incluir os problemas relacionados com acesso inadequado e insuficiente aos alimentos.

3. Desordens alimentares na China imperial tardia

No final do período imperial (aproximadamente entre os séculos XIV e XIX), os

autores médicos já estavam dedicando mais atenção às doenças induzidas pela dieta.

Além das doenças que tinham sido associadas ao consumo alimentar excessivo em textos

anteriores, as doenças de privação relacionadas com a alimentação, praticamente ausentes

dos textos anteriores, começaram a chamar a atenção. Um gênero de manuais sobre

alimentos para aliviar a fome surgiu no período Ming e floresceu na era Qing também.

Entretanto, a preocupação com as doenças induzidas pelo excesso de comida continuou a

crescer, e a gordura corporal começou a provocar preocupação ocasionalmente. No

entanto, estas duas preocupações opostas, sobre os perigos para a saúde causados por

comer demais e por comer muito pouco, continuaram a ser referenciadas pelo conceito

antigo de que um consumo alimentar súbito e excessivo era a causa imediata dos

sintomas de doença diretamente associados à alimentação.

O surto de interesse na doença induzida pela dieta nos textos de Ming e Qing foi

inspirado pelo Tratado de Li Dongyuan sobre o Baço e o Estômago (Pi wei lun 脾胃論),

que promoveu a noção de que uma alimentação habitualmente pobre ameaçava a saúde.

Li é lembrado como um dos quatro médicos famosos do período Jin e Yuan, uma época

em que novas idéias e teorias estavam transformando a medicina chinesa. Ele veio de

uma família rica e bem relacionada, mas como acontece com freqüência em histórias

36 Livia Kohn, ed. The Taoist Experience: An Anthology (Albany: State University of New

York Press, 1993): 150‒152. See also Shawn Arthur, Early Daoist Dietary

Practices: Examining Ways to Health and Longevity (Lanham, Maryland:

Lexington Books, 2013). 37 Kristofer Schipper, The Taoist Body, trans. Karen C. Duval (Berkeley: University of

California Press): 169.

Page 18: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

sobre grandes médicos, ele se voltou para o estudo da medicina porque estava

insatisfeito com os cuidados médicos que sua mãe recebia durante a doença que a matou. Li recapitulou muito do que a literatura médica anterior tinha dito sobre o baço e

estômago como os sistemas pelos quais o qi de comida e bebida era armazenado e

transformado. Ele concordou com autores anteriores que inundar um estômago e baço

esgotados com comida ou bebida demasiadas produzia sintomas específicos de

desconforto e distensão. Mas para Li, ingestão e digestão eram os processos centrais em

toda a saúde e doença, como ele deixou claro em seu Tratado sobre o Baço e Estômago.

Ele sustentou que "as centenas de doenças são todas geradas como resultado de um baço

e estômago decrépitos. "38

Além disso, afirmava que havia gordos saudáveis e insalubres.

O tipo saudável surge quando o baço e o estômago estão em bom estado de

funcionamento e a pessoa come muita comida e a consequência disso é um corpo que

funciona bem e amplamente provisionado. Mas, Li apontou, que se o baço e o estômago

estivessem esgotados, seria possivel alguém ficar tão fraco que nem sequer se conseguiria

levantar os membros, "apesar de ser gordo". "Em tal caso Fei, marcador de boa saúde

normalmente confiável, falhou.

Li também afirmou existir uma nova etiologia para jiaoqi 腳氣 uma doença antiga,

mencionado anteriormente (associada modernamente ao Bériberi). Antes de seu tempo, a

explicação padrão da causa de jiaoqi 腳氣 seria que vento pernicioso ou Qi úmido

vaporizado do solo penetrariam no corpo pela via das pernas e pés provocariam os

sintomas característicos. Mas Li sugeriu que havia, além disso, uma segunda maneira em

que as pessoas contraem o jiaoqi 腳氣. As pessoas que "consumiam regularmente leite

de égua fermentado e bebiam sem moderação" sofriam de jiaoqi 腳氣 apesar de viverem

em locais do norte onde o solo era seco e não emanava Qi perverso como no sul.39

Assim, uma doença que os médicos não tinham anteriormente considerado

particularmente relacionada com a dieta tornou-se, em alguns casos, uma doença em que

uma dieta pobre por si só poderia induzir. Esta nova etiologia, que o próprio Li

considerava claramente uma variação regional, foi universalizada no final do período

imperial. Pela dinastia Qing, autores médicos já discutiam o jiaoqi 腳氣 como algo que

os sulistas, também, poderiam contrair através de dieta imprópria.40

Como este exemplo sugere, embora os médicos há muito considerassem

genericamente comer em excesso uma das indulgências imprudentes que poderiam tornar

alguém susceptível a qi invasivo e causador de doenças, foi depois do século XIII que

comer, por si só, atraiu mais atenção médica. Um novo gênero surgiu, compêndios com

38 Li, Treatise on the Spleen and Stomach, 34. 39 Hilary A. Smith, Forgotten Disease: Illnesses Transformed in Chinese

Medicine (Stanford: Stanford University Press, 2017), 87‒88.

40 Ibid., Chapter 5.

Page 19: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

títulos como Shiwu bencao 食物本草, que categorizou e analisou alimentos da mesma

forma que o gênero materia medica de longa data (bencao 本草) ordenou ingredientes

de drogas. E dentro do gênero das histórias de casos médicos, que surgiram de forma

semelhante no período imperial tardio,41

a dieta muitas vezes tomou o centro do palco.

Nesta crescente literatura específica da dieta, o excesso de consumo alimentar foi

uma das principais preocupações. Os registros de casos do século XVI do médico Wang

Ji, por exemplo, geralmente atribuíam as doenças dos pacientes ricos e do sexo masculino

atendidos por Wang a uma alimentação excessiva, como mostrou Joanna Grant.42

E o

gênero materia medica dos alimentos enfatiza as dietas abstratas como o fundamento da

saúde física e moral (sendo estes dois aspectos percebidos como inextricáveis). O quarto-

juan deste gênero compilado por um autor desconhecido na Dinastia Ming conclui

descrevendo as dietas abstemias dos sábios antigos:

Quando as pessoas satisfazem os desejos de suas bocas e barrigas (zong kou fu zhi yu 縱

口腹之欲) e comem e bebem imoderadamente, [tal comportamento] sempre traz doenças

e encurta a vida que lhes foi dada pelo céu. Assim arroz (fan 飯), papas de aveia (qiu 糗),

vegetais (ru 茹) e gramíneas (cao 草) não prejudicaram Yu Shun; rejeitar álcool e comer

pouca comida não prejudicou Xia Yu; e comer vegetais e guisado de vegetais não

prejudicou Confúcio. Se esses sábios fizeram isso, as pessoas abaixo deles deveriam

também [fazer o mesmo]!43

Mesmo a conotação termo pang, que nos textos antigos e medievais tinha tão

frequentemente uma conotação positiva, começou a mudar na China imperial tardia. A

obra Shuihu zhuan 水滸傳, também traduzida como Os Bandidos Do Pântano, um

romance do século XVI, descreveu um dos seus personagens desta forma: "No meio

daquele lugar havia um monge gordo (pang 胖), cujas sobrancelhas pareciam ter sido

mergulhadas em laca, e cujo rosto se assemelhava a um pano preto pintado. "44

Este é um

uso familiar de pang, não muito distante da forma como é usado hoje: como uma

descrição, não necessariamente lisonjeira, da aparência física de uma pessoa. Pang

41 Christopher Cullen, “Yi’an (case statements): the origins of a genre of Chinese medical

literature” in Innovation in Chinese Medicine, edited by Elisabeth Hsu, 297‒323

(Cambridge: Cambridge University Press, 2001); Charlotte Furth, “Producing

medical knowledge through cases: history, evidence, and action,” in

Thinking With Cases: Specialist Knowledge in Chinese Cultural History, edited by Charlotte

Furth, Judith T. Zeitlin, and Ping-chen Hsiung, 125‒151 (Honolulu: University of Hawai’i

Press, 2007). 42 Joanna Grant, A Chinese Physician: Wang Ji and the Stone Mountain Medical Case

Histories (London: RoutledgeCurzon, 2003). 43 Shi wu ben cao (Pequim: Beijing tushuguan chubanshe, 2007), 531-532. Yu Shun ou Shun 舜 foi um dos primeiros reis sábios lendários da China, assim como Xia Yu ou Yu o Grande, fundador da Dinastia Xia. 44 Shi Nai'an 施耐庵,Shui hu zhuan 水滸傳 (Hong Kong: Youlian chubanshe, 1959): 68.

Page 20: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

também começou a ser combinado com fei num composto de dois caracteres que

transmitia um significado muito diferente do feijiano, "gordo e robusto", dos tempos

anteriores. Feipang 肥胖 não parece ter sido usado antes da Dinastia Ming, a julgar pelo

conteúdo do Si ku quan shu.45

Começando no período Ming, começou a aparecer no

léxico, e parece ter sido aplicado principalmente a mulheres. Hoje, os médicos de

formação ociental combinam isso com a palavra "doença" (bing 病 ) para criar o

feipangbing, o termo usado na clínica para obesidade. Quando se tratava de comer, no entanto, não era só o excesso que capturou as

imaginações dos textos médicos da era imperial final da China, mas também se

passou a ver textos sobre privações alimentares. Zhang Congzheng 張從正 (ca.

1156-1228), outro dos médicos inovadores dos períodos Jin e Yuan, escreveu

simetricamente sobre os "danos causados pelo vinho e pela comida" entre ricos e

pobres. "Pessoas que comem sumptuosamente e vivem vidas de lazer, e que são

supernutridas", escreveu ele, "suas injurias produzidas por comida e vinho trazem

líquidos que permanecem no meio do corpo, inchaço e tensão interna, caroços no

peito e na barriga, obstruções, dor de estômago. " Mas, "as pessoas comuns que

comem e bebem alimentos grosseiros, e cujas roupas são frias e finas, e que se

movem para trabalhar" também não eram imunes a doenças alimentares. Sua "lesão

causada por comida e vinho" apresenntava diferentes sintomas, incluindo "uma

sensação de inchaço no coração e na barriga, e tensão interna". De vez em quando

vomitam líquidos ácidos. "”46

Como Zhang, os médicos de épocas posteriores também reconheceram o sofrimento

causado pela privação de alimentos, não apenas por comer em excesso. Entre outros atos

de caridade, médicos eruditos no final da China imperial produziram livros de matéria

médica para aliviar a fome (jiu huang ben cao 救荒本草), destinados a ajudar as vítimas

da fome a sobreviver, identificando plantas que eram comestíveis mas que não eram

comumente usadas em circunstancias normais como como feijão preto, normalmente

usado para alimentar animais47 e advertindo contra plantas que eram tóxicas. Como Ellen

Nakamura mostra, os médicos japoneses nos séculos XVIII e XIX também começaram a

produzir volumes neste gênero. Ela observa que tais livros "eram particularmente

significativos porque até então, a maioria dos escritos sobre a fome estavam preocupados

com um bom governo, e assim eram destinados a serem lidos por membros da classe

dominante ao invés de pelas pessoas comuns, a fim de ajudarem-se a si mesmos. "48

O

mesmo se pode dizer da matéria médica chinesa de alívio à fome. Mesmo em casos de privação, no entanto, a preocupação dos médicos imperiais

tardios ainda era enquadrada em torno do velho paradigma que mantinha o perigo

primário de estar sobrecarregando um baço e estômago danificado ou esgotado com um

45 O Si ku quan shu, que inclui livros sobre diversos temas, incluindo medicina, é agora

totalmente pesquisável eletronicamente. Uma busca pelo termo feipang retorna apenas 22

resultados em toda a coleção. 46 Zhang Congzheng, Zhi bing bai fa, in Jin Yuan si da yi (Four Great Doctors of Jin and

Yuan), 246. 47 Li, Fighting Famine in North China, 96‒97. 48 Nakamura, Practical Pursuits, 117.

Page 21: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

súbito influxo de alimentos. A privação de alimento enfraquece as funções do estômago e

do baço mas, por si só, não seria suficiente para adoecer ou matar uma pessoa. Em vez

disso, seria quando uma pessoa faminta tem a oportunidade de se alimentar novamente é

que ela precisa ser especialmente cautelosa. Um estômago e baço enfraquecidos pela

fome não seriam capazes de armazenar e transformar nem mesmo uma quantidade

normal de comida após um período de jejum ou fome.

Assim, quando Li Dongyuan refletiu sobre o desastre de saúde pública que se seguiu

ao cerco mongol de Kaifeng, como descrito no início deste ensaio, ele enfatizou que foi

somente quando o cerco foi levantado e o acesso à comida restaurado que um grande

número de residentes de Kaifeng começou a morrer de doenças. A escassez de alimentos

durante o cerco criou a pré-condição para o surto, de acordo com Li. As pessoas numa

cidade sitiada, ele ressaltou, geralmente não levam vidas que mantenham o estômago e o

baço robustos: "eles não comem e bebem de forma regular, e eles são feridos por

trabalharem [com muita força]. "Depois de dois ou três meses de vida irregular, o qi do

estômago dos habitantes de Kaifeng “tinha se tornado deficiente por um longo tempo.

"No entanto, esta deficiência por si só não causou o surto. Mesmo nas circunstâncias

mais extremas da escassez de alimentos, em outras palavras, Li via a causa imediata da

doença como uma alimentação desmedida em vez da falta de alimentos. Considerando

que o trabalho de Li influenciou as ideias que surgiram posteriormente sobre doenças

induzidas pelo consumo de alimentos (o Tratado sobre o Baço e o Estômago tornou-se o

locus classicus para tais discussões), não é de admirar que o autor da obra Materia

Medica of Foodstuffs na dinastia Ming acima referida alerte severamente contra o jejum

intermitente ou o ascetismo extremo, apesar de defender as dietas simples que supôs que

os sábios haviam adotado. "Alimente seu coração (xin 心)," ele sugere, "e não seja asceta.

Desenvolva um apetite por certos tipos de alimentos e bebidas. Não podes parar de comer,

mas podes comer menos. "”49

Começando com o trabalho de Li Dongyuan no século XIII, os autores médicos

chineses começaram a elevar a dieta a um papel mais central na causa e na propensão à

doença. Em seus registros de casos, eles atribuíram cada vez mais doenças ao excesso de

consumo alimentar e produziram volumes numerosos categorizando e descrevendo os

efeitos dos alimentos sobre a saúde. Ao mesmo tempo, começaram a prestar mais atenção

às consequências para a saúde da privação alimentar a longo prazo, escrevendo livros de

matéria médica expressamente para ajudar as vítimas da fome, e notando que tanto os

pobres como os ricos sofriam de distúrbios alimentares. As desordens alimentares dos

ricos e dos pobres eram explicáveis através do mesmo conjunto de conceitos, no entanto.

Um baço e o estômago esgotados não conseguiam gerir adequadamente os influxos de

novos alimentos, particularmente os tipos de abundância que podem acompanhar um

banquete luxuoso ou o acesso súbito a alimentos num ambiente afetado pela fome. Então,

49 Shi wu ben cao (Beijing: Beijing tushuguan chubanshe, 2007), 532.

Page 22: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

se o baço e o estômago estão esgotados por superestimulação ou subutilização, o

resultado em ambos os casos seria doença e às vezes morte.

O que podemos fazer com estas mudanças? A consciência e a ansiedade sobre ambos os

tipos de doenças alimentares causadas pelo excesso de indulgência e as causadas pela

privação de alimentos refletiram o mesmo conjunto de circunstâncias, a começar pela dinastia

Ming. Joanna Grant argumentou que a propensão de Wang Ji para atribuir a doença ao

consumo alimentar excessivo em seus pacientes refletia a ansiedade sobre a mudança da

hierarquia social em uma sociedade que era cada vez mais comercial e próspera.50

Mas a

crescente ansiedade dos eruditos sobre a forma como os novos-ricos começaram a gastar o seu

dinheiro é apenas uma parte do quadro. Como Philip Kuhn apontou para a "idade próspera" da

China do século XVIII para um plebeu, "o crescimento comercial pode ter significado, não

a perspectiva de riqueza ou segurança, mas uma escassa margem de sobrevivência em

uma sociedade competitiva e populosa". " 51

De fato, à medida que a população

aumentava, a fome tornou-se uma preocupação de importância crescente. Os agricultores

subsistiam em terras cada vez mais marginais; novos cultivos alimentares originários das

Américas, como batata doce, milho e amendoim, ajudaram os pobres a sobreviver à crise

de recursos e população, mas também acentuaram até que ponto as dietas dos ricos e

pobres eram divergentes.52Em meados do século XVIII, o sistema estatal de silos para

estoque e grãos para aliviar os efeitos da fome tinha atingido o seu auge, como

demonstrou Pierre-Étienne Will, e no final do século XIX esse sistema tinha-se

deteriorado ao ponto de um observador americano chamar a China de "Terra da Fome".53

A maior e mais precisa atenção que os médicos prestaram aos distúrbios alimentares

no final do período imperial reflete mais do que o efeito das teorias de Li Dongyuan

sobre o baço e o estômago. Também reflete sobre uma maior ansiedade sobre o consumo

alimentar em um momento de mudança social e econômica que incluiu o aumento da

mobilidade social (para cima e para baixo), comercialização e maior prosperidade para

alguns mas simultaneamente maior privação e desespero para os outros. A alimentação,

em ambas as extremidades do espectro socioeconômico, tornou-se mais esgotante, seja

50 Joanna Grant, A Chinese Physician; Timothy Brook, The Confusions of

Pleasure: Commerce and Culture in Ming China (Berkeley: University of

California Press, 1998); Craig Clunas, Superfluous Things:

Material Culture and Social Status in Early Modern China (Urbana: University of Illinois,

1991). 51 Philip A. Kuhn, Soulstealers: The Chinese Sorcery Scare of 1768 (Cambridge, MA:

Harvard University Press, 1990), 36. 52 A dissertação de Laura Murray mostra de forma convincente que os agricultores abraçaram as culturas do Novo Mundo apenas em situações de extrema necessidade. Murray, "New World Food Crops in China: Farms, Food, and Families in the Wei River Valley, 1650-1910" (Ph.D. diss., University of Pennsylvania, 1985). 53 Li, Fighting Famine in North China, 1.

Page 23: Além da Indulgência: Doenças Induzidas pela Alimentação na …medicinachinesaclassica.org/.../artigos/2019SSEM2.pdf · 2019-11-26 · 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and

por causa de mais oportunidades para se alimentar excessivamente ou por causa da falta

de acesso a alimentos nutritivos.

5. Conclusão

No início do século XX, quando os conceitos médicos ocidentais de calorias e

vitaminas estavam se desenvolvendo na China e em outros lugares, as pessoas que

desenvolviam essas idéias tipicamente apresentavam a má nutrição como um tipo de

déficit. Era o fracasso em alcançar os mínimos necessários para sustentar a vitalidade.

Novos termos chineses que significam "desnutrição" ou "subnutrição" começaram a

desenvolver-se: yingyang bu liang 營養不良 e yingyang bu zu 營養不足 , que

apareceram frequentemente em revistas e periódicos médicos chineses a partir dos anos

30 e 40. 54

Velhas doenças como o jiaoqi 腳氣, que no passado tinham sido associadas

a uma invasão de um qi causador de doenças e às vezes com muita comida, passaram a

ser percebidas como distúrbios de deficiência de vitaminas, yingyang quefa quefa bing

營養缺乏病. As investigações nutricionais procuraram estabelecer a prevalência e a

gravidade da subnutrição. 55

As idéias biomédicas de desnutrição e fome crônica que surgiram no século XX, no

entanto, têm pouca semelhança com aquelas que prevaleceram na medicina chinesa, onde

uma dieta causadora de doenças geralmente significa uma dieta com ingestão demasiada.

O que os médicos hoje identificariam como os índices da deficiência de proteína-caloria

ou micronutrientes deficientes não eram identificados como tal pelos médicos pré-

modernos, que tendiam a pensar nas dietas dos pobres não só como suficientes, mas

também como promotoras de saúde e até mesmo virtuosas. O ideal de uma dieta

moderada equilibrada entre os cinco sabores surgiu nos primeiros clássicos da medicina,

implicando teoricamente que consumir muito pouco de um ou outro ingrediente poderia

ser problemático; na prática, porém, o tipo de alimentação que,segundo os primeiros

antigos textos, induziria a doença seria comer em excesso e não comer muito pouco. Os

autores médicos, no período imperial posterior, contudo, começaram a remediar essa

desatenção precoce às conseqüências da privação de alimentos para a saúde. Inspirados

no Tratado de Li Dongyuan sobre o Baço e o Estômago, que revigorou o estudo das

doenças relacionadas com a alimentação, e motivados, talvez, pelo alargamento das

divisões sociais e econômicas na sociedade chinesa, os médicos começaram a escrever

sobre as perturbações alimentares tanto dos pobres como dos ricos.

(Recebido em 28 de Julho de 2017; Aceito em 8 de Setembro de 2017)

54 Jia-Chen Fu, comunicação pessoal, outubro de 2017. 55 Por exemplo, Hou Xiangchuan et al, Nutritional Studies in Shanghai (Shanghai: Henry

Lester Medical Institute, 1940).