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Além da Indulgência: Doenças
Induzidas pela Alimentação
na Medicina Chinesa
Hilary A. SMITH Pesquisa, Organização e Tradução Adaptada:
Ephraim Ferreira Medeiros
Projeto
www.medicinachinesaclassica.org
Ano IX
Hilary A. SMITH Departamento de História, Universidade de Denver, 2000 E. Asbury Ave., Denver, Colorado 80208, EUA. Email: [email protected]
Resumo
Este artigo explora como os médicos chineses pensavam sobre as relações entre
alimentação e doença antes do período moderno. Identifica dois grandes períodos no
desenvolvimento destas ideias. No primeiro, desde o final da dinastia Zhou até as
primeiras dinastias Tang, os médicos escreveram sobre a importância do equilíbrio e da
moderação para uma dieta saudável, e os tipos de doenças induzidas por má
alimentação que eles focavam suas dicussões eram geralmente associados com a
superindulgência. Estas ênfases não desapareceram no final do período imperial, mas
assumiram uma nova faceta que foi marcada por uma atenção renovada às doenças
associadas à privação de alimentos e à fome. Essa mudança refletiu forma como Li
Dongyuan , médico do século XIII, elevou a conexão entre doenças e alimentação
para um novo nível de significância, e também a forma como as mudanças sociais e
econômicas no final da China imperial focaram mais atenção nos hábitos dos ricos e na
situação dos pobres.
Palavras-chave: desnutrição, obesidade, China imperial, medicina chinesa, dieta
1. Introdução
Quando os mongóis cercaram a capital do Império Jin, Kaifeng 開封, em 1232, os
residentes da cidade previsivelmente sofreram. Eles tentaram dividir rações escassas,
comeram toda reserva de grãos, e então começaram a subsistir comendo tudo o que
podiam encontrar: ervas daninhas, cascas de arvore e o ocasionalmente ratos para os
afortunados. Ainda assim, Li Dongyuan 李東, médico do século XIII (ca. 1180-1251),
observando como este episódio afetou a saúde do povo de Kaifeng, afirmou que foi
depois que o cerco foi levantado e a vida começou a voltar ao normal que a doença
eclodiu em grande escala. De acordo com Li, isso ocorreu porque os moradores da cidade,
que sofriam há muito tempo, se banquetearam. Ele escreveu:
Tão logo as pessoas se enchiam demais, elas sentiam [sua deficiência estomacal] e
[a comida] as machucava, e além disso elas estavam sendo [medicamente] tratadas
de forma inadequada; não é de se admirar que tenham morrido. E não foi só em
Daliang [i.e., Kaifeng] que isso ocorreu. Em 1213-1222 também havia cidades
como Dongping, Taiyuan e Fengxiang, onde depois que um cerco foi levantado as
pessoas ficaram doentes e morreram.1
Este episódio oferece um vislumbre de como um médico chinês pensou sobre
doenças induzidas pela alimentação e, particularmente, doenças associadas à fome. Para
Li, cujas teorias tem uma importância singular em informar as discussões sobre
alimentação, a privação por si só não causou doença, mas a privação a longo prazo
seguida de indulgência súbita é que foi muito perigosa. Sua observação destaca nossa
escassez de conhecimento sobre como os médicos chineses perceberam a fome e como
suas percepções mudaram ao longo do tempo.
A fome, é claro, foi uma grande preocupação administrativa na China; já no século
IV a.C. o filósofo Mencius castigou o rei Hui de Liang por ter cavalos gordos, mas a
população "com o olhar da fome que as rodeava" (min you ji se 民有飢色)2, e no período
Qing recursos sem precedentes foram usados para o alívio da fome. Como Lillian Li e
Pierre-Étienne Will demonstraram, os sistemas burocráticos para aliviar a fome, como os
celeiros do Estado, atingiram o auge de sua eficácia no século XVIII e declinaram depois
disso.3 Embora a fome tenha atraído muito interesse acadêmico por suas ramificações
políticas, econômicas e culturais, poucos pensaram sobre o efeito do conhecimento
1 Li Gao, Nei wai shang bian, in Bai bu cong shu ji cheng 百部叢書集
成 ,ed. Yan Yiping 嚴一萍 (Taipei: Yiwen yinshuguan, 1967), 3. Ênfase minha. 2 Mencius Capítulo IV., 4. 3 Pierre-Étienne Will, Bureaucracy and Famine in Eighteenth-Century China (Stanford:
Stanford University Press, 1990); Lillian M. Li, Fighting Famine in North China: State,
Market, and Environmental Decline, 1690s-1990s (Stanford: Stanford University Press,
2007).
médico sobre as respostas à fome. O estudo meticuloso de Kathryn Edgerton-Tarpley
sobre a fome que devastou o norte da China em 1876-1879, por exemplo, considera
tópicos como : "trauma e memória, relações de classe em Shanxi, 'alimentos da fome' e
folclore, celeiros e rotas de grãos, ideologia do estado Qing, teorias da causa da fome,
cultivo de ópio", política faccional na capital imperial, a venda de mulheres, gênero e
relações familiares em tempos de crise, demografia da fome, canibalismo, cobertura da
imprensa sobre desastres, representações visuais da fome, tradições filantrópicas em
Jiangnan, nacionalismo chinês primitivo e movimentos de reforma do tratado-porto," mas
não aborda medicina.4
É possível que na China, dada a forte ênfase à alimentação das pessoas como um
aspecto benevolente do governo, os médicos pensassem na fome como um problema
administrativo e não como um problema médico e, portanto, não escrevessem sobre ela.
Mas há fortes indícios de que, por vezes, os conhecimentos médicos foram utilizados
para combater a privação alimentar. Por exemplo, o texto médico do primeiro ou segundo
século, o Clássico das Questões Difíceis (Nan jing 難經) inclui uma discussão sobre
como uma pessoa morre de fome, detalhando os sintomas que acompanham cada dia
sucessivo sem comida ou água. Ao calcular o volume de alimentos e bebidas que devem
permanecer no estômago e intestino, e o volume perdido diariamente para a excreção, a
passagem conclui que "pessoas saudáveis morrem depois de não comer ou beber por sete
dias."5 E Ellen Nakamura nos mostrou que, na epidemia de fome do Japão do século XIX,
os médicos alfabetizados começaram a produzir livros sobre a fome, aplicando seus
conhecimentos sobre plantas para ajudar as pessoas a sobreviver à extrema escassez de
alimentos.6 Tais livros também apareceram no final da China imperial, mas os estudiosos
da atualidade apenas começaram a explorá-los.7 Ainda não temos um sentido mais amplo
do que os praticantes da medicina clássica do Leste Asiático pensavam sobre a relação
entre privação alimentar e doença, e como isso mudou ao longo do tempo. Na verdade, a relação entre alimentação e doença de forma mais ampla é uma lacuna
na nossa compreensão da história da medicina chinesa e da história da comida chinesa. A
maioria das pesquisas sobre alimentação na China tem focado na alimentação como um
aspecto da identidade social, e na alimentação como metáfora, e sobre as proibições e
práticas alimentares religiosas. 8 Vivienne Lo explorou a relação entre alimentação e
4 Kathryn Edgerton-Tarpley, Tears from Iron: Cultural Responses to Famine in Nineteenth-
Century China (Berkeley: University of California Press, 2008), 4. 5 Nan jing: The Classic of Difficult Issues, trans. Paul U. Unschuld, Second Edition (Berkeley: University of California Press, 2016), 357. 6 Ellen Gardner Nakamura, Practical Pursuits: Takano Choei, Takahashi Keisaku, and
Western Medicine in Nineteenth-Century Japan (Cambridge, MA: Harvard University Asia
Center, 2006). 7 Tim Sedo, “The Art of Eating Whatever You Can: Environmental Statecraft
and Famine Foodstuff Manuals in Late Imperial China,” presented at Foodways in China:
New Scholarly Trajectories, University of Oregon, May 9‒10, 2013. 8 Por exemplo, Roel Sterckx, Food, Sacrifice and Sagehood in Early China (Cambridge: Cambridge University Press, 2011); James A. Benn, Tea in China: A Religious and
medicina, destacando a fronteira difusa entre essas categorias e o impacto que o
conhecimento culinário teve no conhecimento médico.9 E alguns estudiosos têm escrito
sobre o valor nutricional dos alimentos pré-modernos na China a partir de uma
perspectiva moderna. 10 Isso aprofundaria ainda mais a nossa compreensão sobre a
relação entre eles a fim de melhor compreender empiricamente como os médicos
pensavam como a fisiologia da alimentação afetaria a forma como um alimento produz
um corpo, seja ele doente ou saudável do ponto de vista dos clássicos médicos.. Este artigo, é uma exploração preliminar de como os médicos chineses pensaram
sobre doenças induzidas por alimentação. Argumenta que, nos textos médicos anteriores
ao século XIII, as doenças associadas à privação alimentar, o que hoje pode ser chamado
de fome são pouco visíveis. No final do período imperial, o interesse médico pelas
doenças relacionadas à fome tornou-se mais evidente, refletindo as crescentes
desigualdades sociais e econômicas da comercialização da China e da diversificação da
literatura médica, bem como a influência dos médicos do período jin-yuan, que se
interessaram especialmente pelas patologias do estômago.
2. Medicina chinesa precoce: comendo demais o caminho para o esgotamento
Na China primitiva e medieval, a contenção e a regularidade eram características-
chave de uma dieta ideal, que fomentaria não só a saúde, mas também a retidão moral.
Aqui, examino as discussões sobre dietas medicamente aprovadas e doenças relacionadas
com a alimentação desde o período pré-Qin até aos textos do século VII. Uma das
principais características destas discussões é que, embora a forma como elogiam o
equilíbrio e a proporção na alimentação, em teoria, tanto comer em demasia como comer
em demasia são problemáticos, na prática, os tipos de doenças induzidas pelo consumo
alimentar derivam quase exclusivamente do consumo alimentar em demasia.
Considerando isto, dois enigmas emergem. Um deles é que, como Shigehisa Kuriyama
mostra, a preocupação paradigmática com a saúde no início da medicina chinesa era com
"esgotamento" (xu 虛), não repleção; pode-se, então, esperar que os médicos tenham se
preocupado mais com pacientes com falta de nutrição suficiente do que excessivamente
nutridos. A segunda é que os autores destas fontes parecem geralmente despreocupados
com a gordura corporal, que eles geralmente entendem como um sinal de boa saúde e não
o contrário. Nesta seção, proponho formas de dar sentido a estes enigmas.
Cultural History (Honolulu: University of Hawai'i Press, 2015); Geoffrey Barstow, Food of Sinful Demons: Meat, Vegetarianism, and the Limits of Buddhism in Tibet (Nova York: Columbia University Press, 2017). 9 Vivienne Lo, "Pleasure, prohibition and pain: food and medicine in traditional China," in
Of Tripod and Paladar: Food, Politics, and Religion in Traditional China, editado por Roel
Sterckx, 163-185 (New York:Palgrave Macmillan, 2005). 10 H.T. Huang, Science and Civilisation in China, Vol. VI: Biology and Biological
Technology, Part V. Fermentations and Food Science (Cambridge: Cambridge University
Press, 2000); Paul D. Buell e E.N. Anderson, A Soup for the Qan: Chinese Dietary Medicine
in the Mongol Era as seen in Hu Szu-hui's Yin-shan cheng-yao (Londres: Kegan Paul, 2000).
Uma das primeiras evidências que temos da dieta considerada como uma
preocupação médica vem dos Ritos de Zhou (《周禮》 ). Os estudiosos modernos
consideram os Ritos de Zhou principalmente um produto do período da Primavera e do
Outono de 770-480 a.C.. É um compêndio de documentos do governo dos reinos Zhou,
Lu, Song e outros reinos contemporâneos, descrevendo a organização e as funções dos
escritórios do governo, e entre os tipos de oficiais que descreve estão os mestres
terapêutas. Eles são "responsáveis por decretos e ordens médicas e pela coleta de drogas
potentes, a fim de fornecê-las para [uso em] assuntos médicos", e diz-se que todos
aqueles que têm doenças internas ou externas se beneficiam de sua existência.11
Os Ritos de Zhou decretam que os mestres médicos devem ser divididos em categorias,
testados anualmente, e receber salários que correspondam ao seu sucesso no exame, e
depois segue especificando o âmbito de cada um dos diferentes tipos.
O primeiro tipo de mestre médico descrito nos Ritos de Zhou é o nutricionista (shiyi 食
醫), uma posição oficial que persistiu pelo menos através da Dinastia Yuan de 1276-1368 AD.
12O seu encargo era "coordenar as prescrições do rei para os seis grãos, as seis bebidas, as
seis carnes finas, os cem molhos e os oito alimentos preciosos. "13
Eles se baseavam em
um elaborado sistema de correspondências para estruturar combinações apropriadas de
alimentos de diferentes categorias. Ao combinar grãos e carnes, por exemplo, "A carne
bovina se serve com arroz descascado; a carne de carneiro se serve com milho pegajoso;
a carne de porco se serve com milho não glutinoso [ou sorgo descascado]; o cão é servido
com milho de alta qualidade; o ganso servido com trigo; e o peixe servido com arroz
selvagem. " 14
Eles modulavam o menu de acordo com a estação do ano, também,
adicionando mais elementos azedos na primavera, mais elementos amargos no verão,
mais elementos pungentes no outono, e mais elementos salgados no inverno. Para
harmonizar corretamente os elementos em uma refeição, faziam uso de alimentos e
molhos úmidos e doces. Uma refeição promotora de saúde, do ponto de vista do médico da dieta, era aquela
que promovia o equilíbrio cósmico. Ao combinar diversos itens em um conjunto saboroso
e harmonioso, levando em conta a constituição e a condição atual do consumidor, bem
como o clima e a estação do ano, um chef contribuia para garantir que seu empregador
11 Zhou Li 周禮 (Taipei: Zhonghua shuju), juan 5, página 1a. 12 A evidência de que o shiyi não era apenas uma figura no passado idealizado representado nos ritos de Zhou vem de histórias dinásticas posteriores. Aqueles das dinastias Sui e Tang indicam que entre os oficiais médicos na corte imperial estavam quatro a oito shiyi. E embora os shiyi não estejam listados nas histórias dinásticas depois do período Tang, há sinais de que eles continuaram a existir. Sabemos, por exemplo, que nos séculos XIII e XIV, os imperadores mongóis empregavam nutricionistas, embora os chamassem por um nome ligeiramente diferente, shanyi 膳醫.Um deles, Hu Sihui, deixou-nos um grande livro de cozinha-cum-dietário manual chamado Yin shan zheng yao. 13 Zhou Li, juan 5, p. 1b. 14 Ibid., 2a.
seria não apenas fisicamente robusto, mas também politicamente eficaz. Um governante
que come uma dieta simbolicamente completa, equilibrada e moderada cultiva em sua
própria pessoa o tipo de equilíbrio e virtude exigida de um bom líder. E, já que ele era o
exemplo moral, para não mencionar a ligação entre o mundo dos vivos e os ancestrais e
espíritos, o estado da sua saúde e virtude afetava todos os outros, influenciando até
mesmo a estabilidade da sociedade.15 Não admira que alguns textos antigos comparem o
trabalho de um cozinheiro com o trabalho de governança, apresentando um guisado bem
equilibrado como metáfora para um estado bem governado. Ainda mais fantasiosamente,
em alguns textos antigos, o corpo de um consumidor era comparado a um caldeirão ritual.
Enquanto o caldeirão fornecia "uma forma externa de se comunicar com os espíritos",
cozinhando oferendas de sacrifício para alimentá-los, Roel Sterckx sugere que "o corpo
[faz] o mesmo mas de forma interna". "16
16Portanto, selecionar os alimentos adequados
para "cozinhar" (através da digestão) dentro do corpo pode ser tão importante quanto
encher um grande caldeirão de bronze com ingredientes apropriadamente puros e
significativos.
A arte do nutricionista requeria um aprendizado profundo; como a descrição do
trabalho acima sugere, ele precisava saber como implementar vários conjuntos de
alimentos em combinação. No mínimo, havia os seis tipos de grãos , seis tipos de bebidas
e seis tipos de carnes. Ainda havia os oito alimentos mais preciosos sendo a maioria a
base de carne e até onde elas podem ser identificadas hoje, como carne de leitão. Tirando
isso, há os cem molhos. Curiosamente, não é feita qualquer menção a vegetais neste texto,
mas presumivelmente estes foram catalogados de forma semelhante. Mesmo que não
fossem, no entanto, a complexidade da tarefa do nutricionista era espantosa.
Claramente, só a própria elite teria sido capaz de pôr em prática essas ideias sobre uma
alimentação simbolicamente completa. Os terapêutas a que se referem os Ritos de Zhou não
tratavam pessoas comuns. Serviram o rei e talvez a sua família e outros altos funcionários.
Mas, como reconhece o escritor dos Ritos de Zhou, as ideias sobre uma dieta saudável e moral
expressas nesse texto iam além da figura de elite do nutricionista e de seus pacientes: "O
alimento de uma pessoa cultivada (junzi 君子 ) é geralmente modelado segundo [estes
princípios] (fan junzi zhi shi heng heng fang yan 凡君子之食恆放焉 ). " 17
De fato,
15 Refeições reais com uma grande variedade não só significava simbolicamente integridade cósmica, mas também servia para expressar a extensão do poder de um monarca, apresentando ingredientes trazidos de grandes distâncias ou preparados no estilo dos povos conquistados. No tribunal mongol do século XIV AD, por exemplo, os banquetes apresentavam pratos de origem mongol, chinesa e islâmica, tal como indicado no manual compilado pelo nutricionista de khan. Buell and Anderson, A Soup for the Qan: Chinese Dietary Medicine in the Mongol Era como é visto em Hu Szu-Hui’s Yin-Shan Cheng-Yao. (London: Kegan Paul, 2000): 6. 16 Roel Sterckx, “Food and philosophy in early China” in Sterckx, ed. Of
Tripod and Palate: Food, Politics, and Religion in Traditional China (New York:
Palgrave Macmillan, 2004): 37, 48. 17 Zhou Li, 2a.
evidências posteriores sugerem que a dieta teve um papel importante no pensamento e na
prática da maioria dos médicos instruídos na China pré-moderna. A má alimentação foi
entendida como um convite à doença, pelo que dar conselhos sobre alimentação saudável era
uma responsabilidade rotineira de qualquer médico.
No primeiro século a.C., como evidenciado pelo Cânone Interior do Imperador
Amarelo (Huangdi neijing 黄帝内經), alguns médicos eruditos se baseavam nas cinco
fases (wu xing 五行), uma matriz explicativa subjacente ao pensamento sobre o mundo
natural, para informar seus conselhos dietéticos. As cinco fases incorporaram estações,
clima, planetas, números, animais domesticados, grãos, notas musicais, cores, cheiros,
órgãos do corpo, orifícios e emoções, atribuindo a essas características da vida relações
regulares e transparentes e limitando sua variabilidade em cinco categorias: madeira, fogo,
terra, metal e água. Entre as coisas assim categorizadas estavam os cinco sabores: azedo,
amarga, pungente, salgada e doce.18
A colocação de um alimento na matriz de cinco
fases transmite sucintamente uma grande quantidade de informação sobre as
circunstâncias em que se deve comer. Qual foi a época mais adequada para comer
milheto glutinoso? Que combinações melhorariam ou compensariam a sua natureza
amarga? A constituição física do consumidor e o estado atual de saúde eram compatíveis
com milheto glutinoso? Nas discussões médicas, portanto, os cinco sabores às vezes
identificavam as funções dos alimentos, além ou até mesmo em vez de seus sabores na
língua. A cada alimento também foi atribuída uma "natureza" ou "personalidade" (xing
性), que novamente refletia o sistema de cinco partes: podendo ser frio, fresco, neutro,
morno ou quente. A "natureza" de um alimento pode ter apenas uma tênue relação com
sua temperatura física. Em vez disso, pensava-se que o alimento tinha uma função de
arrefecimento ou aquecimento depois de ingerido. Conhecer a sua natureza ajudou a
determinar que tipos de alimentos podem ser apropriados para tratar uma condição
decorrente de calor ou frio perversos, ou quais alimentos seria mais apropriados para
servir numa determinada estação.19
18 Como muitas das palavras descritivas usadas no sistema de correspondência em cinco
fases, os cinco sabores (azedo, amargo, pungente, salgado e doce) provavelmente se
originaram na experiência sensorial, mas seu uso foi posteriormente complicado por seu
significado em um sistema abstrato e cada vez mais abrangente. Neste contexto, associar a
milheto glutinoso ao amargo, como faz o Cânone Interior, pode indicar tanto sobre o seu
lugar no quadro idealizado das recomendações e proibições como também sobre o seu gosto.
Para o argumento sobre a abstração das qualidades físicas nas cinco fases, ver Manfred
Porkert, The The The Theoretical Foundations of Chinese Medicine: Systems of
Correspondence (Cambridge, MA: M.I.T. Press, 1974) e Nathan Sivin, Traditional Medicine
in Contemporary China (Ann Arbor, MI: Center for Chinese Studies, The University of
Michigan, 1987). 19 Uma compreensão das naturezas de aquecimento ou resfriamento de vários alimentos se transformou no pensamento popular chinês hoje em dia. Muitos chineses hoje em dia sabem sobre o xing de uma série de alimentos, mesmo sabendo pouco mais sobre medicina tradicional, sugerindo que essa crença pode ter raízes profundas, historicamente, tanto na evidência documental quanto no conhecimento popular e não escrito.
Ignorar as contra-indicações sugeridas pela matriz das cinco fases e consumir
demasiada comida associada a um dos cinco sabores, causaria um declínio físico
particular. O Cânone Interior do Imperador Amarelo delineia as consequências da
seguinte forma:
Se alguém come muito salgado, o pulso endurece, as lágrimas aparecem, e a pele
muda; se alguém come muito amargo, a pele murcha e os pêlos do corpo caem; se
alguém come muito pungente, os músculos se tornam nodosos e as unhas se
deterioram; Se alguém come demais o sabor azedo, a carne endurece primeiro,
depois as rugas, e os lábios ficam frouxos; se alguém come doce demais, os ossos
doem e o cabelo da cabeça cai.20
Note-se que na descrição do Cânone Interior sobre declínio físico causado por não
equilibrar os cinco sabores não há menção em não se obter o suficiente. É comer demais
salgado, amargo, pungente, azedo ou doce que desencadeia o declínio físico. No Cânone
Interior não se encontra nenhum aviso sobre as consequencias de se comer muito pouco
algo que seja salgado ou muito pouco que seja amargo, etc. Em contraste com as
discussões abundantes sobre comer em excesso, os primeiros textos médicos têm muito
pouco a dizer sobre comer pouco. Isso pode parecer estranho no início, já que o princípio
da moderação implica simetria: comer muito pouco deveria ser tão prejudicial quanto
comer muito. Mas as pessoas para quem e para quem estes textos foram escritos eram de
um estrato alto e estreito da sociedade chinesa primitiva. Esses pacientes e médicos
viviam em um ambiente privilegiado, e pouco era provável que manifestassem sintomas
de fome crônica. Como Nathan Sivin mostra, médicos alfabetizados educados nos
clássicos constituíram uma proporção extremamente pequena dos vários especialistas que
as pessoas procuravam para ajuda quando ficavam doentes. Toda população, exceto a
maioria das pessoas que vivia na elite, era mais propensa a consultar sacerdotes populares,
budistas e taoístas para buscar a cura.21
Assim, não é surpreendente constatar que, para além do tipo de equilíbrio acima
descrito, a promoção da vitalidade através da dieta dependia da contenção do exercício
físico. A moderação é elogiada em texto após texto, começando pelo Canon Interior do
Imperador Amarelo. No início do livro, o Imperador Amarelo pergunta ao seu ministro
Qi Bo 岐伯 por que as pessoas em alta antiguidade viveram duas vezes mais tempo (do
que ele acreditava) do que as pessoas da época em que o livro foi escrito. Qi Bo explica:
20 A tradução aqui é de Livia Kohn. Veja Livia Kohn The Taoist Experience: An Anthology,
ed. Roger T. Ames and David L. Hall, Suny Series in Chinese Philosophy and Culture
(Albany, NY: State University of New York Press, 1993): 166. 21 Nathan Sivin, Health Care in Eleventh-Century China (Cham, Switzerland:
Springer,2015).
As pessoas de alta antiguidade,
Aqueles que conheciam o Caminho,
Eles modelaram [seu comportamento] em yin e yang
e cumpriram com as artes e os cálculos.
O comer e beber era moderado [yin shi shi you jie 飲食有節]. O levantar e o descanso eram regulares.
Eles não se impunham com trabalho sem sentido.
Daí,
Eles eram capazes de manter a aparência física e o espírito unidos,
E esgotar os anos [atribuídos à eles pelo] céu.
A sua esperança de vida excedia os cem anos antes deles partirem.22
A moderação continuou a ser considerada como a principal característica de uma dieta
saudável séculos depois do Cânone Interior ter sido compilado. Em seu trabalho mais
influente, as Fórmulas Essenciais que Vale Mil em Ouro (Qian jin yao fang 千金要方)
de 652 A.D., o eminente médico Sun Simiao exalta a contenção em todas as coisas. Isto
começa com dieta: "Não se force a comer demais; não se force a beber demais; não seja
muito ativo fisicamente; não se aborreça demais; não se enfureça demais; não seja muito
ansioso; não tenha muito medo; não se antecipe demais; não fale muito; não ria muito ou
muito alto. Não vás atrás dos teus desejos, e não te deixes levar pelo ressentimento. "Em
última análise, ele conclui: "Se você é uma pessoa que pode ser assim, você poderá viver
no meio de uma epidemia sem preocupação ou dúvida. "”23
Sun, como outros médicos eruditos, enfatiza que o vinho e os alimentos oleosos e
pesados são um perigo particular. Ele escreve: "Quando estiveres a beber vinho, não te
deixes levar por muito dele; se você faz, então é melhor vomitar rapidamente, e não se
deixar embriagar, porque [caso contrário] até o fim da sua vida você não vai se livrar das
cem doenças. Aqueles que bebem vinho por muito tempo apodrecem suas visceras,
perfuram suas medulas ósseas e vaporizam seus nervos, ferem seus espíritos e diminuem
sua longevidade. "24
Em outro lugar, ele lembra a seu leitor: "Aquele que é hábil em
nutrir sua natureza come antes que esteja faminto e bebe antes que esteja ressecado. Ele
come muitas vezes, mas em pequenas quantidades. Não coma muito de uma só vez, pois
assim é difícil digerir a comida.25
22 Huang Di nei jing su wen, trans. Paul U. Unschuld and Hermann Tessenow in
collaboration with Zheng Jinsheng (Berkeley: University of California Press, 2011): 30‒32. 23 Sun Simiao, Qian jin yao fang, edited by Li Jingrong et al. (Beijing:
Renmin weisheng chubanshe, 1996): 927. 24 Ibid., 930. 25 Ibid., 929.
Os autores médicos valorizavam não só a economia na alimentação, mas também a
regularidade. Su Gong 蘇恭 , médico da dinastia Tang é citado no Arcano Médico
Essencial do século VII da Biblioteca Imperial (Wai tai tai mi yao fang 外台秘要方)
como dizendo que aqueles que sofrem de um tipo particular de desordem chamada jiaoqi
腳氣, que mais tarde passou a ser percebido como o transtorno de deficiência nutricional
beriberi, “Devem comer bem de manhã, comer pouco ao meio-dia e não comer à
noite.26
Esta recomendação foi repetida século após século; no século XIII, Li Dongyuan
advertiu contra se estar " esfomeado ao nascer do sol e abarrotado ao pôr do sol" (zhao ji
mu bao 朝饑暮飽).27
A abstinência intermitente, por outras palavras, era tão grave
quanto nenhuma contenção. Jejum e compulsão eram tão insalubres quanto comer
demais de forma consistente.
A ideia dos antigos médicos chineses sobre um distúrbio relacionado com a dieta era, por
conseguinte, uma ideia cujos sintomas provinham de uma alimentação irregular e, em
particular, excessiva. Autores descreveram as consequências para a saúde em comer
demais de duas maneiras. Havia as implicações morais e cósmicas de uma dieta adequada
e conseqüências a longo prazo de alimentação desmedida: encurtamento da vida média,
perda de vitalidade corporal, enfraquecimento do Qi do baço e do estômago e então
haveria repercussões imediatas, estreitas e mecânicas. Este último centrou-se no baço e no
estômago, onde ocorria o excesso de alimento acumulado, congelado e não digerido. Os
dois caracteres no termo xiaohua 消化, atualmente traduziram-se como "digestão",
separadamente significam "diminuição e transformação", referindo-se ao que esses
escritores pensavam que normalmente acontecia com o que era ingerido. Comida e bebida
recém-chegadas na barriga seriam armazenadas no estômago, e então transformadas pelo
baço em qi que o corpo incorporaria em sua própria substância e atividade, perdendo seu
volume original ao longo do caminho. Mas quando comida e bebida subitamente inundam
o interior em grandes quantidades, o estômago é incapaz de acomodá-la e o baço não
consegue transformá-la. A enciclopédia de doenças do século VII sobre fontes e sintomas
de todos os distúrbios (Zhu bing yuan hou hou lun 諸 病 源 候 論) nos diz que poderiam
ocorrer problemas como "comida acumulada de um dia para o outro, transtorno de falha de
digestão" (su shi bu xiao bing 宿食不消病) .28
Outros sintomas comuns relacionados à alimentação imprudente incluíram a coagulação do
qi em um caroço que ficaria retido em algum lugar no tronco; vômitos ou reversão do qi; e
incapacidade transportar a comida para baixo. A observação que os antigos médicos eram preocupados com o comer demais parece,
a princípio, contradizer o argumento de Kuriyama de que a patologia característica da
26 Wang Tao, Wai tai mi yao fang, editado e anotado por Gao Wenzhu (Pequim: Huaxia
chubanshe,1993): 340. 27 Li Gao, Nei wai shang bian, juan 1, 3a.
28 Chao Yuanfang, Zhu bing yuan hou lun jiao zhu 諸病源候論校注 ,edited by Ding
Guangdi 丁光迪 (Beijing: Renmin weisheng chubanshe, 1991), 629.
medicina chinesa antiga era a depleção, xu. Kuriyama contrasta isto com a ênfase
característica dos antigos gregos na repleção, chamada plethora, argumentando que a
preocupação dos médicos chineses com o xu ajuda a explicar porque a prática da sangria
perdeu popularidade na China, enquanto persistiu até à era moderna da medicina
ocidental. Os médicos chineses viam os pacientes sangrando como se esgotassem ainda
mais as vitalidades, os deixando ainda mais vulneráveis, enquanto os médicos ocidentais
viam isso como uma liberação necessária de acumulações estagnadas.29
Como diz Ruth
Rogaski, nos textos chineses antigos as "vitalidades primárias" são "suscetíveis a lesões,
esgotamento e exaustão". O Espírito, associado às faculdades da inteligência, da
sensibilidade e da compreensão humanas, poderia ser desgastado pela emoção extrema e
pelas preocupações da vida cotidiana. O Qi original concedido a um ser humano antes do
nascimento declina com a idade e cessa com a morte. A Essência Seminal, a própria
essência da vida, era gasta através da indulgência sexual ou escaparia inadvertidamente
através das emissões noturnas. "30
Numa tradição atravessada pela ansiedade sobre a
perda e o vazio, não seria de esperar que os médicos se preocupassem em comer muito
pouco?
Uma razão pela qual isso não ocorreu é que eles não pensaram num tipo de de
deficiencia causada por privação alimentar. Em vez disso, eles refletiam sobre uma
deficiência causada por abundancia excessiva de alimentos. Como Rogaski sugere, em
muitos casos, era descontrolando emoções, sexo e comida rica e se embriagando
frequentemente que se abusaria desnecessariamente da vitalidade. O problema com o
excesso de alimentação era que, assim como trabalhar muito ou ficar muito zangado ou
fazer muito sexo, isso esgota o sistema. O que provoca a depleção no sentido dietético
não era portanto, ingerir muito pouco de um determinado ingrediente no corpo, mas
desgastar o corpo, inundando-o com excessos.
Outra aparente contradição que emerge nos textos médicos medievais é que a
gordura corporal é muito pouco associada a doenças. Dado seu interesse sobre o excesso
de alimentação poderia-se também esperar que os autores médicos se preocupassem
sobre a gordura. Em vez disso, a robustez era vista como um marcador consistente de boa
saúde. Isto é impressionante particularmente quando se examina a etimologia dos termos
que, em chinês moderno, passaram a ser usados para a obesidade insalubre: pang 胖 e
fei 肥.O Hanyu Da Cidian 漢語大辭典, que tenta fornecer o primeiro uso de caracteres
e compostos únicos, atesta que os usos anteriores do pang são bastante diferentes.31
Os
primeiros significados do caractere tinham a ver com a anatomia dos animais,
particularmente dos animais abatidos indicando as costelas (ou a carne dos flancos) de
29 Kuriyama, The Expressiveness of the Body and the Divergence of
Greek and Chinese Medicine (Cambridge, Massachusetts: the MIT Press, 1999):
Chapter 5. 30 Ruth Rogaski, Hygienic Modernity: Meanings of Health and Disease in Treaty-Port
China (Berkeley: University of California Press, 2004): 44.
31 Hanyu da cidian 漢語大辭典 ,o dicionário multi-volume padrão de chinês clássico.
uma ovelha sacrificial, por exemplo. O terceiro uso, que remonta a um dos mais antigos
clássicos chineses, indica um estado físico de saúde, conforto e tranquilidade. O Registro
de Ritos (Li ji 禮記) descreve assim a disposição ideal de uma pessoa: "Quando a
riqueza enriquece a própria residência e a virtude enriquece a própria pessoa, a mente
alarga-se e o corpo engorda (胖). "(fu run wu, de run shen, xin guang ti pan 富潤屋,德
潤身,心廣體胖 ) . O estudioso Zhu Xi, comentando esse texto no século XII,
acrescentou que, neste caso, "Pan 胖 significa pacífico e confortável. "32
Aqui o caráter
é especificamente associado ao corpo humano, mas descreve um estado de ser além da
aparência exterior. Além disso, esse estado que ele descreve é desejável. Em seus
primeiros usos, então, esse caractere parece não ter tido nenhuma das conotações
negativas pouco atraentes ou insalubres para gordura que ele carrega atualmente.
Outro caractere agora comumente usado para descrever a obesidade é fei 肥,que
é mais comum em documentos históricos do que pang. Uma busca eletrônica no Si ku
quan shu 四庫全書 , coleção de 3.471 livros reunidos pelos oficiais do Imperador
Qianlong em 1770, retorna 39.161 aparições do caractere fei, enquanto pang aparece
apenas 1.841 vezes. A entrada de Fei no Grande Dicionário lista dezoito significados,
comparados com os quatro de Pang. Nos antigos textos médicos, amplamente lidos, fei é
usado mais frequentemente para descrever tipos carnes do que para descrever pessoas, e
os autores médicos geralmente contra-indicam as carnes fei porque elas põem em perigo
a recuperação de doenças. Sobre as Fontes e Sintomas de Todos os Transtornos adverte
que, quando se recupera recentemente por uma desordem causada pelo Frio (shanghan
傷寒) , alimentos fei, e em particular peixes fei, irão induzir diarréia copiosa. Esta é uma
condição que "a medicina não pode fazer nada para tratar, e sempre vai levar ao óbito.
"(yi suo bu neng zhi ye, bi zhi yu si 医所不能治也,必至于死) . O paciente pode ter
recuperado, mas seu sistema ainda está delicado: "os fluidos vitais não foram
reabastecidos, o Sangue e o Qi ainda estão esgotados" (qinye wei fu, xueqi shang xu 津
液未复,血气尚虚), e "o qi do estômago ainda está esgotado e fraco, incapaz de digerir"
(weiqi shang xuruo, bu neng xiaohua 胃气尚虚弱,不能消化 ). Deve-se evitar
cuidadosamente alimentos ricos e gordurosos durante a convalescença. Fei também era frequentemente usada para descrever a carne humana. Exemplos de
fei em clássicos da medicina demonstram, no entanto, que este não é o tipo de gordura
que se procura reduzir ou eliminar numa clínica de perda de peso. É geralmente usado em
contraste para descrever um estado de saúde e força. O termo composto feijian, gordo e
robusto, é muito mais comum em textos médicos imperiais do que o feipang moderno
(obeso) que desde então o eclipsou. Em um exemplo das Fórmulas de Eficácia
Comprovada (Xiao yan fang 效驗方) por Tao Hongjing 陶弘景 (456-536), uma fórmula
para a Infusão de Dentes Dourados (jin ya jiu 金牙酒) vem com o seguinte elogio:
32 Luo Zhufeng 罗竹风 ,chief ed. Han yu da ci dian (Shanghai: Han yu da ci dian
chubanshe, 2001), volume 6, 1237.
"Trata a fraqueza dos pés, o vento e o frio, a dormência e a fadiga. Também torna as
pessoas gordas e saudáveis (feijian), e elas recuperam o seu [estado de saúde] anterior
cem vezes mais. "33
Nos primeiros textos médicos, este é o uso mais comum de fei
quando aplicado às pessoas: ou seja, como um estado ideal de saúde.
Considerando o que vimos acima, mostrando que o tipo de alimentação que induz a
doença, segundo os primeiros textos chineses, significa quase invariavelmente comer em
excesso, a aparente falta de preocupação com os corpos gordos nesses mesmos textos é
intrigante. É possível, naturalmente, que a gordura da China antiga e medieval não fosse
a nossa gordura: ser gordo então pode não ter significado o grau de obesidade que é
relativamente comum hoje em dia. E assim, talvez, fosse incomum ver uma pessoa tão
obesa que seu peso corporal obviamente impactava sua vida diária de forma negativa. Por
outro lado, alguns dos corpos retratados na arte e medicina como belos ou saudáveis as
pessoas retratadas em ilustrações de manuais médicos, por exemplo, ou nas esculturas
femininas da dinastia Tang seriam provavelmente classificadas como obesos em um
ambiente médico moderno. Os cavalheiros têm barrigas proeminentes, e todas as
superfícies das damas são convexas (ver Figuras 1 e 2). Então, afinal de contas a
diferença pode não ser tão absoluta.
Em vez disso, sugiro que, apesar da sua preocupação com os excessos alimentares
dos doentes, os autores médicos antigos não viam o peso principalmente como uma
consequência da dieta, mas sim como uma espécie de característica inata que a
modificação da dieta pouco poderia fazer para mudar. Considere, por exemplo, a seguinte
declaração de Bei ji qian jin yao fang, descrevendo o tipo de pessoa mais propensa a
contrair o transtorno jiaoqi 腳氣: "aqueles que têm pele escura e são magros são fáceis
de tratar; aqueles com muita gordura, carne grossa e vermelho e branco [tez] são difíceis
de curar. Pessoas de compleição escura podem tolerar [qi do] vento e Umidade, [mas]
pessoas de compleição vermelha e branca não toleram vento. A musculatura das pessoas
magras é firme, e das pessoas gordas é flácida. Quando a carne é flácida [como nas
pessoas gordas] a doença penetra profundamente. "34
Textos posteriores elaboram que os
corpos fei têm aberturas maiores no espaço logo abaixo da pele, por onde a doença
primeiro entra, enquanto os poros das pessoas magras são mais apertados e resistem
melhor a penetração de qi perverso. As pessoas Fei também suam mais frequente e
profusamente do que as pessoas magras, abrindo seus poros e tornando-as ainda mais
vulneráveis a doenças – causadas pelo qi perverso que ataca o exterior do corpo e penetra.
Essa idéia, entretanto, não sugere que a dieta ou outros aspectos do estilo de vida tenham
causado a predisposição para essa condição.
33 Como citado no compêndio do século oitavo por Wang Tao 王焘,Wai tai mi yao fang, editado por Gao Wenzhu 高文铸 (Beijing: Huaxia chubanshe, 1993), 358. 34 Sun Simiao, Bei ji qian jin yao fang, 270. Sobre Jiao Qi, ver Hilary A. Smith: Forgotten
Disease: Illnesses Transformed in Chinese Medicine (Stanford: Stanford University Press,
2017).
Figura 1. Canal da vesícula biliar Shaoyang do pé, por Gao Wu, 1537 AD. Cortesia da Wellcome Library,
Londres.
Em vez disso, implica uma diferença inata entre as pessoas: algumas são escuras e
magras por natureza, enquanto outras são robustas e fortes. Marta Hanson observou que
no final da China imperial, os médicos às vezes associavam tais diferenças
constitucionais com a percepção de que os habitantes do Norte eram robustos e em
oposição aos do sul que cuja constituição era delicada e também a percepção de
diferenças de classe social.35
Os trabalhadores braçais pobres eram provavelmente
escuros e magros, enquanto os estudiosos ricos eram provavelmente corados e robustos.
Mas este era tanto um aspecto constitucional quanto um marcador relacionado com classe
social alta ou baixa e raízes setentrionais ou meridionais. Entre todos os danos que uma
alimentação desmedida poderia fazer o dano de engordar uma pessoa era uma coisa que
35 Hanson, Speaking of Epidemics in Chinese Medicine: Disease and the Geographic
Imagination in Late Imperial China (London: Routledge, 2011), especialmente capítulo 3.
aparentemente não ocorria, a partir desta perspectiva. Indigestão, refluxo, alimentos
persistentes e esgotamento da vitalidade eram conseqüências da gula; já a obesidade não.
Da mesma forma, a magreza ou a emaciação não refletiam abstinência ou inanição.
Figura 2. Dinastia Tang (século VIII) figura do túmulo. Presente de Eunice Shatzman, classe de 1949, e Herbert M.
Shatzman. Fotografia cortesia do Museu de Arte Herbert F. Johnson, Universidade de Cornell.
Ao contrário da gordura corporal, a magreza aparece consistentemente nestas fontes
como um marcador de problemas de saúde. Shou 瘦, termo mais frequentemente
utilizado para "magro" nos textos médicos (frequentemente emparelhado com outro
caractere como em leishou 羸瘦 ou xiaoshou 消瘦), sinaliza diretamente para uma
patologia, encerrado como está dentro de um radical "doença" (疒) . Tal como a gordura,
no entanto, a magreza parece ter apenas uma relação ténue com a alimentação nos textos
antigos. O jejum extremo, por exemplo, não resulta necessariamente em Shou 瘦. Textos
taoístas que promovem a prevenção da ingestão de grãos (bigu 辟谷) como uma rota
para a imortalidade prescrevem dietas tão restritas que qualquer pessoa que aderisse a
elas certamente seria notavelmente magra (isto é, se sobrevivesse!) subsistindo à base de
resina de pinheiro, gergelim, pimenta, gengibre como, por exemplo, a obra Taishang
lingbao wufuxuxu 太上靈寶五符序) recomenda.36
Contudo, quando a sua aparência física é descrita, os adeptos de tais dietas especiais não
são descritos como magros ou Shou 瘦 , mas sim como tendo recuperado
significantemente um dos aspectos físicos da juventude: os cabelos pretos.37
Em suma, os médicos eruditos advertiram severamente contra comer e beber demais,
mas apresentaram o esgotamento como a causa típica da doença; eles se preocupavam
com os pacientes que comiam demais, mas geralmente viam a gordura corporal como um
sinal de saúde. Estes aparentes paradoxos são compreensíveis, sugiro, quando se entende
o esgotamento como causado pelo excesso de trabalho (neste caso, do sistema digestivo),
e a gordura corporal como ligada à constituição inata. Mais tarde, porém, como a
comercialização exacerbou as distinções entre ricos e pobres no final da China imperial, e
a fluidez social aumentou, as idéias dos médicos sobre doenças induzidas pelo consumo
alimentar tornaram-se mais pronunciadas e diversificadas, começando pela primeira vez a
incluir os problemas relacionados com acesso inadequado e insuficiente aos alimentos.
3. Desordens alimentares na China imperial tardia
No final do período imperial (aproximadamente entre os séculos XIV e XIX), os
autores médicos já estavam dedicando mais atenção às doenças induzidas pela dieta.
Além das doenças que tinham sido associadas ao consumo alimentar excessivo em textos
anteriores, as doenças de privação relacionadas com a alimentação, praticamente ausentes
dos textos anteriores, começaram a chamar a atenção. Um gênero de manuais sobre
alimentos para aliviar a fome surgiu no período Ming e floresceu na era Qing também.
Entretanto, a preocupação com as doenças induzidas pelo excesso de comida continuou a
crescer, e a gordura corporal começou a provocar preocupação ocasionalmente. No
entanto, estas duas preocupações opostas, sobre os perigos para a saúde causados por
comer demais e por comer muito pouco, continuaram a ser referenciadas pelo conceito
antigo de que um consumo alimentar súbito e excessivo era a causa imediata dos
sintomas de doença diretamente associados à alimentação.
O surto de interesse na doença induzida pela dieta nos textos de Ming e Qing foi
inspirado pelo Tratado de Li Dongyuan sobre o Baço e o Estômago (Pi wei lun 脾胃論),
que promoveu a noção de que uma alimentação habitualmente pobre ameaçava a saúde.
Li é lembrado como um dos quatro médicos famosos do período Jin e Yuan, uma época
em que novas idéias e teorias estavam transformando a medicina chinesa. Ele veio de
uma família rica e bem relacionada, mas como acontece com freqüência em histórias
36 Livia Kohn, ed. The Taoist Experience: An Anthology (Albany: State University of New
York Press, 1993): 150‒152. See also Shawn Arthur, Early Daoist Dietary
Practices: Examining Ways to Health and Longevity (Lanham, Maryland:
Lexington Books, 2013). 37 Kristofer Schipper, The Taoist Body, trans. Karen C. Duval (Berkeley: University of
California Press): 169.
sobre grandes médicos, ele se voltou para o estudo da medicina porque estava
insatisfeito com os cuidados médicos que sua mãe recebia durante a doença que a matou. Li recapitulou muito do que a literatura médica anterior tinha dito sobre o baço e
estômago como os sistemas pelos quais o qi de comida e bebida era armazenado e
transformado. Ele concordou com autores anteriores que inundar um estômago e baço
esgotados com comida ou bebida demasiadas produzia sintomas específicos de
desconforto e distensão. Mas para Li, ingestão e digestão eram os processos centrais em
toda a saúde e doença, como ele deixou claro em seu Tratado sobre o Baço e Estômago.
Ele sustentou que "as centenas de doenças são todas geradas como resultado de um baço
e estômago decrépitos. "38
Além disso, afirmava que havia gordos saudáveis e insalubres.
O tipo saudável surge quando o baço e o estômago estão em bom estado de
funcionamento e a pessoa come muita comida e a consequência disso é um corpo que
funciona bem e amplamente provisionado. Mas, Li apontou, que se o baço e o estômago
estivessem esgotados, seria possivel alguém ficar tão fraco que nem sequer se conseguiria
levantar os membros, "apesar de ser gordo". "Em tal caso Fei, marcador de boa saúde
normalmente confiável, falhou.
Li também afirmou existir uma nova etiologia para jiaoqi 腳氣 uma doença antiga,
mencionado anteriormente (associada modernamente ao Bériberi). Antes de seu tempo, a
explicação padrão da causa de jiaoqi 腳氣 seria que vento pernicioso ou Qi úmido
vaporizado do solo penetrariam no corpo pela via das pernas e pés provocariam os
sintomas característicos. Mas Li sugeriu que havia, além disso, uma segunda maneira em
que as pessoas contraem o jiaoqi 腳氣. As pessoas que "consumiam regularmente leite
de égua fermentado e bebiam sem moderação" sofriam de jiaoqi 腳氣 apesar de viverem
em locais do norte onde o solo era seco e não emanava Qi perverso como no sul.39
Assim, uma doença que os médicos não tinham anteriormente considerado
particularmente relacionada com a dieta tornou-se, em alguns casos, uma doença em que
uma dieta pobre por si só poderia induzir. Esta nova etiologia, que o próprio Li
considerava claramente uma variação regional, foi universalizada no final do período
imperial. Pela dinastia Qing, autores médicos já discutiam o jiaoqi 腳氣 como algo que
os sulistas, também, poderiam contrair através de dieta imprópria.40
Como este exemplo sugere, embora os médicos há muito considerassem
genericamente comer em excesso uma das indulgências imprudentes que poderiam tornar
alguém susceptível a qi invasivo e causador de doenças, foi depois do século XIII que
comer, por si só, atraiu mais atenção médica. Um novo gênero surgiu, compêndios com
38 Li, Treatise on the Spleen and Stomach, 34. 39 Hilary A. Smith, Forgotten Disease: Illnesses Transformed in Chinese
Medicine (Stanford: Stanford University Press, 2017), 87‒88.
40 Ibid., Chapter 5.
títulos como Shiwu bencao 食物本草, que categorizou e analisou alimentos da mesma
forma que o gênero materia medica de longa data (bencao 本草) ordenou ingredientes
de drogas. E dentro do gênero das histórias de casos médicos, que surgiram de forma
semelhante no período imperial tardio,41
a dieta muitas vezes tomou o centro do palco.
Nesta crescente literatura específica da dieta, o excesso de consumo alimentar foi
uma das principais preocupações. Os registros de casos do século XVI do médico Wang
Ji, por exemplo, geralmente atribuíam as doenças dos pacientes ricos e do sexo masculino
atendidos por Wang a uma alimentação excessiva, como mostrou Joanna Grant.42
E o
gênero materia medica dos alimentos enfatiza as dietas abstratas como o fundamento da
saúde física e moral (sendo estes dois aspectos percebidos como inextricáveis). O quarto-
juan deste gênero compilado por um autor desconhecido na Dinastia Ming conclui
descrevendo as dietas abstemias dos sábios antigos:
Quando as pessoas satisfazem os desejos de suas bocas e barrigas (zong kou fu zhi yu 縱
口腹之欲) e comem e bebem imoderadamente, [tal comportamento] sempre traz doenças
e encurta a vida que lhes foi dada pelo céu. Assim arroz (fan 飯), papas de aveia (qiu 糗),
vegetais (ru 茹) e gramíneas (cao 草) não prejudicaram Yu Shun; rejeitar álcool e comer
pouca comida não prejudicou Xia Yu; e comer vegetais e guisado de vegetais não
prejudicou Confúcio. Se esses sábios fizeram isso, as pessoas abaixo deles deveriam
também [fazer o mesmo]!43
Mesmo a conotação termo pang, que nos textos antigos e medievais tinha tão
frequentemente uma conotação positiva, começou a mudar na China imperial tardia. A
obra Shuihu zhuan 水滸傳, também traduzida como Os Bandidos Do Pântano, um
romance do século XVI, descreveu um dos seus personagens desta forma: "No meio
daquele lugar havia um monge gordo (pang 胖), cujas sobrancelhas pareciam ter sido
mergulhadas em laca, e cujo rosto se assemelhava a um pano preto pintado. "44
Este é um
uso familiar de pang, não muito distante da forma como é usado hoje: como uma
descrição, não necessariamente lisonjeira, da aparência física de uma pessoa. Pang
41 Christopher Cullen, “Yi’an (case statements): the origins of a genre of Chinese medical
literature” in Innovation in Chinese Medicine, edited by Elisabeth Hsu, 297‒323
(Cambridge: Cambridge University Press, 2001); Charlotte Furth, “Producing
medical knowledge through cases: history, evidence, and action,” in
Thinking With Cases: Specialist Knowledge in Chinese Cultural History, edited by Charlotte
Furth, Judith T. Zeitlin, and Ping-chen Hsiung, 125‒151 (Honolulu: University of Hawai’i
Press, 2007). 42 Joanna Grant, A Chinese Physician: Wang Ji and the Stone Mountain Medical Case
Histories (London: RoutledgeCurzon, 2003). 43 Shi wu ben cao (Pequim: Beijing tushuguan chubanshe, 2007), 531-532. Yu Shun ou Shun 舜 foi um dos primeiros reis sábios lendários da China, assim como Xia Yu ou Yu o Grande, fundador da Dinastia Xia. 44 Shi Nai'an 施耐庵,Shui hu zhuan 水滸傳 (Hong Kong: Youlian chubanshe, 1959): 68.
também começou a ser combinado com fei num composto de dois caracteres que
transmitia um significado muito diferente do feijiano, "gordo e robusto", dos tempos
anteriores. Feipang 肥胖 não parece ter sido usado antes da Dinastia Ming, a julgar pelo
conteúdo do Si ku quan shu.45
Começando no período Ming, começou a aparecer no
léxico, e parece ter sido aplicado principalmente a mulheres. Hoje, os médicos de
formação ociental combinam isso com a palavra "doença" (bing 病 ) para criar o
feipangbing, o termo usado na clínica para obesidade. Quando se tratava de comer, no entanto, não era só o excesso que capturou as
imaginações dos textos médicos da era imperial final da China, mas também se
passou a ver textos sobre privações alimentares. Zhang Congzheng 張從正 (ca.
1156-1228), outro dos médicos inovadores dos períodos Jin e Yuan, escreveu
simetricamente sobre os "danos causados pelo vinho e pela comida" entre ricos e
pobres. "Pessoas que comem sumptuosamente e vivem vidas de lazer, e que são
supernutridas", escreveu ele, "suas injurias produzidas por comida e vinho trazem
líquidos que permanecem no meio do corpo, inchaço e tensão interna, caroços no
peito e na barriga, obstruções, dor de estômago. " Mas, "as pessoas comuns que
comem e bebem alimentos grosseiros, e cujas roupas são frias e finas, e que se
movem para trabalhar" também não eram imunes a doenças alimentares. Sua "lesão
causada por comida e vinho" apresenntava diferentes sintomas, incluindo "uma
sensação de inchaço no coração e na barriga, e tensão interna". De vez em quando
vomitam líquidos ácidos. "”46
Como Zhang, os médicos de épocas posteriores também reconheceram o sofrimento
causado pela privação de alimentos, não apenas por comer em excesso. Entre outros atos
de caridade, médicos eruditos no final da China imperial produziram livros de matéria
médica para aliviar a fome (jiu huang ben cao 救荒本草), destinados a ajudar as vítimas
da fome a sobreviver, identificando plantas que eram comestíveis mas que não eram
comumente usadas em circunstancias normais como como feijão preto, normalmente
usado para alimentar animais47 e advertindo contra plantas que eram tóxicas. Como Ellen
Nakamura mostra, os médicos japoneses nos séculos XVIII e XIX também começaram a
produzir volumes neste gênero. Ela observa que tais livros "eram particularmente
significativos porque até então, a maioria dos escritos sobre a fome estavam preocupados
com um bom governo, e assim eram destinados a serem lidos por membros da classe
dominante ao invés de pelas pessoas comuns, a fim de ajudarem-se a si mesmos. "48
O
mesmo se pode dizer da matéria médica chinesa de alívio à fome. Mesmo em casos de privação, no entanto, a preocupação dos médicos imperiais
tardios ainda era enquadrada em torno do velho paradigma que mantinha o perigo
primário de estar sobrecarregando um baço e estômago danificado ou esgotado com um
45 O Si ku quan shu, que inclui livros sobre diversos temas, incluindo medicina, é agora
totalmente pesquisável eletronicamente. Uma busca pelo termo feipang retorna apenas 22
resultados em toda a coleção. 46 Zhang Congzheng, Zhi bing bai fa, in Jin Yuan si da yi (Four Great Doctors of Jin and
Yuan), 246. 47 Li, Fighting Famine in North China, 96‒97. 48 Nakamura, Practical Pursuits, 117.
súbito influxo de alimentos. A privação de alimento enfraquece as funções do estômago e
do baço mas, por si só, não seria suficiente para adoecer ou matar uma pessoa. Em vez
disso, seria quando uma pessoa faminta tem a oportunidade de se alimentar novamente é
que ela precisa ser especialmente cautelosa. Um estômago e baço enfraquecidos pela
fome não seriam capazes de armazenar e transformar nem mesmo uma quantidade
normal de comida após um período de jejum ou fome.
Assim, quando Li Dongyuan refletiu sobre o desastre de saúde pública que se seguiu
ao cerco mongol de Kaifeng, como descrito no início deste ensaio, ele enfatizou que foi
somente quando o cerco foi levantado e o acesso à comida restaurado que um grande
número de residentes de Kaifeng começou a morrer de doenças. A escassez de alimentos
durante o cerco criou a pré-condição para o surto, de acordo com Li. As pessoas numa
cidade sitiada, ele ressaltou, geralmente não levam vidas que mantenham o estômago e o
baço robustos: "eles não comem e bebem de forma regular, e eles são feridos por
trabalharem [com muita força]. "Depois de dois ou três meses de vida irregular, o qi do
estômago dos habitantes de Kaifeng “tinha se tornado deficiente por um longo tempo.
"No entanto, esta deficiência por si só não causou o surto. Mesmo nas circunstâncias
mais extremas da escassez de alimentos, em outras palavras, Li via a causa imediata da
doença como uma alimentação desmedida em vez da falta de alimentos. Considerando
que o trabalho de Li influenciou as ideias que surgiram posteriormente sobre doenças
induzidas pelo consumo de alimentos (o Tratado sobre o Baço e o Estômago tornou-se o
locus classicus para tais discussões), não é de admirar que o autor da obra Materia
Medica of Foodstuffs na dinastia Ming acima referida alerte severamente contra o jejum
intermitente ou o ascetismo extremo, apesar de defender as dietas simples que supôs que
os sábios haviam adotado. "Alimente seu coração (xin 心)," ele sugere, "e não seja asceta.
Desenvolva um apetite por certos tipos de alimentos e bebidas. Não podes parar de comer,
mas podes comer menos. "”49
Começando com o trabalho de Li Dongyuan no século XIII, os autores médicos
chineses começaram a elevar a dieta a um papel mais central na causa e na propensão à
doença. Em seus registros de casos, eles atribuíram cada vez mais doenças ao excesso de
consumo alimentar e produziram volumes numerosos categorizando e descrevendo os
efeitos dos alimentos sobre a saúde. Ao mesmo tempo, começaram a prestar mais atenção
às consequências para a saúde da privação alimentar a longo prazo, escrevendo livros de
matéria médica expressamente para ajudar as vítimas da fome, e notando que tanto os
pobres como os ricos sofriam de distúrbios alimentares. As desordens alimentares dos
ricos e dos pobres eram explicáveis através do mesmo conjunto de conceitos, no entanto.
Um baço e o estômago esgotados não conseguiam gerir adequadamente os influxos de
novos alimentos, particularmente os tipos de abundância que podem acompanhar um
banquete luxuoso ou o acesso súbito a alimentos num ambiente afetado pela fome. Então,
49 Shi wu ben cao (Beijing: Beijing tushuguan chubanshe, 2007), 532.
se o baço e o estômago estão esgotados por superestimulação ou subutilização, o
resultado em ambos os casos seria doença e às vezes morte.
O que podemos fazer com estas mudanças? A consciência e a ansiedade sobre ambos os
tipos de doenças alimentares causadas pelo excesso de indulgência e as causadas pela
privação de alimentos refletiram o mesmo conjunto de circunstâncias, a começar pela dinastia
Ming. Joanna Grant argumentou que a propensão de Wang Ji para atribuir a doença ao
consumo alimentar excessivo em seus pacientes refletia a ansiedade sobre a mudança da
hierarquia social em uma sociedade que era cada vez mais comercial e próspera.50
Mas a
crescente ansiedade dos eruditos sobre a forma como os novos-ricos começaram a gastar o seu
dinheiro é apenas uma parte do quadro. Como Philip Kuhn apontou para a "idade próspera" da
China do século XVIII para um plebeu, "o crescimento comercial pode ter significado, não
a perspectiva de riqueza ou segurança, mas uma escassa margem de sobrevivência em
uma sociedade competitiva e populosa". " 51
De fato, à medida que a população
aumentava, a fome tornou-se uma preocupação de importância crescente. Os agricultores
subsistiam em terras cada vez mais marginais; novos cultivos alimentares originários das
Américas, como batata doce, milho e amendoim, ajudaram os pobres a sobreviver à crise
de recursos e população, mas também acentuaram até que ponto as dietas dos ricos e
pobres eram divergentes.52Em meados do século XVIII, o sistema estatal de silos para
estoque e grãos para aliviar os efeitos da fome tinha atingido o seu auge, como
demonstrou Pierre-Étienne Will, e no final do século XIX esse sistema tinha-se
deteriorado ao ponto de um observador americano chamar a China de "Terra da Fome".53
A maior e mais precisa atenção que os médicos prestaram aos distúrbios alimentares
no final do período imperial reflete mais do que o efeito das teorias de Li Dongyuan
sobre o baço e o estômago. Também reflete sobre uma maior ansiedade sobre o consumo
alimentar em um momento de mudança social e econômica que incluiu o aumento da
mobilidade social (para cima e para baixo), comercialização e maior prosperidade para
alguns mas simultaneamente maior privação e desespero para os outros. A alimentação,
em ambas as extremidades do espectro socioeconômico, tornou-se mais esgotante, seja
50 Joanna Grant, A Chinese Physician; Timothy Brook, The Confusions of
Pleasure: Commerce and Culture in Ming China (Berkeley: University of
California Press, 1998); Craig Clunas, Superfluous Things:
Material Culture and Social Status in Early Modern China (Urbana: University of Illinois,
1991). 51 Philip A. Kuhn, Soulstealers: The Chinese Sorcery Scare of 1768 (Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1990), 36. 52 A dissertação de Laura Murray mostra de forma convincente que os agricultores abraçaram as culturas do Novo Mundo apenas em situações de extrema necessidade. Murray, "New World Food Crops in China: Farms, Food, and Families in the Wei River Valley, 1650-1910" (Ph.D. diss., University of Pennsylvania, 1985). 53 Li, Fighting Famine in North China, 1.
por causa de mais oportunidades para se alimentar excessivamente ou por causa da falta
de acesso a alimentos nutritivos.
5. Conclusão
No início do século XX, quando os conceitos médicos ocidentais de calorias e
vitaminas estavam se desenvolvendo na China e em outros lugares, as pessoas que
desenvolviam essas idéias tipicamente apresentavam a má nutrição como um tipo de
déficit. Era o fracasso em alcançar os mínimos necessários para sustentar a vitalidade.
Novos termos chineses que significam "desnutrição" ou "subnutrição" começaram a
desenvolver-se: yingyang bu liang 營養不良 e yingyang bu zu 營養不足 , que
apareceram frequentemente em revistas e periódicos médicos chineses a partir dos anos
30 e 40. 54
Velhas doenças como o jiaoqi 腳氣, que no passado tinham sido associadas
a uma invasão de um qi causador de doenças e às vezes com muita comida, passaram a
ser percebidas como distúrbios de deficiência de vitaminas, yingyang quefa quefa bing
營養缺乏病. As investigações nutricionais procuraram estabelecer a prevalência e a
gravidade da subnutrição. 55
As idéias biomédicas de desnutrição e fome crônica que surgiram no século XX, no
entanto, têm pouca semelhança com aquelas que prevaleceram na medicina chinesa, onde
uma dieta causadora de doenças geralmente significa uma dieta com ingestão demasiada.
O que os médicos hoje identificariam como os índices da deficiência de proteína-caloria
ou micronutrientes deficientes não eram identificados como tal pelos médicos pré-
modernos, que tendiam a pensar nas dietas dos pobres não só como suficientes, mas
também como promotoras de saúde e até mesmo virtuosas. O ideal de uma dieta
moderada equilibrada entre os cinco sabores surgiu nos primeiros clássicos da medicina,
implicando teoricamente que consumir muito pouco de um ou outro ingrediente poderia
ser problemático; na prática, porém, o tipo de alimentação que,segundo os primeiros
antigos textos, induziria a doença seria comer em excesso e não comer muito pouco. Os
autores médicos, no período imperial posterior, contudo, começaram a remediar essa
desatenção precoce às conseqüências da privação de alimentos para a saúde. Inspirados
no Tratado de Li Dongyuan sobre o Baço e o Estômago, que revigorou o estudo das
doenças relacionadas com a alimentação, e motivados, talvez, pelo alargamento das
divisões sociais e econômicas na sociedade chinesa, os médicos começaram a escrever
sobre as perturbações alimentares tanto dos pobres como dos ricos.
(Recebido em 28 de Julho de 2017; Aceito em 8 de Setembro de 2017)
54 Jia-Chen Fu, comunicação pessoal, outubro de 2017. 55 Por exemplo, Hou Xiangchuan et al, Nutritional Studies in Shanghai (Shanghai: Henry
Lester Medical Institute, 1940).