20
1 Texto apresentado no Simpósio 62 - ANPUH Título: Homens ricos em Minas colonial Autora: Carla Maria Carvalho de Almeida Professora Adjunta do Departamento de História da UFJF Professora de História Moderna e Metodologia da História Doutora em História Social pela UFF End.: Rua Margarida Zovain Ferreira n.70 – Condomínio Portal da Torre Bairro São Pedro – Juiz de Fora – MG - CEP: 36.037-500 Tel.: (32) 3231-3256 e-mail: [email protected] Resumo: O propósito deste trabalho é investigar o perfil, principalmente econômico dos homens ricos de Minas Gerais no século XVIII e também, em alguma medida, sua inserção política e social. O ponto de partida dessa pesquisa foi a lista mandada fazer em 1756 pelo Conselho de Marinha e Ultramar com o nome dos “mais ricos moradores” das Minas. Abstract: This paper’s proposal is to, mainly, analyze the rich men economic profile of Minas Gerais, in XVIII century, and also, in certain way, their origin, politic and social insertions. The sart point of this research was the roll made by command of Overseas and Mariner Council, in 1756, with the “names of richest people from Minas”. Palavras-chave: Minas colonial Homens ricos Hierarquização social Mercês e privilégios reais

Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

1

Texto apresentado no Simpósio 62 - ANPUH Título: Homens ricos em Minas colonial Autora: Carla Maria Carvalho de Almeida

Professora Adjunta do Departamento de História da UFJF Professora de História Moderna e Metodologia da História Doutora em História Social pela UFF End.: Rua Margarida Zovain Ferreira n.70 – Condomínio Portal da Torre Bairro São Pedro – Juiz de Fora – MG - CEP: 36.037-500 Tel.: (32) 3231-3256 e-mail: [email protected]

Resumo: O propósito deste trabalho é investigar o perfil, principalmente econômico dos

homens ricos de Minas Gerais no século XVIII e também, em alguma medida, sua inserção política e social. O ponto de partida dessa pesquisa foi a lista mandada fazer em 1756 pelo Conselho de Marinha e Ultramar com o nome dos “mais ricos moradores” das Minas.

Abstract: This paper’s proposal is to, mainly, analyze the rich men economic profile of

Minas Gerais, in XVIII century, and also, in certain way, their origin, politic and social insertions. The sart point of this research was the roll made by command of Overseas and Mariner Council, in 1756, with the “names of richest people from Minas”.

Palavras-chave: Minas colonial

Homens ricos Hierarquização social Mercês e privilégios reais

Page 2: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

2Homens ricos em Minas colonial

Carla Maria Carvalho de Almeida Professora Adjunta da UFJF

1755 foi um ano ruim para o Reino português. O ano principiara como

qualquer outro. No entanto, no dia primeiro de novembro, dia de Todos os Santos, uma tragédia sem proporções atingiu em cheio uma das cidades mais opulentas da época. Parecia castigo dos céus1. Das vinte mil casas de Lisboa somente três mil permaneceriam em condições de ser habitadas2. A família real escapara por um milagre: estava em Belém.

Mesmo tão distantes, esses acontecimentos teriam implicações diretas para os súditos de Sua Majestade no além mar, particularmente para os habitantes das Minas Gerais. A conseqüência dos transtornos causados pelo terremoto mais imediatamente sentida pelos mineiros seria a necessidade da coroa em criar receitas extraordinárias para custear a reconstrução de Lisboa. Foi assim que, quatro meses após os acontecimentos do dia primeiro de novembro, o Secretário de Estado dos Domínios Ultramarinos, Diogo de Mendonça Corte-Real, enviava para as Minas uma ordem para que o provedor da fazenda, Domingos Pinheiro,

(...)secreta e particularmente examine o número de homens de negócios e mineiros ricos que há nessas Minas; e sendo possível, mandar-me uma relação com os nomes deles (...) da mesma forma as cargas de fazenda que entram nessas Minas dentro de uma ano3. Observava ainda que, a mesma ordem fosse executada com brevidade e

transmitida ao intendente da casa de fundição do Sabará, ao ouvidor do Serro Frio e ao intendente da casa de fundição de Goiás.

Assim que as notícias sobre a tragédia começaram a chegar às Minas, ainda que a contragosto, os camaristas das principais vilas se dispuseram a encontrar formas de estabelecer contribuições para a reconstrução de Lisboa. Em representação do dia 5 de julho de 1756, os oficias da câmara de Vila do Príncipe manifestavam a D. José I sua disposição em colaborar para a reconstrução da capital do Reino, destruída pelo terremoto4. Haveria uma Junta em Vila Rica em que deveriam comparecer representantes de todas as localidades para que fosse definida a contribuição a ser oferecida pelos habitantes das Minas e a melhor maneira de cobrá-la. O ouvidor do Serro Frio, João Evangelista M. Sarmento, informava ao Secretário de Estado em correspondência do dia 14 de julho:

Na conferência que tive com os ditos oficiais da Câmara lhes expus todas as circunstâncias, que em uma conjuntura tão crítica são visíveis, e suposto constituíram procurador com plenos poderes, sem restrição alguma, como lhe insinuei, é apótema do General Gomes Freire, que as gentes das Minas só fazem o que lhe mandam, e nada do que lhe pedem. Ao dito procurador instruí vocalmente, e achou certo que esta Comarca, ainda que a mais pobre, e impedida por causa dos diamantes, falta de mineiros e atenuada com as embrulhadas de Caldras., sempre no seu tanto e à proporção, não há de ficar menos airosa do que as mais5.

1 Relato do cônsul britânico Edward Hay. Apud. MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxos do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp.21-22. 2 MAXWELL, Kenneth., Op.cit.p.24. 3 Manuscritos avulsos relativos a Minas Gerais do Arquivo Histórico Ultramarino Cx. 70, Doc.41 (Daqui para frente citarei: AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-Cx.70, Doc.41) 4 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-cx.70, docs.7 e 8. 5 AHU-Con.Ultra.-Brasil/RJ-cx.84 doc.19523.

Page 3: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

3De Vila Rica, os membros da câmara reunidos em seção do dia 14 de julho,

também davam notícias sobre o subsídio que se pretendia estabelecer para ajudar na reconstrução da cidade6. A câmara de São João Del Rei informava ao rei em correspondência do dia 17 do mesmo mês as iniciativas que tomaram no sentido de darem sua contribuição7. Os camaristas de Mariana não ficaram atrás, e no dia 24 informaram a D.José sobre a obtenção do subsídio para fazer frente às conseqüências do dia 1o de novembro do ano anterior8.

Depois de várias propostas apresentadas sobre a melhor maneira da capitania contribuir para a reconstrução de Lisboa, ficou decidido que o subsídio voluntário seria cobrado nas contagens e registros sobre as mercadorias que por ali entrassem. A contribuição deveria ter o tempo certo de duração de dez anos mas, mesmo sob o constante protesto dos mineiros, acabou sendo prorrogado até 17789.

Embora as câmaras municipais em Minas se dispusessem a contribuir para a reconstrução de Lisboa, é impossível não pensar que o objetivo da ordem vinda do reino para informar o movimento das mercadorias que entravam na região, e listar secretamente os nomes dos homens mais ricos da capitania, não fosse sondar o terreno para definir que tipo de taxação extraordinária poderia ser mais adequada e eficaz de ser aplicada na região e quais as pessoas potencialmente mais abonadas para contribuir. Tanto é assim que na mesma correspondência em que o ouvidor do Serro Frio informava a Diogo de Mendonça Corte-Real sobre a reunião que tivera com os camaristas de Vila do Príncipe quanto a importância da comarca colaborar, dava também notícia do envio da listagem das pessoas abonadas que havia elaborado. Dizia o ouvidor:

Remeto a V.E. a relação das pessoas ricas destas Minas, e vai feita com toda a verdade, e se não fosse preciso remetê-la já, iriam as mais comarcas com a mesma individuação, que vai a minha. Se for à presença de V.M., peço a V.E. a mande primeiro copiar, que eu não o faço, por não arriscar o segredo, e no breve tempo de 8 dias, não sei como fiz tanto, sem faltar a expedição da frota10.

Outro indicador da premência da coroa em conseguir imediatamente novas fontes de recursos, pode ser visto na mesma carta quando o ouvidor, João Evangelista M. Sarmento, dava sua opinião acerca da informação recebida sobre a remessa de 600 hábitos da Ordem de Cristo mediante donativos e ainda sugeria outra forma de aumentar o rendimento da coroa:

Do Rio de Janeiro se avisou vinham 600 Hábitos de Cristo para estas Minas, a cinco mil cruzados de donativo cada um, livres de mecânica,e não seria mau expediente, segundo a minha fraca inteligência para se tirarem dois milhões e meio suavemente, outros11. Assim, embora não esteja dito explicitamente que o objetivo da listagem dos

homens abastados fosse definir as pessoas mais capacitadas a contribuir com a coroa para a reconstrução de Lisboa, o fato dela ter sido solicitada tão proximamente ao terremoto, nos faz deduzir que era esta a sua finalidade.

Na documentação avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino relativa a Minas Gerais, encontramos a carta resposta do provedor da fazenda com o cumprimento da 6 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-cx.70 doc.10. 7 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-cx.70 doc.17 e 18. 8 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-cx.70 doc.37. 9 MADEIRA, Mauro de Albuquerque. Letrados, fidalgos e contratadores de tributos no Brasil colonial. Brasília: Coopermídia, Unafisco/Sindifisco, 1993, p.110. 10 AHU-Con.Ultra.-Brasil/RJ-cx.84 doc.19523. 11 Idem.

Page 4: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

4referida ordem. Datada de 25 de julho de 1756, a carta de Domingos Pinheiro listava os nomes de 1.061 homens de negócios, mineiros e roceiros que vivem nestas Minas mais abastados. Vinham separados por comarcas e trazia indicado o local de residência e a ocupação de cada um deles12. Domingos Nunes Vieira, intendente da comarca de Sabará, também respondera ao secretário de estado no dia 24 de julho do mesmo ano, enviando a relação das fazendas que entravam nas Minas e uma lista dos homens abastados das quatro comarcas destas Minas. A lista de nomes contida neste documento é idêntica à remetida pelo provedor da fazenda e parece ser uma cópia daquela13.

Entre os documentos pertencentes à capitania do Rio de Janeiro encontramos a carta resposta do ouvidor da comarca do Serro Frio, já citada anteriormente. O ouvidor João Evangelista Sarmento foi mais conciso e listou somente 177 nomes, separados por comarcas. Embora não estabelecesse a ocupação, o ouvidor apontava a riqueza estimada de cada homem listado. Nessa relação, os nomes da comarca do Serro Frio vinham acompanhados de um pequeno texto em que o ouvidor dava detalhes sobre a idade, o estado civil e a situação financeira da pessoa. A diferença tão grande entre o número de pessoas citadas nas duas listas revela critérios bastante díspares daquelas duas autoridades para elaborarem a listagem. Tal disparidade talvez se explique pela opção do ouvidor do Serro Frio em só listar aqueles moradores abastados que vivem sem opressão, nem empenhos, e com o cabedal declarado, e suposto nesta comarca haja mais pessoas que tenham nela fábrica de escravos e roças, como o vivem em empenhos, não vão compreendidos na lista14.

O propósito deste trabalho é investigar o perfil, principalmente econômico destes homens, mas também, em alguma medida, sua origem e sua inserção política e social nas Minas do século XVIII. Para tanto, partimos das listagens referidas acima. Privilegiamos a lista mais abrangente, elaborada pelo provedor da fazenda, Domingos Pinheiro. A do ouvidor do Serro Frio, mais reduzida, só será utilizada para uma análise comparativa do montante das fortunas.

Restringimos a análise aos homens ricos das comarcas de Vila Rica e Rio das Mortes. Ao todo são 443 nomes distribuídos pelos quatro termos que compunham as duas comarcas. Procuramos levantar o maior número possível de informações para cada um dos nomes listados em dois diferentes grupos de documentos. O primeiro refere-se à documentação cartorária e compõe-se, fundamentalmente, de inventários post-mortem e testamentos. O segundo, é formado por requerimentos, representações, certidões, cartas, consultas, provisões, etc., que compõem a documentação avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino relativa a Minas Gerais.

Em relação aos inventários e testamentos, nos limitamos ao levantamento dos processos existentes para cada homem rico nos arquivos correspondentes à localidade de moradia indicada na listagem. Assim, só fizemos o levantamento dos homens ricos do termo de Ouro Preto no arquivo da Casa do Pilar (CPOP); dos moradores do termo de Mariana no arquivo da Casa Setecentista (CSM); e dos residentes nos termos de São João Del Rei e São José, no arquivo do Museu Regional de São João Del Rei (MRSJDR). Conseguimos localizar inventários e/ou testamentos para 86 homens ricos (19,4% do total de nomes). No entanto, só foi possível obter informações sobre o montante da fortuna para 75 deles, que representam 17% do total dos nomes listados. O ideal teria sido buscar os nomes dos homens listados das duas comarcas em todos os arquivos que reúnem a documentação cartorária da região. Acreditamos inclusive, que este procedimento nos

12 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-, cx.70, doc.41. 13 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-cx. 70, doc.40. 14 AHU-Con.Ultra.-Brasil/RJ, cx.84, doc.19524.

Page 5: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

5permitiria identificar possíveis movimentos migratórios destes homens dentro da capitania15.

Embora o número de inventários e testamentos localizados seja pouco representativo para o total dos nomes listados, a análise das informações neles contidas é útil para a identificação deste grupo, principalmente quando cruzadas com os dados encontrados nos documentos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e também com aquelas indiretamente recolhidas sobre alguns dos listados na documentação cartorária levantada. Concretamente, conseguimos montar um banco de dados no qual registramos pelo menos um tipo de informação para 275 dos nomes listados, além daquelas já presentes na listagem do provedor da fazenda. Além disso, lançamos mão do recurso de comparar os dados relativos a estes homens listados como os mais ricos, com aqueles recolhidos a partir de uma amostragem mais ampla de inventários tomados de 10 em 10 anos nas mesmas comarcas. Este recurso nos permitiu estabelecer as diferenças e as aproximações deste grupo com o restante da população das Comarcas de Vila Rica e Rio das Mortes.

Para os homens ricos do termo de Mariana, com os quais já vínhamos trabalhando há mais tempo, fizemos uma investigação um pouco mais ampla. Além da documentação já citada, também consultamos processos de habilitação para a Ordem de Cristo existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) em Lisboa.

Antes de passarmos à análise da documentação relativa aos homens das comarcas de Vila Rica e Rio das Mortes, vejamos alguns indicadores mais genéricos que as duas listagens nos permitiram estabelecer.

TABELA 1 Ocupação dos homens ricos na listagem de 1756 por comarcas

Ocupação Capitania CVR CRM CRV CSF

Roceiros*1 105 27* 24 38 16 % 9,9 8,1 21,6 7,5 14,6

Faz. de gado 50 - - 49 1 % 4,7 - - 9,6 0,9

Negócios 272 59 32 144 37 % 17,8 17,8 28,9 28,3 33,6

Mineração 529 225 29 251 24 % 49,9 67,8 26,1 49,4 21,8

Ocupados no contrato

26 - - - 26

% 2,5 - - - 23,6 Outros*2 23 7 - 10 6

% 2,1 2,1 - 2,0 5,5 S/identificação 56 14 26 16 -

% 5,3 4,2 23,4 3,2 - Total 1.061 332 111 508 110 Fonte: Lista dos homens mais abastados da capitania feita pelo provedor da fazenda Domingos Pinheiro. AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-cx. 70 doc.41. Obs.: Os termos roceiro e fazenda de gado são as designações que aparecem na lista. *1 Inclui 8 “senhores de engenho”, todos residentes no termo de Mariana. *2 Escrivães, boticários, inquiridor, cirurgiães, advogado e “abastados”.

15 Atualmente contamos com o financiamento da FAPEMIG e do CNPQ para a realização deste levantamento.

Page 6: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

6Para o conjunto da capitania, a mineração era a atividade que ocupava a

maior parte dos homens ricos (49,9%), seguida pela de negociar (25,6%). Partindo do fato de que a listagem foi elaborada em um período ainda considerado de auge minerador, não surpreende que assim fosse. No entanto, a tabela 1 revela também que havia nuances regionais bastante claros diferenciando as quatro comarcas. O que os dados desta tabela nos permitem constatar é que, em cada comarca existiam atividades específicas, distintas da mineração, com capacidade de conduzir ao enriquecimento aqueles que a elas se dedicavam. Em cada uma delas, estas atividades tinham diferentes pesos, expressando distintas vocações econômicas das regiões. Na comarca de Vila Rica aproximadamente dois terços dos homens considerados ricos eram mineradores, 17,8% negociantes e somente 8,1% se dedicavam à agricultura. No Rio das Mortes a maior parte dos ricos (28,9%) se dedicava a negociar e 26,1% estavam ocupados na mineração. Esta foi a comarca em que a agricultura teve maior peso no enriquecimento dos homens listados, chegando a ocupar 21,6% deles. No Rio das Velhas a mineração era a atividade mais freqüente entre os ricos, vindo logo a seguir os negócios. Nessa comarca merece destaque a criação de gado que permitiu que 50 homens fossem alçados à categoria de abastados e representavam 9,6% dos listados. A maior proporção de negociantes foi encontrada entre os ricos do Serro Frio, 33,6%. Nessa comarca, negociar era um bom negócio. Se considerarmos que o registro “ocupado no contrato” se referia à mineração, temos que, também nessa comarca a mineração era a atividade que ocupava a maior parte dos homens abastados.

Estes dados reforçam os argumentos presentes na historiografia mais recente de que, nas Minas Gerais do século XVIII, embora dominante, a mineração não era a única atividade capaz de permitir o enriquecimento16. Negociar, ou se dedicar à agropecuária, também eram possíveis vias para se ter acesso ao ouro ou, pelo menos, para ser considerado um homem abastado. Além disso, é preciso estar atento para o fato de que a ocupação listada era a atividade principal do homem rico mas provavelmente não a única. Grande parte da historiografia sobre o período tem demonstrado que prevalecia entre os homens abastados dessa região uma tendência à diversificação das suas atividades econômicas, sendo as unidades produtivas mais diversificadas justamente aquelas mais bem sucedidas17.

Para estabelecer uma medida do que era ser considerado rico na sociedade mineira do século XVIII, calculamos a fortuna média destes homens a partir da avaliação feita pelo ouvidor do Serro Frio e também pelos dados dos inventários e testamentos que levantamos. A tabela 2 apresenta estes dados.

TABELA 2

Comparação entre a fortuna média dos homens ricos na listagem de 1756 e nos inventários e testamentos, por comarcas

Listagem do ouvidor do Serro Frio Inventários e testamentos Moeda Geral CVR CRM Geral CVR CRM Libras18 9.563,000 9.367,089 9.113,924 4.190,003 3.520,458 5.802,998

16 ALMEIDA, Carla Maria C. de. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas colonial. Niterói, 2001. Tese de doutorado. Departamento de História da UFF; CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999. 17 ALMEIDA, Carla M.C. Op.cit. 18 A conversão dos valores em mil-réis para libra foi feita para permitir a comparação com outros trabalhos que utilizam este procedimento, principalmente quando tratam do século XIX. Para a conversão tomamos como referência os estudos de Mircea Buescu que afirma que o valor do real ficou constante durante durante todo o século XVIII à razão de 3,555 réis por libra esterlina-ouro. BUESCU, Mircea. 300 anos de inflação. Rio de Janeiro: APEC, 1973, p.106.

Ricardo Vieira
regionais bastante claros diferenciando as quatro comarcas. O que os dados desta tabela nos permitem constatar é que, em cada comarca existiam atividades específicas, distintas da mineração, com capacidade de conduzir ao enriquecimento aqueles que a elas se dedicavam. Em cada uma delas, estas atividades tinham diferentes pesos, expressando distintas vocações econômicas das regiões. Na comarca de Vila Rica aproximadamente dois terços dos homens considerados ricos eram mineradores, 17,8% negociantes e somente 8,1% se dedicavam à agricultura. No Rio das Mortes a maior parte dos ricos (28,9%) se dedicava a negociar e 26,1% estavam ocupados
Ricardo Vieira
A maior proporção de Nessa comarca, negociar no contrato” se referia à
Ricardo Vieira
negociantes foi encontrada era um bom negócio. mineração, temos que,
Page 7: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

7Mil-réis 33:996$465 33:300$001 32:399$999 14:895$460 12:515$228 20:629$657

No de processos: 75 53* 22 Fontes: Inventários e testamentos da CSM, CPOP e MRSJDR. AHU-Con.Ultra.-Brasil/RJ, cx.84 doc.19523. * Não foi possível estabelecer o monte-mor de um dos inventariados de Vila Rica. Para além da possível imprecisão do ouvidor João Evangelista e da pouca representatividade dos dados que levantamos, duas ordens de fatores devem ser levadas em conta para o entendimento das diferenças de valores das fortunas médias reveladas pelas duas fontes. Primeiramente é preciso considerar que a lista registra um período de maior preponderância da mineração. Além disso, enquanto a lista reflete um momento mais “produtivo” da vida do indivíduo, a documentação cartorária exibi a sua situação numa fase tendencialmente descendente. Sendo assim, é compreensível que, enquanto pela lista de 1756 a fortuna média de um homem abastado em Vila Rica era superior a dos ricos moradores do Rio das Mortes, pelos inventários e testamentos, que expressam um contexto econômico modificado e um momento posterior de suas vidas, a situação se invertesse. Neste momento, enquanto o monte-mor médio do grupo em Vila Rica era de 3.498,714 libras, no Rio das Mortes chegava a 5.802,998 libras.

Quando separamos os dados da documentação cartorária em dois subperíodos, a diferenciação da situação destes homens nas duas comarcas fica ainda mais clara.

TABELA 3

Monte-mor médio dos homens ricos das duas comarcas por períodos 1750-1779 1780-1800

Moeda Geral CVR CRM Geral CVR CRM Libras 4.289,835 3.739,757 5.447,894 3.821,872 2.845,691 8.051,991

Mil-réis 15:250$363 13:294$836 19:367$263 13:586$754 10:116$431 28:624$828 No.processos 59 40 19 16 13 3

Fontes: Inventários e testamentos da CSM, CPOP e MRSJDR. Genericamente, em Vila Rica, os homens considerados ricos em 1756 foram se tornando cada vez mais pobres, já que, o monte médio daqueles falecidos a partir de 1780 decresceu sensivelmente em relação aos que faleceram em data anterior. Contrariamente, os abastados da comarca do Rio das Mortes tiveram possibilidades de aumentar suas fortunas, acompanhando a maior dinamização econômica da região. Analisemos agora a composição das fortunas dos homens ricos para os quais possuímos os inventários post-mortem. Inicialmente vamos comparar a composição do patrimônio destes homens com a dos inventariados possuidores de fortunas superiores a 2000 libras, presentes na amostragem mais abrangente que montamos a partir do levantamento de todos os processos de inventários existentes nos arquivos da CSM, da CPOP e do MRSJDR, tomados de 10 em 10 anos. A tabela 4 nos permite perceber alguns traços comuns, mas também algumas particularidades em cada grupo. Nos dois casos as dívidas ativas representavam o ativo de maior destaque no conjunto das fortunas. Entre os homens ricos chegavam a conformar 33,0% do total do patrimônio e entre os inventariados da amostragem, ficava em torno de 30%. Além de indicar uma das mais importantes possibilidades de investimentos para estes homens, este dado também indica que estes grupos eram os detentores do crédito na sociedade mineira, principalmente se levarmos em conta que o percentual das dívidas ativas nas menores faixas de fortuna era muito inferior19. 19 ALMEIDA, Carla M.C. Op.cit.

Ricardo Vieira
possibilidades de investimentos para estes homens, este eram os detentores do crédito na sociedade mineira, conta que o percentual das dívidas ativas nas menores
Page 8: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

8

TABELA 4 Composição (%) da riqueza, em mil-réis, dos homens ricos e dos inventariados das

maiores faixas da amostragem – 1750-1800 Ativos Homens ricos Inventariados da amostragem com

fortunas superiores a 2.000 libras Dinheiro 1,20% 5,64% Metais 3,71% 1,33% Comércio 0,01% 13,14% Jóias 1,42% 0,83% Móveis 1,82% 1,31% Instrumentos 1,05% 0,88% Imóveis 26,73% 23,36% Colheitas 0,43% 0,29% Rebanho 2,31% 3,82% Escravos 28,17% 18,91% Dívidas ativas 33,00% 30,27% Outros 0,15% 0,22% Total de inventários

100 49

100 20

Fonte: Inventários post-mortem da CSM, CPOP e do MRSJDR. Os homens ricos tinham seus recursos secundariamente investidos em escravos, que vinham seguidos de perto pelos investimentos em bens imóveis. Na composição do patrimônio dos inventariados da amostragem, estes dois ativos tinham uma participação consideravelmente menor do que entre os homens da lista, ao mesmo tempo em que os bens de comércio e as moedas se destacavam muito mais. O que sugere que, entre os inventariados mais ricos da amostragem, havia um maior comprometimento das fortunas com as atividades mercantis do que entre os homens da lista.

Dentro do grupo dos homens ricos, os negociantes apresentavam fortunas médias superiores à dos produtores. Enquanto o monte-mor de um negociante era de 4.651,673 libras esterlinas, o dos produtores não passava de 3.580,256 (tabela 5). Mesma situação encontrada para o Rio Grande do Sul, onde a fortuna média dos comerciantes era muito superior a dos estancieiros20.

TABELA 5

Monte-mor e número de escravos médios nos inventários dos homens ricos negociantes e produtores

No processos Monte-mor médio No médio de escravos Libras Mil-réis Negociantes 9 4.651,673 16:536$697 10 Produtores 48 3.580,256 12:727$810 37 Fonte: Inventários post-mortem da CSM, CPOP e do MRSJDR. Separando os produtores por tipos de atividades desenvolvidas, percebemos que as propriedades diversificadas apresentavam um tamanho médio de fortuna superior às especializadas. As propriedades mais bem sucedidas eram aquelas que se dedicavam à agropecuária com um monte médio de 5.374,149 libras. No entanto, as unidades produtivas que empregavam maior número de escravos eram as agropecuárias/mineradoras que possuíam em média 51 cativos. Se a isto acrescentarmos o fato de que, entre as unidades 20 OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio grande de SãoPedro, 1737-1822. Niterói, 1999. Tese de doutorado. Departamento de História da UFF. Brading encontra situação semelhante no México: BRADING, D. A. Mineros y comerciantes em el México Borbónico (1763-1810). México: Fondo de Cultura Econômico, 1991.

Ricardo Vieira
Escravos 28,17% 18,91% Dívidas ativas 33,00% 30,27% Outros 0,15% 0,22%
Page 9: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

9produtivas especializadas, as mineradoras apresentavam maior número médio de cativos e que as agrícolas/mineradoras, embora com monte médio muito inferior ao das dedicadas a agropecuária, possuíam um plantel médio muito superior àquelas, chegamos à conclusão de que, o desenvolvimento da atividade mineradora demandava um maior número de escravos do que a agropecuária.

TABELA 6 Monte-mor e número de escravos médios nos diversos tipos de unidades produtivas

dos homens ricos

Tipos de Ups No processos Monte-mor médio Média de escravos Libras Mil-réis Agrícola 2 2.132,130 7:579$722 24 Mineradora 15 2.622,138 9:321$701 26 Agrícola/mineradora 8 2.550,509 9:067$059 37 Agropecuária 7 5.374,149 19:105$099 26 Agropec/mineradora 16 4.130,693 14:684$613 51 Fonte: Inventários post-mortem da CSM, CPOP e do MRSJDR. Mas afinal, quem eram efetivamente estes homens ricos possuídores de fortunas com as características descritas acima? Que tipo de inserção tinham naquela sociedade? Vejamos alguns indicadores úteis para que possamos traçar o perfil desses homens. 1. Os homens que vêm do norte

Trabalharemos inicialmente com os dados disponíveis sobre a naturalidade dos homens listados como ricos. A tabela 7 revela que a presença de pessoas procedentes de outras capitanias era mínima entre estes homens, somente 6,17%, sendo dois naturais de São Paulo, dois do Rio de Janeiro e um do Bispado de Pernambuco. Seguindo as tendências encontradas para a totalidade da amostragem de inventários já citada e confirmando as considerações já feitas pela historiografia21 para a população das Minas como um todo, também entre os homens ricos, havia uma preponderância dos portugueses. Dentre estes, predominavam os provenientes das regiões rurais do norte (tabela 8).

TABELA 7 Naturalidade dos homens ricos (para os quais temos informações)

Geral CVR CRM Local No % No % No % Português 71 87,66% 53 91,38% 18 78,26% Ilhéu 5 6,17% 3 5,17% 2 8,70% Outras caps. 5 6,17% 2 3,45% 3 13,04% Total 81 100 58 100 23 100 Fonte: Inventários e testamentos da CSM, CPOP e MRSJDR; HOC/ATT; AHU/MG

TABELA 8

Procedência dos homens ricos portugueses (para os quais temos informações) NORTE CENTRO SUL Total

Número 47 17 1 65 % 72,3% 26,2% 1,5% 100

Fonte: Inventários e testamentos da CSM, CPOP e MRSJDR; HOC/ANTT; AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG

21 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil e Portugal, 1750-1808. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999.

Page 10: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

10 Estevão Gonçalves Fraga, como a grande maioria dos mineiros do século XVIII e dos homens ricos listados em 1756, era português, natural da província do Minho22. Ao ser citado na lista estava com 31 anos. Sua história é emblemática da trajetória de muitos outros homens ricos.

Ainda muito jovem viera para Minas Gerais para a casa de um tio por o mandar buscar para sua companhia por este não ter parentes ao pé de si. O tio, João Gonçalves Fraga, era cavaleiro professo da Ordem de Cristo e coronel, morador no Morro de Bento Rodrigues do Ribeirão do Carmo, mineiro muito rico e pessoa das principais daquele terreno. Estando nas Minas o tio lhe entregou a administração de suas lavras e engenhos de tirar ouro e dentro de pouco tempo lhas vendeu e muitas herdou do dito coronel 23. Quando em 1765 se habilitou para ingressar na Ordem de Cristo, apresentava o título de Sargento Mor das Ordenanças. Ao lhe fazerem as provanças para se habilitar, todas as testemunhas foram unânimes em afirmar que, tanto o tio quanto ele próprio, se tratavam sempre com muita nobreza, com criados e capelão com a maior grandeza das principais pessoas daqueles estados24.

O único aspecto em que a trajetória deste homem rico difere da maioria dos outros que se habilitaram diz respeito à ausência de mecânica nele, nos avós ou nos pais. Por isso mesmo, foi dos poucos casos de que dispomos, em que seria habilitado para receber o hábito sem lhe ser imposta condição alguma.

Analisando especificamente os comerciantes atuantes nas Minas Gerais da primeira metade do século XVIII, Júnia Furtado constatou que o comportamento desta população seguia os padrões característicos da estrutura familiar predominante no norte de Portugal. Ou seja, altos índices de descendência ilegítima, casamentos tardios e predominância de celibatários 25. Nossos dados, por se referirem a um grupo social distinto, inverte a tendência de comportamento encontrada pela autora para os comerciantes, principalmente no que diz respeito ao estado civil. Entre os homens ricos predominavam os casados indicando um maior enraizamento na sociedade local (tabela 9). Além disso, 62,5% dos homens casados possuíam descendentes legítimos.

TABELA 9 Comparação entre o estado civil do grupo mercantil e dos homens ricos

COMERCIANTES HOMENS RICOS Solteiro Casado Total Solteiro* Casado Total

NÚMERO 81 42 123 34 56 90 % 65,9 34,1 100 37,8 62,2 100

Fonte: Comerciantes: FURTADO, 1999: 156 - Homens ricos: Invs.e tests. da CSM, CPOP e MRSJDR; HOC/ATT; AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG - * Incluindo o caso de um clérico.

Pelos dados de que dispomos a freqüência da ilegitimidade não pode ser considerada muito elevada entre os homens ricos. Como era de se esperar, entre os homens ricos, a presença de filhos ilegítimos era maior entre os solteiros. Dos 86 homens para os quais temos o testamento e/ou inventário, 12 possuíam descendentes ilegítimos, sendo 3 deles casados e 9 solteiros. Portanto, somente 5,3% dos homens casados deixaram registros sobre filhos naturais. Já entre os solteiros, este era um padrão de estrutura familiar mais difundido. Entre estes últimos a paternidade alcançava 27,3%. De qualquer modo, é interessante observar que quando a paternidade desta prole ilegítima era comprovada, estes 22 ANTT,HOC, Letra E, mç.2-n.5/1765. 23 ANTT,HOC, Letra E, mç.2-n.5/1765. 24 ANTT,HOC, Letra E, mç.2-n.5/1765. 25 FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, pp.154-156.

Ricardo Vieira
XVIII e Minho22. trajetória de
Page 11: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

11indivíduos tinham seu direito de herança resguardado fosse o pai solteiro ou casado, referendando a tradição do direito português neste campo.

O testamento de Francisco Gonçalves de Moraes, morador no Furquim, termo de Mariana, nos informa de maneira contundente a existência de prole ilegítima entre estes homens solteiros. Em seu testamento instituiu 11 herdeiros universais, todos filhos ilegítimos: Ana, João, Jerônimo, Joaquim, José e Luíza, filhos dele com Andreza Ferreira, parda forra moradora que foi na freguesia do Furquim; Clara, Maria, Águida e Francisco foram deixados forros em seu testamento e reconhecidos como seus filhos, tidos com uma sua escrava de nome Maria Crioula que também alforriava nesta ocasião; e ainda, a uma outra sua filha que não sabia dizer o nome que foi enjeitada na casa de João Pacheco morador no Arraial da Cachoeira do Brumado filha de mãe incógnita 26. O mesmo padrão de ligações ilegítimas pode ser visto no caso do testamento e inventário de Lourenço Pereira Neves. Ao falecer em 1762 foi apontado como solteiro e pai de três filhos naturais cada um havido com uma mulher de cor (forra ou escrava). Eram seus filhos, Quitéria Pereira, casada com Antônio Gonçalves de Araújo (inventariante do defunto), filha de Anastácia crioula, escrava dele inventariado; Ana Pereira, casada com José Corrêa de Castilho, filha dele com a parda Ana, escrava de Antônio Gomes da Rocha; e Francisco Pereira filho da forra Catarina parda27. O inventário de Francisco Pereira Lopes apresenta uma história de ilegitimidade não tão transparente quanto as anteriores, mas reveladora do poder da prática portuguesa de resguardar o direito à herança aos filhos gerados em quaisquer circunstâncias 28. Tendo falecido em 1764 este morador da freguesia do Inficionado deixara viúva Micaela da Anunciação e em seu testamento, feito dois anos antes de sua morte, aparecia referida sua filha Brígida Teresa da Encarnação que vivia como religiosa professa no Convento de São Gonçalo da Ilha Terceira. Depois de realizada a partilha de seus bens, surge a figura de Marta Pereira dizendo-se filha do inventariado e que, através de seu marido André Rodrigues, fazia um pedido de anulação do testamento de seu pai 29 .

O resultado do pleito foi a realização de uma nova partilha da parte pertencente a meação do defunto, com a qual, esta filha foi então contemplada. Este caso nos leva a crer que, também para as Minas do século XVIII, se aplicam as afirmações de António Manuel Hespanha sobre o direito de família no Antigo Regime português onde (...) filhos, são antes de mais, os que o são pelo sangue, independentemente de terem nascido na constância do casamento30.

2. O acesso às mercês reais Alguns outros indicadores ajudam a complementar o quadro de inserção destes indivíduos naquela sociedade e nos levam a afirmar que, além de serem considerados os homens mais abastados da região, eram também dos principais da terra. Riqueza, privilégios e destaque social, pareciam andar junto. Vejamos os indicadores que nos permitem fazer tal afirmação.

QUADRO 1 Indicadores da inserção político-social dos homens ricos Dos 275 nomes para os quais temos alguma informação:

Total % dos 275 Tipo de informação 172 62,5% Recorreram alguma vez ao Conselho Ultramarino 148 53,8% Possuíam patente militar

26 CSM, cód.151, auto3177,Io Of. 27 CSM, cód.73, auto1580, IIo Of. 28 HESPANHA, António Manuel. A família. In: HESPANHA, António Manuel (org.) História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. 29 CSM, cód.138, auto2875, Io Of. 30 HESPANHA, António Manuel. Op.cit. p. 246.

Page 12: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

1244 16,0% Ocuparam cargos públicos

126 45,8% Mantinham algum tipo de relacionamento com pelo menos um outro homem rico Pelo menos 23,8% destas relações era de parentesco

Fontes: Inventários e testamentos da CSM, CPOP e MRSJDR; AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG e ANTT/HOC

Grande parte dos homens ricos para os quais temos alguma informação, suplementar àquelas da listagem, em algum momento de suas vidas recorreram ao Conselho Ultramarino com requerimentos para os mais diversos tipos de solicitações e de pedidos de mercês. Segundo João Fragoso, o sistema de mercês teve suas origens nas guerras de reconquista da Baixa Idade Média. Neste período, o rei concedia à aristocracia terras e privilégios como forma de recompensar os serviços prestados pelos seus súditos. Posteriormente este sistema foi transferido para as conquistas ultramarinas onde a Coroa concedia postos administrativos e militares (governador, provedor da fazenda, etc.) que podiam proporcionar, além dos vencimentos, privilégios mercantis, viagens marítimas em regime de exclusividade ou isenção de taxas e direitos alfandegários31.

É exatamente este tipo de situação que encontramos na documentação avulsa do AHU referentes aos homens ricos e nos processos de habilitação para ingressar na Ordem de Cristo. As solicitações de graças mais freqüentes eram os pedidos de confirmação de carta de sesmaria, confirmação de patente militar, pedidos de provimento em cargos públicos, pedidos de licença para passarem ao reino e até mesmo solicitações para que se fizessem valer os privilégios cabíveis a seus postos.

A historiografia mais recente tem lançado mão de noções derivadas da antropologia para o entendimento do tipo de relações que se estabeleceram entre os indivíduos e, particularmente, entre os súditos e o rei, nas sociedades de Antigo Regime, onde as instâncias políticas, econômicas, sociais e culturais se encontravam intimamente interligadas. A noção de economia do dom de Marcel Mauss32 é uma das vias que mais tem sido utilizada para compreender a sistema de mercês na sociedade portuguesa de Antigo Regime e mesmo no Brasil colonial33.

O rei tinha todo o poder para dar, mas também para retirar as mercês já concedidas, tanto que era necessária a constante confirmação das doações reais anteriores na mesma pessoa, ou em algum parente e, no caso do ultramar, era necessária a confirmação das mercês concedidas pelos intermediários reais (principalmente pelos governadores). No entanto, na prática, era quase um direito dos agraciados terem suas mercês re-confirmadas. António M. Hespanha e Ângela Xavier sugerem que, a prática de recompensar os serviços chegava a funcionar como um verdadeiro ‘debitem’, e no final do Antigo Regime, o direito dos sujeitos à remuneração dos serviços era um dos poucos que estes ainda possuíam frente ao rei 34. O direito a ser contemplado com graças pelos serviços prestados era tão premente que permitia, inclusive, que o agraciado transferisse a mercê alcançada.

31 FRAGOSO, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoí: Revista de História. Rio de Janeiro: v.1, p 45-122, 2000, p.69. 32 MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974. 33 XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p.340. 34 XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, António Manuel. Op.cit., p.347.

Page 13: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

13Foi o que ocorreu com Antônio Gomes da Silva, homem rico do termo de

Mariana que, em 1735, entrou com um processo para se habilitar a receber o Hábito da Ordem de Cristo com que VM foi servido fazer-lhe mercê. No primeiro momento, Antônio Gomes oferecia para ser habilitado e ter merecimento à graça, os serviços de seu avó e tio. Na realidade a mercê havia sido feita inicialmente ao tio, Bráz de Carvalho, em retribuição aos 24 anos de serviços prestados por seu avô, Manuel Dias de Carvalho (pai do Bráz), que servira como soldado ficando no encontro que com o inimigo houve no socorro que se deu a Angola com seis feridas. Como o tio não chegara a professar, Antônio Gomes argumentava que cabia a ele aproveitar aquele merecimento por ser do mesmo sangue35.

No momento da realização das provanças constatou-se que o pai e os avôs foram lavradores que faziam todo o serviço em sua fazenda mas não em alheios e que sua mãe e as duas avós eram mulheres de segunda condição. Por causa destes impedimentos a mesa julgou-lhe incapacitado para entrar na ordem. Só neste momento é que ele se dispôs a oferecer seus próprios serviços para ser dispensado e poder habilitar-se: e quando VM julgue que naquela qualidade de serviços (do seu avó) não cabe a graça da dispensa a que se não persuade, oferece, sendo necessário, os pessoais que tem feito nas Minas 36. Parece que, até então, guardava os seus próprios serviços para solicitação de uma graça futura.

Os serviços próprios que ofereceu nos informam sobre sua inserção na sociedade mineira e sobre sua trajetória, comum a muitos outros homens ricos. Por nove anos, servira no Rio de Janeiro em vários empregos, e nos postos de Alferes da Ordenança. Passara às Minas e desde então servia como Sargento-Mor da Ordenança do Morro de Mata Cavalos, distrito de Vila do Carmo, por patente concedida pelo governador e confirmada pelo rei. Em 1722, quando se fez reunir a junta com os procuradores das câmaras da capitania e com as pessoas principais dela para a criação da casas de fundição, ele dela participou, do que resultou oferecerem 12 arrobas de ouro de acréscimo à antiga contribuição do quinto, convindo zelosamente, e concorrendo para o acréscimo, no que fez serviço. Para a construção das casas de fundição concorreu ainda com o trabalho de seus negros e fez com que muitos moradores o imitassem. Em 1724 acompanhou uma leva de presos que se enviou das Minas para o Rio de Janeiro para serem enviados em socorro de Monte Vedio, para o que concorreu com metade dos gastos, que foram excessivos. Em 1725 serviu como almotacé da Vila do Carmo e em 1727 foi nomeado provedor daqueles distritos para a cobrança do donativo de 125 arrobas de ouro que aqueles moradores ofereceram para ajuda dos gastos dos felicíssimos casamentos de suas altezas. Em 1730 fora eleito vereador do senado da câmara e dos ditos serviços não tem recebido coisa alguma (...)37.

Depois de todos estes serviços pessoais oferecidos, como via de regra acontecia com os processos de habilitação deste período, os juízes foram favoráveis a dispensá-lo dos impedimentos, desde que pagando um donativo para a construção do “colégio” dos militares de Coimbra.

Este exemplo é emblemático do funcionamento da economia do dom, de como a mercê de ser provido em um cargo podia ser um receber (de outro lado, de dar) e ao mesmo tempo um retribuir (portanto também de receber), no sentido de que, ocupar postos públicos era servir ao Rei, ficando ambos constantemente obrigados a retribuir. Dar e receber podiam ter mão dupla. Ao mesmo tempo em que ser provido nestes postos e empregos eram graças que muitos almejavam alcançar, eram também entendidos pelos

35 ANTT, HOC, LetraA, Mç.49 – no.85/1735. 36 ANTT, HOC, LetraA, Mç.49 – no.85/1735. 37 ANTT, HOC, LetraA, Mç.49 – no.85/1735.

Page 14: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

14súditos como serviços prestados e, portanto, dignos de serem recompensados, principalmente se tivessem como comprovar que tiveram bom desempenho ao ocupá-los.

Embora numa perspectiva teórica distinta da anterior, talvez possamos aplicar aqui a noção de economia de serviços circular de Nuno Gonçalo ao trabalhar com o ethos da aristocraca portuguesa38. João Fragoso resumiu muito bem esta noção ao explicar o entendimento de Nuno Gonçalo sobre a aristocracia portuguesa no Antigo Regime:

Ela não vivia principalmente da propriedade da terra ou de outros negócios particulares, mas vivia e retirava seus rendimentos dos serviços prestados à República, ou melhor, das mercês concedidas por tais serviços. Segundo o autor, tratar-se-ia de uma economia de serviços circular, onde a elite cortesã monopolizava os principais cargos e ofícios no paço, no exército e nas colônias. Como remuneração por tais serviços, ela recebia novas concessões régias que poderiam ser acumuladas e que também poderiam adquirir a forma de novos serviços, como a administração de mais bens da coroa ou de postos com mais prestígio39.

Em menor proporção ao alcance social dos homens de que tratamos, nos parece que era exatamente o que ocorria com a elite mineira do século XVIII e o que, o caso da habilitação de Antônio Gomes para a Ordem de Cristo, exemplifica muito bem.

Algumas mercês eram passíveis não só de serem transmitidas entre familiares, como no caso analisado anteriormente, mas também de serem negociadas. Algumas vezes, têm-se a impressão de que existia um verdadeiro mercado de mercês. O processo de habilitação para o hábito da Ordem de Cristo do homem rico Manuel Ribeiro de Carvalho é um bom exemplo desta situação40.

Manuel era natural da cidade de Braga e, ao ser citado na lista de 1756 tinha a idade aproximada de 44 anos. Era bacharel formado pela Universidade de Coimbra e, desde 1736 se achava advogando nos auditórios de Vila do Carmo. Alguns anos antes (1747), entrara com um processo para ser habilitado a receber o Hábito da Ordem de Cristo que adquirira por renúncia que dele fizera Theodósio Feliz Nunes Paes. A renúncia fora na realidade uma venda do hábito. Vejamos o desenrolar do processo.

Por decreto real de 24 de maio de 1746, o licenciado Theodósio Nunes de Loureiro havia sido agraciado na pessoa de seu sobrinho, Theodósio Feliz Nunes Paes, com a mercê do hábito e com 50$000 de tença, por ter embarcado na monção do ano de 1731 para a Índia no cargo de Promotor da Inquisição de Goa. Um novo decreto, datado de um mês depois da concessão da mercê, permitia ao Theodósio Feliz renunciar ao hábito. Na verdade, o que de fato acontecia era a permissão real para a negociação da mercê, como demonstra o texto abaixo:

(...) e por se achar com anos, achaques e muita pobreza para poder receber o dito hábito, desejava se lhe concedesse faculdade de poder renunciar a dita mercê para com o produto remediar a sua indigência; em consideração do que e de se achar em pobreza e maioridade há por bem, conceder-lhe faculdade para renunciar o Hábito de Cristo com 50$000 de tença, na pessoa, ou pessoas que lhe parecer (...)41.

38 MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. O crepúsculo dos grandes(1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 1998. 39 FRAGOSO, João. Op.cit., pp.95-96. 40 ANTT, HOC, Letra M, Mç.45 – no. 25 /1747. 41 ANTT, HOC, Letra M, Mç.45 – no. 25 /1747.

Page 15: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

15

Foi assim que Manoel Ribeiro de Carvalho teve acesso ao hábito. Não sabemos quanto desembolsou pelo hábito, mas é certo que o fez. Feitas as provanças, também ele fora reprovado pela mesa. Em sua argumentação ao recorrer da sentença, pedia para ser dispensado, já que o impedimento não é sórdido, e é somente em avô materno. Para reforçar seu pedido oferecia também seus próprios serviços:

(...) obrados no emprego de Procurador Geral do Fisco Real e Curador Geral dos Órfãos na comarca do Ouro Preto, sem dispêndio nem salário algum como consta da certidão junta, e de outra também junta consta ter servido mais de 11 anos de Procurador e Curador dos Seqüestros feitos por parte da justiça, sem salário ou dispêndio algum com satisfação e limpeza de mãos e por este serviço não tem o suplicante sido remunerado(...) 42

Mais uma vez os serviços oferecidos eram relativos ao desempenho em cargos que anteriormente havia recebido como mercês. Como no caso de Antônio Gomes da Silva, Manuel Ribeiro também foi dispensado dos seus impedimentos dando 600$000 de donativo para os socorros da Índia43.

São freqüentes os casos em que os homens ricos recorreram ao Conselho Ultramarino para fazer valer suas provisões em postos militares ou burocráticos, solicitando para isso a benesse real, ao mesmo tempo em que lançavam mão da argumentação da tradição e do costume que informava (ou garantia) que tal sucessão ou provisão deveria ser aprovada. Segundo Hespanha e Xavier, algumas vezes o caráter “devido” de certas retribuições régias aos serviços prestados à coroa parece introduzir uma obrigatoriedade nos actos de benefícios reais, colocando o rei sujeito aos constrangimentos impostos pela economia de favores 44.

Vejamos um exemplo desse tipo de situação. Em 1802, João da Costa Azevedo, filho do homem rico Francisco da Costa Azevedo, já falecido, recorreu ao Conselho Ultramarino requerendo a mercê da propriedade do ofício de escrivão da câmara de Mariana, de que haviam sido proprietários seu avô e seu pai. A história que descreve para justificar o seu provimento é reveladora dos mecanismos de transmissão hereditária dos cargos, tão comum naquela sociedade.

No alvará de concessão do cargo a seu bisavô materno, Antônio Pereira Machado, datado do ano 1725, este fora considerado o primeiro povoador da dita terra, comprando muitas delas, a alguns homens que as não tinham fabricado, gastando para isso grande quantidade de ouro, e nelas lavrara e tirara muito ouro. Mas, com o passar do tempo o local foi povoado e, pela fertilidade das terras foram concorrendo a elas muitos moradores e edificaram nas terras lavradias do ouro em que tivera considerável perda, por ficar impossibilitado para poder lavrar. Uma ocasião em que o governador estivera no local dera a ele ½ légua de terra de sesmaria em braça, mas que erigindo-se depois disso a dita vila (...), largara graciosamente ao senado da câmara da dita vila a ½ légua de terra em quadra para seu logradouro e rocio. Por causa desta dádiva ficara falto de bens e, por isso fora agraciado com a propriedade do ofício de escrivão da câmara e para sua neta uma tença efetiva de 12$000 e o Hábito da Ordem de Cristo para quem com ela se casasse.

42 ANTT, HOC, Letra M, Mç.45 – no. 25 /1747. 43 ANTT, HOC, Letra M, Mç.45 – no. 25 /1747. 44 XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, António Manuel. Op.cit., p.347.

Page 16: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

16Por ser já muito velho, solicitara que a mercê fosse transferida para seu filho Pedro Duarte o que foi aprovado em 173145.

Em 1750, João da Costa Azevedo (que seis anos depois seria citado como homem rico) ,casado com Ana Maria de Jesus, filha mais velha de Pedro Duarte solicitava que o posto fosse confirmado em sua pessoa, já que, ainda em vida, seu sogro, juntamente com a mulher, lhe passara o cargo por não terem filho varão com o encargo de sustentar a esta e quatro filhas menores e juntamente de as dotar, por ficarem de suma indigência. Justificava a pertinência da reivindicação dizendo: por estar casado com a filha mais velha do proprietário, as quais costumava atender quando não havia filho varão46.

Por estes documentos percebemos que o sistema de transmissão hereditária de cargos era entendido como um direito que deveria ser garantido aos sucessores. Além disso, ficamos também sabendo como funcionava o sistema sucessório. Os cargos deveriam recair primeiramente nos filhos varões, preferencialmente, no primogênito. Somente na ausência destes é que o cargo poderia ser direcionado ao marido da filha mais velha. Em 1802 quando Francisco da Costa Azevedo, filho do homem rico João da Costa, recorrera para ser confirmado no cargo de que foram proprietários seu bisavô e avô maternos e depois seu pai, o fazia como filho mais velho do último proprietário seu pai, por se achar o primogênito constituído sacerdote47.

Praticamente todos os proprietários dos cargos mais importantes tinham direito a nomear serventuários e quase sempre nomeavam àquele que viria a sucedê-lo. João da Costa Azevedo fora nomeado pelo sogro ainda em vida. Este, por sua vez, nomeara a seu filho Francisco também em vida. Por isso, na prática, Francisco Gomes vinha servindo no dito ofício desde 1782 quando ainda era vivo seu pai.

Pelos documentos consultados nos avulsos do Conselho Ultramariano fica claro que grande parte dos homens listados como ricos em 1756, eram dos primeiros povoadores, ou a eles diretamente ligados. Embora não tenhamos como quantificar estas informações, o caso acima bem o ilustra. Também o já citado Antônio Gomes chegara nas Minas bem nos primeiros tempos, já que, em 1722 participara da junta de criação das casas de fundição. Neste aspecto, guardam alguma similaridade com o sentimento de conquistadores citado por Fragoso como um dos elementos que caracterizava a nobreza da terra no Rio de Janeiro do século XVII48.

O provimento em cargos militares era sinônimo de prestígio nas sociedades militarizadas do Antigo Regime. Sendo assim, o fato de 53,8% dos homens ricos serem detentores de patentes militares de oficiais revela que, além de abastados, eram também homens de algum prestígio naquela sociedade. Fátima Gouveia encontrou entre os camaristas do Rio de Janeiro um percentual de 72,8% indivíduos com títulos militares49. Considerando que o senado da câmara congregava os homens da mais alta qualidade parece-nos que um percentual de 53,8% é bastante significativo do destaque social dos homens listados em 1756, principalmente, se considerarmos que este é um número mínimo.

Todos os homens maiores de 16 anos deveriam ser enquadrados dentro das ordenanças, que eram circunscrições de recrutamento e treno milicial que existiam, em

45 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG- cx.162, doc.25. 46 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-, cx.162, doc.25. 47 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG - cx.162, doc.25. 48 FRAGOSO, João. Op.cit.,p.93. 49 GOUVEIA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa – o caso dos homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Revista Brasileira de História. São Paulo: v.18, n.36, p.297-330, 1998, p.317.

Page 17: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

17princípio, em todo o espaço da monarquia (...)50. Embora os postos de oficiais das ordenanças não fossem remunerados, eles controlavam esse factor de intimidação passível de afectar a vida das populações que era o recrutamento militar 51. Assim, as ordenanças funcionavam como fontes de poder local e de privilégios. Por isso mesmo, os postos de oficiais podiam, às vezes, ser motivo de dispustas entre os grandes de cada localidade.

Esse foi o caso da disputa travada entre o homem rico Antônio Luís Brandão, capitão da Companhia da Ordenança de Pé do arraial da Passagem, e o capitão João Batista de Carvalho da Ordenança de Pé do distrito do Morro de Santana. Em requerimento datado de 7 de março de 1746, o Capitão Antônio Luís Brandão solicitava ao rei a mercê de mandar declarar a sua antigüidade e preferência para que possa se beneficiar de todos os privilégios cabíveis ao seu posto52. Segundo o requerimento ele fora provido pelo governador em 1741 mas só foi confirmado no posto que vagou quando seu antigo ocupante se ausentou para o Rio de Janeiro. Diz o documento:

(...) cuja companhia se compõe de 140 soldados com seus oficiais em que foi provido pelo Capitão General Gomes Freire de Andrade em 7 de fevereiro de 1741 como consta da certidão junta e do registro que se fez do dito provimento e patente confirmada pela qual ficou adquirindo a preferência e graduação da antigüidade aos mais capitães, conforme o capítulo 2o do regimento, e porque não obstante a sua patente se achar primeiro confirmada e registrada se lhe opôs o Capitão João Batista de Carvalho da Ordenança de Pé do distrito do Morro de Santana que é mais moderno e não tem a sua patente com a mesma antigüidade confirmada nem a sua companhia à do suplicante por se compor só de 60 soldados (...)53

Pedia ao rei que declarasse a sua preferência mediante os critérios de antiguidade e maioria da companhia, previstos no regimento, para que pudesse então lograr todos os indultos e privilégios que lhe são concedidos54. Não sabemos o resultado do pleito. De qualquer forma, este caso nos informa que eventualmente as pendengas relacionadas aos privilégios cabíveis aos ocupantes dos postos militares precisavam ser resolvidas pela interseção real.

Com o Capitão-Mor das ordenanças de Vila Rica e cavaleiro da Ordem de Cristo, Antônio Ramos dos Reis, o homem rico de maior fortuna que localizamos, e autor do testamento mais detalhado que já tivemos em mãos, aconteceu algo semelhante. Em 1741, fizera um requerimento a D. João V solicitando mandar declarar quais as honras e o lugar que lhe corresponde em atos públicos e particulares, por o seu cargo não ter sido respeitado na festa realizada para celebrar o nascimento da Infanta55.

Antônio Ramos dos Reis era português, natural da freguesia de Santa Maria da Entrega, termo da cidade do Porto. Em 1761, quando registrara o testamento, estava residindo em Vila Rica onde tinha muitas propriedades urbanas e grandes serviços minerais. Viera para a colônia quando ainda tinha 9 anos de idade e, na cidade do Rio de Janeiro, se casou com Vitória dos Reis na Igreja da Candelária. Tinha uma filha e um filho (Frei Manoel) religiosos em Portugal e perdera um filho que, como ele, também era

50 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as comunidades. In: HESPANHA, António Manuel (org.). Op.cit., 1998, p.273. 51 Idem. 52 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG - cx.46, doc.41. 53 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG - cx.46, doc.41. 54 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG - cx.46, doc.41. 55 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-, cx.41, doc.10.

Page 18: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

18cavaleiro da Ordem de Cristo. Pelas informações do seu testamento, sua fortuna somava no mínimo 78:000$000, que era o preço pelo qual vendia quase todos seus bens ao seu sócio José Veloso Carmo, mas podia alcançar maior valor quando se somasse a eles algumas dívidas que se me devessem 56.

As recomendações que deixava a respeito do seu enterro e do destino a ser dado aos seus restos mortais, são demonstrações contundentes da riqueza e do prestígio de que gozava. Estipulava que, quando falecesse, seu corpo deveria ser amortalhado no hábito da Ordem de Cristo e enterrado na igreja matriz onde ordeno se dê a sepultura da grade para dentro. Deixava instruções detalhadas ao seu testamenteiro para a criação de uma colegiada na sua freguesia de origem no reino, para o que deixava verba estipulada. Conseguindo o seu testamenteiro fazê-lo, deveria no futuro transportar seus restos mortais para lá. Para isso, Antônio Ramos, deixava descrito os procedimentos a serem tomados quanto à transferência dos seus ossos que deveriam ir inicialmente para um baú de prata com chave que seria depositado dentro de outro maior, de jacarandá, e nele seria enviado para o reino para ser depositado na sua colegiada57.

Foi o mesmo Antônio Ramos que, em 1732 pedira a D, João V a mercê de o isentar de servir o ofício de Juiz de Órfãos de Vila Rica, em virtude dos afazeres de sua lavra58. Maior demonstração da riqueza e também do prestígio deste homem não podia haver. Segundo António Manuel Hespanha e Ângela Xavier, era freqüente que o prestígio político de uma pessoa estivesse estreitamente ligado à sua capacidade de dispensar benefícios(...) 59, ainda mais quando o cargo ao qual se renunciava era o de juíz de órfãos de uma vila tão importante. O que para muitos era considerado privilégio e benefício, para uns poucos, podia ser visto como uma obrigação da qual pleiteava-se ser dispensado. Já vimos como as mercês podiam ser encaradas como um benefício (graça), mas também como uma prestação de serviço (retribuir).

O cargo de juiz dos órfãos integrava os postos estratégicos da administração colonial capazes de permitir ao seu ocupante o que João Fragoso chamou de poupança social. Ao titular deste juizado cabia a guarda dos bens dos órfãos e em especial, a arca dos órfãos, o cofre onde era guardado todo o dinheiro, as dívidas e os rendimentos das fazendas herdadas dos pais falecidos 60. Tal cargo dava ao homem que o ocupava o poder de dispor dos bens, mas sobretudo do dinheiro depositado no cofre dos órfãos o que, em uma sociedade carente de liqüidez, lhe conferia muito poder. Não só porque, eventualmente, pudesse usar estes recursos em benefício próprio, mas também porque podia privilegiar aqueles que fossem de sua estima. Portanto, este cargo poderia conferir “privilégios” não só ao próprio juiz mas também a quem estivesse próximo dele.

O inventário do homem rico Antônio Afonso nos fornece um bom exemplo de como o juizado dos órfãos podia funcionar como uma espécie de banco, e desempenhar função semelhante a das misericórdias, estudadas em trabalho já clássico de Russel-Wood61. O inventário dos seus bens foi feito antes de seu falecimento pelo fato de estar mentecapto e furioso e, assim, incapaz de administrá-los. Na ocasião em que foi feito o inventário, Antônio Afonso estava vivendo em casa do Reverendo Padre Zacarias que ficou responsável pelos seus bens móveis e escravos. A maior parte de seu patrimônio,

56 CPOP, cód. 460, auto9753, Io Of. 57 CPOP, cód. 460, auto9753, Io Of. 58 AHU-Con.Ultra.-Brasil/MG-cx.22, doc.52. 59 XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, António Manuel. Op.cit., p.340. 60 FRAGOSO, João. Op.cit., 2000, pp.61-62. 61 RUSSEL-WOOD, A. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: UNB, 1981.

Page 19: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

19composto por várias barras de ouro e por diversas dívidas ativas, ficara depositada no cofre dos órfãos62.

No mesmo ano de 1782 começaram a surgir os pedidos de empréstimos no juizado, referindo-se especificamente ao dinheiro do dito mentecapto e furioso. Vejamos alguns exemplos. No final daquele ano, Joaquim Rodrigues fizera solicitação de empréstimo a juros da quantia de 250$000 para os quais oferecia alguns bens por hipoteca e fiador, abonado e “bão”. O crédito foi aprovado pelo prazo de um ano correndo juros. Outra solicitação de empréstimo aprovada pelo juiz foi feita por José Martins Guimarães, que assim justificava o pedido:

(...)que ele tem por notícia que no cofre deste juízo se acha de algumas heranças, dinheiro para se dar a juros, e porque o suplicante para a negociação que tem de molhados carece de 200$000 por tempo de seis meses com hipoteca de todos os seus bens que possui e por fiador José Anastácio morador no Padre Faria, homem “bão” e abonado63.

O pedido foi aprovado em 150$000 a serem pagos em seis meses. Também o curador nomeado para o demente recorreu ao juizado solicitando que lhe fossem entregues os bens móveis e escravos e também que lhe estipulasse (...) quantia diária para a sustentação do mesmo e da guarda que deve ter a vista para o vigiar dos perigos evidentes a que a cada instante se quer precipitar o mesmo mentecapto em ruína da sua vida, para o que ficou arbitrado que receberia 50/8 por ano64. Não satisfeito com esta quantia, o curador voltaria ao juizado dos órfãos pedindo novas somas de dinheiro porque o demente Antônio Afonso,

(...) necessitava de todo o vestuário, de sorte que não tem mais que um timão velho com que anda embrulhado, e de noite se cobre, e porque se deve tratar a custa de seu erário recolhido nos cofres deste juízo, recorre o suplicante (...) para que se lhe digne mandar-lhe dar 60$000 para vestuário e aparelho de cama, cuja quantia é muito limitada65.

Os pedidos foram aprovados e, em 1787, quando foi nomeado testamenteiro, por já ter o Antônio Afonso falecido, este solicitava a entrega do que havia nos cofres do juizado de órfãos e contestava as contas do curador. Segundo o testamenteiro, as despesas apresentadas pelo curador de 80$000 por ano, só com comedorias, eram exorbitantes, já que não era verossímel que se gastasse tanto com um miserável velho de 90 anos ou mais que apenas se alimentava com os ordinários frutos da mesma roça que a muito poderiam montar em 15/8 ou 16/8 por ano66. Pobre Antônio Afonso, que um dia já fora considerado homem abastado e que nos seus finais se viu à mercê de fraudulentos cuidados alheios.

Após esta tentativa de caracterização dos homens considerados os mais ricos ficam, então, algumas conclusões: a quase totalidade deles era composta por portugueses que migraram para a colônia vindos da região norte de Portugal e, no momento de sua morte, quase todos eram proprietários de terras e escravos; predominavam os homens casados, sendo a ilegitimidade uma prática comum dentro deste grupo. Eram homens que se destacavam na sociedade mineira fosse pelas patentes 62 CPOP, cód. 18, autos174 e 175, Io Of.. 63 CPOP, cód. 18, autos174 e 175, Io Of.. 64 CPOP, cód. 18, autos174 e 175, Io Of. 65 CPOP, cód. 18, autos174 e 175, Io Of. 66 CPOP, cód. 18, autos174 e 175, Io Of.

Ricardo Vieira
No mesmo ano de 1782 começaram a surgir os pedidos de empréstimos no juizado, referindo-se especificamente ao dinheiro do dito mentecapto e furioso. Vejamos alguns exemplos. No final daquele ano, Joaquim Rodrigues fizera solicitação de empréstimo a juros da quantia de 250$000 para os quais oferecia alguns bens por hipoteca e fiador, abonado e “bão”. O crédito foi aprovado pelo prazo de um ano correndo juros. Outra solicitação de empréstimo aprovada pelo juiz foi feita por José Martins Guimarães, que assim justificava o pedido: (...)que ele tem por notícia que no cofre deste juízo se acha de algumas heranças, dinheiro para se dar a juros, e porque o suplicante para a negociação que tem de molhados carece de 200$000 por tempo de seis meses com hipoteca de todos os seus bens que possui e por fiador José Anastácio morador no Padre Faria, homem “bão” e abonado63.
Page 20: Almeida, Carla. Homens Ricos Em Minas Colonial

20militares que a maioria ostentava, pela filiação às irmandades mais hierarquizadas ou pelos cargos da administração colonial que ocupavam. No período transcorrido entre ter sido listado como homem rico e o momento do falecimento, a trajetória desses homens teve desdobramentos muito particulares. Alguns ascenderam cada vez mais, outros não tiveram tanta sorte. Sem dúvida que estas trajetórias estiveram referendadas pelo contexto econômico das regiões em que estavam estabelecidos, mas também é certo que, a capacidade de cada um em estabelecer estratégias, fosse de casamento, de acúmulo de cargos e privilégios ou de diversificação eficaz de seus negócios, teria grande influência para o sucesso ou não de suas histórias particulares. A situação do mentecapto e furioso Antônio Afonso e do cavaleiro da Ordem de Cristo Antônio Ramos dos Reis são emblemáticos das duas possibilidades.