129
ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS REVISTA BRASILEIRA DE publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional ISSN 1517-4115

Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ISSN 1517-4115

Page 2: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAISPublicação semestral da ANPUR

Volume 6, número 1, maio de 2004

EDITOR RESPONSÁVELHenri Acselrad (UFRJ)

COMISSÃO EDITORIALGeraldo Magela Costa (UFMG), Marco Aurélio A. Filgueiras Gomes (UFBA),

Maria Flora Gonçalves (Unicamp), Norma Lacerda (UFPE)CONSELHO EDITORIAL

Ana Fernandes (UFBA), Carlos Bernardo Vainer (UFRJ), Carlos Roberto M. de Andrade (USP/São Carlos), Circe Maria da Gama Monteiro (UFPE), Clélio Campolina Diniz (UFMG), Flávio Magalhães Villaça (USP),

Frank Svensson (UnB), Frederico de Holanda (UnB), Jan Bitoun (UFPE), Lícia Valladares (IUPERJ), Marcus André B. C. de Melo (UFPE), Marta Ferreira Santos Farah (FGV/SP), Martim Smolka (UFRJ), Maurício Abreu (UFRJ), Milton Santos (USP) in memorian, Tania Bacelar (UFPE), Tânia Fischer (UFBA),

Wilson Cano (Unicamp), Wrana Panizzi (UFRGS) COLABORADORES DESTE NÚMERO

Andréa Zhouri (UFMG), Ester Limonad (UFF), Flavio Magalhães Villaça (USP), Gian Mario Giuliani (UFRJ), Gisela Aquino Pires do Rio (UFRJ), Henyo Trindade (UnB), José Antonio Fialho Alonso (FEE),

Lucia Machado Bógus (PUC/SP), Luiz Antonio Machado da Silva (UFRJ), Maria Célia Nunes Coelho (UFRJ), Roberto Luiz do Carmo (Unicamp), Roberto Monte-Mór (UFMG), Sandra Jatahy Pesavento (UFRGS), Vera F. Rezende (UFF)

PROJETO GRÁFICOJoão Baptista da Costa Aguiar

CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana BasagliaREVISÃO

Fernanda SpinelliASSISTENTE DE ARTE

Priscylla CabralFOTOLITOS

Join Bureau de EditoraçãoIMPRESSÃO

Assahi Gráfica e Editora

Indexado na Library of Congress (E.U.A.)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.6, n.1,2004. – : Associação Nacional de Pós-Graduação ePesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor responsável Henri Acselrad : A Associação, 2004.

v.

Semestral.ISSN 1517-4115O nº 1 foi publicado em maio de 1999.

1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Acselrad, Henri

711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-098

Page 3: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ARTIGOS

9 TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS – PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO E MOVIMEN-TOS SOCIAIS – Alfredo Wagner Berno de Almeida

33 PRIVATIZANDO O H2O – TRANSFORMANDO

ÁGUAS LOCAIS EM DINHEIRO GLOBAL – ErikSwyngedouw

55 COMITÊS DE BACIA NO BRASIL – UMA ABOR-DAGEM POLÍTICA NO ESTUDO DA PARTICIPAÇÃO

SOCIAL – Rebecca Abers e Margaret Keck

69 ATENAS, O OLIMPISMO À GUISA DE URBANIS-MO – Guy Burgel

85 A CONSTITUIÇÃO ESPACIAL DE UMA CIDADE

PORTUÁRIA ATRAVÉS DOS CICLOS PRODUTIVOS

INDUSTRIAIS – O CASO DO MUNICÍPIO DO RIO

GRANDE (1874-1970) – Solismar Fraga Martins eMargareth Afeche Pimenta

HOMENAGEM

103 O LOUCO – O PASSANTE – O AGENTE – O

CONCEITUADOR – Anne Querrien

MEMÓRIA DOS PRESIDENTES

115 ANPUR – CONSOLIDAÇÃO DO PAPEL DE AR-TICULAÇÃO ACADÊMICA E DE FÓRUM DE DEBATE

DE POLÍTICAS URBANAS E REGIONAIS 2001-2003– Maria Cristina da Silva Leme

RESENHAS

123 Dark Age Ahead, de Jane Jacobs – Lilian Fessler Vaz

125 Du Contre-pouvoir. De la subjectivité contestatai-re à la construction de contre-pouvoirs, de Miguel Bena-sayag e Diego Sztulwark – por Marcelo Calazans

128 DiverCidade, territórios estrangeiros como topogra-fia da alteridade em São Paulo, de Maura Pardini B. Vé-ras – por Maria do Rosário Rolfsen Salles

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

S U M Á R I O

V O L U M E 6 - N Ú M E R O 1 - M A I O 2 0 0 4

Page 4: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR

GESTÃO 2003-2005PRESIDENTE

Heloisa Soares de Moura Costa (IGC/UFMG)SECRETÁRIO EXECUTIVO

Roberto Luis de Melo Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG)SECRETÁRIA ADJUNTA

Jupira Gomes de Mendonça (NPGA/EA/UFMG)DIRETORES

Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ)Ana Fernandes (UFBA)

Brasilmar Ferreira Nunes (UnB)CONSELHO FISCAL

Carlos Roberto Monteiro de Andrade (USP/SC)José Antônio Fialho Alonso (FEE)

Sonia Marques (UFRN)

Apoio

Page 5: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

5R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

E D I T O R I A L

O presente número põe em discussão a questão dos recursos de uso comum,aqueles historicamente situados ao abrigo da apropriação privada. Este debate temse mostrado de enorme atualidade para o planejamento territorial, seja do ponto devista do ordenamento jurídico configurado para o uso destes recursos, seja das for-mas institucionais adotadas para sua gestão, em razão do avanço da fronteira e dastendências hegemônicas que expandem sobre eles a vigência do mercado. No pri-meiro artigo, Alfredo Wagner Berno de Almeida discute as dimensões territoriais daquestão, analisando as denominadas “terras tradicionalmente ocupadas” como ex-pressão da diversidade de formas de existência coletiva de grupos sociais em suas re-lações com a natureza. O autor analisa, em particular, a relação que se observa entreo surgimento, no contexto da Amazônia, de movimentos sociais que incorporam fa-tores étnicos, critérios ecológicos e de gênero na sua auto-definição coletiva, assimcomo os processos de territorialização que lhes são correspondentes. Além de explo-rar as dimensões jurídicas envolvidas na caracterização de tais terras, o texto destacaa territorialidade como fator de identificação e estabelecimento de laços solidáriossobre uma base física considerada comum e inalienável, não obstante as disposiçõessucessórias porventura existentes.

O artigo de Erik Swyngedouw aborda, por sua vez, o projeto global de priva-tização e mercantilização de recursos hídricos em curso. As políticas neoliberais deprivatização são aí contextualizadas histórica e politicamente, mostrando-se comoo discurso da ‘escassez’ da água é acionado pari passu com a lógica da privatização.Ao analisar as estratégias das grandes empresas globais que atuam no mercado deágua, o autor explora as contradições do processo de privatização, sustentando anecessidade de se considerar a centralidade do Estado na regulamentação do setorde saneamento.

Rebecca Abers e Margareth Keck discutem o marco conceitual através do qualpropõem-se a estudar o novo modelo de gestão descentralizada dos recursos hídri-cos no Brasil. Para tanto, tomam como ponto de partida os argumentos que são cor-rentemente apresentados para justificar os novos mecanismos, sugerindo que, nastentativas de implantação de uma de uma “governança” descentralizada – institucio-nalizada através da criação de comitês de bacias hidrográficas com a participação degovernos, organizações privadas e da sociedade civil – nem a democratização do pro-cesso decisório, nem sua maior eficiência são adquiridos espontaneamente. Pelo con-trário, as chances de sucesso aumentariam consideravelmente se as lideranças reco-nhecessem desde o início a necessidade de obter colaboração interna e apoio externopara os objetivos e atividades dos comitês. Esse tipo de ação política, concluem asautoras, mais do que a disponibilidade de soluções técnicas apropriadas, distinguiriaos comitês mais efetivos dos demais.

Em seu artigo sobre as implicações urbanísticas dos Jogos Olímpicos de Atenasem 2004, Guy Burgel destaca o coroamento de uma nova era iniciada na capitalgrega há mais de um quarto de século. Para o autor, além da funcionalidade com re-lação às provas esportivas ou ao desenrolar das festividades, a escolha dos sítios

Page 6: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 46

olímpicos respondeu a uma vontade estratégica afirmada sobre a totalidade da regiãourbana e a um desejo de reconversão geral das infra-estruturas após os Jogos. O pre-sente texto mostra que, mais do que em Barcelona, onde o direcionamento da cida-de para seu porto foi o grande evento dos anos noventa, a mutação aqui engajada émais fundamental, posto que Atenas, capital continental, não foi jamais uma cida-de litorânea e que, desde a Antiguidade, o Pireu e suas bacias contribuintes consti-tuem uma entrada marítima descentrada, sendo a vocação da costa mais balneáriado que propriamente urbana.

Solismar Fraga Martins e Margareth Afeche Pimenta reconstituem, em seu tex-to, a história de Rio Grande, cidade portuária que representou a primeira demarca-ção lusitana nas terras do estado do Rio grande do Sul. O artigo procura estabeleceras pontes entre os ciclos econômicos associados à presença do porto e as dinâmicasespaciais mais gerais verificadas na cidade. Desde os efeitos da acumulação comer-cial, associada às atividades de importação e exportação, até a implantação de plan-tas industriais com base produtiva diversificada, os sentidos de expansão urbana sãoanalisados como compostos, de forma dual, por um movimento de renovação arqui-tetônica em moldes europeus e pela criação de vilas operárias. Com o declínio daeconomia industrial, por seu turno, a cidade verá, juntamente com a forte restriçãode seu parque fabril, a proliferação de loteamentos privados que deram origem às“vilas” periféricas e à ruptura dos elos entre a cidade e a dinâmica da indústria.

Numa seção especial, prestamos homenagem a Isaac Joseph, professor de Socio-logia na Universidade de Paris X – Nanterre, recentemente falecido, que desenvolveuimportante diálogo com pesquisadores brasileiros da UFF, USP e UFRJ, tanto sobreo pensamento da escola do interacionismo simbólico como sobre as escalas do plura-lismo e as formas de engajamento cívico nos espaços públicos urbanos. Na evocaçãode Anne Querrien, Joseph é lembrado em sua convicção intelectual e militante de quea atenção minuciosa às civilidades correntes é portadora de importantes desafios po-líticos para os que estão envolvidos na construção democrática das cidades.

Na seção “Memória dos Presidentes”, Maria Cristina da Silva Leme, presidenteda Anpur no biênio 2001-2003, relata as marcantes iniciativas desenvolvidas duran-te sua gestão, destacando a importância do novo quadro político institucional criadono período, com a aprovação do Estatuto da Cidade, para cuja discussão a Anpur deurelevante contribuição. É ressaltado o papel desempenhado pela Anpur na consolida-ção de espaços de debate em torno a políticas urbanas e regionais em geral, conside-rado o contexto de crescente relevância da pós-graduação em Planejamento Urbanoe Regional no Brasil, bem como a participação da instituição na cooperação interna-cional intensificada que se tem verificado nas áreas de ensino e pesquisa.

O presente número inclui também três resenhas de livros de grande atualida-de, a saber, Du Contre-pouvoir. De la subjectivité contestataire à la construction de con-tre-pouvoirs de Miguel Benasayag e Diego Sztulwark, Dark Age Ahead de Jane Ja-cobs e DiverCidade, Territórios estrangeiros como topografia da alteridade em São Paulode Maura Pardini B. Véras, elaboradas respectivamente por Marcelo Calazans, Lí-lian Fessler Vaz e Maria do Rosário Rolfsen Salles.

HENRI ACSELRAD

Editor Responsável

Page 7: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ARTIGOS

Page 8: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

TERRAS TRADICIONALMENTEOCUPADAS

PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS1

A L F R E D O W A G N E R B E R N O D E A L M E I D A

R E S U M O O texto analisa a relação entre o surgimento, na Amazônia, de movi-mentos sociais que incorporam fatores étnicos, critérios ecológicos e de gênero na autodefini-ção coletiva e os processos de territorialização que lhes são correspondentes. Ênfase é atribuí-da às denominadas “terras tradicionalmente ocupadas”, que expressam uma diversidade deformas de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais em suas relações com os re-cursos da natureza. Não obstante suas diferentes formações históricas, elas foram instituídasno texto constitucional de 1988 e reafirmadas nos dispositivos infraconstitucionais, comoconstituições estaduais, legislações municipais e convênios internacionais. Em termos analíti-cos tais formas designam situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido li-vre e individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretosou por um de seus membros. A territorialidade funciona como fator de identificação, defesae força: laços solidários e de ajuda mútua informam um conjunto de regras firmadas sobreuma base física considerada comum, essencial e inalienável, não obstante disposições sucessó-rias porventura existentes. Aí a noção de “tradicional” não se reduz à história e incorpora asidentidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada, assinalan-do que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização.

P A L A V R A S - C H A V E Amazônia; movimentos sociais; territorialidade.

INTRODUÇÃO

Nas duas últimas décadas estamos assistindo em todo o País, e notadamente naAmazônia, ao advento de novos padrões de relação política no campo e na cidade. Os mo-vimentos sociais no campo, que desde 1970 vêm se consolidando fora dos marcos tradi-cionais do controle clientelístico e tendo nos Sindicatos de Trabalhadores e TrabalhadorasRurais uma de suas expressões maiores, conhecem desde 1988-1989 certos desdobramen-tos, cujas formas de associação e luta escapam ao sentido estrito de uma entidade sindi-cal, incorporando fatores étnicos, critérios ecológicos e critérios de gênero e de autodefi-nição coletiva que concorrem para relativizar as divisões político-administrativas e amaneira convencional de organização e de encaminhamento de demandas aos poderespúblicos.2 Para efeitos deste texto pretendo analisar a relação entre o surgimento destesmovimentos sociais e os processos de territorialização que lhes são correspondentes. Atri-buo ênfase nestes mencionados processos às denominadas “terras tradicionalmente ocu-padas”, que expressam uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes po-vos e grupos sociais em suas relações com os recursos da natureza. Não obstante suasdiferentes formações históricas, elas foram instituídas no texto constitucional de 1988 ereafirmadas nos dispositivos infraconstitucionais, quais sejam, constituições estaduais, le-gislações municipais e convênios internacionais.

9R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

1 Meus agradecimentos àFundação Ford, que propi-ciou recursos para a execu-ção deste trabalho, e ao an-tropólogo Aurélio Viannacom quem debati a monta-gem dos quadros demons-trativos. Agradeço ainda aoadvogado Joaquim ShiraishiNeto pelas informações arespeito dos “faxinais”.

2 Este texto retoma ques-tões analisadas em A. W. B.de Almeida, “Universaliza-ção e localismo – movimen-tos sociais e crise dospadrões tradicionais de rela-ção política na Amazônia”,1989.

Page 9: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

As dificuldades de efetivação destes dispositivos legais indicam, entretanto, que hátensões relativas ao seu reconhecimento jurídico-formal, sobretudo porque rompem coma invisibilidade social, que historicamente caracterizou estas formas de apropriação dos re-cursos baseadas principalmente no uso comum e em fatores culturais intrínsecos, e impe-lem a transformações na estrutura agrária. Em decorrência, tem-se efeitos diretos sobre areestruturação formal do mercado de terras, bem como pressões para que sejam revistasas categorias que compõem os cadastros rurais dos órgãos fundiários oficiais e os recen-seamentos agropecuários.

O fato de o governo ter incorporado a expressão “populações tradicionais” na legis-lação competente3 e nos aparatos burocrático-administrativos, tendo inclusive criado, em1992, o Centro Nacional de Populações Tradicionais, no âmbito do Ibama,4 não signifi-ca exatamente um acatamento absoluto das reivindicações encaminhadas por estes movi-mentos sociais, não significando, portanto, uma resolução dos conflitos e tensões em tor-no daquelas formas intrínsecas de apropriação e de uso comum dos recursos naturais, queabrangem extensas áreas na região amazônica, no semi-árido nordestino e no planalto me-ridional do País.

Em termos analíticos, pode-se adiantar que tais formas designam situações nas quaiso controle dos recursos básicos não é exercido livre e individualmente por um determina-do grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal con-trole se dá através de normas específicas, combinando uso comum de recursos e apropria-ção privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relaçõessociais estabelecidas entre vários grupos familiares que compõem uma unidade social. Tan-to podem expressar um acesso estável à terra, como ocorre em áreas de colonização anti-ga, quanto evidenciam formas relativamente transitórias características das regiões de ocu-pação recente. A atualização destas normas ocorre, assim, em territórios próprios, cujasdelimitações são socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundantes. A territorialida-de funciona como fator de identificação, defesa e força. Laços solidários e de ajuda mútuainformam um conjunto de regras firmadas sobre uma base física considerada comum, es-sencial e inalienável, não obstante disposições sucessórias porventura existentes.

Por seus desígnios peculiares, o acesso aos recursos naturais para o exercício de ativi-dades produtivas se dá não apenas através das tradicionais estruturas intermediárias do gru-po étnico, dos grupos de parentes, da família, do povoado ou da aldeia, mas também porum certo grau de coesão e solidariedade obtido em face de antagonistas e em situações deextrema adversidade e de conflito,5 que reforçam politicamente as redes de relações sociais.Neste sentido, a noção de “tradicional” não se reduz à história e incorpora as identidadescoletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada, assinalando que asunidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização.6

A INSTITUIÇÃO DAS “TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS”

As teorias do pluralismo jurídico, para as quais o direito produzido pelo Estado nãoé o único, ganharam força com a Constituição de 1988. Juntamente com elas e com ascríticas ao positivismo, que historicamente confundiu as chamadas “minorias” dentro danoção de “povo”, também foi contemplado o direito à diferença, enunciando o reconhe-cimento de direitos étnicos. Os preceitos evolucionistas de assimilação dos “povos indíge-

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

10 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

3 A Lei n.9.985, de 18 de ju-lho de 2000, que regulamen-ta o Art.225 da ConstituiçãoFederal e institui o SistemaNacional de Unidades deConservação da Natureza,menciona explicitamente asdenominadas “populaçõestradicionais” (Art.17) ou “po-pulações extrativistas tradi-cionais” (Art.18) e focaliza arelação entre elas e as uni-dades de conservação (áreade proteção ambiental, flo-resta nacional, reserva ex-trativista, reserva de desen-volvimento sustentável).

4 Cf. Portaria/Ibama, n.22-N, de 10 de fevereiro de1992 que cria o Centro Na-cional de DesenvolvimentoSustentado das PopulaçõesTradicionais – CNPT, bemcomo aprova seu Regimen-to Interno.

5 Barragens, campos detreinamento militar, base delançamento de foguetes,áreas reservadas à minera-ção, áreas de conservaçãocomo as chamadas unida-des de proteção integral, ro-dovias, ferrovias, portos eaeroportos em sua imple-mentação tem gerado inú-meros conflitos sociais comgrupos camponeses, povosindígenas e outros gruposétnicos.

6 Este conceito de unidadesde mobilização refere-se àaglutinação de interessesespecíficos de grupos so-ciais não necessariamentehomogêneos, que são apro-ximados circunstancialmen-te pelo poder nivelador daintervenção do Estado – pormeio de políticas desenvolvi-mentistas, ambientais eagrárias – ou das ações porele incentivadas ou em-preendidas, tais como aschamadas obras de infra-es-trutura.

Page 10: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

nas e tribais” na sociedade dominante foram deslocados pelo estabelecimento de uma no-va relação jurídica entre o Estado e estes povos, com base no reconhecimento da diversi-dade cultural e étnica. No ato das disposições constitucionais transitórias foi instituída,também, consoante o Art.68, nova modalidade de apropriação formal de terras para po-vos como os quilombolas baseada no direito à propriedade definitiva e não mais discipli-nada pela tutela, como soa acontecer com os povos indígenas. Estes processos de ruptu-ras e de conquistas, que levaram alguns juristas a falar em um “Estado pluriétnico” ou queconfere proteção a diferentes expressões étnicas, não resultaram, entretanto, na adoção pe-lo Estado de uma política étnica e nem tampouco em ações governamentais sistemáticascapazes de reconhecer prontamente os fatores situacionais que influenciam uma consciên-cia étnica. Mesmo levando em conta que o poder é efetivamente expresso sob uma formajurídica ou que a linguagem do poder é o direito, há enormes dificuldades de implemen-tação de disposições legais desta ordem, especialmente em sociedades autoritárias e defundamentos coloniais e escravistas, como no caso brasileiro. Nestes três lustros que nosseparam da promulgação da última Constituição Federal tem prevalecido ações pontuaise relativamente dispersas, focalizando fatores étnicos, mas sob a égide de outras políticasgovernamentais, como a política agrária e as políticas de educação, saúde, habitação e se-gurança alimentar. Inexistindo uma reforma do Estado coadunada com as novas disposi-ções constitucionais, a solução burocrática foi pensada sempre com o propósito de arti-culá-las com as estruturas administrativas preexistentes, acrescentando à sua capacidadeoperacional atributos étnicos. Se porventura foram instituídos novos órgãos públicos per-tinentes à questão, sublinhe-se que a competência de operacionalização ficou invariavel-mente a cargo de aparatos já existentes.

Os problemas de implementação daquelas disposições constitucionais revelam, emdecorrência, obstáculos concretos de difícil superação principalmente na homologação deterras indígenas e na titulação das terras das comunidades remanescentes de quilombos.Conforme já foi sublinhado as terras indígenas são definidas como bens da União e des-tinam-se à posse permanente dos índios, evidenciando uma situação de tutela e distinguin-do-se, portanto, das terras das comunidades remanescentes de quilombos, que são reco-nhecidas na Constituição de 1988 como de propriedade definitiva dos quilombolas. Nãoobstante esta distinção relativa à “dominialidade”, pode-se afirmar que ambas são consi-deradas juridicamente como “terras tradicionalmente ocupadas” seja no texto constitucio-nal ou nos dispositivos infraconstitucionais e enfrentam na sua efetivação e reconheci-mento obstáculos similares. De igual modo são consideradas como “terrastradicionalmente ocupadas”, e enfrentam obstáculos à sua efetivação, aquelas áreas de usocomum voltadas para o extrativismo, para a pequena agricultura e para o pastoreio, foca-lizadas por diferentes instrumentos jurídicos, que buscam reconhecer suas especificidades,quais sejam:• os dispositivos das Constituições estaduais, como aquelas do Maranhão e da Bahia,

que falam respectivamente em assegurar “a exploração dos babaçuais em regime deeconomia familiar e comunitária” (Art.196 da Constituição do Maranhão de 1990) eem conceder o direito real de concessão de uso nas áreas de fundo de pasto (Art.178da Constituição da Bahia de 1989);

• a lei estadual do Paraná de 14 de agosto de 1997 que reconhece formalmente os fa-xinais como “sistema de produção camponês tradicional, característico da região Cen-tro-Sul do Paraná, que tem como traço marcante o uso coletivo da terra para produ-ção animal e conservação ambiental.” (Art.1);

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

11R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 11: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

• e as leis municipais aprovadas no Maranhão e no Tocantins desde 1997, mais conhe-cidas como “leis do babaçu livre”, que disciplinam o livre acesso aos babaçuais.

Nesta diversidade de formas de reconhecimento jurídico das diferentes modalidadesde apropriação dos recursos naturais, que caracterizam as denominadas “terras tradicio-nalmente ocupadas”, o uso comum dos recursos aparece combinado tanto com a proprie-dade quanto com a posse, de maneira perene ou temporária, e envolve diferentes ativida-des produtivas: extrativismo, agricultura, pesca e pecuária.

Considerando que a emergência e o acatamento formal de novos dispositivos jurídi-cos refletem disputas entre diferentes forças sociais, pode-se adiantar que o significado daexpressão “terras tradicionalmente ocupadas” tem revelado uma tendência de se tornarmais abrangente e complexo em razão das mobilizações étnicas dos movimentos indíge-nas (Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira – Coiab, União das Nações Indígenas– UNI, Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo –Apoinme), dos movimentos quilombolas, que estão se agrupando desde 1995 na hoje de-nominada Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Co-naq) e dos movimentos sociais que abrangem os extrativismos do babaçu, da castanha eda “seringa”. A própria categoria “populações tradicionais” tem conhecido deslocamentosno seu significado desde 1988, sendo afastada mais e mais do quadro natural e do domí-nio dos “sujeitos biologizados” e acionada para designar agentes sociais, que assim se au-todefinem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condição. Ela designa, des-te modo, sujeitos sociais com existência coletiva, incorporando pelo critério político-organizativo uma diversidade de situações correspondentes aos denominados seringuei-ros, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores quetêm se estruturado igualmente em movimentos sociais.7 A despeito destas mobilizações ede suas repercussões na vida social, não tem diminuído, contudo, os entraves políticos eos impasses burocrático-administrativos que procrastinam a efetivação do reconhecimen-to jurídico-formal das “terras tradicionalmente ocupadas”.

Aliás, nunca houve unanimidade em torno desta expressão. Nas discussões da As-sembléia Nacional Constituinte a expressão “terras tradicionalmente ocupadas” só pre-ponderou pela derrota dos partidários da noção de “terras imemoriais”, cujo sentido his-toricista, remontando ao período pré-colombiano, permitiria identificar os chamados“povos autóctones” com direitos apoiados tão somente numa naturalidade que não pode-ria ser datada com exatidão. Um dos resultados mais visíveis deste embate consiste no pa-rágrafo 1º do Art.231 da Constituição Federal de 1988:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter per-manente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dosrecursos ambientais necessários a seu bem estar-estar e as necessárias a sua reprodução físicae cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

A ocupação permanente de terras e seu uso caracterizam o sentido de “tradicional”,recuperando criticamente as legislações agrárias coloniais, as quais instituíram as sesmariasaté a Resolução de 17 de julho de 1822 e depois estruturaram formalmente o mercado deterras com a Lei n.601 de 18 de setembro de 1850, criando obstáculos de toda ordem pa-ra que não tivessem acesso legal às terras os povos indígenas e os escravos alforriados. Coi-bindo a posse e instituindo a aquisição como forma de acesso à terra, tal legislação instituiu

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

12 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

7 Entendo que o processosocial de afirmação étnica,referido aos chamados qui-lombolas, não se desenca-deia necessariamente a par-tir da Constituição de 1988,uma vez que ela própria éresultante de intensas mobi-lizações, acirrados conflitose lutas sociais que impuse-ram as denominadas terrasde preto, mocambos, lugarde preto e outras designa-ções que consolidaram decerto modo as diferentesmodalidades de territoriali-zação das comunidades re-manescentes de quilombos(Almeida, 1989). Sob esseaspecto, a Constituição con-siste mais no resultado deum processo de conquistasde direitos e é deste prismaque se pode asseverar quea Constituição de 1988 es-tabelece uma clivagem nahistória dos movimentos so-ciais, especialmente daque-les baseados em fatores ét-nicos.

Page 12: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

a alienação de terras devolutas por meio de venda, vedando, entretanto, a venda em hastapública, e favoreceu a fixação de preços suficientemente elevados das terras,8 buscando im-pedir a emergência de um campesinato livre. A Lei de Terras de 1850, nesta ordem, fechouos recursos e menosprezou as práticas de manter os recursos abertos seja por meio de con-cessões de terras, seja mediante os códigos de posturas, como os que preconizavam o usocomum de aguadas nos sertões nordestinos ou de campos para pastagem no Sul do País.

A efetivação dos novos dispositivos da Constituição Federal de 1988, contraditandoos velhos instrumentos legais de inspiração colonial, tem se deparado com imensos obs-táculos, que tanto são urdidos mecanicamente nos aparatos burocrático-administrativosdo Estado, quanto são resultantes de estratégias engendradas por interesses de grupos quehistoricamente monopolizaram a terra. Mesmo considerando a precariedade dos dadosquantitativos disponíveis é possível asseverar que os resultados de sua aplicação pelos ór-gãos oficiais tem se mostrado inexpressivos, sobretudo no que tange às terras indígenas,às comunidades remanescentes de quilombos e às áreas extrativistas. No caso destas últi-mas não há uma reserva extrativista9 sequer regularizada em termos fundiários. Com res-peito às terras indígenas há pelo menos 145 processos administrativos tramitando, acres-cidos de 44 terras por demarcar e 23 outras para homologar, isto é, mais de 1/3 semqualquer regularização e intrusadas de maneira efetiva. No caso das comunidades rema-nescentes de quilombos, em 15 anos de aplicação do Art.68, os resultados são da mesmaordem, igualmente inexpressivos, a saber:

Oficialmente, o Brasil tem mapeadas 743 comunidades remanescentes de quilombos.Essas comunidades ocupam cerca de 30 milhões de hectares, com uma população estimadaem 2 milhões de pessoas. Em 15 anos, apenas 71 áreas foram tituladas.” (Em Questão,20.11.2003.)10

A separação aumenta quando estes dados são confrontados com aqueles produzidospor associações e entidades voluntárias da sociedade civil. São 1.098 as comunidades re-manescentes de quilombos apontadas por mapeamento preliminar realizado com base emdados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras RuraisQuilombolas – Conaq, da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas –Aconeruq, do Projeto Vida de Negro – PVN da sociedade Maranhense de Defesa dos Di-reitos Humanos.

A ABRANGÊNCIA DO SIGNIFICADO DE “TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS” E AS DIFICULDADES DE EFETIVAÇÃO

De 1988 para cá o conceito vitorioso nos embates da Constituinte tem ampliadoseu significado, coadunando-o com os aspectos situacionais que caracterizam hoje o ad-vento de identidades coletivas, e tornou-se um preceito jurídico marcante para a legiti-mação de territorialidades específicas e etnicamente construídas.

Em junho de 2002, evidenciando a ampliação do significado de “terras tradicional-mente ocupadas” e reafirmando o que os movimentos sociais desde 1988 tem perpetra-do, o Brasil ratificou, através do Decreto Legislativo n.143, assinado pelo presidente doSenado Federal, a Convenção 169 da OIT, de junho de 1989. Esta Convenção reconhece

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

13R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

9 Consoante o Art.18 da Lein.9.985, de 18 de julho de2000: “A Reserva Extrativis-ta é uma área utilizada porpopulações extrativistas tra-dicionais, cuja subsistênciabaseia-se no extrativismo e,complementarmente, naagricultura de subsistênciae na criação de animais depequeno porte, e tem comoobjetivos básicos protegeros meios de vida e a culturadessas populações, e asse-gurar o uso sustentável dosrecursos naturais da unida-de”. De acordo com oArt.23: “A posse e o usodestas áreas ocupadas pe-las populações tradicionaisnas Reservas Extrativistas eReservas de Desenvolvimen-to Sustentável serão regula-dos por contrato (...)”.

10 Esta breve retrospectivacrítica da aplicação doArt.68 do ADCT (Ato dasDisposições ConstitucionaisTransitórias) foi divulgadapela Secretaria de Comuni-cação de Governo e GestãoEstratégica da Presidênciada República, através do EmQuestão de 20 de novembrode 2003, Dia Nacional daConsciência Negra. O reco-nhecimento público do nú-mero inexpressivo de titula-ções realizadas funcionoucomo justificativa para umaação governamental especí-fica, posto que nesta mes-ma data o presidente Lulaassinou o Decreto n.4887,regulamentando o procedi-mento para identificação, re-conhecimento, delimitação,demarcação e titulação dasterras ocupadas por rema-nescentes das comunidadesde quilombos. Este ato doPoder Executivo teria cor-respondido, portanto, à ne-cessidade de uma interven-ção governamental maisacelerada e ágil, condizentecom a gravidade dos confli-tos envolvendo as comuni-dades remanescentes dequilombos.

8 A doutrina do sufficientlyhigh price é tomada do sis-tema de colonização siste-mática de Wakefield, cuja in-fluência na elaboração daLei de Terras de 1850 é as-sinalada por diferentes juris-tas. Para um aprofundamen-to: R. Cirne Lima, Pequenahistória territorial do Brasil,2002.

Page 13: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

como critério fundamental os elementos de auto-identificação, reforçando, em certa me-dida, a lógica dos movimentos sociais. Nos termos do Art.2 tem-se o seguinte:

A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser tida como critério funda-mental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições desta Convenção.

Para além disto, o Art.14 assevera o seguinte em termos de dominialidade:

Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse so-bre as terras que tradicionalmente ocupam.

Além disto o Art.16 aduz que:

sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionaisassim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento.

Este direito de retorno se estende sobre um sem-número de situações distribuídas portodo País, que resultaram em deslocamentos compulsórios de populações inteiras de suasterras por projetos agropecuários, de plantio de florestas homogêneas (pínus, eucalipto), demineração, de construção de hidrelétricas, com grandes barragens, e de bases militares.

O texto da Convenção, além de basear-se na autodefinição dos agentes sociais, reco-nhece explicitamente a usurpação de terras desde o domínio colonial, bem como reconhe-ce casos de expulsão e deslocamento compulsório e amplia o espectro dos agentes sociaisenvolvidos, falando explicitamente em “povos” em sinonímia com “populações tradicio-nais”, ou seja, situações sociais diversas que abarcam uma diversidade de agrupamentosque historicamente se contrapuseram ao modelo agrário exportador que se apoiava nomonopólio da terra, no trabalho escravo e em outras formas de imobilização da força detrabalho. Isto permite uma reinterpretação. Os desdobramentos sociais dos quilombos,dos movimentos messiânicos e das formas de banditismo social que caracterizaram a re-sistência ao império das plantations na sociedade colonial ganham força neste contexto,do mesmo modo que as formas associativas e de ocupação que emergiram no seio dasgrandes propriedades de monocultora a partir da sua desagregação com as crises das eco-nomias algodoeira, açucareira e cafeeira. Novas formas de ocupações emergiram, definin-do territorialidades específicas, e não tiveram reconhecimento legal, tais como as chama-das terras de preto, terras de índio (que não se enquadram na classificação de terrasindígenas, porquanto não há tutela sobre aqueles que as ocupam permanentemente), ter-ras de santo (que emergiram com a expulsão dos jesuítas e com a desagregação das fazen-das de ordens religiosas diversas) e congêneres (terras de caboclos, terras de santíssima, ter-ras de ausentes).

A Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da OIT logram contemplar es-tas distintas situações sociais referidas às regiões de colonização antiga, assim como aque-las que caracterizam as regiões de ocupação recente, ao recolocar o sentido de “terras tra-dicionalmente ocupadas”.

Numa tentativa de síntese foi elaborado um quadro demonstrativo com as catego-rias de autodefinição que se objetivaram em movimentos sociais e os instrumentos jurí-dico-formais que lhes são correspondentes, bem como as agências governamentais a quemcompete efetivar as medidas decorrentes e as estimativas que concernem às territorialida-

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

14 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 14: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

des em pauta e às suas respectivas informações demográficas. Os dados quantitativos re-ferentes às áreas totais e à população de referência ainda são fragmentários e incompletos,contendo lacunas e imprecisões várias. Mesmo que mencionados formalmente em docu-mentos oficiais não possuem a fidedignidade necessária. No caso das terras indígenas con-sistem no somatório das áreas mencionadas nos processos administrativos de delimitaçãoe/ou demarcação, dado a público amplo. No caso das comunidades remanescentes de qui-lombos tampouco existe um levantamento criterioso e tudo se derrama em estimativas,quer de órgãos oficiais, quer dos movimentos quilombolas. Em se tratando das áreas ex-trativistas existem os levantamentos geográficos com registro de incidência de manchasque agrupam espécies determinadas, respondendo às indagações de onde se localizam oscastanhais, os seringais, os babaçuais etc. Quanto aos denominados “fundos de pasto” e“faxinais” não há sequer estimativas quanto às extensões em jogo. O mesmo sucede comos chamados “ribeirinhos”. No caso daqueles que se autodefinem como “atingidos”, istoé, que perderam ou estão em vistas de perder suas territorialidades de referência, os me-moriais descritivos dos decretos de desapropriação por utilidade pública funcionam comofonte, bem como os dados arrolados pelos movimentos sociais respectivos.

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

15R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 15: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

TE

RR

AS

T

RA

DI

CI

ON

AL

ME

NT

E

OC

UP

AD

AS

16R

. B. E

ST

UD

OS

UR

BA

NO

S E

RE

GIO

NA

IS, V

.6, N

.1 / M

AIO

20

04

Quadro 1 – Terras tradicionalmente ocupadasCategoria Movimento Social Ato Data Texto Agência Política Estimativa População

oficial governamental de área de referênciacompetente (hectares)

Povos Indígenas Coiab (Coordenação “Art. 231 – São reconhecidos aos índios Indígena da Amazônia sua organização social, costumes, línguas,Brasileira) crenças e tradições, e os direitos originários

sobre as terras que tradicionalmenteApoinme Constituição da ocupam, competindo à União demarcá-las,(Articulação dos Povos República Federativa 05/10/88 proteger e fazer respeitar todos os seus bens.Indígenas do Nordeste, do Brasil (CF) § 1º São terras tradicionalmente ocupadas “Política 734.127M. Gerais e E. Santo) pelos índios as por eles habitadas em caráter Funai indigenista” 110 milhões indígenasUNI (União das Nações permanente, as utilizadas para suas atividadesIndígenas) produtivas, as imprescindíveis à preservação

dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, caben-do-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

(1) Arts. 215 e 216 – reconhecem as áreas ocupadasQuilombolas Conaq CF por comunidades remanescentes de quilombos

(Coordenação Ato das como parte do patrimônio cultural do País.Nacional de Disposições Art. 68 • “Aos remanescentes das comunidades FCPArticulação das Constitucionais 05/10/88 de quilombos que estejam ocupando MDA “Política Nacional 30 milhões 2 milhõesComunidades Transitórias (ADCT) suas terras é reconhecida a propriedade Incra dos Quilombos” de pessoasQuilombolas) definitiva, devendo o Estado emitir-lhes

os títulos respectivos.”

Decretos 20/11/03 Dec. 4.887 regulamenta procedimentos 24/05/04 de titulação.

Instrução Normativa n.16 – Incra.

Decreto 30/01/90 Dec. 98.897 regulamenta RESEX utilizada

(2) CNS 18/07/00 por “populações extrativistas”.Seringueiros (Conselho Nacional Lei Lei 9.985 – Regulamenta o art.225, § 1º MMA (3) Ambiental e Prodex —

de Seringueiros) incisos I, II, III e VII da CF, institui o Sistema Ibama Extrativista“Lei Chico 13/01/99 Nacional de Unidades de Conservação CNPTMendes” (Acre) 05/07/99 da Natureza.

Lei Est. 1.277 Sepro-ACDec. Est. 868

Seringueiros CNS Decretos 1990 Reservas Extrativistas de Seringa e Castanha e • Dec. 98.863, de 23 de janeiro de 1990 Castanheiros (cria a RESEX do Alto Juruá). Área aproximada

506.186 ha. População estimada 3.600• Dec. 99.144, de 12 de março de 1990 (cria a RESEX Chico Mendes). Área aproxima-da: 970.570ha. População estimada: 7.500.

Page 16: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

AL

FR

ED

O

WA

GN

ER

B

.

DE

A

LM

EI

DA

17R

. B. E

ST

UD

OS

UR

BA

NO

S E

RE

GIO

NA

IS V

.6, N

.1 / M

AIO

20

04

• Dec. 99.145, de 12 de março de 1990 (cria a Resex do Rio Cajari). Área aproximada: 481.650 ha. População estimada: 3.800.

1997 • Dec. 99.166, de 13 de março de 1990 MMA1998 (Cria a Resex do Rio Ouro Preto). Área aproxi- Ibama Ambiental 17 milhões 163.000

mada: 204.583ha. População estimada: 700 CNPT e Agrária (4) extrativistas• Dec. s./n., de 4 de março de 1997 (cria sendo que em

2004 Resex do Médio Juruá). Área de 253.226ha. RESEX RESEX 33.300 População estimada: 700. 5.058.884• Dec. s./n., de 6 de novembro de 1998 (criaa Resex Tapajós-Arapiuns). Área de 647.610ha. População estimada: 16.000.• Decreto de 8 de novembro de 2004 (cria aResex Verde para Sempre. Área de

1.258.717,2009 ha.• Decreto de 8 de novembro de 2004 (cria a Resex Riozinho do Anfrísio. Área de 736.340, 9920 ha.

Quebradeiras MIQCB Constituição Estadual 16/05/90 Art. 196 – “Os babaçuais serão utilizados na de coco (Movimento Interes- do Maranhão forma da lei, dentro de condições que asse-babaçu tadual das Quebradei- gurem a sua preservação natural e do meio

ras de Coco Babaçu) ambiente, e como fonte de renda do traba-lhador rural.”“Parágrafo único – Nas terras públicas e devolutas do Estado assegurar-se-á a explora-ção dos babaçuais em regime de economia familiar e comunitária.”

Leis Municipais 1997-2003 Leis Municipais:• n. 05/97 de Lago do Junco (MA)• n. 32/99 de Lago dos Rodrigues (MA)• n. 255/99 de Esperantinópolis (MA) MMA Ambiental 18,5 milhões• n. 319 de São Luís Gonzaga (MA) IBAMA e Agrária (5) 400 mil• n. 49/2003 de Praia Norte (TO) CNPT extrativistas,• n. 1.084/2003 de Imperatriz (MA) MDA em Resex

Decretos 1992 • n. 306/2003 de Axixá (TO)• n. 466/2003 de Lima Campos (MA) Resex 3.350• Capinzal do Norte (MA) (em tramitação) 36.322Reservas Extrativistas do Babaçu• Dec. 532, de 20 de maio de 1992 (cria a Resex Mata Grande). Área aproxima: 10.450ha.• Dec. 534, de 20 de maio de 1992 (cria a Resex do Ciriaco). Área aproximada: 7.050ha.• Dec. 535, de 20 de maio de 1992 (cria a Resex do Extremo Norte). Área aproximada: 9.280ha.• Dec. 536, de 20 de maio de 1992 (cria a Resex Quilombo do Frechal). Área aproximada: 9.542ha.

Page 17: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

TE

RR

AS

T

RA

DI

CI

ON

AL

ME

NT

E

OC

UP

AD

AS

18R

. B. E

ST

UD

OS

UR

BA

NO

S E

RE

GIO

NA

IS, V

.6, N

.1 / M

AIO

20

04

Categoria Movimento social Ato Data Texto Agência Política Estimativa População oficial governamental de área de referênciacompetente (hectares)

Pescadores Monape Decretos 1992 • Dec. 523, de 20 de março de 1992 (cria a Resex de Pirajubaé). Área de 1.444ha.População estimada: 600 pessoas.

1997 • Dec. s./n., de 3 de janeiro de 1997 Resex em Resex 600(cria a Resex de Arraial do Cabo). Sem dados. MMA Ambiental 1.444

Ribeirinhos Movimento dos Ribeirinhos do — — — MMA Ambiental — —Amazonas Ibama Pró Várzea(Mora) (6) (PPG-7)Movimento dePreservação de Lagos

Atingidos por MAB Decretos 1977-1992 • Decretos de desapropriação por utilidade Barragens pública para implantação de hidrelétricas

desde o final dos anos 70: “mais de 1 milhão de UHE de Sobradinho e UHE de Itaparica pessoas prejudicadasno Rio São Francisco e expulsas de suas UHE de Itaipu na bacia do rio Paraná, MME Energética — terras pela constru-UHE de Machadinho e Ita na bacia do MDA ção de usinas hidre- rio Uruguai létricas” (7)UHE de Tucuruí no rio Tocantins etc.

Atingidos pela Mabe Decretos Setembro • Dec. 7.820 declara de utilidade pública Base de Alcântara 1980 para fins de desapropriação área de 52 mil ha MD Aeroespacial 85 mil 3 mil famílias

para instalação do Centro de Lançamento MDAde Alcântara. AEB

Agosto • Decreto presidencial aumentando área para MCT1991 62 mil ha.

Fundos de Pasto Articulação Estadual Art. 178 – “Sempre que o Estado considerar de Fundos e Fechos conveniente poderá utilizar-se do direito real de Pasto Baianos de concessão de uso, dispondo sobre a distri-

buição da gleba, o prazo de concessão e outras Central de Fundos e condições.Fechos de Pasto de Constituição 1989 § único – No caso de uso e cultivo da terra sobSenhor do Bonfim (BA) Estadual da Bahia forma comunitária o Estado, se considerar Central de Fundos de conveniente, poderá conceder o direito real de MDA Agrária — 20 mil famíliasPasto de Oliveira dos concessão de uso a associação legitimamenteBrejinhos (BA) constituída, integrada por seus reais ocupantes,

agravada de cláusula de inalienabilidade, espe-cialmente nas áreas denominadas de fundo de pasto e nas ilhas de propriedade do Estado, sendo vedada a esta a transferência de domínio.”Regulamento da Lei de Terras do Estado daBahia, Interba. Art.20.

Faxinal — Decreto Estadual 14.8.1997 No § 1º, do art. 1º lê-se: “entende-se por sistema (Paraná) Faxinal: o sistema de produção camponês

Page 18: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

AL

FR

ED

O

WA

GN

ER

B

.

DE

A

LM

EI

DA

19R

. B. E

ST

UD

OS

UR

BA

NO

S E

RE

GIO

NA

IS V

.6, N

.1 / M

AIO

20

04

tradicional, característico da região Centro-Sul do MDA Agrária — —Paraná, que tem como traço marcante o uso cole-tivo da terra para produção animal e a conservação ambiental. Fundamenta-se na integração de três componentes: a) produção animal coletiva, à solta, através dos criadouros comunitários; b) produção agrícola – policultura alimentar de subsistência para consumo e comercialização; c) extrativismo florestal de baixo impacto – manejo de erva-mate, araucária e outras espécies nativas.”

Notas

(1) No Brasil há cerca de 220 etnias e 180 línguas. As terras indígenas correspondem a 12,38% das terras do País. Os indígenas totalizam 734.127. Cf. IBGE, Censo Demográfico de 2000.

(2) “Oficialmente, o Brasil tem mapeadas 743 comunidades remanescentes de quilombos. Essas comunidades ocupam cerca de 30 milhões de hectares, com uma população estimada em 2 milhões de pessoas. Em 15 anos apenas 71 áreas foram tituladas.” (EmQuestão, 20.11.2003).Em 2004, pela primeira vez, o Censo Escolar do Ministério da Educação (MEC) pesquisou a situação educacional dos remanescentes de quilombos. Os primeiros resultados assinalam que atualmente são 49.722 alunos matriculados em 364 escolas, sendo que62% das matrículas estão concentradas na região Nordeste. O Estado do Maranhão é o que possui o maior número de alunos quilombolas, mais de 10 mil que freqüentam 99 estabelecimentos. (Cf. I. Lobo, Agência Brasil, 6.10.2004).

(3) Não foram catalogadas as Leis Ambientais Municipais concernentes às “Políticas Municipais do Meio Ambiente” que disciplinam as ações dos Conselhos Municipais do Meio Ambiente e dispõem sobre as demandas de uso dos recursos naturais dos diferentesgrupos sociais. Um exemplo seriam as leis n.16.885 e 16.886 de 22 de abril referidas ao Município de Marabá (PA); consulte-se também as referências aos Municípios de Altamira, Santarém, Paragominas, Uruará, Porto de Moz e Moju (PA) e Mâncio Lima e Xapuri (AC).In: F. Toni & D. Kaimowitz (Orgs.), 2003.

(4) Os castanhais na América do Sul abrangem uma extensão de 20 milhões de hectares. A zona castanheira no Peru, na parte oriental do departamento de Madre de Dios, é estimada em 1,8 milhões de hectares. A região castanheira da Bolívia localiza-se em Pan-do e é estimada em 1,2 milhões de hectares. No Brasil os maiores castanhais estão entre os rios Tocantins e Xingu, assim como em Santarém, às margens do rio Tapajós, seguindo-se as zonas dos rios Trombetas e Curuá. No Estado do Amazonas a maior inci-dência é no Solimões, seguida pela região do rio Madeira. No Estado do Acre as maiores concentrações de castanheiras estão na zona dos rios Xapuri e Acre. No Amapá a maior incidência é no rio Jari. Estas áreas perfazem uma extensão estimada em 17 mi-lhões de hectares, superpondo-se muitas vezes às áreas de incidência de seringais. Cf. Bases para uma Política Nacional da Castanha, Belém, 1967; cf. P. Borges, 1967; cf. J. W. Clay, in C. Freese (Ed.), 1997.

(5) Os babaçuais associam-se a outros tipos de vegetação, sendo próprios de baixadas quentes e úmidas localizadas nos Estados do Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará, Goiás e Mato Grosso. Nas referidas unidades da federação ocupam em conjunto uma área corres-pondente a cerca de 18,5 milhões de hectares. As principais formações encontram-se na região de abrangência do Programa Grande Carajás, notadamente, no Maranhão, cuja área delimitada totaliza 10,3 milhões de hectares. No Tocantins e no Pará registram-se respectivamente 1.442.800 hectares e cerca de 400.000 hectares. No Estado do Piauí as áreas de ocorrência de babaçu correspondem 1.977.600 ha. Considerando-se apenas a denominada região do Programa Grande Carajás, tem-se aproximadamente 11,9milhões de hectares de ocorrência de babaçuais, ou seja, 63,4% do total nacional das áreas de ocorrência. Correspondem a 13,2 % da região de abrangência do Programa Grande Carajás. Sobressai o Estado do Maranhão, com mais de 71% da área global dosbabaçuais. Cf. A. W. B. de Almeida, 1995.

(6) Cf. Cartilha do Movimento Ribeirinho do Amazonas, 2003.

(7) Cf. Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB. Caderno de Formação, s.d.

Page 19: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

OS LIMITES DAS CATEGORIAS CADASTRAIS E CENSITÁRIAS

No plano jurídico,11 tanto quanto no plano operacional há, como já foi dito, obstá-culos de difícil superação para o reconhecimento das “terras tradicionalmente ocupadas”.O Brasil dispõe de duas categorias para cadastramento e censo de terras, quais sejam: esta-belecimento12 ou unidade de exploração, que é adotada pelos censos agropecuários do IBGE

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e imóvel rural 13 ou unidade de domínio,que é adotada pelo cadastro do Incra, para fins tributários. Todas as estatísticas que confi-guram a estrutura agrária atêm-se a estas e somente a estas categorias. As terras indígenas,em decorrência da figura da tutela, e as áreas reservadas são registradas no Serviço do Pa-trimônio da União. As terras das comunidades remanescentes de quilombo, também recu-peradas pela Constituição Federal de 1988, através do Art.68 do ADCT (Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias), devem ser convertidas, pela titulação definitiva, em imóveisrurais. Cláusulas de inalienabilidade, domínio coletivo e costumes e uso comum dos recur-sos juntamente com fatores étnicos têm levantado questões para uma visão tributarista quesó vê a terra como mercadoria passível de taxação, menosprezando dimensões simbólicas.Ante esta classificação restrita, uma nova concepção de cadastramento se impõe, rompen-do com a insuficiência das categorias censitárias instituídas e levando em consideração asrealidades localizadas e a especificidade dos diferentes processos de territorialização.

Sem haver ruptura explícita com tais categorias assiste-se a tentativas várias de cadas-tramento parcial, como apregoa a Portaria n.06 de 1º de março de 2004 da FundaçãoCultural Palmares, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades deQuilombo, nomeando-as sob as denominações seguintes: “terras de preto, mocambos, co-munidades negras, quilombos”, entre outras.14

Ora, a própria necessidade de um cadastro à parte revela uma insuficiência das duascategorias classificatórias, ao mesmo tempo que confirma e chama a atenção para uma di-versidade de categorias de uso na vida social que demandam reconhecimento formal.Aliás, desde 1985, há uma tensão dentro dos órgãos fundiários oficiais para o reconheci-mento de situações de ocupação e uso comum da terra, ditadas por “tradição e costumes”,por práticas de autonomia produtiva – erigidas a partir da desagregação das plantations edas empresas mineradoras – e por mobilizações sociais para afirmação étnica e de direitoselementares. Um eufemismo criado no Incra em 1985-1986 dizia respeito a “ocupaçõesespeciais”, no Cadastro de Glebas, onde se incluíam nos documentos de justificativa aschamadas terras de preto, terras de santo, terras de índio, os fundos de pasto e os faxinais, en-tre outros.

O advento destas práticas e a pressão pelo seu reconhecimento têm aumentado des-de 1988, sobretudo na região amazônica e nas denominadas “regiões de cerrado”,15 como surgimento de múltiplas formas associativas agrupadas por diferentes critérios ou segun-do uma combinação entre eles, tais como: raízes locais profundas; fatores político-organi-zativos; autodefinições coletivas; consciência ambiental; e elementos distintivos de iden-tidade coletiva. As denominadas “quebradeiras de coco babaçu” incorporam também umcritério de gênero combinado com uma representação diferenciada por regionais e respec-tivos povoados. Os chamados “ribeirinhos”16 incorporam ainda um critério geográficocombinado com uma representação por lagos e rios. Os agentes sociais referidos a “fun-dos de pasto” e a “faxinais” parecem não ter uma denominação própria capaz de aparen-temente uniformizá-los, mas se distinguem pelo fator organizativo. Os pescadores buscam

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

20 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

11 No domínio jurídico for-mal são muitas as disputas.Para fins de ilustração cito aAção Direta de Inconstitucio-nalidade do Decreto 4.887de 20 de novembro de2003 perpetrada pelo Parti-do da Frente Liberal (PFL),cuja data de entrada no Su-premo Tribunal Federal cor-responde a 25 de junho de2004 e aguarda julgamento.O PFL tenta impugnar o usoda desapropriação na efeti-vação do Art.68, bem comose opõe ao critério de iden-tificação dos remanescen-tes de quilombos pela auto-definição.

12 A noção de estabeleci-mento vem sendo utilizadadesde que, em 1950, o Re-censeamento Geral envol-veu, entre outros, os censosdemográfico e agrícola. Emconformidade com estescensos, “considerou-se co-mo estabelecimento agro-pecuário todo terreno deárea contínua, independentedo tamanho ou situação (ur-bana ou rural), formado deuma ou mais parcelas, su-bordinado a um único produ-to, onde se processasseuma exploração agropecuá-ria, ou seja, o cultivo do solocom culturas permanentesou temporárias, inclusivehortaliças e flores; a cria-ção, recriação ou engordade animais de grande e mé-dio porte; a criação de pe-quenos animais; a silvicultu-ra ou o reflorestamento; aextração de produtos vege-tais. Excluíram-se da investi-gação quintais de residên-cias e hortas domésticas”.E ainda: “as áreas confinan-tes sob a mesma adminis-tração, ocupadas segundodiferentes condições legais(próprias, arrendadas, ocu-padas gratuitamente), foramconsideradas um único esta-belecimento”.

13 A categoria imóvel ruralconsistia num mero termo enão possuía força operacio-nal maior como instrumentode ação fundiária até 1964.Foi com o Estatuto da Terra(Lei 4.504, de 30 de novem-bro de 1964) que se tornouuma categoria definida parafins operacionais (Art.4) ecom propósitos tambémcadastrais e tributários(Art.46). Sua conceituaçãotornou-se então um pressu-

Page 20: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

transformar a organização por “colônias” até então implementada pelos órgãos oficiais.17

A estas formas associativas expressas pelos novos movimentos sociais que objetivam ossujeitos em existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimento Interes-tadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional de Articulação das Co-munidades Negras Rurais Quilombolas, Movimento dos Fundos de Pasto etc.) corres-pondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e sua reproduçãofísica e social. Tal realização implica uma relação diferenciada com os recursos naturaisque, de certa maneira, reflete nos textos constitucionais, nas leis e nos decretos.

As formas de reconhecimento das diferentes modalidades de apropriação das deno-minadas “terras tradicionalmente ocupadas” podem ser resumidas num quadro explicati-vo (ver Quadro 2). A diversidade de figuras jurídicas, contemplando a propriedade (qui-lombolas), a posse permanente (indígenas), o uso comum temporário, mas repetido acada safra (quebradeiras de coco babaçu); o “uso coletivo” (faxinal), o uso comunitário eaberto, bem assinala a complexidade dos elementos em questão que, embora sejam passí-veis de agrupamento numa única categoria classificatória, não parecem comportar umahomogeneização formal.

Quadro 2 – Formas de reconhecimento jurídico das diferentes modalidades de apropria-ção das denominadas “terras tradicionalmente ocupadas” (1988-2004).Povos indígenas “Posse permanente”, usufruto CF-1988

exclusivo dos recursos naturais. Art.231Terras como “bens da União”.

Comunidades remanes- Propriedade. CF-ADCTcentes de quilombos “Titulação definitiva”. Art.68Quebradeiras de Uso comum dos babaçuais. Leis Municipaiscoco babaçu “Sem posse e sem propriedade”. (MA, TO)

1997-2004“Regime de economia familiar CE-MA, 1991e comunitária”. Art.196

Seringueiros, Resex – “de domínio público, CF-1988castanheiros, com uso concedido às populações Art. 20 § 3ºquebradeiras de extrativistas tradicionais”. Decretoscoco babaçu Posse permanente. 1990, 1992, 1998

Terras como “bens da União” Lei 9.98518.7.2000

Pescadores Resex – “Terrenos de Marinha”. CF-1988Recursos hídricos como Art.20 § 3º“bens da União”. Decretos

1992 e 1997Fundo de pasto “Direito real de concessão de uso” CE-BA, 1989

Art. 178Faxinal “Uso coletivo da terra para Decreto Estadual

produção animal e conservação Paranáambiental”. 14.8.1997

Nota: CF, Constituição Federal; CE, Constituição Estadual.

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

21R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

posto básico para fins deimposto (Decreto n.56.792,de 26 de agosto de 1965,Art.19) e de ação agrária(Decreto n.55.891, de 31de março de 1965). Apare-ce, pois, com desdobra-mentos constantes: “imó-veis rurais em área defronteira”, “imóveis ruraispertencentes à União”, “imó-veis rurais situados nasáreas declaradas prioritá-rias para fins de reformaagrária”, e também em con-tratos de arrendamento, es-pólios e heranças, coloniza-ção, fração mínima deparcelamento, módulos ru-rais etc. Com essa cate-goria podia-se classificardiferentes tipos de “proprie-dade”. Tornou-se uma cate-goria-chave, com ramifica-ções várias, por meio daqual se passou a construirformalmente a noção de es-trutura fundiária. Encontra-se subjacente em todos osinstrumentos de ação fun-diária, posto que se trata deuma unidade elementar àsua operacionalização. O ar-cabouço jurídico sempre sevale de categorias fun-damentais para conceberoperacionalidades ou parainstituir procedimentos ope-racionais. Os códigos do pe-ríodo colonial, por exemplo,funcionavam com as chama-das “sesmarias” ou noçõescorrelatas, tais como: “da-tas” e seus variantes locais,“quinhões, sorte de terras,pontas e abas, fundo e fren-te” etc. Após a Lei de Terrasde 1850 e com os dispositi-vos do governo republicanode 1891 passaram a vigiroutras noções de “posse” e“propriedade”, embora nãose possa ignorar que desde1823 as “sesmarias” nãoconfirmadas passaram aser tratadas como “pos-ses”. Em 1946 estes institu-tos foram confirmados. Oanteprojeto de lei agrária deAfrânio de Carvalho, em1948, fala em “propriedaderural”, mas quando refere-seao Cadastro Agrícola Nacio-nal menciona “imóvel rural”(cf. Carvalho, A. ReformaAgrária, Rio de Janeiro, ed.O Cruzeiro, 1962, p.19) e oArt.1 de sua Lei Agrária de-fine “imóvel rural”. O projetode lei agrária do deputadofederal Nestor Duarte, de1947, fala apenas em “imó-vel”. O projeto de código

Page 21: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

OS MOVIMENTOS SOCIAIS

A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao designar os su-jeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em décadas passadas estavaassociada principalmente ao termo camponês. Os termos e denominações de uso local po-litizam-se. Ou ainda, o uso cotidiano e difuso destes termos acompanha a politização dasrealidades locais: os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como de-signação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vi-da cotidiana.

Assim, tem-se a formação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), do Movi-mento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), do Movimento Nacio-nal dos Pescadores (Monape), da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Ru-rais Quilombolas (Conaq), do Movimento dos Ribeirinhos da Amazônia, da União dosSindicatos e Associações de Garimpeiros da Amazônia Legal (Usagal) e de inúmeras ou-tras associações, a saber: dos castanheiros, dos piaçabeiros, dos extrativistas do arumã,dos peconheiros, dos caiçaras.18 Acrescente-se que o Movimento dos Atingidos de Bar-ragem (MAB), o Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica, o Movimento dosAtingidos pela Base de Espacial de Alcântara (Mabe) e outros se articularam como resis-tência a medidas governamentais e contra os impactos provocados por “grandes obras”:rodovias, barragens, campos de provas das Forças Armadas.19 Acrescente-se ainda aUnião das Nações Indígenas (UNI), a Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira(Coiab) e o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Todas estas associações e entidades fo-ram criadas entre 1988 e 1998, à exceção do CNS e do Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra, que datam de 1985. Eles funcionam através de redes de organizações.A Coiab, por exemplo, foi criada em 19 de abril de 1989, em 2000 já articulava 64 en-tidades e hoje, em 2004, articula 75, incluindo a Federação das Organizações Indígenasdo Rio Negro (Foirn). Observe-se que a Foirn tinha, em 1999, 29 associações indígenasorganizadas em rede através da ACIBRN – Associação das Comunidades Indígenas Ribei-rinhas e a ACIMRN – Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro. ACoapima (Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Mara-nhão) foi criada em setembro de 2003 e abrange lideranças de seis diferentes povos in-dígenas. Verifica-se que há associações que estão simultaneamente em duas ou mais re-des de movimentos.

A Aconeruq – Associação das Comunidades Negras Rurais do Maranhão, formadaem novembro de 1997, em substituição à Coordenação Estadual Provisória dos Quilom-bos, criada em 1995, congrega atualmente 246 comunidades negras rurais e se vincula àCoordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas(Conaq). A Apoinme – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Es-pírito Santo, fundada em 1995, congrega trinta etnias oficialmente reconhecidas e outradezena que reivindica o reconhecimento formal.

O Conselho dos Índios da Cidade de Belém, que está em consolidação, congrega pe-lo menos quatro etnias, e se articula com movimentos em formação nas aldeias, como oConselho Indígena Munduruku do Alto Tapajós (Cimat). Em Manaus (AM) viveriam cer-ca de 30 mil índios; em Altamira (PA), cerca de 4.500; em Boa Vista (RR), mais de 12 mil;em Campo Grande (MT) haveria mais de 5 mil terenas. Aliás, segundo dados do CensoDemográfico de 2000, o município que possui a maior proporção de população indíge-na é São Gabriel da Cachoeira (AM), perfazendo 76,3% da população residente. Este nú-

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

22 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

rural do deputado federal Silvio Echenique, apresenta-do na Câmara em junho de1951, registra o termo “es-tabelecimento rural”. Entre1946 e 1964 parece nãohaver monopólio de uma ca-tegoria operacional exclusi-va. Os projetos de lei e asdiscussões constantes as-seguravam a possibilidadede uma pluralidade de cate-gorias. O reinado da catego-ria “imóvel rural”, a partir de1964, afunila o foco deação do Estado e abre lugarpara autoritarismos e arbi-trariedades que menospre-zam as especificidades lo-cais, os fatores étnicos e asdiferenças nas formas deapropriação dos recursosnaturais. A ilusão democráti-ca esconde o etnocentris-mo, daí as dificuldadesformais com a heterogenei-dade e com as diferençasestabelecidas pelas terrasindígenas, pelos quilombose pelas terras de uso co-mum. O Cadastro de ImóveisRurais do Incra adota, desde1966, a seguinte definiçãooperacional: “Imóvel rural,para os fins do Cadastro, éo prédio rústico, de áreacontínua, formado de umaou mais parcelas de terra,pertencentes a um mesmodono, que seja ou possa serutilizado em exploraçãoagrícola, pecuária, extrativavegetal ou agroindustrial, in-dependente de sua localiza-ção na zona rural ou urbanado Município”. As restriçõessão as seguintes: os imó-veis localizados na zona ru-ral e cuja área total seja infe-rior a 5.000m não sãoabrangidos pela classifica-ção de “imóvel rural”, eaqueles localizados na zonaurbana somente serão ca-dastrados quando tiveremárea total igual ou superior a2ha, bem como produçãocomercializada.

14 Cf. A. W. B. de Almeida,“Terras de preto, terras desanto, terras de índio – usocomum e conflito”, 1989.

15 A propósito, consulte-sea “Carta do Maranhão”, tam-bém conhecida como “Cartados Povos do Cerrado”, lan-çada em 22 de novembrode 2002 em João Lisboa(MA), que fala em “quebra-deiras de coco babaçu, va-zanteiros, índios (...) ribeiri-

Page 22: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

mero expressivo de indígenas nos centros urbanos tem levado à formação de organizaçõesque agrupam diferentes etnias.

Registra-se uma tendência de se constituírem novas redes de organizações e movi-mentos contrapondo-se, em certa medida, à dispersão e fragmentação de representaçõesque caracterizaram os anos imediatamente posteriores a 1988. De todas estas redes arti-culadoras de movimentos a mais abrangente, entretanto, e que tem maior representaçãoem organismos multilaterais (Bird, G-7) e a órgãos públicos é o Grupo de Trabalho Ama-zônico (GTA), fundado em 1991-1992, congrega mais de 500 entidades representativas deextrativistas, povos indígenas, artesãos, pescadores e pequenos agricultores familiares naAmazônia. O GTA desempenha papel de representação da sociedade civil no PPG-7 (Pro-grama Piloto de Proteção das Florestas Tropicais).

Observa-se, num emaranhado de articulações, que uma entidade pode simultanea-mente pertencer a mais de uma rede e que parte considerável das redes se faz representar noGTA, que tem nove regionais nos nove Estados da Amazônia. O Movimento Interestadualdas Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), por sua vez, tem coordenações em quatro Uni-dades da Federação, sendo três da Amazônia (Pará, Maranhão e Tocantins) e o primeiro daregião Nordeste (Piauí). A base territorial destes movimentos não se conforma, portanto, àdivisão político-administrativa, redesenhando a sociedade civil. O Monape tem duas coor-denações, uma no Pará e, outra no Maranhão.

Tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio político do sig-nificado dos termos camponês e trabalhador rural, que até então eram utilizados com pre-valência por partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na Contag (Con-federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e pelas entidades confessionais(Comissão Pastoral da Terra – CPT, Conselho Indigenista Missionário – Cimi, Ação Cristãno Meio Rural – ACR). Tal ruptura ocorre sem destituir o atributo político daquelas cate-gorias de mobilização. As novas denominações que designam os movimentos e que espe-lham um conjunto de práticas organizativas traduz transformações políticas mais profun-das na capacidade de mobilização destes grupos em face do poder do Estado e em defesade seus territórios.

Em virtude disto é que se pode dizer que mais do que uma estratégia de discurso tem-se o advento de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva, politizandonão apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também práticas rotineiras no uso dos re-cursos naturais. A complexidade de elementos identitários, próprios de autodenominaçõesafirmativas de culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional (Barth,1969),20 foi trazida para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura pro-funda com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente apagou diferençasétnicas e diversidades culturais, diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordi-nação dos “nativos”, “selvagens” e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador.

Não obstante diferentes planos de ação e de organização e de relações distintas comos aparelhos de poder, tais unidades de mobilização podem ser interpretadas como poten-cialmente tendentes a se constituir em forças sociais. Nesta ordem elas não representamapenas simples respostas a problemas localizados. Suas práticas alteram padrões tradicio-nais de relação política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação, pos-sibilitando a emergência de lideranças que prescindem dos que detêm o poder local. Des-taque-se, neste particular, que, mesmo distantes da pretensão de serem movimentos paraa tomada do poder político, logram generalizar o localismo das reivindicações e que, me-diante estas práticas de mobilização, aumentam seu poder de barganha com o governo e

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

23R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

nhos, geraizeiros, assenta-dos...”; além de ONGs am-bientalistas mobilizadas emtorno da Articulação doAgroextrativismo da RedeCerrados de ONGs.

16 No caso dos chamadosribeirinhos, a designação deMora (Movimento dos Ribei-rinhos do Amazonas) é pro-visória e há uma literaturaespecializada e de enti-dades confessionais quecomeçam a registrar dife-rentes aspectos deste movi-mento em formação. Ver:Dom G. F. Regis,, 2003; D.P. Neves (Org.), 2003; C. P.de Jesus, 2000.

17 No caso dos pescado-res, não estão inclusos osdenominados “caiçaras”,que se localizam no litoraldo Rio de Janeiro e de SãoPaulo, nem os chamados“maratimbas”, que se locali-zam no litoral Sul do EspíritoSanto e cujas formas de as-sociação ainda estariam seconsolidando sem terempassado, todavia, à expres-são acabada de movimentosocial.

18 Não obstante organiza-dos em associações, defen-dendo interesses locais, ospeconheiros, as extrativis-tas do arumã, os caiçaras eos piaçabeiros ainda não seagruparam em diferentesmobilizações e não se cons-tituíram em movimentosocial, a exemplo das de-mais identidades coletivasmencionadas. Há inúmerasreivindicações de consoli-dação de territorialidadesespecíficas de comunidadescaiçaras do litoral de SãoPaulo que foram encaminha-das ao Ministério PúblicoFederal no decorrer dos úl-timos seis anos. Tais asso-ciações referem-se a umaexistência atomizada, que,pelas mobilizações conti-nuadas, estaria descreven-do uma passagem para umaforma de existência coletivacapaz de configurar o queHobsbawm nomeia como“novos movimentos sociais”.

19 Os agrupamentos de en-tidades de representação eassociações voluntárias dasociedade civil tem levado adiferentes formas de articu-lação política. Uma das

Page 23: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

o Estado, deslocando os “mediadores tradicionais” (grandes proprietários de terras, co-merciantes de produtos extrativos-seringalistas, donos de castanhais e babaçuais). Derivadaí a ampliação das pautas reivindicatórias e a multiplicação das instâncias de interlocu-ção dos movimentos sociais com os aparatos político-administrativos, sobretudo com osresponsáveis pelas políticas agrárias e ambientais (já que não se pode dizer que exista umapolítica étnica bem delineada).

Está-se diante do reconhecimento de direitos até então contestados, e de uma certareverência dos poderes políticos às práticas extrativas do que chama de “populações tradi-cionais”. Os conhecimentos “nativos” sobre a natureza adquirem legitimidade política esua racionalidade econômica não é mais contestada, no momento atual, com o mesmovigor de antes. Bem ilustra isto a aprovação pela Assembléia Legislativa do Acre, sancio-nada pelo governador, em janeiro de 1999, de lei, mais conhecida como “Lei Chico Men-des”, que dispõe sobre a concessão de subvenção econômica aos seringueiros produtoresde borracha natural bruta. Esta Lei n.1277, de 13 de janeiro de 1999, foi regulamentadapelo Decreto estadual n.868, de 5 de julho de 1999, que reconhece no item V do Art. 1o,a necessidade do vínculo de produtores de borracha com suas respectivas entidades de re-presentação. De igual modo, há leis municipais que garantem a preservação e o livre aces-so aos babaçuais, incluindo propriedade de terceiros, a todos que praticam o extrativismoem regime de economia familiar que foram aprovadas pelas Câmaras de Vereadores emsete municípios do Estado do Maranhão e dois municípios do Estado do Tocantins, en-tre 1997 e 2003. Do Maranhão tem-se: Lei Municipal n.05/97 de Lago do Junco; Lein.32/99 de Lago dos Rodrigues; Lei n.255/99 de Esperantinópolis; Lei n.319 de São LuisGonzaga; Lei n.1084/03 de Imperatriz; Lei n.466/03 de Lima Campos; e Lei em votaçãona Câmara de Capinzal do Norte. No Tocantins foram aprovadas em Praia Norte, Lein.49/03, e Axixá, Lei n.306/03. Trata-se de reivindicações pautadas pelo Movimento In-terestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, que estão sendo implementadas em dife-rentes municípios. Estas leis municipais, que asseguram os babaçuais como recursos aber-tos, relativizando a propriedade privada do solo e separando-a do uso da coberturavegetal, são conhecidas localmente como leis do “Babaçu Livre”.

Os trabalhos das Assembléias Legislativas e das Câmaras Municipais passam, em cer-ta medida, a refletir as mobilizações étnicas e aquelas realizadas pelas chamadas “popula-ções tradicionais”. Iglésias (2000),21 numa acurada reflexãocom base em levantamento doCimi, sublinha que 350 índios se candidataram ao cargo de vereador; dez, a vice-prefei-to; e um, a prefeito nas eleições municipais de 2000. Foram eleitos oitenta vereadores, se-te vice-prefeitos e um prefeito.22 Destaque-se que nas mesmas eleições quarenta mulhe-res, que se auto-apresentavam como quebradeiras de coco babaçu, disputaram o posto devereador em diferentes municípios do Pará, do Tocantins e do Maranhão. Das candida-tas quebradeiras apenas duas foram eleitas. No caso dos quilombolas tem-se conhecimen-to de pelo menos cinco vereadores eleitos, em Pernambuco, São Paulo, Maranhão e Pará.Algumas interpretações, superestimando fatos desta ordem, asseveram que tais mobiliza-ções eleitorais acrescidas da criação obrigatória dos conselhos municipais, consoante aConstituição Federal de outubro de 1988, estão consolidando regionalmente um quartopoder. Há quem classifique o fenômeno de “conselhismo” (Lessa, 2001), sobreestimandotais inovações institucionais na gestão de políticas governamentais e afirmando tratar-sede um poder pararelo.23

Diferentemente da ação sindical, estes movimentos se estruturam segundo critériosorganizativos diversos, apoiados em princípios ecológicos, de gênero e de base econômi-

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

24 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

mais conhecidas refere-seaos chamados “fóruns” quepropiciam melhores condi-ções de mobilização a dife-rentes organizações, funcio-nando como dispositivo deconsulta adiante de interven-ção governamental. Alémdo Fórum Carajás e do Fó-rum da Amazônia Oriental,encontra-se agora em con-solidação, no Sudoeste doPará e no Norte de MatoGrosso, o Fórum de entida-des por uma “BR-163 Sus-tentável”. Em novembro de2003 foi realizado um en-contro de entidades em Si-nop, Mato Grosso, delinean-do as diretrizes de atuaçãoem relação às medidas go-vernamentais que tratam deproblemas ligados à con-cessão e ao asfaltamentoda rodovia BR-163. Paramais dados consulte: “Rela-tório Encontro BR-163 Sus-tentável – Desafios e susten-tabilidade socioambiental aolongo do eixo Cuiabá–Santa-rém”, 2003.

20 Cf. F. Barth, “Os gruposétnicos e suas fronteiras”, inT. Lask (Org.), 2000.

21 Cf. M. Iglésias, 2000.

22 “O Brasil tem 734 mil ín-dios, cerca de 200 mil delescom título de eleitor (...)”.No início de novembro de2003 a Coiab realizou reu-nião em Manaus para traçarestratégias eleitorais para2004. Cf. Biancarelli, 2003.

23 O fascínio pela quantida-de nutriu uma ilusão demo-cratista na formulação deLessa. Este autor afirmaque o IBGE produziu um cen-so mostrando que 99% dosmunicípios brasileiros têmconselhos, com representa-ção popular, funcionandonas áreas de saúde, educa-ção, meio ambiente e trans-porte. Segundo interpreta-ção do autor: “O perfil dosmunicípios traçado pela pes-quisa do IBGE mostra que oBrasil está se transforman-do numa república soviética.Afinal, a tradução da palavrarussa “soviete” é conselho,e os conselhos passaram afazer parte definitivamenteda gestão dos municípiosbrasileiros: em 1999, a mé-dia constatada pela pesqui-sa municipal foi de 4,9 con-selhos por município, um

Page 24: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ca heterogênea, com raízes locais profundas (Hobsbawm, 1994),24 menosprezando, comojá foi dito, a divisão político-administrativa. Os pescadores se organizam em colônias eassociações que transpassam limites estaduais, do mesmo modo que os regionais instituí-dos pelo MIQCB. Os seringueiros se organizam por seringais, as quebradeiras por povoa-dos próximos a babaçuais, enquanto os pescadores privilegiam o critérios de mobilizaçãopor bacias, como no caso da Central de Pescadores da Bacia Hidrográfica do Araguaia-Tocantins, com vinte entidades que somam 7.633 famílias, das quais 6.672 nbos arredo-res do lago da Barragem de Tucuruí. Tais movimentos não se estruturam institucional-mente de sedes e associados e nem das bases territoriais que confinam as ações sindicais.Intituem-se como formas livres de mobilização atreladas a situações de conflitos poten-ciais ou manifestos.

A organização da produção para um circuito de mercado segmentado, agregando valoratravés de tecnologia simples, constitui outro fator de aproximação que deve ser considera-do. Esta modalidade organizativa rompe com a dicotomia rural–urbano. Observe-se, nesteaspecto, que as quebradeiras de coco babaçu, por exemplo, fundaram em 2002, em São Luís,capital do Maranhão, através da Assema (Associação em Áreas de Assentamento no Estadodo Maranhão), um entreposto comercial e de representação política intitulado “Embaixadado Babaçu”. Funciona no centro histórico e dispõe à comercialização uma linha de produ-tos peculiar: farinha de mesocarpo; papel reciclado com fibra de babaçu; carvão de casca dococo babaçu; frutas desidratadas etc. Diferentes etnias se agruparam e constituíram no cen-tro de Manaus uma feira permanente com produção artesanal de diversos grupos.

Perfazem ainda estas características elementares de agrupamento, que indicam umnovo padrão de relação política, os fatores étnicos que tanto concernem a identidades co-mo quilombolas, quanto à emergência de novos povos indígenas, como no Alto Rio Ne-gro, e de novas formas associativas, perpassando etnias, como ocorre em Manaus e em Be-lém, onde famílias de diferentes etnias se agrupam numa mesma organização dereivindicação de direitos indígenas. No caso de Belém, como já foi sublinhado, tal organi-zação coordenada por um índio Munduruku, que se deslocou para a cidade e se aposen-tou como policial-militar, agrega também famílias Tembé e Urubu-Kaapor e se faz repre-sentar inclusive no Congresso da Cidade (Novaes et al., 2002),25 que é uma experiênciarecente de gestão democrática municipal abrangendo uma diversidade cultural e uma plu-ralidade de representações setoriais, de gênero e por local de residência.

Esta diversidade de agrupamentos se consolida também através de diferentes proces-sos de territorialização seja no campo ou nas áreas urbanas, seja referido à terra, estritosenso, ou aos recursos hídricos, configurando um mosaico de situações sociais referidas anoções práticas e operacionais que tanto falam em “territórios étnicos”,26 como no casodas comunidades quilombolas de Alcântara (MA), quanto em “territórios aquáticos”, co-mo no caso de pescadores da Vila do Jenipapo na iIlha do Marajó,27 sendo uma constru-ção social, o território atém-se aos critérios intrínsecos de mobilização e enfatiza o fatorque enuncia a disputa e o conflito. De certo modo, está-se diante da fabricação de novasunidades discursivas que substantivam e diversificam o significado das “terras tradicional-mente ocupadas”, além de refletirem as mobilizações políticas mais recentes, chamando aatenção para os sujeitos da ação e suas formas organizativas.

Para efeitos de exposição e síntese foi elaborado um quadro resumido dos principaismovimentos sociais referentes à questão das “terras tradicionalmente ocupadas”, suas ca-racterísticas organizativas e as representações diferenciadas que lhes asseguram a delega-ção ou o poder de falar em nome de um determinado conjunto de agentes sociais.

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

25R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

total de 26,9 mil sovietesespalhados por 99% dosmunicípios do País”, cf. R.Lessa, 2001; e, também, C.Otávio, 2003.

24 Cf. E. Hobsbawm, 1995.

25 Cf. J. Novaes, L. Araújo& E. Rodrigues, 2002.

26 Consulte-se a propósitoA. W. B. de Almeida, “Laudoantropológico – identifica-ção das comunidades rema-nescentes de quilombo emAlcântara”, 2002, que foielaborado por solicitação daSexta Câmara do MinistérioPúblico Federal.

27 A revista Cadernos do Ip-pur, v.XVI, n.2, ago./dez. de2002, menciona na chama-da de capa os denominados“territórios aquáticos”.

Page 25: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Quadro 3 – Movimentos sociais.*

Movimento/ Período Sede Rede de Representaçãoorganização(1) ou ano de organizações

fundação vinculadasCoiab(2) 1989 Manaus (AM) 75 165 povos indígenas da Ama-

zônia, onde vivem 495 mil índios que representam 68% da população indígena do País

Apoinme 1995 Recife (PE) — Trinta povos indígenas; 70 mil índios

UNI(3) 1978 São Paulo (SP) Dezenas de —Rio Branco (AC) associaçõesTefé (AM)

Coapima 2003 São Luís (MA) — Seis povos indígenas

CNS 1985 Rio Branco (AC) (4) 163 mil extrativistas (seringueiros e castanheiros)

MIQCB 1991 São Luís (MA) Sete regionais 400 mil “quebradeiras”com dezenas distribuídas pelo Maranhão,de associações Tocantins, Piauí e Pará

Conaq(5) 1996 São Luís (MA) “1.098 Comu- “2 milhões de pessoas”nidades rema-nescentes dequilombos” (6)

GTA 1991-92 Brasília (DF) Regionais nos Representa a sociedade civil nove Estados organizada da Amazônia da Amazônia, junto ao PPG-7abrangendo mais de 500 entidades

Monape 1990 São Luís (MA) Duas regionais Pescadores do MA e PA(7)

Mora 1996 Manaus (AM) Dezenas de Ribeirinhos do Amazonasassociações

Movimento de 1990 Manaus (AM) Dezenas de Ribeirinhos da Preservação de Lagos associações Amazônia(8)

Articulação Esta- 1974-90 Salvador (BA) “Quase 400 Vinte mil famílias, na regiãodual de Fundos e (9) associações do semi-árido da BahiaFechos de Pasto agropastoris”

MAB(10) 1989 PR, RS “regionais” “Mais de 1 milhão de pessoas”em todo o Brasil

Mabe(11) 2001 Alcântara (MA) Dezenas de Cerca de 15 mil pessoasassociaçõesorganizadasp/ povoados

Movimento pela 1989 Altamira (PA) Dezenas de —Sobrevivência da associaçõesTransamazônica(12)

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

26 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

* Ver lista de siglas ao finaldo artigo.

Page 26: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Notas1 Certamente que este quadro é provisório e acha-se incompleto, mas seu propósito cinge-se àquelas associações volun-

tárias da sociedade civil mais diretamente referidas a categorias compreendidas no significado de “terras tradicional-mente ocupadas”. Deste modo, não inclui entidades sindicais. Conforme levantamento do Ministério do Desenvol-vimento Agrário, realizado em julho de 2003, chegaria a 71 o número de organizações envolvidas em conflitos de terrae em ocupações. Além das 22 federações e seus respectivos sindicatos ligados à Confederação Nacional dos Trabalha-dores na Agricultura (Contag), fundada em 1963, tem-se o MST e outras 25 entidades que começam com o nomede Movimento, entre outros: Movimento dos Sem Terra Independente, Movimento de Libertação dos Sem Terra, Mo-vimento dos Carentes sem Terra... Cf. E. Éboli,“Campo tem 71 grupos envolvidos em conflitos”, in O Globo, Rio deJaneiro, 3 de agosto de 2003. Não foram, portanto, incluídos neste quadro o Movimento dos Trabalhadores Sem Ter-ra (MST), fundado em 1984, em Curitiba (PR), e que hoje se estende por todo o País; e o Movimento dos PequenosAgricultores, fundado no Rio Grande do Sul a partir dos chamados “Acampamentos da Seca”, que se organizaram nosmeses de janeiro e fevereiro de 1996. As associações de artesãos e extrativistas do arumã do Baixo Rio Negro, dos pia-çabeiros, do Alto Rio Negro, e dos peconheiros do Baixo Amazonas também não foram incluídas, porquanto estesmovimentos se acham em forma embrionária tendo se organizado principalmente em torno da produção. Em verda-de mais se aproximam da noção de cooperativas, como a Associação de Artesãs de Novo Airão (AM). Em termos po-tenciais elas apontam para áreas que têm sido tradicionalmente exploradas de forma comunitária, quais sejam: açai-zais, arumanzais e áreas de incidência de piaçaba; e que deveriam ser objeto de políticas específicas de preservaçãoambiental, através de áreas reservadas. Segundo este mesmo critério não foram incluídas associações diretamente re-feridas aos “faxinais”, às “terras de santo” e tampouco aquelas referidas a castanhais, que foram instituídos nos anos 50como “castanhais do povo”. Neste último caso partiu-se do pressuposto de que a representação estaria contempladano âmbito do Conselho Nacional dos Seringueiros.

2 A Coiab foi fundada em 19 de abril de 1989, se estrutura em rede e tem suas organizações-membro nos seguintes Es-tados: Amazonas, 46 (Foirn, Associação das Comunidades Indígenas do Distrito de Yauareté, Uncidi, Unirt, Associa-ção das Comunidades Indígenas do Rio Tiquié, ACIRX, ACIMRN, Arcine, Acibrin, Ainbal, Aciri, Acitrut, Aciru,Ucirn, Atriart, Cacir, Oibi, OGPTB, Osptas, Opim, Meiam, Civaja, UNI/Tefé, CGTT, Foccitt, CGTSM, CIM, Co-missão Indígena Kanamari, Oasism, Opism, Amarn, Amism, Amik, Amai, Amitrut, Opimp, Opamp, Upims, Opi-pam, Copiam, Aipat, Aisma, Opittamp, Opiam, ACINCTP e Comunidade Terra Preta); no Acre, 04 (UNI/Acre,MPIVJ, Opitarj e Opire); no Amapá, 04 (Apina, Apio, Apitu e AGM); Maranhão, quatro (Associação Indígena An-gico – Tot/Guajajara, Associação dos Povos Guajajara, Krikati e Awá, CIPK e Associação Wyty’Caty do Povo Gavião);Mato Grosso, três (Aspa, Fepoimt e Associação dos Povos Tapirapé); Pará, quatro (Cita, Cimat, Amtapama e Associa-ção Indígena Pussuru/Munduruku); em Rondônia, cinco (Cunpir, Associação Pamaré do Povo Cinta Larga, Organi-zação Metarelá do Povo Suruí, APK e Cois); em Roraima, três (CIR, Opir e Apir); e no Tocantins, duas (AIX e Con-selho das Organizações Indígenas da Bacia Araguaia e Tocantins). Cf. Coiab, “Unir para organizar, fortalecer paraconquistar”, Manaus, 2003

3 A UNI foi fundada em 1978, mas a organização só ganhou projeção a partir da Assembléia Nacional Constituinte ecom a formação da união dos “Povos da Floresta” em 1988. Em setembro de 1989 a UNI constituiu o Centro de Pes-quisas Indígenas, em Goiânia (GO). Para outras informações, consulte: C. A. Ricardo,– “Quem fala em nome dos ín-dios”, in Povos indígenas no Brasil: 1987/88/89/90, , São Paulo, 1991.

4 As associações das Resex, entre outras, a Associação dos Moradores da Resex Chico Mendes – Brasiléia (Amoreb), As-sociação dos Moradores da Resex Chico Mendes – Assis Brasil (Amoreab), Associação dos Seringueiros e Agricultoresda Resex Alto Juruá (Asareaj), Associação dos Moradores da Resex do Rio Ouro Preto (Asrop), Associação dos Traba-lhadores Extrativistas da Resex Rio Cajari (Astex-CA), estariam inclusas no CNS, bem como as associações de áreasde posse, que ladeiam as reservas, como a do Pinda em Brasiléia (AC), e as associações de áreas tituladas também vol-tadas para o extrativismo. Estariam inclusas aqui também as associações que envolvem seringueiros brasileiros que tra-balham em seringais da região de Pando, na Bolívia, cognominados de brasivianos e que participam com direito a vo-to nos Encontros Nacionais dos Seringueiros. No que tange a estes trabalhadores que têm migrado pelas fronteirasinternacionais da Amazônia, com ocupação recente de áreas, poderiam ser mencionados ainda: garimpeiros brasilei-ros no Suriname, agrupados na Cooperativa de Garimpeiros, que tem sede em Paramaribo, mas que exploram ouroaluvional em diferentes pontos do País, e trabalhadores brasileiros na Guiana Francesa, tanto os organizados em tor-no de documentação requerida para exercício de ocupação profissional, quanto os que se localizam clandestinamenteem áreas próximas ao rio Maroni. Para outras informações consulte: C. C. Martins, Os deslocamentos como catego-ria de análise-agricultura e garimpo na lógica camponesa, São Luis, 2000; B. M. G Esteves, Do “manso” ao Guardiãoda Floresta – estudo do processo de transformação social do sistema seringal a partir do caso da Reserva ExtrativistaChico Mendes, Rio de Janeiro, 1999; A. P. A. Soares, Travessia: análise de uma situação de passagem entre Oiapoquee Guiana Francesa, São Paulo, 1995. Não foram incluídos ainda os chamados “brasiguaios”, que se distribuem pelasáreas fronteiriças com o Paraguai.

5 A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) é uma organizaçãonacional e foi criada em 1996, em Bom Jesus da Lapa (BA), na reunião de avaliação do I Encontro Nacional de Qui-lombos (1995). Dela participaram representantes de comunidades de 18 Unidades de Federação, além de entidadesdo Movimento Negro e ligadas à questão agrária que apóiam a luta dos quilombolas.

6 “Segundo estudos do Projeto Vida de Negro (Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e Centro de Cultura Ne-gra do Maranhão) e levantamentos da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, Universidade de Brasí-lia (UnB) e Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Aconeruq), constituiu-se um mapeamento pre-liminar de 1.098 comunidades quilombolas. Estas comunidades estão presentes em quase todos os Estados brasileiros,com exceção de Roraima, Amazonas, Acre, Rondônia e Distrito Federal.” Cf. Conaq/Aconeruq/Cohre – Campanha

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

27R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 27: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Nacional pela Regularização dos Territórios de Quilombos, Direito à Moradia – Regularização dos Territórios de Qui-lombos, São Paulo, 2003.

7 Estas regionais são designadas respectivamente de Movimento dos Pescadores do Pará (Mopepa) e Movimento dosPescadores do Maranhão (Mopema).

8 De 19 a 23 de julho de 1999, ocorreram simultaneamente em Maromba, Manaus (AM), o XV Encontro de Ribeiri-nhos do Amazonas e o I Encontro de Ribeirinhos da Amazônia, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra e da Ce-se (Coordenadora Ecumênica de Serviços). Participaram mais de cem delegados, representando Comunidades de Ri-beirinhos de toda a região Amazônica.

9 A Central de Fundos de Pasto de Senhor do Bonfim foi fundada em 2 de setembro de 1974. Para mais esclarecimen-tos sobre esta questão, consulte documento intitulado “O fundo de pasto que queremos – política fundiária e agríco-la para os fundos de pasto baianos”, Salvador, abril de 2003. Não foram levantadas informações sobre organizaçõesestruturadas em torno do uso de áreas comuns de pastoreio em Pernambuco e Ceará, embora sejam registradas nes-tas unidades da federação sob outras designações como: “terras soltas” e “terras abertas”. O Projeto GeografAR –(-CNPq/Igeo/UFBA), coordenado pela geógrafa Guiomar Germani, levantou no decorrer de 2003, em 23 municípiosbaianos (Andorinhas, Antonio Gonçalves, Brotas de Macaúbas, Buritirama, Campo Alegre de Lourdes, Campo For-moso, Canudos, Casa Nova, Curaçá, Itiúba, Jaguarari, Juazeiro, Mirangaba, Monte Santo, Oliveira dos Brejinhos, Pi-lão Arcado, Pindobaçu, Remanso, Santo Sé, Seabra, Sobradinho, Uauá, Umburanas), um total de 255 associações depequenos produtores rurais. Estas associações muitas vezes trazem na sua denominação o nome do fundo de pasto aque se referem. Este nome pode estar ligado ao uso comum de recursos hídricos, à figura daquele que foi pioneiro nouso dos recursos ou a sentimentos religiosos ou ainda à fartura e beleza da terra. Assim tem-se referencias a aguadas,poços e nascentes, tais como: Fundo de Pasto Lagoa das Baraúnas, Fundo de Pasto Olho d’Água e Fundo de Pasto La-goa do Anselmo. Tem-se também referencias que denotam um sentido bíblico e que evocam a proteção de divinda-des tais como: Fundo de Pasto Nossa Senhora da Conceição, Fundo de Pasto de Bom Jesus dos Campos e Fundo dePasto de Terra Prometida. Há também referências que afirmam uma beleza perene da natureza, tais como: Fundo dePasto Primavera e Fundo de Pasto Bom Jardim. Tem-se ainda referências a quem localizou ou abriu os recursos, asse-gurando seu uso comum, tal como no caso do Fundo de Pasto de Antonio Velho.

10 Três situações sociais de resistência a deslocamentos compulsórios de populações por parte do Estado, que principia-ram no final dos anos 70, caracterizam a formação do Movimento dos Atingidos por Barragens, segundo o Cadernodo MAB, n.7, intitulado “MAB: uma história de lutas, desafios e conquistas”: “Primeiro na região Nordeste, no finaldos anos 70, a construção da UHE de Sobradinho no Rio São Francisco, onde mais de 70.000 pessoas foram deslo-cadas, e mais tarde com a UHE de Itaparica foi palco de muita luta e de mobilização popular. Segundo no Sul, qua-se que simultaneamente em 1978, ocorre o início da construção da UHE de Itaipu, na bacia do rio Paraná, e é anun-ciada a construção das Usinas de Machadinho e Ita na bacia do Rio Uruguai, que criou um grande processo demobilização e organização na região. Terceiro na região Norte, no mesmo período, o povo se organizou para garantirseus direitos frente a construção da UHE de Tucuruí.”(MAB, s.d., p.6).

11 O Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara foi fundado em julho de 2001 e congrega representa-ções de 139 povoados, localizados nos 62 mil hectares da área desapropriada para instalação do Centro de Lançamen-to, e cerca de trinta povoados localizados em áreas circundantes.

12 O Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica, atual MDTX (Movimento pelo Desenvolvimento daTransamazônica e do Xingu) , sediado em Altamira (PA), desde 1989, se estrutura segundo um critério regional,abrangendo a população dos municípios paraenses que ladeiam ou são cortados pela rodovia Transamazônica, cons-truída no início dos anos 70.

PROCESSOS DE TERRITORIALIZAÇÃO

Há, portanto, diferentes processos de territorialização em curso que devem ser obje-to de reflexão detida. Babaçuais, castanhais e seringais, sob este prisma, não significamapenas incidência de uma espécie vegetal ou uma “mancha”, como se diz cartograficamen-te, mas tem uma expressão identitária traduzida por extensões territoriais de pertencimen-to. Esta expressão foi construída politicamente através das mobilizações por livre acessoaos recursos básicos. Para se ter uma ordem de grandeza destas territorialidades especifi-cas, que não podem ser lidas como “isoladas” ou “incidentais”, pode-se afirmar o seguin-te: dos 850 milhões de hectares no Brasil cerca de 1/4 não se coadunam com as catego-rias estabelecimento e imóvel rural e assim se distribuem: cerca de 12% da superfíciebrasileira, ou aproximadamente 110 milhões de hectares, correspondem a cerca de 600terras indígenas. Estima-se oficialmente que as terras de quilombo correspondam a maisde 30 milhões de hectares. Em contraste, as terras de quilombos tituladas correspondema cerca de 900 mil hectares. Os babaçuais sobre os quais as quebradeiras começam a es-

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

28 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 28: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

tender as Lei do Babaçu Livre correspondem a pouco mais de 18 milhões de hectares, lo-calizados notadamente no Meio-Norte. Em contrapartida as reservas extrativistas de ba-baçu não ultrapassam 37 mil hectares. Os seringais se distribuem por mais de 10 milhõesde hectares e são objeto de diferentes formas de uso. Embora o Polígono dos Castanhais,no Pará, tenha um milhão e duzentos mil hectares, sabe-se que há castanhais em Rondô-nia, no Amazonas e no Acre numa extensão não inferior a 15 milhões de hectares. Emcontrapartida as reservas extrativistas de castanha, de “seringa” e de pesca perfazem me-nos de 10% do total das áreas com incidência de extrativismos, ou seja, um total de3.101.591 hectares, com população de 36.850 habitantes. Acrescentando-se a estas exten-sões aquelas dos extrativistas do açaí, do arumã, dos ribeirinhos e das associações de fun-do de pasto (na região do semi-árido) e demais povos e grupos sociais que utilizam os re-cursos naturais sob a forma de uso comum, numa rede de relações sociais complexas, quepressupõem cooperação simples no processo produtivo e nos afazeres da vida cotidiana,tem-se um processo de territorialização que redesenha a superfície brasileira e lhe empres-ta outros conteúdos sociais condizentes com as novas maneiras segundo as quais se orga-nizam e autodefinem os sujeitos sociais.28 Em verdade o que ocorre é a construção deidentidades específicas junto com a construção de territórios específicos. O advento de ca-tegorias como os chamados “sem-terra” e os “índios misturados”29 também podem per-mitir um entendimento mais acurado deste processo. Anote-se que novos povos indíge-nas estão surgindo, tanto na Amazônia, quanto no Nordeste ou no Sudeste do País.Veja-se o exemplo do Ceará que vinte anos atrás oficialmente não registrava índios e ho-je possui nove ou dez povos indígenas. Concomitante ao “surgimento” há critérios polí-tico-organizativos que se estruturam em cima da demanda por terras. As terras vão sendoincorporadas segundo uma idéia de rede de relações sociais cada vez mais fortalecida pe-las autodefinições sucessivas ou pela afirmação étnica.

Para bem ilustrar isto recorra-se à leitura dos dados censitários: o Censo Demográ-fico de 2000 constata que os povos reunidos sob a classificação de indígenas foram os quetiveram a maior taxa de crescimento populacional entre 1991 e 2000. Cresceram a umataxa anual de 10,8%, duplicando sua participação no total da população brasileira de0,32% para 0,4%. Sublinhe-se que neste mesmo período a população total do Brasil cres-ceu a uma taxa de 1,6% ao ano. Os que se autodeclararam pretos30 aumentaram 4,2%. Ocrescimento de indígenas e de pretos não se deveu à multiplicação da população de aldeiase comunidades negras, mas a uma mudança na maneira de auto-identificação do recen-seado. Sim, as pessoas estão se autodenominando na relação das identidades de afirmaçãoétnica, que pressupõem territorialidades específicas. Elegendo a região Norte, Amazônia,constatamos que apenas 29,3% se autodenominam brancos, todos os demais, ou seja,mais de 2/3 da população, se apresentam como indígenas, pretos e pardos. Em outras pa-lavras a região Norte tem uma “fisionomia étnica” que aparentemente, pelo percentualdos brancos, mais poderia ser aproximada de países como Bolívia, Peru e Equador.

Assim, juntamente com o processo de territorialização tem-se a construção de umanova “fisionomia étnica”, através da autodefinição do recenseado, e de um redesenho da so-ciedade civil, pelo advento de centenas de novos movimentos sociais, através da autodefini-ção coletiva. Todos estes fatores concorrem para compor o campo de significados do que sedefine como “terras tradicionalmente ocupadas”, em que o tradicional não se reduz ao his-tórico e incorpora identidades redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada.

As políticas ambientais e agrárias ressentem neste sentido da incorporação dos fato-res étnicos nos seus instrumentos de intervenção direta e daqueles outros recursos técni-

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

29R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

28 Pode-se cotejar este per-centual com o fato de quehá 200 milhões de hectaressobre os quais o cadastrodo Incra não possui qualquerinformação. As terras cadas-tradas referem-se a somente650 milhões de hectares.Em virtude disto delineia-semais uma ação governamen-tal inócua pois, sem modifi-car as atuais categorias cen-sitárias e cadastrais, o Incrapretende implantar a partirde março de 2004 o Siste-ma Nacional de Cadastro deImóveis Rurais.

29 Consulte-se J. P. de Oli-veira, “Uma etnologia dos ‘ín-dios misturados’: situaçãocolonial, territorialização efluxos culturais”, 1999.

30 O IBGE utiliza o termo“preto” e não o termo “ne-gro” como classificatório. Acategoria censitária “preto”entre 1872, data do primei-ro Censo, e 1991 apresentaum declínio percentual, ouseja, em 1872 representava19,68% da população total;em 1890, 14,63%; em1950, 10,96%; em 1960,8,71%; em 1980, 5,92%; eem 1991, 5,01%. São 119anos de declínio constante,como a sinalizar que estariaocorrendo um “embranque-cimento” da população. Noano de 2000, entretanto,houve um crescimento per-centual superior ao dos cha-mados “brancos”, quebran-do a série de mais de umséculo de declínio. As pes-soas que se autodeclararam“pretos” aumentaram emquase 40% entre os doiscensos, de 1991 e 2000.

Page 29: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

cos que lhes possam permitir uma compreensão mais precisa das modalidades de uso co-mum vigentes. Definir oficialmente unidades de conservação apenas pela incidência deespécies31 e operar com as categorias cadastrais e censitárias convencionais significa incor-rer no equívoco de reduzir a questão ambiental a uma ação sem sujeito.

Os movimentos sociais apresentam-se como um fator de existência coletiva que con-testa esta insistência nos procedimentos operativos de ação sem sujeito. É deste prismaque pretendo chamar a atenção para a relevância de se abrir uma discussão ampla sobreas “terras tradicionalmente ocupadas” e sobre os processos de territorialização que lhes sãocorrespondentes no momento atual.

LISTA DE SIGLAS

ACIMRN Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio NegroACNRQ Associação das Comunidades Negras Rurais QuilombolasACR Ação Cristã no Meio RuralADCT Ato das Disposições Constitucionais TransitóriasAmoreb Associação dos Moradores da Resex Chico Mendes – Brasiléia Amoreab Associação dos Moradores da Resex Chico Mendes – Assis BrasilApoinme Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito SantoAsareai Associação dos Seringueiros e Agricultores da Resex Alto Juruá Asrop Associação dos Moradores da Resex do Rio Ouro PretoAssema Associação em ¡reas de Assentamento no Estado do MaranhãoAstex – CA Associação dos Trabalhadores Extrativistas da Resex Rio CajariCese Coordenadora Ecumênica de ServiçosCimi Conselho Indigenista MissionárioCIR Conselho Indígena de Roraima CNPT Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais CNS Conselho Nacional dos SeringueirosCoapima Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do MaranhãoCoiab Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira Conaq Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilom-

bolasContag Confederação Nacional dos Trabalhadores na AgriculturaCPT Comisão Pastoral da TerraFoirn Federação das Organizações Indígenas do Rio NegroGTA Grupo de Trabalho Amazônico MAB Movimento dos Atingidos de BarragemMabe Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alc‚ntaraMDTX Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu ex-Movimen-

to pela Sobrevivência da TransamazônicaMIQCB Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu Monape Movimento Nacional dos Pescadores Mopepa Movimento dos Pescadores do Pará Mopema Movimento dos Pescadores do MaranhãoMora Movimento dos Ribeirinhos do AmazonasOIT Organização Internacional do trabalhoPPG-7 Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais BrasileirasPVN-SMDDH Projeto Vida de Negro da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos HumanosUnB Universidade de BrasíliaUNI União das Nações IndígenasUsagal União dos Sindicatos e Associações de Garimpeiros da Amazônia Legal

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

30 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

31 Consoante as determina-ções do Art.57 da Lein.9.985 foram registrados,segundo o Ibama, 28 casosde superposição entre ter-ras indígenas e unidades deconservação. Os casosmais conflitantes seriam osparques nacionais de MontePascoal, Araguaia, Neblina eEstação Ecológica de Iquê.Consoante parecer do as-sessor jurídico do Cimi, Pau-lo Guimarães: “Regularizar asuperposição de Unidade deProteção Integral (...) impli-ca inconstitucionais restri-ções à posse permanente eao usufruto exclusivo dospovos indígenas às riquezasnaturais existentes nas ter-ras que tradicionalmenteocupam, pelo fato de nestetipo de unidade de conser-vação ser ‘admitido apenaso uso indireto dos seus re-cursos naturais’”, cf. Poran-tim, nov. 2000.

Alfredo Wagner Berno deAlmeida é professor visi-tante do PPGACP/UFF. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em marçode 2004 e aceito para publi-cação em maio de 2004.

Page 30: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, A. W. B. de. “Universalização e localismo – Movimentos sociais e crise dospadrões tradicionais de relação política na Amazônia”. Reforma Agrária, ano 19, n.1,p.4-7, abril/jun. 1989.

_______. “Terras de preto, terras de santo, terras de índio – uso comum e conflito.” Be-lém, Cadernos do Naea, n.10, p.163-96, 1989.

_______. “As quebradeiras de coco babaçu: identidade e mobilização.” São Luís, MIQCB– Caderno de Formação, n.1, p.17-8, 1995.

_______. “Laudo antropológico – identificação das comunidades remanescentes de qui-lombo em Alcântara.” São Luís: Sexta Câmara do Ministério Público Federal, set.2002. 385p.

ALMEIDA, A. W. B. de; SPRANDEL, M. A. “Palafitas do Jenipapo na Ilha de Marajó:a construção da terra, o uso comum das águas e o conflito”. Rio de Janeiro, Cader-nos do Ippur, v.XVI, n.2, p.9-55, ago./dez. 2002.

BARTH, F. “Os grupos étnicos e suas fronteiras”. In: LASK, T. (Org.) O guru, o inicia-dor e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000. p.25-67.

BASES PARA uma política nacional da castanha. Belém: s.n., 1967.BIANCARELI. “Indios no Brasil traçam plano eleitoral”. São Paulo, Folha de S.Paulo,

p.A-27, 2.11.2003. BORGES, P. Do valor alimentar da castanha-do-pará. Rio de Janeiro: SAI – Ministério da

Agricultura, 1967.CARTILHA DO Movimento Ribeirinho do Amazonas. Manaus, 2003. I Seminário so-

bre Identidade Ribeirinha. Manaus: CPT, 2003. CARVALHO, A. Reforma Agrária, Rio de Janeiro, ed. O Cruzeiro, 1962.CARVALHO MARTINS, C. Os deslocamentos como categoria de análise – agricultura e ga-

rimpo na lógica camponesa. São Luís, 2000. Dissertação (Mestrado) – UniversidadeFederal do Maranhão.

CIRNE LIMA, R. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. Goiâ-nia: Ed. UFG, 2002.

CLAY, J. W. “Brasil nuts. The use of a keystone species for conservation and develop-ment.” In: FREESE, C. (Ed.) Harvesting wild species. New York: The John HopkinsUniversity Press, 1997. p.246-82.

COIAB. “Unir para organizar, fortalecer para conquistar”. Manaus: s.n., 2003.CONAQ/ACONERUQ/COHRE. Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios

de Quilombos. Direito à moradia – regularização dos territórios de quilombos. São Pau-lo: s.n., agosto de 2003.

ÉBOLI, E. “Campo tem 71 grupos envolvidos em conflitos.” Rio de Janeiro, O Globo,3.8.2003.

ESTEVES, B. M. G. Do “manso” ao Guardião da Floresta – estudo do processo de transfor-mação social do sistema seringal a partir do caso da Reserva Extrativista Chico Mendes.Rio de Janeiro,1999. Tese (Doutorado) – CPDA da Universidade Federal de Ro-raima.

HOBSBAWM, E. Era dos Extremos – o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Cia. dasLetras, 1995.

IGLÉSIAS, M. “Os índios e as eleições municipais no Acre”. Rio de Janeiro, out. 2000.(Mimeo.)

A L F R E D O W A G N E R B . D E A L M E I D A

31R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 31: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

JESUS, C. P. de. Utopia cabocla amazonense – agricultura familiar em busca da economiasolidária. Canoas (RS): Editora da Ulbra, 2000.

MAB – Movimento de Atingidos por Barragens. Caderno do MAB, n.7 – “MAB: uma his-tória de lutas, desafios e conquistas”, s.d.

_______. Caderno de Formação, n.5, p.3, s.d.NEVES, D. P. (Org.) A irmã Adonai e a luta social dos ribeirinhos – contribuição para a

memória social. Niterói: s.n, 2003.NOVAES, J; ARAÚJO, L.; RODRIGUES, E. Congresso da cidade – construir o poder po-

pular, reinventando o futuro. Belém: Labor, 2002.OTÁVIO, C. “Os conselhos municipais se multiplicam no país.” Rio de Janeiro, O Glo-

bo, 13.11.2003.PACHECO DE OLIVEIRA, J. “Uma etnologia dos ‘índios misturados’: situação colo-

nial, territorialização e fluxos culturais.” In:_______. (Org.) A viagem de volta – et-nicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: ContraCapa, 1999. p.11-40.

PORANTIM. Brasília, ano XXII, n.230, nov. 2000.REGIS, Dom G. F. Pistas ribeirinhas. Prelazia de Coari, 2003.“O FUNDO de pasto que queremos – política fundiária e agrícola para os fundos de pas-

to baianos.” Salvador (BA), abril 2003.SOARES, A. P. A. Travessia: análise de uma situação de passagem entre Oiapoque e Guia-

na Francesa. São Paulo, 1995. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Geogra-fia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de SãoPaulo.

TONI, F.; KAIMOWITZ, D. (Orgs.) Municípios e gestão florestal na Amazônia. Natal:A.S. Editores, 2003.

ENCONTRO BR-163 SUSTENTÁVEL. “Relatório Encontro BR-163 Sustentável –desafios e sustentabilidade socioambiental ao longo do eixo Cuiabá–Santarém”. Si-nop (MT), Campus Unemat, 18 a 20 de novembro de 2003. Sinop: Anais…, 2003.108p.

A B S T R A C T The article analyzes the relation between the rise, in the BrazilianAmazon region, of social movements that incorporate ethnical, ecological and gender criteriain its self-definition as well as its correspondent territorialization processes. Focus is put on the“traditionally occupied lands” that express diversified forms of collective existence of people andsocial groups in its relation to natural resources. Despite its different historical formation, theseforms has been institutionalized in the 1988 national Constitution as well as in infra-constitutional legal instruments. In analytical terms, these forms indicate situations in whichthe control over resources is not exercised freely and individually by some domestic group ofdirect little producers or one of its members. The territoriality operates as a factor ofidentification, self-defense and strength: solidarity linkages and mutual help practices nourishthe creation of a set of rules based on a common physical terrain, seen as essential andinalienable. The notion of traditional is here not reduced to history, but incorporates collectiveidentities defined in a continuous mobilization through social figures interpreted asmobilizing unities.

K E Y W O R D S Amazon region; social movements; territoriality.

T E R R A S T R A D I C I O N A L M E N T E O C U P A D A S

32 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 32: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ARTIGOS

Page 33: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

PRIVATIZANDO O H2OTRANSFORMANDO ÁGUAS LOCAIS EM DINHEIRO GLOBAL1

E R I K S W Y N G E D O U W

R E S U M O O artigo aborda criticamente o projeto global de privatização e mercan-tilização de recursos hídricos. Na primeira seção, as políticas neoliberais de privatização sãocontextualizadas histórica e politicamente. Em uma segunda seção, o discurso da “escassez”da água é explorado, relacionando-o com a lógica da privatização. Na seção subseqüente, asestratégias das corporações globais que dividem o mercado de água são examinadas. Isso, porsua vez, nos leva a considerar a centralidade contínua do Estado e o controle na regulamen-tação do setor de saneamento, assim como a uma discussão sobre a posição enfraquecida docidadão vis-à-vis esses modos de controle da água. Por fim, as contradições da privatizaçãoda água são exploradas.

P A L A V R A S - C H A V E Recursos hídricos; privatização; saneamento.

INTRODUÇÃO

Cerca de um bilhão de pessoas no mundo inteiro não tem acesso a água razoavel-mente limpa. Muitas dessas pessoas vivem nas megacidades dos países em desenvolvimen-to (Kan & Streiff, 2002). Enquanto a água é muitas vezes oferecida em abundância, mi-lhões de pessoas estão condenadas a lutar diariamente pelo acesso a um pouco de águapotável. O acesso à água é de fato um terreno de muita competição, imerso em diversasformas de embates e conflitos políticos e econômicos. O acesso problemático à água tor-nou-se uma das principais causas de morte prematura, saúde deficiente e chances reduzi-das de vida. Dessa forma, constitui um problema-chave político, social e ambiental glo-bal. Ao mesmo tempo, a água se tornou uma das áreas centrais de teste para aimplementação de políticas neoliberais globais e nacionais. A privatização da produção edistribuição de serviços de saneamento, particularmente os sistemas urbanos de abasteci-mento de água, se tornou uma arena importante em que empresas capitalistas globaisoperam em busca de crescimento econômico e lucro.

Uma das frágeis conclusões e um objetivo declarado da Cúpula de Johannesburgorealizada em 2002 era reduzir pela metade o número de pessoas sem acesso adequado aesgoto e água limpa. Como não houve comprometimentos financeiros significativos dospaíses participantes, o “mercado” e as forças de “mercado” foram nomeados as alavancasatravés das quais esse nobre objetivo seria alcançado. Apesar de declarações tonitruantes,pode-se agora prever que, a não ser que um grande investimento público seja canalizadopara fornecer serviços de saneamento e que a hegemonia das formas neoliberais de pres-tação de serviço seja abandonada, o número de pessoas sem atendimento de água e esgo-to aumentará até 2015, ao invés de cair pela metade.

Este artigo aborda criticamente o projeto global de mercantilização e privatizaçãodos recursos hídricos e, especificamente, dos sistemas de abastecimento de água urbanos.Na primeira parte do artigo, é contextualizada histórica e politicamente a atual onda depolíticas de privatização neoliberais. Na segunda, é explorado o discurso da “escassez”

33

1 Tradução de Diogo LanaMonte-Mór.

Page 34: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

de água dos ambientalistas em relação à formação de uma lógica de privatização hegemô-nica. Na parte seguinte, são examinadas criticamente as estratégias dos “Mandarins daÁgua”, algumas poucas corporações globais que dividem grande parte dos mercados pri-vatizados locais de água. Isso, por sua vez, nos leva à consideração da centralidade contí-nua do Estado e das instituições “governativas” na organização e regulamentação do setordo saneamento e a uma discussão da posição enfraquecida do cidadão vis-à-vis essas no-vas formas de governabilidade da água. Por fim, as contradições da privatização da águasão exploradas em conjunto com vozes de protesto e descontentamento que desafiam osenso comum de que as forças de mercado podem proporcionar o acesso social, alocaçãoe/ou distribuição ótimos da água.

A ECONOMIA-POLÍTICA DA ÁGUA EM MUDANÇA

O NEXO PÚBLICO/PRIVADO

Apesar dos debates acirrados sobre as potenciais ou reais mudanças em direção à pri-vatização (um debate que é muitas vezes expresso nos termos de uma adaptação necessá-ria e inevitável das políticas nacionais aos requisitos impostos por uma nova ordem eco-nômica mundial desregulada), há na verdade uma longa história de mudanças no setor defornecimento de água. Desde o começo dos sistemas de água urbanos, eles têm sido ca-racterizados pelas mudanças de configuração nas participações relativas do público e doprivado. A maioria dos estudos internacionais demonstra que a organização dos sistemasde suprimento de água pode ser dividida em quatro estágios (Hassan, 1998). O primeiroestágio seguiu até a segunda metade do século XIX, quando a maioria dos sistemas de su-primento de água consistia em companhias relativamente pequenas que forneciam a re-giões da cidade (geralmente as áreas mais ricas) uma água de qualidade variável (Corbin,1994; Goubert, 1989). O suprimento de água era altamente estratificado socialmente eas fornecedoras de água visavam gerar lucro para os investidores (Swyngedouw, 2004).

Seguiu-se um período de municipalização, primariamente estimulado por preocupa-ções com as condições ambientais em deterioração e pela demanda por uma cidade sanea-da (Cornut, 2003). No Reino Unido – assim como em outros locais da Europa – isto to-mou a forma de um socialismo municipal preocupado em prover bens públicos essenciaisa preços mínimos, muitas vezes subsidiados (Laski et al., 1935; Millward, 1991). Lucrarera sem sombra de dúvida uma preocupação secundária e os subsídios vinham da arreca-dação total de impostos (tanto do governo municipal quanto do nacional). Essa munici-palização era apoiada pelas elites locais cujas condições ambientais e de saúde tambémeram negativamente afetadas pela deterioração dos padrões sanitários das cidades. Foi du-rante esse período que os sistemas de fornecimento de água foram consolidados, levando auma cobertura padronizada de abastecimento doméstico de água, com um sistema de eli-minação de esgoto (apesar de não haver tratamento). Países e cidades no mundo menos de-senvolvido começaram a copiar o modelo europeu no estabelecimento de seus próprios sis-temas urbanos sanitários (Anton, 1993; Swyngedouw, 2004).

O terceiro estágio começou aproximadamente depois da Primeira Guerra Mundialquando o setor de água e saneamento, juntamente com os principais serviços urbanos (co-mo eletricidade e telecomunicações), se tornou parte de uma preocupação nacional cres-cente (Bernstein, 1995; Littlechild, 1986). O Estado, com graus variados de intensidade

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

34 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 35: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

de controle, regulação e investimento, assumiu um papel muito mais efetivo no forneci-mento de serviços públicos (Parker, 1997). A infra-estrutura das águas tornou-se – comoutros grandes serviços e programas de infra-estrutura – parte de uma política social eeconômica fordista-keynesiana liderada pelo Estado. Os investimentos em infra-estrutu-ra (represas, canais, redes de esgoto) faziam, por um lado, parte de um esforço para gerare/ou apoiar o crescimento econômico, enquanto, por outro, asseguravam uma relativa pazsocial por meio de políticas redistributivas (Amin, 1994; Moulaert & Swyngedouw, 1987;Gandy, 1997). Três objetivos eram centrais nesse período fordista de expansão do forne-cimento de água: a criação de empregos, a geração de demanda por investimento do se-tor privado e, por último, a produção coletiva de bens de produção e consumo (comoágua, educação e habitação) a preços subsidiados para trabalhadores assalariados assim co-mo para as indústrias (Herrington & Price, 1987). Em alguns contextos, o fornecimentode água foi nacionalizado (por exemplo, no Reino Unido e em muitos países em desen-volvimento). Em outros casos, apesar de o gerenciamento permanecer nas mãos das au-toridades municipais, o Estado exerceu um papel cada vez maior, particularmente no fi-nanciamento de projetos de infra-estrutura (como, por exemplo, na França, Equador,Espanha e Israel), mas também através de uma intervenção regulamentadora mais forte.Foi também durante esse período que diversas entidades reguladoras (de regulação social,qualitativa ou ambiental) foram criadas, geralmente pelo e no âmbito do Estado nacio-nal. Essas mudanças institucionais também asseguraram que um conjunto organizado deagentes (consumidores, sindicatos etc.) se envolvesse. Em resumo, o setor do saneamen-to se tornou uma parte fundamental da visão de Estado fordista e corporativista.

Durante a quarta e mais recente fase, iniciada por volta da recessão global da déca-da de 1970, período associado ao fim do crescimento econômico liderado pelo Estado ea subseqüente transição a formas pós-fordistas ou flexíveis de desenvolvimento econômi-co e liderança do Estado (Moulaert & Swyngedouw, 1987), uma grande mudança ocor-reu na interação público–privado no setor de saneamento. Primeiramente, problemaseconômicos acumulados – no contexto de altos gastos e investimentos sociais – resulta-ram em dificuldades orçamentárias crescentes para o Estado nacional (e muitas vezes tam-bém o poder local). Isso trouxe a necessidade de uma reconsideração do direcionamentodos dispêndios do Estado e resultou em gastos reduzidos nas políticas sociais e em apoioàs indústrias livres de dívidas ou programas de expansão da infra-estrutura (Ruys, 1997).Os preços baixos, os investimentos subsidiados em água e esgoto e o envelhecimento dainfra-estrutura sanitária, combinados com uma crescente demanda por água, pressiona-ram ainda mais os orçamentos; esta pressão agia em direção contrária aos processos men-cionados. Isso foi particularmente visível no mundo em desenvolvimento. O festival deempréstimos da década de 1970, quando o capital dos países ricos buscava desesperada-mente saídas no Terceiro Mundo para reciclar o que fora sobreacumulado (especialmen-te os petrodólares) e que não encontrava oportunidades de investimento lucrativo nomundo desenvolvido estável, esvaziou-se durante a década de 1980 à medida que o mon-tante das dívidas cresceu (Corbridge, 1993). Problemas de pagamento das dívidas com-binados com as tentativas desesperadas dos financiadores em assegurar suas posições ge-raram uma série de programas de “ajuste estrutural” impostos, visando estabilizar a ordemfinanceira mundial, mas deixando os Estados do mundo em desenvolvimento com a ta-refa nada invejável de cortar gastos, privatizar e desregulamentar.

Além disso, a procura por uma competitividade maior como meio de contornar acrise econômica da década de 1970 e início de 1980 estimulou a busca por ganhos em

E R I K S W Y N G E D O U W

35R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 36: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

eficiência e maior produtividade através de eliminação da burocracia, desregulamentaçãodo mercado de trabalho e maior flexibilidade de investimento. Isso, por sua vez, foi segui-do por tendências de privatização como meio para buscar ambas as “receitas-soluções” àcrise do fordismo. Ademais, a globalização crescente da economia e a mudança paralela nacompetição, a maior disposição de capital privado através da desregulamentação e dester-ritorialização de mercados financeiros, além da imposição de normas de orçamento rígi-das (pela União Européia ou pelo FMI), aceleraram ainda mais a modificação nas frontei-ras entre os setores público e privado no gerenciamento da água em favor do último.

Terceiro, os canais usuais de governo, democráticos porém corporativistas, e fre-qüentemente infundidos pela presença e pelo poder de lobby ativo de organizações sociais– notadamente sindicatos – mostraram-se uma barreira considerável à implementação demudanças ágeis nas políticas. A configuração político-econômica tem, conseqüentemen-te, mudado de forma importante, resultando em novos arranjos institucionais que permi-tem um gerenciamento mais orientado para os negócios – ou o mercado –, o que está emmaior sintonia com as estratégias de geração de lucro (Ogden, 1991, 1995; Jessop, 2002).

Quarto, os problemas ambientais crescentes e, conseqüentemente, o número maiorde conflitos reais e potenciais na gerência e regulamentação do ciclo “hidrossocial” (parauma elaboração teórica sobre a noção de ciclo hidrossocial, ver Swyngedouw, Castro &Kaïka, 2002a) provaram ser um desafio sério para as formas tradicionais de organização eimplementação de atividades relacionadas à água. No contexto particular em que gruposambientalistas da sociedade civil se tornaram mais fortes e expressivos, os sistemas de go-vernança tinham de se tornar mais sensíveis a essas questões. Tornaram-se mais fortemen-te ouvidas as questões relativas à restrição e ao controle de demanda (gerenciamento dedemanda) como uma estratégia para reduzir o consumo de água e, portanto, remover aspressões para a expansão da base de recursos sanitários urbanos bem como sobre os danosecológicos causados pelas cidades (sua “pegada ecológica”). A internalização de todas es-sas tensões em um setor basicamente pertencente e controlado pelo Estado, como o setorde água e saneamento, tornou-se cada vez mais difícil (Swyngedouw, 1998).

Por fim, e talvez o mais importante, alguns investidores começaram a buscar novasfronteiras para o investimento de capital. A água se mostrou uma possível fonte a mobili-zar e aproveitar, já que oferecia a possibilidade de transformar H2O (de novo) em capitale lucro. Essa privatização dos recursos comuns através de uma estratégia de “acumulaçãopor despossessão” (ver Harvey, 2003) tornou-se crescentemente central à dinâmica de acú-mulo na medida em que as rotas-padrão de reestruturação dos processos econômicos ca-pitalistas existentes e os investimentos em novos produtos não eram mais suficientes paraabsorver o volume crescente de capital em busca de vias de investimento lucrativas. De fa-to, a água, juntamente com outros valores públicos, como códigos genéticos, conhecimen-tos locais e afins, estão rapidamente se tornando parte de tais estratégias de acumulação(Katz, 1998; Bakker, 1999a). O capitalismo, é claro, sempre foi e continuará sendo umsistema que tenta derrubar todas as barreiras existentes e incorporar o que pode à sua ló-gica própria de busca de lucro. A Natureza em si resistiu por muito tempo à mercantiliza-ção, mas, em anos recentes, ela e suas águas têm-se tornado um componente cada vez maisvital da busca do capital por novos recursos de acumulação. É claro que essa privatizaçãoda água não se dá no vácuo, mas envolve basicamente a transferência de propriedade daágua, infra-estrutura e afins do setor público, da propriedade ou controle local, das formasde posse coletivas ou socializadas a companhias de água privadas, muitas vezes organizadasglobalmente. As novas estratégias de acumulação através da privatização da água implicam

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

36 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 37: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

um processo pelo qual os bens da natureza se tornam integrados aos circuitos globais decapital, bens comuns locais são desapropriados, transferidos ao setor privado e inseridosno fluxo global de dinheiro e capital, de ativos em bolsa de valores e de detentores de port-folio. Uma coreografia local/global é forjada, baseada na mobilização de H2O local, trans-formando a água em dinheiro e inserindo-o em seus circuitos transnacionais de circulaçãodo capital. Sistemas de recursos locais se tornaram conseqüentemente peças do tabuleirode companhias globais. Conforme indicado na Tabela 1, a corrida pela privatização daágua continua e constitui atualmente um mercado global avaliado em mais de 45 bilhõesde dólares. Logo, a apropriação da água pelos atores do mercado global é movida por con-siderações de competitividade, rentabilidade, capacidade de pagamento dos clientes e porconsiderações estratégicas. Motivações humanitárias, como fornecer água aos pobres, me-lhorar a expectativa de vida e saúde e contribuir para o desenvolvimento têm-se tornadoobjetivos secundários; objetivos que são explicitamente citados nos contratos de gerênciaprivada, mas raramente são materializados.

Tabela 1 – Privatização da água e do saneamentoProporção dos serviços privatizados de água e saneamento em 1997 e projeção para 2010

Região Privatizado Privatizado Valor do mercado privatizadoem 1997 (%) em 2010 (%) (em bilhões de U$)

Europa Ocidental 20 35 10Europa Central e Oriental 4 20 4América do Norte 5 15 9América Latina 4 60 9África 3 33 3Ásia 1 20 10

Fonte: www.thewaterpage.com (acesso em 5/9/2002).

O efeito combinado dos processos e dinâmicas citados resultou em uma mudançamais ou menos radical (com graus variáveis de intensidade em diversos países), tanto naprática quanto ideológica-discursivamente, de um setor de recursos hídricos liderado – egerenciado – pelo Estado que está ou tem que estar sincronizado com as forças de merca-do globalizado e com os imperativos de uma economia competitiva privada. Em outraspalavras, um novo discurso metagovernamental e hegemônico surgiu no setor de sanea-mento, que se articulou em torno da prudência fiscal, competitividade, privatização, mer-cantilização da natureza e preocupações ambientais (Hajer, 1995). Em alguns casos, hou-ve uma privatização real (como nas cidades do Reino Unido e em muitas outras pelomundo) e em outros casos (como em Amsterdã, Bruxelas e Sevilha) exige-se das compa-nhias públicas uma ação estratégica, gerencial, operacional e organizacional nos moldesde companhias privadas. Além disso, empresas de água e esgoto agora fazem parte decompanhias multinacionais e/ou parte de conglomerados de multisserviços globais.

A TRIALÉTICA DEMANDA–SUPRIMENTO–INVESTIMENTO EM UM CONTEXTO COMPETITIVO

Em um contexto de mercantilização e demanda por privatização, a forma tradicio-nal de gerenciamento pelo Estado das decisões relativas à tríade demanda–suprimen-to–investimento fundamentalmente se transformam. Se o lucro, tanto para companhiaspúblicas quanto privadas, for o parâmetro pelo qual a performance é medida (Martin &Parker, 1997) e a sinalização dos preços for um instrumento-chave para a regulação do

E R I K S W Y N G E D O U W

37R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 38: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

nexo demanda/oferta, as contradições entre esses momentos no processo econômico to-mam uma direção um tanto diferente (Littlechild, 1988). Num contexto externo, no quala expansão da demanda é seriamente desencorajada por questões ambientais, enquanto oinvestimento precisa ser mantido para expandir, substituir e atualizar a rede, as equaçõesde equilíbrio das empresas se tornam relativamente específicas. Dada uma estrutura dedemanda, com investimento crescente, a rentabilidade (e portanto a sustentabilidade dascompanhias regidas pelo mercado) só pode ser mantida ou via aumento de produtivida-de (que é geralmente intensivo em capital e tecnologia, levando quase invariavelmente auma composição orgânica crescente do capital e redução da força de trabalho) e/ou au-mento de preços. Embora este último seja possível, ele é politicamente delicado, podendolevar a problemas sociais perversos. O conflito social que se seguiu à privatização do sis-tema de abastecimento de água de Cochabamba, na Bolívia, é um exemplo disso (Cres-po, 2002a, 2002b; Gleick et al., 2002).

Imediatamente após a privatização no Reino Unido (1989), o preço da água aumen-tou de modo significativo. Muitas residências isentas do pagamento tiveram seu serviçocortado (uma prática posteriormente banida pelo “New Labour government” em 1997),enquanto as companhias e seus acionistas lucraram consideravelmente (Herbert & Kemp-son, 1995; Bakker, 2001). Na segunda rodada de ajuste de preços em 1999 (e depois queo governo introduziu um imposto chamado “wind-fall”, que incide sobre o que eram con-siderados “lucros excessivos dos serviços privatizados”), os aumentos de preço foram mo-destos, resultando imediatamente em uma maior redução da força de trabalho na indús-tria da água e uma tendência à recoletivização parcial da infra-estrutura de água (Bakker,2003b). Em 2003, as empresas do serviço britânico de água e esgoto reivindicaram de seuórgão regulador o direito de aumentar o preço da água em 70% para poder alcançar osrequisitos de investimentos futuros.

Em um contexto de demanda crescente e expansão da demanda total ou per capita,o volume de lucro pode ser mantido por meio da expansão da oferta. Nesse contexto, éinteressante ressaltar que a lógica “produtivista” das companhias de fornecimento de água(Swyngedouw, 1995) continua em vigor (apesar dos apelos ao uso mais restrito da água).Além disso, dada a natureza de investimentos a longo prazo e intensivos em capital no sis-tema de infra-estrutura de saneamento, há relativamente pouco incentivo ao engajamen-to em grandes programas de investimento desta ordem. Simplificando, há um claro de-sincentivo ao investimento em atividades que não são diretamente lucrativas, comocontrole de vazamentos, em contraste com investimentos para o aumento de produtivi-dade. Por fim, em um contexto de demanda e oferta geograficamente limitados no quala maioria das companhias operam, enquanto estão simultaneamente expostas a um am-biente rapidamente globalizante e competitivo, há uma tendência das companhias deágua a internacionalizar suas atividades, ou a dominar empresas de água privatizadas emoutros lugares por meio de fusões, aquisições e/ou diversificações em outros setores, oupela venda de know-how para outros países.

Não é surpresa, portanto, que o Estado ou certas áreas do setor público tenham quemediar essas contradições. No Reino Unido, por exemplo, a Yorkshire Water propôs co-letivizar a parte de rede do sistema de fornecimento de água, mantendo a parte gerencialem mãos privadas, enquanto o serviço de água galês também se deslocou da propriedadeprivada para uma mescla de propriedade pública e privada (OFWAT, 2000a, 2000b;Bakker, 2003a). No caso da Grécia, a preparação para a privatização envolveu dividir acompanhia de água em duas partes, uma companhia pública, que manteve os bens (infra-

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

38 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 39: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

estrutura técnica e rede), e uma companhia de fornecimento privada (até 49%), que ge-renciaria o sistema. Parece que esse tipo de parceria público-privada, no qual o setor pú-blico é responsável por investimentos de capital fixo de longo prazo (e muito dos custosassociados a eles) enquanto o setor privado organiza a parte lucrativa do sistema (geren-ciamento de oferta), é a resultante mais provável do negócio privado de água. Os gastoscrescentes com substituição e expansão da infra-estrutura, o longo tempo de rotação e aincerteza de investimentos a longo prazo resultam em um retorno muito fraco e numaprecaução geral por parte das companhias de saneamento em investir em um equipamen-to tão absorvedor de capital.

UMA LIGAÇÃO PERIGOSA: RECURSOS FINITOS E “ESCASSEZ” PRODUZIDA

O DISCURSO DA “ESCASSEZ”

Apesar, ou talvez por causa da crescente preocupação acerca da importância vital daágua para o desenvolvimento humano, as questões sobre ela têm ganho importância naagenda ambiental, enquanto têm sido simultaneamente submetidas à lógica do mercado.Na verdade, essas duas dinâmicas estão mutuamente interligadas. É dada cada vez maioratenção à gerência de demanda, principalmente como resultado da crescente consciênciaambiental e do risco de que a disponibilidade de recursos hídricos se reduza (Bakker,1999b; Haughton, 1999). Isso tem intensificado o debate político e social sobre a “escas-sez” da água (Nevarez, 1996). Como aponta Kaïka (1999; 2003a), a construção discursi-va de uma narrativa e de uma ideologia sanitária específicas, particularmente notável du-rante, por exemplo, as crises ligadas a enchentes em Atenas no início da década de 1980,serve a objetivos e políticas econômicas e políticas também específicas. Um clima de cri-se sanitária real, pendente ou imaginada, isto é, a produção discursiva da imanência deum desastre “hidrossocioecológico”, não somente serve para facilitar futuros investimen-tos na expansão do fornecimento de água (como no caso de Atenas, Guaiaquil ou Sevi-lha), como também alimenta e apóia tentativas de mercantilização (Bakker, 2000;Haughton, 1998). Na medida em que a sinalização dos preços é vista como o principalmecanismo para gerenciar a “escassez”, essa construção discursiva da água como um bem“escasso” se torna uma parte importante da estratégia de mercantilização, quando não deprivatização. Neste contexto, alianças políticas estranhas e muitas vezes cruéis são forjadasentre livre-mercadistas e setores do movimento ambientalista (Swyngedouw et al.,2002a). Na medida em que a preocupação dos ambientalistas com a crescente escassez deágua – ainda que socialmente construída – foi sendo levada de forma eficaz ao grandepúblico, tornou-se maior para este a disposição a pagar e mais aceitáveis os mecanismosde mercado como sinalizadores preferenciais, se não os únicos disponíveis, para alocar so-cialmente o recurso. Enquanto os ambientalistas continuam insistindo que a água é umbem escasso e finito, conseqüentemente necessitando de exploração cuidadosa, o setorprivado e os governos em todas as escalas geográficas abraçam esse discurso de “escassez”.Uma economia de mercado, é claro, requer a “escassez” para funcionar. Sem a “escassez”,soluções ou mecanismos baseados no mercado simplesmente não funcionariam. Se neces-sário, portanto, a “escassez” será eficientemente “produzida”, socialmente projetada(Swyngedouw, 2004; Davis, 1998). De fato, a água é um dos recursos menos finitos no

E R I K S W Y N G E D O U W

39R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 40: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

mundo. É abundante e praticamente inesgotável. Pode haver limites locais ou regionais eproblemas com qualidade e disponibilidade relativa, mas não há evidências de falta deágua global. Uma ideologia ambiental que persiste em representar a água como inerente-mente “escassa” invariavelmente nutre uma lógica mercantilizadora e “privatista”. De fa-to, o Banco Mundial, a União Européia e companhias privadas celebram essa contínuareciclagem da idéia de “água” como um bem escasso. Isso fornece um maravilhoso instru-mento de legitimação para impulsionar as políticas neo-liberais e voltadas para o merca-do. De fato, os mercados vibram com a “escassez” real ou imaginada. Muitas organizaçõesambientalistas, com suas preocupações reais por assuntos ecológicos importantes, encon-tram-se numa aliança objetiva porém perversa com tais forças políticas e econômicas pa-ra as quais a privatização da natureza é uma mera tática para maximizar a acumulação,desregular mercados e buscar novos lucros. Além disso, por este caminho retira-se a aten-ção da natureza política da “escassez” como “produzida” social e politicamente e foca-se,ao invés disso, nas soluções tecnológicas disponíveis.

A POLÍTICA DE AJUSTES TECNOLÓGICOS

O gerenciamento do ciclo hidrossocial e, em particular, o gerenciamento de deman-da pela água operam em grande parte via a combinação de campanhas visando aumentaro conhecimento público sobre a economia de água, por um lado, e tentativas de reduziro consumo de água através de vários ajustes tecnológicos, pelo outro (Kallis & Coccossis,2001). Geralmente o efeito ou custo dos expedientes de poupar água depende tanto dopreço da tecnologia quanto do preço da água (Boymans, 2001). No contexto de baixospreços da água, mecanismos de economia de água freqüentemente não apresentam umaboa relação de custo–benefício. Apesar de não haver consenso sobre qual é o efeito agre-gado sobre a economia de água (a maior parte dos estudos indicam uma desaceleração nocrescimento da demanda de água, mas não uma inversão da tendência de crescimento), oajuste tecnológico para a solução de problemas relativos à água requer investimentos sig-nificativos. Companhias de água privatizadas continuam relutantes em investir em taistecnologias (dada as implicações de custo), enquanto subsídios públicos podem ser vistoscomo uma subvenção ao setor privado (no caso do setor privatizado de água) ou acusa-dos de ir contra a ideologia dominante de recuperação plena de custo (no caso de com-panhias públicas). Apesar da disponibilidade, portanto, da ampla gama de expedientes etecnologias de economia de água, o entendimento disso permanece limitado e não é pro-vável que tenha um maior impacto no futuro próximo. Mais importante, os efeitos dedeslocamento (em termos de implicações ambientais associadas ao desenvolvimento e àprodução de novas tecnologias) é quase invariavelmente ignorado por completo e suaconsideração não é parte da auditoria ambiental. Ainda, é muito claro que as tecnologiasambientalmente benignas quando aplicadas a um setor podem ter efeitos adversos em ter-mos de efeitos ambientais associados a seu processo de produção. Uma auditoria ambien-tal total seria necessária para avaliar o benefício ambiental líquido derivado de um ajustetecnológico.

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

40 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 41: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

A DANÇA DOS MANDARINS DA ÁGUA

GLOBALIZAÇÃO ATRAVÉS DO CONTROLE COMPARTILHADO

O fornecimento da água está cada vez mais incorporado ao processo de globaliza-ção econômica. Seja de propriedade pública ou privada, empresas de água estão expan-dindo suas operações geograficamente e têm se envolvido em um processo competitivointernacional. No caso das companhias privatizadas, além do mais, sua estrutura de capi-tal tem se tornado cada vez mais internacionalizada. Por exemplo, depois que o governodo Reino Unido vendeu sua “parte de ouro” em dezembro de 1994, abriu-se o caminhopara um festival desvairado de fusões e incorporações internacionais. Muitas companhiasde água do Reino Unido estão ativamente adquirindo operações com água e esgoto emoutros lugares do mundo, enquanto companhias inglesas têm se sujeitado a incorporaçõesde competidores estrangeiros. Por exemplo, a Thames Water (companhia de fornecimen-to de água de Londres) foi comprada em setembro de 2000 pela multisserviços alemãRWE. A privatização parcial da companhia de águas de Atenas transformou a EYDAP emuma companhia listada no mercado de ações e, portanto, sujeita aos caprichos dos mer-cados de capitais nacional e internacional. Em uma escala global, um processo aceleradode concentração e consolidação do mercado está em andamento e levando a uma estru-tura econômica razoavelmente oligopolista de empresas de água, com duas companhias(francesas) controlando cerca de 70% do mercado global de água privatizada (Hall, 1999;2001). Essa tendência foi acentuada pelo recente colapso da Enron, uma das principaiscompanhias multisserviços. Além das dificuldades de regulamentar as corporações globais(particularmente com respeito a padrões ambientais e sociais, investimentos, manutençãoda infra-estrutura), essa tendência levanta o espectro de crescentes estratégias geográficascom respeito aos investimentos e ao alcance das atividades, ao fluxo de capital na área dosaneamento e ao portfolio das holdings.

Realmente, o “mercado” não existe como uma arena sem os atores que a fazem fun-cionar. O pequeno número de companhias globais de água e esgoto produz uma formaoligopolística de organização do mercado. Como é visto na Tabela 2, somente algumaspoucas companhias controlam o mercado da água. Na verdade, duas companhias france-sas (Ondeo–Suez e Vivendi) possuem uma impressionante fatia do mercado de água, coma Thames Water (parte da multisserviços alemã RWE) e a SAUR aparecendo bem atrás nosrespectivos terceiro e quarto lugares. A predominância dos franceses está relacionada a seuacesso preferencial a longo prazo ao mercado de água francês. Isso lhes deu uma capaci-dade competitiva nos mercados internacionais uma vez que se tornaram mais desregula-mentados e se prepararam para o ataque da privatização. Além disso, a tradição francesasempre combinou o investimento estatal em infra-estrutura com o gerenciamento priva-do dos serviços de fornecimento de água. Essa estratégia é evidentemente mais lucrativapara o setor privado e as companhias francesas têm exportado esse modelo com sucesso.O modelo anglo-saxão está baseado na privatização total (infra-estrutura e fornecimento)e a exportação desse modelo resultou em vários fracassos ou em serviços produzidos abai-xo do desejado.

As quatro maiores companhias citadas estão envolvidas praticamente em todos os es-quemas de privatização do mundo. Além disso, em grandes projetos, é comum as quatroou cinco maiores companhias dividirem os despojos para gerenciar sistemas de água emconjunto e/ou para dividir a concessão em duas áreas geográficas, cada uma controlada

E R I K S W Y N G E D O U W

41R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 42: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

por um dos atores globais. Por exemplo, em Budapeste, a Vivendi tem uma joint venturecom a RWE Aqua, e em Sidoargo, Indonésia, a RWE dirige uma parte do sistema enquan-to a Vivendi controla a segunda metade. Essas joint ventures e ações conjuntas por con-tratos desgastam ainda mais qualquer “competição” limitada que exista no mercado. Omercado de privatização de água urbana está longe de ser o “ambiente” competitivo queos estudiosos neoliberais dizem ser o salvador das economias em crise do Terceiro Mun-do. Não é preciso dizer, então, que tal controle oligopolístico dá forças consideráveis aosmandarins empresariais ao negociar termos com Estados locais ou nacionais.

Tabela 2 – Os mandarins globais da água, 2001Companhia País de base Pessoas atendidas Rendimentos do Rendimento total(subsidiária de água) (em milhões) negócio sanitário (em bilhões

(em bilhões de euros)de euros)

Vivendi França 110 12,8 26,48(Vivendi Water)

Suez (Ondeo) França 115 10,1 42,36

Bouygues França 30 2.5 20,5(SAUR)

RWE Alemanha 43 1,69 62,9(Thames Water)

American Water EUA 10 1,44 1,44Works

Anglican Water Reino Unido 4,1 0,892 1,29Group

Severn Trent Reino Unido 8 0,887 1,68

Kelda Group Reino Unido 4,5 0,620,775(Yorkshire Water)

United Utilities Reino Unido 7 0,2 1,78

Fonte: Public Services International Research Unit (www.world-psi.org – acessado em 12/9/2002); Kasemiret al., 2002.

“COLHEITA SELETIVA” COMO APARATO ESTRATÉGICO

Atender moradores urbanos com um serviço de água potável confiável não é uma ta-refa fácil. Requer um significativo investimento a longo prazo e arranjos organizacionaise gerenciais complexos. E o lucro não é de forma alguma garantido, especialmente emambientes urbanos de baixo poder aquisitivo e condições de acesso problemáticas(Swyngedouw, 2004). Em suma, somente alguns sistemas de água urbanos são conside-rados capazes de gerar lucro a longo prazo, enquanto outros continuarão a requerer sub-sídios e apoio de forma a continuar melhorando o fornecimento do serviço. Experiênciasrecentes têm mostrado que companhias privadas globais só vão atrás das melhores fatiasde mercado, aquelas que têm algum recheio. Isso significa que somente as companhias deágua e esgoto das grandes cidades são consideradas aptas à privatização. E nessas cidades,áreas com moradores de alto poder aquisitivo com condições comprovadas de pagamen-to das contas são, claro, os consumidores preferidos dos serviços privatizados. Isso leva

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

42 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 43: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

obviamente a uma “colheita seletiva” estratégica por parte das companhias (Graham &Marvin, 1994). Os serviços “promissores” (no que se refere à obtenção de lucro) são libe-rados para a privatização; os serviços menores e geralmente menos lucrativos permanecemem mãos públicas e requerem subsídios constantes. Além disso, obrigações contratuaistêm de ser inclusas em contratos de concessão para forçar as companhias a expandir o for-necimento do serviço para áreas mais pobres. Raramente, no entanto, os fornecedores pri-vados cumprem todos os termos de suas obrigações contratuais.

Em suma, a “colheita seletiva” estratégica é somente uma variação de uma receita jácomprovadamente eficiente no capitalismo: privatizar negócios rentáveis e deixar os im-postos pagos pela população cobrir os subsídios para os serviços não lucrativos, mas ain-da assim essenciais. E estes últimos são aqueles dos quais depende crucialmente a susten-tação dos grupos mais pobres da população.

CORRUPÇÃO COMO UMA PRÁTICA INSTITUCIONALIZADA

A ligação inevitavelmente forte entre o Estado e o setor privado nos esquemas de pri-vatização abre as portas para toda espécie de práticas corruptas. Essas podem ser ilegaismas, com maior freqüência, fazem parte do arsenal padrão de práticas acordadas e proce-dimentos aceitos. Assim, formas de suborno, acordos debaixo dos panos, “molhar algu-mas mãos” para facilitar certos arranjos contratuais e contribuições financeiras a aliadospolíticos, tudo isso pertence ao kit de ferramentas básico das empresas privadas de forne-cimento de água. O contrato de concessão para Jacarta com a Thames Water (agora RWE)teve de ser renegociado após alegações de corrupção. Escândalos de suborno também fo-ram associados a concessões, entre outros lugares, em Grenoble, Tallinn, Lesoto e no Ca-zaquistão. Enron, Vivendi e Suez, todas elas já foram acusadas de efetuarem pagamentosa partidos políticos em troca de favores.

Meios de persuasão em direção à privatização não mais sutis, mas perfeitamente le-gais, são oferecidos por Estados nacionais e organizações internacionais. Por exemplo, em-préstimos do Banco Mundial ao setor de saneamento são geralmente condicionados a es-se setor se comprometer a gastar uma parte considerável do empréstimo em medidasgerenciais e facilitadoras que preparem o terreno para a privatização da água. No caso deGuaiaquil, no Equador, o Banco Inter-Americano de Desenvolvimento forneceu um em-préstimo de 40 milhões de dólares sob a condição de que quase metade dele seria gastana preparação da privatização do serviço público de água (Hall & Lobina, 2002; Swynge-douw, 2004). Ou seja, empréstimos internacionais e outros acordos são usados comomeios para propulsar esta agenda neoliberal.

O ESTADO ONIPRESENTE

O MITO DO MODELO NEOLIBERAL

O negócio de privatização da água incorpora também um dos mitos centrais do mo-delo neoliberal, isto é, que privatizar significa tirar o Estado do papel regulamentar daeconomia e diminuir a burocracia. Em contraste a esse refrão tantas vezes repetido, no se-tor do saneamento o Estado e/ou outros órgãos governativos (de organizações multilate-rais como o Banco Mundial, o FMI ou a UE com governos nacionais ou governos locais)

E R I K S W Y N G E D O U W

43R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 44: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

estão diretamente envolvido na “regulamentação” e “organização” da privatização. Elesmudam leis, regras e convenções e produzem novos sistemas legais e institucionais quepermitem e “regulamentam” a privatização, muitas vezes impondo toda espécie de condi-ções e obstáculos que forçam a privatização a ser feita. Somando-se a isso, governos ofe-recem incentivos financeiros e de outros tipos para atrair companhias privadas, auxiliar oenvolvimento do setor privado no processo e afins. Após a privatização, um sistema ins-titucional regulamentar controlado pelo Estado invariavelmente tem de ser implementa-do, só para garantir que as companhias “comportem-se de forma competitiva”. Sem os vá-rios níveis do Estado traçando a trilha e impondo condições que garantam a privatização,e que assegurem a operação lucrativa depois, essa acumulação por despossessão não pode-ria acontecer. O Estado é, em outras palavras, um ator central no estabelecimento e ma-nutenção dos “princípios de (do) mercado”. Essa espécie de “stalinismo do mercado” pri-vilegia um modelo de gerenciamento da água enquanto exclui modos alternativos deorganização desse mercado.

A tendência para a mercantilização e a privatização muda o contexto de regulamen-tação de forma importante. Enquanto tentativas de mercantilização e privatização são le-gitimadas com base em considerações de competitividade maior, produtividade maior,preços mais baixos e um corte drástico na regulamentação burocrática, tem havido umatendência a identificar essas mudanças nas formas econômicas de organização a desregula-mentação. No entanto, evidências do setor do saneamento sugerem exatamente o oposto.Novas instituições, mais notavelmente no campo da regulamentação econômica e ambien-tal, acompanham todo o programa de privatização. Como Bakker (1999a; 2001) apontouno contexto do Reino Unido, o jogo regulamentar que começou com a privatização (e os-tensiva desregulamentação) desatou um certo “monstro regulamentar”, que subseqüen-temente se desenvolveu em um corpo regulador-institucional de peso. Dado o carátermonopolizador territorial das companhias de saneamento privatizadas, toda sorte de pro-cedimentos reguladores, como consolidação de metas de investimento, fixação de preço,padrões ambientais, níveis de vazamento, garantia de qualidade etc., têm sido implemen-tados. A mudança de uma situação em que o Estado era tanto o “caçador” como o “guar-da de caça” para uma em que há uma aguda separação institucional entre os dois levou,inevitavelmente, a uma situação na qual as “regulamentações” têm se tornado formais, vi-síveis e estatuídas (Swyngedouw et al., 2002b). Ao invés de desregulamentar o setor deágua e esgoto, a privatização resultou em uma profunda re-regulamentação do mercado deágua e no surgimento de uma estrutura regulamentar considerável e quase governamental.

A luta pelas fronteiras entre terreno público e privado funciona principalmente viadois eixos inter-relacionados: primeiro, o dos padrões ambientais e, depois, o dos impe-rativos do mercado. A tensão entre os dois é contida na busca da mercantilização ambien-talmente amistosa, enquanto a tensão público/privado é mediada por debates sobre a for-ma que o processo de mercantilização deve tomar. Conseqüências imprevistas dessesdebates são vistas no caráter modificado do conhecimento encontrado dentro do setor sa-nitário. A informação que era de domínio público vira mercadoria, cria-se significaçãocomercial e é freqüentemente tratada como confidencial. No contexto de uma transiçãode controle, o gerenciamento do conhecimento é fundamental no jogo da regulamenta-ção. Reter o controle de instituições técnicas permanece um meio importante para orga-nismos governamentais (em várias escalas) preservarem sua relativa vantagem nas nego-ciações. Mas, apesar da aparente centralidade de tais debates sobre as esferas pública eprivada, é claro que as estratégias de “comando-e-controle” do Estado permanecem como

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

44 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 45: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

o mecanismo-chave para a implementação de regulações ambientais (Taylor, 1999). Go-vernos não são apenas instrumentais, são também iniciadores e facilitadores da privatiza-ção; também têm um papel central em garantir o lucro ou assegurar as companhias con-tra condições político-econômicas adversas. Por exemplo, o Banco Mundial assegurou aconcessão da International Water em Guaiaquil, no Equador, na soma de 18 bilhões dedólares contra qualquer espécie de risco, inclusive instabilidade política (Hall & Lobina,2002). A concessionária de saneamento de Buenos Aires está processando o governo ar-gentino pela perda de lucro depois do colapso do peso argentino.

Em suma, ao invés de desregulamentar o setor de saneamento, a privatização resul-tou em uma profunda re-regulação do mercado de água e em uma estrutura regulamen-tar quase governamental considerável. Nesse processo, o conjunto de atores sociais envol-vidos na estrutura institucional e reguladora do setor saneamento tem sidosignificativamente alterado, com uma nova geometria de poder social evoluindo comoconseqüência. Essa nova coreografia da organização institucional e regulatória é o que ve-remos a seguir.

REESCALONAMENTO INSTITUCIONAL: DO GOVERNO DA ÁGUA À GOVERNANÇA DA ÁGUA

Uma série de novos corpos institucionais ou regulatórios tem sido montada (no Rei-no Unido, batizadas apropriadamente de Quangos – quase NGOs1) com poderes de deci-são consideráveis, mas operando em uma arena política obscura com pouca transparênciae somente formas limitadas de controle democrático. Essas mudanças institucionais têmsido invariavelmente definidas como parte de uma mudança maior de governo para go-vernança (Swyngedouw, 2000; Jessop, 2002). Enquanto no passado a gestão e as políticasde água estavam direta ou indiretamente sob o controle de uma escala governamental par-ticular, i.e., ou no âmbito nacional ou no local (municipal), nos anos recentes tem havi-do uma grande proliferação de novas instituições, organismos e atores relacionadas à águaque estão envolvidos na criação de políticas e planejamento estratégico em várias escalasgeográficas. As sucessivas gerações de diretrizes e regulações relativas à água na União Eu-ropéia e o doloroso processo de implementação de uma política integrada na UE – na for-ma da Diretriz Européia para Estrutura de Saneamento – têm resultado no crescente po-der da Comissão sobre os assuntos relacionados à água. A história política dos sucessivosestágios de negociação da estrutura de diretrizes sugere uma trilha um tanto tortuosa naqual vários atores (como governos nacionais, fornecedores de água, a Comissão Européia,o Parlamento Europeu, ONGs de várias espécies) tiveram papéis diferentes, enquanto suainfluência mudou com o tempo (Kaika, 2003; Kaika & Page, 2003; Page & Kaika, 2003).Além disso – como o caso do Reino Unido nos mostra – a privatização requereu montaruma série de novas corpos regulatórios (OFWAT em particular) assim como redefinir os po-deres e prerrogativas de organizações reguladoras existentes como as da Autoridade Na-cional de Rios, que se integrou à recém-criada Agência Ambiental.

O resultado combinado dos processos citados tem sido uma reconfiguração mais oumenos significativa (muito significativa no caso do Reino Unido, menos significativa nocaso, digamos, da Holanda) das escalas de controle da água. Como Bob Jessop (1994)apontou para os outros domínios da vida pública, a escala nacional foi redefinida (e par-cialmente esvaziada) em termos de seu poder político, enquanto instituições supranacio-nais e subnacionais e formas de controle têm se tornado mais importantes. A privatiza-ção, por sua vez, tem levado à internacionalização de uma série de funções de controle e

E R I K S W Y N G E D O U W

45R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

1 NGO (Non-GovernmentalOrganization) é o termo eminglês para ONG (Organiza-ção Não-Governamental).

Page 46: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

comando. O resultado é uma nova gestalt escalar de controle, caracterizada por uma arti-culação multiescalar de instituições e atores com graus variados de poder e autoridade. Oresultado geral, portanto, é a “glocalização” (Swyngedouw, 1989; 1997) do governo na-cional, tanto subindo a um nível supranacional quanto descendo a um nível subnacional.Isso resulta em uma articulação mais complexa de combinações variáveis de formas decontrole dependentes das escalas. Em suma, a regulamentação do governo nacional é si-multaneamente reescalonada para cima e para baixo, com uma mudança paralela na or-ganização do poder, tanto no interior das instituições como entre elas.

Finalmente, é claro que a privatização em si resulta em uma autonomia e poder dascompanhias em si em termos de decisões estratégicas e de investimento. Privatização defato significa tirar um pouco do controle do setor público e transferi-lo para o setor pri-vado. Isso não somente muda os procedimentos de decisão e desenvolvimento estratégi-cos, mas também afeta elementos menos tangíveis como acesso a informação e dados. Ca-nais tradicionais de prestação de contas democrática estão, então, cortados, abreviados ouredefinidos. Uma pletora de novas instituições se formou em uma variedade de escalasgeográficas. Essa proliferação de “corporações governativas” diminuiu a transparência doprocesso de decisões, tornando mais difícil de desembaraçar e articular as geometrias dopoder que formam os resultados da decisão. Na prática, pode-se argumentar que a tran-sição de governo a governança implicou – apesar da multiplicação de atores e instituiçõesenvolvidas no gerenciamento de água – na transferência de poderes econômicos e políti-cos decisivos para a componente privada do complexo de controle hidrossocial. Isso,porém, não aconteceu em um vácuo social, mas antes alimentou uma constelação de con-flitos políticos e sociais, em grande parte por conta das conseqüências que um modelo degovernança privatizante produz sobre a sustentabilidade dos sistemas socioambientais.

O CIDADÃO AUSENTE: NOVOS ATORES E CONTABILIDADE CINZENTA

Logo, a transferência do controle e fornecimento da água do setor público para oprivado envolve uma mudança nas coreografias do poder e controle. Com o envolvimen-to político e público diminuindo, o poder do cidadão é reduzido. Além disso, na medidaem que a água é transformada em dinheiro e capital, e usuários de água, em consumido-res que pagam pelo acesso à água (ao invés de serem cidadãos a quem foi conferido o di-reito de acesso à água), as coreografias do poder político ao redor da água são fundamen-talmente alteradas. Princípios de discrição de negócios, ausência de participação,procedimentos de decisão nada transparentes e afins caracterizam a organização privati-zada do setor de saneamento. Apesar de ser um bem vital e local, as estruturas de decisãosão tomadas pelo controle político local ou regional e transferidas às salas de reunião exe-cutivas de companhias globais. Isso leva a formas autocráticas de controle e regulamenta-ção da água com controle democrático limitado ou ausente

A proliferação dos corpos reguladores e dos sistemas de controle associados ao ciclohidrossocial, nas escalas local, nacional e internacional, tem contribuído para o surgimen-to de uma estrutura regulamentar “pesada”, pelo menos em países desenvolvidos, com res-ponsabilidades ambiguamente definidas e uma prestação de contas definida sem precisão.Dependendo da escala geográfica de organização ou do entalhamento institucional parti-cular das empresas de saneamento, um conjunto mutável de atores está envolvido nosprocedimentos de tomada de decisão. A organização da participação de investidores é de-sigual e desnivelada e, em muitas instâncias, opera fora dos canais políticos democráticos

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

46 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 47: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

tradicionais. Enquanto alguns atores são bem representados em alguns cenários, são ex-cluídos de outros; outros atores ficam, por sua vez, totalmente ausentes das arenas do po-der onde as decisões são tomadas.

RACHADURAS NO ESPELHO: AS CONTRADIÇÕES DA PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

ÁGUA URBANA: BEM PÚBLICO OU MERCADORIA PRIVADA?

A mudança recente em direção a tornar o H2O em uma mercadoria global tem pro-fundas implicações no significado social e político e na avaliação cultural da água. Primei-ramente, a água é transformada em lucro e acumulação de capital por instituições priva-das ou público-privadas. O fornecimento de água então torna-se meio para o fim dealcançar metas econômicas: crescimento econômico e maximização de lucro. Na medidaem que companhias privadas fazem isso, atividades relacionadas à água tornam-se apenasum elemento de uma estratégia predominantemente corporativa de empresas que estão setornando rapidamente multisserviços e internacionais. Depois, usos e funções não-econô-micos da água têm de ser regulamentados por instituições governamentais que muitas ve-zes enfrentam oposição, conflito ou outros sérios constrangimentos em face de agênciasprivadas poderosas. Além disso, torna-se cada vez mais difícil, se não impossível, integrarpolíticas de água com uma política urbana, social ou econômica mais ampla que envolvasubsídios cruzados, usos alternativos da água ou uma política socialmente estratificada.Ademais, esse deslocamento inevitavelmente obriga a uma mudança na geometria do po-der social. Atores e empresas privados têm se tornado vozes muito mais poderosas nas de-cisões estratégicas relacionadas à água, ao custo de outras organizações da sociedade civilou do Estado. Além disso, enquanto o ciclo da água opera em ritmos temporais que sãoparte de um sistema ambiental maior, ele é, no entanto, forçado cada vez mais a operarde acordo com os períodos reduzidos de estrategistas empresariais e de ciclos econômicos.Ainda, a natureza privatizada de partes cruciais do ciclo da água diminui a transparênciados procedimentos de decisão e limita o acesso à informação relevante que poderia per-mitir que outros grupos sociais pudessem basear suas visões, decisões e opções. Por fim, aprodução e distribuição da água é incorporada em uma economia cada vez mais global naqual o fluxo de investimentos, mercados de capital financeiro e decisões de investimentomoldam os contornos nos quais a economia da água urbana opera. Em suma, a mudan-ça do bem público para a mercadoria privada altera a coreografia do poder através da qualo ciclo hidrossocial urbano é organizado.

O NEXO OFERTA/DEMANDA E O ENIGMA INVESTIMENTO/PREÇOS

Em um momento em que a sinalização dos preços se torna um princípio central deorganização dos mercados de água, e em um contexto de suprimentos relativamente fi-xos, o gerenciamento da demanda se torna um negócio arriscado. O controle monopóli-co de mercado, inevitavelmente associado às redes de fornecimento de água, requer firmeregulamentação de preços por parte do Estado ou agências governamentais. Além disso,os esforços para reduzir o consumo de água por motivos ambientais são contrapostos porrequisitos de recuperação de investimentos que dependem da fixação dos preços e da

E R I K S W Y N G E D O U W

47R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 48: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

quantidade produzida. Invariavelmente, as companhias de água operam em uma forqui-lha de duas pernas de sistemas reguladores que fixam preço, de um lado, e investimentoscustosos em tecnologia e organização para aumentar a produtividade, de outro. A tríadeinvestimento–preço–oferta se torna muito difícil de gerenciar, particularmente em umcontexto de pressões crescentes para reduzir a demanda. A maior parte das evidências su-gere uma tendência contínua a aumentar a oferta a despeito da atenção retórica dada aogerenciamento de demanda. A custosa introdução de tecnologias de economia de água é,na melhor das hipóteses, lenta, enquanto grandes esforços são feitos para aumentar a ofer-ta apesar da freqüentemente formidável oposição. Está ficando bem claro que a sinaliza-ção dos preços é insuficiente para regular a alocação e o uso eficiente de um recurso co-mo a água. Isso é particularmente pertinente quando aspectos culturais ou ecológicos têmum papel cada vez mais importante, aspectos estes cuja regulação requer mais instrumen-tos políticos do que econômicos.

LUTA SÓCIO-ESPACIAL PELA ÁGUA

A dupla tensão entre continuar aumentando a demanda por água urbana, de um la-do, e a pressão acumulada para alocar água a outras funções, por outro, tem aumentadoos conflitos socioespaciais em torno da captação, alocação e uso de água. Esses conflitospodem tomar uma variedade de formas, desde a crescente diferenciação social nas cida-des em termos de consumo de água, conflitos entre usos urbanos, agrícolas, industriais ouecológicos, a conflitos entre áreas de extração de recursos e áreas de consumo urbano (re-fletido em conflitos sobre novos reservatórios ou construção de represas). Além disso, aglobalização das companhias de água assinala uma estratégia segundo a qual águas locais,transformadas em capital, são geograficamente re-alocadas para outros lugares e cidades.Por exemplo, a companhia de águas de Londres comprou o sistema de fornecimento deágua de Jacarta. Invariavelmente, o resultado dessas lutas e conflitos exprime a relação de-sigual de poder infundida pela organização do ciclo hidrossocial.

ÁGUA E RISCO DE MERCADO: A GLOBALIZAÇÃO DA ÁGUA E O DESENVOLVIMENTO DESIGUAL

Na medida que as companhias de água operam cada vez mais como agentes econô-micos privados, também são crescentemente sujeitas aos riscos correntes de mercado.Apesar de fornecerem um serviço fundamental e essencial, a sobrevivência econômica dasoperações sanitárias não é garantida. Incorporações, retirada de investimentos, re-aloca-ção geográfica, falências, operações ineficientes, risco político e afins são, é claro, endêmi-cos a uma economia privada de mercado. De fato, essa incerteza e fluidez é exatamente oque se supõe que a dinâmica de mercado deveria produzir para identificar as empresas debaixa performance e para re-alocar recursos econômicos de atividades menos lucrativaspara outras mais lucrativas. Isso levanta questões específicas a respeito da sustentabilida-de a longo prazo de sistemas de fornecimento de água urbanos baseados no mercado. Naausência de incentivos fortes para aumentar a produtividade ou a eficiência, e dados os al-tos custos e o longo tempo de retorno de investimentos de capital fixo em infra-estrutu-ra de saneamento, as companhias privadas podem não ser capazes de manter os sistemasde água funcionando com eficiência. Isso levaria, a médio prazo, a uma situação na qualo Estado (em qualquer nível) teria de se envolver novamente com o setor de saneamentode formas mais diretas. Há uma tendência em deixar a rede de infra-estrutura de água

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

48 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 49: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

urbana nas mãos do setor público, enquanto companhias privadas e lucrativas asseguramas atividades gerenciais. Isso exige um subsídio indireto do setor privado pelo Estado e,em termos de mercado, distorce a operação do mercado. De fato, em um contexto noqual o risco de falha no suprimento de água é muito dramático, o Estado terá de se man-ter (ou se tornar novamente) um ator-chave na organização dos sistemas de fornecimen-to de água. Isso ficará ainda mais pronunciado à medida que os padrões ambientais e sa-nitários das áreas urbanas continuem caindo.

Além do mais, o risco de falhar não contrapõe somente os moradores urbanos a for-necedores de água, mas as falhas ou o fornecimento de água muito caro trazem tambémriscos sérios a outros setores econômicos. Na medida em que as economias urbanas são ca-da vez mais baseadas no setor serviços, empresarias e pessoais, de turismo e festivais urba-nos espetaculares, o fornecimento de água barato e confiável (assim como o de outros meioscoletivos de produção) é um ingrediente-chave para o sucesso econômico das cidades.

ÁGUAS CONTESTADAS

Não é preciso dizer que os processos aqui delineados não seguem incontestados(Ward, 1997; Petrella, 1993, Barlow/Clark, 2002). Uma grande gama de movimentosde resistência local e global tem surgido, contestando a lógica hegemônica de privatiza-ção da água e lutando por meios alternativos de gerenciamento da água. O caso de Co-chabamba, na Bolívia, se tornou hoje um exemplo icônico de resistência bem-sucedida.Após uma mobilização em massa e um embate social e político considerável, a Interna-tional Water, concessionária do sistema de fornecimento de água da cidade, foi expulsado país e o serviço de águas voltou às mãos públicas. Em Buenos Aires, o contrato deágua teve de ser renegociado depois que a Argentina foi forçada a desistir da política deestabilização dólar/peso em conseqüência da crise econômica que balançou o país no co-meço de 2002. Na Espanha, milhões de pessoas marcharam nas ruas de Madri em pro-testo contra as políticas de água do governo conservador. Em Porto Alegre, o movimen-to de globalização alternativa tornou a água uma das principais arenas ao redor da qualmobilizam ações sociais. Cada vez mais, companhias de água descobrem que os lucrati-vos potes de ouro prometidos no setor de água podem não ser tão fartos como o BancoMundial e entusiastas da liberalização pintam. Algumas começaram a se retirar do setorde saneamento. A água continua sendo realmente um bem altamente contestado. E emum contexto em que, ainda hoje, muitas pessoas morrem por falta de acesso a água deboa qualidade, as lutas sociais pela água tendem a se transformar em embates por direi-tos humanos fundamentais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

AMIN, A. (Ed.) Post-Fordism: A Reader. Oxford: Blackwell, 1994.ANTON, D. Thirsty Cities: Urban Environments and Water Supply in Latin America.

Ottawa, ON: International Development Research Centre, 1993.BAKKER, K. Privatizing Water: The Political Ecology of Water in England and Wales.

Oxford, UK, 1999a. Thesis (Dphil) – School of Geography and the Environment,University of Oxford.

E R I K S W Y N G E D O U W

49R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Erik Swyngedouw é profes-sor da School of Geographyand the Environment da Ox-ford University, UK. E-mail:[email protected]

Artigo recebido em janeirode 2004 e aceito para publi-cação em março de 2004.

Page 50: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

BAKKER, K. “Deconstructing Discourses of Drought.” Transactions of the British Insti-tute of Geographers New Series, v.24, p.367-72, 1999b.

_______. “Privatizing Water: Producing Scarcity: The Yorkshire Drought of 1995.” Eco-nomic Geography, 76(1), 4-27, 2000.

_______. “Paying for Water: Water Charging and Equity in England and Wales.” Tran-sactions of the Institute of British Geographers New Series, v.26, p.143-64, 2001.

_______. “From Public to Private to … Mutual? Restructuring Water Supply Governan-ce in England and Wales.” Geoforum, 34(3),359-74, 2003a.

_______. Privatising Water. Oxford: University Press. 2003b. (No prelo.)BARLOW, M.;Clark, T. Blue Gold. New York: New Press, 2002.BERNSTEIN, M. H. Regulating Business by Independent Commission. Princeton, NJ:

University Press, 1955.BOYMANS, D. European Policies and Sustainable Use of Water in Metropolitan Areas, Ins-

titute for Prospective Technological Studies, Seville: IPTS, 2001.CORBIN, A. The Foul and the Fragrant. London: Picador, 1994.CORBRIDGE, S. Debt and Development. Oxford: Blackwell, 1993.CORNUT, P. Over Water – De Belangen van het Drinkwater in het West-Europa van de

21ste Eeuw. Brussel: Vrije Universiteit Press, 2003.CRESPO, C. Water Privatisation Policies and Conflicts in Bolivia – The Water War in Co-

chabamba (1999-2000). Oxford, UK, 2002a. Thesis (PhD) – School of Planning,Oxford Brookes University. (Não-publicada.)

_______. “Structural Adjustment and Water Supply in Bolivia: Managing Diversity, Re-producing Inequality.” In: ZETTER, R.; WHITE, R. (Eds.) Planning in Cities –Sustainability and Growth in the Developing World. London: ITDG Publishing,2002b. p.189-202.

DAVIS, M. Ecology of fear: Los Angeles and the imagination of disaster. New York: Me-tropolitan Books, 1998.

EARLE, A. “International Water Companies.” [2001.] In: The Water Page <www.thewa-terpage.com> acesso em set. 2002.

GANDY, M. “The Making of a Regulatory Crisis: Restructuring New York City’s WaterSupply.” Transactions; Institute of British Geographers, v.22, p.338-58, 1997.

GLEICK, P. H.; WOLFF, G.; CHALECKI, E. L.; REYES, R. The New Economy of Wa-ter – The Risks and Benefits of Globalization and Privatization of Fresh Water. Oa-kland, California: Pacific Institute for Studies in Development, Environment, andSecurity, 2002.

GOUBERT, J.-P. The Conquest of Water. Cambridge: Polity Press, 1989.GRAHAM, S.; MARVIN, S. “Cherry-Picking and Social Dumping: Utilities in the

1990s.” Utilities Policy, 4(2), 113-20, 1994.GUY, S.; GRAHAM, S.; MARVIN, S. “Splintering Networks: Cities and Technical Net-

works in 1990s Britain.” Urban Studies, 34(2), 191-216, 1997.HAJER, M. A. The Politics of Environmental Discourse: Ecological Modernization and the

Policy Process. Clarendon Press: Oxford, 1995.HALL, D. “The Water Multinationals.” Public Services International Research Unit.

University of Greenwich. Occasional Paper, 1999. (Mimeografado.)

_______. “The Private Water Industry – a Global Assessment from the Perspective ofTrade Unions.” Paper presented to the conference on Achieving Participatory Go-vernance: sustainability and innovation policies in a multi-level context. Athens,29th-30th October 2001.

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

50 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 51: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

HALL, D.; LOBINA, E. Water Privatisation in Latin America. Public Services Interna-tional Research Unit, University of Greenwich, Paper Presented at PSI Americas’Water Conference, San José, Costa Rica, July 2002.

HARVEY, D. The New Imperialism. Oxford: University Press, 2003.HASSAN, J. A History of Water in Modern England and Wales. Manchester: University

Press, 1998.HAUGHTON, G. “Private Profits – Public Drought: the Creation of a crisis is water ma-

nagement for West Yorkshire.” Transactions of the British Institute of Geographers NewSeries, 23(4), 419-33, 1998.

_______. “Analysing the Multiple Constructions of Drought.” Transactions of the BritishInstitute of Geographers New Series, v.24, p.373-8, 1999.

HERBERT, A.; KEMPSON, E. Water Debt & Disconnection. London: Policy Studies Ins-titute (PSI), 1995.

HERRINGTON, P.; PRICE, C. What Price for Private Water. London: Public FinanceFoundation, 1987.

JESSOP, B. “The Transition to Post-Fordism and the Schumpeterian Workfare State.” In:BURROWS, R.; LOADER, B. (Eds.) Towards a Post-Fordist Welfare State? London:Routledge, 1994. p.13-37.

_______. The Future of the Capitalist State. Cambridge: Polity Press, 2002.KAÏKA, M. Modernity and the Urban Spaces of Produced Nature: the Politics and Cultu-

re of the Urbanisation of Water in Athens (1834-1999). Oxford, 1999. Thesis (-Dphil) – School of Geography and the Environment, University of Oxford, UK.(Não-pubicada.)

_______. “Constructing Scarcity and Sensationalising Water Politics: 170 Days thatShook Athens.” Antipode, 2003a.

_______. “The Water Framework Directive: a New Directive for a Changing Social, Po-litical and Economic European framework.” European Planning Studies, 11(3), 299-316, 2003b.

KAÏKA, M.; PAGE, B. “The EU Water Framework Directive Part 1: European Policy-Making and the Changing Topography of Lobbying.” European Environment,[2003]. (Não-publicado.)

KALLIS, G.; COCCOSSIS, H. Water for the City: Critical Issues and the Challenge ofSustainability. Metron Research Project, European Commission DG-Research, En-vironment and Climate Programme, ISBN-960-86789-2-7. Mytilini: University ofthe Aegean, 2001.

KAN, E.; STREIFF, T. The Water Factor – Water Quality. Zurich: Swiss ReinsuranceCompany, 2002.

KATZ, C. “Whose Nature, Whose Culture? Private Productions of Space and the‘Preservation’ of Nature”. In: BRAUN, B.; CASTREE, N. (Eds.) Remaking Reality:Nature at the Millenium. London: Routledge, 1998. p.43–63.

KAZEMIR, B.; LEININ, S.; SCHAUB, R. Privatization, Globalization, and Sustainabi-lity in the Water Industry. Draft Report. Zurich SUSTAINSERV Consulting, SwissInstitute for Environmental Science and Technology, 2002.

LASKI, H. J.; JENNINGS, W. I.; ROBSON, W. A. (Eds.) A Century of Municipal Pro-gress 1835-1935. London: George Allen & Unwin, 1935.

LITTLECHILD, S. Economic Regulation of Privatised Water Authorities. London:HMSO, 1986.

E R I K S W Y N G E D O U W

51R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 52: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

LITTLECHILD, S. “Economic regulation of privatised water authorities and some fur-ther reflections.” Oxford Review of Economic Policy, 4(2), 1988.

MARTIN, S.; PARKER, D. The Impact of Privatization: Ownership and Corporate Per-formance in the UK. London: Routledge, 1997.

MILLWARD, R. “Emergence of Gas and Water Monopolies in Nineteenth Century Bri-tain: Contested Markets and Public Control.” In: JAMES, F.-P. (Ed.) New Perspec-tives in Late Victorian Economy: Essays in Quantitative Economic History 1860-1914. Cambridge: University Press, 1991.

MOULAERT, F.; SWYNGEDOUW, E. “A Regulation Approach to the Geography ofthe Flexible Production System.” Environment and Planning D: Society and Space,v.7, p.327-45, 1987.

NEVAREZ, L. “Just Wait until There’s a Drought: Mediating Environmental Crises forUrban Growth.” Antipode, 28(3), 246-72, 1996.

OFWAT – Office of Water Services The Changing Structure of the Water and Sewerage In-dustry in England and Wales. OFWAT: Birmingham, 2000a.

_______. New Ownership Structures in the Water Industry. A Consultation Paper by the Di-rector General of Water Services. OFWAT: Birmingham, 2000b.

OGDEN, S. “The Trade Union Campaign against Water Privatisation.” Industrial Rela-tions Journal, n.22, p.20-35, 1991.

_______. “Transforming Frameworks of Accountability – the Case of Water Privatiza-tion.” Accounting Organizations and Society, v.20, p.193-218, 1995.

PAGE, B.; KAÏKA, M. “The EU Water Framework Directive Part 2: Policy Innovationand the Shifting Choreography of Governance.” European Environment, [2003].(Não-publicado.)

PARKER, D. “Privatisation and Regulation: Some Comments on the UK Experience.”Occasional Paper No.5. London, Centre for the Study of Regulated Industries(CRI)/Chartered Institute of Public Finance and Accountancy (CIPFA), 1997.

PETRELLA, R. La Manifeste de l’Eau. Bruxelles: Editions Labor, 1998.RUYS, P. “Structural Changes and General Interest: which Paradigms for the Public, So-

cial and Cooperative Economy?” Annales de l'economie publique sociale et cooperati-ve, n.68, p.435-51, 1997.

SWYNGEDOUW, E. “The Heart of the Place: The Resurrection of Locality in an Ageof Hyperspace.” Geographiska Annaler B, 71B(1), 31-42, 1989.

_______. “The Contradictions of Urban Water Provision.” Third World Planning Review,17(4), 387-405, 1995.

_______. “Neither Global Nor Local: ‘Glocalization’ and the Politics of Scale.” In: Cox,K. (Ed.) Spaces of Globalization: Reasserting the Power of the Local. New York/Lon-don: Guilford/Longman, 1997. p.137-66.

_______. “Homing In and Spacing Out: Re-Configuring Scale.” In: GEBHARDT, H.;HEINRITZ, G.; WIESSNER, R. (Eds.) Europa im Globalisierungsprozess von Wirts-chaft und Gesellschaft. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1998. p.81-100.

_______. “Authoritarian Governance, Power and the Politics of Rescaling.” Environmentand Planning D: Society and Space, v.18, p.63-76, 2000.

_______. Flows of Power – The Political Ecology of Water and Urbanisation in Ecuador.University Press: Oxford, [2004]. (Não-publicado.)

SWYNGEDOUW, E.; KAÏKA, M.; CASTRO, E. “Urban Water: A Political-EcologyPerspective.” Built Environment, v.28(2), 124-37, 2002a.

P R I V A T I Z A N D O O H 2 O

52 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 53: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

SWYNGEDOUW, E.; PAGE, B.; KAÏKA, M. “Sustainability and Policy Innovation ina Multi-Level Context: Crosscutting Issues in the Water Sector.” In: GETIMIS, P.;HEINELT, H.; KAFKALAS, G.; SMITH, R.; SWYNGEDOUW, E. (Eds.) Parti-cipatory Governance in Multi-Level Context: Concepts and Experience. Opladen:Leske & Budrich, 2002b. p.107-31.

TAYLOR, G. State Regulation & the Politics of Public Service. The Case of the Water In-dustry. London/New York: Mansell, 1999.

WARD, C. Reflected in Water. A Crisis of Social Responsibility. London/Washington: Cas-sell, 1997.

A B S T R A C T The paper critically engages with the global project of commodifyingand privatising water resources. In the first part, neo-liberal privatisation policies are contex-tualised historically and politically. In a second part, the discourse of water ‘scarcity’ is explo-red in relation to the logic of privatisation. In a subsequent part, the strategies of global cor-porations that share the water markets will be examined. This, in turn, leads to aconsideration of the continuing centrality of the state and of ‘governance’ in the regulation ofthe water sector, and to a discussion of the weakened position of the citizen vis-à-vis these mo-des of water governance. Finally, the contradictions of water privatisation will be explored.

K E Y W O R D S Water resources; privatisation; sanitation.

E R I K S W Y N G E D O U W

53R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 54: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

COMITÊS DE BACIA NO BRASIL

UMA ABORDAGEM POLÍTICA NO

ESTUDO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL1

R E B E C C A A B E R SM A R G A R E T K E C K

R E S U M O Este artigo propõe um marco conceitual para o estudo da gestão de re-cursos hídricos, no contexto de reforma institucional. Desde o início dos anos 1990, a gover-nança descentralizada e participativa da água vem sendo institucionalizada no Brasil pormeio da criação de Comitês de Bacia Hidrográfica. Os Comitês incluem governos, usuáriosde água (privados e públicos) e sociedade civil e têm competência legal para aprovar planos,definir critérios para cobrança da água bruta, alocar recursos gerados pela cobrança, arbitrarconflitos, além de outras atribuições. Nossa pesquisa sugere que a criação de tais fóruns deli-berativos nem sempre resulta na democratização do processo decisório ou em aumento de suaeficácia. As chances de sucesso aumentam consideravelmente quando as lideranças confrontama questão da sustentabilidade política desde o início, reconhecendo a necessidade de se obtercolaboração interna e apoio externo para as atividades dos comitês. O artigo conclui que issoocorre como conseqüência de práticas que levam à construção de redes entre indivíduos e or-ganizações e estimulam o aprendizado. O nível de empreendedorismo político que fomentatais práticas, mais do que a natureza dos problemas enfrentados nas bacias, ou a disponibili-dade de soluções técnicas apropriadas, distingue os comitês mais efetivos dos demais.

P A L A V R A S - C H A V E Comitês de bacia hidrográfica; redes; aprendiza-do; água.

INTRODUÇÃO

Os governos de países em desenvolvimento têm crescentemente fomentado a pro-dução de bens e serviços públicos por meio de conselhos participativos, nos quais atorespúblicos e privados colaboram na formulação e implementação de políticas públicas. Asmotivações para tanto variam desde a existência de limitações fiscais à ineficiência da má-quina burocrática, quanto de pressões pela democratização dos processos de tomada dedecisão a prescrições de agências financeiras internacionais. Em resposta, propõe-se a cria-ção de conselhos e outras formas descentralizadas de governança com participação de to-dos os indivíduos ou grupos que afetam ou são afetados por determinada política públi-ca, os chamados “stakeholders”. Esses novos espaços deliberativos buscam aproximar oprocesso decisório da população que é diretamente afetada por ele, distanciando-o das bu-rocracias centralizadas, cujas decisões são mais facilmente distorcidas pela partidarização,clientelismo e falta de informações (Rhodes, 1996).

Dois conjuntos de argumentos apóiam a criação de mecanismos de governança porstakeholders.2 O primeiro é que participação e descentralização ajudam a aprofundar a de-

55R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

1 Agradecemos os comen-tários valiosos de MarisaVon Bülow, Maria CarmenLemos, Rosa Formiga e Al-berto Lourenço. A pesquisana qual esse trabalho é ba-seado foi financiada pelaFundação John D. e Catheri-ne C. MacArthur, FundaçãoWilliam e Flora Hewlett, pelaNational Science Foundatione pelo Fundo Setorial de Re-cursos Hídricos do Ministé-rio da Ciência e Tecnologia.

2 Adotamos a definição degovernança utilizada porWälti et al. (2004, p.83-4):“esforços no sentido decriar redes e parcerias paramelhorar tanto a coordena-ção inter-agências como en-tre os setores público e pri-vado”. Sobre descentrali-zação, ver Garman et al.,2001; Hutchcroft, 2001;Wunsch, 1999; Ribot, 2002.Para simplificar, neste artigo“governança por stakehol-ders” faz referência a umavariedade de formas de go-vernança participativa.

Page 55: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

mocracia, fazendo que as políticas públicas traduzam os interesses da sociedade, especial-mente dos setores mais desfavorecidos. O segundo argumento é de que esse modelo degovernança por stakeholders gera eficiência: ele diminui os custos de transação ao aumen-tar o compromisso dos participantes com uma determinada política e, também, reduz ris-cos ao aumentar a probabilidade de que informações essenciais sejam conhecidas antes daimplementação da política. O argumento referente à melhoria da qualidade das informa-ções prevalece, sobretudo nas áreas mais técnicas, que muitas vezes não dispõem do co-nhecimento necessário para a tomada de decisões. Ambos os argumentos tendem a disso-ciar a governança por stakeholders do processo político, como se fóruns participativosfossem produzir “naturalmente” decisões mais justas ou mais eficientes, e como se estas,por sua vez, gerassem automaticamente o apoio político necessário para a sua aplicação.

A nossa pesquisa sobre as tentativas de implementação de uma governança descen-Nossa pesquisa sobre as tentativas de implementação de uma governança descentralizadados recursos hídricos no Brasil – institucionalizada através da criação de comitês de ba-cias hidrográficas com participação de governos, organizações privadas e da sociedade ci-vil – sugere que nem a democratização do processo decisório nem sua maior eficiência sãoadquiridos espontaneamente. Pelo contrário, constatamos que as chances de sucesso au-mentam consideravelmente quando as lideranças confrontam a questão da sustentabilida-de política desde o início, reconhecendo a necessidade de obter colaboração interna eapoio externo para os objetivos e as atividades dos comitês. Argumentamos que isso é fei-to mediante o estabelecimento de práticas que levam à construção de redes e estimulam oaprendizado. Esse tipo de empreendedorismo político, mais ainda do que a natureza doproblema ou a disponibilidade de soluções técnicas apropriadas, distingue os comitêsmais efetivos dos demais. Este artigo apresenta o marco conceitual através do qual anali-samos o novo modelo de gestão dos recursos hídricos.3

Em primeiro lugar, descrevemos os contornos gerais do novo sistema de gestão daságuas e os obstáculos que impedem sua implementação integral. Em seguida, apresenta-mos um marco analítico, com base em teorias de redes, de capital social e de aprendiza-do, para a compreensão mais rigorosa do processo de implementação do novo sistema.

GESTÃO DAS ÁGUAS E REFORMA NO BRASIL

O Brasil é considerado um país muito rico em água.4 Apesar da importância eco-nômica dos seus rios ter estimulado a criação de programas de excelência nas universida-des, em especial nos campos da Engenharia e áreas científicas a ela relacionadas, tais pro-gramas se dedicaram essencialmente a estudar o potencial de geração de energiahidrelétrica. A capacidade do Brasil de gerenciar seus recursos hídricos para outras prio-ridades – como, por exemplo, para garantir usos múltiplos e proteção ambiental – tem semostrado limitada.

Historicamente, vários fatores contribuíram para essa limitação. A abundância deágua permitiu o desenvolvimento de uma abordagem setorial em que cada agência e se-tor determinavam os seus objetivos de forma independente. O federalismo brasileiro tam-bém contribuiu para práticas setoriais ao definir duas esferas de gestão dos recursos hídri-cos e, conseqüentemente, dois níveis de gestão.5 Ao mesmo tempo, os governos muni-cipais determinam as políticas de uso do solo que têm impacto direto na quantidade e naqualidade de água. Desse modo, diferentes políticas que afetam a quantidade e qualidade

C O M I T Ê S D E B A C I A N O B R A S I L

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 456

3 O Projeto Marca d’Água,iniciado no ano de 2001, éuma pesquisa multidiscipli-nar sobre o processo dedescentralização da gestãodas águas no Brasil, comparticular atenção para opapel dos colegiados de ba-cias hidrográficas – comitêse consórcios de bacia. O es-tudo, que envolve dezenasde pesquisadores nacionaise internacionais, pretendeacompanhar o processo emaproximadamente vinte ba-cias hidrográficas, ao longode dez anos( www.marcada-gua.org.br).

4 Com 6.950 km3 por ano,o Brasil supera, em muito, adisponibilidade hídrica daRússia, que aparece em se-gundo lugar com 4.498km3 por ano (Gleik, 2000,p.197).

5 Os rios atravessando ouconstituindo fronteiras esta-duais e internacionais sãofederais. Todos os outrosrios bem como as água sub-terrâneas são estaduais.

Page 56: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

da água – tal como saneamento, irrigação, hidroeletricidade e controle da poluição – en-volvem dezenas de agências, federais e estaduais, até então pouco integradas nos seus ob-jetivos e atividades específicos.

No início dos anos 90, a proposta de modificação desse quadro veio com força delei, inicialmente em vários Estados pioneiros e, mais tarde, em âmbito federal (Lei fede-ral 9433/97). O conjunto dessas leis das águas propõem quatro princípios gerais comobase de um novo e complexo sistema de gestão: 1) integração das políticas públicas de ór-gãos federais e estaduais, tradicionalmente independentes; 2) descentralização da tomadade decisões em relação a bacias hidrográficas; 3) participação de stakeholders em novos or-ganismos deliberativos (comitês de bacia e conselhos estaduais e nacional de recursos hí-dricos) ; e 4) compreensão da água como um bem público de valor econômico.

Para os defensores da reforma, se o valor da água não for incorporado aos preços dosbens e serviços, será muito difícil controlar o lixo e a poluição e ainda mais difícil garan-tir água para as gerações futuras. Essa lógica segue um dos quatro “Princípios de Dublin”,acordados na Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento, em janeiro de1992. Tais princípios são amplamente aceitos como parte de um conjunto de normas bá-sicas sobre o uso de água doce. A Agenda 21, adotada pela Conferência das Nações Uni-das sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, poucos meses depois, fazreferência à água como “parte integral do ecossistema, um recurso natural e um bem so-cial e econômico, cuja quantidade e qualidade determinam a natureza do seu uso”, e ar-gumenta que, após satisfazer as necessidades humanas básicas e a proteção dos ecossiste-mas “os usuários de água devem ser cobrados adequadamente”.

O sistema de cobrança preconizado pela maioria das leis estaduais e pela legislação fe-deral operacionaliza o princípio do “poluidor-pagador”: os usuários de água (indústrias,companhias de saneamento, companhias elétricas e irrigantes), exceto os usos consideradosinsignificantes, devem pagar pelo uso da água e pela poluição lançada nos corpos d’água.Por outro lado, no âmbito dos comitês de bacia, os usuários, juntamente com representan-tes do poder público e da sociedade civil, podem participar do processo decisório sobre me-todologia e critérios de cobrança e sobre a alocação dos recursos arrecadados. Em tese, acobrança seria o instrumento mais poderoso dos comitês, tanto no sentido de promoverum uso mais racional da água, como para gerar recursos para ações e projetos de proteçãoe recuperação dos recursos hídricos. Peça-chave seria a criação de agências de bacia, comu-mente denominadas de “braço executivo” dos comitês, encarregadas de apoio técnico e ad-ministrativo às atividades dos comitês, incluindo aquelas relacionas à cobrança.

Em suma, os comitês de bacia constituem componente central da reforma. Sua prin-cipal especificidade é á de ser uma organização institucional moldada por uma territoria-lidade “natural” – a bacia hidrográfica – ao invés de corresponder às tradicionais frontei-ras político-administrativas dos municípios, Estados e União. De acordo com as leis daságuas, os comitês devem ser amplamente representativos, incorporando os stakeholdersmais importantes, ou seja, Estado, usuários e sociedade. Entre suas principais atribuições,podemos citar o estabelecimento de diretrizes e prioridades para a gestão da água, atravésdos planos de bacia; a deliberação sobre metodologia, critérios e preços de cobrança; e acriação das agências de bacia. Por sua vez, os conselhos estaduais e federal devem princi-palmente coordenar e regular o sistema global de gestão das águas, incluindo o processode tomada de decisão nos comitês. Os órgãos públicos gestores de recursos hídricos de-vem participar e dar apoio aos comitês, compartilhando informações e incorporando suasdecisões nas ações do poder público, além de continuar com as suas competências em

R E B E C C A A B E R S , M A R G A R E T K E C K

57R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 57: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

matéria de controle do uso da água (outorga) e sua fiscalização. Por não disporem da au-toridade para regular diretamente o uso do solo, uma atribuição municipal, os comitêsprecisam desenvolver uma relação de cooperação com os municípios da bacia, cujo nú-mero varia extremamente de uma bacia a outra. A natureza representativa dos comitês fezque muitos participantes apostassem na capacidade do novo sistema de gestão em racio-nalizar o uso da água e ser mais democrático.

No entanto, os especialistas em recursos hídricos não esperavam tamanha dificulda-de na implementação da nova legislação. Nossas entrevistas indicam que os indivíduosempreendedores da reforma tinham exata noção dos grandes desafios técnicos impostospelo novos modos de gestão, mas subestimaram os desafios sociais e políticos implícitosao processo de mudança. Sem uma visão mais ampla do contexto político-institucional,muitos técnicos interpretaram os contratempos como obstáculos decorrentes de interesseou ignorância, em vez de compreendê-los como etapa necessária da transição para o no-vo modelo no ambiente sociopolítico, dando tempo para que os atores sociais o assumis-sem. Em geral, o novo modelo de gestão não tem correspondido às expectativas nele in-vestidas; tem sido difícil instituir a cobrança pelo uso da água e, geralmente, os Estadostêm sido omissos na implementação de outros instrumentos de gestão. Por estarem na ba-se da estrutura decisória, os comitês somente serão efetivos se os órgãos gestores federaise estaduais reconhecerem a sua autoridade e implementarem as suas decisões.

A falta de apoio institucional consistente poderá condenar os comitês à irrelevância.No entanto, ao afastar-se do modelo preconizado pelas leis das águas, alguns comitês debacia têm conseguido desenvolver suas próprias agendas, solucionar ou minimizar confli-tos entre atores regionais, e encontrar outras maneiras de subsidiar as suas atividades. Taiscomitês sugerem um caminho alternativo, gradual e pragmático, para a implementaçãode um modelo de governança participativa.

MARCO ANALÍTICO PARA O ESTUDO DO DESENVOLVIMENTO DE COMITÊS

A implementação de um modelo descentralizado e participativo de decisão é sempreum processo de adaptação. Na prática, muitos stakeholders ficam à margem, esperando vero que acontece, até chegarem à conclusão de que vale a pena investir no processo. O queimpulsiona os indivíduos a investirem o seu tempo e energia para que novas instituiçõesde governança funcionem é a crença do seu poder de influência sobre decisões que elesconsideram relevantes. O paradoxo inerente representa o clássico dilema do prisioneiro:nenhum grupo de atores se comprometerá com o novo sistema antes que outros o façam,o que leva todos eles a manterem a mesma posição. A menos que um ator significativo des-ta interação tome a iniciativa de romper o ciclo, corre-se o risco de prejudicar a razão deexistência do próprio modelo participativo. A demora entre a aprovação das primeiras leise a implementação da cobrança pelo uso da água torna ainda mais importante esse tipo deliderança que seja capaz de quebrar a inércia defensiva do sistema de gestão.

C O M I T Ê S D E B A C I A N O B R A S I L

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 458

Page 58: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Figura 1 – Implementação da gestão descentralizada dos recursos hídricos.

A Figura 1 apresenta um diagrama simplificado do processo de implementação pro-posto pelo modelo. As linhas pontilhadas representam fases ainda não executadas em qua-se todas as bacias,6 o que termina por suscitar precaução em importantes stakeholders naconstrução do modelo de gestão. De fato, a única fase concluída do processo de imple-mentação, em muitos lugares, é a criação de comitês de bacia: 95 comitês estaduais e seiscomitês sob jurisdição federal foram criados até hoje, um dado surpreendente quando seconstata a fragilidade dos contextos institucionais nos quais eles se inserem.

Na visão subjacente à reforma dos modos de gestão das águas, a implementação dacobrança desencadearia um círculo virtuoso. Primeiro, induziria a racionalização do usoda água por parte dos principais usuários, que reduziriam o consumo e lançariam menosefluentes nos corpos d’água. Segundo, a cobrança geraria recursos para investimentos emproteção e recuperação das águas da bacia, uma vez que quase todas as leis das águas pre-vêem a utilização dos recursos arrecadados na mesma bacia onde foram recolhidos. Ter-ceiro, esses recursos estimulariam a colaboração entre órgãos municipais e estaduais, per-mitindo a busca de soluções técnicas não implementadas por restrições orçamentárias. Osidealizadores da reforma acreditavam que a cobrança seria catalisadora de governança co-laborativa. Sem a sua implementação, dever-se-ia esperar um círculo vicioso de inércia eesgotamento. Essas situações hipotéticas são ilustradas nas Figuras 2 e 3.

Figura 2 – Círculo virtuoso com Figura 3 – Círculo vicioso sem a cobrança pelo uso da água. a cobrança pelo uso da água.

R E B E C C A A B E R S , M A R G A R E T K E C K

59R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

6 Existem algumas exce-ções; alguns comitês cria-ram agências antes de ga-rantir sua auto- sustentabili-dade financeira.

Page 59: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Embora a cobrança no âmbito de organismos de bacia esteja sendo aplicada somen-te na bacia do Paraíba do Sul,7 essa experiência pioneira no Brasil sugere que o círculo vir-tuoso ilustrado na Figura 2 não ocorreria automaticamente com a implementação da co-brança. Dois tipos de obstáculos podem ser previstos. Primeiro, a economia local degrande parte das bacias brasileiras não é suficientemente dinâmica para que o montantearrecadado pela cobrança seja compatível com o nível de investimentos necessários para arecuperação de suas águas. Essas bacias continuariam dependentes de outras fontes de fi-nanciamento, o que certamente restringiria a capacidade de decisão dos comitês. Portan-to, os recursos da cobrança, somente, não seriam suficientes para incentivar a participa-ção e eventual colaboração dos stakeholders. Segundo, em bacias mais ricas, aimplementação da cobrança tende a mobilizar interesses antagônicos de grupos econômi-cos influentes. Mais poderosos e organizados que as organizações civis e pequenos usuá-rios, e experientes na influência sobre processos decisórios, esses grupos teriam os meiospara “capturar” comitês e agências, com o objetivo de boicotar a cobrança ou garantir queo sistema que eles também financiam atenda principalmente suas necessidades.

Esse tipo de “captura”, já visível na bacia do rio Paraíba do Sul, viria a contradizer avisão de governança por stakeholders, a qual pressupõe que interesses variados devem tera mesma oportunidade de influenciar a política. A chance de captura por grupos econo-micamente mais influentes é especialmente forte no caso da bacia do Paraíba do Sul, poistrata-se de uma das regiões mais dinâmicas e industrializadas do Brasil, onde os interesseseconômicos são poderosos e organizados. Contudo, já que a cobrança terá maior poten-cial de arrecadação exatamente em regiões desse tipo, não há por que descartar a hipóte-se de que sua implementação em outras bacias venha a resultar em um cenário de confli-to e política competitiva, ao invés do ciclo virtuoso ilustrado na Figura 1.

Ambas as situações, de fraco potencial de arrecadação e de captura por interessespoderosos, nos induzem a levantar duas questões fundamentais, que raramente são con-sideradas no que se refere à governança descentralizada da água: o que faria os comitêsfuncionarem efetivamente na ausência da cobrança? Se a cobrança vier a ser aplicada am-plamente, como minimizar a possibilidade de um cenário de “captura” – ou como rever-tê-lo? Criar comitês capazes de intervir na gestão de águas envolve não somente a “políti-ca-interna” de criar agenda e negociar, mas também a “política externa” de conquistarapoio de instituições relevantes.

Técnicos brasileiros, especialmente no mundo altamente insulado da gestão dos re-cursos hídricos, parecem perceber a dinâmica política de modo simplista, como algo queatrapalha a racionalidade técnica das soluções dos problemas. Mas a instituição de comi-tês de bacia, sejam colaborativos ou competitivos (ou a mistura dos dois), sempre envol-ve processos políticos mais complexos. A própria criação de um sistema de governançados stakeholders é estabelecida através de processos políticos (e pode igualmente ser des-mantelada por eles) e as decisões dos comitês podem conturbar o equilibro político pre-xistente. Decisões tecnicamente “corretas” envolvem escolhas sobre quem serão os bene-ficiados e necessitam de apoio político para sua operacionalização (Lemos, 2003).8 Maisainda, apoio político efetivo depende da existência de capacidade institucional para pro-ver as informações que os comitês precisam para tomar ou implementar decisões. Por suavez, capacidade institucional não é somente a presença de especialistas e conhecimento,mas também capacidade política de definir problemas, convencer partes interessadas so-bre a necessidade de resolvê-los e atrair recursos financeiros e pessoal técnico necessáriopara tal.

C O M I T Ê S D E B A C I A N O B R A S I L

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 460

7 O Estado do Ceará inicioua cobrança pelo uso daságuas de seu domínio em1996, mas seguindo uma ló-gica completamente diferen-te, pois tanto a aplicaçãoquanto a distribuição dos re-cursos arrecadados consti-tuem responsabilidade daagência gestora estadual(Cogerh) e não envolvem ne-nhum comitê de bacia.

8 Maria Carmen Lemos,membro do Projeto Marcad’Água, tem desenvolvidoextensa pesquisa sobre opapel da informação e co-nhecimento técnicos na polí-tica das águas no Brasil eem outros países.

Page 60: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

É improvável que modelos rígidos de políticas públicas, incluindo aqueles que in-corporam a participação de diferentes stakeholders, funcionem sem considerável adapta-ção às condições políticas específicas (Abers, 2003; Lemos & Faria, no prelo). As propos-tas de reforma das leis das águas delineiam as grandes linhas do modelo de governança,definindo os tipos de organismos que podem ser criados nos diferentes níveis, suas com-petências específicas e os instrumentos de gestão à disposição de cada um deles. O mo-delo definido por lei padece da falta de definições legais em questões-chave, tais como osmecanismos administrativos e financeiros através dos quais a cobrança deva ser imple-mentada (Abers & Keck, 2004). No entanto, mesmo que esses problemas sejam resolvi-dos, o modelo ainda necessitará de ajustes para adaptar-se às condições de cada bacia on-de a cobrança será instituída.

BUSCANDO UMA ABORDAGEM DE ADAPTAÇÃO

O processo de adaptação às condições específicas de cada bacia envolve mais do queuma leitura “correta” das condições e recursos locais. Para os atores comprometidos coma governança participativa, é também uma questão de seduzir outros atores, dentro e fo-ra dos comitês, com o intuito de fazer funcionar o sistema descentralizado de gestão.Acreditamos que isso geralmente ocorre através de práticas que promovem a construção deredes e aprendizagem.

Na ausência de recursos oriundos da cobrança, comitês mais bem-sucedidos mobi-lizam outros tipos de capital, principalmente humano e social. Recursos sociais são geral-mente encontrados em redes. Redes são estruturas compreendendo laços entre indivíduosou grupos, através das quais fluem idéias, informações e recursos materiais. A perspectivade redes enfatiza relações sociais mais do que categorias sociais, numa tradição desenha-da por Simmel tanto quanto por Weber e Polanyi (Marques, 2000, p.33). O trabalho deEduardo Marques (2000; 2003) demonstrou, recentemente, a importância dessa perspec-tiva no estudo de políticas urbanas no Brasil.

Pensar sobre redes pode nos ajudar a entender o conceito de capital social, populari-zado nos anos 90 pelo trabalho de Robert Putman sobre governos regionais na Itália. Put-man define capital social como: “características da organização social, tais como confian-ça, normas e redes, as quais podem melhorar a eficiência da sociedade facilitando a açãocoordenada” (1993, p.167). Nan Lin faz a conexão entre redes e ação colaborativa aindamais claramente. Não é simplesmente uma questão de confiança e reciprocidade que per-mitem a colaboração, ao invés da desconfiança e isolamento (o foco do trabalho de Put-man). Capital social, para Lin, é definido como “recursos de uma determinada estruturasocial que são acessados e/ou mobilizados em ações intencionais” (Lin, 2001b, p.12;2001a, cap.3). Isso significa que, através de redes, pessoas podem ganhar acesso aos recur-sos que membros de outras redes possuem, com o intuito de tornar a ação coletiva maispoderosa e efetiva. A idéia de capital social combina as noções de estrutura, oportunidadee ação. Para Lin, a premissa por trás da noção de capital social é simples e direta: trata-sede um “investimento em relações sociais com expectativa de retorno”(Lin, 2001b, p.6).

Esse conceito simples torna-se muito mais complexo quando lembramos que indi-víduos participam numa grande variedade de redes. No seu trabalho sobre a relação entreestrutura e ação, Sewell (1992) defende que o comportamento dos indivíduos não podeser totalmente determinado pelas estruturas nas quais eles operam porque, normalmente,

R E B E C C A A B E R S , M A R G A R E T K E C K

61R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 61: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

indivíduos inserem-se dentro de uma multiplicidade de estruturas distintas (relações eco-nômicas, normas culturais, regras políticas etc.), o que possibilita a ação criativa porquepodem levar idéias e procedimentos de uma estrutura para outra. Ann Mische reconhe-ce, ainda, que pessoas carregam consigo habilidades adquiridas de um contexto estrutu-ral para qualquer outro em que se envolvam (Mische & White, 1998; Mische, 1997). Es-sas idéias nos ajudam a entender como atores utilizam recursos de redes. A maior partedos indivíduos fazem parte de mais de um tipo de rede e alguns deles situam-se nas in-terfaces entre redes que seriam, de outra maneira, desconectadas. Esses indivíduos sãoparticularmente bem posicionados para usar os recursos das redes de maneira inovadorae criativa.

Ronald Burt (1992; 2001; 2002) denomina tais indivíduos de “pontes” e lhes atri-bui capacidades empreendedoras especiais. Recentemente, a ciência política começou aprestar atenção no papel desses líderes, denominando-os de “empreendedores políticos”.A eles são atribuídos capacidades análogas às que os empreendedores têm na economia.Scheingate (2002) define empreendedores políticos como “indivíduos cujos atos criativostêm efeitos transformativos sobre política, políticas públicas e instituições”. Quase todosos estudos relativos aos empreendedores políticos os descrevem como pessoas que têmuma capacidade especial de identificar oportunidades para a ação inovadora e para agir deacordo com essa visão. O conceito de Burt sobre “construção de pontes” (“bridging”)levanta uma característica diferente do empreendedorismo do mundo político: empreen-dedores são pessoas que estão de tal forma bem localizadas nas interfaces das redes quesão capazes de mobilizar e organizar recursos de maneiras inovadoras, reunindo pessoasque, de outra maneira, não estariam trabalhando juntas.

Nosso estudo sugere que em alguns comitês a colaboração entre membros é cons-truída através de iniciativas de empreendedores políticos que promovem pequenos pro-jetos práticos envolvendo membros com interesses distintos na busca de um mesmo ob-jetivo. Tais iniciativas normalmente visam a solução de problemas concretos com osquais os membros se identificam. Menor atenção é dada à implementação da agenda ofi-cial da reforma, que é extensa e freqüentemente percebida como ambiciosa e complexa.As competências formais dos comitês, bem como as expectativas dos idealizadores da re-forma em relação às suas atribuições, são essencialmente definidas em torno do desenhoe aplicação dos instrumentos de gestão da bacia hidrográfica. No entanto, a maioria doscomitês mais ativos se dedicaram inicialmente a atividades distintas das suas competên-cias formais, às vezes de forma simultânea à implementação da agenda oficial. Na baciado rio Itajaí (Santa Catarina), por exemplo, as primeiras ações do comitê consistiram emorganizar oficinas com vários atores para definir parcerias com vistas à prevenção e com-bate às cheias. O Comitê da Bacia do Sinos (Rio Grande do Sul) privilegiou um proje-to de educação ambiental envolvendo escolas locais. Na bacia do rio das Velhas (MinasGerais), o comitê começou a ganhar vitalidade, depois de anos de estagnação, construin-do parcerias entre governos municipais e usuários em pequenas sub-bacias. Ainda emMinas Gerais, o Comitê da Bacia do Araçuaí dedicou-se inicialmente ao desenho e mo-nitoramento de projetos de saneamento financiados pelo Banco Mundial. Em São Pau-lo, o principal objeto de tomada de decisão dos comitês de bacia foi a alocação dos re-cursos do fundo estadual para projetos relacionados à proteção e recuperação dosrecursos hídricos (Fehidro).9

Estas experiências iniciais tiveram um efeito de “bola de neve”, ou seja, foram se avo-lumando e consolidando dentro dos comitês até terem capacidade de mobilizar membros

C O M I T Ê S D E B A C I A N O B R A S I L

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 462

9 Para mais informaçõessobre esses casos, vejawww.marcadagua.org.br.

Page 62: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

e de implementar ações mais ambiciosas. Isso certamente aconteceu na bacia do Itajaí, on-de o comitê, ao longo do tempo, se tornou um dos principais atores na gestão das águas.Reunindo atores-chave em torno de oficinas para a definição de pequenos projetos, o co-mitê criou uma capacidade interna que serviu de base para uma campanha maciça de edu-cação ambiental na bacia, chegando a envolver mais de 200 mil pessoas por ano. Com is-so, o comitê ganhou legitimidade, visibilidade, e passou a ser consultado regularmentepelo governo estadual sobre novos projetos relacionados às águas da bacia.

Pequenas ações podem também tornar-se ponto de partida para empreendimentosmais complexos. Em São Paulo, o Comitê do Litoral Norte organizou visitas de estudopara dar oportunidade aos seus membros de conhecer os cursos d’água da região.10 Essasatividades contribuíram para a construção de uma identidade da bacia e deram uma vi-são geral sobre os problemas que a região enfrenta. Influenciados pela nova visão de ba-cia hidrográfica, lideranças do comitê iniciaram então uma série de reuniões com os ato-res envolvidos em todos os processos de planejamento da região, tais como planos dezoneamento costeiro, planos diretores municipais, planos de gerenciamento de parques eplanos de disposição de resíduos sólidos. Essas reuniões, realizadas em 2002, incentiva-ram indivíduos de diversas organizações e setores envolvidos com a gestão da bacia a ten-tar identificar problemas que poderiam ser mais bem enfrentados coletivamente, em vezde continuar a tratá-los separadamente como o usual. Ao mesmo tempo, os relaciona-mentos construídos no contexto desta colaboração entre o Comitê do Litoral Norte e asquatro prefeituras da bacia possibilitaram o apoio político e sobretudo financeiro neces-sários à criação de uma agência de bacia. Por ser financiada por contribuições espontâneasdas prefeituras, essa iniciativa viabilizou, na prática, o funcionamento da agência de ba-cia, até então dependente da aprovação da lei paulista de cobrança pelo uso da água quese encontra em tramitação na Assembléia dos Deputados desde 1998.

Tendo constatado a existência desses processos em algumas bacias, nossa pesquisabusca identificar em que medida esses estudos de caso revelam um padrão consistente ecomo o processo de “bola de neve” ocorre, ou ainda: como grupos de atores identificame usam recursos em situações complexas, de forma que cada nova atividade contribua pa-ra a construção de novos recursos? Nossa hipótese é a de que membros de comitês cons-troem capital social através de engajamento em projetos modestos, mas concretos. A co-laboração em torno desses projetos contribui para o desenvolvimento de relações deconfiança entre os membros do comitê e entre eles e atores-chave de organizações públi-cas e privadas, das quais o comitê depende para alcançar seus objetivos. Essas relações –ou redes – se tornam reservas de recursos que poderão ser mobilizados para ação futura.Onde essas redes se transformam em novas relações de reciprocidade e confiança – ou ca-pital social – elas podem ser usadas para mobilizar mais colaboração.

Alem de unir redes anteriormente desconectadas, práticas colaborativas também fo-mentam aprendizado. “Aprender fazendo”, um conceito muito discutido na literatura deplanejamento e administração pública, é freqüentemente entendido como um processointerativo, de tentativa e erro, através do qual atores incrementalmente identificam a so-lução “correta” para seus problemas. Entendemos que o aprendizado na prática é um pro-cesso mais complexo e também político, através do qual atores modificam suas percepçõesdos problemas e das alternativas para sua solução. Os tipos de problemas que as organi-zações podem resolver dependem não somente dos recursos técnicos, financeiros ou po-líticos à sua disposição, mas também de suas práticas coletivas, que transformam a com-preensão dos problemas, redefinem metas, constroem novos laços e reforçam capacidades

R E B E C C A A B E R S , M A R G A R E T K E C K

63R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

10 A UGRHI Litoral Norte in-clui dezenas de pequenoscursos d’água que descemda serra do Mar até o ocea-no Atlântico.

Page 63: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

técnicas e políticas (Lave & Wenger, 1991; Chaiklin & Lave, 1993; Wenger, 1998; Abers,2000; Abers & Keck, 2003).

A iniciação e continuidade de práticas colaborativas não ocorrem automaticamen-te a partir da mera criação de um espaço organizacional apropriado. São também neces-sários empreendedores organizacionais que promovam tanto a construção de redes quan-to o aprendizado. Além de conectar redes, empreendedores têm um papel-chave noprocesso de aprendizado, ao ajudar a construir idéias (Snow et al., 1986) de tal formaque os atores passem a perceber a colaboração como um meio de solução dos problemas.Ao mobilizar pessoas para conseguir soluções, usando sua reputação e capacidade políti-ca para negociar com órgãos e grupos com os quais é necessário interagir, empreendedo-res podem aumentar a confiança dos membros sobre a capacidade do comitê de alcan-çar seus objetivos. Ou seja, os empreendedores põem a “bola de neve” em movimento ea mantêm rolando.

Quando alguns comitês conseguem usar recursos disponíveis de forma criativa paraformular suas próprias agendas, alcançar objetivos e atrair colaboradores, denominamosesse processo de “círculo virtuoso alternativo”. Assim são construídas as relações políticase sociais necessárias para ativar práticas de gestão descentralizada da água. Na medida emque relações colaborativas são desenvolvidas dentro e fora dos comitês de bacia, membrospassam a perceber estes organismos como instrumentos de ação efetivos e influentes nosistema de gestão de águas. Por sua vez, esta percepção pode resultar em maior engaja-mento, energia e busca de suporte técnico por parte de membros na sua participação dasatividades do comitê. Em outras palavras, ao trabalhar a implantação política do novo mo-delo de gestão, os membros aumentam a demanda por suporte técnico no comitê. A fi-gura 4 ilustra esse círculo virtuoso alternativo.

Figura 4 – Círculo virtuoso alternativo.

CONCLUSÕES

Na ausência da iniciativa e do grau de compromisso, que funcionam como massacrítica para começar a “rolar a bola de neve”, os comitês freqüentemente encontram di-ficuldade em definir seus papéis. A existência de um foro de discussão de problemasregionais, no qual atores têm a oportunidade de se encontrar e interagir regularmente,

C O M I T Ê S D E B A C I A N O B R A S I L

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 464

Page 64: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

pode ser muito valiosa. Contudo, essa situação provavelmente não irá perdurar na ausên-cia de resultados práticos. Em outras palavras, apesar de desejável, o debate, sozinho, nãoconstrói laços da mesma forma que as práticas o fazem. Muitos comitês de bacia, criadosno âmbito das reformas atuais, construíram muito pouco e raramente se reúnem, à espe-ra da implementação efetiva do sistema. Em outros casos, em vez de seguirem o modeloproposto nas leis das águas, os comitês se transformaram em organizações muito seme-lhantes a ONGs. Outros ainda são caracterizados pela intervenção significativa de finan-ciadores externos. É o caso dos comitês de bacia no Nordeste, onde o Banco Mundial setornou o principal interlocutor de todos os atores envolvidos.

Embora tenhamos enfatizado a construção criativa de redes como uma estratégiaque emerge na ausência da implementação da cobrança, ela pode ser também importan-te em bacias onde a cobrança pode vir a gerar recursos financeiros significativos. Quandoatores poderosos representados no comitê se mantêm à margem do processo inicial, a im-plementação da cobrança tende a ser um evento profundamente desestabilizador. Por ou-tro lado, membros de comitê que aprenderam a cooperar verão que sua estrutura relacio-nal não é capaz de resistir ao súbito ingresso de poderosos focos de influência econômicaou política. E, quando houver algum nível de respeito mútuo e reconhecimento entre osmembros do comitê antes da chegada de recursos significativos, provenientes da cobran-ça, a possibilidade de deliberação democrática deve aumentar.

Em bacias onde a capacidade de arrecadação da cobrança for insuficiente para aten-der as necessidades da região, a construção de redes poderá se constituir na única alterna-tiva viável para a sustentabilidade dos comitês, pois seriam as únicas forças dinâmicas afavor de mudança. Sem a mobilização de capital humano e social, as chances de que es-ses comitês consigam acesso a recursos materiais e financeiros são pequenas ou inexisten-tes. A propósito, a visão de muitos técnicos de recursos hídricos é a de que tais bacias nãodeveriam criar comitês: órgãos de níveis mais centrais continuariam responsáveis pelas de-cisões sobre as ações ou intervenções naquelas bacias. A visão alternativa é a de que, inde-pendente da capacidade de gerar ou obter recursos, comitês devem ser criados para queos interesses locais sejam ouvidos e articulados. Essa visão coloca a dimensão participati-va da gestão da água acima do objetivo puramente pragmático de gerar novos recursos pa-ra programas de excelência técnica.

Finalmente, é importante lembrar que os comitês de bacia nunca foram concebidoscomo substitutos à ação do Estado. Seu papel principal é o de definir prioridades para agestão das águas, enquanto cabe às suas agências de bacia a implementação dessas priori-dades. Na prática, entretanto, a execução das recomendações dos comitês tem ficado soba responsabilidade de órgãos públicos, seja de forma direta ou indireta, mediante contra-tação de firmas privadas.

A construção de redes e os passos iniciais que tornam possíveis ações mais ambicio-sas envolvem não somente atores dos comitês mas também atores externos relevantes. Noscasos em que comitês desejam influenciar a outorga de direitos de uso na sua bacia, porexemplo, suas lideranças precisam manter relações construtivas com o órgão gestor res-ponsável; caso contrário, os comitês correm o risco de ser ignorados pelos órgãos estataisna implementação das políticas que deveriam influenciar.

Resumindo, novos marcos institucionais e decisórios podem ser criados por manda-to legal, mas sua implantação e funcionamento envolvem processos sociopolíticos, atra-vés dos quais indivíduos e organizações enfrentam a tarefa de tornar mandatos legais emrealidade. Quando esses processos envolvem a interação de representantes de grupos

R E B E C C A A B E R S , M A R G A R E T K E C K

65R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 65: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

desconectados entre si e a realocação de competências de órgãos estatais existentes, é cru-cial a construção de capacidade político-institucional. Essa condição tem sido ignoradapor grupos técnicos responsáveis pelo desenho e implementação da reforma do sistema degestão das águas. Sem a construção gradual de capital social dentro dos comitês de bacia,atores que normalmente não se comunicam continuarão isolados. Da mesma forma, semo cultivo cuidadoso de laços com os órgãos estatais, tão essenciais para a implementaçãodas políticas de recursos hídricos, os comitês de bacia encontrarão resistência no reconhe-cimento de sua autoridade. Acreditamos que ambos os tipos de laços não só podem co-mo precisam ser deliberadamente fomentados pelas lideranças dos comitês, para que o an-seio por uma gestão mais democrática e efetiva das águas se torne realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABERS, R. “Idéias e interesses em políticas participativas: Reflexões a partir dos orçamen-tos participativos e os comitês de bacia hidrográfica.” Sociedade e Estado, 18 (1/2):257-290. Jan/Dez. Universidade de Brasília, 2003.

_______. Rebecca, 2000. Inventing Local Democracy: Grassroots Politics in Brazil. Boul-der, Colorado: Lynne Rienner Publisher.

_______. Rebecca e KECK, Margaret, 2003. “Networks, Relations and Practices: Reflec-tions on Watershed Management Organization in Brazil". Trabalho apresentado noXXIV International Congress of the Latin American Studies Association (LASA).Dallas, Texas, 27-29 de março de 2003.

_______. Rebecca e KECK, Margaret, 2004. “Muddy Waters: Decentralization, Coordi-nation and Power Struggle in the Brazilian Water Management Reform” Trabalhoapresentado XXV International Congress of the Latin American Studies Association(LASA). 7-9 de outubro de 2004, Las Vegas.

AGRAWAL, A.; GIBSON, C. (Orgs.) Communities and the Environment: Ethnicity, Gen-der and the State in Community Based Conservation. New Brunswick, NJ: RutgersUniversity Press, 2001.

BURT, R. S. Structural Holes: The Social Structure of Competition. Cambridge, Mass:Harvard University Press, 1992.

_______. “Structural Holes versus Network Closure as Social Capital.” In: LIN, N.;COOK, K. C.; BURT, R. (Orgs.) Social Capital: Theory and Research. Hawthorne,NY: Aldine de Gruyter, 2001. p.31-56.

_______. “Bridge Decay.” Social Networks, 24: 333-63, 2002.CHAIKLIN, S.; LAVE, J. Understanding Practice: Perspectives on Activity e Context.

Cambridge: Cambridge University Press, 1996.GARMAN, C.; HAGGARD, S.;WILLIS, E. “Fiscal Decentralization: A Political Theory

with Latin American Cases.” World Politics, 53: 205-36, 2001.GLEIK, P. The World’s Water 2000-2001, Washington D.C.: Island Press, 2000.HUTCHCROFT, P. Centralization and Decentralization in Administration and Politics:

Assessing Territorial Dimensions of Authority and Power.” Governance 14(1): 23-53, 2001.

KECK, M. E. “Governance Regimes and Transnational Activism.” In: UHLIN, A.; PI-PER, N. (Eds.) Transnational Activism in Asia: Problems of Power and Democracy.London: Routledge, 2003.

C O M I T Ê S D E B A C I A N O B R A S I L

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 466

Rebecca Abers é coorde-nadora técnica do ProjetoMarca d’Água, Núcleo dePesquisa em Políticas Públi-cas, Universidade de Brasília.E-mail: [email protected]

Margaret Keck é professo-ra do Departamento deCiência Política da JohnsHopkins University e coorde-nadora geral do Projeto Mar-ca d’Água. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em janeirode 2004 e aceito para publi-cação em abril de 2004.

Page 66: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

KECK, M. E. Margaret, “’Water, Water, Everywhere, Nor any Drop to Drink’: LandUse and Water Quality in São Paulo.” In: EVANS, P. (Org.) Livable Cities? UrbanStruggles for Livelihood and Sustainability. Berkeley: University of California Press,2002.

LAVE, J.; WENGER, E. Situated Learning: Legitimate Peripheral participation. Cam-bridge, Cambridge University Press, 1991.

LEMOS, M. C. “A Tale of Two Policies: the Politics of Seasonal Climate Forecast Use inCeará, Brazil.” Policy Sciences, 36: 101-123, 2003.

_______. M. C. e OLIVEIRA, J. L. F. de. "Can Water Reform Survive Politics?". WorldDevelopment. (No prelo.)

LIN, N. Social Capital: A Theory of Social Structure and Action. Cambridge: Cambrid-ge University Press, 2001a.

_______. “Building a Network Theory of Social Capital.” In: LIN, N.; COOK, K.;BURT, R. S. (Orgs.) Social Capital: Theory and Research. Hawthorne, NY: Aldinede Gruyter, 2001b. p.3-30.

MARQUES, E. C. Redes Sociais, instituições e atores políticos no governo da Cidade de SãoPaulo. São Paulo: Annablume, 2003.

_______. Eduardo César, 2000. Estado e Redes Sociais: Permeabilidade e Coesão nas Po-líticas Urbanas no Rio de Janeiro. São Paulo: Fapesp/ Editora Revan.

MISCHE, A. De estudantes a cidadãos: redes de jovens e participação política. RevistaBrasileira de Educação, n.5-6, p.134-50, 1997.

MISCHE, A.; WHITE, H. “Between Conversation and Situation: Public SwitchingDynamics across Network Domains.” Social Research, 65(3):695-724, 1998.

PUTNAM, R. D. Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy. Princeton:Princeton University Press, 1993.

RIBOT, J. Democratic Decentralization of Natural Resources: Institutionalizing PopularParticipation. Washington, DC: World Resources Institute, 2002.

RHODES, R. A. W. “The New Governance: Governing without Government.” Politi-cal Studies, 44 (4): 652-67, 1996.

SEWELL, W. H., Jr., “A Theory of Structure: Duality, Agency, and Transformation.”American Journal of Sociology, 98(1):1-29, jul. 1992.

SHEINGATE, A. “Entrepreneurs, Institutions, and American Political Development.”Trabalho apresentado no 2002 Annual Meeting of the American Political ScienceAssociation, Boston, Mass.: 29 de agosto a 1 de setembro de 2002.

SNOW, D. A.; ROCHFORD JR E. Burke; WORDEN, S. K.; BENFORD, R. D., 1986.“Frame Alignment Processes, Micromobilization, and Movement Participation.”American Sociological Review, 51:464-81, ago. 1986.

TENDLER, J. Good Government in the Tropics. Baltimore, MD: Johns Hopkins Univer-sity Press, 1996.

TILLY, C. From Mobilization to Revolution. Reading, MA: Addison-Wesley, 1978.UPHOFF, N. Learning from Gal Oya: Possibilities for Participatory Development and

Post-Newtonian Social Science. Ithaca: Cornell University Press,1992.WÄLTI, S.; KÜBLER, D.; PAPADOPOULOS, Y. “How Democratic is “Governance”?

Lessons from Swiss Drug Policy.” Governance: An International Journal of Policy, Ad-ministration, and Institutions, 17(1): 83-113, 2004.

WENGER, E. Communities of Practice: Learning, Meaning, and Identity. Cambridge:Cambridge University Press, 1998.

R E B E C C A A B E R S , M A R G A R E T K E C K

67R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 67: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

WUNSCH, J. “Institutional Analysis and Decentralization: Developing an AnalyticalFramework for Effective Third World Administrative Reform”. In: MCGINNIS,M. (Ed.) Polycentric Governance and Development, The University of Michigan Press,Ann Arbor, 1999.

A B S T R A C T This article presents a conceptual framework for studying waterresources management in the context of institutional reform. Since the early 1990s,decentralized, participatory water resources governance has begun to be institutionalized inBrazil through the creation of River Basin Committees. These committees include government,the private sector and civil society, and are legally responsible for approving plans, determiningcriteria for bulk water charges, allocating proceeds, resolving conflicts and other attributions.Our research suggests that the creation of these deliberative forums does not always result ineither more democratic or more effective decision-making. The chances of success are greatlyenhanced when leaders confront the problem of political sustainability from the outset,recognizing the need to build internal collaboration and external support for committeeactivities. We propose that this occurs through practices that lead to the construction ofnetworks of individuals and organizations, and that promote learning. The politicalentrepreneurship that fosters such practices, even more than the nature of the problem or theavailability of appropriate technical solutions, distinguishes the more effective committees fromthe rest.

K E Y W O R D S River basin committees; networks; learning; water.

C O M I T Ê S D E B A C I A N O B R A S I L

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 468

Page 68: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ATENAS, O OLIMPISMO À GUISA DE URBANISMO

G U Y B U R G E L 1

R E S U M O Os Jogos Olímpicos de 2004 marcaram o coroamento de uma nova erainiciada na capital grega há mais de um quarto de século. O retorno a uma democracia re-forçada, a vinculação à Europa política, a consciência da responsabilidade internacional as-sumida no Mediterrâneo oriental, nos Bálcãs e no vasto mundo através da marinha grega,confirmam Atenas em seu destino de “cidade global”. Para além da funcionalidade com re-lação à natureza das provas esportivas ou o desenrolar das festividades, a escolha dos sítiosolímpicos respondeu a uma vontade estratégica afirmada sobre a totalidade do espaço da re-gião urbana e a um desejo de reconversão geral das infra-estruturas após os Jogos. O presentetexto mostra que, mais do que em Barcelona, onde o direcionamento da cidade para seu por-to foi o grande evento dos anos 90, a mutação aqui engajada é mais fundamental, posto queAtenas, capital continental, não foi jamais uma cidade litorânea: desde a Antiguidade, o Pi-reu e suas bacias contribuintes constituem uma entrada marítima descentrada e a vocação dacosta foi sempre mais balneária do que verdadeiramente urbana.

P A L A V R A S - C H A V E Atenas; Olimpíadas; urbanismo.

INTRODUÇÃO

O anúncio, em setembro de 1997, da escolha de Atenas como sede das Olimpíadas de2004 confortou a capital grega em seu destino contemporâneo, dividida entre o enraizamen-to do mito (a Acrópole, o Parthenon), o intercâmbio mundializado de um país novo e umacidade que há muito adotara ares latino-americanos.2 Desde sua refundação em 1830 nanova Grécia liberta do jugo otomano, Atenas, com efeito, nunca deixou de reivindicar seuapego à Antiguidade, a seus valores estéticos e monumentais, sua criação da democracia e daconstituição urbanas e sua aspiração à modernidade, nas virtudes da internacionalização dassociedades, de reestruturação contínua das construções, para não falar do caos urbanísticoinstaurado em sua espontaneidade criadora. Segundo as épocas, estas tensões antagônicas as-sociaram-se ou opuseram-se. Durante todo o século XIX até o fracasso da “Grande idéia” (aconquista da Ásia Menor) em 1922, Atenas havia tentado viver ao mesmo tempo suas aber-turas exteriores, seu zelo pela legitimidade histórica e seu testemunho de uma Europa dasLuzes no Oriente: o helenismo econômico e social triunfante estava alhures, em Esmirna,Alexandria, ou mesmo em Tessalônica, mas os palácios neoclássicos faziam reviver a Gréciaantiga ao longo das amplas avenidas desenhadas pelos arquitetos bávaros de Othon, primei-ro rei da nação livre. Da “catástrofe” da Ásia Menor à queda dos coronéis (1974), Atenas viuo recuo nacional, mas não o fim de seus males urbanos: a crise dos anos 30, a ocupação na-zista, a guerra civil, a democracia incerta fecharam os horizontes econômicos, sociais e polí-ticos, mas a cidade foi a cada passo perturbada pela instalação dos refugiados trocados coma Turquia, pelo êxodo rural maciço e sobretudo pela renovação espontânea dos bairros cen-trais e pela explosão da habitação informal nas periferias da aglomeração.

69R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

1 Tradução de Lucia Reis.

2 Ver sobre o tema, G. Bur-gel, Le miracle athénien auXXème siècle, 2002; e G.Burgel e Z. Demathas, LaGrèce face au troisième mil-lénaire, 2001.

Page 69: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Nesta história rapidamente esboçada, os Jogos Olímpicos de 2004 marcaram o co-roamento de uma nova era iniciada na capital grega há mais de um quarto de século. Oretorno a uma democracia reforçada, a vinculação à Europa política, a consciência da res-ponsabilidade internacional assumida no Mediterrâneo oriental, nos Bálcãs e no vastomundo através da marinha grega, confirmam Atenas em seu destino de “cidade global”.Ao mesmo tempo, emergem preocupações novas e insólitas na bacia do Ático, de prote-ção do meio ambiente, de desenvolvimento sustentável, de conservação do patrimônio,ao menos daquilo que dele ainda resta. Em grande medida, os Jogos identificam-se a pen-samentos inovadores e sua preparação tornou-se um acelerador de sua materialização. Ecomo é preciso sempre um símbolo e uma imagem forte, a nova extensão, inteligente esurpreendente, que acaba de realizar Mario Botta para a sede do Banco Nacional, inte-grando uma parte dos locais de Themístocles (século V a.C.) no conjunto neoclássico doséculo XIX restaurado e situado na praça Kotzia (banco, antiga agência de correios), ondedevia julgar-se a chegada das provas de ciclismo, é uma figura emblemática da Atenasolímpica: cultural e contemporânea.

O CATALISADOR OLÍMPICO

Como de hábito, se a organização dos Jogos Olímpicos mobilizou toda a atenção doEstado e da opinião pública durante vários anos, e se a agitação dos preparativos pertur-baram dia e noite toda a vida da capital por meses, as obras diretamente ligadas ao even-to pareciam extraordinariamente limitadas em número e extensão. Mas, desde a origem,as autoridades insistiram no esperado efeito de “alavanca” sobre o conjunto dos proble-mas urbanos. Kostas Liaskas, vice-presidente da Comissão Organizadora dos Jogos Olím-picos e presidente da Câmara Técnica da Grécia, declarava com grandiloqüência em1997: “Todas as obras, as ações e conseqüências que prevemos deveriam ter sido conside-radas pelo Estado há décadas. A organização dos Jogos dá ocasião a um despertar de Ate-nas em muitos domínios e a um novo enfrentamento dos problemas da cidade no qua-dro da região metropolitana”.

De fato, para além da funcionalidade com relação à natureza das provas esportivasou o desenrolar das festividades, a escolha dos sítios olímpicos respondeu a uma vontadeestratégica afirmada sobre a totalidade do espaço da região urbana e a um desejo de re-conversão geral das infra-estruturas após os Jogos.

Com os equipamentos colocados na baía de Falero e as infra-estruturas programa-das em Aghios Kosmas, em ligação com a preparação dos terrenos liberados pelo fecha-mento do antigo aeroporto de Hellenikon, trata-se, sobretudo, de um deslocamento dacidade em direção ao mar. Mais do que em Barcelona, onde o direcionamento da cidadepara seu porto foi o grande evento dos anos 90, a mutação aqui empreendida é mais fun-damental, posto que Atenas, capital continental, não foi jamais uma cidade litorânea: des-de a Antiguidade, o Pireu e suas bacias contribuintes constituem uma entrada marítimadescentrada e a vocação da costa foi sempre mais balneária (vilegiatura em Novo Falerono fim do século XIX, praias e marinas do Velho Falero em Vouliagmeni na segunda me-tade do século XX) do que verdadeiramente urbana.

A amplitude dos investimentos (mais da metade da despesa total foi feita nos 6kmde costa da baía de Falero) e a natureza e a concepção dos equipamentos respondem a umprojeto de abertura histórica para o mar. À construção futurista do estádio de vôlei de

A T E N A S , O O L I M P I S M O

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 470

Page 70: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

praia, e à reutilização do Estádio da Paz e da Amizade para os fins do voleibol, junta-se aambição explícita do restabelecimento da ligação da cidade com a água: nova localizaçãoda estrada litorânea com espaços verdes lineares de proteção visual e sonora, chegada dobonde, vasto viaduto-promenade ligando as infra-estruturas, proteção contra os riscos deinundação por gigantescas obras de canalização e de cobertura do Cefiso e do Ilissus, es-paços para museus – que associam um velho museu militar a parques e restaurantes, no-vos prédios de exposição naval e de arte moderna e um aquário, do qual esta capital de umimpério marítimo estava curiosamente desprovida. Vitrine dos Jogos Olímpicos, a baía deFalero foi destinada a tornar-se a fachada da cidade para o mar e o mundo.

Na outra extremidade, a Noroeste, sobre as inclinações do Parnes, a 23 km do cen-tro da cidade, num terreno de 120 hectares, foi edificada a Vila Olímpica. Neste lugar asituação ainda é mais que simbólica: reequilibrar Atenas em direção a um oeste desfavo-recido pelas implantações industriais e operárias, contrariamente à lógica clássica das ci-dades européias, para revalorizar uma zona que foi diretamente atingida pelo terremotodevastador de setembro de 1999. As realizações deveriam estar à altura desta ambição: umquarteirão “ecológico”, utilizando as energias novas, em que as infra-estruturas, o que éuma grande inovação para Atenas, foram concebidas antes das construções funcionais, li-gações rápidas graças à rede, em renovação, dos trens de subúrbio. Assim como para to-dos os outros equipamentos olímpicos, o conjunto das instalações (residências para 15mil atletas, zona internacional com centro comercial, campo para treinamentos esporti-vos no meio da vegetação mediterrânea) deve ser convertido em bairro habitacional com2.300 alojamentos sociais – o que também é uma exceção nos bairros populares da capi-tal, pelo estatuto jurídico e a densidade de ocupação do solo. O espírito olímpico trans-formaria os hábitos sociais e morfológicos de Atenas?

Diante desses dois campos estratégicos, as outras localizações previstas para os jogospodem parecer mais limitadas ou mais funcionais. Ao Norte, em volta do estádio olímpi-co já existente, o centro aquático (natação, pólo aquático), o velódromo, o ginásio, o cen-tro de tênis e sobretudo a cidade da imprensa, dispersa em muitos prédios, para evitar o con-gestionamento, reforçam a vocação lúdica de um quarteirão aéreo em cadeia entre ossubúrbios burgueses do Nordeste e as antigas zonas industriais em reconversão no Noroes-te. No golfo de Eubéia, não muito longe do local histórico de Marathon, a base náutica deEskinia (caiaque e canoagem) mexeu sobretudo com as consciências ecológicas e suas per-turbações sobre um ecossistema sensível (pássaros migrantes) ou emocionou os meios es-portivos com as condições das provas (ventos, meio marítimo). Mas em todo lugar o maisimportante continua a ser a reutilização dos investimentos, de que os diferentes centros deimprensa dão uma idéia, como os inventários de Jacques Prévert:3 uma escola de polícia, osserviços administrativos do Ministério da Educação, uma cidade universitária.

De fato, para além da atração dos espectadores e do boom econômico que provoca apreparação dos Jogos (700 milhões de euros estimados de 2001 a 2004, apenas no que serefere às empresas de construção), é realmente o relançamento e sobretudo a redefiniçãoda ação pública sobre a cidade que eram esperados na capital, prioritariamente. Sem dú-vida, com uma preocupação de mobilização nacional e de simbolismo histórico, certasprovas foram descentralizadas: o futebol nas metrópoles de província (Tessalônica, Patras,Volos, Iraklio), o arremesso de peso em Olímpia. Mas por trás desta maquiagem clássica,os Jogos Olímpicos em Atenas sancionam em todas as escalas a volta da centralidade ur-bana e os desafios que lhe são lançados.

G U Y B U R G E L

71R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

3 O poeta francês JacquesPrévert fez versos misturan-do livremente palavras eimagens de objetos sem re-lação aparente entre si. Umaexpressão nasceu: trata-sede “inventários a la Prévert”.

Page 71: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

DA BALCANIZAÇÃO À MUNDIALIZAÇÃO

Com menos de dois séculos de existência, a capital grega apresenta, excepcionalmen-te, um bom resumo da história urbana européia. Sem dúvida, é útil procurar aqui a con-tinuidade do patrimônio na sua materialidade psíquica do espaço da cidade: escolhida em1834 pelo alcance simbólico de seu nome, Atenas é uma cidade nova, construída à ame-ricana, na qual o vestígio da Antiguidade permaneceu por muito tempo, até os últimosanos, um monumento isolado na desordem dos prédios contemporâneos e na circulaçãoautomobilística. Aqui, a idade industrial, sem dúvida, praticamente não ocorreu ou, aomenos, foi parcial e tardia: “proto-industrialização” do Pireu em torno do têxtil, da me-talurgia e da química de base, no fim do século XIX; proliferação da indústria leve dos anos50 aos 70, no século XX. Em Atenas, o consumo sempre foi maior que a produção: a de-finição de Jean Delumeau sobre Roma poderia perfeitamente lhe ser aplicada: “cidade dealfaiates mais que de tecelões”.

Mas as convergências com a história geral devem ser buscadas para além das simplespercepções paisagísticas ou da análise das funções urbanas. Em sua singularidade, e na for-ça que dá o resumo das periodizações breves, Atenas oferece uma perspectiva sobre as se-qüências de construção das escalas da cidade, da produção dos espaços materiais nas re-des de influência nacionais e longínquas. Em 2004, quando a capital grega acolhe oacontecimento mundial dos Jogos Olímpicos, a oportunidade não é mal escolhida paramedir o caminho percorrido em mais de um século, desde que Pierre de Coubertin orga-nizava em Atenas em 1896 os primeiros jogos da era contemporânea. O espírito olímpi-co como forma de urbanismo não é somente uma aposta política das autoridades gregas,é um modo de leitura destas “cidades globais” nas quais o lúdico se torna motor da eco-nomia, e o mundo, o campo de ação.

INTERNACIONALISMO MEDITERRÂNEO E URBANISMO PROVINCIANO: 1834-1922

Em Atenas, o século XIX começou tarde e se prolongou para muito além da Primei-ra Guerra Mundial. Capital sob influência, Atenas se desenvolve lentamente durante dé-cadas, à sombra de uma diplomacia que falava francês, mas onde as potências tutelares,ao lado da França, são a Inglaterra marítima e a Rússia ortodoxa. Aparentemente mais dis-tantes, o Império Austro-Húngaro e a Alemanha são testemunhas atentas que estendemsua influência nos Bálcãs, inclusive através dos laços pessoais e familiares. O fundador dadinastia grega, Othon, é bávaro. E no século XVIII, uma das primeiras empresas industriaisna península, a cooperativa de lençóis de Ambelakia, tinha sido desenvolvida pelos Ma-vros Schwartz (os “Negros”, de Viena) na Tessália. Todos assistem e participam com pru-dência, tendo ao fundo despertares nacionalistas e dos direitos dos povos a cuidar de sipróprios, diante do desmantelamento do Império Otomano, “o homem doente da Euro-pa”, do qual o novo Estado grego é o feliz beneficiário, em termos de anexações sucessi-vas: Tessália e Arta (1881), Macedônia, Épiro, Egeu oriental, a partir das guerras balcâni-cas (1913).

Mas no recenseamento de 1907, Atenas tem ainda apenas 250 mil habitantes numaGrécia que ultrapassa 2,6 milhões de cidadãos (9,4% da população total). Apesar da for-ça do Estado e de sua administração centralizada, apesar do peso da organização bancária

A T E N A S , O O L I M P I S M O

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 472

Page 72: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

e de seu privilégio de emissão monetária (o Banco Nacional foi criado em 1841), as razõesde debilidade demográfica e econômica da cidade restam a ser ainda identificadas na de-sarticulação das escalas territoriais do país e dos espaços de referência na nação grega. Ate-nas é a capital política de um pequeno reino fechado, na extremidade da Europa. Mas ohelenismo, aquele helenismo vivo, o das trocas comerciais e culturais, mediterrâneas econtinentais, está no exterior, nas grandes cidades multicomunitárias de uma Turquia de-cadente, mas imensa: Tessalônica, Esmirna, Alexandria. Sozinha, no meio do Egeu, Er-moupolis, na ilha de Siros, com sua burguesia cosmopolita, tentou durante algumas déca-das impulsionar o império marítimo de um negócio internacional (canteiros navais,fiações), antes de ser reduzida à mediocridade pela dominação confinada de Atenas. A di-mensão dos espaços da cidade não está à altura nem dos sonhos geopolíticos das potênciasestrangeiras, nem das ambições nacionais de herança direta da cidade da Antiguidade.

Na sua construção material, a capital revela essas mesmas contradições. De Kleantisa Schaubert, os urbanistas do rei Othon conformam a cidade, pelo menos seus bairros deaparato, à imagem da Europa das Luzes e de um neoclassicismo inspirado no Parthenon eimportado para a atmosfera e cultura orientais – projeto majestoso das avenidas que asse-gura ainda uma certa fluidez na circulação do centro da Atenas contemporânea, desenhodas praças que, apesar de sua ornamentação de palmeiras, imprimem no espaço a marcado poder e da razão (praça Omonia, da Concorde, Syntagma, da Constituição), arquite-tura dos palácios e dos prédios públicos (Parlamento, Biblioteca, Academia, Universidade,Observatório) destinada a surpreender os espíritos e a estimular as seguranças nacionais.

Mas as realidades não estão mais em uníssono com essas pretensões grandiosas. Osedifícios monumentais permanecem muito tempo isolados, na expectativa improvável deabsorção urbana que, em si, assegura a continuidades das fachadas, a presença da rua e aexistência da cidade. Se a intelligentsia e a burguesia de negócios, não se furtam ao inves-timento de prestígio na capital nacional, elas não residem ali a não ser periodicamente,porque seus lucros os levam, sabe-se, para outros lugares. E para dar a ilusão da crença,ou melhor, mostrar que eles a dominam à distância, os engenheiros são constrangidos atraçar planos de extensão da cidade que duram anos antes de ter alguma consistência.Coincidência dos tempos ou permeabilidade das idéias e da informação, aplica-se aqui aensanche que fez Cerda em Barcelona, mas sem o gênio e a dedicação econômica da capi-tal catalã. Atenas é uma província que se faz de grande dama.

O internacionalismo criava a ambigüidade de Atenas. Paradoxalmente, o internacio-nalismo vai fundar sua unidade contemporânea reencontrada. Logo após a PrimeiraGuerra Mundial, os aliados jogam a Grécia na aventura da Ásia Menor, na conquista de-sesperada da “Grande idéia”, para fazer do Egeu um lago heleno. Não contam com o le-vante do “jovem turco” (Mustapha Kemal) e as divergências de interesses entre a Françae a Inglaterra que desejavam há muito tempo as fabulosas riquezas petrolíferas do Orien-te Médio. A Grécia está entregue à sua sorte, logo constrangida pelo Tratado de Lausan-ne (1922) a abandonar suas pretensões territoriais e a trocar as populações gregas das ci-dades e campos pelos últimos habitantes turcos da Hélade insular e continental. Apenasa Trácia grega e Constantinopla (Istambul) escapam desta “purificação étnica” organizadasob a égide da Sociedade das Nações. De fato, esta “catástrofe”, humanamente e nacio-nalmente humilhante e mutilante, se mostra fundadora da identidade urbana de Atenas:ela “recentraliza” de forma durável a capital na nação, assegura seu crescimento demográ-fico, econômico e espacial.

G U Y B U R G E L

73R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 73: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

A CONSTRUÇÃO DA CAPITAL NACIONAL: 1922-1974

Em meio século, Atenas passa de 450 mil habitantes (1920) para 2,5 milhões de re-sidentes. Em 1971, já há perto de 3 milhões de habitantes na região urbana que se dese-nha de Corinto ao cabo Sunion e de Tebas a Kalkis. Período muito curto, enfim, que so-ma as breves esperanças de reformas esclarecidas de Eleftherios Venizelos, as perspectivassombrias do regime militar de Metaxas (1936), os anos terríveis da ocupação nazista, oscombates fratricidas da guerra civil (1945-1949), as incertezas políticas da reconstrução(1950-1967), antes de mergulhar, de forma totalmente anacrônica em relação à Europa,na aventura da ditadura dos coronéis (1967-1974). Atenas ganha nessa época sua legiti-midade funcional e seu destino morfológico.

O primeiro resultado é a construção de um espaço econômico centralizado na capi-tal política do país. Desde a ruína das ambições externas e o fechamento dos horizontesmarítimos e continentais, a crise mundial dos anos 30 aperta um pouco mais, e não hámais então nem hesitação, nem outra via a não ser a construção de um mercado nacionalda produção e do consumo. Materialmente, os refugiados na Ásia Menor, fortes na suacultura e tradições artesanais, mas sobretudo desejosos em se integrar socialmente de ime-diato na sua nova pátria, tomam a iniciativa e se tornam a força de manobra do proces-so. Cerca de 250 mil, um sexto do efetivo total, fixam-se ou são envolvidos na políticagovernamental ou são atraídos pela política governamental para a aglomeração ateniense.Encontramos um bom número deles entre os formadores de mão-de-obra da indústriatêxtil que se desenvolve nos subúrbios do Norte da capital, com topônimos que evocamos sonhos perdidos (Nova Iônia, Nova Filadélfia).

Mas em geral, esta aventura envolvendo os egressos da Ásia Menor, cujos testemu-nhos são ainda muito vivos na Atenas dos anos 60 – bairros comunitários, roupa femini-na, práticas culinárias –, constitui apenas sinais de um encadeamento de mecanismos quefazem de Atenas ao mesmo tempo o ateliê e a vitrine do desenvolvimento econômico gre-go. Destituídos de verdadeiros espaços de fontes de energia e de matérias-primas autócto-nes que estabeleçam as grandes tradições das regiões industriais, mas conscientes das van-tagens oferecidas pela capital de um Estado centralizado, com suas redes bancárias e decomunicação, sua administração e sua segurança interna consideráveis em períodos de tur-bulência, as forças sociais e políticas do país escolhem deliberadamente construir uma es-trutura econômica moderna no coração de seu dispositivo político e logístico. Não é mais,entretanto, e já há muito tempo, desde a anexação das províncias do Norte (Macedônia,Épiro e Trácia), seu centro de gravidade demográfico e produtivo. Antes mesmo do que es-ses movimentos de países desenraizados pela miséria do campo e as exações da guerra ci-vil, e o deslumbramento pelas luzes da cidade de que descrevemos sempre o descontrolenos anos 50, é o abandono das elites de província (industriais sem condições no mercado,comerciantes sem fregueses, funcionários sem futuro) que prepara o terreno, e assegura nacapital o reinvestimento das economias e das esperanças em termos de toda a nação.

A singularidade da história ateniense quis que esta elaboração econômica e social deum território urbano fosse intimamente ligada à construção material da cidade e à inva-são generalizada da bacia de Ática. Muito mais que a haussmanização parisiense que, mes-mo acompanhando a ascensão da burguesia industrial no século XIX, permanece limitadano espaço e na funcionalidade da capital francesa, as transformações da urbanização apa-recem em Atenas como motores no desenvolvimento econômico. Além da rapidez dos

A T E N A S , O O L I M P I S M O

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 474

Page 74: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ritmos do crescimento urbano, a razão também reside no déficit do poder público, queconstrange as forças sociais a participar direta e completamente na edificação de seu qua-dro de vida. Densificação das zonas centrais, autorizada pela elevação contínua dos coefi-cientes de ocupação do solo, mas também pelo sucesso astucioso do procedimento da“contra-troca” (antiparokhi),4 colonização aceita, apesar de sua ilegalidade, por meio dasmoradias populares em todos os lados periféricos da bacia; regularizações inteligentes, namedida das oportunidades políticas, desses bairros espontâneos que acabam fazendo partedos ciclos urbanos da mutação morfológica e do enriquecimento coletivo: em algumas dé-cadas, Atenas preenche seu espaço. A nostalgia dos gêneros de vida antigos se instaura. Osatrativos do meio ambiente natural se apagam sob o cimento e a poluição. Mais inexora-velmente ainda, a carência dos serviços públicos, principalmente em matéria de transpor-tes urbanos, é o preço deste urbanismo privatizado. Mas seu milagre é o de ter assegura-do a uma cidade sua situação social e geográfica legítimas.

E a organização material da aglomeração é a imagem desta construção paradoxal deum espaço nacional fechado. O Centro, extraordinariamente restrito para uma capitalcom esta importância, é todo contido no pequeno triângulo de uma centena de hectares.Ao Norte da Acrópole, limitado pelas praças Syntagma e Omonia e a rua Ermou: minis-térios e administrações públicas, sedes sociais de grandes empresas, comércio de varejo,atividades culturais e turísticas aí se acumulam numa mistura funcional insólita com umagrande multidão humana incansavelmente renovada. Com exceção de algumas ilhotas deirredentismo pireu entre o porto e o teatro municipal, e as zonas industriais da planíciede Cefiso, todo o resto é formado por bairros residenciais estendidos com monotonia eperseverança por dezenas de quilômetros. Apenas a grande dessimetria meridiana, queopõe desde o século XIX o palácio real a Leste e a usina a gás a Oeste, corta a bacia deÁtica, rejeitando os bairros populares nos flancos de Aigaleo e reservando para a burgue-sia os vales do Pentélico e do Himeto, de Kifissia à Glifada.

Numa leitura da história um tanto reducionista, o golpe de estado militar de 1967e a instauração de um sistema ditatorial marcam o apogeu e o termo desta construção fe-chada, como a breve conquista da Ásia Menor no início dos anos 20 foi o buquê final dasambições imperialistas da nação. A Grécia dos “helenos cristãos” e das “preferências na-cionais” parece então se voltar para uma ortodoxia ultrapassada, e a uma autarquia eco-nômica de uma outra era. A especulação imobiliária, encorajada pelas práticas populistasdo regime, atinge níveis desiguais em Atenas e se difunde em todo corpo social. Mas lo-go as contradições aparecem. A abertura do país ao grande turismo internacional, as im-plicações da marinha mercante grega no comércio mundial, notadamente com a entradada China no mercado planetário, as recomendações deflacionistas do Fundo Monetário,mal compreendidas pela população, se somam aos desmandos sangrentos do regime (a re-pressão da Escola Politécnica em novembro de 1973) e às aventuras externas sem futuro(a invasão de Chipre em julho de 1974), para fechar um novo período sombrio da histó-ria grega, mas sobretudo completar um ciclo urbano.

A CIDADE GLOBAL A PARTIR DE 1974

Com efeito, por mais de um quarto de século, com o que os cortes políticos repre-sentam de arbitrário numa periodização social, que prefere as continuidades às rupturas,a capital grega está engajada numa nova direção. A inversão é sobretudo humana. O

G U Y B U R G E L

75R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

4 Fórmula de construçãoem que um proprietário deterras ou de habitação cedeseus direitos de proprieda-de a um arquiteto ou um em-presário, deixando a cargodestes últimos a construçãode um imóvel e a restituiçãoao antigo proprietário, sob aforma de apartamentos, deuma porcentagem definidado valor da nova constru-ção. A cota do antiparokhivariou mais ou menos entre20% na periferia e até maisde 60% na região central.

Page 75: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

início do exílio dos intelectuais na Europa ocidental (França, Alemanha, Inglaterra), ain-da que em número limitado, traz para Atenas idéias originais e práticas urbanas diferen-tes. Aos olhos da burguesia tradicional, a instalação do compositor Mikis Theodorakisno bairro popular de Koukaki, aos pés da Acrópole, é um escândalo, mas prefigura no-vas atitudes das elites para a conservação do patrimônio e a apreciação residencial dosbairros centrais.

A inversão das conjunturas migratórias tem um outro alcance demográfico e de tra-dução menos momentânea. De terra clássica de emigração mediterrânea, a Grécia se tor-na um país de acolhida. Trata-se da volta dos trabalhadores migrantes que a crise econô-mica e a desindustrialização trazem de volta da Europa (Alemanha, Bélgica). Com suasoportunidades imobiliárias e o desenvolvimento das atividades terciárias (comércio, em-presas de transporte e de turismo), Atenas seduz muito aqueles que não tinham laços an-teriores com a cidade. Mas é o fim do comunismo nos Bálcãs (Albânia, Iugoslávia), noLeste europeu e na ex-União Soviética que afirma verdadeiramente a era da mudança.Com sua prosperidade aparente, sua paz civil, sua demografia envelhecida e suas necessi-dades crescentes de mão-de-obra (construção, obras públicas, serviços domésticos e turís-ticos, marinha mercante), a Grécia, e em primeiro lugar sua capital, despertam certamen-te os mesmos apetites que Bizâncio exerceu nos cavaleiros ocidentais da quarta cruzada: acobiça e o desejo de instalação. Apesar de seu velho fundo nacionalista e sua desconfian-ça crescente em relação a populações alógenas sempre suspeitas de trazer insegurança edesvio, a sociedade grega tolera, por interesse mais do que por hospitalidade, estes apor-tes estrangeiros. Do pessoal de serviço das camadas dominantes às centenas de milharesde trabalhadores manuais nos canteiros dos Jogos Olímpicos, todos se abrem – especial-mente a capital grega – para o mundo, do Curdistão à Polônia e das Filipinas à Ucrânia.Pela primeira vez na história, a diáspora não é externa, mas instala-se, múltipla, no inte-rior do espaço urbano.

As aberturas institucionais e políticas vieram reforçar essas diversidades sociais e hu-manas. Evidentemente, a mais notável é a entrada na Comunidade Européia. Temida emitificada, ela suscitou com freqüência na opinião movimentos de hostilidade tanto maisparadoxais quanto as implicações econômicas foram favoráveis ao país. Se a política agrí-cola comum deu aqui como em outros lugares o tom, despertando no campo grego a mo-dernidade produtiva e as reivindicações corporativas, Atenas tirou certamente disso o par-tido mais visível, ainda que a repartição geográfica dos “pacotes Delors” tenha sido tãobem guardada quanto os segredos de Defesa. As entradas viárias da capital, o início deuma rede de metrô, esperada há décadas e implantada em 2000, a transferência em 2001do aeroporto de Spata no Mesogeu, o gigantesco contorno da cidade pelo Norte, con-cluído para a abertura dos Jogos Olímpicos (“Via Atiki”), mobilizaram energias e recur-sos para além da medida das capacidades nacionais. São sobretudo exigências funcionaise símbolos identitários que qualificam uma posição de metrópole internacional. A infra-estrutura e a imagem tornam-se atributos do poder mundial da cidade.

Atenas aspira com efeito cada vez mais ultrapassar seu papel de capital nacionalque a condenava volta e meia a esmagar a província ou nela descentralizar os investi-mentos. A opinião grega e os habitantes são evidentemente sensíveis às demonstraçõesde notoriedade da cidade (manifestações esportivas, acontecimentos culturais, coló-quios, visitas de chefes de Estado estrangeiros) para se orgulhar ou queixar-se da pertur-bação da vida cotidiana. Os governos parecem mais inclinados a sublinhar o papel demediador nos conflitos regionais ou mundiais. Apesar da dolorosa ocupação de Chipre

A T E N A S , O O L I M P I S M O

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 476

Page 76: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

e o status contestado do espaço aéreo Egeu, a normalização das relações com a Turquiaé um dado a longo prazo. Do discurso histórico de Constantino Caramanlis em 15 deagosto de 1974, rejeitando a idéia de uma guerra com o vizinho otomano, à aberturaesclarecida de Georges Papandreou, o ministro do Exterior do governo Simitis até as úl-timas eleições legislativas da primavera de 2004, à solidariedade humana diante dos ter-remotos do mar de Marmara e de Atenas no verão de 1999, a continuidade se impõe.De forma mais extensa ainda, a capital grega, cuja situação geográfica podia parecermais marginal que aquela da Tessalônica, no momento do desaparecimento da cortinade ferro, consegue se instaurar no conjunto dos Bálcãs e no Mediterrâneo oriental, co-mo uma ponte entre o Norte e o Sul, o Leste e o Oeste. De novo, na mundialização datroca econômica e política, o posicionamento geral importa menos que o lugar estraté-gico da cidade.

E as transformações das materialidades urbanas se colocam em uníssono. A cidadejá ultrapassara, por sua extensão contínua, os cortes que limitam a bacia de Ática em di-reção a Oeste (Dafni e Corinto), Norte (Inofita e Tebas) e Sudeste (Vouliagmeni e o ca-bo Sounion). Mas os dinamismos espaciais têm a partir de agora uma outra amplidão. Asfunções centrais (sedes sociais, bancos) não param de se estender sobre o eixo meridianoque cerca o tecido urbano, em direção ao Sul (avenida Sygrou) e sobretudo ao Norte (ave-nida Kifissias), dando forma de passagem a prédios de vidro e de luz, atividades de dis-tração e centros comerciais luxuosos, voltados para o atendimento residencial da cliente-la abastada. A transferência do aeroporto de Hellenikon do outro lado do Himeto e osequipamentos programados para os Jogos Olímpicos agregam a essas tendências clássicasda centralidade uma dimensão nova. Voltada para a proximidade aérea internacional, apressão urbana (hotéis, escritórios, logística) não se situa mais na continuidade do frontde aglomeração, mas investem na planície do Mesogeu, que se torna o principal cam-po de especulação fundiária na capital. Simultaneamente, as infra-estruturas olímpicasmais prestigiadas querem virar para a frente do mar uma cidade que foi sempre continen-tal: chegada do novo bonde, reorganização lúdica da baía de Falero, parque natural e es-portivo do antigo terreno de aviação de Hellenikon. De uma organização funcional sim-ples, Atenas passa a ter uma complexidade espacial característica das cidades mundiais.

Ao mesmo tempo, a velha centralidade ateniense, atingida em suas prerrogativas di-recionais, inventa novas legitimidades culturais. Os pontos arqueológicos em torno daAcrópole são enfim reunidos num itinerário para pedestres. Os edifícios neoclássicos quesobrevieram à picareta dos demolidores são restaurados e valorizados. A arquitetura pós-moderna se alia com felicidade ao vestígio antigo: sob a inspiração de Mario Botta, os res-tos do cinturão de Temístocles são reincorporados ao conjunto histórico da sede do Ban-co Nacional. A partir de agora, o Centro é visto e consumido, conformando esta aliançasutil do local e do global que funda a cidade hoje.

AS TRÊS IDADES DAS CAPITAIS EUROPÉIAS

Para além desta reconstrução esboçada de fases históricas da Atenas contemporânea, aquestão continua a ser sua significação geral sobre as periodizações da grande cidade na Eu-ropa. Não é certo que a sucessão simples industrialização–pós-industrialização não seja pordemais funcionalista e não convenha melhor às conurbações manufatureiras do que às ca-pitais políticas e culturais do velho continente, em que ela negligencia as autonomias

G U Y B U R G E L

77R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 77: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

essenciais das sociabilidades e das morfologias materiais, privilegiando assim o que foi ne-las uma transformação mais ou menos presente e mais ou menos tardia: a atividade deprodução.

O exemplo ateniense sugere melhor uma sucessão de três ciclos cujo aparecimento econsistência dependem das particularidades locais e das histórias nacionais. O primeiro éherdado do cosmopolitismo da Europa das Luzes. Ele se manifesta pelo internacionalis-mo das idéias, até mesmo pela circulação de materiais e indivíduos, que no entanto per-manece limitada às camadas culturalmente favorecidas das sociedades urbanas. A organi-zação e o embelezamento da cidade imprimem as marcas territoriais que podemsobreviver às mutações econômicas e técnicas (a haussmanização de Paris).

A segunda era corresponde à afirmação do Estado-nação, à consolidação da econo-mia industrial e à instauração de redes urbanas hierarquizadas. O urbanismo se apaga emgeral diante do crescimento e os equilíbrios – ou os desequilíbrios – regionais, nas dimen-sões internacionais. Enfim, a fase atual de mundialização perturba de novo estas confi-gurações bastante estáveis dos territórios. Prioridade aos interesses nacionais e descentra-lizações controladas importam menos que o posicionamento das capitais nas trocasfinanceiras, culturais e humanas do planeta. Nesta perspectiva, o gesto arquitetural, a in-fra-estrutura monumental retomam seu significado. Nisto a lição ateniense guarda suavirtude iniciática naquilo que ela representa de urbanização contemporânea: o mito e ogigantismo, o patrimônio e a modernidade, o local e o mundial.

A REGENERAÇÃO URBANA

Ameaçados pelo terrorismo, pela falência econômica ou pelos atrasos técnicos, os Jo-gos Olímpicos de Atenas em agosto de 2004 deveriam ser um acontecimento excepcio-nal. Em primeiro lugar, porque o espírito olímpico está ligado à Grécia e à sua capital. Domito da paz e da força inspirado na tocha acesa, em meio a um cenário de túnicas gregasatravessado por um sábio jogo de espelhos óticos ao sol de Olímpia, no estádio antigo res-suscitado em 1896 por Pierre de Coubertin para os primeiros Jogos da era contemporâ-nea, a filiação histórica aparece ainda mais legítima do que em Sidney, Atlanta, ou mes-mo em Barcelona. Mas é para propor um novo desafio: a organização de umamanifestação agora mundial – num planeta com mais de 6 bilhões de habitantes – parauma pequena nação (10 milhões de gregos) e uma grande cidade (3,3 milhões de atenien-ses, na cidade, e 4,5 milhões na região urbana), que está de toda maneira longe do gigan-tismo do México, de Seul, ou mesmo de Moscou. De fato, estes paradoxos da história eda geografia se encontram num mesmo desafio: aproveitar os Jogos para regenerar umacidade que não tem dois séculos de existência. Mais ainda do que na capital da Catalu-nha, o espírito olímpico se torna uma arma do urbanismo.

Nas transformações largamente espontâneas da capital grega ao longo do últimomeio século, as carências dos transportes públicos são o sinal mais evidente da ausênciade pensamento global. Se não iniciaram o salto salutar, os Jogos Olímpicos aceleraram atomada de consciência e a organização dos investimentos necessários. Até o final dos anos90, as infra-estruturas são singularmente limitadas para uma cidade desta importância eextensão: um aeroporto internacional, com grande movimento de linhas regulares e cur-tos trajetos, bloqueado em plena cidade entre o mar e a montanha, uma antiga via férreado final do século XIX transformada em metrô urbano descendo dos subúrbios ao Norte

A T E N A S , O O L I M P I S M O

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 478

Page 78: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

(Kifissia) para o Pireu, uma frota de ônibus precários e poluidores, mergulhados num marde carros particulares, muito pouco desencorajados pelas limitações de circulação alterna-da no Centro. O cúmulo do paradoxo é atingido quando as grandes vias que penetram ointerior da nação em direção à Tessalônica ao Norte e Patra a Oeste tornam-se auto-estra-das urbanas, servindo de corredor expresso metropolitano, essencialmente meridiano.Não se resolve com tudo isso o grande desafio da mobilidade ateniense: as comunicaçõesentre os bairros residenciais do Leste e as zonas de atividade do Oeste.

O início do novo milênio vê incontestavelmente um retorno espetacular, mesmo seas infra-estruturas organizadas são previstas e anunciadas há décadas. O fechamento doaeroporto de Hellenikon, a exploração, conseguida depois de alguns meses de inevitáveisajustamentos, da plataforma ultra-moderna de Eleftherios Venizelos, em Spata, no Meso-geu, abrem o tráfego aéreo, liberam o céu de Ática e terrenos cobiçados à beira-mar. Ostemores quanto à acessibilidade medíocre do novo aeroporto a partir da cidade revelaram-se sem fundamento, mesmo que a ligação ferroviária programada não tenha chegado atélá. Na aglomeração densa, a abertura no ano 2000, mesmo muito restrita, de duas linhasde metrô cruzando-se no Centro suscitou entusiasmo, ao menos por seu grau de freqüên-cia inesperado, pela modernidade do material rodante e a beleza das estações transforma-das em verdadeiros museus arqueológicos urbanos. Mas, em razão da aplicação de umametodologia atrasada, tratou-se mais de um metrô com estações muito próximas, portan-to com velocidade comercial limitada, feito por túneis na rocha – para não perturbar oshorizontes históricos – muito profundos e muito caros, portanto sem adequação com asnecessidades de tráfego da região urbana. Teme-se já que os 7 milhões de deslocamentoscotidianos, dos quais 42% são ainda justificados pelos trajetos residência–trabalho, nãovejam diminuir a parte do automóvel (38%) com relação aos transportes coletivos (31%).Trinta mil vagas de estacionamento suplementar no Centro não devem ademais desenco-rajar os automobilistas. Apesar do sucesso inegável do metrô, a necessidade de mobilida-de e a extensão do território urbano não estariam aumentando mais rapidamente do quea eficácia da rede férrea?

É sem dúvida a lição dos melhoramentos que a preparação dos Jogos e as necessida-des de servir aos diferentes espaços olímpicos deram às infra-estruturas de transporte. Fielàs lógicas circulatórias atenienses, a grande obra torna-se a organização de uma via para-lela de auto-estrada em torno da cidade pelo Norte, no novo aeroporto de Eleusis (via Ati-ki). Na Itália teríamos falado de uma tangenziale. O investimento é gigantesco, cheio deobras de arte, remarcáveis (viadutos, túneis, desvios com as radiais principais), e compor-ta uma alternativa interessante em direção ao Centro de Atenas. É uma nova coluna ver-tebral que assim é dada à capital. Podemos nos inquietar simplesmente que ela a faça, denovo, parecer-se mais com Los Angeles do que com uma metrópole européia.

No entanto, para sacrificar o desenvolvimento durável, imaginamos modos de trans-porte ainda menos poluidores do que os 2 mil ônibus modernos que deveriam renovar oparque urbano. O mais visível e o mais midiático é uma linha de bonde de 27km que, nobairro da Acrópole, desce em direção ao mar para se bifurcar em direção às implantaçõesolímpicas da baía de Falero e do Aghios Kosmas. Vias gramadas calculadas para resistiraos terremotos de forte magnitude com carros desenhados por Pino Farina, nada foi pou-pado para fazer do bonde a chave de uma nova concepção de cidade. Mas paga-se caropara recolocar em ordem, indispensável e imprevisível, redes (eletricidade, água, esgotos),lutas contra as reticências dos habitantes dos bairros atravessados, finalmente talvez atra-sos para sua implantação total na abertura dos Jogos. Ao lado, a renovação das vias férreas

G U Y B U R G E L

79R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 79: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

nacionais, para nelas fazer circular trens dos grandes subúrbios em direção a Tebas, Kal-kis (ao Norte), Corinto (a Oeste) a 100km da Acrópole, é menos espetacular, mas semdúvida mais promissora. Pela primeira vez, uma rede de transportes coletivos satisfaz a re-gião metropolitana. Incontestavelmente, a dispersão das implantações olímpicas represen-tou, senão um tratamento excelente da mobilidade ateniense, ao menos um impulso prio-ritário em direção a este tratamento.

De uma maneira mais geral ainda, a atmosfera urbana mudou em Atenas. As trans-formações mais visíveis dizem respeito aos bairros centrais, mesmo se ali a conscientiza-ção, os projetos e as primeiras tentativas tenham começado bem antes do anúncio dos Jo-gos. O começo longínquo poderia bem ser fixado desde 1974, quando a diáspora dosexilados políticos para a Europa ocidental (França, Alemanha) trazem de volta ao país no-vos modos de percepção da centralidade. Mas as realizações dos últimos anos aparecemcom uma amplidão inegável. A ligação para pedestres entre os diferentes sítios arqueoló-gicos ou históricos em torno da Acrópole (Zapion, colunas de Zeus, Filopapo, Ágora, Pla-ka) é finalmente realizada, criando um notável espaço de paz, até mesmo de respiração,no coração da capital, e oferecendo aos atenienses e aos turistas a descoberta de um tem-po milenar. Numa proximidade imediata, as grandes praças simbólicas de Atenas (Syntag-ma, da Constituição, Omonia, da Concorde, Monastiraki) se beneficiam com a chegadado metrô, com a valorização de prédios e hotéis de prestígio (a restauração do hotel Gran-de Bretagne na praça Syntagma é uma verdadeira maravilha), para reabilitar, pelo menoscriar, um verdadeiro espaço público.

De fato, todo o Centro de Atenas, ruas, pracinhas, últimas construções neoclássicasdo século XIX, salvas ou habilmente reconstituídas, foram objeto de um lifting urbano,que torna a cidade um canteiro de obras permanente, mas transforma também sua apa-rência e sua imagem. Se o aburguesamento residencial é ainda bastante limitado a algunspequenos espaços em moda (ao pé da Acrópole e em torno do Observatório) e para al-guns representantes da intelligentsia esclarecida, a freqüência social das zonas centrais émuito mais significativa. Encontrar num sábado à noite, no doce outono ateniense, gru-pos de jovens nos terraços dos cafés e restaurantes do velho bairro comercial, habitual-mente deserto a esta hora, é um sinal evidente de reconquista urbana.

De forma compatível com a tradição ateniense das últimas décadas, o boom imobi-liário incentivado pela expectativa dos Jogos beneficia também as grandes avenidas quepartem do Centro e atraem as funções comerciais, tradicionais e lúdicas por várias deze-nas de quilômetros: a avenida Sygrou em direção à baía do Pentélico e a avenida de Ki-fissia em direção ao Norte e os contrafortes aéreos do Pentélico viram multiplicarem-se osimóveis de vidro e espelhos que rivalizam com a arquitetura pós-moderna, de decoraçãokitsch e de natureza aprisionada, nas quais a bandeira batida dos anéis olímpicos fixa o queé preciso de fidelidade nacional e de afirmação mundial. A novidade é a valorização ace-lerada de localizações que, para ilustrar o duplo tropismo do mar e da montanha, não es-tão desta forma menos sob a influência direta dos grandes equipamentos em vias de aca-bamento. A frente costeira, de Falero até Vougliameni, se faz parecida com a Côte D’Azur,com o fim do aeroporto, a chegada do bonde e as instalações esportivas de Aghios Kos-mas. No Norte, a comuna de Amaroussi, até então bem tranqüila, sonha ser Manhattancom a proximidade do estádio olímpico e de seus anexos.

Mas aí também, os processos de maior vulto ligam-se às grandes infra-estruturasde transporte. Bem além dos limites da cidade, a auto-estrada número 1 em direção àTessalônica continua a atrair as firmas estrangeiras de prestígio, por vezes em antigos

A T E N A S , O O L I M P I S M O

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 480

Page 80: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

locais industriais abandonados (Siemens, Ernst & Young, Sanofi Synthelabo, Squibb).As atrações do novo aeroporto Eleftherios Venizelos e da auto-estrada Atiki deslocam aabertura do setor terciário para a vertente de Himeto e invadem a planície agrícola doMesogeu. E, a Oeste, a vila olímpica mexe nas dessimetrias econômicas da capital, sus-citando na proximidade das regiões das auto-estradas novos centros comerciais e de ne-gócios, seduzidos pelos baixos custos financeiros. Contrariamente ao discurso domi-nante, trata-se ainda da promoção da Atenas do automóvel e da via rápida; mas, talcomo o que se verifica na planície Saint Denis em torno do Stade de France, trata-se deuma retomada da dessolidarização espacial entre o desenvolvimento econômico e a mis-tura social.

O APRENDIZADO DE UMA GOVERNANÇA URBANA REGULADA?

A capital grega certamente não esperou a voga da governança urbana para praticarcom eficácia este modo de gestão dos espaços metropolitanos. Durante mais de meio sé-culo, a pressão demográfica e o enfraquecimento jurídico e financeiro do Estado resolve-ram-se em um consenso social generalizado para reconstruir e expandir a cidade. Densi-ficações de bairros centrais, construções periféricas ilegais, mas regularizadas a cadaeleição, foram as expressões maiores deste mecanismo que, certamente, desvalorizou omeio urbano, mas assegurou para milhões de atenienses residência e promoção econômi-ca e social. A oportunidade dos Jogos Olímpicos racionalizou esta lógica específica e fezdela até mesmo uma pedagogia cívica.

A gestão política e financeira da manifestação é disto uma boa ilustração. Em ra-zão da importância do desafio e da extrema complexidade dos poderes na capital (60municipalidades na bacia de Ática, perto de 160 na região metropolitana, autoridadesda Prefeitura, eleitas e nomeadas), é o governo, sob a égide do ministério do Meio Am-biente, Organização do Território e Obras Públicas, e de sua emanação, o Comitê dosJogos Olímpicos 2004, que conservou o total controle técnico e financeiro das infra-es-truturas públicas programadas. Ele foi o interlocutor direto do Comitê Olímpico Inter-nacional e dos Jogos Paraolímpicos. Mesmo se a dúvida epistemológica é de rigor, o or-çamento total do investimento estava estimado pelo secretário geral do Comitê, K.Kartalis, em 4,5 bilhões de euros, dos quais 3,3 a título de obrigações feitas pelo Co-mitê Olímpico Internacional, e 1,2 bilhão suplementar de dotação voluntária do gover-no grego. Estas somas representariam, entre 2001 e 2004, somente 8% do “pacote” desubvenções da Europa à Grécia e seriam completamente cobertas por recursos nacio-nais. A título de comparação, as retransmissões televisivas das provas elevar-se-iam a 1,5bilhão de euros, partilhados ao meio entre o Comitê Olímpico Internacional e a naçãoorganizadora.

Mas diante desta centralização da decisão, uma cooperação estrutural entre os seto-res público e privado foi organizada. O conjunto dos grandes equipamentos abriu espa-ço para adjudicações a grupos privados de obras públicas, com cadernos de encargos clás-sicos. Mas, tendo em vista a importância das infra-estruturas, a imprevisibilidade dosfinanciamentos e operações técnicas a serem realizadas (reforço do solo à beira-mar paraas instalações da baía de Falero, deslocamentos das redes para o estabelecimento do bon-de), a urgência incontornável da entrega das obras, formas originais de colaboração e dedecisão tiveram que ser imaginadas: aceleração dos mecanismos de mercados, autonomia

G U Y B U R G E L

81R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 81: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

de ação dos responsáveis pelos canteiros de obras que devem enfrentar, em procedimentosde urgência, as queixas à polícia e os processos judiciais, criação sob a batuta do ministériodo Meio Ambiente de uma Real Estate Company Olympic Properties para as aquisiçõesfundiárias. Esperou-se de tudo isso uma nova cultura do management público, muito en-fraquecido na Grécia até agora. É prematuro estimar as conseqüências reais dessas expec-tativas, da mesma forma que os retornos esperados dos investimentos, imediatos para associedades adjudicatárias, mas em prazo muito mais longo para a cidade.

De modo muito mais geral ainda, esperou-se que a preparação e a realização dos Jo-gos viessem representar para a sociedade ateniense e grega um verdadeiro aprendizado doespaço público e do interesse coletivo, que foram os grandes ausentes do “urbanismo es-pontâneo” do último meio século. O respeito das calçadas, das ruas de pedestres, a cria-ção de passeios e parques, a adoção de novos modos de transporte (metrô, bonde) deve-riam ser mediações materiais para a criação de uma mentalidade cívica, para não dizer deum espírito democrático, à medida dos desafios do século XXI.

Enfim, a preparação dos Jogos Olímpicos mostrou as deficiências relativas à ausên-cia de um verdadeiro governo metropolitano: superposição de autoridades e competên-cias, decisões apressadas e pouco coordenadas. Desde a primavera de 2003, de acordocom as diretrizes da OCDE (Organisation for Economic Co-operation and Development)sobre governança, um grupo de trabalho foi constituído – o Team Attica Athens – entreo Ministério do Interior e a União das Autoridades Locais para refletir conjuntamente so-bre um plano estratégico de crescimento metropolitano orientado ao desenvolvimentoeconômico e ao papel que a Ática deveria desempenhar na ampliação européia, notada-mente nos Bálcãs e no Leste europeu. Não se pode mostrar melhor o choque que os Jo-gos Olímpicos produziram na capital grega: uma reformulação de sua materialidade, umareafirmação de sua vocação mundial.

As luzes da festa mal se apagaram. É muito cedo para fazer o balanço das conseqüên-cias dos Jogos. Mas, para além do despertar incontestável do investimento e da consciên-cia urbana, questões permaneceram abertas. O sucesso imediato das manifestações deagosto de 2004 (término dos canteiros de obras, afluência, segurança) foi evidentementeum primeiro teste. A rentabilidade econômica das infra-estruturas e dos equipamentosdeverá ser ainda acompanhada, mesmo que ela só possa ser estabelecida a médio e longoprazo. Mas as interrogações parecem ainda mais fundamentais. A capacidade de Atenasde continuar a ser um cruzamento de integração social e econômica pode se revelar cla-ramente a partir desse evento. Ele mobilizou certamente várias centenas de milhares detrabalhadores, legais ou clandestinos, de nacionalidades múltiplas. O espaço residencial eprofissional da capital poderá integrá-los de forma durável? A resposta depende em parteda capacidade de repercussão do lúdico e do cultural sobre a competitividade econômicaglobal da cidade. Neste combate aberto, o governo democrático da metrópole, para a de-terminação de seus objetivos assim como para a repartição de seus benefícios, é evidente-mente uma chave essencial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURGEL, G. Le miracle athénien au XXème siècle. CNRS Éditions, 2002._______. La ville contemporaine de la Seconde Guerre mondiale à nos jours. In: PINOL,

J.-L. (Dir.) Histoire de l’Europe urbaine. Seuil, 2003.

A T E N A S , O O L I M P I S M O

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 482

Guy Burgel é professor daUniversidade de Paris X e di-retor do Laboratoire de Geo-graphie Urbaine. E-mail:[email protected]

Artigo recebido em agostode 2004 e aceito para publi-cação em setembro 2004.

Page 82: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

BURGEL, G.; DEMATHAS, Z. (Dirs.) La Grèce face au troisième millénaire, territoire,économie, société, 40 ans de mutations. Laboratoire de Géographie Urbaine, Univer-sité de Paris X, Université Pantios, Athènes, 2001.

ROUSSET-DESCHAMPS, M. (Dir.) Gouverner les métropoles. Laboratoire de Géogra-phie Urbaine, Université Paris X, Villes en Parallèle, n.30-1, 2000.

A B S T R A C T The 2004 Olympic Games marked the top of a new era opened atthe Greek capital twenty five years ago. The reestablishment of a reinforced democracy, theattachment to Europe, the consciousness of its international responsibility at the EastMediterranean region, at the Balkans and around the world through its merchant marine,affirm Athens in its route to a “global city”. Besides the issue of functionality regarding thecompetitions and celebrations, the choice of the Olympic sites responded to a strategic will ofreconverting the infra-structures after the Games in the benefit of the whole urban region. Thisarticle shows that, more than in Barcelona, where the city’s move towards the harbor was themain event of the 90s‘, the change in Athens has been more fundamental, since thiscontinental capital has never been a coastal city: since the Antiquity, the Pireu and its basinsconstituted a maritime entry and the vocation of the coast has ever been more balneary thantruly urban.

K E Y W O R D S Athens; Olympic Games; urbanism.

G U Y B U R G E L

83R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 83: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

A CONSTITUIÇÃO ESPACIALDE UMA CIDADE PORTUÁRIA

ATRAVÉS DOS CICLOS PRODUTIVOS INDUSTRIAIS

O CASO DO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE

(1874-1970)

S O L I S M A R F R A G A M A R T I N SM A R G A R E T H A F E C H E P I M E N T A

R E S U M O Rio Grande, cidade portuária e primeira demarcação lusitana nas terrasrio-grandenses apresentou um rápido processo de industrialização no final do século XIX, re-sultado da acumulação de capital comercial, proveniente das atividades de importação e ex-portação. Celeremente, plantas industriais com base produtiva diversificada foram instaladas,expandindo a antiga cidade comercial e conformando o espaço urbano através da introduçãode novas estruturas produtivas e de uma excelente base técnica que conformaram os sentidosda expansão urbana, compondo, de forma dual, movimento de renovação arquitetônica emmoldes europeus e vilas operárias. Tal realidade se manteve até 1950, quando a economia in-dustrial começa a dar mostras de debilidade, restringindo ou fechando parte de seu parque fa-bril. De forma paralela, ocorre uma proliferação de todo tipo de loteamento privado, origi-nando as “vilas” periféricas e ocasionando a ruptura entre a cidade e a indústria.

P A L A V R A S - C H A V E Configuração espacial urbana; ciclos produtivos in-dustriais; história urbana; vilas operárias; patrimônio arquitetônico.

INTRODUÇÃO

A cidade do Rio Grande expressa as transformações de um espaço portuário e ur-bano que, por meio da acumulação comercial derivada das atividades de importação eexportação, consegue criar um parque fabril importante em termos nacionais a partir dofinal do século XIX. Demarcando períodos industriais, o presente texto procura identi-ficar as resultantes espaciais, numa combinação entre periodizações particulares à cida-de e os ciclos industriais nacionais, passando da industrialização dispersa à industriali-zação restrita.

A introdução de parques fabris vem alterar a forma, as estruturas e as funções ci-tadinas (Lefebvre, 1974) decorrentes da introdução de uma base técnica, condição da pro-dução capitalista (Quaini, 1979, p.66). O período áureo para a cidade estendeu-se de1874, data da implantação do primeiro grande parque fabril, até 1930, quando transfor-mações na economia nacional ditaram mudanças locais na disputa de mercado com aeconomia fabril do centro do País, especialmente São Paulo. Este importante ciclo indus-trial conheceu seu declínio. A estagnação de determinados setores da economia acabou

85R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 84: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

culminando com o fechamento de várias empresas industriais nas décadas de 1950 e1960, o que trouxe novas formas de ocupação espacial, pondo fim à cidade planejada pe-la municipalidade sob inspiração do urbanismo francês e cedendo lugar a todo tipo de es-peculação fundiária sob os ditames da iniciativa privada, com participação direta das em-presas fabris em crise.

O NÚCLEO INICIAL DE FIXAÇÃO LUSA E O DESENVOLVIMENTO COMERCIAL DA CIDADE PORTUÁRIA

Rio Grande foi fundada em 1737 pelo brigadeiro José da Silva Paes como uma for-tificação. A vila recebeu o nome de Rio Grande de São Pedro ao pensarem tratar-se de umgrande rio ali existente que desembocava nas águas do oceano Atlântico, mas que na ver-dade representava uma área estuarina onde as águas doces da Laguna dos Patos se mescla-vam às águas salgadas do oceano Atlântico.

O tímido desenvolvimento da Vila do Rio Grande de São Pedro seguiu um percur-so de pobreza, apenas servindo de passagem às embarcações que se dirigiam do Centro-Sul do Brasil para Colônia do Sacramento, hoje em território uruguaio. As disputas en-tre lusos e espanhóis pelas terras que hoje formam o Rio Grande do Sul fez que a pequenavila fosse invadida de 1763 a 1776 pelos espanhóis, afugentando os habitantes locais eforçando a transferência da capital da coroa portuguesa para a vila de Viamão, posterior-mente, Porto Alegre.

Sua configuração espacial de vila despojada, constituída não mais do que por seisruas e sem recursos perdurou durante todo o século XVIII e somente foi alterada duranteo século XIX, devido ao enriquecimento dos criadores de gado da campanha, que encon-traram uma forma mais rentável de comercializar a carne e o couro com a introdução dascharqueadas. A Vila do Rio Grande, tornada cidade em 1835 quando assume o posto decapital imperial do Estado na eclosão da Revolução Farroupilha, era o único porto marí-timo do Rio Grande do Sul. Isso permitiu no século XIX uma expansão das atividadesmercantis através do comércio de importação e exportação, principalmente nas mãos deimigrantes europeus e urbanos. No ano de 1888, um recenseamento municipal apontavauma população de 20.277 habitantes, dos quais 14.345 viviam na zona urbana e 21,70%dessa população era formada por população estrangeira de diversas nacionalidades, compredomínio de imigrantes europeus (Copstein,1975, p.40). No período comercial (1822-1873), a cidade se expandiu de forma contínua e concentrada configurando aproximada-mente o que hoje é denominado de Centro (Figura 1).

Esse enriquecimento propiciado pelo capital comercial no final do século XIX resul-taria, por iniciativa desses comerciantes, aliados ao capital bancário já existente, na gêne-se industrial da cidade do Rio Grande a partir da década de 1870. Esse primeiro períodoindustrial perdurou até a década de 1960, quando empresas industriais e as políticas deexpansão urbana contribuíram para a criação de vilas operárias e para a constituição es-pacial da cidade que acompanhava as instalações industriais.

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 486

A C O N S T I T U I Ç Ã O E S P A C I A L D E U M A C I D A D E

Page 85: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Figura 1 – Cidade do Rio Grande em 1869.

Fonte: Salvatori, 1989. Adaptado por Solismar Martins.

A CIDADE “EXTRAMUROS”: RUMO AO OESTEPARA A INSTALAÇÃO INDUSTRIAL (1874-1910)

Durante o que denominamos de primeira fase industrial do Rio Grande, a expansãourbana do município deu-se primeiramente em virtude da instalação desses complexos etrouxe consigo uma série de modificações na estrutura urbana, com os diversos tipos demoradias que começaram a se formar em torno das fábricas. A ampliação do sistema viá-rio e o aumento na oferta de serviços públicos e privados foram necessários. Como a áreacitadina comercial não era suficiente para abarcar tais estruturas, a cidade se expandiu pa-ra além do limite das trincheiras, que eram responsáveis pela proteção terrestre da urbediante das invasões castelhanas.

A análise dessas derivações espaciais aponta para duas grandes transformações: a pri-meira decorrente dos acréscimos conquistados com os aterros, cujos primeiros registrosdatam do século XIX; a segunda, pela implantação de outras estruturas urbanas (comér-cio, comunicações, transportes), que desencadearam a própria expansão da cidade.

A primeira expansão ocorreu para o Oeste entre os anos de 1874 e 1910, período cu-ja demarcação se inscreve naquele caracterizado por autores como Cano, Tavares e Olivei-ra como de industrialização dispersa em nível nacional, embora os períodos econômicose espaciais para a cidade do Rio Grande não sejam totalmente coincidentes com os nacio-nais. Essa primeira fase industrial registrou o início da industrialização em Rio Grande eno Rio Grande do Sul, representado pela fundação da fábrica de tecidos Rheingantz.

Posteriormente, indústrias congêneres dos mais diversos setores paulatinamenteocuparam o espaço rio-grandino. Este processo compreendeu as indústrias têxteis, as cor-doarias, a fábrica de calçados, a fabricação de alimentos em conservas, os biscoitos, a fá-brica de charutos, e os moinhos de farinha. É importante destacar que somente a primei-ra dezena de empresas industriais instaladas nesse interstício de tempo apresentava,individualmente, mais de uma centena de operários, e algumas ultrapassavam a cifra demil trabalhadores.1

S O L I S M A R F . M A R T I N S , M A R G A R E T H A . P I M E N T A

87R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

1 Isto se deve à dificuldadede mensurar aquelas empre-sas que realmente poderiamser consideradas empresasindustriais hoje, já que no fi-nal do século XIX e início doXX, os açougues e os panifí-cios eram considerados fá-bricas. Normalmente, oshistoriadores utilizam para adetecção do que se consi-dera hoje empresas indus-triais o estabelecimento deuma força motriz mínima uti-lizada pela empresa ou porum número mínimo de ope-rários empregados. Op-tamos pela segunda alter-nativa e elegemos comoindústrias as fábricas queempregavam mais de cemtrabalhadores.

Page 86: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

A Companhia União Fabril Rheingantz, idealizada pelo comerciante Carlos Rhein-gantz, teve a inauguração de seu complexo industrial no ano de 1874 (Pimentel, 1939).A atividade da empresa centrava-se na produção de tecidos de lã, derivados de tecidos dealgodão e tapetes, visando o mercado externo e também o centro do País. Conforme Ro-che (1989, p.585), os primeiros trabalhadores da Rheingantz, capatazes e contramestres,vieram da Alemanha juntamente com as máquinas. Durante a Primeira Guerra Mundial,a fábrica chegou a empregar mais de 1.200 funcionários e suas máquinas produziram emcapacidade máxima.

Ao lado dessas instalações, foram construídas moradias que visavam atender aos ope-rários situados nas escalas hierárquica inferiores e, conseqüentemente, de menor poderaquisitivo. Denominadas de vilas operárias ou casas em fita, estas construções encontram-se ainda em razoável estado de conservação. O segundo padrão de edificações foi erguidodo lado oposto da fábrica, mas no mesmo boulevard. Construídas em outro padrão arqui-tetônico, eram destinadas aos mestres e engenheiros da fábrica, cuja maioria era de estran-geiros, e onde cada unidade acompanhava o estilo arquitetônico do país de origem domorador. Atualmente, uma boa parte dessas residências está em precário estado de con-servação, e algumas ainda possuem moradores ou abrigam estabelecimentos comerciais.

A empresa também construiu, em seu sítio industrial, um prédio denominado Cas-sino dos Mestres, que servia como pousada para os funcionários do alto escalão da com-panhia. Ao lado desse prédio, encontrava-se a antiga escola onde estudavam os operáriosda fábrica na época, bem como seus filhos de até 12 anos.2 Segundo Pesavento (1988,p.59), o ensino era obrigatório aos operários, tornando-se facultativo somente a partirde 1896.

A construção dessas moradias decorria da intenção de facilitar o controle sobre ofuncionário, assim como diminuir o gasto com transporte, que na época era precário elento, já que os principais meios de locomoção eram os bondes ou veículos de tração ani-mal. De certa forma, tais práticas escamoteavam por meio de medidas assistencialistas acoerção econômica imposta aos trabalhadores, isto é, o controle sobre os operários extra-polava os muros da fábrica (Pesavento, 1988, p.56).

É importante salientar que, além da perspectiva dada anteriormente, existe um ou-tro fator importante que levou os industriais a oferecer atrativos para a fixação de mão-de-obra perante a ausência de trabalhadores qualificados na região. No Rio Grande do Sule, preponderantemente, na metade Sul do Estado, havia o predomínio das estâncias degado, que empregavam pouca mão-de-obra. A afirmativa que se segue, de Singer (1977,p.170), só reafirma a importância da fábrica de tecidos: “É com Rheingantz que a indús-tria se inicia realmente no Rio Grande do Sul”.

Além de Rheingantz, outros empresários instalaram na cidade plantas industriais,como Francisco Marques Leal Pancada, que, juntamente com outros sócios, fundou emRio Grande a Leal, Santos & Companhia, cujos bens de produção foram importados depaíses da Europa. A Leal Santos era filial de uma empresa portuguesa que beneficiava ali-mentos em conserva e que posteriormente produziria biscoitos no Brasil. Os legumes efrutas para conserva eram oriundos das ilhas adjacentes à cidade. A produção de biscoi-tos em nível industrial teve seu início em 1906 e, embora de uma forma mais modesta, aLeal Santos construiu vinte casas destinadas aos operários e um armazém onde eram ven-didos mantimentos aos trabalhadores fabris.

O caso de Gustavo Poock também é emblemático. Ele foi um burguês imigranteque, em 1891, fundou uma indústria de charutos em Rio Grande. Tratava-se da fábrica

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 488

A C O N S T I T U I Ç Ã O E S P A C I A L D E U M A C I D A D E

2 Vale ressaltar que ambosos prédios, embora aindaexistentes, estão em estadode abandono.

Page 87: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Poock & Cia. de Charutos, uma continuidade da fabricação deste gênero que já era rea-lizada por sua família na Alemanha. A indústria Poock trabalhou inicialmente com técni-cos alemães e cubanos e com matéria-prima oriunda de Cuba. Seu principal mercadoconsumidor era a região central do País.

Outra importante referência para esse processo de ocupação foi a Companhia deFiação e Tecelagem Rio Grande fundada em 1906. A indústria do setor têxtil foi de gran-de importância para a economia da época, com um volumoso complexo industrial de ma-nufatura de algodão e matéria-prima importada da região nordeste do Brasil. Seu funda-dor foi Giovanni Hessemberger que, após um breve espaço de tempo, passou o controleda empresa para o grupo italiano Santo Becchi & Cia, com sede em Gênova. Posterior-mente transformada em sociedade anônima, a empresa sob denominação de Companhiade Tecelagem Ítalo-Brasileira passou a ser dirigida por Paulo Ângelo Pernigotti. Naquelemomento, sua gerência passou a ser local e não mais situada na Europa. A empresa em-pregava mais de seiscentos operários no início do século XX.

A CIDADE COSMOPOLITA COM ARES EUROPEUS

Vale salientar que se a gênese da industrialização gaúcha está compreendida no eixoRio Grande–Pelotas, isso se deve ao fato de que a grande indústria neste período visavaos mercados nacional e estrangeiro. Para isso, a proximidade do porto de Rio Grande tor-nava-se condição indispensável, sem mencionar o desenvolvimento da produção do char-que que ocorria na região. Além disso, com o passar dos anos, Rio Grande foi ganhandoum cosmopolitismo que ficou arraigado na história da cidade com a contínua chegada deimigrantes das mais diversas origens.

É importante frisar que a instalação de indústrias não se restringe somente a plantasindustriais, mas a todo um conjunto de elementos e fatores que irão marcar a produçãodaquela espacialidade. Cria-se, portanto, um meio técnico que, aparente ou não, ajuda aexplicar tal espaço. Pois, juntamente com as empresas industriais, vieram empresários,operários, comércios e serviços para o atendimento de necessidades de ordem industrial,assim como matérias-primas e todo um aparato de infra-estrutura, como energia, água, etransportes (Santos ,1996, p.61).

É evidente que, devido à cidade estar sitiada em um pontal arenoso na desemboca-dura da Laguna dos Patos, os diversos aterros realizados para sua expansão ocasionarampeculiaridades específicas, pois o solo já “nascia” urbano. Isso também contribuiu para osurgimento de parte dos bairros residenciais que hoje circundam a área central da cida-de. As marcas deixadas por seus prédios, ruas, monumentos caracterizam as passagens demomentos históricos peculiares que delinearam o perfil da zona urbana. Como lembraLefebvre, “a cidade tem uma história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e degrupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas” (2001, p.47).

O primeiro período industrial ocorrido em Rio Grande representou a formação deuma elite econômica e social para a cidade. Essa elite foi capaz de construir clubes, tea-tros, prédios suntuosos, assim como abrigar eventos culturais importantes de expressãonacional. Concomitantemente, um operariado miserável coabitava a zona urbana, inicial-mente em cortiços.

Outros elementos importantes expressos pela pujança ou pela precocidade de suasobras referem-se à construção do parque ferroviário (1879); à implantação da rede telefô-

S O L I S M A R F . M A R T I N S , M A R G A R E T H A . P I M E N T A

89R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 88: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

nica em 1880; à construção da Caixa d’Água em 1870, primeira desse porte a ser cons-truída no Estado do Rio Grande do Sul, feita em metal e importada da França; à exten-sa rede de bondes puxados a cavalo desde o século XIX; e à implantação dos bondes elé-tricos em 1922, cobrindo toda a rede urbana à época. Por outro lado, desenvolveu-se nacidade velha uma urbanidade sob influência francesa onde os prédios lusos e barrocos fo-ram substituídos ou remodelados em outros estilos arquitetônicos – neoclássico, ecléticoe neo-gótico.

Antes do período de expansão comercial, alguns empreendimentos já haviam sidoimplantados além das trincheiras, com a construção dos novos cemitérios (um católico, em1855, e outro protestante, em 1856), e com a implantação do parque ferroviário em 1874.A necessidade de um novo espaço para enterrar os mortos deveu-se às constantes epidemiasque assolavam a população, como a epidemia de cólera de 1855.4 Tal expansão foi segui-da nas décadas subseqüentes com a construção da fábrica e da área urbana da Rheingantz,assim como pela incorporação do bairro Cidade Nova a partir de 1890, o que duplicou aárea urbana da cidade. Um outro aspecto que deve ser salientado é que foi nesse bairro quese concentraram imigrantes de determinadas nacionalidades, como os de origem polone-sa. Conforme Copstein (1982, p.65), a área da cidade, que não ultrapassava os 175 hecta-res em 1878, chegaria a 458 hectares de superfície com a incorporação das novas áreas nofinal do século XIX.

Notadamente, a expansão residencial seguiu a Oeste pelo centro da restinga areno-sa, já que as áreas próximas ao Saco da Mangueira e ao Canal do Norte foram na maiorparte ocupadas pelas estruturas industriais. Isso imprimiu também uma forma determi-nada, pois, embora a cidade seja cercada por corpos d’água, não ocorrem grandes espaçosresidenciais e públicos legalizados à beira d’água.

Ao Norte dessas três grandes estruturas (viação férrea, cemitérios e sítio industrial daRheingantz), surgiu um novo bairro ortogonal que não diferia muito do Centro, excetopelo fato de que a largura das futuras ruas era bem demarcada. O novo bairro surgiu cer-cado por quatro grandes boulevards. Deve ser ressaltado que a abertura da cidade nova foifeita numa área até então desocupada, ou seja, não há registro de ocupação não-urbananaquele local, já que as áreas agrícolas que abasteciam a cidade ficavam nas ilhas existen-tes próximas à urbe.

Figura 2 – Mapa da cidade do Rio Grande no ano de 1904.

Fonte: Secretaria Municipal de Coordenação e Planejamento. Adaptado por Solismar Martins.

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 490

A C O N S T I T U I Ç Ã O E S P A C I A L D E U M A C I D A D E

4 Dados extraídos do CD deAílton Rosa, Rio Grande emfotos.

Page 89: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Se o município do Rio Grande apresentava uma população de 23.962 habitantes noano de 1872, ainda em sua fase comercial, no censo municipal realizado em 1911 essa po-pulação mais que dobrou, atingindo 44.835 habitantes; a porcentagem de população ur-bana era superior a 58%, um índice expressivo para a época (Pimentel, 1944). Por outrolado, a cidade apresentava, também em 1911, 5.710 construções, e o número de edifica-ções no ano de 1888 era de 3.187 estruturas (Costa, 1922, p.17).

A EXPANSÃO URBANA E O TERRAPLENO SOB CONCESSÃO DA CIE. FRANÇAISE (1910-1930): O NOVO PORTO DIRIGE A CIDADEPARA O LESTE DO CENTRO HISTÓRICO

A saída da Laguna dos Patos para o oceano Atlântico era sempre dificultosa para asembarcações devido ao constante assoreamento do canal de acesso. Os comerciantes dacidade e, posteriormente, os industriais, buscavam alternativas para esse problema, queficou solucionado com a construção dos molhes da barra, o qual, por sua vez, resultou naconstrução de um novo porto para a cidade do Rio Grande. Para isso, técnicos europeuse norte-americanos foram contatados a fim de buscar alternativas para executar tais me-lhorias portuárias. Embora os trâmites tenham se iniciado no final do século XIX, foisomente na primeira década do século XX que a obra tomou vulto com a formação da Cie. Française de Porto do Rio Grande do Sul. Esta empresa ficou responsável pela cons-trução dos molhes da barra e pelo melhoramento do porto já existente. Além disso, foiedificado o novo porto, arrendado à Cie. Française por 67 anos (Neves, 1980; Martins,1997). Para a constituição do novo porto da cidade foi escolhida a área da ilha do Ladi-no situada no extremo Leste, área formada por ilhas e terras inundáveis (Rio Grande doSul, 1919, p.240).

A Cie. Française construiu 1.543 metros de cais, para 10 metros de profundidaded’água em um só alinhamento, e, na retaguarda do cais, extensa área foi aterrada comareia dragada e 12 armazéns de 100 metros por 20 metros de largura foram edificados.Durante os anos da referida obra, a Cie. Française empregou em torno de 4 mil traba-lhadores. Isso representou uma leva de imigrantes vindos para a cidade de vários locaisdo Rio Grande do Sul e até mesmo de fora do País. Esta companhia ficou responsávelainda pela construção de usinas elétricas que abasteceriam o porto e parte da cidade.Além disso, foi implantado um sistema de bondes para transportar a população, contan-do com 19 carros-motores (Neves, 1980, p.80).

Os franceses também foram responsáveis pela construção de vinte casas de madei-ra destinadas aos mestres e contramestres vindos da França, assim como quarenta casasde madeira (Vila Verde), mais simples, destinadas a abrigar parte dos operários (Mar-tins, 1997.) Outras residências construídas pelos franceses foram as casas da gare. A es-tação ferroviária fazia a confluência entre os vagões que se destinavam aos molhes dabarra e aqueles que se destinavam ao Porto Novo. Desse local partiam os trens em di-reção ao município de Pelotas para obter as pedras necessárias na construção dos mo-lhes e do porto.

Além dos espaços construídos oficialmente pela Cie. Française, o aprofundamentodo canal possibilitou o aterramento de grandes áreas a Leste do centro histórico e a for-mação de uma ilha artificial, ilha da Base, no extremo oriental do pontal arenoso onde

S O L I S M A R F . M A R T I N S , M A R G A R E T H A . P I M E N T A

91R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 90: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

está o sítio urbano do Rio Grande. As extremidades foram primeiramente ocupadas pe-las estruturas portuárias, restando as áreas centrais como reserva para as atividades de ex-pansão portuária e até mesmo para um bairro radial planejado pelos franceses. No entan-to, e devido às altas taxas cobradas por essa companhia, o governo do Estado do RioGrande do Sul obteve em 1918 da União a encampação de todas as estruturas portuárias.Isso pôs fim à iniciativa do bairro radial.

O volume de aterro foi estimado em mais de oito milhões de metros cúbicos, sendousados para esse serviço, na época, cinco dragas, dez rebocadores, batelões e chatas. Asareias dragadas foram sendo depositadas nos terrenos pantanosos situados entre o novoporto e a cidade, pondo fim aos banhados outrora existentes (Costa, 1922, p.19).

A CIDADE DO RIO GRANDE NO COMEÇO DO SÉCULO XX: OS MELHORAMENTOS E A EXPANSÃOURBANA MARCADA PELAS DESIGUALDADES

Na prática, o que ocorreu com esse espaço aterrado entre o novo porto e o centrohistórico foi um novo padrão de ocupação para a cidade, formada por malocas, ou peloque denominamos hoje de favelas. A data inicial dessa ocupação é de difícil demarcação;sabe-se, no entanto, que ocorreu a partir da década de 1920, pois são inúmeros os docu-mentos cambiados entre a prefeitura municipal e a diretoria de portos e canais a respeitoda retirada das populações que indevidamente habitavam a área do terrapleno leste. Taisdocumentos, encontrados no arquivo geral da prefeitura, estão registrados a partir do anode 1941 e se delongam até a década de 1960 (Martins, 1997).

Um outro fato marcante, na época, para a economia sul-rio-grandense foi o come-ço da industrialização da carne no Rio Grande do Sul, que, com a decadência das char-queadas, necessitava de novas formas de manufaturas para sua comercialização. Neste pe-ríodo, começa a ser discutida a implementação de empresas do setor, prevalecendoinicialmente a idéia de implantar um frigorífico com capital dos próprios criadores. O go-verno estadual, no entanto, concomitante ao apoio dado a essa iniciativa, permitiu a en-trada de capital estrangeiro, buscando a modernização tecnológica da pecuária (Pesaven-to, 1990, p.71).

Com base nisso, ocorreu, no período de 1917-1918, a instalação de três grandes fri-goríficos de capital estrangeiro no Rio Grande do Sul. Dois se instalaram em Santana doLivramento (Wilson e Armour) e um em Rio Grande (Cia. Swift S.A. do Brasil), que seestabeleceu em uma área do novo porto da cidade.

A Swift era uma empresa norte-americana que tinha como principal atividade pro-dutiva a frigorificação de carne, estando moldada no padrão taylorista de produção, ouseja, produção fragmentada em larga escala. Aproveitando que o mercado externo estavadebilitado devido à Primeira Guerra Mundial, a cidade logo expandiu suas atividades econstitui-se em um importante pólo econômico para o município. O frigorífico abatia atémil reses por dia e chegava a ter em sua folha salarial mais de 1.500 funcionários. Seusprodutos, em sua grande maioria, eram destinados ao mercado externo.

Além do frigorífico instalado no terrapleno oeste, novas estruturas industriais de ali-mentos como o pescado foram implantadas na cidade do Rio Grande, assim como umadiversidade de empresas, dos mais variados setores, comandadas pelo imigrante italianoLuiz Loréa, que implantou, juntamente com outros sócios, nada menos que uma empresa

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 492

A C O N S T I T U I Ç Ã O E S P A C I A L D E U M A C I D A D E

Page 91: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

na área de metalurgia, uma fábrica de aniagem, uma empresa de óleo vegetal, uma cor-doaria e um estaleiro (Pimentel, 1939).

Paralelamente à industrialização, a cidade se diversificava nos mais diversos ramoscomerciais, industriais e de serviços. Isso causava sempre boa impressão aos visitantes quepassavam por Rio Grande no começo do século XX, ao contrário das descrições de pobre-za datadas do começo do século XVIII.

Conforme Costa (1922), a cidade do Rio Grande, no começo da década de 1920,dispunha de uma grande variedade e quantidade de casas comerciais e de serviços, expres-sivos para a época. Nesse período, a cidade contava com uma população de 50.500 habi-tantes, cuja maioria já residia na zona urbana.

O autor, no mesmo texto, ainda cita que a cidade dispunha de novecentas casas co-merciais no total, com um capital investido de 30 mil contos de réis. Dentre as ativida-des comerciais ele destacava 12 confeitarias; três casas funerárias; oito casas destinadas àvenda de frutas e legumes; duas “garages”; três casas que vendiam bilhetes de loteria; trêsrelojoarias; três cigarrarias; 31 depósitos de casas importadoras e exportadoras; dez casasque comercializavam materiais de construção; duas casas com comercialização de cerveja;duas casas comerciais de máquinas de costura; sete engraxaterias; dez escritórios de comis-sões e corretagens; quatro livrarias; 53 leiterias; 15 lojas de variedades; dez tipografias; 15padarias; 19 farmácias; e três hotéis (Costa, 1922, p.13). Dos hotéis citados (Paris, Gran-de Hotel e Brasil) somente o último não existe mais.

Figura 3 – Rua Marechal Floriano na década de 1930.

Conforme dados apresentados por Costa (1922, p.15) e complementados comdados de Bittencourt (2001), havia na cidade do Rio Grande mais de duas dezenas de en-tidades sociais, filantrópicas, recreativas, e que também congregavam diferentes comuni-dades de nacionalidades estrangeiras, localizadas essencialmente na área central da cidade.

No ano de 1922 houve a fundação do Conservatório de Música e de mais dois tea-tros: O Cine Teatro Carlos Gomes (1.200 poltronas e 30 camarotes), e; o Teatro Guara-ni (500 poltronas). No final da mesma década, (1928), foi inaugurado o Teatro Avenida,(1.500 lugares e 500 gerais), isso denota a importância dada aos eventos culturais na ci-dade do Rio Grande (Bittencourt, 2001).

S O L I S M A R F . M A R T I N S , M A R G A R E T H A . P I M E N T A

93R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 92: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Outros melhoramentos na cidade foram verificados nesse período, como a ilumina-ção a gás em 1908 e a luz elétrica que foi implantada em 1915. O transporte urbano atra-vés de bondes de tração animal que era empregado desde 1884 pela Companhia CarrisUrbanos foi substituído em 1922 por bondes elétricos, desaparecendo nesse mesmo anoos bondes puxados a cavalos (Bittencourt, 2001, p.62). Na década seguinte, mais precisa-mente em 1934, houve a encampação por parte da municipalidade dos serviços de trans-porte urbano, atingindo no período uma extensão de 24 quilômetros de linhas de bon-des urbanos – os percursos maiores eram os que ligavam o Porto Novo ao Matadouro noextremo noroeste da área urbana, ou a linha Porto-Parque que ligava o mesmo porto aoParque Rio-Grandense no extremo sudoeste da cidade numa extensão de 8.300 metrospara ambas as linhas. Uma outra linha extensa era a Linha Circular que percorria uma ex-tensão de 6.800 metros (Pimentel, 1944, p.56).

Outras melhorias quanto ao saneamento ocorreram neste período compreendidoentre os anos de 1910 e 1930. Em 1916 a Companhia Hidráulica Rio-Grandense foi en-campada pela municipalidade e no mesmo período empréstimos foram feitos pela muni-cipalidade a fim de sanear a área urbana com a implantação da rede de esgotos. Tal pro-cesso desenvolveu-se a partir do ano de 1917 e em 1920 começou a funcionar a UsinaCentral dos Esgotos. Tais obras foram concluídas no ano de 1923, cobrindo a área da ci-dade velha e parte do bairro Cidade Nova (Pimentel, 1944, p.66-70).

Outras obras foram realizadas na cidade a fim de facilitar a drenagem, realizada atra-vés de três canais: um na rua Barroso, um no boulevard Major Carlos Pinto, com 1.300metros (antiga trincheira), e outro que faz a ligação entre os dois primeiros. Com a supe-ração das trincheiras, novas estruturas foram incorporadas à zona urbana, e com elas a ci-dade também se expandiu mais a Oeste, ocupando as margens do pontal arenoso pelaCidade em Projeto.

Figura 4 – Mapa da cidade do Rio Grande em 1926.

Fonte: Secretaria Municipal de Coordenação e Planejamento. Adaptado por Solismar Martins.

Após a Cidade em Projeto foi erguido em 1922 o Hipódromo Independência, dis-tante mais de 5 quilômetros do centro. Entre o hipódromo e o bairro Cidade Nova, a ci-dade se expandiu em forma ortogonal e deu seqüência a esse bairro com suas quadras re-tangulares quase formando um quadrilátero de dimensões de 100 por 80 metros e com

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 494

A C O N S T I T U I Ç Ã O E S P A C I A L D E U M A C I D A D E

Page 93: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ruas sempre largas. No entanto, essa extensão, ou Cidade em Projeto, estava numa áreamais estreita, entre a área do reservatório e o Canal do Norte.

Já na parte Sul da área do reservatório uma nova função seria dada ao Parque Rio-Grandense com a criação de um aeroporto para a Viação Aérea Rio-Grandense (Varig), nadécada de 1920. O fato de a primeira linha de aviação comercial ter sido inaugurada en-tre Rio Grande e Porto Alegre juntamente com a formação da primeira linha aérea postaldo Brasil entre as mesmas cidades5 denotam a presença de uma dinâmica de inovação. Até1930, a cidade incorporou novas áreas através da mediação do poder público, à exceção dasocupações irregulares existentes no terrapleno oeste entre o centro histórico e o novo porto.

DA INDUSTRIALIZAÇÃO RESTRITA À CRISE NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960. A RUPTURA DAINDÚSTRIA-CIDADE E A PROLIFERAÇÃO DAS “VILAS”PELA COMERCIALIZAÇÃO PRIVADA DE TERRAS

A década de 1930 foi emblemática na vida política e econômica brasileira, pois en-cerra o período da denominada República Velha e dá início à Era Vargas. Já em relação àeconomia, o País passou a buscar um desenvolvimento industrial próprio, com estímuloao desenvolvimento industrial interno, embora ainda necessitasse da importação de gran-de parte de equipamentos para instalação de novos parques industriais. Outra meta erauma maior união dos mercados nacionais, até então dispersos e desarticulados, o que pos-sibilitava crescimentos isolados, já que a concorrência interna com as demais regiões pro-dutoras era pequena.

A industrialização restringida ou substituição de importações caracterizou-se como operíodo industrial brasileiro que, ainda induzido pelo setor de exportação no seu desenvol-vimento, proporcionou o acúmulo de capital necessário para importar os bens de produ-ção, apesar das restrições quanto à autonomia para sua reprodução (Cano, 1985, p.76).

Tavares (1981, p.35), por sua vez, sintetiza que o processo de substituição de impor-tações corresponde a um processo de desenvolvimento econômico parcial, pois ao respon-der às restrições impostas pelo comércio exterior, buscava reproduzir internamente e deforma acelerada o processo industrial dos países ricos, embora apresentando condições his-tóricas distintas, já que não dispunha do mesmo lastro fabril das indústrias de base. Estas,no caso brasileiro, seriam erguidas inicialmente pelo Estado através de empresas estatais.

A escalada industrial do Estado de São Paulo entre as décadas de 1920 e 1950 pro-porcionou o desenvolvimento de um lastro econômico fabril propiciado por condiçõesque somente São Paulo dispunha, e que não poderia ser repetido por outras regiões dopaís (Cano, 1985, p.41-52).

No entanto, há uma contradição marcante no período que faz que mesmo aquelasempresas sulistas concorrentes com a economia do Sudeste obtivessem uma sobrevida eco-nômica. Trata-se da grande depressão de 1929 e, posteriormente, a Segunda Guerra Mun-dial, que concorreram para que essas fábricas mantivessem um ritmo produtivo elevado evoltado para a exportação. Tal processo permitiu que fábricas, como as duas grandes indús-trias têxteis de Rio Grande, Rheingantz e Ítalo-Brasileira, ou mesmo o Frigorífico Swift,mantivessem níveis superiores em sua produção apesar da diminuição de seu mercado con-sumidor interno. Por outro lado, não há registros de que nesse período essas empresastenham de alguma forma renovado seu processo de produção. A grande depressão e a

S O L I S M A R F . M A R T I N S , M A R G A R E T H A . P I M E N T A

95R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

5 A linha postal foi firmadaentre a Empresa CondorSydikat e a Prefeitura Muni-cipal do Rio Grande. Confor-me Ofício de 29.3.1927 daCondor Syndikat e protoco-lado na municipalidade sobo n.3440. Fonte: ArquivoGeral da Prefeitura Munici-pal do Rio Grande.

Page 94: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Segunda Guerra trouxeram, pois, um novo impulso para algumas indústrias da periferianacional, verificando-se aumento célere dos lucros, embora sem acréscimo da capacidadeprodutiva. Esse fato foi responsável pela sobrevivência, por mais algumas décadas, da eco-nomia industrial dispersa e concorrente com o Estado de São Paulo. Isso porque os paísesda Europa ficaram impedidos ou reduziram sua capacidade operante durante e após a guer-ra, ocasionando a redução na oferta internacional de produtos não-duráveis.

Uma exceção quanto à instalação de uma indústria de base fora do atual Sudeste re-fere-se à Refinaria de Petróleo Ipiranga (1937). Erguida junto às margens do Saco daMangueira, essa refinaria foi resultado da associação de capitalistas do Prata com fazen-deiros de Uruguaiana, e, segundo Pesavento (1985, p.103), corresponde a uma das pou-cas iniciativas no Rio Grande do Sul em que se concretizou a transposição de capitaisagrários para a indústria. Sua principal atividade produtiva era o refino do petróleo, ini-cialmente importado. A refinaria foi instalada numa área aterrada sobre terrenos alagadi-ços compostos por banhados.

Outro setor importante para a cidade, que resistiu e veio a se fortalecer durante a in-dustrialização restringida e no começo da segunda metade do século XX, foi a indústriapesqueira. Isso se deve a fatores como o generoso financiamento então proporcionado pe-lo Estado brasileiro via Superintendência para o Desenvolvimento da Pesca (Sudepe).Embora essa atividade fabril estivesse em desenvolvimento na cidade do Rio Grande des-de o ano de 1889, por meio da Leal Santos e de outras empresas de conservas instaladasdurante a industrialização dispersa, foi a partir de 1930 que o setor incluiu um expressi-vo número de empresas e fez que a cidade consolidasse uma outra atividade fabril e pio-neira no País, o setor de pescados.

A espacialização das empresas pesqueiras pela cidade do Rio Grande se deu semprejunto aos cursos d’água por questões óbvias, com predominância junto ao canal do RioGrande; ficaram assim distribuídas a Norte do pontal arenoso onde está localizado o sí-tio urbano.

A atuação desse setor foi crescendo durante as décadas seguintes, inclusive duranteo fechamento de empresas fabris de outros setores como o têxtil e de frigoríficos. Portan-to, coube a essas empresas o dinamismo industrial da cidade nas primeiras décadas da se-gunda metade do século XX, o que proporcionou que algumas delas se destacassem regio-nalmente, como é o caso da Empresa Pescal, que chegou a empregar 850 trabalhadores.

Quanto à ocupação espacial, o período disposto entre as décadas de 1930 e 1960 foicheio de contradições quanto às tipologias de ocupação do espaço urbano em Rio Gran-de, pois a cidade, devido às inserções de vastas áreas, como a hidráulica, impunha uma es-pacialização um tanto dispersa para a época. Havia, no entanto, uma certa uniformidademorfológica no tipo de ocupação. Além disso, era bem dotada de infra-estrutura urbana:rede de esgotos, abastecimento de água, linhas telefônicas, energia elétrica e transporte ur-bano. O transporte urbano de passageiros foi incrementado pelos ônibus no ano de 1939,quando a prefeitura municipal importou os primeiros três veículos Ford com capacidadepara trinta passageiros cada.

Conforme Pimentel (1944, p.56-8), dos mais de oito mil prédios existentes na sedeem 1944, 4.500 dispunham de recolhimento de esgoto e 5.500 contavam com o abaste-cimento de água encanada oferecido pela Companhia Hidráulica Rio-Grandense. Essesdados correspondem a um número elevado de domicílios que dispunham destes serviçospara a época, fazendo que tais índices, em termos relativos, não viessem a se repetir emRio Grande até o presente, no que tange a rede de esgotos.

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 496

A C O N S T I T U I Ç Ã O E S P A C I A L D E U M A C I D A D E

Page 95: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Foi também nesse período que a cidade ganhou seus principais prédios em estilo artdéco. Como cristalização desse estilo arquitetônico ainda temos registros de sobrados nocentro da cidade, assim como alguns prédios públicos, a exemplo da Câmara do Comér-cio, do Centro de Saúde e da Agência Central dos Correios e Telégrafos. Se a pujançaocorrida no que hoje corresponde ao Centro da cidade e áreas próximas exprimiu umaconcentração de capital de intensa urbanidade até a década de 1940, foi a partir de 1950,com a desaceleração fabril e a diminuição da população operária, que ocorreu uma proli-feração de loteamentos de toda ordem.

O início da segunda metade do século XX representou a desaceleração do primeiroperíodo industrial da cidade do Rio Grande, com o término das atividades produtivas emvárias grandes empresas, como as indústrias têxteis, os frigoríficos, a fábrica de charutos eoutras. Tais fatos desencadearam uma crise local e uma diminuição na oferta de trabalho,o que, conseqüentemente, afetou toda a vida do município. Segundo Oliveira (1961,p.64), o fechamento de grandes fábricas como o frigorífico e a fábrica têxtil fez que 7 miltrabalhadores perdessem seus empregos em Rio Grande, para uma população absoluta de82 mil habitantes. As décadas de 1950 e 1960 são emblemáticas da decadência fabril e daforte expansão urbana verificada através de toda ordem de loteamentos.

Na década de 1950, ocorreu uma proliferação de novos loteamentos, em que qual-quer hectare de terra, ou menos, era transformado em lotes urbanos prontos para comer-cialização. Isso colocava fim à expansão da cidade ortogonal em ruas largas, fora do cen-tro histórico. A partir desses loteamentos surgiu um novo fenômeno urbano denominadode vilas que, em duas décadas (1950 e 1960), ofereceu nada menos do que 17.246 lotesurbanos (Salvatori, 1989, p.45).

Figura 5 – Localização dos principais loteamentos da cidade do Rio Grande nas décadasde 1950 e 1960.

Fonte: Secretaria Municipal de Coordenação e Planejamento. Adaptado por Solismar Martins.

S O L I S M A R F . M A R T I N S , M A R G A R E T H A . P I M E N T A

97R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 96: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

A vila, como sinônimo de povoado já era usual: tanto a cidade do Rio Grande, noseu surgimento, assim como outras cidades do Rio Grande do Sul e do Brasil tiveram seucomeço com essa denominação. No entanto, não é a esse sentido de vilas que estamos nosreferindo quando falamos das que começam a fazer parte da paisagem urbana da cidadedo Rio Grande na década de 1950, embora as duas primeiras tivessem surgido na déca-da de 1940, como visto anteriormente. No Rio Grande do Sul de modo geral, e RioGrande não foge à regra, vila comumente tem sentido de bairro pobre, de periferia, defalta de estrutura urbana. Com esse sentido, o termo que mais se aproxima seria o de ar-rabalde da cidade ou vilela. O que difere a vila da favela ou das malocas é o fato de estasse encontrarem em situação ilegal. As vilas, ao contrário, comumente têm sua situação re-gularizada junto à prefeitura municipal. No entanto, carecem de infra-estrutura urbanacomo calçamento e esgoto e têm seus lotes comercializados em locais de menor valor fun-diário. Nem o Centro nem o bairro Cidade Nova, embora este surja como um bairro ope-rário, nunca foram denominados como vilas. Outro elemento que deve ser consideradoé que se a cidade perdia empresas industriais, ao mesmo tempo aumentava exponencial-mente o oferecimento do número de lotes urbanos, o que significava expandir a cidadepara áreas mais longínquas, sem ocupar totalmente as novas áreas loteadas. Isso resultounum grande número de terrenos postos à venda durante as décadas subseqüentes na ci-dade do Rio Grande.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar a evolução espacial de uma cidade portuária através da introdução deparques fabris e de suas resultantes espaciais, verificou-se que até a década de 1930 indús-tria e moradia estavam coadunadas através de vilas ou bairros operários. Nesse sentido, asfábricas não somente ofereciam moradia a parte de seu coletivo de operários, como tam-bém uma série de outros serviços relacionados à educação, à recreação etc. Por outro la-do, a participação do Estado na execução de novos loteamentos foi fundamental, confi-gurando uma cidade planejada, com ruas largas, boulevards e grande quantidade depraças localizadas na área de ocupação inicial. Portanto, a infra-estrutura criada na áreaurbana referente a transporte, rede de esgotos, energia elétrica, assim como a eventos cul-turais, era exemplar, principalmente para os padrões urbanos nacionais.

Tal configuração espacial se modificou com a diminuição dos investimentos indus-triais, verificada a partir da década de 1930, e com o acirramento da crise econômica lo-cal na década de 1950, processos que se prolongaram até a década de 1960, ocasionandouma diminuição do emprego e renda para Rio Grande. Isso imprimiu uma nova tipolo-gia na comercialização de lotes urbanos, até então estocados como propriedades não-ocu-padas, passando os mesmos a serem comercializados através de todo tipo de “vila”. A par-ticipação do Estado também se alterou, pois a municipalidade autorizava a abertura denovos loteamentos, mas não dispunha de recursos para oferecer a mesma infra-estruturaassegurada para as áreas já existentes. Isso implicou uma novidade em termos de espacia-lidade urbana para uma cidade que, naquele período, se desindustrializava.

A partir da década de 1970, verificou-se a instalação de um distrito industrial na ci-dade do Rio Grande, com a conseqüente atração de novas empresas. No entanto, a expan-são verificada através de novos loteamentos não se repetiu com a mesma intensidade, ate-nuada que foi pela grande quantidade de lotes urbanos oferecidos nas décadas anteriores.

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 498

A C O N S T I T U I Ç Ã O E S P A C I A L D E U M A C I D A D E

Page 97: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Se os primeiros ciclos econômicos na cidade de Rio Grande, além de construírem aestrutura, a malha e a paisagem urbanas, moldaram a vida e a ambiência da cidade, assimcomo promoveram novos padrões de difusão cultural, os grandes investimentos, realiza-dos após a década de 1970 atuaram na constituição de verdadeiros enclaves locais. O por-to passou a ser, sobretudo, ponto de apoio à exportação para um mercado cada vez maislongínquo. Do lugar, interessa a redução de custos, incluindo-se aí o declínio da renda ea pauperização das populações urbanas. Dilui-se, assim, a relação entre atividade econô-mica e espaço urbano, transformando o local em retaguarda de apoio para um processode acumulação organizado a partir de rede sistêmica de relações dos grandes grupos na-cionais e internacionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTENCOURT, É. Da rua ao teatro. Os prazeres de uma cidade. Rio Grande: FURG,2001.

CANO, W. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil (1930-1970). SãoPaulo: Globo, 1985.

COPSTEIN, R. “Evolução urbana de Rio Grande.” Porto Alegre, Revista do Instituto His-tórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, n.122, p.43-68, 1982.

_______. “O trabalho estrangeiro no município do Rio Grande.” Porto Alegre, BoletimGaúcho de Geografia, n.4, p.1-43, 1975.

COSTA, A. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1922.LEFEBVRE, H. “La prodution de l’espace.” Paris: Antrophos, 1974._______. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.MARTINS, S. F. A visão dos moradores sobre o planejamento urbano: um estudo do Bair-

ro Santa Tereza – Rio Grande – RS. Rio Grande, 1997. Dissertação (Mestrado) –Fundação Universidade Federal do Rio Grande.

NEVES, H. A. P. “O porto do Rio Grande no período de 1890-1930”. Rio Grande, Re-vista do Departamento de Biblioteconomia e História, FURG, 1980.

OLIVEIRA, F. A economia da dependência imperfeita. 5.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.PESAVENTO, S. J. História da indústria sul-riograndense. Porto Alegre: Riocell, 1985._______. A burguesia gaúcha. Dominação do capital e disciplina do trabalho. RS 1889-

1930. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988._______. História do Rio Grande do Sul. 5.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.PIMENTEL, F. Aspectos gerais do município do Rio Grande. Rio de Janeiro: IBGE, 1944.QUAINI, M. Marxismo e Geografia. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.RIO GRANDE DO SUL. Obras da Barra e do Porto do Rio Grande. Transferência ao

Estado dos Contractos da Compagnie Française du Port de Rio Grande do Sul. Por-to Alegre: Officinas Graphicas d’A Federação, 1919.

ROCHE, J. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969. SALVATORI, E. et al. “Crescimento horizontal da cidade do Rio Grande.” Revista do

IBGE, 1989.SANTOS, M. Técnica, espaço tempo: globalização e meio técnico científico informacio-

nal. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1996. SINGER, P. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. 2.ed. São Paulo: Cia. Editora

Nacional, 1977.

S O L I S M A R F . M A R T I N S , M A R G A R E T H A . P I M E N T A

99R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Solismar Fraga Martins éprofessor assistente doDepto. de Geociências daFURG e doutorando na áreade Desenvolvimento Regio-nal e Urbano do Programade Pós-Graduação em Geo-grafia da UFSC. E-mail: [email protected]

Margareth Afeche Pimen-ta é professora de Arquite-tura e Urbanismo e do Pro-grama de Pós-Graduaçãoem Geografia da UFSC. E-mail: [email protected]

Artigo recebido em janeirode 2004 e aceito para publi-cação em abril de 2004.

Page 98: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

TAVARES, M. da C. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Ja-neiro: Zahar, 1981.

A B S T R A C T Rio Grande, a city with an harbor, and the first Portugueselandmark in the Rio Grande do Sul state, presented a fast industrialization process at the endof the nineteenth century, due to commercial capital accumulation originated from importand export activities. Quickly, industrial plants of different sectors were established, enlargingthe old commercial city and modeling the urban space through the introduction of newproductive structures and excellent technical basis that defined the trends of the urbanexpansion, composed both by an architectural renewal movement based on the Europeanmodel and workers’ villages. Such reality was kept until 1950, when the industrial economybegan to show economical weakness, restraining or closing part of its industrial park.Simultaneously, a proliferation of all kinds of private lots took place in the city, creatingperipheral villages and provoking the rupture between the city and the industrial activity.

K E Y W O R D S Urban spatial configuration; industrial productive cycles; urbanhistory; workers’ villages; architectural patrimony.

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4100

A C O N S T I T U I Ç Ã O E S P A C I A L D E U M A C I D A D E

Page 99: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

HOMENAGEM

Page 100: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

O LOUCO – O PASSANTE – O AGENTE – O CONCEITUADOR

A N N E Q U E R R I E N *

R E S U M O Isaac Joseph foi professor de Sociologia na Universidade de Paris X –Nanterre. Especialista da escola interacionista simbólica, reintroduziu na França a Escola deSociologia Urbana de Chicago e se destacou como tradutor de Goffmann, Gumperz, Hannerz.Foi autor de uma obra sobre a microssociologia de Erving Goffmann publicada no Brasil em1998 pela FGV Editora. É também conhecido por seus trabalhos aplicados de sociologia ur-bana, publicados na revista Les Annales de la Recherche Urbaine. Desenvolveu importan-te diálogo com pesquisadores brasileiros da UFF, USP e UFRJ, entre outros temas, sobre escalasdo pluralismo e formas de engajamento cívico nos espaços públicos urbanos. Isaac Joseph fa-leceu em 2 de fevereiro de 2004. Nas palavras de seu colaborador Y. Grafmeyer, Joseph ques-tionou a ilusão que faz crer que a ordem dos fatos só é perceptível se sairmos de seu detalheessencialmente irregular, para elevarmo-nos a uma altura suficiente para obter visão panorâ-mica dos grandes conjuntos. Tinha, porém, a convicção intelectual e militante de que estaatenção minuciosa às civilidades correntes é também portadora de importantes desafios polí-ticos. O presente texto revê o modo como Joseph pensa as interações situadas no espaço da lou-cura, do passante, da agência e da conceituação.

P A L A V R A S - C H A V E Isaac Joseph; interacionismo; microssociologia urbana.

Após o desaparecimento de Isaac Joseph, pus-me a reler, desordenadamente, os di-ferentes textos que ele nos deixou e que eu havia lido, anteriormente, à medida em queeram publicados. Eles me pareceram todos dotados de uma mesma veia paradoxal, for-mada, desde logo, a partir do Le passant considerable1 ou mesmo de Les cahiers de l´im-muable.2 Ao mesmo tempo em que Joseph nos propõe fazer com Erving Goffman a so-ciologia da ciência das conversações e de sua comparação, ele nos faz também buscar estasconversações nos personagens encontráveis na sociedade “conversante”, à falta de outraexpressão, seja do louco, do transeunte que passeia nesta sociedade, do agente de umaconversação imposta por uma instituição, ou mesmo do conceituador que teoriza o queprojeta na solidão. A esta lista eu acrescentaria o filósofo-sociólogo que busca, sob o ce-nário assim montado, o comum, afirmando que não há relações sociais preexistindo às si-tuações, nem recurso possível às origens que são para todos distintas: o encontro se faz en-tre rostos, membranas situadas entre o domínio de cada um e o domínio comum. Esteencontro forma um público, individualizando seus agentes. Estes descobrem-se sustenta-dos por redes, traços materiais de seus percursos, expressão deste “comum” fabricado pe-los encontros que se repetem. O comum está por se fazer, não é dado, mas interessa, pro-duz conversa, faz que a sociedade se faça. Como manter juntas estas posições extremas,excêntricas? É isto que o sociólogo nos convida a observar, selecionando para nós as feli-cidades do passante.

103R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

1 I. Joseph, Le passant con-sidérable, Essai sur la dis-persion de l’espace public,Sociologie des Formes, Pa-ris, Librairie des Méridiens,1984.

2 Les cahiers de l’immuable:1. Voix et voir, abril 1975;2. Dérives, dez. 1975; Audéfaut du langage, nov.1976; Paris, Éditions Re-cherches.

* Tradução de Lucia Reis.

Page 101: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

O LOUCO

Conheci Isaac Joseph em 1973 quando ele relatou no jornal Libération sua viagematravés da rede constituída por Fernand Deligny com suas crianças autistas. Em Lescahiers de l’ímmuable, realizado junto com Deligny, suas preocupações de fundo estavamjá presentes sem as referências sociológicas com as quais ele, em seguida, as desenvolveu.A rede de Deligny na região das Cévennes constituía-se por um certo número de locais dehabitação, ligados entre si por trajetos seguidos quotidianamente por adultos e crianças.

Os caminhos dos adultos eram basicamente funcionais: preparação de alimentos,compras, reuniões, recepção de visitas etc. As crianças executavam movimentos que exce-diam esta funcionalidade, excediam os adultos: balanços, rodopios em torno de si e ou-tras manifestações não necessárias, que as havia levado, em hospitalizações anteriores, aserem amarradas. Por acaso, dado que um dos adultos havia sido desenhista industrial,Deligny pediu-lhe que desenhasse mapas destes dois tipos de movimentos. Descobriu-seentão que aquelas crianças, cujos movimentos tanto inquietavam, permaneciam de fatocomportadamente no interior do perímetro definido pelos trajetos quotidianos dos adul-tos, e desenhavam com estes uma espécie de “corpo comum”. Este corpo comum foi vis-to por Joseph como esperança, um espaço anterior, em cada um de nós, ao uso da pala-vra. Crianças autistas e adultos normais situavam-se de fato em relação aos mesmostraçados de sua rede. Os mapas permitiram aos adultos mostrar aos pais o que as criançasfaziam. O pragmatismo dominou a descoberta para fazê-los desempenhar vários papéisdiferentes. A superposição dos mapas permitia identificar pontos de atração, modificaçõesda rede. Os mapas exibiam mobilidade dos membros da rede, seus deslocamentos, suasmarcas, e formavam uma imagem mental do território co-produzido pelas crianças e pe-los adultos. Para Isaac Joseph, a experiência da rede remete a palavra a seu lugar, libera-ados efeitos de controle que podem paralisar ou ferir, como já vimos bastante nas assem-bléias gerais de Maio de 1968 e nas subseqüentes. A presença junto às crianças autistas in-dica que a palavra não é a finalidade da atividade humana; que esta, para se desenvolver,não necessita dar o mesmo significante à mesma coisa.

Mas Deligny prossegue a pesquisa a partir dos mapas: as “linhas de errância”, os per-cursos bizarros das crianças continuam escapando à compreensão dos adultos, parecendoimantadas por coisas desconhecidas, cuja atração traduz-se por entrelaçamentos, densifi-cações, alguma coisa comum nos trajetos de uma criança, mas singular a estes mesmostrajetos. A criança aparece como indivíduo, humano, na teia de aranha que forma o con-junto da rede. E estes traços singulares tornam-se para Joseph, como uma linguagem: “arede é uma linguagem posto que consiste na consciência que cada um de nós tem da pre-sença dos outros”, e a maneira pela qual ela é expressa em seus trajetos, em seus percur-sos do território comum.

A criança se reconhece no habitual, distingue os lugares; para ela há um outro iden-tificável, um humano a despeito da ausência da pessoa, a impossibilidade da conversação.Mas Deligny nos lembra: não se deve parar aí; é preciso sempre buscar nos mapas o des-concertante, fazer do comum um motor da exploração.

Transformando sempre suas linhas de errância, ainda que de modo pouco perceptí-vel, as crianças mostram que elas solicitam à rede que ela assegure algo além da comuni-cação; o que elas fazem quando o fazem aparentemente para nada? O adulto da rede ou opassante amigo devem ter uma atitude de vigília, ele não possui meios para fazer qualquerinterpretação. A psicanálise em nada ajuda em tal situação. Joseph define a tentativa de

O L O U C O – O P A S S A N T E – O A G E N T E – O C O N C E I T U A D O R

104 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 102: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Deligny como “uma jangada sobre a qual idéias e métodos servem para entreter o náufra-go em seu projeto. No momento em que elas pesem muito, elas são descartadas para acen-tuar a deriva”; e acrescenta Deligny, é preciso tomar o máximo de distância possível sob orisco de revelar sua posição.

Desta experiência constituinte, Joseph voltou com a convicção de que a loucura es-tava no lugar, imbricada na nossa relação complicada com a linguagem e com as lingua-gens dos outros. Mas o louco das cidades não é mais do que um ator ocasional da refle-xão sobre as situações de interação. Por certo, o sociólogo é sensível às anomalias e àssituações que embaraçam, mas seu interesse concerne antes ao funcionamento da redeprofissional instalada para receber a loucura colhida na rua ou para seguir a formação dodiagnóstico nas interações.3 O louco é, por exemplo, aquele que fala sozinho em públicoe diante de testemunhas, sem prestar atenção à inteligibilidade mútua indispensável à co-municação; um reparo então é necessário à sociabilidade violada, seja porque a pessoa quese excedeu seja capaz de se desculpar, seja porque as pessoas indispostas se afastam e põemfim à interação.

Os loucos são aqueles que perderam a capacidade de distribuir sua atenção segundoordens rituais que dão acesso aos diferentes recursos da sociedade; são aqueles que se dei-xam levar, que se deixam tomar ou absorver, aqueles que se desestruturam, aqueles queexpõem os pontos onde a ordem das coisas passa a faltar. O louco serve como analisador,mas ele pluralizou-se. A relação com a vida mental socializou-se tornando-se agora visívelno curso da vida pública. O passante não tem mais distância em relação à jangada e à de-riva; a loucura expõe-se ao olhar dos profanos, aos pais, aos colegas, aos vizinhos, aosagentes dos serviços públicos. A loucura torna-se presa no universo da mobilidade e cir-cula entre as competências profissionais. Ela tornou-se a loucura do passante.

O PASSANTE

A figura do passante me parece uma inversão fabulosa do estigma. A condição paraa qual o jovem apátrida tinha sido designado é transformada por leituras orientadas emuma síntese das tentativas para fazer dos marginais os melhores observadores sociais: o es-trangeiro de Simmel, o migrante de Park, o hobo de Becker, o flâneur de Benjamin. O espa-ço público é um espaço no qual o intruso é aceito, sem ter necessidade de se identificar;se isso acontecesse de outra maneira, é que o território estaria privatizado. Ser aceito é tero direito de ir e vir, ser pura presença, aparência de si mesmo, sem interferir, sem inter-pretar. O flâneur percebe, está aquém da relação convivial face a face, em interação forada linguagem, não em corpo a corpo mas em aparência, à distância, em civilidade.

A grande cidade com seus transportes coletivos obriga a construir esta capacidadeativa de indiferença que acompanha a troca de olhares, na qual a reciprocidade imediatagarante no outro sua alteridade. É preciso situações de alarme para que aquele que pas-seia saia de sua reserva, e por outro lado hesite fundamentalmente sobre a conduta seguin-te, de tal modo, na grande cidade, os marcos que orientam a ação são pouco comuns.

O passante não quer tocar muito nisso, embora esteja fortemente tocado. Olhoenorme e orelha à qual vêm se confessar as paixões locais. Com sua experiência adquiriua convicção de que as situações modificam os indivíduos; interessa-se pelas vontades refor-madoras, ao mesmo tempo requalificando-as em outros tantos percursos individuais quese reencontrarão talvez na eficácia, por sorte. Enquanto isso, ele descreve, analisa, observa

A N N E Q U E R R I E N

105R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

3 I. Joseph, «La relation deservice et les urgencespsychiatriques», Les Anna-les de la Recherche Urbaine,n.73, p.5-13, dez. 1996.

Page 103: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

o percurso de uns e outros, olha aquilo que daí vem a olhá-lo, passando. O passante sesente como o membro do público de um teatro, no qual os papéis secundários fazem mui-tas vezes a ação quando os primeiros a declamam.

Ele não perdeu no entanto o desejo e a crença na unidade deste mundo, mas com omicrossociólogo, com Goffman, ele a encontra na situação mesma, esta espécie de holo-grama do social, momento de co-produção e co-adaptação fugidias, imagem na qual seespelha o público, que é remetido logo a suas individualidades e hesitações. Na encena-ção das relações sociais, a experiência individual é imediatamente coletiva, formada pelatransmissão de rituais de interação, mais ou menos adaptada, posto que mais ou menosdesterritorializada. O passante não tem necessariamente todo o conhecimento necessárioao acordo perfeito com o ritual, mas este acordo é sua meta e desta distância ele obtémconhecimento da situação, mesmo que não intervenham os rituais de reparação aos quaisGoffman consagrou tanta importância: o passante tem um conhecimento humano do so-cial, aquele veiculado por todo ser sem palavra. Como o afirma fortemente Isaac Joseph,a multiplicação dos microlugares e a afirmação do direito a eles, assim como à diferença,suprime o sentido do intervalo entre o homem e seus semelhantes que se situa no funda-mento do político como afirmação do humano externo à identidade.

Mas com o pragmatismo, o passante mergulha ainda mais adiante na exploração domundo, pronto a aplicar seus conhecimentos a seu uso, com precauções. Para lançar-seno mundo é preciso buscar sua própria singularidade e assinalar regularmente sua posi-ção, permanecer passante, não cair na fraternidade, na complacência. É assim que se sal-va a face do outro, mantém-se a distância em relação a ele e uma possibilidade sempreaberta de negociação. “Porque um espaço público não é nunca uma boa forma [diz Jo-seph], é preciso nele introduzir formas.” Não se trata mais do que um espaço de rumoresonde as pessoas colocam-se problemas, conversam entre si, partilham o saber, interaçõessituadas cuja definição modifica sua própria dimensão. O passante não se atribui, paramoldar este espaço, qualquer autoridade, ele simplesmente assinala.

E o passante examina as rotinas que estabelecem neste espaço público um certo sen-tido do comum, que definem as aparências normais com base nas quais os comportamen-tos serão julgados aceitáveis, que estabelecem um contexto que torna possível a conversa-ção. Mas o passante identifica já algum mal-estar nestas interações, a multiplicação dosestigmatizados com os quais os normais nunca mantêm conversações correntes. É daí quesurgiu a necessidade de redefinir as civilidades, não pela reparação da interação individual,mas sim englobando mais possibilidades nas situações, tornando-as sempre mais abertasà diversidade da qualificação social, pondo em reserva as categorias estigmatizantes, obri-gando-se à indiferença, vestindo o humano com polidez. Trata-se para o passante, ao mes-mo tempo, de um aprendizado do rosto do outro e de uma doação de forma, a proposi-ção de uma reciprocidade, o devir passante do outro. Dissimular é, em primeiro lugar,permitir ao outro dissimular.

O passante confronta-se aos limites situados entre ele e o outro, entre o que se faze o que não se faz, ao imperativo de deixar o outro entregue a suas ocupações, quaisquerque sejam os sentimentos de atração ou repulsão que ele experimente. O summum da so-ciabilidade na grande cidade encontra-se na suspensão da interação, no respeito, em umentreato situado entre os códigos e os territórios que definem as comunidades de bairro.Há neste entreato proposto pelo passante uma carga de angústia não desprezível quantoao devir da humanidade. No entanto, este entreato constitui um esplêndido espetáculoquotidiano.

O L O U C O – O P A S S A N T E – O A G E N T E – O C O N C E I T U A D O R

106 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 104: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Isaac Joseph insiste: mesmo se identificarmos o outro pelas aparências, por suaroupa, seu estilo, nada saberemos daquilo que o anima, das razões que o levam a seguirseus códigos; temos disto um belo exemplo com a questão do véu.* O passante confron-tado a um excesso de sentido não pode mais que aumentar sua reserva se ele não qui-ser cair na a-sociabilidade da usurpação territorial. E ampliar sua reserva consistirá emseguir seu caminho, sair desta interação presente para entrar em outra no mesmo ounoutro local. O passante vive por sequências que ele capta no mundo constituindo suaprópria trajetória, que não é igual à de nenhum outro, o que Joseph chama de “engaja-mento problemático”.

Mas este passante que atravessa o mundo enviando-lhe imagens de seus pontos sen-síveis tem de algum modo consciência de que os modos de ser em público não podem seranalisados somente pela lógica da dispersão. O espaço público constitui-se pela lógicas deredes segundo as quais coordenam-se as situações, pelas quais os passantes encontramacesso aos recursos, às carreiras e a um conjunto de personagens e objetos intermediáriosna constituição dos territórios. A face estável do mundo mostra seu rosto, como o “cos-tumeiro” indicava o comum à criança louca. Quem é o agente deste costumeiro urbano?

O AGENTE

Não há passante sem agente, sem princípio ativo, sem espaço institucional mantidoem diversos pontos, vetorizado pela disciplina. Joseph encontra o agente em Disciplines àdomicile.4 Diferentemente do professor que utiliza abundantemente a linguagem e os sig-nos, o agente observa, explora, relata, torna a relação impessoal e o olhar onipresente. Apassagem de Joseph ao Plano Urbano5 e sua proximidade com a RATP (empresa públicaresponsável pelo metrô de Paris)6 dão ao agente uma variação contínua. A relação de ser-viço entre agentes e usuários repete a cooperação dramatúrgica desenvolvida pelo passan-te no espaço público, e permite-lhe exercer seus talentos. O passante sublinha as dificul-dades desta relação, as competências organizadas pelo agente, sua inventividade emrelação aos procedimentos, sua capacidade de se adaptar aos diferentes públicos manten-do a fachada de sua organização, sem fingir humildade da organização comercial em face docliente. O passante defende com fervor o serviço público, pequeno consertador infatigá-vel das falhas sociais. Mas a modernização faz crescer o micropoder do agente e seus ris-cos de discriminação ligados à segmentação crescente do público-alvo, ao mesmo tempoque aumenta suas incertezas quanto ao devir da organização.

Ora, o público superestima sua relação com o agente; usuários e agentes são nostál-gicos da sociedade de interconhecimento e de controle social sem a qual sua interação nãoteria razão de ser. Os agentes têm o sentimento de ter perdido as normas partilhadas comos freqüentadores. Quanto mais os serviços são abertos e acessíveis, constata Joseph, maisfazem falta as normas partilhadas. O agente nem sempre está preparado para a demandade explicitação ou de legibilidade que daí decorre. Ele tem medo de se desmoralizar. En-tão ele tem que enfrentar, com pedagogia e doçura, retransmitir as regras do serviço. Ascompetências do agente – juízo, observação, diagnóstico, negociação, distanciamento –não são competências individuais, mas rotinas vinculadas à atividade, à organização. Elasdefinem uma maneira de ser no trabalho.

O agente diante do público é a fachada da organização, um tradutor de sua comple-xidade, de suas exigências, de suas falhas e de sua reparação, em uma linguagem acessível.

A N N E Q U E R R I E N

107R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

4 P. Fritsch, I. Joseph e A.Battegay, Disciplines à do-micile, Paris, Éditions Re-cherches, 1977.

5 G. Jeannote e I. Joseph,Métiers du public: les com-pétences de l’agent etl’espace de l’usager, Édi-tions du CNRS, 1995.

6 I. Joseph, Météor, Les mé-tamorphoses du métro, Eco-nomica, 2004.

* A autora refere-se aqui àpolêmica instaurada naFrança em torno à medidagovernamental que proibiuàs estudantes mussulmanaso uso do véu em escolas pú-blicas. (N. E.)

Page 105: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Ele é tomado por uma multiplicidade de demandas e não se deve por demais consagrar auma em detrimento das outras. Ele só se deve engajar naquilo que a organização é capazde enfrentar e portanto saber a que se ater. É necessário que mobilize sua experiência anterior para se preparar ao que se seguirá. O passante que o observa procura identificaras condições desta coordenação, em geral feliz, de papéis profissionais contraditórios. Elerecenseia situações-tipo para identificar os constrangimentos organizacionais e rituais quesão exercidos sobre o trabalho do agente. Dispensar ao usuário a mesma atenção de nadaserve, pois ele não é o mesmo todo o tempo; ele é aquilo em função do que varia o tra-balho do agente. O usuário raramente apresenta-se em coletivo, e praticamente semprefora das situações de trabalho. Entretanto, é o conjunto dos usuários que serve de referên-cia ao agente para animar sua conversa com cada um e levar a pequena cena rumo à con-clusão de um acordo. O agente não faz mais do que ajustar uma oferta a uma demanda;ele articula vários registros de conhecimentos e de constrangimentos e com freqüência ex-perimenta a fragilidade de seus quadros de interpretação das situações. Ele trabalha, às ve-zes perdidamente, para reunir estes quadros, para obter aquiescência. Raros são os usuá-rios que trabalham igualmente nesta direção. Caso eles cooperassem demais, elescolocariam mal o agente. O espaço de deslocamento põe-se à disposição dos usuários; elesó é espaço de trabalho para os agentes. E o passante, com suas observações, é aí visto comfreqüência como um estorvo tal como na rede de Deligny.

No entanto, o passante insiste, insiste tanto mais quanto a empresa interroga-se so-bre sua capacidade de se modernizar. A busca de modernização faz-se antes no domínioda inovação técnica: direção automática e arquitetura impositiva são no Météor os veto-res de uma renovação na qual os agentes em contato com o público não parecem de mo-do algum estar no centro da reflexão. Por certo, um acordo foi feito entre a empresa e ossindicatos que na linha de metrô 14 reúne pessoal de manutenção e de operação num sócorpo e confia aos antigos condutores a tarefa de devolver o material defeituoso à gara-gem. Certos agentes apaixonaram-se por esta inovação e tornaram-se passantes à sua ma-neira, consagrando tempo a observar nesta nova linha todos os problemas de operaçãoque ocorrem quotidianamente em outros locais. O acordo prevê a limitação no tempodesta nova condição dos agentes. Novas identidades profissionais devem ser definidas,novos agenciamentos coletivos devem ser apreendidos e experimentados. Lendo-se Jo-seph, parece que é na relação com o usuário que se deve buscar esta operação. Os agen-tes dispõem agora, com a nova linha automática, de um plano de trabalho comum tãoconsistente que o usuário apenas acrescenta uma singularidade, faz que algo aconteça.Cada usuário torna-se um ser singular e considerável e não uma anomalia a ser polida-mente ajustada à regra; cada usuário com problema designa um ponto a ser melhoradona rede, para atender ao plano de trabalho comum. O novo metrô quer integrar o usuá-rio em seu plano de cognição distribuída, fazer girar as posições de agente, passante,usuário em torno da mesa, coletar as informações em benefício de todos, organizar a co-percepção das situações. Descolado de seu papel tradicional, o agente flutua no espaçoinstitucional ou reduz-se, ao contrário, a suas tarefas de base. Mas o passante não coo-pera apenas com os agentes. O espaço não é sustentado somente pela linguagem dosagentes, reproduzido pelas interações entre agentes e usuários; ele é instituído material-mente por conceituadores.

O L O U C O – O P A S S A N T E – O A G E N T E – O C O N C E I T U A D O R

108 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 106: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

O CONCEITUADOR

Entre estes conceituadores, encontramos o próprio filósofo-sociólogo, produtor deconceitos, ou o que retoma conceitos colhidos e traduzidos de trabalhos norte-america-nos. Estes conceitos não representam um conjunto de objetos ou de situações que vamosdesignar pela mesma palavra de acordo com nossa formação clássica. Impossível utilizaro conceito de espaço público7 em Isaac Joseph num curso de licenciatura com a preten-são de trazer exemplos semelhantes de interrogação de estudantes; o espaço público pare-ce explodir, segundo as comunidades, as experiências, os meios. O conceito é então umguia para a ação em situação, ou melhor, uma proposta para nela se localizar, para não fu-gir pelos corredores do metrô ou dos conjuntos habitacionais do subúrbio ao primeiro in-cidente, para se instalar nas lentes do passante. Mas do leitor, mesmo esclarecido, ao pas-sante eficaz, há uma grande distância.

Iluminar as estações e as plataformas das estradas de ferro vai talvez permitir ao pú-blico ocupar seu lugar.8 A luz é o primeiro princípio ativo do espaço público. Joseph as-socia seu amigo Larent Fachard, conceituador da iluminação nos trabalhos de renovaçãoda estação ferroviária Gare du Nord, à reconquista dos espaços públicos do metrô. Ele fazo paisagista Bernard Lassus analisar a alternância de sombra e luz que torna o metrô aé-reo agradável. Ele interroga infatigavelmente arquitetos e críticos sobre as coordenadas deum espaço de visibilidade no qual a reciprocidade de perspectivas se tornaria possível, on-de os viajantes não seriam apenas conduzidos mas acolhidos, um espaço acessível às pes-soas sem domicílio fixo e aos artistas de rua, onde a civilidade seria facilitada, onde o reen-contro se tornaria feliz. “Expor o transporte coletivo na cidade”, diz ele falando dosprojetos de Bernard Kohn que teriam feito das estações de Météor poços de luz quase re-volucionários, “conceber um espaço monumental pela escolha de formas e de materiais,era mergulhar no patrimônio do metrô, restaurar sua poesia histórica para restituí-la nopresente, ganhar a consideração do passante de hoje, associar modernização e serviço pú-blico”.9 O fuck context de Rem Koolhas, mesmo se ele é cheap, se não é caro, não é a preo-cupação de Joseph, quando ele pensa em concepção.

É na arquitetura das aerogares, a partir de Paul Andreu, que ele encontra um eco asuas exigências, uma arquitetura que ele diz animada pela preocupação dos serviços depós-venda, mas que tenta sobretudo criar passagens entre diferentes tipos de luz, ao lon-go de todo o caminho nos espaços sucessivos da viagem, como podemos ler no texto dopróprio arquiteto. Paul Andreu não está apenas a serviço dos edifícios que ele cuida, co-mo o demonstra Joseph numa visão de sociólogo; ele tem sua própria visão, enraizada noscéus da cidade próxima do mar, Bordeaux, onde ele nasceu, céus em nome dos quais elenegocia com os fornecedores os azuis, os rosas, os cinzas, os jardins, graças aos quais o ser-viço será realizado com prazer.10 Para Paul Andreu, o espaço sensível é individualizantepela sua beleza, pela sua qualidade, o que também afirma Joseph referindo-se ao concei-to de luz. É a beleza da arquitetura, mais ainda que o bilhete de transporte, que estimulao indivíduo a se diferenciar da multidão, formando um público civil, exigente em relaçãoa ele próprio e em relação aos outros. O arquiteto não negligencia a função, as linhas decontrole que devem ser passadas, as zonas de espera que devem ser respeitadas. Mas, o queé muito importante, não é a função, o serviço de terceiros, que dita a forma; é o meio am-biente paisagístico e cultural no qual se insere o edifício. Este é concebido como “um es-paço de espera”, um lugar de imobilidade imperceptível no qual o movimento se inter-rompe e retoma, no qual o viajante deveria poder se confrontar com sua angústia,

A N N E Q U E R R I E N

109R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

7 I. Joseph (dir.), L’espacedu public, Les compétencesdu citadin, Colloque d’Arc etSenans, 8-9-10 de novem-bro de 1990, Éditions Re-cherches – Plan Urbain,1991.

8 I. Joseph (dir.), Prendreplace, Espace public et cul-ture démocratique, Colloquede Cerisy, Paris, Éditions Re-cherches – Plan Urbain,1995.

9 I. Joseph, Météor, Les mé-tamorphoses du métro, Pa-ris, Economica, 2004, p.51.

10 P. Andreu, J’ai fait beau-coup d’aérogares, Les des-sins et les mots, Paris, Des-cartes et Compagnie, 1998.

Page 107: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

confrontação indispensável à sua transformação em indivíduo membro de um público,confrontação que proíbe a banalização mercantil crescente do espaço de transporte. À di-ferença de outros arquitetos que fazem fotografar seus prédios vazios de usuários, vistoscomo os que poluem, para Paul Andreu, é o movimento e as cores dos passageiros quedão vida à obra, que dão forma ao prédio de seus sonhos, um prédio no qual os acasossão acolhidos e combinados de maneira indissociável, sem hierarquia, sem composição deconjunto que rejeitaria suas aleatoriedades como outras tantas tarefas. Como o pólo deintegração entre transportes terrestres, a aerogare é um lugar de interconexão onde as ve-locidades diferentes anulam-se em pontos singulares. Os lugares de espera e de encontro,as estações, lá onde o tempo não tem evento, ou é pontuado de microeventos.

Henri Gaudin, o outro arquiteto de que Joseph gostava, interessa-se igualmente pe-los pontos de intensidade no cruzamento das passagens e trajetórias, pelo que se faz per-tencer a um espaço comum ainda que permanecendo indivíduos, seres livres e não desti-nados aos mesmos percursos.11 A arquitetura refere-se à harmonia das multiplicidades, nãocomo uma orquestração imposta que subsistirá na ruína, mas como uma possibilidade ofe-recida aos vivos. “Os prédios produzem um espaço comum inteligível que nos intervalospertence a cada um”, diz Henri Gaudin. Trata-se de “reduzir a exterioridade incompreen-sível da materialidade, arranjando os limites, traçando caminhos”, dispondo as coisas, afas-tando-as, reagrupando-as. Para Henri Gaudin a arquitetura deve fazer que a fachada per-tença ao outro e não ao um, preserve a face do outro, no dizer de Joseph, o respeite, nalinguagem quotidiana. “Neste limite onde o muro termina, saudamos aquele que chega”,praticamos a hospitalidade. Henri Gaudin fabrica clareiras, como a desenhada na capa dolivro coletivo Prendre Place, como aquelas onde se acomodam os esportistas no estádioCharléty em Paris, ou os objetos vindos da Ásia para o Museu Guimet de Paris.

Com estes arquitetos, como com o trabalho de Isaac Joseph, bem como com mui-tos trabalhos artísticos contemporâneos, saímos de uma cenografia da representação, pa-ra fazer a construção do público, a construção de um evento infinitamente repetido à me-dida que o público acrescenta seus ingredientes. Para o conceituador trata-se de enquadraras perspectivas e o lugar da ação com suas dimensões conhecidas, mas também uma gran-de parte de desconhecido, como sublinha Paul Andreu a propósito das extensões rápidasdos aeroportos. É preciso recortar o espaço, organizar as séries de seqüências, os percur-sos possíveis. O espaço arquitetural trata então da aproximação, dos limites, das saídas,do confronto com os grandes dados sensíveis como a sombra, a luz, o som, a cor. ParaIsaac Joseph, o espaço deve ser considerado ativo, ser concebido, expor qualidades sensí-veis. Nos transportes coletivos assim como na rua, trata-se de gerenciar redes de pessoasimersas em culturas diferentes graças a uma cultura profissional e técnica cujo quadro ar-quitetural deve facilitar a legibilidade, a capacidade de localização. É essa cultura que de-ve ser exposta, como os objetos asiáticos no museu, para permitir aos viajantes tornarem-se públicos, indivíduos separados por intervalos, diferentes num espaço comum. Cuidarda rua requer considerar as rupturas sociais e culturais como habitáveis, organizáveis, enão buscar um acordo, além do mais impossível, nas semelhanças morfológicas. Esta ha-bitabilidade, o único senso comum possível, só pode provir de um esforço de pensamen-to, de construção.

O L O U C O – O P A S S A N T E – O A G E N T E – O C O N C E I T U A D O R

110 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

11 H. Gaudin, “Seuil et To-tem”, in I. Joseph (dir.), Pren-dre Place, Paris, ÉditionsRecherches – Plan Urbain,1995.

Page 108: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

A POLÍTICA DE ISAAC JOSEPH

A microssociologia de Joseph é profundamente política no seu princípio básico, a re-ciprocidade de perspectivas como forma de troca, a possibilidade de olhar as coisas doponto de vista do outro. “Qual é a consistência do como se que nos faz iguais em huma-nidade?”, diz ele. Não é preciso um modelo, um símbolo de uma nova cidadania ou deuma nova humanidade, como propuseram inúmeros regimes caídos sob o peso de suastorturas e idiotices. A dimensão do desejo de lugar comum existe na tensão entre proxi-midade espacial e distanciamento social; a dimensão da repulsão tão evidenciada pelos so-ciólogos significa desejo de uma outra agregação com este lugar comum. A atividade po-lítica é uma réplica no correr das coisas, um ataque que se distancia da simplesco-presença, designa um sentido de humanidade que não pode ser o do retraimento. Acidade deve ser acessível, o que implica que ela não seja organizada em comunidade, queela não seja descrita como formada por comunidades por aqueles que a explicam, e queentão esses últimos escolham outras coordenadas, tomem a distância que caracteriza opassante: estar presente sem aderir, manter sua mobilidade.

Joseph insiste em todas as descrições do trabalho do agente na dimensão de tranqüi-lidade que este dá a sua intervenção. É neste ponto que, apesar de suas denegações, elepratica bem um interacionismo que se pode qualificar como simbólico, sustentado pelomodelo de igualdade democrática como símbolo da co-presença feliz. Para ele a democra-cia é um modo de vida mais que uma forma de governo – porque ela comporta inúme-ros excluídos que no entanto participam do modo de vida. Formamos juntos uma comu-nidade aberta de exploradores, caracterizada pela presunção de igualdade de julgamentoentre todos os seus membros, apesar da pluralidade de linguagens. E somos todos filiadosao durável pelo motor da exploração que é a necessidade de chegar a um acordo nos en-contros. Desta multiplicidade de acontecimentos produzimos um plano de consistênciasobre o qual se segue a criação contínua de nosso modo de vida democrático.

A grande cidade é o teatro privilegiado desta criação porque ela organiza, mais quequalquer outro lugar, o que Joseph chama de “a vulnerabilidade estrutural do laço social”,a exigência permanente para todos e qualquer um de trabalhar nela, de reconfigurá-la.

Concluirei com uma frase de Joseph: “O acordo buscado pelo pesquisador com o queele observa é ao mesmo tempo político e prático: não ocorre um ideal de familiaridade, enão se trata de um estado de imersão ou de integração, mas de um desejo e uma crença,um movimento dois em um do pensamento integrado, do pensamento cioso de sua impo-tência, incapaz de se constituir em generalidade mobilizando os vocabulários disponíveis”.12

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREU, P. J’ai fait beaucoup d’aérogares, Les dessins et les mots. Paris: Descartes et Com-pagnie, 1998.

FRITSCH, P.; JOSEPH, I.; BATTEGAY, A. Disciplines à domicile. Paris: Éditions Re-cherches, 1977.

GAUDIN, H. Seuil et Totem. In: JOSEPH, I. (Dir.) Prendre Place. Paris: Éditions Re-cherches – Plan Urbain, 1995.

JEANNOT, G., JOSEPH, I. Métiers du public: les compétences de l’agent et l’espace del’usager. Editions, 1995.

A N N E Q U E R R I E N

111R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

12 I. Joseph, La ville sansqualités, La Tour d’Aygues,Éditions de l’Aube, 1998.

Anne Querrien é editorados Annales de la Recher-che Urbaine. E-mail: anne.que r r i en@equ ipemen t .gouv.fr

Artigo recebido em abril de2004 e aceito para publica-ção em maio de 2004.

Page 109: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

JOSEPH, I. Le passant considérable. Essai sur la dispersion de l’espace public. Sociologie desFormes. Paris: Librairie des Méridiens, 1984.

_______. (Dir) L’espace du public, Les compétences du citadin. Colloque d’Arc et Senans,8-9-10 Novembre 1990. Éditions Recherches – Plan Urbain, 1991.

_______. (Dir.) Prendre place. Espace public et culture démocratique. Colloque de Cerisy.Paris: Éditions Recherches – Plan Urbain, 1995.

JOSEPH, I. La relation de service et les urgences psychiatriques. Les Annales de la Recher-che Urbaine, n.73, p.5-13, 1996.

_______. La ville sans qualités. La Tour d’Aygues: Éditions de l’Aube, 1998._______. Météor, Les métamorphoes du métro. Paris: Economica, 2004. _______. Les cahiers de l’immuable: 1. Voix et voir. Paris: Éditions Recherches, n.18, abril

1975._______. Les cahiers de l’immuable: 2. Dérives. Paris: Éditions Recherches, n.20, dez.

1975._______. Les cahiers de l’immuable: Au défaut du langage. Paris: Éditions Recherches, nov.

1976.

A B S T R A C T Isaac Joseph was professor of Sociology at the University of Paris X– Nanterre. Specialist on the school of symbolic interactionism, he also reintroduced in Francethe Chicago School of Urban Sociology and is well known as translator of Goffmann,Gumperz and Hannerz. He wrote a book about the microsociology of Erving Goffmann,published in Brazil in 1998 by FGV Press. He is also known for his works on urban appliedsociology, published in Les Annales de la Recherche Urbaine. He developed an importantdialogue with Brazilian researchers from UFF, USP e UFRJ, on issues like the scales ofpluralism and the forms of civic engagement in urban public spaces. Isaac Joseph died onFebruary 2004. In the words of his friend Y. Grafmeyer, Joseph questioned the illusion thatmakes think that the order of facts is only perceptible if we leave its essentially irregular detailsto reach sufficient height to get a panoramic view of the big wholes. He had, although themilitant and intellectual conviction that this detailed attention spent to ordinary civilities isalso rich in important political challenges. This article discusses the way Isaac Joseph treatsthe interactions situated in the spaces of madness, passing, agency and conceptualizing.

K E Y W O R D S Isaac Joseph; interactionism; urban microsociology.

O L O U C O – O P A S S A N T E – O A G E N T E – O C O N C E I T U A D O R

112 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 110: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

MEMÓRIADOS PRESIDENTES

Page 111: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Faço uso da palavra memória para me expressarde forma mais livre ao recordar os dois anos de Presi-dência da Anpur. Experiência rica sob todos os aspec-tos, tanto no plano pessoal como no profissional. Des-de o início foi um projeto coletivo e para isso contoucom o envolvimento e a colaboração dos colegas de di-retoria. Refiro-me em especial a Suzana Pasternak quecomo secretária geral compartilhou as atividades coti-dianas, a definição e a execução das estratégias de ges-tão; e a Sarah Feldman, diretora em São Paulo comquem contei em todos os momentos de tomada de de-cisão. Foi fundamental o apoio dos colegas de direto-ria em outros Estados: Leila Christina Dias, RainerRandolph e Heloisa Soares de Moura Costa, que coor-denou a organização do X Encontro Nacional, um su-cesso de público e de crítica. Contamos com a eficiên-cia, a organização e o alto astral de Raquel Martins,nossa secretária executiva.

Criada há apenas vinte anos, a Anpur desde entãoampliou significativamente o número e o campo disci-plinar das instituições associadas e filiadas. Em 2003,reunia 36 programas nas áreas de planejamento urba-no, arquitetura e urbanismo, geografia, economia, ad-ministração pública, sociologia e direito. É uma asso-ciação pluridisciplinar e aberta. Tem como objetivosincentivar o ensino e a pesquisa no âmbito dos estudosurbanos e regionais; contribuir para o entendimentodos problemas e o equacionamento de propostas de in-tervenção nestes campos, e promover; através da reali-zação de reuniões científicas e publicações, a divulga-ção desta produção, o intercâmbio de informações e atroca de experiências.

Neste período pude perceber a enorme impor-tância e a potencialidade da atuação da Anpur tantono campo do ensino e da pesquisa como na formula-

ção de políticas urbanas e regionais. Esta importânciaestá estreitamente vinculada a um traço formador docampo de estudos urbanos e regionais em que a du-pla inserção dos pesquisadores no ensino e pesquisa ena definição e implementação de políticas é uma ca-racterística histórica e uma realidade cada vez maisfreqüente.

Duas dinâmicas definiram em anos recentes os ru-mos da Associação: o novo quadro político institucionale a importância crescente da pós-graduação no Brasil.

ESTATUTO DA CIDADE, UMNOVO MARCO INSTITUCIONAL

Uma das primeiras atividades, quando assumi apresidência, foi representar a Associação na promulga-ção do Estatuto da Cidade. Esta lei, resultado de umlongo processo de reivindicações da sociedade em quea participação de movimentos sociais urbanos teve umpapel decisivo, estabeleceu um novo quadro institucio-nal para a atuação política nas cidades brasileiras.

A presença neste evento respondia também a umademanda antiga dos programas para que a Anpur exer-cesse um papel mais ativo na discussão da agenda depolíticas urbanas.

Procuramos estabelecer esta relação de interlocu-ção com o recém-criado Ministério das Cidades. Emmarço de 2003 participamos em Brasília dos eventospreparatórios para a realização da Conferência Nacionaldas Cidades. Convidada, a Anpur foi eleita membro ti-tular representante das instituições acadêmicas na Co-missão Organizadora. O segmento sociedades acadêmi-cas e científicas, ONGs e associações profissionais teve aseguinte composição: IAB, FNRU, Anpur, FNSA, Abes,

115

ANPURCONSOLIDAÇÃO DO PAPEL DE ARTICULAÇÃO ACADÊMICA

E DE FÓRUM DE DEBATE DE POLÍTICAS URBANAS E REGIONAIS

2001-2003

M A R I A C R I S T I N A D A S I L V A L E M E

Page 112: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

como membros titulares, e Abea, Abong, Antac, Ibame Polis, como membros suplentes.

A composição geral da Comissão contou com re-presentantes do governo (Executivo e Legislativo), em-presários, trabalhadores, movimentos populares, socie-dades acadêmicas e científicas, ONGs e associaçõesprofissionais. Uma das discussões mais difíceis naque-le momento foi a proporcionalidade da representaçãodestes segmentos no Conselho Nacional das Cidades.Realizaram-se conferências municipais e estaduais co-mo etapas preparatórias à nacional e à formação doConselho.

Participar deste processo significa ter voz e votona discussão de planos e políticas urbanas, representauma possibilidade de influir nos rumos do Brasil urba-no. É uma rara e importante atividade de participaçãoa ser construída e mantida de forma a obter resultadosconcretos. É necessário refletir sobre o modelo adota-do pelo governo de formação de conselhos e sua formade funcionamento. A Anpur é um fórum privilegiadopara se levar esta discussão e propor um novo patamarde inclusão social na formulação de políticas urbanas.

ARTICULAÇÃO INSTITUCIONALE ACADÊMICA

O crescimento no número de programas de pós-graduação que hoje são filiados e associados à Anpur éresultado da ampliação da pós-graduação no País, masreflete também o papel estratégico que vem sendo con-ferido à Associação como articuladora e representantedos interesses dos programas.

Como atividade intermediária – entre os doisencontros nacionais – a diretoria, coordenada por Su-zana Pasternak, realizou o Workshop de Avaliação doEnsino e Pesquisa em Estudos Urbanos e Regionais.As questões priorizadas para a discussão tiveram di-versos níveis de abrangência, combinando teoria eprática. Foram colocadas inquietações sobre o papeldo ensino e da pesquisa, sobre política de fomento àpesquisa e sobre a questão da avaliação. O mapea-mento prévio das principais demandas de alguns pro-gramas associados nos ajudou a organizar o workshop.A pauta contemplou os seguintes temas: ensino pú-blico e privado e formação acadêmica e formaçãoprofissionalizante.

Percebe-se que a diversidade das instituições quecompõem a pós-graduação na área reunida pela Anpurtraz uma riqueza de visões e de posturas. “Estudos ur-banos e regionais” são os termos comumente utilizadoscomo referência ao conhecimento gerado por áreas liga-das, principalmente, às ciências humanas e ciências so-ciais aplicadas. Constitui-se, tanto como objeto de es-tudo de um programa específico, como muitas vezesdispersa-se por distintos departamentos acadêmicos.

Os objetivos dos programas ligados aos estudosurbanos e regionais são também distintos: em algunscasos, como nos cursos de economia, sociologia e geo-grafia, tanto o objeto como o objetivo dos programasé o entendimento de processos econômicos e sociaisque estruturam as cidades e as regiões e o estudo dosdiferentes arranjos institucionais que intervém nestesprocessos. Em outros, como nos programas de plane-jamento urbano e regional, de arquitetura e urbanismoe de administração pública objetiva-se o entendimentode tais processos, ao mesmo tempo que se procura ca-pacitar os estudantes a atuar de forma propositiva.

Esta especificidade dos campos de conhecimentoe atuação profissional confere desafios importantes pa-ra os programas de pós-graduação e cria uma interro-gação sobre os contornos e conteúdos nas áreas de en-sino e pesquisa.

Participaram deste workshop coordenadores ourepresentantes dos 36 programas associados ou filiadosà Anpur, além de representantes de outras associaçõescientíficas. A sessão final do workshop contou com aparticipação de responsáveis pela direção de órgãos defomento ao ensino e pesquisa no CNPq (professora Ali-ce Rangel de Paiva Abreu), na Finep (professora MariaLucia Horta) e na Capes (professor Adalberto Vas-quez). Procurava-se, assim, estabelecer uma nova for-ma de interlocução, mais direta, com as agências de fo-mento. O workshop foi uma oportunidade paraapresentar o perfil acadêmico dos programas, as reali-zações e formular demandas. Ficou evidente a impor-tância da Associação como esfera intermediária e re-presentante de interesses comuns.

Considero que este pode e deve ser um papel daAnpur como representante dos programas, no dese-nho de tipos e formas de financiamento, na análise dosistema de avaliação, sugerindo alternativas que nãocomprometam o resultado final de excelência que to-dos desejamos.

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4116

M E M Ó R I A

Page 113: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

Os papers de Wrana Panizzi, Linda Godim, Mau-ricio de Abreu, Philip Gunn e Ana Clara Torres Ribei-ro, que serviram de base às discussões do workshop, fo-ram publicados em dossier especial da Revista Brasileirade Estudos Urbanos e Regionais. As conclusões a respei-to do sistema de avaliação da pós-graduação da Capese do sistema de avaliação dos pesquisadores do CNPq fo-ram encaminhados aos responsáveis, a título de suges-tão da comunidade acadêmica.

Esta atividade – avaliação do ensino e pesquisa –revelou-se tão importante que foram organizadas duasmesas redondas no Encontro Nacional. Uma aprofun-dou a reflexão sobre pesquisa com um balanço da pro-dução científica das principais áreas temáticas aborda-das nos encontros nacionais; e a outra, com a presençadas instituições de fomento, deu continuidade aos te-mas abordados no workshop.

A INTERNACIONALIZAÇÃODO ENSINO E DA PESQUISA

A Anpur faz parte do GPEAN – Global PlanningEducation Association Network, uma rede internacio-nal de associações de ensino de pós-graduação em pla-nejamento urbano e regional. O objetivo inicial na for-mação desta rede foi articular a comunicação entre ascomunidades acadêmicas e promover a qualidade doensino e da pesquisa. A iniciativa de a Anpur integraresta rede foi de Carlos Vainer, que articulou a nossaparticipação no primeiro congresso internacional, em2001, em Shangai (I World Planning Schools Con-gress), quando foi organizado o GPEAN. A nosso pedido elecontinuou a representar a Anpur na organização do se-gundo congresso, previsto para 2006 na cidade do Mé-xico. A experiência e habilidade política de Carlos temsido muito importante nos debates conduzidos entreos representantes das associações, evitando assimetriasprováveis entre associações de países com poder econô-mico tão diferente.

São nove associações, algumas de âmbito nacio-nal: como a Anpur, a Association of Canadian Univer-sity Planning Programs (Acupp) e a Association ofCollegiate Schools of Planning (ACSP/USA); outrascontinentais: como Association of African PlanningSchools (AAPS); Association for the Development ofPlanning Education and Research (Aperau); Associa-

tion of European Schools of Planning (Aesop); Asso-ciation of Latin-American Schools of Urbanism andPlanning (Aleup); Asian Planning Schools Association(Apsa); Australian and New Zealand Association ofPlanning Schools (Anzaps).

A meu ver a diversidade cultural, política e econô-mica dos países de origem das associações constitui omérito e o grande potencial desta rede. A comunicaçãoé feita através de um site que divulga os eventos de ca-da associação. Permite o intercâmbio de experiências ea interlocução de temas atuais e polêmicos. Na reuniãoorganizada no X Encontro Nacional da Anpur com apresença da maioria das Associações iniciou-se um de-bate sobre a questão da creditação internacional, temaque já estava em pauta nas nossas reuniões.

No workshop de avaliação do ensino e pesquisa al-guns destes temas foram discutidos: Tânia Fischer ob-servou a tendência a múltiplas avaliações que estavamsendo critério de classificação para as instituições deensino, sobrepondo-se inclusive a instâncias nacionais,no nosso caso a da Capes; e Wrana Panizzi já alertavapara as pressões existentes no âmbito da OrganizaçãoMundial do Comércio propondo a regulamentação daeducação superior como serviço comercial.

Um produto importante da rede é a publicaçãode um livro reunindo os melhores artigos indicadospor cada associação. Para a Anpur esta indicação foiobjeto de um concurso nacional de artigos publicadosem periódicos científicos. O prêmio recebeu o nomede Milton Santos, uma homenagem ao grande geógra-fo que dirigiu a Associação em 1992, e foi atribuído aHenri Acselrad pelo artigo “O zoneamento ecológico-econômico da Amazônia e o panoptismo imperfeito”.

CONTINUIDADE, UM TRAÇO FORTE

A continuidade é um traço forte na direção daAnpur. Iniciativas de uma diretoria são assumidas e le-vadas adiante pelas que se seguem. Recordo, por exem-plo, que a proposta de publicar uma revista era umaidéia antiga, levantada desde o momento da criação daAssociação, conforme o relato de Ricardo Farret.

Na gestão de Carlos Vainer esta discussão assu-miu formato mais concreto em dois seminários comeditores de revistas científicas. O primeiro, nacional,

117R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

M A R I A C R I S T I N A D A S I L V A L E M E

Page 114: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

seguido por outro, latino-americano, ajudou na defini-ção do perfil editorial. A Revista Brasileira de EstudosUrbanos e Regionais foi lançada a seguir quando Nor-ma Lacerda estava à frente da Associação e se consoli-dou na gestão de Flora Gonçalves.

Importantes medidas foram tomadas por MarcoAurélio Filgueiras Gomes como editor responsável apartir de 2001. Manter a periodicidade foi a primeira.Corresponder às normas editoriais e obter o financia-mento do CNPq foi outra conquista importante. Re-presenta o reconhecimento da qualidade da revista ecaminha para a sustentação financeira. Hoje, ela estáincluída e muito bem avaliada no Qualis dos comitêsdas áreas de Planejamento Urbano, Arquitetura e Ur-banismo, Geografia e Sociologia.

A publicação do livro “Regiões e cidades, cidadesnas regiões” é também uma continuidade de atividadeorganizada em gestão anterior. Maria Flora Gonçalves,Antônio Carlos Galvão e Carlos Brandão propuseram,por um lado, a abordagem integrada das questões urba-na e regional e, por outro, uma avaliação da concepção dapolítica de desenvolvimento regional do governo federalidealizada como instrumento de planejamento das açõese de investimentos. Este desafio se concretizou na rea-lização de seis seminários regionais e os resultados forampublicados em parceria pela Anpur e a editora da Unesp.

O livro contou com a participação de 42 autorescom uma expressiva representação regional e proce-dentes dos diferentes campos disciplinares que com-põem a Associação. O resultado é uma visão da com-plexa diversidade do Brasil hoje. O livro enfrenta odebate atual dos processos econômicos e sociais que es-tão estruturando as cidades brasileiras e configurandoa realidade urbana e regional.

Este foi apenas o início de uma parceria com aEditora da Unesp. Acertamos também a co-edição dapublicação da tese de doutorado de Rose Compans, “Aemergência do empreendedorismo público urbano nacidade do Rio de Janeiro” e da dissertação de mestradode Clarissa da Costa Monteiro, “A cidade contemporâ-nea entre a tábula rasa e a preservação: cenários para oPorto do Rio”, vencedoras do 3º Prêmio Brasileiro Po-lítica e Planejamento Urbano e Regional.

O site projetado por Renato Mello foi mantido eatualizado como veículo importante de comunicaçãodas atividades programadas pela Anpur e pelas institui-ções associadas.

O X ENCONTRO NACIONALNAS ENCRUZILHADAS DO PLANEJAMENTO

Os encontros têm sido sempre um ponto alto natrajetória da Associação, quando se reúne a comunida-de para expor e discutir a produção acadêmica da área.O X ENA teve mais de quinhentos participantes doBrasil e convidados latino-americanos, dos EstadosUnidos, Europa, África, Oceania e Ásia. Como disseno início foi um grande sucesso e o grande mérito ca-be à Comissão Organizadora coordenada por Heloisade Moura Costa e composta por Roberto Monte-Mór,Geraldo Magela Costa e Jupira Mendonça.

A palestra de Francisco de Oliveira abriu o En-contro de forma brilhante e provocando polêmica.Com o tema “O Estado e a exceção ou o Estado de Ex-ceção”, abordou uma questão central nos nossos estu-dos, a relação entre Estado e urbano, atualizou temaque havia analisado nos meados da década de 1980. Asatividades foram intensas durante quatro dias, commesas redondas pela manhã, sessões temáticas à tarde esessões livres à noite.

A Comissão Organizadora em sintonia com a dire-toria procurou pautar as mesas redondas com questõesteóricas e conceituais que mobilizam os estudos da co-munidade científica e questões de relações institucionaisque movimentaram a Anpur nestes dois anos.

Na perspectiva mais acadêmica a primeira mesaprocurou fazer um balanço do estado das artes na área.Organizada com papers encomendados, apresentou umbalanço teórico, um balanço da produção científica daAnpur e uma reflexão sobre novos caminhos ou pers-pectivas. Foram organizadas mesas sobre instrumentose estratégias de gestão urbana; sobre perspectivas de fi-nanciamento das políticas públicas urbanas, sobre asnovas perspectivas regionais e sobre questões intra-ur-banas – as tensões entre centro e periferia.

As relações institucionais da Anpur foram trata-das na construção de uma agenda de cooperação inter-nacional de ensino e pesquisa com a participação demembros do GPEAN e rede de pesquisadores como aRed Ibero Americana Investigadores sobre Globaliza-ção e Território e da Associação Colombiana de Inves-tigadores Urbanos e Regionais. Organizamos tambémuma sessão especial, em continuidade ao workshop deavaliação, para discutir com os diretores das agências

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4118

M E M Ó R I A

Page 115: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

de fomento uma agenda de ensino e pesquisa em pla-nejamento urbano e regional.

Os Encontros se constituem, também, como omomento de início e término de cada gestão. Para nósfoi um momento importante de passagem. Assumi-ram, a nova diretoria, Heloisa de Moura Costa, na pre-sidência, Roberto Monte-Mór, na secretaria geral, e Ju-pira Mendonça, Ana Clara Torres Ribeiro e AnaFernandes como diretoras. É uma boa prática; a gestãotermina no ponto alto, encontrando os amigos e todosaqueles que colaboraram durante dois anos para a am-pliação e consolidação institucional da Anpur.

119R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

M A R I A C R I S T I N A D A S I L V A L E M E

Page 116: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

RESENHAS

Page 117: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

DARK AGE AHEADJane JacobsNew York: Random House, 2004. 240p.

Lilian Fessler Vaz (Prourb/FAU/UFRJ)

Em 1961 Jane Jacobs publicou Morte e vida dasgrandes cidades norte-americanas, abalando os princí-pios do urbanismo e do planejamento urbano moder-no. Aos 88 anos, Jacobs volta à cena com um livro po-lêmico e extremamente atual. Com sua atitudecorajosa e enfoque crítico, utilizando-se de uma lin-guagem clara e de conceitos compreensíveis, a autoracriou uma obra acessível a um vasto público interessa-do em questões contemporâneas. Dark Age Ahead nosalerta que a cultura norte americana, e, por extensão, acultura ocidental, se encontra no limiar de uma novaIdade das Trevas.

Muitos povos neste planeta, e não apenas os queconstituíram o império romano, assistiram ao declíniode suas culturas e ao mergulho em uma Idade das Tre-vas. Consta que esta fase é anunciada pelos quatro ca-valeiros do apocalipse – a fome, a guerra, a peste e amorte, aos quais Jane Jacobs acrescenta mais um: o es-quecimento. Com a decadência da cultura e a perda dememória, ou melhor, com a amnésia em massa, os sa-beres e os fazeres dos povos desaparecem. E o que seperde, não se recupera mais.

Muitos países procuram preservar suas culturas.Registram e arquivam imenso volume de dados sobreas culturas, através dos mais diversos meios – livros, fo-tografias, filmes, discos, ou outros, em ambientes fe-chados e protegidos, buscando assegurar a sua perma-nência. Mas a sensação de segurança assim obtida éfalsa: as culturas são vivas e complexas, se transmiteme são assimiladas essencialmente através da palavra fa-lada, do exemplo observado, da experiência vivida, daeducação recebida.

A partir destas considerações iniciais, Jacobsaponta indícios das trevas que se avizinham. Emboraela não faça referências específicas ao mal-estar da pós-modernidade, à desumana polarização social, à cres-cente violência urbana, ou à degradação do meio am-biente, estas percepções da contemporaneidadepermeiam todo o livro. Para a autora, os sinais da de-cadência podem ser percebidos em cinco pilares sobreos quais se apóia a cultura norte-americana: comunida-

de e família, educação superior, ciência e tecnologia,tributação e governo, e auto-regulação profissional. Adegradação de cada um destes pilares é analisada e dis-cutida em um capítulo específico.

Apesar destes pilares não serem, aparentemente,temas dos estudos urbanos, a argumentação se desen-volve essencialmente em torno das transformações doespaço e da vida urbana, como no segundo capítulo,sobre a dissolução da família e da comunidade, e noquarto capítulo, sobre o abandono da ciência. Vale apena observar mais detidamente estes pontos.

O processo de degradação destas duas esferas davida humana – família e comunidade – é paralelo aoaumento crescente do custo da habitação e das dificul-dades de manutenção de uma moradia. Desde os anos30, nos Estados Unidos e no Canadá, a renda média deuma família era suficiente para pagar o custo da com-pra de uma casa ou o aluguel de um apartamento. Mas,a partir dos anos 70, as estatísticas mostravam que ape-nas 10% das famílias dispunham de renda para a com-pra de uma casa “média”. Os 90% restantes adotavamdiferentes meios para reduzir as despesas domésticas eaumentar a renda familiar, sendo o principal, lançar asmães e as esposas no mercado de trabalho. Mas as des-pesas domésticas aumentaram quando uma nova ne-cessidade se impôs: o automóvel, devido ao declínio oudesaparecimento dos transportes públicos nos subúr-bios. Nas cidades que se renovavam, e nos novos subúr-bios, a distância entre o local de moradia e de trabalhose ampliava crescentemente, obrigando as famílias a seutilizarem do automóvel não somente para o trabalhomas para os mais diversos deslocamentos.

Segundo Jacobs, o maior destruidor das comuni-dades americanas não foram nem as drogas nem a te-levisão, mas o automóvel. A modernização por meioda renovação urbana destruiu comunidades ao arrasarbairros antigos para a passagem de highways e express-ways. Estes, por sua vez, induziam a expansão, com aconstrução de subúrbios que se alternavam com shop-ping centers. Mas poucas foram as comunidades novasque se formavam, porque junto com a eliminação dasantigas comunidades desaparecia também a memóriado que haviam sido. Além disso, o espaço público jánão propiciava mais o encontro de pessoas, um pontofundamental na formação e na ação das comunidades.Pois muitas das demandas das populações são providaspelas comunidades, sendo as mais importantes aquelas

123R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

Page 118: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

totalmente intangíveis e informais, e que respondem ànecessidade de contatos pessoais, de pertencimento agrupos e redes, de comunicação com o outro.

O impulso decisivo para este processo destruidorfoi dado através dos persistentes ataques corporativosaos sistemas de transportes públicos, uma estratégiacomandada pela General Motors. A autora cita aindanomes de políticos, de empresas e de construtores aorelatar passagens em cidades americanas que viram, nodecorrer de décadas, seus eficientes sistemas de bondes,e depois, de ônibus elétricos, serem desmantelados (e amemória de sua tecnologia, perdida), a favor da disse-minação irrestrita do automóvel particular.

Este ponto é retomado no quarto capítulo, emque Jacobs usa a engenharia de tráfego como um dosexemplos do abandono da ciência e da traição ao pen-samento científico. Apesar do seu status científico, aengenharia e a gestão do tráfego são responsáveis nãosomente pela destruição das comunidades, mas tam-bém pela poluição do meio ambiente e pelo desperdí-cio de tempo, de terra e de energia. Jacobs relata algunsmovimentos de resistência de moradores à construçãode expressways ou à modernização do tráfego em bair-ros residenciais, alegadas como necessidades inegáveis esoluções irrecusáveis. Mesmo depois de pesquisas te-rem mostrado que a construção de novas vias gera maistráfego, os engenheiros de tráfego mantiveram duran-te décadas o mesmo discurso, recusando-se a admitir asevidências. Da mesma maneira, nos outros exemplos,médicos e economistas não compreendiam fenômenosocorridos porque não conseguiam se livrar de pensa-mentos pré-elaborados nem ver o que a cidade e a vi-da dos seus moradores lhes apresentavam.

Os exemplos ilustram não somente os desvios dopensamento científico, mas também uma das conse-qüências da educação superior. Este é o tema do quar-to capítulo, que mostra como o ensino foi sendo me-nosprezado, e o credenciamento, privilegiado. Este é otermo usado pela autora para designar o sistema deprodução de títulos e diplomas, vistos como garantiade trabalho e segurança no futuro. A ilusão do plenoemprego incentivou a proliferação de escolas superio-res e de universidades; mas, à medida que o sistema deprodução de diplomas se expandia em quantidade, aeducação declinava em qualidade.

O quinto capítulo mostra que há uma crescentedesconexão entre os recursos recolhidos através de taxas

e impostos e o atendimento às necessidades dos seuspagadores. À medida que os princípios da subsidiarida-de e da responsabilidade fiscal eram abandonados, queas políticas neo-conservadoras, as parcerias público-pri-vadas, e as reformas econômicas demandadas pelo FMI

se impunham, novos critérios para a distribuição de re-cursos eram adotadas. A crescente desassociação entrepagamento de tributos e o seu retorno como provisãodas demandas da população é analisada no caso cana-dense, refletindo-se na degradação da vida urbana,através do crescente encarecimento da moradia, da pro-liferação dos sem-teto, do agravamento da poluição, dadecadência dos mais diversos serviços públicos. Alémda irresponsabilidade dos governos, Jacobs critica a ir-responsabilidade de algumas categorias profissionais,como os da área contábil, tema do sexto capítulo.

O tema da decadência de uma cultura permiteinúmeras abordagens, a partir dos mais variados aspec-tos. Escolher a ruína dos cinco pilares da cultura nor-te-americana é certamente um enfoque ousado que da-rá margem a críticas, como a de que as transformaçõesapontadas não necessariamente levam à uma nova Ida-de das Trevas. Mas, no que diz respeito à cidade, à vi-da urbana e à cultura urbana, o olhar e a leitura de Ja-ne Jacobs é fundamental para todos que se interessampelos estudos urbanos.

É justamente para este segmento de leitores queuma outra leitura se destaca: uma crítica vigorosa aomodo de urbanização norte-americano, ao sprawl, e,por extensão, à cidade difusa, suburbana, genérica.Como o objeto privilegiado de observação de Jacobs éa cidade, e nela, o ponto mais crítico é a expansão su-burbana, suas causas e conseqüências, delineia-se umdiscurso contra esta modalidade urbana contemporâ-nea, que se explicita no sétimo capítulo, em que Jacobsindica como desfazer os círculos viciosos que alimen-tam este processo de expansão.

A crítica ao sprawl se apresenta habitualmenteconfrontando a cidade dispersa à cidade histórica, cen-tral, consolidada, apontando as vantagens desta sobreaquela. Apontam-se na cidade difusa a falta de histori-cidade, de identidade, de centralidade, de espaços efe-tivamente públicos, assim como a predominância dotransporte particular e o consumo excessivo do territó-rio, com a perda de espaços verdes. Novamente JaneJacobs surpreende com um discurso diferente, quemostra a formação dos subúrbios, os diferentes interes-

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4124

R E S E N H A

Page 119: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ses envolvidos neste processo, o modo como as açõesengendradas modificaram o espaço e o cotidiano daspopulações moradoras, seus corações e suas mentes.Percebendo e articulando o material e o simbólico,buscando elos e tecendo conexões, dando sentido a fa-tos, fenômenos e processos aparentemente díspares, aautora interpreta e explica tranformações da cidade eda cultura urbana.

Um novo marco da bibliografia sobre a cidade?Ou apenas um novo livro saudosista? Ingênuo? Pessi-mista? Superficial? Só com o tempo poderemos avaliaro valor do alerta de Jane Jacobs. E o tempo, ao menosdurante os 43 anos decorridos da publicação de Mortee vida das grandes cidades norte-americanas, só fez mos-trar a sensibilidade, a atualidade e o acerto do pensa-mento desta jornalista apaixonada pelas cidades.

DU CONTRE-POUVOIR. DE LA SUBJECTIVITÉ CONTESTATAIRE À LA CONSTRUCTION DE CONTRE-POUVOIRSMiguel Benasayag e Diego SztulwarkLa Découverte: Paris, 2000. 167p.

Marcelo Calazans (Ippur/UFRJ)

“Do contra-poder” surpreende por abordar aquestão da política e do poder, sem no entanto centrar-se no debate sobre o Estado. Na contra-corrente dasduas últimas décadas de desideologização da política,de sua transformação em estratégias partidárias demarketing e de sua tecnificação em planos de controlee gestão estatal, os autores retomam o debate do poderdesde a perspectiva da sociedade civil, de suas redes emovimentos sociais.

Deslocando-se pelo eixo Europa–América Latinae buscando afirmar um horizonte temporal pós 1980-1990, “Do contra-poder” articula mobilizações sociaisno México (zapatistas), no Brasil (sem-terra), na Ar-gentina (mães da Praça de Maio) e na Europa (Attac,Act Up, coletivos antiexpulsão etc.), percebendo nesteconjunto a emergência de uma “contra-ofensiva” e deuma “nova radicalidade” política.

A datação historiográfica talvez não correspondapor completo ao processo histórico singular em cadapaís e continente. Por exemplo: os anos 1980, nos paí-ses do Sul, vistos como período de “abertura política” e“esgotamento das ditaduras militares”, estariam maispróximos da experiência dos movimentos “libertários”dos anos 1960-1970 no Norte. Talvez nessa primeiradécada do século XXI, em Buenos Aires ou Brasília, aprática política não tenha se diferenciado da que vigo-rava nos anos 90. Talvez a “nova radicalidade” e a “con-tra-ofensiva” sejam ainda algo por vir, ao menos comogostariam os autores. Não importam tanto aqui as da-tas. Compreendemos bem o que querem dizer quandose referem aos anos 80 e 90 como “anos pós-revolucio-nários”, anos do “conformismo resignado” e do “neo-li-beralismo como horizonte intransponível”. De fato, ossentimentos de frustração e impotência política ganha-ram o cotidiano das sociedades ocidentais. Para além daprecisão das datas, as décadas de desmobilização socialatuaram na desconstrução de um mito histórico, da

125R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

R E S E N H A

Page 120: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

ciência e do progresso: “a convicção de que a humani-dade percorria um caminho, acidentado mas certo, quelevaria à sua auto-libertação e emancipação”.

Mas “Do contra-poder” é um livro para o “aqui-agora”. Seu movimento mais fundamental consiste no“des-centramento” da questão do poder de sua tradi-cional órbita estatal, repensando radicalmente o cará-ter estratégico das disputas por legislativos, executivose judiciários, quando desvinculadas de movimentos so-ciais de transformação social. Pretende-se assim pro-mover na política uma transmutação copernicana. Aluta política partidária, o viés institucional, a guerra deposições por dentro dos aparatos de Estado, a políticaformal representativa enfim, perdem o lugar até entãoocupado de centro da ação política. Segundo Benasa-yag e Sztulwark, a nova hipótese é: “que se pare de pen-sar a política sob o imperativo central da tomada dopoder”. Reivindicando a experiência histórica dos últi-mos 150 anos de lutas sociais, os autores desfocam a“tomada do poder” como “ponto de passagem obriga-tório” no processo de transformação da sociedade. “Is-so hoje se tornou secundário.” Hoje quer dizer após osgovernos social-democratas na Europa, a redemocrati-zação conservadora na América Latina, mas talvez pu-déssemos acrescentar: Nelson Mandela na África doSul e os primeiros sinais do governo Lula no Brasil.

O paradoxo do poder é que, justamente quandoatingido, a primeira percepção é do quanto não se po-de. Como assim? Então o Poder, de fato, não pode?! Eaqui um perigo emerge. Se o poder “não pode”, dissonão se deriva imediata e mecanicamente a necessidadede um total abandono das estratégias de Estado e dePoder pelos movimentos sociais. Como também não seautoriza um deslocamento radical em sentido ao mer-cado, como mecanismo de regulação, no afã de supe-rar a problematicidade intrínseca à política – estrutu-ralmente incerta, imprecisa, turbulenta, para oplanejamento da segurança das expectativas de investi-mento – em nome de uma pretensa neutralidade da“eficiência” do uso e manuseio de instrumentos de ges-tão. “Do contra-poder” não abdica do Estado e de suaresponsabilidade pública e dos direitos que deve garan-tir. O livro apenas reposiciona, na política, o papelfundamental das redes da sociedade civil, pouco abor-dadas e mesmo secundarizadas no horizonte analíticoque tudo subordina à matriz Estado x Mercado. Se-gundo os autores, o exercício do poder jamais poderia

ser descontextualizado do âmbito da sociedade civil epolítica, tal como aparece nas condições de “ajuste”,exigidas pelo Banco Mundial durante as décadas de1980 e 1990, quando se cunhou o conceito de “boagovernança”. Esta categoria, com freqüência aplicadaao urbano, integraria, na perspectiva do Banco, um re-ceituário administrativo autônomo, de corte estrita-mente gerencial, que permitiria disseminar modelos dedesenvolvimento e de ajuste estrutural supostamentesem interferir na autonomia dos Estados-nacionais pe-riféricos. Em sua crítica ao Estado e à Política, “Docontra-poder não celebra o mercado”.

O caminho adotado não é o do invertido, óbvioe simples binarismo Bem=Sociedade x Mal=Estado, oua mera substituição dos dois pelo Mercado. Os autoresfazem um percurso teórico por Gramsci, Foucault eprincipalmente Spinoza, para dar fundamentaçãoplausível ao paradoxo. O passo decisivo é uma separa-ção conceitual que se inicia no segundo capítulo, “Ges-tão e Política”, e se adensa no quarto capítulo, “Podere Potência”: “A gestão não é o que se opõe à política,mas o elemento, de alguma forma estático, que surgiuda luta dinâmica, da luta política”. E ainda: “O quehoje constitui um verdadeiro avanço, graças às expe-riências passadas, é a possibilidade de se estabelecer adiferença estrutural entre potência e poder, ou, em umnível mais superficial, entre política e gestão: a potên-cia – o movimento vivo e real desde a base – permitetransformações concretas na estrutura da sociedade e aqueda das estruturas e poderes do retrocesso, mas o po-der – como lugar e como prática – não tem a capaci-dade de transformar as coisas desde o alto”.

O fundamental neste debate é que na experiênciahistórica das “tomadas de poder”, seja por via revolucio-nária, seja por via eleitoral representativa, teve-se de li-dar com o paradoxo do poder sem potência e da gestãosem modelo. Para os autores, a Revolução Francesa foia única revolução política ocorrida no Ocidente Mo-derno, que transformou “de forma generalizada e irre-versível uma estrutura social”. E tratam de desconstruiro mito da tomada da Bastilha como referência princi-pal daquele processo histórico. Nos fatos históricos egeográficos do poder, a potência estaria sempre velada.

O poder também se “topologiza” desde o alto,quer dizer, se distribui territorialmente em planos mo-delares, instituindo um modo de organização espacialque atua tanto nas expectativas infra e inter-subjetivas,

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4126

R E S E N H A

Page 121: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

quanto nas estratégias espetaculares do macropoder.Neste sentido, o capitalismo do pós-guerra dividiu omundo em dois blocos; enquanto o neo-liberalismodos 80 e 90 separa os “territórios-fortaleza” e as “terrasde ninguém”. Dois mundos, dois valores: “Nos primei-ros, nada deve ocorrer, a segurança deve ser máxima:uma morte violenta por exemplo aí é sempre conside-rada notícia grave. Ao contrário, vinte mortes nas ter-ras de ninguém fazem parte da normalidade”.

“Do contra-poder” exige de cada qual uma “polí-tica” e uma “potência” relacionadas a cada situaçãoexistencial da vida cotidiana. A disputa na sociedadecivil impõe um novo tipo de “subjetividade revolucio-nária”, uma “nova radicalidade” que opere a dita “con-tra-ofensiva”. Otimistas, os autores já apontam algunsindícios dessa nova militância e anexam ao livro um“Manifesto da Rede de Resistência Alternativa”, umconjunto de aforismos com títulos bastante significati-vos como “Resistir é criar”; “Resistir à tristeza”; “Resis-tir não é desejar o poder”; “Resistir à serialização”, “Re-sistir sem mestres”, entre outros. E não se trata de umaresistência abstrata, em um plano apenas conceitual. Acontra-ofensiva é reivindicada como “ruptura com osmétodos tradicionais dos grupos políticos”. O impac-to de Chiapas (1994), quando forças zapatistas ocupa-ram a Vila de São Cristobal de las Casas. O Movimen-to dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra no Brasil, dasMães da Plaza de Mayo na Argentina e um conjuntode movimentos da sociedade civil européia são os indi-cadores da “nova radicalidade”. Não se contentammais em lutar “contra os excessos” do sistema capitalis-ta, nem se restringem a uma “política de tolerância”com o modelo de desenvolvimento. A nova militânciatambém não se legitima em nome de um novo mode-lo determinado, mas antes em nome da própria possi-bilidade e potência da “vida”.

Aqui no Brasil, na conjuntura aberta pelo gover-no do PT, o jurista Fábio Konder Comparato, em arti-go na imprensa, argumentou da necessidade de se orga-nizar um “contra-poder popular”, pois “as instituiçõespolíticas são incapazes de evitar e sancionar o abuso dopoder, criando com isso uma situação de geral irrespon-sabilidade dos órgãos públicos em todos os níveis”. Jo-sé Genoíno, presidente nacional do PT, respondeu co-mo se o foco do debate fosse apenas o governo Lula enão o próprio Estado republicano que aqui se cons-truiu. Para Comparato, a velha e tradicional forma re-

publicana do Estado, herdado da Iluminismo francês(Montesquieu), dividida nos três poderes, não condizcom a complexidade política das sociedades contempo-râneas. De fato, no obscurecer do Iluminismo, os trêspoderes não mais se limitam uns aos outros e, paraKonder, “o que está em causa é saber se somos capazesde criar um sistema de controle popular do funciona-mento dos órgãos estatais”.

Para os autores de “Do contra-poder”, uma “novaradicalidade” provém dos movimentos sociais e de suasnovas estratégias de intervenção política, estratégiasque não se centram na “tomada do Estado”. Esta novaradicalidade se instituiria desde a sociedade civil, desdea vida cotidiana das pessoas e seus grupos sociais. Nãose trataria mais de uma “militância de agenda”, quer di-zer, “de indivíduos que, entre outras atividades da vida,militam”. Trata-se do desenvolvimento concreto de no-vos espaços (casas, ateliês, escolas, ocupações de terra,etc) e modos de vida, impregnados de uma nova subje-tividade. Neste sentido, o encadeamento do que cha-mam de “contra-ofensiva” exigiria a superação das for-mas tradicionais da subjetividade serializada.

“Do contra-poder” aponta algumas das chavespara esta superação, mas alerta para a necessidade deuma importante perda, uma perda-ganho, quer dizer:“perder o modo de vida como indivíduos serializados,um modo de ser que nos forjou existencialmente e queé necessário abandonar: uma maneira de sentir, pensar,amar”. A liberdade é antes de tudo “existencial” e nãoapenas econômica ou política.

127R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

R E S E N H A

Page 122: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

DIVER CIDADE, TERRITÓRIOS ESTRANGEIROSCOMO TOPOGRAFIA DA ALTERIDADE EM SÃO PAULOMaura Pardini B. Véras São Paulo: Educ, 2003.

Maria do Rosário Rolfsen Salles (Universidade Anhembi Morumbi)

A leitura da cidade de São Paulo como metrópo-le contemporânea inserida no desenvolvimento globa-lizado do capitalismo mundial, suas implicações e con-seqüências sobre a reestruturação urbana, o emprego,o aumento do desemprego e da exclusão social, a pre-carização do trabalho, a segregação social, os conflitosétnicos e culturais e tantos outros aspectos que com-põem a cena urbana contemporânea são os termos queconstitui em apenas parte da abordagem teórica e me-todológica da cidade como, é proposta neste novo li-vro de Maura Pardini B. Véras, autora de outras publi-cações sobre o tema da cidade. A riqueza da propostaconsiste na busca das relações vividas, apreendidas pe-la memória dos estrangeiros em São Paulo, subjacen-tes ao fenômeno macro da globalização. É preciso queas especificidades próprias à cada cidade se expliciteme é nesse sentido que a compreensão da metrópolepaulista aparece como forma de entender seu lugar nanova divisão internacional do trabalho, na passagemde suas funções industriais para as financeiras e de ser-viços, na constituição de um terciário sofisticado etc.mas sobretudo através da sua formação complexa e ex-cludente, que evidenciará diferentes formas de identi-dade. A proposta então é entender a configuração deterritórios na cidade, seus componentes étnicos, cultu-rais e políticos, através da construção das relações dealteridade na metrópole.

Escrito originalmente como tese de livre-docênciadefendida na PUC/SP, intitulada Estrangeiros na metrópo-le: espacialização, trajetórias e redes de sociabilidade, a au-tora, neste livro, dá continuidade às preocupações quenortearam sua tese de doutorado sobre o bairro do Brás,em São Paulo, em que sua preocupação é a segregaçãosocial e a temática das desigualdades socioespaciais ou aquestão da alteridade e da topografia das diferenças.

De especial interesse, para os estudiosos da cida-de e das questões urbanas, em particular, o livro de

Maura Pardini Bicudo Véras é também uma importan-te contribuição à história da imigração em São Paulo eda presença dos estrangeiros e seus territórios na cida-de. A análise da distribuição dos imigrantes na cidade,é uma das maiores contribuições à construção de umahistória urbana de São Paulo.

O livro é organizado em quatro partes distintas earticuladas, em que se evidencia de diferentes maneirasuma visão da cidade de São Paulo, “metrópole global”ou cidade mundial, em que o paradigma da global city“representa um enclave de penetração do capitalismocentral, pólo de controle na nova rede territorial”(p.13), mas que, no entanto, esconde as especificida-des nacionais e regionais, que apontam para a necessi-dade de se entender suas identidades ou a “subjetivida-de do universo simbólico” subjacente à visão de SãoPaulo como cidade mundial, expressa pela significati-va presença dos grupos estrangeiros na metrópole e naorganização de seu território.

A contribuição do trabalho é então combinar ahistória social da imigração com a história urbana,identificando a localização de diferentes grupos nametrópole. O estrangeiro, apreendido em sua dupladimensão: as origens nacionais (pelos Censos), e pre-sença econômica, social e cultural, (pelas informaçõesda bibliografia, mas sobretudo pela recuperação atra-vés das entrevistas realizadas), além do migrante nacio-nal, são vistos na sua diversidade expressa no espaçourbano, na arquitetura, estilos de vida, formas de so-ciabilidade, redes de sociabilidade, enfim, na sua “ter-ritorialidade”, conceito desenvolvido pela autora e que,aliado à idéia de multiculturalidade, proporciona o de-bate sobre a alteridade e a convivência na metrópole.

O livro privilegia entre as presenças de gruposimigrantes mais significativos, a imigração italiana,mas não deixa de caracterizar os grupos étnicos maisimportantes. Assim, trabalha com os principais movi-mentos migratórios e suas marcas mais significativasna cidade (habitação, cultura, modos de vida, profis-sões e localização no espaço urbano de grupos de imi-grantes portugueses, japoneses, italianos e espanhóis),regatando a história pelo recurso à história oral e à me-mória da imigração italiana. Nesse processo algumasquestões são privilegiadas: resgatar as redes de sociabi-lidade como componente básico das identidades e daterritorialidade. Entender como as identidades se for-mam em relação às distinções entre grupos e, dessa

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4128

R E S E N H A

Page 123: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

forma, como se constituem os bairros (mistos e estig-matizados). Outra questão importante para qualquerestudioso do processo migratório é como se contra-põem antigas e novas levas migratórias. Dessa forma, éatravés dos depoimentos como fragmentos de históriasde vida pessoais que é possível se entender o social.

Na primeira parte do livro, intitulada “Algumasreferências significativas”, a autora apresenta os eixosprincipais da análise, em que os conceitos de territoria-lidade, alteridade, memória e representação, são discu-tidos da perspectiva da segregação socioespacial, da di-mensão política e da produção do espaço, que, emboracoletiva, leva à privatização e à discriminação étnico-cultural. Ou seja, a apropriação do espaço é fragmenta-da e os processos de desterritorialização ou desenraiza-mento próprios à imigração aprofundam novas formasde identificação, acabando por representar, ao lado daslutas pelos usos do espaço, novas formas de segregaçãoe hierarquização, separando e segregando bairros comfunções diferentes, como mostra a autora.

Se, por um lado, a globalização tende a homoge-neizar as diferenças, o que tem sido observado, por ou-tro, é a reafirmação das etnicidades ou das identidades.Dessa forma, a autora encontra o gancho para discutira alteridade nesse processo. A alteridade se constituinas relações sociais, mas está presente na subjetividadedas pessoas e se refere ao seu universo simbólico e aoimaginário passíveis de apreensão pelas “representa-ções”. Não há “alteridade” em geral, mas como expres-são de relações que, no caso das nacionalidades, seconstroem, também, a partir das representações deuma auto-imagem dos grupos. Isso supõe uma tensãopermanente entre grupos da sociedade local e de es-trangeiros. Enfim, através da vivência da imigraçãopode-se apreender esse fenômeno, como diz Abdel-malek Sayad, como “um fato social total”. Nas pala-vras da autora, “o itinerário do imigrante é tambémcaminho epistemológico que nos oportuniza falar dasociedade como um todo.” (p.36).

A segunda parte, “Resgatando a história”, fala so-bre as ondas migratórias, da transformação do “burgode estudantes” no século XIX à metrópole atual. Ressal-ta a presença imigrante na construção da cidade em di-ferentes períodos, num processo contínuo de loteamen-tos e espraiamento da malha urbana, a expansão dotransporte coletivo, a ocupação de áreas mais longín-quas, condições para que se desenvolvesse a indústria e

para que São Paulo se tornasse o epicentro de um novomodelo de acumulação no País. Esse processo permitiuque, já nos anos 50 e 60, a cidade apresentasse um sur-to de crescimento não previsto, 8,4 milhões de habi-tantes em 1980 e 9,5 milhões em 1991.

Nesse processo, desde a década de 1920, à imi-gração estrangeira somava-se o movimento interno demigração, que engrossaria os bairros operários habita-dos por estrangeiros e formaria novos, responsáveis pe-la expansão da periferia na sua forma atual e das fave-las e loteamentos “clandestinos”, produzindo-se, porefeito conjunto com as políticas urbanas, uma “cidadesegregada”. A autora trabalha com uma classificaçãodos imigrantes em quatro grupos principais: 1 portu-gueses, japoneses, italianos e espanhóis, com mais deum século de imigração; 2 demais europeus (alemães,poloneses e romenos) e provenientes do Oriente Mé-dio (sírios e libaneses), judeus (alemães, russos, polo-neses, romenos etc.); 3 latino-americanos vindos du-rante o período da ditadura; 4 grupo de imigraçãomais recente e formado por asiáticos: chineses e corea-nos. O grupo africano de imigração mais recente nãofoi trabalhado neste livro.

O resgate histórico que compõe ainda esta partedo livro conta com uma breve descrição dos processosimigratórios referentes a cada uma das etnias compo-nentes do grupo 1. Em seguida procede a uma análi-se da sociedade receptora, da economia cafeeira e dastransformações nas relações de produção. Evidencia-se, assim, como a política imigratória, pautada naideologia do “branqueamento”, era francamente ra-cista em relação não apenas ao negro, mas também aoutras etnias, como os chineses e japoneses. Práticasracistas, enfim, que colocaram ex-escravos e mestiçosem situação de marginalidade com relação ao merca-do formal de trabalho assalariado em formação. Oimigrante passa a ser visto como o trabalhador ideal,o que fundamenta formas de sociabilidade que estãona base da relação de alteridade. Com relação especi-ficamente à imigração italiana, é bom lembrar que oprocesso de constituição de identidade se deu no Bra-sil na medida em que a experiência do pertencimentoregional entre os italianos e sua cultura e dialetos re-gionais eram mais fortes do que a idéia de uma naçãoitaliana.

A terceira parte, “Estrangeiros em tempos glo-bais: a metropolização de São Paulo”, trata da trans-

129R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

R E S E N H A

Page 124: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

formação da cidade de São Paulo a partir dos anos 80,quando se altera o perfil de cidade industrial e se as-siste à sua inserção como cidade mundial, no contex-to da globalização. A característica básica dessa novametrópole é a tensão entre o local e o global, em queas novas condições conduzem a novos processos deterritorialização, novas redes territoriais.

Nesse processo, as periferias, que foram produ-zindo os maiores contingentes populacionais, recebema grande maioria dos migrantes nacionais e pobres, ese constituem como áreas de habitação precária, fave-las e loteamentos clandestinos, enquanto em algumaspartes das áreas centrais e intermediárias proliferamcortiços, habitações coletivas e precárias. Enfim, a au-tora descreve e trabalha com dados sobre um processoque é conseqüência da própria metropolização. Aomesmo tempo, a desconcentração industrial nesse pe-ríodo conduz à desconcentração metropolitana em di-reção à formação de cidades menores periféricas (queabrigam 38% da população da metrópole) e que se re-lacionam com a capital (com 62% do contingentepopulacional). É a isso que se pode chamar de “umanova configuração urbana”, em que se expandem efortalecem as funções de controle, comando e admi-nistração das grandes empresas sediadas na cidade, emdetrimento das funções de produção. É assim que seconstitui então o terciário em seus diferentes aspectos,como os setores ligados à gestão do capital, sofistica-ção de serviços etc., e a desigualdade que se reflete noespaço, na fragmentação da cidade e nas novas for-mas de territorialidades, sinônimas de diferentes for-mas de cidadania.

Em seguida, numa seção ainda analítica, masbastante informativa dentro do capítulo que descreveos territórios estrangeiros na metrópole, a autora se de-dica a explorar dados censitários para a construção deuma cartografia dos estrangeiros distribuídos pelosquatro grupos de nacionalidades, presentes na cidadeem 1980 e em 1991. São extremamente importantesas conclusões desse capítulo: há o aumento visível de1980 a 1990, da entrada de latino-americanos na cida-de (chilenos, bolivianos e peruanos), além de corea-nos, chineses e norte-americanos. Quanto aos gruposde presença antiga, dos grupos 1 e 2, verifica-se umaconstância, entre os Censos de 1980 e 1991, nos mes-mos territórios, para algumas nacionalidades, enquan-to para outras verifica-se um deslocamento: os portu-

gueses, antes concentrados nas regiões Noroeste eNorte da cidade, deslocam-se relativamente para Sul eSudoeste e formam novas concentrações a Nordeste eSudeste, apesar de apresentarem uma distribuiçãomais ou menos espalhada por toda a cidade, especial-mente nas regiões de urbanização consolidada. Os ja-poneses permanecem concentrados no bairro da Li-berdade, mas perdem em intensidade em outrasregiões centrais (Sé e Aclimação). Os italianos, degrande peso nos distritos centrais, Oeste, Sudoeste eCentro, evidenciaram em 1991, um deslocamento pa-ra regiões de maior nível socioeconômico (Barra Fun-da, Consolação, Jardim Paulista, Moema), “revelandoque não são mais habitantes de bairros “populares”(p.149). Com relação aos espanhóis, cuja presença eraevidente em 1980 em bairros da região Sudeste e doCentro (Ipiranga, Mooca, Brás), em 1991, permane-cem em parte no Sudeste mas deslocam-se para novosfocos ao Sul (Campo Belo, Moema, Santo Amaro).

O Censo de 2000 revela uma queda de 16% naentrada de estrangeiros no Brasil, principalmente paraas nacionalidades do grupo 1 e continua a “expulsar”brasileiros para o exterior, há também aumento dasentradas de latino- americanos, chineses e coreanos.Os fluxos internos continuam intensos, mas houvemudanças muito reveladoras: a proporção dos que en-tram diminuiu em 12% e a dos que saem aumentouem 36%. O saldo migratório diminuiu em 54% emrelação a 1995.

A presença imigrante e migrante na cidade se deutambém através das suas Associações e sua vida cultu-ral, redes de sociabilidade, cultura e lazer. A importân-cia do reconhecimento do papel das festas e da religio-sidade entre os migrantes e imigrantes é evidente, poismostra formas básicas de enfrentar o “desenraizamen-to” próprio à imigração como salienta Sayad no seutrabalho sobre os imigrantes argelinos na França. Defato, as redes de sociabilidade se mostram como for-mas fundamentais na recepção de novas levas quer naimigração, quer na migração, no que diz respeito àpossibilidade de facilitar a integração e a constituiçãode identidades, além do seu papel na territorializaçãodentro da metrópole (formação de “nichos” de identi-ficação). A referência ao âmbito da cultura e do lazerentre os imigrantes e migrantes é fundamental por res-saltar a dimensão fora do trabalho que essas esferas evi-denciam na constituição de identidades e trajetórias na

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4130

R E S E N H A

Page 125: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

cidade. A religiosidade, particularmente, ajuda nacompreensão de um aspecto que diz respeito não ape-nas aos imigrantes e migrantes, mas à constituição deuma sociedade de massas, como ressalta a autora: oreaquecimento religioso pode se dar pela necessidadede um reconhecimento e pertencimento ou atualiza-ção de significados para ordenar a vida.

Finalmente, a última parte do livro dedica-se ex-clusivamente aos italianos, abordando a constituiçãodos processos de territorialidade e alteridade, a forma-ção da identidade operária entre os italianos das pri-meiras levas imigratórias, o nacionalismo em relação aoregionalismo italiano e ao embate com os anarquistasetc., e ressaltando, entre outros aspectos, a importânciada imprensa italiana em São Paulo, das escolas, do tea-tro, das sociedades lítero-musicais, do cinema, das fes-tas. Enfim, esses aspectos revelam faces da cidade nasrelações de alteridade entre cultura italiana e brasileiraque são inseparáveis da constituição da sociedade e dacultura paulista e paulistana.

Além dessa análise que percorre fontes documen-tais e a própria bibliografia, a autora busca, através deentrevistas e depoimentos com italianos de ambos ossexos, complementar pela história oral as trajetóriasdos imigrantes pela cidade. Essa reconstrução parte deaspectos significativos na experiência imigratória: aorigem italiana (a experiência da viagem, da decisão departir), as relações familiares (a posição do entrevista-do na família, o tamanho e a composição da família eas relações), a habitação, as questões aí envolvidas noinício e depois, as relações com os bairros escolhidos,a questão básica do trabalho dentro da família, as pes-soas que trabalhavam fora, as relações que as decisõesimplicam. As entrevistas assim realizadas deram opor-tunidade, então, para a discussão dos espaços de socia-bilidade na relação de alteridade: a vizinhança e o bair-ro, a identidade na vivência da comunidade e daconterraneidade, os aspectos culturais envolvidos (osespaços das festas, da Igreja, dos clubes). As entrevistaspropiciaram também a evidência da constituição paraesses informantes, da territorialidade dentro do espaçourbano e finalmente como a cidade de São Paulo é re-presentada na sua evolução para essas pessoas.

Desta forma, a metrópole, que hoje se apresentana forma de “cidade global”, desvenda através do tra-balho de Maura Pardini Veras, as individualidades, asvivências na alteridade, as subjetividades nas diferen-

ças, no peso da presença estrangeira na constituição dametrópole paulista, ao lado dos migrantes nacionais, oimpacto enfim da globalização na economia, de um la-do, mas na cultura e no cotidiano, de outro, de modoa diferenciar dois processos: aquele que leva à homo-geneização, mas sobretudo aquele que se aprofundacom a permanência das diferenças dentro das desigual-dades e da discriminação. Assim, para finalizar comuma frase da própria Maura: “É dessa maneira que ter-ritórios e cidadania se entrelaçam no que Sayad1 cha-mou de ‘paradoxos da alteridade’”.

131R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

R E S E N H A

1 Sayad, A., L’Immigration ou les paradoxes de l’altérité, Bruxelles, Ed.Universitaires, 1991.

Page 126: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas
Page 127: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

133R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Todos os artigos recebidos serão submetidos ao Conselho Editorial, ao qual cabe a responsabilidade de reco-mendar ou não a publicação. Serão publicados apenas artigos inéditos.

Os trabalhos deverão ser encaminhados em disquete (Word 6.0 ou 7.0, tabelas e gráficos em Excel, figurasgrayscale em formato EPS ou TIF com 300 dpi) e em três vias impressas, digitadas em espaço 1.5, fonte Arialtamanho 11, margens 2.5, tendo no máximo 20 (vinte) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras e referênciasbibliográficas, acompanhados de um resumo em português e outro em inglês, contendo entre 100 (cem) e 150(cento e cinqüenta) palavras, com indicação de 5 (cinco) a 7 (sete) palavras-chave. Devem apresentar em apenasuma das cópias as seguintes informações: nome do autor, sua formação básica e titulação acadêmica, atividade queexerce, instituição em que trabalha e e-mail, além de telefone e endereço para correspondência. Os originais nãoserão devolvidos.

Os títulos do artigo, capítulos e subcapítulos deverão ser ordenados da seguinte maneira:Título 1: Arial, tamanho 14, normal, negrito.Título 2: Arial, tamanho 12, normal, negrito.Título 3: Arial, tamanho 11, itálico, negrito.

As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, de acordo com os exemplos abaixo: GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patri-

moine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.

Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, orga-nizadores ou editores da obra, por exemplo: SOUZA, J. C. (Ed.). A experiência. São Paulo: Vozes, 1979; ou ainda,a expressão “et al” (SOUZA, P. S. et al.). Quando houver citações de mesmo autor com a mesma data, a primeiradata deve vir acompanhada da letra “a”, a segunda da letra “b”, e assim por diante. Ex.: 1999a, 1999b, etc. Quan-do não houver a informação, use as siglas “s.n.”, “s.l.” e “s.d.” para, respectivamente, sine nomine (sem editora), sineloco (sem o local de edição) e sine data (sem referência de data), por exemplo: SILVA, S. H. A casa. s.l.: s.n., s.d. Nomais, as referências bibliográficas devem seguir as normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Téc-nicas (ABNT). Para citações dentro do texto, será utilizado o sistema autor-data. Ex.: (Harvey, 1983, p.15) A indi-cação de capítulo e/ou volume é opcional. Linhas sublinhadas e palavras em negrito deverão ser evitadas. As cita-ções de terceiros deverão vir entre aspas. Notas e comentários deverão ser reduzidos tanto quanto possível. Quandoindispensáveis, deverão vir em pé de página, em fonte Arial, tamanho 9.

Os editores se reservam o direito de não publicar artigos que, mesmo selecionados, não estejam rigorosamen-te de acordo com estas instruções.

Os trabalhos deverão ser encaminhados para:Henri AcselradIPPUR/UFRJPrédio da Reitoria, sala 543Cidade Universitária, Ilha do Fundão21941-590 – Rio de Janeiro - RJe-mail [email protected]

Page 128: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

134 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S , V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

ANPUR

• Instituto de Geociências/UFMG

Av. Antônio Carlos, 6627Campus Pampulha31270-901 Belo Horizonte, MG

Tel.: (31) 3499 5404E-mail: [email protected]

COPEC

• Rua Curitiba, 832, sala 20130170-120 Belo Horizonte, MG

Tel.: (31) 3279 [email protected]

EDUFAL

• Editora da Universidade Federal de AlagoasPrédio da Reitoria – Campus A. C. SimõesBR 104, km 97,6 – Tabuleiro do Martins57072-970 Maceió, AL

www.edufal.ufal.br

FAU/USP

• Rua do Lago, 876, Cidade Universitária05508-900 São Paulo, SP

Tel.: (11) 3091 4648

FUPAM

• Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / USP

Rua do Lago, 87605508-900 São Paulo, SP

Tel.: (11) 3091 [email protected]

IBAM

• Largo Ibam, 1, Humaitá22271-070 Rio de Janeiro, RJ

Tel.: (21) 2536 [email protected]

INAY LIVROS

• Congressos e eventos na área de arquitetura e urbanismoTel.: (11) 3399 [email protected]

LIVRARIA VIRTUAL VITRUVIUS

• Al. Campinas, 51, Jardim Paulista01404-000 São Paulo, SP

Tel.: (11) 288 [email protected]

PROLIVROS

• Rua Luminárias, 9405439-000 São Paulo, SP

Tel.: (11) 3864 [email protected]

SEADE

• Fundação Sistema Estadual de Análise de DadosAv. Cásper Líbero, 464, Centro01033-000 São Paulo, SP

Tel.: (11) 3224 [email protected]

UFBA

• Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo / UFBA

Rua Caetano Moura, 121, Federação40210-350 Salvador, BA

Tel.: (71) 247 3803, ramal [email protected]

UFPE

• Mestrado em Desenvolvimento Urbano / UFPE

Caixa Postal 7809, Cidade Universitária50732-970 Recife, PE

Tel.: (81) [email protected]

UFRJ

• Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional / IPPUR

Ilha do Fundão – Prédio da Reitoria, sala 53321941-590 Rio de Janeiro, RJ

Tel.: (21) 2598 [email protected]

ONDE ADQUIRIR

Page 129: Almeida_tierras Tradicionalmente Ocupadas

135R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 1 / M A I O 2 0 0 4 135135135135

ESTUDOS URBANOSE REGIONAIS

REVISTA BRASILEIRA DE

publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

EXEMPLAR AVULSO: R$ 25,00À venda nas instituições integrantes da ANPUR e nas livrarias relacionadas nesta edição.

ASSINATURA ANUAL (dois números): R$ 45,00Pedidos podem ser feitos à Secretaria Executiva da ANPUR, enviando a ficha abaixo

e um cheque nominal em favor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.

ANPUR – SECRETARIA EXECUTIVA (Gestão 05/2003 – 05/2005)

Instituto de Geociências – Universidade Federal de Minas GeraisAv. Antônio Carlos, 6627

Campus Pampulha31270-901 Belo Horizonte, MG, Brasil

Tel.: (31) 3499-5404E-mail: [email protected]

Homepage: www.anpur.org.br

Preencha e anexe um cheque nominal à Anpur

Assinatura referente aos números ____ e ____.

Nome: __________________________________________________________________________________

Rua: _______________________________________________________ nº:________ Comp.: _________

Bairro: ______________________________________________________ CEP: _______________________

Cidade: _______________________________________ UF:______________________________________

Tel.: ______________________ Fax: ________________________ E-mail: __________________________

Instituição e função: ________________________________________________________________________

Data______________ Assinatura _________________________________________

VENDAS E ASSINATURAS