Almir Zanella

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  • Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007 321

    CONSTITUIO BRASILEIRA, DIREITOS HUMANOS E TICA: ALGUMAS CONSIDERAES

    BRAZILIAN CONSTITUTION, HUMAN RIGHTS AND ETHIC: SOME REFLECTIONS

    ALMIR PEDRO SAIS* ANDRA VIEIRA ZANELLA**

    ROSSANA MARIA VIEIRA ZANELLA***

    Resumo: Neste texto, de cunho eminentemente terico, so apresentadas reflexes sobre a afirmao dos direitos humanos presente nas diferentes Constituies brasileiras do perodo republicado , em especial a Constituio de 1988. Questes ticas so problematizadas, assim como as contradies que marcam esses discursos. A discusso feita a partir da interface entre psicologia e direito, campos estes de saber e de prticas que tm como foco as relaes entre as pessoas. Compreende-se que essas relaes trazem as marcas da sociedade que as funda e so, nesse sentido, ao mesmo tempo singulares e coletivas. Como resultados, constata-se a evoluo dos direitos fundamentais preconizados nos textos constitucionais, especialmente na Carta Magna vigente. Constata-se tambm que h uma contradio de base na Constituio brasileira, a qual se objetiva na grande distncia entre a afirmao dos direitos fundamentais ali preconizados e a realidade social, assim como na distncia entre os muitos discursos em defesa de uma suposta tica e as poucas prticas sociais efetivamente comprometidas com a superao das desigualdades sociais. Conclui-se que a defesa dos direitos preconizados no texto constitucional requer no uma justia cega, mas sim prticas jurdicas atentas aos jogos de interesses, aos lugares sociais e s condies de existncia das pessoas envolvidas, o que implica o olhar atento sobre o prprio lugar que o sujeito da ao assume, sobre as suas motivaes e interesses.

    Palavras-chave: tica, direitos humanos, Constituio, prticas jurdicas.

    Abstract: The objective of this article is to present reflections about the human rights that appear in the different Brazilian Constitutions of republican period and, in special, the 1988 constitution. Ethical aspects are presented and the contradictions there gifts. In this quarrel it appears the interface between psychology and law, in this text considered as fields to know and of practical that have as focus the relations between the people. It is understood that these relations bring the marks of the society that the deep one and are, in this direction, at the same time singular and collective. As results, it is evidenced evolution of the human basic rights in the constitutional texts and special in the Great Letter of 1988. One also evidences that it has a contradiction of base in the Brazilian Constitution, objectified in the great distance enters the affirmation of the basic rights and the social reality, as well as in the distance it enters the many speeches in defense of supposed ethics and the few practical social effectively compromised with the overcoming of the social inequalities. One concludes that the defense of the rights praised in the constitutional text requires practical legal intent to the games of interests, the social places and the conditions of existence of the involved people, what it means a justice that is not blind.

    Kew-Words: ethic; human rights; constitution; practics law.

    * Mestre em Psicologia pela PUC/SP. Aluno do Programa de Ps-Graduao em Psicologia/Doutorado da

    Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da UNIVALI. **

    Doutora em Psicologia pela PUC/SP. Professora do Curso de graduao em Psicologia e do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista em produtividade/CNPq. ***

    Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba/PR, com ps-graduao lato sensu em Direito pela Escola de Magistratura do Estado do Paran. Advogada atuante em Curitiba/PR.

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    322 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007

    Introduo

    Vivemos em tempos difceis. Certamente no mais que outros, sequer melhores ou

    piores, posto que cada poca caracterizada por relaes entre as pessoas que instituem

    modos de vida especficos a cada momento histrico e local, e apresentam-se, por sua vez,

    como script aberto a novas prticas e costumes. Comparaes tambm so infrutferas porque

    as anlises que fazemos hoje so marcadas pelas possibilidades que temos de compreender

    essa realidade pelas condies de vida que desfrutamos, pelos referenciais cognoscitivos e

    afetivos que histrica e socialmente construmos e nos construram e que mediam as relaes

    que estabelecemos com a realidade, com os outros e com ns mesmos. Esses referenciais, por

    sua vez, esto em constante movimento de reinveno, o que possibilita a cada pessoa ser

    expresso de um determinado contexto social, econmico e poltico e, ao mesmo, tempo de

    seu fundamento. Ou seja, somos todos e qualquer um produto e produtores de histria, e o

    que hoje vemos possvel em razo tanto das caractersticas da realidade quanto de nossas

    possibilidades de leitura do entorno do qual ativamente participamos e que nos transforma,

    assim como por ns transformado.

    Isso significa que quem olha para o presente, o passado e o futuro, o faz a partir de um

    determinado ponto de vista e lugar social1, sendo esse olhar necessariamente datado e

    marcado pelas experincias e condies que o instituram. Quem fala, fala de um determinado

    lugar de enunciao2, o que pressupe os interlocutores a quem a palavra se dirige, as

    motivaes e necessidades, tanto do locutor quanto do interlocutor, e a prpria historicidade

    dos signos lingsticos, condies essas que demarcam sentidos para o que se fala e ouve.

    Esses sentidos, portanto, esto em constante movimento assim como os sujeitos da ao, pois

    cada palavra uma fonte inesgotvel de novos problemas, seu sentido nunca est acabado.

    Em definitivo, o sentido das palavras depende conjuntamente da interpretao do mundo de

    cada pessoa e da estrutura interna da personalidade (VYGOTSKI. 1992, p. 334).

    Mas os tempos atuais a que nos referimos compem um cenrio de certo modo comum

    para adultos brasileiros, de camadas mdias e empobrecidas da populao, que vivem em

    1 Lugar social um conceito utilizado no universo das cincias humanas e refere-se posio assumida por cada

    pessoa na relao com outras, posio essa que se funda e sustenta nessas mesmas relaes e institui modos caractersticos de ser e estar. 2 Todo e qualquer enuciado , para Bakhtin/Medvedev, uma construo comunicativa que pressupe tanto o outro

    para o qual a fala se dirige quanto as condies de sua produo (SOUZA. 1999). Quem fala fala alguma coisa para algum a partir de um determinado lugar social que o conota.

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    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007 323

    contextos urbanos e que acompanham os acontecimentos sociais e polticos. Cenrio em que

    prevalecem, em todas as esferas da vida social, seja no mbito privado, nas prticas

    governamentais, nas relaes formais e informais, incertezas diante das condies de

    existncia coletiva cuja direo indesejada. Tempos em que as mais variadas formas de

    violncia ocupam cada vez mais espao nos meios de comunicao de massa, esses igualmente

    violentos em suas prticas de fabricao e imposio de verdades3. poca em que a corrupo

    ganha a visibilidade que at ento lhe era negada e revela-se sua presena em diferentes

    dimenses da existncia humana, o que por sua vez resulta em discursos inflamados em prol

    de uma suposta tica universal, de condutas politicamente corretas, de defesa dos direitos

    individuais, proferidos no raro por artfices de prticas que condenam nos outros, porm que

    no reconhecem como suas velhas companheiras. Assistimos, na verdade, a uma violenta

    inflao do termo tica, como nos alerta Roberto Romano (2001). Por tudo isso que

    afirmamos que vivemos em tempos difceis.

    Mas de que tica se fala? Que tica se quer? E que tica se produz? Que relaes eu-eu

    e eu-outro esto pressupostas nesses tempos de afirmao do politicamente correto? Que

    direitos so esses que se defende e para quem? Que direitos so negados e a quem o so? As

    respostas a essas questes no so simples e tampouco diretas, pois se assentam

    necessariamente em uma perspectiva de relao com outros que baliza a vida em sociedade.

    Essa perspectiva, por sua vez, histrica e socialmente produzida e, nessa condio, marcada

    por vieses de classe social, gnero, etnia, por referenciais sobre o projeto de sociedade que se

    quer construir e que, se no compartilhado, apresenta-se aos outros como exerccio de poder

    no consentido como prtica de dominao/submisso/efetivao.

    Pretendemos discutir neste texto algumas dessas questes, tendo como referncia o

    discurso de afirmao dos direitos nas diferentes Constituies brasileiras e, em especial, a

    Constituio de 1988. A questo da tica perpassa as reflexes e diferencia-se da moral, pois

    se esta ltima se assenta em regras reguladoras do comportamento humano a partir do que se

    considera certo ou errado, a tica aqui entendida como forma de habitar o mundo

    instaurando uma atitude de crtica permanente de nosso ser histrico e dos valores que

    conduzem nossas aes (SILVA, R. 2003, p. 36). tica, nesse sentido, uma postura que se

    pauta pelas noes do que bom ou mau para a vida, para a existncia humana. Sendo esta

    3 Sobre o discurso da violncia na mdia impressa brasileira ver o timo trabalho de pesquisa de Ceclia Coimbra

    (2001).

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    existncia necessariamente relacional, posto que somos sujeitos em relao, falar em tica

    significa falar no compromisso, com os outros e consigo mesmo, de valorizao e luta por

    modos de vida dignos, pela denncia de toda e qualquer forma de violncia e degradao

    humana. Luta permanente por modos de vida dignos para todos, o que requer o exerccio

    contnuo e permanente de crtica em relao ao que se faz cotidianamente e as conseqncias

    dessas aes para a vida em sociedade.

    A discusso ser feita a partir da interface entre os campos de saber aos quais os

    autores se vinculam, campos esses em que a defesa da vida e dos direitos humanos se

    apresenta como prerrogativa: a Psicologia e o Direito. Focos diferentes, em princpio, os

    caracterizam, pois em tese, ao Direito cabe a defesa do que deve balizar a vida em sociedade,

    do que comum e justo para todos, e Psicologia a afirmao da pessoa como ser nico,

    singular, com suas especificidades. Coletivo e singular, no entanto, a partir do referencial

    terico aqui assumido, relacionam-se dialeticamente, pois um se funda e sustenta no outro.

    Isso significa afirmar que

    no h um eu originrio, descolado dos outros, da realidade, enfim, do que o constitui como humano e como possibilidade de diferenciao. No h essncia, no h a priori. Por sua vez, cada pessoa concreta descola aspectos da realidade a partir do que significa como relevante, do que a emociona e mobiliza, constituindo assim modos de ser que so ao mesmo

    tempo sociais e singulares (ZANELLA. 2005, p. 103).

    O entendimento dessa complexa relao essencial para a superao de perspectivas

    dicotmicas que recaem em um subjetivismo ou ento em uma determinao do social.

    Perspectivas que ou desconsideram as condies concretas que (im)possibilitam a existncia

    humana, ou ento afirmam a supremacia dessas condies e negao de sua historicidade, o

    que significa negar as possibilidades de resistncia e criao de novos possveis tanto

    singulares quanto coletivas. Direito e Psicologia, portanto, so aqui assumidos como campos

    de saber e de prticas que tm como foco as relaes entre as pessoas, relaes essas que

    trazem as marcas da sociedade que as funda e que so, nesse sentido, ao mesmo tempo

    singulares e coletivas.

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    ALMIR PEDRO SAIS, ABDRA VIEIRA ZANELLA & ROSSANA M. VIEIRA ZANELLA

    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007 325

    1. As garantias dos direitos de todos e de cada pessoa nas Constituies brasileiras: breve histrico

    A reflexo sobre tica e direitos humanos aqui proposta inicia-se com uma abordagem,

    ainda que sucinta, do modo como as garantias dos direitos de cada pessoa e da coletividade

    so propostas nas Constituies brasileiras.

    No h como tratar de tica, juridicamente falando, sem tecer algumas consideraes

    acerca dos direitos individuais e coletivos e seu movimento histrico, porque toda e qualquer

    tica est baseada em valores que se tornam princpios norteadores dos padres de conduta

    do ser humano, os quais esto consagrados na nossa lei maior que a Constituio.

    Nesse aspecto devemos levar em conta o fato de que com o passar do tempo as

    sociedades mudam, transformam-se em razo dos avanos cientficos e tecnolgicos, das

    prticas religiosas, dos costumes, dos modos de organizao da vida em sociedade e das

    disputas de poder que a caracterizam, mudando nesse movimento os prprios seres humanos

    que fundam essas sociedades. Ainda que se pretenda no texto da lei consolidar e generalizar

    uma tica atemporal, ahistrica e universal, valores e princpios vinculam-se ao contexto

    histrico e social no qual foram produzidos e so cotidianamente reproduzidos e

    transformados, o que significa considerar as diferentes ticas que pautam a vida das pessoas e

    o que a noo de Estado Nacional e sua Constituio busca validar.

    A preocupao com a humanidade de modo geral, ou com uma concepo

    universalizante do que se apresenta como direito de todo e qualquer ser humano,

    independente de onde viva e sob a tutela de que Estado, resulta em documentos que so

    adotados por grande parte dos pases do globo terrestre, como o a Declarao Universal dos

    Direitos Humanos. Esse documento, aprovado em 10 de dezembro de 1948 pela Assemblia

    Geral das Naes Unidas, ainda hoje referncia para as polticas pblicas de defesa da

    dignidade do ser humano.

    A emergncia dos direitos fundamentais , no entanto, muito anterior: no Cdigo de

    Hamurabi (1690 a.C.) j havia a consagrao de um rol de direitos comuns a todos os homens.

    Um longo percurso h nesse sentido, porm nos deteremos neste texto s transformaes do

    discurso sobre os direitos humanos nas Constituies brasileiras.

    Dois critrios de caracterizao dos direitos fundamentais, o formal e o material, so

    estabelecidos por Carl Schmitt, critrios esses que demonstram que a garantia aos direitos

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    fundamentais, consagrada nos textos constitucionais, acompanha os diferentes regimes

    polticos e as lutas sociais, variando de acordo com o momento histrico vigente.

    Pelo primeiro4, podem ser designados por direitos fundamentais todos os direitos ou

    garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional.

    Pelo segundo5, to formal quanto o primeiro, os direitos fundamentais so aqueles

    direitos que receberam da Constituio um grau mais elevado de garantia ou de segurana; ou

    so imutveis (unabnderliche) ou pelo menos de mudana dificultada (erschwert), a saber,

    direitos unicamente alterveis mediante lei de emenda Constituio.

    J, do ponto de vista material, os direitos fundamentais, segundo Schmitt, variam

    conforme a ideologia, a modalidade de Estado, a espcie de valores e princpios que a

    Constituio consagra. Em suma, cada Estado tem seus direitos fundamentais especficos

    (SCHMIT, apud BONAVIDES. 2004, p. 561).

    Jos Afonso da Silva, por sua vez, manifestando-se sobre a terminologia direitos

    fundamentais, ensina que esta constitui a expresso mais adequada a este estudo, porque

    alm de referir-se a princpios que resumem a concepo do mundo, informam a ideologia

    poltica de cada ordenamento jurdico. reservada, no nvel do direito positivo, quelas

    prerrogativas e instituies que ele concretiza ou a garantias de uma convivncia digna, livre e

    igual a todas as pessoas. No qualificativo fundamental acha-se a indicao de que se tratam de

    situaes jurdicas sem as quais a pessoa humana no se realiza, no convive e, s vezes, nem

    mesmo sobrevive; fundamentais no homem no sentido de que todos, por igual, devem ser no

    apenas formalmente reconhecidos, mas correta e materialmente efetivados (SILVA, J. 1990, p.

    159).

    Da a importncia de estudarmos as transformaes das garantias dos direitos

    individuais e coletivos nas Constituies Brasileiras para podermos traar algumas

    consideraes acerca da tica na Magna Carta de 1988, considerando que ela veio consagrar

    uma srie de princpios que visam assegurar a plenitude desses direitos.

    Desde logo devemos destacar que as declaraes dos direitos do ser humano sempre

    estiveram presentes nos nossos textos constitucionais brasileiros. Mesmo a Constituio do

    Imprio, de 1824, que estabeleceu o absolutismo, foi a primeira no mundo a positivar alguns

    4 Critrio formal (esclarecimento dos autores).

    5 Critrio material (esclarecimento dos autores).

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    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007 327

    direitos individuais no art. 179, sob o ttulo de Garantia dos direitos civis e polticos dos

    cidados brasileiros. Nesse dispositivo constitucional foram reconhecidos, entre outros, os

    direitos legalidade, igualdade, liberdade de pensamento, propriedade e inviolabilidade de

    domiclio.

    A Constituio de 1891, a primeira da Repblica, deu grande importncia aos direitos e

    garantias individuais consagrados na Constituio anterior, os chamados direitos de primeira

    gerao6, e ampliou o conceito de igualdade, estendendo seu alcance aos estrangeiros. Nesse

    sentido, previu a gratuidade do casamento, direitos de reunio e associao (art. 72) e o

    direito ampla defesa, este tratado especificamente no 16 do mencionado dispositivo

    constitucional. Esquivou-se, no entanto, de reconhecer os direitos sociais da classe

    trabalhadora que ento surgia.

    Em 1926, foi acrescentado um novo texto reforma da Constituio de 1891, a fim de

    atender as necessidades que surgiam com a evoluo dos movimentos sociais. No entanto, de

    acordo com Bonavides e Andrade (1991, p. 321), as emendas foram tbias e apenas

    pressentiram vagamente a questo social.

    O grande progresso em relao aos direitos sociais ocorreu com a Constituio de 1934,

    que sofreu a influncia das constituies europias e dos movimentos sociais da poca.

    Inaugurou-se ali o Estado Social Brasileiro, que reconheceu uma srie de direitos sociais,

    alm de trazer no seu artigo 113 um extenso rol de direitos fundamentais.

    No que pertine aos direitos sociais, o artigo 121, 1 e incisos estabeleceu que a

    legislao do trabalho observar, alm de outros que colimem melhorar as condies do

    trabalhador, preceitos como a proibio de diferena de salrio por motivo de idade, sexo,

    nacionalidade ou estado civil, salrio mnimo capaz de satisfazer as necessidades do

    trabalhador, jornada de 8 horas, proibio do trabalho de menores, repouso semanal, frias

    remuneradas, indenizao por dispensa sem justa causa e assistncia mdica ao trabalhador e

    gestante.

    6 Os direitos de primeira gerao e os de segunda gerao so diferenciados por Ribeiro Jnior e Telles (1999, p.92):

    Os direitos fundamentais de primeira gerao so naturais, mundiais, absolutos e declarados, isto , reconhecidos; so expresses da autonomia do indivduo e estabelecem poderes de agir. Os da segunda gerao so pluralistas; atribudos a grupos sociais, so instrumentos para a efetividade das instituies polticas e sociais, que auxiliam a efetividade das instituies democrticas e estabelecem poderes de exigir, o que implica em prestaes positivas do Estado atravs da criao de servios pblicos. So os chamados direitos sociais, culturais e econmicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades. Nasceram com o princpio da igualdade, do qual no se podem separar, pois faz-lo equivaleria a desmembr-los da razo de ser que os ampara e estimula.

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    328 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007

    Apesar do progresso, essa Carta no teve a efetividade esperada devido,

    principalmente, ao fato de ter vigorado por apenas trs anos. Em 1937, fruto do totalitarismo

    imposto por Getlio Vargas e inspirada na Constituio polonesa, de origem totalitria e

    fascista, o Brasil teve uma nova Carta, a qual usurpou direitos e garantias individuais at ento

    consagrados nas Constituies anteriores. Diante desse quadro alguns autores chegaram a

    afirmar que o pas no tinha mais Constituio.

    Assim, o pas ficou sem Constituio, sem partidos polticos, sem imprensa livre, e

    embora o art. 122 reconhecesse direitos individuais, estes no tiveram efetividade, pois com a

    ditadura houve concentrao de poderes nas mos do Presidente da Repblica, que governava

    atravs de decretos-leis e de leis constitucionais (BREGA FILHO. 2002, p. 36-37).

    Com o fim da ditadura de Vargas abriu-se caminho para a retomada da discusso sobre

    os direitos individuais e sociais, os quais foram revigorados na Constituio de 1946, que teve

    por base a Magna Carta de 1934, nos captulos que tratavam da Nacionalidade e a Cidadania

    e dos Direitos e Garantias Individuais. Nesse novo cenrio foi estabelecida a total liberdade

    de pensamento, exceto no que dizia respeito a diverses pblicas e espetculos; foram

    abolidas as penas de morte e priso perptua e foram restaurados os institutos do habeas

    corpus, mandado de segurana e ao popular, alm da integralidade dos princpios da

    irretroatividade da lei e da legalidade.

    Merece destaque o fato de essa Constituio ter previsto que as liberdades e garantias

    individuais no poderiam ser cerceadas por meio de expedientes autoritrios, que a

    organizao partidria era livre e que a aprovao do Estado de Stio era reservada ao

    Congresso Nacional. Alm disso, no que tange aos direitos sociais, reconheceu o direito de

    greve, instituiu o repouso semanal remunerado e a participao obrigatria e direta nos lucros

    da empresa.

    Embora trouxesse em seu bojo muitos dos direitos individuais e sociais j previstos na

    Constituio de 1934, a inovao dessa Carta foi a instituio, no captulo dos direitos

    individuais, que a lei no poder excluir da apreciao do Poder Judicirio qualquer leso de

    direito individual (idem, p. 37-38), estabelecendo um Estado de direito e de harmonia entre

    os trs poderes. Apesar dos sobressaltos polticos que marcaram o perodo entre 1937 e o

    incio dos anos 60, onde se destacam a ascenso e o suicdio de Vargas, a era JK, as

    turbulncias que caracterizaram a eleio, posse e governo de Jnio Quadros e Joo Goulart,

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    Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007 329

    no foram feitas modificaes na Carta Magna de 1946 no que se refere aos direitos

    individuais e sociais.

    Em 1964, nos deparamos com um novo cenrio histrico, com a ascenso ao poder dos

    militares que o usurparam a partir de um golpe de estado. Embora tenham mantido a

    Constituio de 1946, os militares passaram a editar atos institucionais que suspenderam

    direitos polticos, garantias constitucionais de juzes, extinguiram partidos polticos,

    permitiram a cassao de mandatos legislativos e deram poderes ao Presidente da Repblica

    para decretar recesso do Congresso Nacional, procurando, desta forma, centralizar e fortalecer

    o Poder Executivo. Ou seja, o que vigia realmente era o ato de fora, j que a Constituio de

    1946 s foi mantida nos limites do Ato Institucional n1.

    Na tentativa de demonstrar que o Brasil vivia um clima de estabilidade constitucional, o

    Congresso Nacional foi convocado, por meio do Ato Institucional n 4, para discutir e votar um

    novo texto constitucional, o que se efetivou somente em 1967, resultando numa Constituio

    centralizadora, trazendo para o mbito federal uma srie de competncias que antes

    pertenciam a estados e municpios.

    Embora previstos direitos individuais e direitos sociais dos trabalhadores nessa nova

    Constituio, esta se revelou totalmente autoritria, porque reduziu a autonomia individual,

    permitindo a suspenso de direitos e garantias constitucionais.

    Violaes dos direitos humanos, cassaes de mandatos e demisses de postos, bem

    como banimentos de polticos mal vistos pelo sistema, comearam com o advento da ditadura

    militar, com base no primeiro Ato Institucional. A partir de 1968, os militares passaram, sem

    nenhum respaldo jurdico, a deter, torturar, mutilar e assassinar os inimigos declarados do

    regime ou os que eram como tal considerados (BAHRO e ZEPP, apud BASTOS, C.. 1997, p. 136).

    A situao se agravou ainda mais no final do ano de 1968, quando em represlia s

    manifestaes estudantis que, aliadas aos movimentos de trabalhadores e uma parcela do

    clero, passaram a desafiar as autoridades, foi editado o Ato Institucional n 5 , o qual restaurou

    Disposies que j tinham sido revogadas por atos posteriores, concedendo total arbtrio ao

    Presidente para decretar o estado de stio e suspender o habeas corpus.

    A dcada seguinte foi marcada pelo aviltamento dos direitos humanos, pela violncia

    desenfreada e totalitria do Estado, que configurou um captulo de nossa histria at h pouco

    tempo negado ou desconhecido por grande parte da populao. Recentemente os meios de

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    330 Revista Brasileira de Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007

    comunicao de massas vm divulgando a faceta cruel do regime militar, que torturou e

    matou centenas de brasileiros contrrios aos rumos que a poltica brasileira tinha assumido

    desde 1964. Mas durante sua vigncia, embora duramente abafadas, vozes contrrias foram

    aumentando at que puderam ser ouvidas.

    Retratando o sentimento de revolta e descontentamento com o regime militar instalado

    desde 1964, sentimento este que atingia toda a nao, vrias manifestaes populares

    comearam a eclodir no final dos anos 70 e incio dos anos 80, culminando com o movimento

    Diretas J, que rapidamente se alastrou por todo o territrio nacional. Reivindicava-se eleies

    diretas para a Presidncia da Repblica e foi fortalecida a corrente daqueles que defendiam a

    convocao de uma Assemblia Constituinte para o pas. O resultado dessas manifestaes, no

    entanto, no expressou a expectativa da populao, pois

    o movimento das diretas serviu para que se articulasse, antes mesmo da votao da emenda Dante de Oliveira, a sua previsvel derrota, a eventual ida ao nefando Colgio Eleitoral.

    Os governadores e polticos da oposio se uniram a polticos conservadores e reacionrios, que deserdaram das hostes do governo para formar a chamada Aliana Democrtica. A Aliana Democrtica, embora defendesse um programa democrtico, representava o fruto de uma conciliao, cujo resultado imediato agrupou as mais novas tendncias: polticos retrgrados e progressistas, todos ingressando no caminho da transio democrtica

    (RIBEIRO JNIOR e TELLES. 1999, p. 92).

    Nesse novo quadro social e poltico se realizaram as eleies para a Assemblia

    Constituinte, instalada em fevereiro de 1987, sendo que as primeiras matrias da nova

    Constituio foram aprovadas somente em janeiro de 1988. A demora na votao das matrias

    se deu, em grande parte, pelo jogo de interesses dos polticos que no se preocupavam em

    estabelecer uma verdadeira democracia que assegurasse sociedade a erradicao da misria

    e do analfabetismo.

    Apesar dos embates polticos que marcaram a Assemblia Nacional Constituinte, a

    Constituio Federal de 5 de outubro de 1988, ainda vigente, mais abrangente que as

    anteriores, pois alm de consagrar os direitos e deveres individuais e coletivos, traz um

    captulo especfico para definir os direitos sociais. O reconhecimento dos avanos ali afirmados

    , no entanto, motivo de debate, pois enquanto para alguns autores ela tida como

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    Constituio Cidad7, consagrando uma srie de princpios e preceitos que asseguram a

    plenitude tica, outros a consideram indefinida, hbrida e desarmnica.8

    2. A Carta Magna de 1988: consideraes sobre os direitos preconizados e a realidade brasileira

    Independentemente das diversas opinies sobre a atual Constituio brasileira, fato

    que a Carta Magna de 1988 institui o Estado Democrtico de Direito, trazendo como princpios

    fundamentais a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a crena nos valores

    sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1)9.

    Os objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil, dispostos no art. 3, so:

    construir uma sociedade livre, justa e solidria; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar

    a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem

    de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de

    discriminao.

    Embora o prprio dispositivo constitucional se refira a objetivos fundamentais, o que se

    constata que eles esto longe de se objetivar e muito distantes da realidade cotidiana da

    populao brasileira. Um simples olhar nossa volta permite constatar o empobrecimento

    crescente, o aumento dos ndices de violncia, a banalizao de prticas que aviltam os

    direitos humanos, as discriminaes de toda ordem e em todas as esferas sociais. Os princpios

    de liberdade, igualdade e fraternidade, preconizados pela revoluo francesa e elevados ao

    lugar de cones dos estados democrticos, apresentam-se no Brasil como mera declarao de

    7 BENEVIDES, Maria Victoria. Palestra de abertura do Seminrio de Educao em Direitos Humanos. So Paulo,

    18/02/2000. A Constituio brasileira vigente, dita Cidad e promulgada aps intensa participao popular, estabelece como objetivos da Repblica: construir uma sociedade livre, justa e solidria; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao (art.3). Como fundamentos do Estado democrtico de Direito o texto constitucional afirma a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo poltico. Os direitos sociais incluem educao, sade, moradia, trabalho, lazer, segurana, previdncia social, proteo maternidade e infncia e assistncia aos desamparados (art.6). Os direitos dos trabalhadores especificam conquistas sociais que em nada ficam a dever s democracias populares socialistas e as democracias progressistas do chamado primeiro mundo (art.7) 8 RIBEIRO JNIOR, Joo; TELLES, Antnio A. Queiroz. Op. Cit. p. 65. Infelizmente perdeu-se a oportunidade de se

    fazer uma Constituio moderna e democrtica no sentido pleno da palavra. Os representantes polticos do povo brasileiro continuam a administrar a coisa pblica como se dela fossem proprietrios. (....) Destarte, a atual Constituio um texto moderno na sua amplitude, mas sofre o problema decorrente do desprestgio da legislao ordinria e da tradicional inao do Congresso Nacional. 9 Cabe refletir se os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa so compatveis com a cidadania e a dignidade da

    pessoa humana, questes que fogem ao escopo deste texto.

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    inteno, parcamente defendidos e objetivados nas aes dos poderes Executivo, Legislativo e

    Judicirio. Afinal, s possvel a concretizao desses princpios se as condies de vida o

    permitirem, o que significa justa distribuio de renda e condies de acesso para todos s

    conquistas sociais, econmicas, culturais e polticas da humanidade.

    A distncia entre o que preconizado e a realidade precisa ser reconhecida para que

    possa ser superada, o que requer o reconhecimento do que se apresenta como projeto. Nesse

    sentido, quanto aos direitos individuais e coletivos consagrados nessa Carta, no se pode

    negar que houve considervel avano, sendo a participao popular, com a mobilizao de

    diversas classes sociais, fator preponderante para a sua efetivao.

    O captulo I, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, traz em seu artigo

    5 um extenso rol de direitos individuais garantidos pela atual Constituio, tais como direito

    vida, igualdade, segurana, privacidade e muitos outros. Essa enumerao, embora longa,

    no taxativa, uma vez que outros direitos individuais, decorrentes do regime e dos princpios

    constitucionais ou mesmo de tratados internacionais, podem ser encontrados no texto da

    Constituio.10

    J o Captulo II refere-se aos direitos sociais, sendo que o artigo 6 trata dos direitos

    sociais propriamente ditos, que impem ao Estado diversos deveres, como dar assistncia s

    crianas, aos idosos, aos desempregados, aos deficientes, aos doentes, aos desamparados de

    toda sorte, garantindo desta forma o bem-estar da coletividade e o pleno desenvolvimento da

    pessoa humana.

    Os artigos 7 e 8 desse captulo dispem sobre os direitos sociais dos trabalhadores

    urbanos e rurais.

    Oportuno destacar que alguns desses direitos, que j estavam previstos na Consolidao

    das Leis do Trabalho, instituda pelo Decreto-Lei n 5.452, de 1/05/1943, foram alados

    condio de direitos fundamentais.

    Vale lembrar aqui um dos fatores que impulsionou o surgimento dos direitos sociais. Aps o reconhecimento dos direitos individuais, especialmente na poca da Revoluo Industrial, percebeu-se que sem a efetivao dos direitos sociais, de nada valiam os direitos individuais (BREGA FILHO. 2002, p. 83).

    10

    Art. 5, 2 - Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ele adotados, ou dos tratados internacionais que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

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    Outra importante evoluo a contemplao da clusula de imutabilidade, que procura

    preservar a garantia desses direitos11, permitindo ao Poder Judicirio a declarao de

    inconstitucionalidade de qualquer tentativa de reforma ou supresso dos artigos e incisos que

    importem na supresso das garantias dos direitos individuais ou coletivos.

    Apesar do artigo 60, 4, inciso IV, se referir a direitos e garantias individuais, a sua

    interpretao deve incluir todos os direitos fundamentais (individuais, coletivos, sociais,

    polticos e de solidariedade) porque a dignidade humana constitui um valor que atrai a

    realizao dos direitos do Homem, em todas as suas dimenses (SILVA, J. 2000, p. 149).

    Consideraes finais

    Pelo breve histrico aqui apresentado, inconteste a evoluo dos direitos

    fundamentais consagrados nos textos constitucionais, especialmente na Carta Magna vigente,

    a chamada Constituio Cidad. lamentvel, porm, constatar que atualmente esses

    direitos e garantias so de modo geral mero exerccio de retrica, na medida em que prevalece

    nas decises em diferentes contextos e situaes a defesa de interesses de alguns pequenos

    grupos que se beneficiam diretamente da manuteno da ordem social vigente. Mais que isso:

    a questo fundamental que a prpria Carta Magna se apresenta como contraditria, pois se

    assenta sobre o trip da revoluo francesa, que por sua vez se assenta sobre o engodo de

    uma filosofia da espera que no se realiza nunca. sobre essa filosofia que o sistema liberal

    iluminista, e mais tarde o neoliberalismo, alicerar seus fundamentos o homem (indivduo)

    livre e, como tal, igual a qualquer outro homem em sua liberdade, mas s viver a

    efetividade dessa igualdade livre quando triunfar a solidariedade que por fim aos interesses

    individuais em prol do coletivo. At l devero ser conduzidos pelos detentores do poder-

    saber, esses iluminados que amenizaro com suas instituies, leis e fora os efeitos nocivos

    do irracionalismo, egosmo e individualismo fruto natural da liberdade.

    Contam para isso com os prstimos dos poderes Executivo, Legislativo e, inclusive, do

    Poder Judicirio, que, muitas vezes cegos aos jogos de poder (e aqui parece que o jogo j o

    de cegar-se) e aos interesses envolvidos, atendem com suas prticas s minorias que no

    11

    Art. 60, 4 - No ser objeto de deliberao a proposta de emenda tendente a abolir: ...IV os direitos e garantias individuais.

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    medem esforos para garantir a sua opulncia, a qual se funda e afirma na misria de grande

    parte da populao.

    Constata-se assim uma contradio de base na Constituio brasileira que se objetiva na

    grande distncia entre a afirmao dos direitos fundamentais ali preconizados e a realidade

    social, assim como na distncia entre os muitos discursos em defesa de uma suposta tica e as

    poucas prticas sociais efetivamente comprometidas com a superao das desigualdades

    sociais, com o repdio a toda e qualquer forma de violncia, com a luta em prol da dignidade

    humana.

    Essas distncias se acentuam com prticas que desconsideram a polissemia

    caracterstica da vida em sociedade, o que significa que toda e qualquer igualdade s

    possvel com a considerao das diferenas que conotam a todos e a qualquer um. Nesse

    sentido, a igualdade pretendida a de condies, o que significa que as leis e suas defesas no

    podem ser cegas s condies reais de existncia que fundam desigualdades, essas sim a

    serem superadas. H que se perguntar se isso possvel em um Estado de Direito cujo

    fundamento dado pela cegueira s diferenas para triunfo da justia.

    As prticas jurdicas, assim como as prticas dos poderes legislativo e executivo, se se

    pretendem democrticas, necessitam nesse sentido no serem morais, mas sim ticas, crticas,

    cientes do que ou de quem se defende e do compromisso que essa prtica assume com um

    modelo de sociedade que se quer (re)produzir. A defesa dos direitos preconizados no texto

    constitucional requer, desse modo, no uma justia cega, mas sim prticas jurdicas atentas

    aos jogos de interesses, aos lugares sociais e s condies de existncia das pessoas

    envolvidas, o que implica o olhar atento sobre o prprio lugar que o sujeito da ao assume,

    sobre as suas motivaes e interesses.

    REFERNCIAS

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