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ALÔ AMÉRICA DO SUL! - OS ESTEREÓTIPOS SUL AMERICANOS NA PROPAGANDA DE GUERRA ESTADUNIDENSE. Aline Vanessa Locastre – Mestranda UEL Bolsista Capes O mundo encantado da Walt Disney é sem dúvidas muito conhecido no mundo hoje. Seus personagens mais importantes como o esperto Mickey Mouse e o engraçado Pato Donald marcaram a infância de milhares de crianças (e adultos também) ao redor do mundo, tanto em suas aventuras nos quadrinhos quanto no cinema. Aparentemente ingênuos esses personagens, assim como as aventuras que os cercam, carregam intenções, mensagens subliminares, que procuram atender a determinados motivos, em determinados momentos da história. Assim, o estudo do cinema, ou da mídia, cada vez mais desperta o interesse dos historiadores, que procuram perceber a intencionalidade dessas produções midiáticas e o impacto que elas proporcionam em seu público. Marc Ferro em “O Filme: uma contra-análise da sociedade?”( FERRO, 1989, p.199-215) levanta questões pertinentes sobre esse tipo de entretenimento, que tomado por historiadores pode se tornar uma “imagem objeto”. Para Ferro, fica muito evidente que todo filme, que parece proporcionar um puro e simples entretenimento, defende os interesses de grandes empresas privadas ao mesmo tempo em que passa por uma ferrenha censura por parte do Estado. O cinema seria capaz, segundo Ferro, de destruir aquilo que professores, juristas, pensadores demoraram décadas para construir. Essa fonte de diversão alterou padrões, instaurou outros tipos de pensamentos, fez surgir uma História que não é necessariamente a História ( FERRO, 1989, P.208). Porém, várias precauções devem ser tomadas na análise filmitica. Jamais um filme deve ser tomado como prova do que aconteceu, já que se trata de uma obra de arte que está concretamente ligada ao seu presente. Ângelo Moscariello, autor da obra “Como ver um filme (MOSCARIELLO, 1985)” afirma que “fazer dos protagonistas de uma story os supostos protagonistas de uma História significa repor a esfera do ‘verdadeiro’ sob a do ‘verosímil’”(MOSCARIELLO, 1985, p. 83). Para uma análise do cinema, ainda segundo Ferro, é necessário haver uma combinação entre as partes visíveis e não visíveis dos filmes. Assim, “É necessário aplicar esses métodos a cada substância do filme (imagens, imagens sonoras, imagens não sonorizadas)”(FERRO, 1989, p. 203), juntamente com “a narrativa, o cenário, o texto, as III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 142

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ALÔ AMÉRICA DO SUL! - OS ESTEREÓTIPOS SUL AMERICANOS NA PROPAGANDA DE GUERRA ESTADUNIDENSE.

Aline Vanessa Locastre – Mestranda UEL

Bolsista Capes

O mundo encantado da Walt Disney é sem dúvidas muito conhecido no mundo hoje.

Seus personagens mais importantes como o esperto Mickey Mouse e o engraçado Pato Donald

marcaram a infância de milhares de crianças (e adultos também) ao redor do mundo, tanto em

suas aventuras nos quadrinhos quanto no cinema. Aparentemente ingênuos esses personagens,

assim como as aventuras que os cercam, carregam intenções, mensagens subliminares, que

procuram atender a determinados motivos, em determinados momentos da história.

Assim, o estudo do cinema, ou da mídia, cada vez mais desperta o interesse dos

historiadores, que procuram perceber a intencionalidade dessas produções midiáticas e o

impacto que elas proporcionam em seu público. Marc Ferro em “O Filme: uma contra-análise

da sociedade?”( FERRO, 1989, p.199-215) levanta questões pertinentes sobre esse tipo de

entretenimento, que tomado por historiadores pode se tornar uma “imagem objeto”.

Para Ferro, fica muito evidente que todo filme, que parece proporcionar um puro e

simples entretenimento, defende os interesses de grandes empresas privadas ao mesmo tempo

em que passa por uma ferrenha censura por parte do Estado. O cinema seria capaz, segundo

Ferro, de destruir aquilo que professores, juristas, pensadores demoraram décadas para

construir. Essa fonte de diversão alterou padrões, instaurou outros tipos de pensamentos, fez

surgir uma História que não é necessariamente a História ( FERRO, 1989, P.208).

Porém, várias precauções devem ser tomadas na análise filmitica. Jamais um filme

deve ser tomado como prova do que aconteceu, já que se trata de uma obra de arte que está

concretamente ligada ao seu presente. Ângelo Moscariello, autor da obra “Como ver um filme

(MOSCARIELLO, 1985)” afirma que “fazer dos protagonistas de uma story os supostos

protagonistas de uma História significa repor a esfera do ‘verdadeiro’ sob a do

‘verosímil’”(MOSCARIELLO, 1985, p. 83).

Para uma análise do cinema, ainda segundo Ferro, é necessário haver uma

combinação entre as partes visíveis e não visíveis dos filmes. Assim, “É necessário aplicar

esses métodos a cada substância do filme (imagens, imagens sonoras, imagens não

sonorizadas)”(FERRO, 1989, p. 203), juntamente com “a narrativa, o cenário, o texto, as

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relações do filme com o que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime”

(FERRO, 1989, p.203). Diante dessas problemáticas levantadas poderíamos chegar a

conclusões acerca da “realidade” ao qual o filme, em análise, referencia.

Da mesma forma que as entrelinhas contidas em imagens como fotografias ou pinturas

devem ser levadas em consideração, o filme também deve considerado por meio da ótica não

visual. Na ausência dessas informações, os por quês dessas lacunas podem significar muito

para averiguar os sentidos “ocultos” das imagens estáticas ou em movimento.

Por se tratar de imagens em movimento, diferentes de outros tipos de arte, o cinema

oferece ao seu espectador a sensação de vivenciar aquilo que está sendo reproduzido na

película. Derivado dessa sensação, inúmeras vezes os filmes não se limitam a divertir seu

público. Consciente ou inconscientemente eles reproduzem valores, modismos de seus

produtores. Em sua dissertação de mestrado, Alexandre Maccari Ferreira defende que todos

os filmes poderiam ser enquadrados em algum tipo de propaganda, contudo, há obras em que

esse caráter propagandístico faz mais notável em determinadas épocas (FERREIRA, 2008, p.

68). Um exemplo foi a década de 1940, onde em decorrência da Segunda Guerra Mundial,

várias empresas, como a Walt Disney estava diretamente ligadas ao esforço de guerra, ora

lançando produções que justificavam o conflito, ora desmoralizando o inimigo.

Analisaremos nesse artigo o desenho/documentário produzido pelos estúdios da Walt

Disney chamado “Alô Amigos”, datado de 1943. Nele encontramos uma grande quantidade

de elementos para análise sobre o teor da propaganda de guerra estadunidense na América

Latina, assim como a visão de seus produtores sobre a população e as sociedades localizadas

abaixo das fronteiras estadunidenses. Enfocaremos nossas atenções às imagens sul americanas

disseminadas pela produção, que de alguma maneira, reflete uma visão não apenas dos

empregados Disney, mas de uma parcela muito mais ampla da sociedade estadunidense sobre

os vizinhos americanos em meados dos anos 1940.

“Novas” relações entre americanos

Foi em um contexto conturbado, após a depressão de 1929 e estranhamento da

imagem estadunidense com os latino-americanos que o presidente Franklin Delano Roosevelt

assumiu a presidência da república dos Estados Unidos. Durante seu mandato viabilizou uma

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série de programas econômicos e políticos (o New Deal), que tiraram o país do abismo

financeiro que ainda se encontrava no pós crise (TOTA, 2000, p. 38).

A necessidade de exportação e comércio dos artigos industrializados dos Estados

Unidos, assim como a carência por alguns gêneros de matérias primas requeriam a urgência

do estreitamento das relações diplomáticas com os países latino-americanos. O livre comércio

teria que encontrar uma fresta para entrar definitivamente nas fronteiras americanas. Entre

1935 e 1939 buscou-se a tentativa de provar que a melhor maneira de transação comercial

teria que advir do livre comércio entre as nações (MOURA, 1984, p. 18).

Franklin Roosevelt será eternizado como o grande implementador da ‘Política da

Boa Vizinhança’, como estratégia de estreitamente nas relações Estados Unidos e América

Latina. Porém, atento aos empecilhos que a Doutrina Monroe causava ao próprio

desenvolvimento econômico de seu país, o anterior presidente da república, Herbert Hoover,

em uma viagem que fez a Honduras, proferiu pela primeira vez o termo “Good Neighbor’, em

referência aos vizinhos de continente (TOTA, 2000, p.28).

Vemos que não foi apenas uma iniciativa de Franklin D. Roosevelt a tentativa de

mudança nas relações diplomáticas dos Estados Unidos com a América Latina. Esse caráter

impositivo e inflexível perante a liberdade de governabilidade dos vizinhos latinos afetou por

demasia a imagem estadunidense na América.

A disparidade cultural existente entre americanos também era um fator de

desagregação. Enquanto os Estados Unidos praticavam o protestantismo (religião de vertente

cristã), os latino-americanos professavam, em grande parte, a religião Católica (também

vertente do cristianismo). Os aspectos culturais, como mistura étnica, organização econômica

e política fomentavam um abismo entre a América de origem Anglo Saxã e a América Latina.

No imaginário estadunidense, durante muito tempo, não era possível estabelecer laços entre as

Américas, uma vez que, a superioridade civilizacional dos Estados Unidos parecia

inquestionável. Não havia sentimento de irmandade, já que eles não pareciam irmãos.

Americans eram os nascidos nos Estados Unidos da América e seus vizinhos, de origem latina

os Other Americas, eram os residentes em terras distantes, com imensos vazios populacionais

(TOTA, 2000, p.36).

Em um momento primordial da história dos Estados Unidos, o mundo natural já

havia sido vencido, principalmente após a Marcha para o Oeste. O Mundo natural, nesse

sentido, havia sido transformado em função do progresso material que os desbravadores

almejavam. Ao comparar esse ideário com a América Latina, automaticamente “provava-se”

que os imensos territórios despovoados dessa região representavam o “atraso” dos habitantes

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latino-americanos. O modelo estadunidense precisava ser aceito e praticado para a América

Latina crescer economicamente (JUNQUEIRA, 2000).

Entretanto, como adentrar no solo vizinho sem criar hostilidades, uma vez que,

durante tanto tempo, os Estados Unidos representavam uma ameaça à soberania dos governos

Latino americanos? A estratégia foi optar por uma forma mais sutil, onde o jeito de viver, o

American Way Of Life, fosse almejado pelas mais diversas camadas sociais das ‘outras

Américas’. Assim, a sociedade estadunidense foi disseminada através dos meios de

comunicação, programas de apoio à saúde e empréstimos para o desenvolvimento dos países

latino-americanos.

A forma pelo qual a Política de Boa Vizinhança foi implementada, no que diz

respeito a uma coerção militar ou sanções econômicas, foi mais branda. Podemos dizer que a

‘roupagem’ da política de Roosevelt destoava da do Big Stick, porém, os objetivos de ambos

eram idênticos: impedir que países europeus adentrassem as fronteiras econômicas da Latino-

América; proteger o livre comércio estadunidense na região; garantir ao governo de ‘Tio Sam’

o território americano, pois ele possuía uma posição estratégica importantíssima aos Estados

Unidos. (MOURA, 1984, p. 18)

Para adentrar o território vizinho, de uma forma que não ocasionasse maiores

problemas, o governo Roosevelt buscou parcerias, nesse caso com os estúdios Walt Disney,

com o qual incentivou a produção de filmes com o sentido de transmitir aos americanos

informações sobre o território e sua população, lançando mecanismos para impedir que as

forças nazi-fascistas penetrassem no território americano. Elaborando desde desenhos

animados que abordavam a escassez de comida em decorrência do conflito armado, até gibis

ou produções onde retratavam a inferioridade moral dos alemães, japoneses e italianos, a Walt

Disney foi uma grande parceira das Forças Armadas estadunidense na década de 1940.

(FERREIRA, 2008, p. 13-25)

A América do Sul segundo Walt Disney

O desenho animado “Alô Amigos”, no original “Saludos Amigos” datado de

1942/43, tem uma duração de 42 minutos e até hoje impressiona pela tecnologia empregada

para sua produção. O desenho/documentário pode ser dividido em quatro partes, sendo que,

em cada uma delas, uma região da América do Sul é enfocada. O Rio de Janeiro, no Brasil, os

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pampas argentinos, o Lago Titicaca no Peru e Bolívia e o monte Aconcagua no Chile, servem

de cenário para as aventuras dos personagens da Disney e de inspiração para seus roteiristas.

Entretanto, nessa produção percebemos inúmeros estereótipos, ainda hoje presentes, acerca da

América do Sul e da sua população.

Em um estudo elaborado pela historiadora Mary Anne Junqueira, desde o

desbravamento do Oeste estadunidense a conquista de um território hostil foi necessário para

a implantação da civilização. Assim, o wilderness (que na tradução de Junqueira adquire um

caráter de espaço ‘selvagem’, com ‘vazios populacionais’) serviu de motivação para a luta dos

cidadãos estadunidenses em vários momentos da História, entre eles as lutas nazi-fascistas,

comunistas e em guerras como a do Vietnã. (JUNQUEIRA, 2000, p. 70-71)

Esse mito, da conquista de espaços selvagens, fez e ainda faz sucesso na literatura e

cinema estadunidenses, que mostram cowboys desbravando o West do país. No século XX

esse Wilderness será comumente associado ao território sul americano, que constantemente é

mostrado pela imprensa como um lugar de vazios populacionais, homens e mulheres com

culturas primitivas e uma natureza ainda não desbravada. É a partir desse pensamento de

Junqueira, em pensar a associação entre Wilderness e América do Sul no imaginário dos

Estados Unidos, que procuraremos analisar a difusão desse pensamento através da mídia,

partindo do desenho animado “Alô Amigos”.

Logo no início do desenho/documentário Ed PLumb e Paul Smith, ambos

funcionários da cinematográfica, compõem uma pequena música que simboliza a ‘amizade’

entre os vizinhos americanos:

“Saudamos a todos, da América do Sul

A terra onde o céu sempre é bem azul

Saudamos a todos, amigos de coração

Que lá deixamos, de quem lembramos

Ao cantar essa canção”

Quem possivelmente, em meados da década de 1940, lembrava do histórico

intervencionista estadunidense na América Latina e das enormes disparidades sócio-culturais

entre os Estados Unidos e os vizinhos americanos, possivelmente questionaria o verdadeiro

sentimento dessa canção. “Amigos de coração” retrata a política de aproximação entre as

Américas, pretendida por Franklin D. Roosevelt, que tentava transformar as Américas em seu

protetorado para impedir sua adesão às forças nazi-fascistas.

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A América do Sul, nessa canção, é também descrita como uma terra onde “o céu

sempre é bem azul”. Um lugar onde possui sempre um céu azul nos dá a impressão de um

lugar paradisíaco, sem problemas, de clima agradável e de belas paisagens. O solo sul

americano possui inúmeras paisagens, lugares belíssimos e encantadores, porém, possui

grandes problemas que passam a ser irrelevantes face a esse céu azul.

Os objetivos que motivaram vários músicos, roteiristas, desenhistas da Disney a

saírem em expedição pela América do Sul são colocados logo no início do

desenho/documentário. As motivações teriam sido encontrar novos companheiros para

Mickey e Donald e conhecer novas músicas e danças. O primeiro objetivo foi alcançado já

que, é a partir desse desenho, que o personagem José Carioca ou Zé Carioca (representando o

malandro do Rio de Janeiro) se junta aos companheiros da Disney World.

Zé Carioca em sua primeira aparição no mundo Disney (Cenas: Alô Amigos)

O segundo objetivo, que pretende conhecer a dança e música sul americana nos

mostra a forma como os estereótipos dessa região são apresentados no desenho. A cultura

desses países é apresentada como ‘estranha’, ‘pitoresca’, ‘esquisita’. Por vezes, assemelham

as tradições americanas com a cultura local estadunidense. Nas imagens abaixo, em que

retratam música e dança típicas dos pampas gaúchos o narrador faz uma aproximação com as

danças e músicas do Faroeste.

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Bailes e músicas típicas argentinas: (Cenas: Alô Amigos)

Junqueira narra que por muito tempo houve o mito da superioridade do povo

argentino, por este ser predominantemente branco. Ao contrário do restante da América

Latina que foi formada por povos indígenas e negros, a Argentina ganhava um lugar de

destaque na produção “Alô Amigos”, já que foi esse país comparado ao Oeste estadunidense.

Segundo Junqueira, essa ‘similaridade’ cultural entre Argentina e Estados Unidos, confirma

um pensamente muito disseminado entre os estadunidenses de que a civilidade pertence aos

povos de pele branca. (JUNQUEIRA, 2000, p. 140)

A música boliviana e peruana é caracterizada como herança direta dos Incas e

segundo a narração do desenho é uma música ‘nostálgica’ e ‘exótica’. Assim, toda essa

nostalgia é ressaltada na tentativa de uma aproximação com as antigas tradições do Oeste

estadunidense. Há uma tentativa em criar uma origem comum que assemelha e une os

americanos, mesmo que essa tradição seja, na realidade, muito diferente.

Música nostálgica e exótica herdada dos Incas (Cenas: Alô Amigos)

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No caso do gaúcho argentino essa tentativa de aproximação com o Cowboy dos

Estados Unidos é tão explícita que em uma parte do desenho eles trocam a roupa do

personagem Pateta (vaqueiro do Faroeste) pelos trajes típicos do gaúcho, pois segundo o

narrador do desenho, os dois possuem muita semelhança, apesar de seu vestuário variar

“ligeiramente” entre um e outro.

Roupas típicas do gaúcho (Cenas: Alô Amigos)

O samba brasileiro é a dança que parece chamar mais a atenção dos funcionários da

Disney. Tal é o encanto que eles próprios tentam aprender alguns instrumentos para a sua

execução e os passos da dança. Mesmo sem executar os passos e os instrumentos

corretamente, a equipe de Disney parece muito compenetrada em aprender com os brasileiros.

Em momento algum a origem da dança é citada, concomitantemente, a população negra no

Brasil parece não existir.

O samba brasileiro (Cenas: Alô Amigos)

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Outro ponto a ser destacado nessa análise é o carinho que a população sul americana

parece sentir pelos seus vizinhos continentais. Por meio do personagem Zé Carioca, que

representa o povo brasileiro, Pato Donald é recebido prazerosamente pelo papagaio. Com um

abraço “quebra costelas, típico carioca”, segundo Zé Carioca, o Pato Donald é recebido

calorosamente no Brasil. Essa possível “hospitalidade” e “alegria” dos brasileiros é até os dias

de hoje disseminado pelos meios de comunicação como marca de seu povo.

A hospitalidade brasileira (Cenas: Alô Amigos)

A malandragem do carioca perante os problemas cotidianos também se faz presente

no cartoon. Em um passeio de Donald e Zé Carioca pelo Rio de Janeiro, os dois sentam em

uma mesa de bar e tomam a tradicional cachaça brasileira. O papagaio parece muito

familiarizado com a bebida e não sofre alteração nenhuma em sua fisionomia. Donald,

entretanto, não agüenta uma dose de cachaça e passa mal. Fica claro na animação que o

objetivo é mostrar que o sul americano induz o estadunidense ao consumo de bebida

alcoólica, este por sua vez parece ingênuo ao ponto de se deixar levar pelo convite de seu

‘novo’ amigo.

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Zé Carioca leva Donald para um passeio no Rio de Janeiro (Cenas: Alô Amigos)

A paisagem natural da América do Sul é muito ressaltada, dando a impressão de um

grande vazio populacional, como aborda Mary Anne Junqueira. O mundo natural ainda não

foi desbravado e se apresenta como algo a ser conquistado e ‘domado’ pelo homem

‘civilizado’. Na parte do desenho que se destina ao Chile, Walt Disney optou por homenagear

os pioneiros dos correios que enfrentavam jornadas perigosas e longas para a entrega de

correspondências. Para tal, o personagem principal, um aviãozinho de nome Pedro, enfrenta

todo o tipo de perigo para cumprir sua missão: entregar a tempo as correspondências de

Mendoza a Santiago. A paisagem que cerca tal história está concentrada na Cordilheira dos

Andes e em nenhum momento cidades ou populações humanas são mostradas.

Aquarelas dos Alpes chinelos (Cenas: Alô Amigos)

Na cena em que o aviãozinho Pedro atravessa o monte Aconcágua, ele é atingido por

uma grande tempestade, que por sorte e por suas habilidades não é destruído. Vemos que, em

terras sul americanas a natureza mostra-se hostil ao personagem principal. Essa hostilidade

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adquire um sentido de América ‘selvagem’. Para Junqueira, a Cordilheira sul americana foi

vista, na maioria das vezes, como “ entrave geográfico para o progresso, barreira que impedia

a comunicação entre os povoados espalhados pela região”(JUNQUEIRA, 2000, p. 137).

O aviãozinho Pedro em meio a uma tempestade (Cenas: Alô Amigos)

Nas partes do desenho/documentário Alô Amigos que aborda os pampas argentinos

e o Lago Titicaca, essa natureza hostil também pode ser observada. Nas cenas abaixo vemos

um cavalo dominando o vaqueiro Pateta, ao invés deste o dominar e uma Lhama, animal

típico da região andina, dominando o personagem Donald. Em ambos os casos, percebemos

uma América do Sul com personalidade, que não modifica seu cotidiano, nem sua ‘natureza’

quando em seu contato com os seus vizinhos estadunidenses.

O cavalo domina o personagem Disney ( Cenas: Alô Amigos)

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A Lhama domina Pato Donald (Cenas: Alô Amigos)

Pudemos perceber que o governo de Franklin Roosevelt procurou estratégias para

conter o nazi-fascismo nas Américas e manter os latino-americanos sobre seu protetorado.

Uma das medidas foi buscar parcerias com estúdios (no caso analisado a Disney) para, através

de produções midiáticas e de entretenimento, disseminar o modelo estadunidense de

sociedade, assim como descaracterizar os inimigos de guerra (Alemães, Japoneses e Italianos)

e ressaltar os demais países da América Latina.

Porém, ao estudarmos a produção “Alô amigos”, percebemos que, muitas vezes, ao

tentar abordar os latino-americanos nas produções midiáticas, muito estereótipos acerca da

cultura dos vizinhos dos Estados Unidos eram reproduzidos. O peso do imaginário

estadunidense de dominação do Wilderness (espaço vazio, selvagem) para a concretização da

civilização foi difundido nas Américas, na medida em que a única alternativa para o

desenvolvimento econômico, político e cultural da América do Sul parecia depender da

dominação de seu povo sobre os espaços despovoados.(JUNQUEIRA, 2000)

Algumas características atribuídas à cultura da América do Sul, como a de possuir

músicas e danças semelhantes às do Oeste estadunidense, nos oferece indícios de que se

tentou criar uma aproximação cultural entre americanos, mesmo estando nitidamente claro a

disparidade cultural entre eles. O país em que essa tentativa de semelhança cultural é mais

enfocada é a Argentina, onde o vaqueiro Pateta é transportado para os pampas gaúchos, a fim

de mostrar a grande semelhança entre sua vida do Texas com a vida dos campos argentinos.

A difusão do carioca como ‘malandro’ e adorador do samba, ganha em ‘Alô

Amigos’, grande destaque. Em todo o episódio dedicado ao Brasil, o samba e a malandragem

de Zé Carioca estiveram presentes. Uma imagem do povo brasileiro como acolhedor e

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receptivo aos estrangeiros, assim como envolto por belíssimas paisagens naturais estão até os

dias de hoje presentes na imagem que o Brasil adquire no exterior. Concomitantemente, serve

como quesito de identificação de uma grande parcela da população, que acredita realmente

possuir essas características.

Uma América do Sul ‘selvagem’, ainda hostil, de padrões culturais muito diferentes

dos Estados Unidos, está contido de forma enfática em ‘Alô Amigos’. A todo o momento os

personagens Disney são dominados pelos personagens ou território sul americanos.

Intencional ou não, nos dá a impressão de ingenuidade por parte dos visitantes e da não

alteração dos costumes sul americanos quando em face da interação com os vizinhos

estadunidenses.

Assim, visando não somente ao entretenimento, vemos que muitas vezes as

produções cinematográficas trazem consigo intenções e pontos de vista, pois atendem a

interesses privados e em algumas vezes estatais. Não podemos desvincular um filme do

contexto que o permeia, por esse motivo Marc Ferro o trata como “imagem objeto”. Uma

produção cinematográfica contribui para o entendimento do momento histórico ao qual

pertence e nos oferece elementos para a análise do jogo de poder que este reflete.

Referências:

FERREIRA, Alexandre Maccari. O cinema Disney agente da História: A cultura nas Relações Internacionais entre Estados Unidos, Brasil e Argentina (1942-1945). Dissertação apresentada em 2008 ao programa de Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria – RS.

FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.) História: novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989. JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande. Imaginando a América Latina em Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista, SP: EDUSF, 2000. MOSCARIELLO, Angelo. Como ver um filme. Lisboa: Presença, 1985.

MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1984.

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TOTA, Antonio Pedro. O Imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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