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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
ALTERIDADE E SUJIDADE ALÉM DAS PALAVRAS: IDENTIDADES SILENCIADAS EM PRÁTICAS SOCIAIS PÓS-MODERNAS
Julia Oliveira Osorio Marques1
Sendo dinâmicas, heterogêneas e fragmentadas, as identidades do sujeito pós-
moderno encontram-se em constante processo de mudança (HALL, 2006). Logo,
identidades não são fixas, tampouco são determinantes de padrões comportamentais; ao
contrário, elas são resultados transitórios das ações humanas. Pode-se dizer, então, que
a identidade está relacionada à performance, pois o sujeito age para ser; ele não é antes
de agir (BUTLER, 1990). A partir disto, e considerando-se que a diferença, – o outro,
objeto externo ao sujeito – tende a ser visto como sujidade (BAUMAN, 1998), as práticas
sociais estão permeadas de ações que podem desencadear o silenciamento. Isto porque o
jogo de forças de poder exercido nas mais diversas situações de interação social
(BORDIEU, 2009) potencialmente acarreta este processo de silenciamento e exclusão do
outro. Além disso, por ter uma ideia de unidade essencial entre si mesmo e o outro, o ser
humano tende a imaginar que o outro tem a mesma perspectiva que a sua (BAUMAN,
1998), e que as identidades são semelhantes. Diante disso, este trabalho visa explorar a
questão da alteridade enquanto sujeira nas relações sociais pós-modernas, tendo em
vista que o silenciamento de identidades julgadas como sujas está relacionado ao ato de
preconceito e exclusão social. O silenciamento encontra-se, portanto, além das palavras
enunciadas e dos instantes de silêncio; ele aqui é compreendido como o ato de silenciar,
resultante de se tomar a palavra, tirar a palavra do outro, obrigá-lo a dizer, fazê-lo calar,
entre outros (ORLANDI, 2010).
Desta forma, ao deparar-se com a alteridade, muitas vezes o ser humano
necessita enfrentar o pré-julgamento inadequado do outro, o que pode levar à violência
simbólica (BORDIEU, 2009), ao silenciamento e à exclusão. A confrontação da imagem
do outro com a própria pode trazer à tona características pouco toleradas de si mesmo, o
que muitas vezes incomoda, pois desacomoda a ilusão humana de que se pode sentir o
mesmo que o outro quando nas mesmas circunstâncias (BAUMAN, 1998). Sendo assim, o
estranho, o estrangeiro, o sujo, o diferente, o marginal, ou simplesmente, o outro, nem
sempre é bem aceito e como consequência, identidades são silenciadas. A pureza está
relacionada à apropriação do local em que se encontra o objeto – o sujeito – julgado
como puro (BAUMAN, 1998). E a sujidade seria este mesmo objeto fora do lugar
considerado como adequado. Como consequência, o puro está relacionado à ordem, e o
sujo, essencialmente à desordem. Além disso, tendo como base os estudos da língua em
uso, na concretude das interações sociais (BAKHTIN, 1990), e tendo como pressuposto o
1 Mestranda no UniRitter.
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fato de que a língua simboliza a realidade cultural (KRAMSCH, 1998), este trabalho busca
fundamentalmente trazer à tona a questão de identidades silenciadas em práticas sociais
pós-modernas em que o outro é visto como sujidade.
Para isso, inicialmente seria relevante explorar de forma sucinta a questão da
identidade a partir do teórico jamaicano Stuart Hall, o qual possui diversos estudos
referentes a identidade cultural do sujeito pós-moderno. O autor (2006, p. 25) traça uma
linha histórica com relação ao homem no tocante a sua identidade. Ele explica que a
modernidade surge entre a época do Humanismo Renascentista do século XVI, quando o
homem era o centro do Universo, e a do Iluminismo do século XVIII, a qual se baseava
na imagem do homem racional e científico. A partir de Descartes, estabeleceu-se uma
separação paradoxal entre matéria e mente. Assim, o “sujeito cartesiano” seria aquele
movido pela premissa “penso, logo existo”, “concepção do sujeito racional e consciente,
situado no centro do conhecimento (HALL, 2006, p. 26). Nesse sentido, percebe-se que a
noção de sujeito já teve diferentes concepções precedentes à pós-modernidade, sendo
que em períodos anteriores ao Humanismo, como a Idade Média, a vida individual
subordinada-se à da coletividade. Entretanto, em períodos posteriores ao Iluminismo, em
que a identidade era vista enquanto algo fixo e imutável, houve o processo de
descentralização do sujeito (HALL, 2006, p. 46), o qual resultou em identidades
fragmentadas, abertas, inacabadas e contraditórias.
Assim, Hall (2006, p. 10) classifica três tipos de sujeitos quanto a sua identidade
cultural: o sujeito do Iluminismo; o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O
primeiro refere-se a um sujeito centrado, unificado, o qual possui um “centro” , um
núcleo de característica fixa e imutável. Já o segundo refere-se a um sujeito ainda
nuclear, porém, com uma essência “negociável”. Este sujeito, o sociológico, é mais
aberto a mudanças identitárias. E por fim, o sujeito pós-moderno é aquele cuja
identidade se caracteriza pela constante mudança. Aqui nem mais se fala em identidade,
mas sim em identidades (no plural) ou identificações. A partir dessa concepção, a ideia
de uma “identidade plenamente unificada, completa e segura” pertence ao mundo das
fantasias (HALL, 2006, p. 13).
Tendo como pressuposto que o sujeito pós-moderno já não se encaixa em uma
estrutura fixa e sua identidade é fragmentada, aberta e dinâmica, pode-se dizer que ela
está relacionada a noção de performance ao invés de posse. Ou seja, identidades são
resultados temporários das nossas ações e não algo que possuímos. Em seus estudos de
gênero social, a filósofa Judith Butler (1990, p. 33) explica que gênero é performativo, e
pode ser entendido como um “constituinte da identidade que ele pretende ser”. Ela traz à
tona a questão do feminino e masculino como características que não são propriedade
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nossa. Na verdade são “efeitos que produzimos por meio das coisas específicas que
fazemos” (Butler apud Cameron, 2010, p. 271). Portanto, pode-se dizer que nós somos
porque agimos e não agimos porque somos, seja em termos de gênero social ou em
identidade num sentido mais amplo.
Butler (apud Cameron, 1998) afirma que assim como identidade, gênero é
performativo. Ou seja, masculino ou feminino não é o quê somos, nem características
que possuímos, mas efeitos que produzimos baseados no modo como agimos. Nas
palavras da autora:
tornar-se uma mulher (ou um homem) não é algo que se atinge de uma vez por todas em algum estágio precoce da vida. Gênero social tem que ser constantemente reafirmado e publicamente exposto através da performance de repetidos atos específicos de acordo com as normas culturais as quais definem masculinidade e feminilidade. (BUTLER, apud CAMERON, 1998, p. 271)2
Essa forma de compreender gênero social reconhece que existe instabilidade no
que se refere às identidades de gênero. Ou seja, homens e mulheres não estão pré-
programados para repetir um comportamento considerado apropriado ao seu gênero
social pelo resto das suas vidas. Butler (apud Cameron, 1998, p. 272) comenta que,
ainda que por vezes haja um certo custo social, os indivíduos são agentes conscientes
que podem se engajar em atos de transgressão, subversão e resistência para com as
esperadas normas de conduta social com relação ao gênero. Além disso, a autora afirma
que as pessoas desempenham gênero social de forma diferente em contextos distintos e
muitas vezes agem de forma tal que seria considerada como pertencente ao outro
gênero. A partir disso, pode-se concluir que do mesmo modo que os gêneros sociais, as
identidades do sujeito pós-moderno também se caracterizam pelo potencial engajamento
em atos de transgressão, subversão e resistência. E não menos importante, as pessoas
também desempenham identificações distintas de acordo com o contexto em que estão
inseridas. Aqueles cujas performances identitárias não se encaixam nas normais culturais
esperadas por uma comunidade, podem ser, da mesma forma, silenciados e excluídos.
Se as identidades são dinâmicas e mutáveis, e se essa característica faz parte do
sujeito atual pós-moderno, parece contraditório pensar que a aceitação da diversidade
nem sempre ocorre, já que o quê as pessoas têm em comum é justamente o fato de
desempenharem identificações diversas e mutáveis continuamente. A questão é que, em
geral, não nos damos conta disso. Segundo Bauman (1998, p. 18), essa não aceitação da
2 “(…) ‘becoming a woman’ (or a man) is not something you accomplish once and for all at an early stage of life. Gender has constantly to be reaffirmed and publicly displayed by repeatedly performing particular acts in accordance with the cultural norms (…) which define ‘masculinity’ and ‘femininity’.” (Tradução da própria autora)
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diversidade é decorrente do fato de que tendemos a acreditar que olhamos para o mundo
ao nosso redor a partir de uma mesma – e única – perspectiva. Além disso, o autor
polonês afirma que tendemos a crer na “permutabilidade dos pontos de vista” (1998, p.
18), que seria a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e sentirmos e virmos
exatamente o mesmo que a outra pessoa sente e vê, havendo uma ideia de “unidade
essencial entre o mim e o outro” (BAUMAN, 1998, p. 18). Esse tipo de fantasia humana,
onde extremos opostos competem e são excludentes entre si, são típicos da infância,
mas muitas vezes permanecem vivos na idade adulta e se perpetuam no imaginário
devido a uma certa segurança e conforto psicológicos que o conhecido traz. Acreditamos
“que as nossas experiências são típicas” (1998, p. 17) e que portanto, quem quer que
olhe para o objeto “lá fora” vê o mesmo que nós. Assim, não é preciso lidar com o
diferente, com o outro, com o desconhecido, afinal “somos uma unidade”. Entretanto, a
confrontação da imagem do outro com a própria, que ocorre nas situações de interação
social por exemplo, pode trazer à tona características pouco toleradas de si mesmo, o
que muitas vezes incomoda, pois desconstrói a crença de que se pode sentir o mesmo
que o outro quando as circunstâncias são as mesmas (BAUMAN, 1998, p. 18). Aceitar a
diversidade pode ser, portanto, algo difícil, pois lidar com a alteridade implica maturidade
e abertura para olhar para si mesmo e para o outro de modo mais flexível e desprovido
de julgamentos e ideias de pertencimento. Em suma, significa ter que desconstruir a
fantasia de unidade essencial entre as pessoas.
Partindo-se do pressuposto de que essa fantasia predomina entre as pessoas,
Bauman (1998) afirma que o sujeito externo ao “eu” – o outro – sendo este diferente de
mim, pode ser encarado como “sujo”, que nada mais é do que aquele que está “fora do
lugar” (1998, p. 14). O autor contrapõe a ordem e a desordem; a limpeza e a sujeira.
Assim, o sujeito – ou comunidade – que se encontra em um lugar diferente do esperado,
ou que se define por algo diferente, pode ser considerado como sujidade. Bauman (1998,
p. 16) afirma que “a sujeira transgride a ordem” e, portanto, medidas devem ser
tomadas; a sujeira deve ser limpa. A pureza e a impureza estão intrinsecamente
relacionadas e são dependentes do contexto em que se encontra o objeto julgado como
puro ou impuro. Sendo assim, aquele que é puro é associado à ordem e o sujo
essencialmente à desordem. Corroborando com esta ideia, Mary Douglas (apud Bauman,
1998, p. 16) afirma que, embora possa mudar de acordo com a época e com a cultura, o
interesse pela pureza e o sentimento de rejeição contra a sujeira são essencialmente
universais nos seres humanos. Então, o sujo é o estranho, o estrangeiro, o diferente, o
outro. Segundo Bauman (1998, p. 27) estranhos são “pessoas que não se encaixam no
mapa cognitivo, moral ou estético do mundo”.
No dicionário Michaelis, constata-se que a palavra pureza refere-se também a
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“estado ou qualidade do que não tem mácula moral”, o que possibilita inferir a concepção
de sujidade enquanto qualidade de se ter mácula moral. Basta que se observe a falta de
aceitação e respeito pela diferença em geral, tanto em termos humanos e sociais quanto
em termos linguísticos propriamente. Essa é justamente a questão aqui levantada. Se as
pessoas, em geral, têm dificuldade em reconhecer a diversidade nos mais diversos
aspectos, não é difícil concluir que em termos linguísticos, não seria diferente.
O que mais pesa, no final das contas, é na verdade, segundo Bourdieu (2009), o
jogo de forças simbólicas exercido nas interações sociais permeadas pela linguagem.
Para sociólogo francês, o valor das línguas está ligado a hierarquias de poder a elas
relacionadas. O autor explica:
Em consequência da relação que une o sistema das diferenças linguísticas ao sistema das diferenças econômicas e sociais, os produtos de certas competências trazem um lucro de distinção somente na medida em que (...) se trate (...) de um universo hierarquizado de desvios em relação a uma forma de discurso reconhecida como legítima. (BOURDIEU apud GRILLO, 2004, p. 514-515)
Ou seja, a ideia de interação sem que se considere as relações de poder entre as
pessoas é um tanto ingênua, pois em cada evento de uso da língua, a questão do poder
está presente e é determinante no que se refere ao conteúdo enunciado assim como
àquilo que deixa de ser enunciado e que, portanto, reside no universo do silêncio. Nesse
sentido, é elementar que se considere os níveis hierárquicos e portanto, as relações de
poder entre as pessoas participantes de um evento interativo.
Bourdieu (2009, p. 18-19) afirma que, do mesmo modo como ocorre com o
vestuário, enquanto sistema simbólico com função expressiva, a língua também expressa
interesses de diferenciação ligados ao desejo de se ser reconhecido como pertencente a
uma determinada posição da hierarquia social. O autor menciona também (2009, p. 20)
que marcas de diferenciação linguísticas podem ser observadas no modo como as
pessoas pronunciam as palavras. Ele coloca que “em todas as línguas há uma oposição
entre a pronúncia do campo e a pronúncia das cidades, bem como entre a pronúncia das
pessoas cultas e a dos ignorantes.” (BOURDIEU, 2009, p. 20) Da mesma forma, Bakhtin
(1990) afirma que não há enunciação inocente. Ou seja, as nossas escolhas vocabulares
não são desprovidas de sentido ideológico. Tenhamos consciência ou não, aquilo que
elegemos expressar possui carga de sentido e está ligado à relação de poder que
exercemos com os nossos interlocutores em cada evento interativo. Dessa forma, a
questão da variabilidade linguística pode ser vista através das diferentes maneiras de
expressar e desempenhar parte das nossas identificações. E sendo diferentes, como o
sotaque ou a pronúncia, por exemplo, esse modo se ser e/ou de falar pode ser
considerado como “fora do lugar” , como não pertencente, como inapropriado, maculado
e portanto, sujo. A partir disso, surge a violência simbólica, que pode levar ao
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silenciamento.
Pode-se dizer, então, que o ser humano tem a ilusão de que somos uma unidade
essencial (BAUMAN, 1998) e ao mesmo tempo, ele busca a diferenciação do outro
(BOURDIEU, 2009) através de diversos sistemas simbólicos expressivos, para assim,
delimitar a sua posição enquanto pertencente a um certo nível social hierárquico ou
quaisquer outros grupos os quais julga ser relevante o seu pertencimento. Contudo, isso
implica incluir, juntamente com o que é expresso, aquilo que não é expresso. Ao escolher
uma determinada vestimenta que demonstre o seu posicionamento ideológico, o sujeito
igualmente se expressa por aquilo que não está vestindo. Comparativamente, ao eleger
certas palavras, línguas, sotaques, etc., o indivíduo automaticamente expressa sentido
também com aquilo que deixa de enunciar, assim como com a língua que escolhe falar,
com o sotaque que elege utilizar e assim por diante. A partir disso, em se tratando de
língua, que aqui não pode ser entendida enquanto mero sistema abstrato nem tampouco
enquanto absoluta subjetividade (BAKHTIN, 1990), há que se considerar nela, portanto, a
presença do silêncio, que, possui um sentido próprio.
Orlandi (2010, p. 35) afirma que “quando não falamos, não estamos apenas
mudos, estamos em silêncio: há o ‘pensamento’, a introspecção, a contemplação, etc.” A
autora coloca que “o nosso imaginário social destinou um lugar subalterno para o
silêncio” (2010, p. 35) e que há uma ideologia da comunicação, do apagamento do
silêncio, muito pronunciada nas sociedades atuais. Ela afirma ainda:
Isso se expressa pela urgência do dizer e pela multidão de linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo tempo, espera-se que se estejam produzindo signos visíveis (e audíveis) o tempo todo. Trata-se da ilusão de controle pelo que ‘aparece’: temos que estar emitindo sinais sonoros (dizíveis e visíveis) continuamente. (ORLANDI, 2010, p. 35)
O silêncio faz parte da língua. Em se tratando da interação face a face, “Bakhtin
se ocupa não com o diálogo em si, mas com o que ocorre nele, isto, é, com o complexo
de forças que nele atua e condiciona a forma e as significações do que é dito ali”
(FARACO, 2003, p. 59, grifo adicionado). Não obstante a isso, o silenciamento encontra-
se além do silêncio, ele inclui o silêncio, leva ao silêncio, cala, não permite que se diga o
que se deseja, e como uma cadeia de ações e consequências, o silenciamento ocorre nas
mais variadas instâncias da interação social e pode levar à exclusão do indivíduo.
Tomemos como exemplo a sala de aula, que em nível microssocial, pode ser considerada
uma comunidade. Ela ilustra e é refletida pela coletividade maior; ou seja, ela é uma
amostra da sociedade como um todo. Na sala de aula silenciar pode significar impedir ou
dificultar o aprendizado.
Ao observarem diversas aulas de EJA (Educação de Jovens Adultos), Mota e Souza
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(1999, p. 11) perceberam que, em muitos casos, os alunos consideravam-se
“incompetentes” para falar em sala de aula. Para esses alunos, a sua primeira língua era
vista com se fosse uma língua adicional, uma língua estranha, devido ao fato de sentirem
uma grande distância entre o que consideravam a fala esperada e as suas “reais
possibilidades” de fala. Sendo assim, eles se viam desqualificados para desempenhar um
papel por eles compreendido como adequado para uma sala de aula, o que parece ter, ao
menos parcialmente, resultado no seu silenciamento. Sentiam-se sujos, deslocados, não
pertencentes ao universo letrado. Julgavam que a pureza estava em outro lugar, alheio a
eles.
Conclui-se, então, que para alguns alunos, acreditar que devem produzir
enunciados dentro de uma certa norma em determinadas práticas sociais, pode fazer
com que se sintam como estranhos estrangeiros do seu próprio idioma. Então, por não se
considerarem competentes, tendem a ficar em silêncio. No tratante a aprendizes de uma
nova língua não é muito diferente. Além de se depararem com estruturas gramaticais
desconhecidas e outras formas de negociação de significado, o que deles exige o
aprendizado de uma certa “competência comunicativa”, eles ainda precisam se deparar
com o fato de se sentirem muitas vezes “exilados” linguística e psicologicamente, e ainda
precisarem enfrentar uma certa autocobrança quanto ao tipo de linguagem que eles se
sentem exigidos a desempenhar na sala de aula e fora dela. Tudo isso pode ser visto
como condições potenciais de silenciamento por considerarem-se sujos frente a
alteridade.
Como visto até então, assim como pessoas e objetos, língua pode ser considerada
suja. Mas língua e identidades não podem ser separadas de cultura. De acordo com
Kramsch (1998, p. 3), a língua é o modo principal pelo qual o ser humano conduz a sua
vida social e, quando utilizada para a comunicação, ela se relaciona à cultura de modos
complexos e diversos. Pode-se dizer, então, que língua e cultura são inseparáveis. A
autora também explica que a língua expressa a realidade cultural humana, pois ao
enunciar, o sujeito se utiliza de palavras as quais referem-se a experiências que possui
em comum com os demais. Assim, palavras refletem atitudes, crenças, pontos de vista,
os quais são igualmente comuns a outros. Da mesma forma, Bourdieu (1983, p. 156)
entende que língua e cultura são inseparáveis, sendo que a língua está em uma posição
que é, ao mesmo tempo, interna e externa à cultura e à sociedade. O autor afirma:
Podemos nos perguntar por que um sociólogo se imiscui, hoje, na linguagem e na linguística. Na verdade, o sociólogo não pode escapar a todas as forças mais ou menos larvares de dominação que a linguística e seus conceitos exercem ainda hoje sobre as ciências sociais se não tomar a linguística como objeto numa espécie de genealogia. (BOURDIEU, 1983, p. 156)
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Nesse sentido, estudar a sociedade implica estudar a língua e a cultura. Além
disso, Kramsch (1998, p. 3) explica que falantes identificam-se uns com os outros
através do modo como eles usam a língua; ou seja, eles vêem a língua como um símbolo
da sua identidade social. A autora (1998, p. 3), que define língua como um sistema de
signos que contém o seu próprio valor cultural, acrescenta que a língua também
simboliza a realidade cultural. Então, se a língua for marginalizada e, portanto,
considerada como não pertencente, ela é vista como suja; ou melhor, os seu usuários –
as pessoas – o são. E da mesma forma, a cultura vista como sujidade pode ser
linguisticamente julgada e expressa nas práticas sociais.
Mas este não é o único modo de se ver cultura. Há também a perspectiva
histórica, que seria relativa aos modos que evoluíram e se solidificaram. Kramsch (1998,
p. 7) afirma que estes tendem a ser vistos como comportamento natural, que se
sedimentaram na memória dos membros do grupo, que os passam de geração a geração.
As pessoas se identificam como membros de uma sociedade de modo que eles possam
ter um lugar na história daquela sociedade, chamar atenção para o presente momento e
antecipar o futuro. Desse modo, cultura enquanto história e passado remete
fundamentalmente a uma ideia de pertencimento, de “lugar certo”, de limpeza. Aqueles
sujeitos que não se identificam com uma determinada cultura, ou quaisquer normas
sociais vistas como “puras”, e que buscam não reproduzir a história do seu grupo de
origem, tendem a ser excluídos, pois vistos como impuros.
Kramsch (1998, p. 65) explica que se costuma crer que existe uma conexão
natural entre a língua falada por membros de um grupo social e a sua identidade. As
pessoas se identificam e são identificadas como membros de uma comunidade de fala e
discurso por elementos como o sotaque e o vocabulário. Devido a este sentimento de
pertencimento criado pelo fato de dividirem a mesma língua ou o mesmo sotaque, etc.,
as pessoas desenvolvem um senso de importância social e continuidade histórica (1998,
p. 65-66). Dessa maneira, a dificuldade em aceitar e incluir a diversidade linguística –
aqueles que falam de forma “diferente” – tende a levar ao silenciamento e à exclusão.
Isso porque não são meramente as línguas, as culturas ou os sotaques que são julgados
como deslocados, estrangeiros e sujos, mas acima de tudo, são as pessoas.
Em suma, assim como as identificações são constantes, híbridas e mutantes, são
também as línguas, e da mesma forma, o sujeito pós-moderno. Ele não possui mais uma
estrutura fixa e imutável. Tampouco se caracteriza por superficiais mudanças ao redor de
um núcleo identitário. Ele agora é a própria mudança. Ele facilmente se identifica com o
externo. Ele é líquido (BAUMAN, 2001). Não se trata de um julgamento valorativo; trata-
se de concebê-lo como um ser múltiplo, complexo e fragmentado, cuja identidade não
mais é; ela está, visto que é resultado de ações humanas e não de algo que se possui.
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Assim, a diferença faz parte dele. A exclusão da alteridade, do diferente, do sujo, do
estrangeiro, do outsider3 demonstra, pelo menos, a não compreensão das características
do sujeito pós-moderno. No caso de aprendizagem de línguas adicionais novas
perspectivas somam-se às da primeira língua. O ser humano que agrega a cultura alheia
através do aprendizado de uma nova língua, amplia o seu leque de identificações. Aliás, o
termo alheia é aqui relativizado. Ao aprender uma língua adicional o sujeito se apropria
de uma nova cultura, sem necessariamente deixar de lado a primeira. Ambas se
misturam, se intercalam e se alternam. Neste processo, os sentimentos de posse e
pertencimento são, na verdade, uma questão de escolha.
É possível ver-se através do outro. A alteridade é um espelho através do qual o
sujeito, por vezes, teme se enxergar. Talvez o mais confortável seja ignorá-lo e
permanecer no mundo das fantasias onde acreditamos que somos todos iguais; onde a
minha língua, sotaque e cultura são puros; onde os outros são os sujos; onde podemos
nos colocar perfeitamente no lugar do outro; onde o meu passado é imaculado e
desprovido de contaminações linguísticas e culturais; e onde as minhas ações são
oriundas da minha aparente identidade fixa. Bauman (1998, p. 21) diria que este mundo
é o das utopias, onde não há “’nada fora do lugar’; um mundo sem ‘sujeira’; um mundo
sem estranhos”. Para que haja centro, é preciso que exista margem; por isso, tentar
alcançar a pureza gera, automaticamente, a sujeira. Assim, buscar definir e diferenciar,
nas práticas sociais, a pureza e a sujeira talvez seja um dos mais rápidos caminhos que
levam à exclusão.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1990.
BAUMAN, Modernidade liquida. Rio Editora Zahar, 2001.
BAUMAN, Z. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BOURDIEU, P. In: ORTIZ, Renato (Org.). A Economia das trocas linguísticas. São Paulo: Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais, 1983.
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990.
CAMERON, D. Performing Gender Identity: Young Men’s Talk and the Construction of Hetersexual masculinity. In: Coates, J. Language and Gender. Malden: Blackwell Publishing, 1998.
3 Outsider (em inglês) significa aquele que vem de fora.
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FARACO, C. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Edições Criar, 2003.
GRILLO, S. Bourdieu e os linguistas: a discussão dos conceitos de língua, comunicação e gramaticalidade. Universidade de São Paulo: Estudos Linguísticos XXXIII, 2004.
HALL. S. A identidade cultural na pós-modernidade Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
KRAMSCH, C. Language and culture. Oxford: Oxford University Press, 1998.
MICHAELIS. Dicionário online. Editora Melhoramentos, 2009. Disponível em < http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=pureza > Acessado em 21 Jan 2010.
MOTA, K. S. e SOUZA, J. F. de. O Silêncio é de Ouro e a Palavra é de Prata? Considerações Acerca do Espaço da Oralidade em EJA. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n36/a09v1236.pdf > Accessado em: 10 Jan 2010.
ORLANDI, E. As formas do silêncio. São Paulo: Editora Unicamp, 2010.