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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA MORGANA FABIOLA CAMBRUSSI ALTERNÂNCIA CAUSATIVA DE VERBOS INERGATIVOS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Florianópolis-SC 2009

Alternância Causativa ergativa

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semântica dos verbosalternância causativa-ergativagramática formal

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAO E EXPRESSO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA

    MORGANA FABIOLA CAMBRUSSI

    ALTERNNCIA CAUSATIVA DE VERBOS INERGATIVOS NO PORTUGUS BRASILEIRO

    Florianpolis-SC 2009

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAO E EXPRESSO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA

    MORGANA FABIOLA CAMBRUSSI

    ALTERNNCIA CAUSATIVA DE VERBOS INERGATIVOS NO PORTUGUS BRASILEIRO

    Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Lingustica da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Lingustica.

    rea de Concentrao Teoria e Anlise Lingustica. Linha de Pesquisa Lxico e Significao.

    Orientador: Prof. Dr. Heronides Moura

    Florianpolis-SC 2009

  • Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina

  • Para Andria e Eric, que j dividem o meu amor.

  • Agradecimentos

    Ao meu orientador, pelos direcionamentos e pelo apoio de sempre, mas principalmente pela companhia e pela confiana constantes.

    banca julgadora e a Beth Levin, pelas contribuies.

    Aos professores da PGL, pela formao, e a Simone, pelo suporte.

    A Andria, por ser a irm mais doce que algum poderia ter.

    famlia, por razes inumerveis, mas principalmente pela espera.

    Ao Eric, por ser companheiro, fiel e inspirador.

    Aos amigos de todas as pocas, que me ajudam a aceitar mistrios.

    A Magdiel, incansvel leitor e amigo, por me dar matriz de saudade.

    A Letcia, pela fora de sempre e pela amizade que no usa de artifcios.

    Ao sol do Norte, cuja luz clareou os caminhos.

    queles que compreenderam o exlio voluntrio e produtivo.

    fonte de fora, que transborda.

  • Human languages do not define straightforward mappings between thoughts

    and words. To get a sentence, it is not enough to select the appropriate words and string

    them together in an order that conveys the meaning relationships among them.

    Steven Pinker

  • RESUMO

    Esta tese investiga a alternncia causativo-incoativa de verbos inergativos do portugus do Brasil. O propsito do estudo explicar as condies necessrias para se licenciar a incidncia de causatividade sobre inergativos, (a) apresentando uma proposta de representao conceptual para os verbos alternantes que aceitam causatividade e (b) esclarecendo como especificaes de estrutura semntica restringem a participao de inergativos no processo de alternncia causativa e explicam a assimetria registrada entre verbos correlatos do ingls e do portugus, p.ex. caminhar/walk e dirigir/drive. Para isso, so determinados os aspectos de estrutura semntica responsveis pelo licenciamento da alternncia causativo-incoativa de inergativos. Em seguida, esses aspectos so desmembrados em propriedades semnticas menores regulares entre os verbos inergativos que alternam e ausentes da estrutura semntica daqueles que no so passveis de causatividade. Finalmente, demonstrado como essas propriedades so distribudas entre os inergativos do portugus e como respondem pelo contraste entre inergativos alternantes do ingls e seus correlatos no-alternantes em portugus. Com as anlises, constatou-se que uma das condies para causativizao dos inergativos em portugus a manuteno do papel semntico de desencadeador para o segundo argumento da formao causativa e que essa restrio no opera sobre as formas correlatas em ingls. Outra condio que interfere na alternncia de inergativos do portugus a forte restrio para esses predicadores integrarem a classe dos processos causativizados por ao conduzida, em que a causativizao implica a conduo direta ou a conduo indireta e ininterrupta do segundo argumento da forma causativizada.

    PALAVRAS-CHAVE: Alternncia Causativa. Causativizao. Inergativos.

  • ABSTRACT

    This thesis investigates the causative-inchoative alternation of unergative verbs in Brazilian Portuguese. The purpose of this study is to explain the necessary conditions to license the occurrence of causation over unergative verbs by (a) presenting a proposal of conceptual representation for the alternating verbs which tolerate causation, and (b) clarifying how specifications of semantic structure restrict the participation of unergative verbs in the process of causative alternation and explain the asymmetry found between correlated verbs of English and Portuguese, for example caminhar/walk e dirigir/drive. For this reason, the aspects of the semantic structure responsible for the licensing of causative-inchoative alternation in unergative verbs are determined. Then, those aspects are further divided into smaller semantic structures regular among the unergative verbs which alternate and absent from the semantic structure of those who are not liable to causation. Finally, it is demonstrated how those properties are distributed among the unergative verbs in Portuguese and how they explain the contrast between alternating unergative verbs in English and their non-alternating correlates in Portuguese. The analyses show that the condition for the causativization of unergative verbs in Portuguese is the maintenance of its semantic role to trigger the second argument of causative formation and that this restriction does not operate with the correlate forms in English. Another condition which interferes in the alternation of unergative verbs in Portuguese is the strong restriction for them to integrate the class of processes caused by conducted action, in which the causativization implies the direct leading or the indirect and uninterrupted leading of the second argument of the causativized form.

    KEYWORDS: Causative Alternation. Causativization. Unergative.

  • LISTA DE REDUES

    HPSG Head-driven Phrase Structure Grammar LFG Lexical-Functional Grammar LG Lxico Gerativo SEL Sense-enumeration Lexicon SP Sintagma Preposicional

    LISTA DE QUADROS E FIGURAS

    Quadro 1 Condies temticas para a alternncia causativo-incoativa

    76

    Quadro 2 Sntese das propriedades de construes causativas formadas a partir de predicadores primitivamente intransitivos

    108

    Quadro 3 Demonstrativo das ocorrncias de inergativos causativizados com mudana de relao verbo-argumento em ingls e em portugus do Brasil

    159

    Quadro 4 Demonstrativo das ocorrncias de inergativos causativizados sem mudana de relao verbo-argumento em ingls e em portugus do Brasil

    161

    Quadro 5 (1 parte)

    Aspectos de significado que interferem no licenciamento da alternncia causativo-incoativa

    176

    Quadro 5 (2 parte)

    Aspectos de significado que interferem no licenciamento da alternncia causativo-incoativa

    177

    Figura 1 Escala de causatividade de predicadores causativo-incoativos

    110

    Figura 2 Escala de baixo grau de causatividade de predicadores primitivamente intransitivos alternantes

    111

    Figura 3 Escala de grau de causatividade intermedirio de predicadores inacusativos internamente causados

    115

    Figura 4 Distribuio escalar dos predicadores causativo-incoativos por grau de causatividade

    118

  • SUMRIO

    INTRODUO ----------------------------------------------------------------11 CAPTULO 1 Noo de Causa e Delimitao do Estudo---------------------------------18 CAPTULO 2 O Componente Lexical -------------------------------------------------------30 2.1 Ciclo do Componente Lexical: do regular imprevisibilidade ----- 31 2.2 Abordagens Lexicalistas --------------------------------------------------- 35 2.3 Resumo do Captulo -------------------------------------------------------- 39 CAPTULO 3 Transitividade Bsica e Natureza dos Predicadores Alternantes------40 3.1 O Predicador Ncleo da Alternncia Causativa em Foco------------ 40 3.2 Transitividade Bsica------------------------------------------------------- 42 3.3 Caracterizao dos Predicadores Alternantes: distino entre inacusativos e inergativos ------------------------------------------------------ 45 3.3.1 Levin e Rappaport-Hovav (1995)-------------------------------------- 52 3.3.2 Pustejovsky (1995) ------------------------------------------------------- 56 3.3 Procedimentos para Identificao de Transitividade Bsica -------- 65 3.4 Resumo do Captulo -------------------------------------------------------- 68 CAPTULO 4 Alternncia Causativo-Incoativa de Inacusativos -----------------------70 4.1 Estudos sobre a Alternncia Causativo-Incoativa no Portugus do Brasil ------------------------------------------------------------------------------- 71 4.2 Retomada do Problema Apontado --------------------------------------- 92 4.3 Resumo do Captulo -------------------------------------------------------- 94 CAPTULO 5 Alternncia Causativo-Incoativa de Inergativos -------------------------96 5.1 Descrio da Alternncia Causativa de Inergativos ------------------ 96

  • 5.2 Escalas de Causatividade -------------------------------------------------109 5.3 Resumo do Captulo -------------------------------------------------------120 CAPTULO 6 Anlise da Alternncia Causativa de Inergativos---------------------- 121 6.1 O Tratamento dos Aspectos de Significado ---------------------------121 6.2 Entre a Forma Lingustica e a Estrutura Conceptual ----------------130 6.3 Estrutura Semntica, Contedo Semntico e a Alternncia Causativo-Incoativa ------------------------------------------------------------148 6.4 A Relao Verbo-Argumento e os Efeitos da Causativizao de Inergativos -----------------------------------------------------------------------154 6.5 Interferncia de Aspectos de Estrutura Semntica na Alternncia Causativo-Incoativa de Inergativos------------------------------------------166 6.6 Resumo do Captulo -------------------------------------------------------180 CONSIDERAES FINAIS---------------------------------------------- 182 REFERNCIAS ------------------------------------------------------------- 190

  • INTRODUO

    Uma mesma cena no mundo pode ser descrita de diferentes perspectivas, a depender do que cada lngua permite exprimir, das necessidades comunicativas e das percepes mentais do falante. A cena de um vaso quebrado sobre o tapete da sala ao final de uma festa, por exemplo, tanto pode ser referida atravs de (1a) quanto atravs de (1b):

    1 (a) Um convidado quebrou o vaso. (a') A guest broke the vase. (b) O vaso quebrou. (b') The vase broke.

    Um falante que selecione a construo sinttica (1a) est pondo em destaque a perspectiva causativa da cena verbal; seleciona, desse modo, uma entidade desencadeadora, que tem algum papel no desenrolar do evento, e outra entidade afetada, que sofre mudana de estado em decorrncia da realizao do evento expresso pelo predicador verbal. Diferentemente, um falante que selecione a construo sinttica (1b) est pondo em destaque a perspectiva do estado resultante do evento expresso pelo predicador, realizando sintaticamente apenas a entidade afetada, que sofre mudana de estado.

    O que as construes em (1a-b) ilustram convencionou-se chamar de alternncia causativo-incoativa1, licenciada linguisticamente por um grupo definido de verbos com comportamento muito semelhante mesmo em anlises que comparam a ocorrncia do fenmeno em diferentes lnguas. Em geral, servir alternncia causativo-incoativa parte do comportamento semntico da classe dos verbos inacusativos (LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 1995). Alm de quebrar, podem-se listar outros verbos inacusativos como abrir, fechar, girar, afundar, balanar, torcer, virar, e pelo menos mais uma centena capaz de alternar entre a ditese transitiva causativa e a incoativa e com comportamento sinttico-semntico muito aproximado em diferentes lnguas entre elas o ingls e o portugus2.

    1 A adoo do termo incoativo ser discutida ainda nesta seo.

    2 Dentro do arcabouo terico da gramtica gerativa, onde a inacusatividade parece ser um

    ponto que recebe considervel ateno, esse fenmeno tratado em termos de alternncia sinttica e ocorre nos casos em que o verbo alterna de dois para um argumento. Nesses casos, o procedimento de anlise consiste em dar ao verbo duas representaes formais distintas: na verso monoargumental, O vaso quebrou, o verbo quebrar representado como inacusativo (no seleciona argumento externo e no atribui caso acusativo) e disso decorre o movimento do

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    Levin e Rappaport-Hovav (1995) argumentam que os predicadores inacusativos prototpicos so verbos basicamente transitivos, ou seja, as autoras avaliam que, na estrutura lexical subjacente, esses predicadores so primitivamente verbos biargumentais e que a forma transitiva causativa , dentro do par de alternncias, a forma bsica. Outros autores j haviam argumentado em favor da forma bsica transitiva de verbos inacusativos, como Chierchia ([1989] 2004). O argumento utilizado em Levin e Rappaport-Hovav (1995) para sustentar a anlise biargumental de inacusativos alternantes o conjunto de restries selecionais de argumentos desses predicadores. Esse procedimento de identificao da transitividade bsica do predicador verbal parece ter sido primeiramente desenvolvido por Smith (1970 apud Levin (1993))3 e pode ser sintetizado da seguinte maneira: como h mais restries para seleo do argumento afetado em posio de sujeito da construo incoativa que para a seleo do argumento afetado em posio de objeto da construo transitiva, ento, a estrutura transitiva seria a primitiva e a incoativa, a derivada.

    Nem toda alternncia causativo-incoativa parte de predicadores biargumentais. H verbos primitivamente intransitivos, cujo comportamento sinttico-semntico difere substancialmente dos inacusativos, que tambm licenciam a expresso lingustica de um mesmo evento sob duas perspectivas: uma de causatividade e outra de afetao. Esses verbos, chamados intransitivos puros ou inergativos, apresentam um grupo de restries para seleo do argumento afetado em posio de objeto da forma transitiva maior que o grupo de restries para a seleo do mesmo argumento na posio de sujeito da forma incoativa. Uma vez assumido o procedimento para identificao da transitividade bsica dos predicadores verbais adotado por Levin e Rappaport-Hovav (1995), desde Smith (1970 apud Levin (1993)), seria possvel afirmar que, ao contrrio dos inacusativos que participam da

    argumento interno para a posio de especificador de IP, a fim de receber caso da flexo (uma vez que no poderia receber caso na posio em que nasce); na verso transitiva, O moleque quebrou o vaso, o verbo quebrar possui argumento externo e argumento interno, distribui caso acusativo para o segundo SN selecionado e tambm lhe atribui papel temtico. Esse fenmeno ser mais bem compreendido no Captulo 3, em que se apresentar a Generalizao de Burzio (que versa sobre as condies de atribuio de caso nos contextos em que o verbo no seleciona argumento externo) e os procedimentos para identificao de inacusativos em portugus. Sobre esse ponto, em especial, agradeo as contribuies de Magdiel Medeiros Arago Neto e do professor Carlos Mioto. 3 O texto de C.S. Smith que aqui citado intitula-se Jerspersens Move and Change Class

    and Causative Verbs in English e foi publicado como captulo da obra Linguistic and Literary Studies in Honor of Archibald A. Hill, de circulao restrita.

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    alternncia causativa, os inergativos so verbos primitivamente intransitivos, i.e., so predicadores basicamente monoargumentais. (2a-b) ilustra a alternncia causativa a partir de um verbo inergativo:

    2 (a) O cavalo galopou pela avenida. (a') The horse galloped through the avenue. (b) O oficial galopou o cavalo pela avenida. (b') The officer galloped the horse through the avenue.

    A alternncia causativa a partir de predicadores primitivamente intransitivos no apresenta o mesmo grau de regularidade que aquela cujo predicador um verbo primitivamente biargumental. De acordo com o que ser argumentado nos captulos sequenciais, apenas um restrito grupo de inergativos licencia causativizao (exemplificada por (2a-b)), enquanto quase a totalidade dos inacusativos licencia a ergativizao (exemplificada por (1a-b)). Alm disso, no caso da instncia de alternncia causativa ilustrada por (1a-b), o argumento o vaso mantm o mesmo tipo de relao semntica com o verbo, independentemente de estar na posio de sujeito ou de objeto, uma relao de afetado pelo evento. J no caso da instncia de alternncia causativa ilustrada por (2a-b), o argumento o cavalo no mantm exatamente o mesmo tipo de relao semntica com o verbo independentemente da posio sinttica que ocupa. Na perspectiva causativa, o cavalo entidade afetada, pois foi induzida realizao do evento, mas no deixa de ser a entidade que o realiza. Nesse caso, a construo possui dois desencadeadores, um indutor e outro induzido. Na perspectiva intransitiva, se apenas observada a estrutura sentencial bsica (sem adjuno), no se pode afirmar que a entidade o cavalo afetada por algum tipo de induo, apenas que a desencadeadora do evento expresso por galopar.

    Verbos como galopar e passear (O cachorro passeou com tranquilidade) so considerados de causa interna, quer dizer, so eventualidades internamente causadas, pois o evento que representam desencadeado pelo prprio argumento envolvido e no por uma causa externamente marcada (LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 1995). Quando esses verbos alternam para uma construo causativa (O adestrador passeou o cachorro com tranquilidade), no ocorre de a causa interna se tornar externa, mas de haver uma fora externa que age sobre a causa interna, levando-a a desencadear o evento expresso pelo verbo (LEVIN, 1993).

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    Conforme assumem Levin e Rappaport-Hovav (1995, p. 93), os inacusativos que participam da alternncia causativo-incoativa, pelo contrrio, so verbos de causa externa, independentemente da ditese realizada. Segundo as autoras, mesmo quando um verbo externamente causado como quebrar usado em ditese intransitiva, caso em que no h a expresso lingstica de causa externa, o conhecimento de mundo leva o falante a interpretar que a eventualidade expressa pelo verbo no poderia ter ocorrido sem a interferncia de uma causa externa. Ainda que o argumento em questo tenha de possuir a propriedade de ser quebrvel, p.ex., e que possa haver situaes contextuais especficas em que algo quebre por si s.

    Levin e Rappaport-Hovav (1995, p. 93) ainda afirmam que [...] os verbos intransitivos que regularmente possuem usos transitivos causativos so externamente causados e aqueles que no possuem so internamente causados.4. Alm disso, contrariamente alternncia causativa de inacusativos, a alternncia causativo-incoativa a partir de verbos inergativos no parece manter a mesma simetria de comportamento lingustico entre verbos do portugus e seus equivalentes em ingls. Aparentemente, h um grupo reduzido de inergativos do ingls susceptvel causativizao; em portugus, esse grupo parece ser ainda mais modesto.

    3 (a) You are walking every day.5 (a') Voc est caminhando diariamente. (b) Are you walking the dog or is the dog walking you? (b') *Voc est caminhando o cachorro ou o cachorro est caminhando voc?

    Considerando ocorrncias como a assimetria entre (2) e (3), este trabalho props-se a esclarecer os seguintes pontos: (i) por que

    4 Traduo livre, no original: [...] the intransitive verbs that regularly have transitive causative

    uses are externally caused, and those intransitive verbs that do not are internally caused. (LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 1995, p. 93). 5 Na anlise das sentenas ilustrativas da alternncia causativa de walk, optou-se por

    uniformizar a traduo e equivaler o verbo a caminhar em todos os casos, embora na maioria dos contextos tambm seja possvel a equivalncia a andar. Certamente, caminhar e andar comportam as noes de atividade e modo de movimento disponveis para walk e, a exemplo do que ocorre com caminhar, andar distancia-se de walk porque no participa da alternncia causativo-incoativa, ainda que em linhas gerais denote o mesmo tipo de atividade: Are you walking the dog every day?/*Voc est andando o cachorro diariamente? Uma vez que uma gama de significados costuma poder ser associada a um mesmo item lexical, a equivalncia entre itens lexicais de diferentes lnguas frequentemente esbarra no ponto em que a atividade de traduo precisa aproximar conceitos relacionados s palavras e no propriamente palavras.

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    possvel que galopar alterne para ditese transitiva causativa, mas no possvel que caminhar licencie essa alternncia, se ambas as eventualidades so internamente causadas; (ii) que componentes lingusticos fazem com que um subgrupo de predicadores internamente causados seja passvel de induo; (iii) por que possvel derivar o predicador do par (3a-b) como causativo para o ingls, mas s possvel realizar o predicador equivalente em portugus ((3a'-b')) como intransitivo.

    Cognitivamente, caminhar e walk podem ser tomados como representaes lingusticas de um mesmo conceito. Tambm em termos de estrutura semntica, pode-se afirmar, so equiparados, pois o argumento que ambos selecionam na forma intransitiva apresenta um conjunto comum de traos semnticos em que a marcao positiva dos traos de volio (em boa parte das ocorrncias) e controle caracterstica da agentividade acarretada pelo verbo. Nesses termos, a restrio que bloqueia a realizao do paradigma de alternncia causativa de caminhar em portugus provavelmente compreende caractersticas gramaticais (de interface lxico-sinttica) especficas de cada predicador tais como o licenciamento de diteses e propriedades semnticas particulares.

    Considerando-se o estgio prematuro dos estudos desenvolvidos, a explicao e a descrio que se tem da alternncia causativo-incoativa de predicadores inergativos ainda insuficiente. Certamente, assistindo a uma cena qualquer no mundo, as possibilidades cognitivas de percepo do mesmo evento no variam significativamente entre falantes de diferentes lnguas, mas os recursos de que cada lngua dispe para expressar o mesmo evento de diferentes perspectivas variam. Esse, acredita-se, deve ser o fator central responsvel pelas variaes no fenmeno lingustico da alternncia causativo-incoativa apresentado.

    Cabe esclarecer que, embora neste trabalho seja utilizada a terminologia incoativa para fazer referncia geral s construes monoargumentais inergativas ((2a)) e s ergativas ((1a)), com ou sem cltico, que sero frequentemente comparadas alternante transitiva, esse emprego do termo nem sempre o mais apropriado. O conflito terminolgico ocorre em funo de haver valores aspectuais relacionados terminologia verbo incoativo, uma vez que o termo originalmente designava predicadores cuja carga aspectual marca o incio de um evento ou a mudana de um evento primeiro (e1) iniciada por um evento subsequente (e2).

    Considerada a referncia ao aspecto, construes ergativas podem ser apropriadamente referidas pela denominao de construes

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    incoativas j que estruturalmente marcam a mudana de um estado inicial. As construes inergativas, por outro lado, nem sempre atualizam aspecto incoativo, como na sentena Mateus caminha pela manh ou Esse cavalo galopa bem. Assim, empregar o termo construes incoativas para referir, de maneira abrangente, construes monoargumentais inergativas e ergativas, implica adotar um procedimento j difundido em pesquisas lingusticas mais recentes: desvincular o termo incoativo das noes de aspecto. Uma alternativa a esse procedimento seria agrupar construes ergativas e inergativas sob a denominao de construes intransitivas, mas essa escolha tambm carrega problemas: segue a abordagem equivocada da tradio gramatical, que no faz distino entre verbos inacusativos e inergativos, apenas os agrupa em uma classe chamada verbos intransitivos.

    Por essas impropriedades terminolgicas e suas consequncias, optou-se por adotar o termo incoativo para designar os pares de alternncia que se contrape forma transitiva. Desse modo, nesta pesquisa, so chamadas construes incoativas aquelas cuja estrutura sinttica expressa apenas um argumento do verbo, independentemente de valores aspectuais do predicador ncleo das construes e de o argumento realizado receber o papel semntico de paciente (afetado), no caso das construes ergativas, ou de agente, no caso das construes inergativas. Em ambas as instncias de alternncia causativa, h uma construo monoargumental contraposta biargumental causativa; em ambas as instncias, essa construo monoargumental ser chamada incoativa, o que permite referir de maneira geral o fenmeno da alternncia causativa como alternncia causativo-incoativa de predicadores inacusativos (primitivamente transitivos) ou de predicadores inergativos (primitivamente intransitivos).

    Nesta investigao, elabora-se um estudo centrado na instncia de alternncia causativa a partir de predicadores inergativos e desenvolve-se uma proposta para esclarecer as questes relativas problematizao formulada anteriormente. De modo pontual, este trabalho prope que aspectos de significados pertencentes estrutura semntica dos predicadores inergativos so responsveis pelo licenciamento da alternncia causativa desses verbos e respondem pelas assimetrias observadas entre formas correlatas do ingls e do portugus.

    A partir da anlise desenvolvida, a primeira restrio semntica mapeada foi a manuteno do papel semntico de desencadeador para o segundo argumento das formas causativizadas em portugus restrio que no opera sobre os inergativos causativizados do ingls. Outros dois

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    pontos de relevncia para a proposta apresentada foram (a) a distribuio escalar da propriedade de causalidade entre os predicadores inergativos e (b) o refinamento da noo de induo envolvida na causativizao de inergativos. Sobre esse ltimo aspecto do licenciamento da alternncia causativo-incoativa de inergativos, especificou-se a natureza da causa externa que age sobre a causa interna, criando-se uma cadeia causal que leva ao desenvolvimento do evento expresso linguisticamente em perspectiva biargumental.

    Para tanto, o estudo estrutura-se da seguinte maneira: o Captulo 1 apresenta a noo de causa contida na relao verbo argumentos, introduz as formas de representao por regras lexicais desse processo fortemente regular e delimita a investigao realizada neste trabalho; o Captulo 2 resgata a trajetria do componente lexical ao longo da tradio dos estudos cientficos da linguagem e defende sua investigao a partir do tratamento estruturado do lxico e de sua representao; o Captulo 3 apresenta definies de aspectos lingusticos como transitividade, inacusatividade e inergatividade, centrais para o desenvolvimento deste trabalho.

    J os Captulos 4 e 5 descrevem duas instncias de alternncia causativo-incoativa: o primeiro, apresenta pesquisas sobre a alternncia causativo-incoativa derivada a partir de um verbo da classe dos inacusativos no portugus do Brasil, o segundo, apresenta a descrio proposta para a alternncia causativo-incoativa derivada a partir de um verbo inergativo e estende os critrios desenvolvidos para a anlise dessa instncia de alternncia no ingls para a anlise dos dados do portugus do Brasil; o Captulo 6 contm a investigao que intenciona esclarecer as condies de realizao da alternncia causativo-incoativa de inergativos no portugus e tambm a proposta de descrio dos aspectos de significado relacionados estrutura semntica de inergativos que so relevantes para o licenciamento da alternncia causativa em portugus e que so responsveis pela assimetria entre a alternncia de inergativos do ingls e suas formas correlatas em portugus.

  • 18

    CAPTULO 1 Noo de Causa e Delimitao do Estudo

    A expresso lingustica de causa embute a interpretao de origem (princpio/razo/motivo) desencadeadora de um efeito [mudana de estado]. Seguindo-se essa interpretao, a causalidade contida na relao verbo argumentos tida como a qualidade da relao semntica entre a causa e seu efeito, resultante da interao entre dois dos argumentos semnticos do verbo, em que o primeiro causa/acarreta/desencadeia, de maneira volitiva ou no, um efeito de mudana de estado no segundo (JACKENDOFF, 1990; LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 1995).

    Com efeito, essa apresentao da noo lingustica de causa propositadamente restrita, considerando-se muitas outras expresses causais ou encadeamentos causais possveis nas lnguas. Para alm da causatividade da relao verbo argumentos que se investiga neste trabalho, h ainda noes de causa codificadas linguisticamente:

    no plano semntico, pelo nexo de acarretamento entre sentenas (Emanuel matou o coelhok O coelhok est morto); em contexto de encaixe sinttico, pela interao semntica entre sentenas que se adjungem (como o caso das encaixadas consecutivas, [Maneco descabelou-se tanto [que parece um homem das cavernas]]); no plano morfolgico, pela causatividade propriamente marcada nos vocbulos livres (do tipo descabelar = tornar sem cabelos [sic] ou tornar os cabelos desarrumados); no plano discursivo, pelo encadeamento argumentativo por causa & efeito, por exemplo.

    Na relao verbo argumentos, o causativo costuma ser definido como o estado resultante de uma ao realizada por um argumento desencadeador e expressa pelo verbo em construes transitivas, nas quais h a realizao sinttica de pelo menos dois dos argumentos semnticos do verbo. Desse modo, de Mateus enrolou o fio do telefone resulta o estado de enrolado do segundo argumento, e Mateus, que recebe o papel temtico de agente da ao verbal, o desencadeador desse estado. Evidentemente, a configurao transitiva por si s no condio suficiente para a expresso de causa. Essa configurao sinttica precisa ter como ncleo um verbo causativo cujas

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    propriedades semnticas (contedo semntico e seleo argumental) permitam expressar a causatividade.

    Por certo as construes transitivas (a) Sarah escreveu o e-mail e (b) Sarah adorou o e-mail no expressam o mesmo tipo de relao com o segundo argumento do verbo, e-mail. No exemplo (a), a cena descrita a de criao. O verbo escrever pertence a uma classe de verbos que se podem chamar causativos existenciais (DUBOIS et alli, 2001), pois expressa a criao de um dos argumentos. J na cena que est descrita em (b), o grau de afetao do argumento nulo (p.ex., se comparado ao grau de afetao descrito em Mateus assou o bolo6). O segundo argumento de adorar no sofre qualquer mudana de estado.

    Observa-se que, alm das diferenas de contedo semntico, os verbos escrever e adorar selecionam argumentos de papis semnticos distintos: na primeira construo, o primeiro argumento desencadeador da ao verbal, enquanto, na segunda, experienciador, no afeta o outro participante; na primeira construo, o segundo argumento do verbo afetado pelo evento e recebe o papel semntico de paciente, na segunda construo, o segundo argumento no sofre qualquer afetao e recebe papel semntico de causador de experincia (CANADO, 2003).

    Said Ali (1964, p. 164), ao apresentar os verbos transitivos como aqueles [...] cujo sentido se completa com um substantivo [...] e exemplific-los com as sentenas Feriu o p, Antnio feriu Pedro, Deus criou o mundo e O ourives fez um anel, introduz a descrio da noo de causa dessas construes. O autor, distante do aparato terminolgico da lingustica contempornea, acertadamente destaca que a fora semntica sobre os complementos verbais por ele exemplificados no a mesma: enquanto p e Pedro [...] postos em seguimento a feriu exprimem a pessoa ou cousa [sic] que recebe a ao [...], mundo e um anel, complementos de criou e fez, [...] denotam o produto da ao. Num caso o acusativo significa um ser cuja existncia anterior da ao

    6 Pustejovsky (1995) analisa o verbo assar como verbo de criao, ou seja, como um causativo

    existencial. Assim, o argumento o bolo passaria a existir com a realizao do evento de assar. Considerando-se que o argumento j existia antes de ser submetido ao processo, o que permite usos referenciais do tipo O bolo est pronto para assar, assar no poderia indicar um processo de criao. Por essa anlise, assar um verbo de mudana de estado apenas o que o incluiria na classe de verbos como quebrar. Construes do tipo (a) Mateus assou o bolo e (b) Mateus quebrou a xcara expressam, segundo a posio adotada neste trabalho, mesmo grau de afetao do segundo argumento e possibilitam, ambas, a formao de construes incoativas: (a') O bolo assou e (b') A xcara quebrou. Um causativo existencial como fazer, p.ex., no participa dessa alternncia: (c) Mateus fez o bolo e (c') *O bolo fez.

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    verbal; no outro caso, o ser aparece ulteriormente como resultado do ato que se pratica..

    Apesar das diferenas apontadas em cada caso, os argumentos que ocupam a segunda posio argumental dos dois grupos so afetados. O que Said Ali sinaliza a existncia de um (sub)grupo verbal cuja relao semntica com os argumentos de criao (afetao fortemente marcada) permitindo cham-los causativos existenciais. Para alm do grau de efeito sobre o participante afetado, em comum entre os dois grupos h a interpretao do operador causal, entendido como uma operao semntica capaz de pr em relao o causador do evento expresso pelo verbo e o argumento afetado/criado pelo evento (CHIERCHIA, 2003, p. 277-279).

    Chierchia (2003) desenvolve a anlise do operador causal no mbito das regras lexicais, que objetivam reconstruir de maneira explcita o conhecimento implcito de que dispem os falantes acerca de diversas operaes codificadas nas lnguas, dentre as quais est a operao de causa. Como a expresso de causa um processo lexical fortemente regular, o autor a emprega para demonstrar de que maneira certas relaes semnticas podem ser descritas por uma abordagem decomposicional (que fixa o significado lexical com base em conceitos universais primitivos).

    Uma das formas de se proceder explicitao da relao de causa a postulao da existncia de um operador causal primitivo. Nesse sentido, a aplicao do operador causal tem como caracterstica semntica, uma consequncia lgica, portanto, o desencadeamento de uma afetao, conforme ilustram os dados em (1.1a-b), explicitados por (1.1c-d):

    1.1 (a) Sarah afundou o barco. (b) O barco afundou. (c) AFUNDARt2(x,y) CAUSARt (x, AFUNDARt1(y)) (d) Rt (x,y) CAUSARt (x, Pt (y))

    As construes alternantes em (1.1a-b) esto representadas na frmula (1.1c), em que a notao CAUSARt representa a operao semntica do operador causal; AFUNDARt2(x,y) a forma transitiva (1.1a) em que os argumentos x e y esto postos na relao estabelecida entre ambos sse (se e somente se) x afunda y em t (t especifica a marcao de tempo); AFUNDARt1(y), representao da forma intransitiva, contm a classe dos indivduos que afundam em t (1.1b).

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    Assim, tem-se a leitura da frmula em (1.1c): x afunda y se e apenas se x causa o afundamento de y. (1.1d) contm a forma geral de (1.1c), em que R a interpretao de um verbo transitivo qualquer e P a interpretao intransitiva do mesmo verbo em pares de alternncia causativo-incoativa como ilustram (1.1a-b).

    Alm de tomar parte nas ocorrncias de causativas lexicais exemplificadas por (1.1), a mesma operao CAUSAR pode integrar construes ditas causativas sintticas7, nas quais a combinao com o verbo fazer, na estrutura x fazer y V, possibilita a qualquer verbo intransitivo a valncia causativa (ibidem, p. 279) cf. ilustra (1.2), a seguir, em que o verbo inacusativo sair causativizado apenas em composio com fazer.

    1.2 (a) Mateus saiu feliz. (b) *Helena saiu Mateus feliz.8 (c) Helena fez Mateus sair feliz.

    Um procedimento de anlise comum na literatura lingustica ilustrar as causativas lexicais como processos lexicalizados que: [...] (i) afetam uma ampla classe de palavras, (ii) so interlinguisticamente recorrentes e (iii) apresentam uma contrapartida sinttica. (CHIERCHIA, 2003, p. 279). A exigncia de contrapartida sinttica como parte do comportamento gramatical de causativas lexicais prpria de posies tericas que avaliam o causativo estritamente associado a processos de alternncia, nos quais se contrastam as realizaes biargumental (perspectiva causativa) e monoargumental (perspectiva de mudana de estado) do verbo alternante. Grimshaw (2005, p. 78) aproxima-se dessa posio ao entender que operaes lingusticas so estruturais em sua natureza. Se se compreender a expresso de causa como um tipo de operao lingustica, o que parece ser o caso, essa generalizao da autora sobre as operaes pode suscitar a restrio de causativos lexicais aos verbos que atendem

    7 Para um estudo detalhado e uma conceituao mais precisa de causativas sintticas, ver

    Palmer (1994). Silva (2005) um trabalho detalhado sobre a ocorrncia de causativas sintticas em portugus europeu e em portugus do Brasil. Este autor chama a essas construes causativas analticas ou perifrsticas e as define como [...] estruturas de dois verbos (tipicamente) em que um exprime o predicado causal (evento causador) e o outro o predicado de efeito (evento causado). Na causao analtica, o predicado causal (fazer ou deixar, por exemplo) exprime to somente a noo de causa ou outras noes intimamente relacionadas, como manipulao, possibilitao, permisso , sem mais nenhum contedo lexical especfico [...] (SILVA, 2005, p. 12). 8 A notao * indicativa da agramaticalidade da construo que precede.

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    especificao estrutural de alternar nas duas configuraes sintticas (biargumental/monoargumental).

    Certamente, preciso que o predicador verbal assuma pelo menos duas diteses para que se possa configurar um processo de alternncia e, nesse caso, o licenciamento de uma construo monoargumental como contrapartida sinttica logicamente necessrio. Porm, parece restritivo e pouco plausvel assumir que apenas aqueles verbos que apresentam comportamento alternante na sintaxe possuem estrutura causal, ainda mais se essa especificao estrutural puder ser atrelada estrutura semntica dos itens lexicais.

    Nesse sentindo, Grimshaw (2005, p. 86-87), distanciando-se dos pressupostos de Chierchia (2003, p. 279), brevemente examina eventos causativos que podem ser no sinttica, mas lexicalmente estruturados. Esses eventos no se distribuem apenas entre verbos com paradigma de alternncia, contudo, segundo a autora, assim como os verbos causativos alternantes, os causativos no-alternantes selecionam sempre um argumento afetado para a posio de segundo argumento da transitiva, que necessariamente pertence estrutura semntica do predicador e no parece haver uma nica razo para se acreditar que estes verbos no estejam entre os causativos lexicais. Entrariam nessa descrio, p.ex., os verbos matar e desembrulhar:

    1.3 (a) O gato matou o rato. (b) *O rato matou. (c) Mateus desembrulhou o pacote. (d) *O pacote desembrulhou.

    A impossibilidade de alternncia em (1.3), para Grimshaw (2005, p.87), est relacionada s limitaes de um tipo de estrutura semntica que corresponde a um evento singular. Esse evento nico morfologicamente especificado (argumentao que compatvel com a anlise da estrutura eventual proposta por Pustejovsky (1995), que ser apresentada nos prximos captulos) e a causalidade contida na relao verbo argumento representada pela expresso sinttica desse evento nico que exibe a afetao do segundo argumento das formas transitivas. As construes agramaticais de (1.3) so justamente aquelas que barram a possibilidade de expresso de um evento de mudana de estado, no a de um evento causativo.

    Ainda sobre essa questo, Grimshaw (1990, p. 22-30) analisa uma classe de verbos de experincia causativos, do tipo de assustar, que no participa na alternncia causativo-incoativa. Embora os integrantes

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    dessa classe possam ocorrer tanto na forma transitiva quanto incoativa, a forma incoativa no sustenta a leitura de afetao por fora da ao de uma entidade no expressa sintaticamente, como ocorre no par A menina rasgou a folha/A folha rasgou. Ao contrrio de verbos do tipo de rasgar, verbos psicolgicos da classe de assustar partilham um significado causativo apenas no contexto biargumental, quando indicam que a mudana de estado psicolgico do segundo argumento da construo foi desencadeada pelo primeiro argumento.

    1.4 (a) A tempestade nos assustou. (b) *A gente (se) assustou. (agramatical apenas como contraparte incoativa de (1.4a)) (c) A tempestade causou que ns experimentssemos medo. (d) (Agente (Exp))

    Grimshaw (1990, p. 29) estabelece uma contraparte agentiva para essa classe, a que a autora chama de contraparte causativa psicolgica agentiva, e explicita a leitura causal veiculada pela interpretao agentiva de verbos psicolgicos atravs da descrio de relao semntica de (1.4c) e da configurao temtica de (1.4d), em que o argumento agente hierarquicamente superior e age sobre um experienciador, especificando o tipo de afetao envolvida. Cabe salientar que a configurao (1.4d) semelhante que a autora prope para verbos alternantes como rasgar e quebrar, o que aproxima, sem que se tome um critrio sinttico particular como restrio, a anlise de verbos causativos que participam de processos de alternncia da anlise proposta para os verbos no-alternantes.

    Diferentemente de (1.3) e de (1.4), nos exemplos a seguir, amplamente empregados para ilustrar a alternncia causativo-incoativa, o fenmeno constitui um nexo sistemtico da alternncia explicitada com a ajuda do conectivo causal que se encaixa na generalizao contida em (1.1d). Em todas as ocorrncias, h contrapartida sinttica monoargumental para a forma transitiva causativa e duas perspectivas eventuais disponveis, um evento que indica mudana de estado e outro que indica atividade que resulta na afetao do segundo argumento da transitiva:

    1.5 (a) Sarah quebrou o galho. (b) O galho quebrou. (c) Sarah broke the branch. (d) The branch broke.

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    1.6 (a) Emanuel balanou a corda. (b) A corda balanou. (c) Emanuel swung the rope. (d) The rope swung.

    1.7 (a) Helena torceu o cabo de ao. (b) O cabo de ao torceu. (c) Helena twisted the steel cable. (d) The steel cable twisted.

    Segundo Van Valin (2006), os elementos abstratos que compem a metalinguagem semntica utilizada na decomposio de predicados, a exemplo do operador causal presente na representao (1.1d), no so compreendidos como palavras pertencentes a uma lngua natural. Ao contrrio, essa metalinguagem faz parte de uma linguagem primitiva universal e, a despeito da similaridade que possa ter com itens lexicais de lnguas naturais especficas, objetiva-se que a mesma representao sirva explicao de fenmenos lingusticos em todas as lnguas.

    Para o autor, a tentativa de se capturarem relaes semnticas como primitivos lingusticos que formam uma metalinguagem apresenta a vantagem de se ter uma representao comum para o significado de verbos e outros predicados em diferentes lnguas pelo que se viabilizam comparaes e generalizaes semnticas interlingusticas. A estrutura lgica de predicados como morrer do portugus e die do ingls, p.ex., deve ser representada pela mesma metalinguagem TORNAR-SE morto(x), cujas variveis so preenchidas por itens lexicais da lngua em anlise: sentena O cachorro morreu corresponde a representao TORNAR-SE morto(cachorro), enquanto sentena The dog died corresponde TORNAR-SE morto(dog), em que o contraste o material lingustico de preenchimento da varivel (VAN VALIN, 2006, p. 167).

    Nesse sentido, os exemplos de (1.5) a (1.7) do mostra do comportamento de verbos que servem alternncia causativo-incoativa em diferentes lnguas. Em todas as construes, a mesma leitura pelo predicado abstrato CAUSAR est licenciada para o ingls e para o portugus, o que permite alguma generalizao entre essas duas lnguas, nas quais tais ocorrncias lingusticas lexicalmente licenciadas so recorrentes, sistemticas e regulares e possuem a contraparte causativa sinttica (Sarah fez o galho quebrar/Sarah has made the branch break). Esses casos ainda sero oportunamente tratados, quando da apresentao

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    de estudos acerca da descrio do comportamento semntico e sinttico das classes de verbos que servem alternncia causativo-incoativa (LEVIN, 1993; LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 1995; 2005).

    As ocorrncias em (1.8) e (1.9), por sua vez, contrastam com os pares ilustrados anteriormente, pois a alternncia entre a forma causativa e a incoativa disponvel para o ingls no encontra mais simetria nas construes equivalentes em portugus, em que o nico pareamento possvel parece ser com causativas sintticas ((1.8d) e (1.9d)):

    1.8 (a) Mateus walked the dog. (b) The dog walked. (c) *Mateus caminhou o cachorro. (d) O cachorro caminhou. (e) Mateus fez o cachorro caminhar.9

    1.9 (a) The captain marched the solders across the battlefield. (b) The solders marched across the battlefield. (c) *O capito marchou os soldados atravs do campo de batalha. (d) Os soldados marcharam atravs do campo de batalha. (e) O capito fez os soldados marcharem atravs do campo de batalha.

    A alternncia causativo-incoativa de predicadores primitivamente transitivos (inacusativos), ao que tudo indica, constitui um fenmeno lingustico mais regular que aquela em que os predicadores alternantes so verbos primitivamente intransitivos (inergativos). Um dos fatores de influncia para a maior regularidade do primeiro caso de alternncia causativa pode ser o fato de seus predicadores serem tipicamente verbos de mudana de estado e tambm eventualidades de induo externa. J a instncia de alternncia causativa cujos predicadores so verbos inergativos, que tipicamente denotam atividade e so eventualidades de causa interna, torna-se fortemente restrita quanto manifestao de causatividade.

    Enquanto verbos inacusativos do tipo de quebrar, balanar, torcer e afogar participam da alternncia causativo-incoativa, tanto em

    9 Por essa sentena tambm fica liberada a interpretao de que o primeiro argumento

    desencadeou, mas no acompanhou o desenvolvimento do evento. J (1.8a) no parece liberar outra interpretao que no a de que o primeiro argumento acompanhou o desenvolvimento do evento.

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    construes do ingls quanto em construes do portugus, verbos intransitivos puros10 do tipo de caminhar e marchar alternam causativas lexicais para o ingls, mas no o fazem nas construes em portugus. Contudo, a restrio para o licenciamento da alternncia causativo-incoativa no atinge um subgrupo importante de verbos basicamente intransitivos do portugus, os quais, de modo restrito, alternam, aceitando causatividade:

    1.10 (a) O mecnico voou o avio. (b) O piloto pousou o avio s pressas. (c) Ele trotou e galopou o cavalo preto em crculos. (d) Cada participante passeou a criana por pisos desnivelados. (e) Andria estudou os filhos at a faculdade. (f) Mateus casou as filhas rapidinho.11

    Ainda que haja restries para realizao causativa de eventualidades internamente causadas, h possibilidade de um conjunto dessas eventualidades receber induo externa. Nesse caso, a causativizao de inergativos acarreta uma construo de ditese transitiva (a) em que os dois argumentos linguisticamente realizados participam do desenvolvimento do evento, (b) em que o primeiro argumento induz o segundo realizao do evento e (c) em que o argumento em posio de objeto sofre um grau de afetao menor que aquele sofrido pelo argumento objeto de construes causativas com verbos de mudana de estado.

    Considerando a assimetria de participao na alternncia causativo-incoativa registrada entre inergativos do ingls e suas formas correlatas em portugus (ilustrada pelos pares de (1.8) e (1.9), mas no

    10 Cf. definem Keyser e Roeper (1984), intransitivos puros (inergativos) so aqueles verbos

    ncleos de construes em que no h objeto tema (argumento interno), os quais so subjacentemente ordenados pela estrutura N verb = John slept. 11

    Muito embora casar e estudar no sejam verbos de atividade, diferenciando-se de verbos como correr, marchar, galopar, neste trabalho estaro agrupados entre os predicadores verbais inergativos analisados como integrantes do processo conhecido como causativizao. Ocorre que os procedimentos para identificao da transitividade bsica dos verbos, adotados por esta pesquisa e j apresentados na Introduo, sustentam a incluso de casar e estudar no grupo de eventualidades internamente causadas que podem sofrer induo externa e alternar para uma forma causativizada. Ou seja, de acordo com o critrio da seleo argumental extrado de Levin (1993), casar e estudar podem ser avaliados como predicados basicamente intransitivos, ainda que no denotem uma atividade caracterstica aspectual partilhada por boa parte dos verbos analisados neste trabalho. Contudo, destaca-se que casar e estudar distinguem-se dos verbos a que se convencionou chamar intransitivos puros (cf. nota anterior) ou inergativos prototpicos.

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    restrita a eles) e a assimetria de participao na alternncia registrada entre o prprio grupo de inergativos do portugus (ilustrada pela impossibilidade de causativizao de caminhar e marchar, que contrasta com os dados de (1.10)), esta tese partiu de dois questionamentos principais: Quais propriedades lingusticas esto envolvidas no licenciamento da alternncia causativo-incoativa de inergativos? Como essas propriedades podem contribuir para esclarecer quais restries impedem determinados inergativos do portugus de alternarem (enquanto outros alternam) e quais restries so responsveis pelo contraste de alternncia entre inergativos do ingls e do portugus brasileiro?

    Orientado por essas questes, o trabalho se estrutura em torno do objetivo geral de explicar as condies necessrias para se licenciar a incidncia de causatividade sobre inergativos, e consequente causativizao desses verbos e em torno de trs objetivos especficos: (i) determinar quais aspectos de estrutura semntica, que interagem com a sintaxe, so responsveis pelo licenciamento da alternncia causativo-incoativa de inergativos; (ii) desmembrar esses aspectos em propriedades semnticas especficas dos verbos inergativos que alternam e ausentes da estrutura semntica daqueles que no so passveis de causatividade; e (iii) demonstrar como essas propriedades so distribudas entre os inergativos do portugus (criando dois subgrupos: inergativos que aceitam induo externa e inergativos que no a aceitam) e como respondem pelo contraste entre inergativos alternantes do ingls e seus correlatos no-alternantes em portugus.

    Como primeira hiptese, assumiu-se que o mapeamento das condies de realizao da alternncia causativo-incoativa de inergativos passa pela anlise de como a forma lingustica desses predicadores em alternncia pode estar representada na estrutura conceptual (ou o contrrio: como a estrutura conceptual pode estar representada na forma lingustica) e tambm se considerou que causativas lexicais e causativas sintticas, embora se distingam na forma lingustica, devem apresentar correspondncia conceptual.

    Por isso, as representaes conceptuais propostas neste trabalho comportam essa variao entre as instncias de alternncia causativa, servindo tanto para representao de causativas lexicais quanto de causativas sintticas e distinguindo, entre o conjunto de operaes causais conceptuais, aquelas que so orientadas para a alternncia que embute a mudana de um estado e aquelas que so orientadas para a alternncia de inergativos, que embute induo.

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    Como segunda hiptese, levantou-se que o refinamento dos aspectos de significado que compem a estrutura semntica (e no o contedo semntico) dos predicadores alternantes seria capaz de dar o quadro de propriedades lingusticas que so condies necessrias para o licenciamento da alternncia causativa e de explicar as assimetrias de participao registradas entre inergativos de uma mesma lngua e entre inergativos de diferentes lnguas, como o portugus e o ingls. Isso implicou o refinamento do conceito de induo externa presente na causativizao de inergativos (que so eventualidades internamente causadas) e o detalhamento de um quadro de restries semnticas para o processo de causativizao.

    Observando as ocorrncias em (1.10) e em (1.11),

    1.11 (a) John drove Sarah home. (b) John walked Sarah home. (c) The flyer flew the plane.

    1.12 (a) *Joo dirigiu Sarah para casa. (com sentido de levar de carro) (b) *Joo caminhou Sarah para casa. (c) O piloto voou o avio.

    possvel notar que uma das condies para causativizao dos inergativos em portugus a manuteno do papel semntico de desencadeador para o segundo argumento da formao causativa e que essa restrio no opera sobre as formas correlatas em ingls. Com isso, o contraste de pares como drive/dirigir est atrelado necessidade de o conjunto de inergativos alternantes do portugus manter o papel semntico de desencadeador para o segundo argumento da causativa.

    Alm disso, o verbo walk, alternante em ingls, no embute uma induo simples, como a que est em jogo na causativizao de (1.11c) e de (1.12c), mas uma forma de induo que implica, alm da seleo de um primeiro argumento para a forma causativa que tenha controle sobre a induo que produz, o compartilhamento do trao de controle sobre o evento denotado pelo verbo entre ambos os argumentos da transitiva. A distino entre essas diferentes distribuies da propriedade de controle (sobre a induo e sobre o evento que representa a cena verbal) foi relacionada especificao da natureza da causa externa responsvel pela alternncia desses inergativos, que se distinguiu atravs da separao entre conduo direta e conduo indireta ininterrupta durante o processo.

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    Por essa anlise, pde-se chegar proposio de que as causativizaes bloqueadas em portugus correspondem s formaes que embutem a leitura de conduo direta ou de conduo indireta e ininterrupta. Especificamente sobre a conduo direta, a restrio para ocorrncias de causativizao de inergativos do portugus est tambm relacionada com a impossibilidade de manuteno do papel semntico de desencadeador do evento denotado pelo verbo para o segundo argumento da formao causativa, pois, nos casos de conduo direta, este argumento recebe unicamente o papel semntico de afetado pelo evento desencadeado por fora da participao do primeiro argumento da transitiva.

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    CAPTULO 2 O Componente Lexical

    [...] it has become apparent that many of the facts of grammar are caused by properties of the particular lexical items that go into sentences. Pinker (1990, p. 4)

    A maneira como as palavras entram em relao com o mundo tpico de investigao desde o Crtilo, de Plato um dos mais importantes textos da antiguidade ocidental a refletir sobre a linguagem. Quando interroga sobre a justeza dos nomes, Crtilo provoca um debate acerca da natureza ontolgica da linguagem: como so dados os nomes s coisas? Por natureza ou por conveno? O dilogo de Plato apresenta, atravs da voz dos debatedores, duas teses opostas centradas na opo entre naturalismo e convencionalismo lingustico. So elas:

    Por natureza: Crtilo, sustentado pela posterior argumentao de Scrates, defendeu que h uma relao natural entre os nomes e as coisas que existem e por eles so designadas. Para essa tese, conhecida como naturalismo semntico, h uma justeza natural (que tambm universal) dos nomes, quer dizer, a forma da palavra e o sentido que ela expressa possuem uma relao necessria. [...] o nosso Crtilo sustenta que cada coisa tem por natureza um nome apropriado e que no se trata da denominao que alguns homens convencionaram dar-lhe [...] (383b).

    Por conveno: Hermgenes, por outro lado, sustentou que os nomes so dados s entidades no mundo por conveno e tradio, o que inaugura a tese conhecida pelo nome de convencionalismo semntico. Esta posio assume que a relao entre as palavras e os objetos no mundo estabelecida por questes culturais pautadas no uso e no costume lingusticos. Nenhum nome dado por natureza a qualquer coisa, mas pela lei e o costume dos que se habituaram a cham-la dessa maneira (384e).

    Essas posies clssicas marcaram a viso dicotmica do componente lexical durante sculos de tradio gramatical e serviram de base para o desenvolvimento de outras concepes (MOURA; CAMBRUSSI, 2008). Para se ter ideia da pluralidade de tratamentos

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    dispensados ao lxico, desde o estruturalismo saussuriano, que iniciou a lingustica moderna na qual o princpio da arbitrariedade do signo se instaurou, o componente lexical foi descrito por predicados antagnicos como ser altamente estruturado viso primeiramente difundida pelo estruturalismo europeu e depois recuperada pelas abordagens lexicalistas contemporneas ou ser um depositrio de irregularidades posio compartilhada entre os adeptos do estruturalismo americano e, posteriormente, pelos estudos chomskyanos.

    Neste trabalho, reconhece-se o componente lexical como estruturado e regular, capaz de fornecer explicaes para os fenmenos lingusticos de alternncia verbal ao prever, ainda na estrutura lexical subjacente, aspectos relacionados ao comportamento sinttico-semntico dos predicadores inacusativos e inergativos que servem alternncia causativa. Essa tomada de posio alicerada em abordagens lingusticas recentes, referidas como lexicalistas, nas quais a posio do lxico central. Pustejovsky (1995), Levin e Rappaport-Hovav (1995) e Bresnan (2001), apresentados nas sees a seguir, so alguns dos trabalhos que sustentam a abordagem lexical.

    Assumindo-se esse embasamento terico, a investigao proposta nesta pesquisa questiona quanto do comportamento dos itens lexicais alternantes pode ser descrito em termos de regras sistemticas (tambm lexicais) e quanto fica a cargo de arbitrariedades lingusticas no-sistematizveis. Em se tratando da instncia de alternncia causativo-incoativa de predicadores inergativos, comumente tratada pela literatura lingustica como assistemtica, apenas o isolamento de propriedades semnticas que se mostrem relevantes para o licenciamento do fenmeno podem contestar a posio tradicionalmente adotada.

    2.1 Ciclo do Componente Lexical: do regular imprevisibilidade

    O lxico ocupa destacado papel na tradio estruturalista que Saussure principia. Dentro do estudo da lngua-objeto, o signo lingustico, formado da composio entre significante e significado, tomado como arbitrrio e estruturado, sistemtico e linear. Com isso, um componente lexical articulado entra no escopo da viso de lngua enquanto sistema no qual, segundo Saussure, o signo lingustico no existe por relaes externas lngua, mas pela relao de oposio que mantm com os demais signos lingusticos. Em ambas as faces da palavra, como forma ou substncia, [...] a lngua no comporta nem ideias nem sons preexistentes ao sistema lingustico, mas somente

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    diferenas conceituais e diferenas fnicas resultantes desse sistema. (SAUSSURE, 1960, p. 139).

    Assim, os signos atingem existncia real dentro do sistema lingustico porque entram em relao de oposio com os demais signos. Por essa relao dissociativa, estabelecem-se as noes de valor que os termos assumem dentro de um sistema de valores. O que o pensamento saussuriano pe em evidncia para o lxico, ento, so duas instncias de estruturao: primeiro, o signo se define pela relao significante/significado, depois, essa relao se define por contrastar com outras relaes de mesmo tipo, estabelecidas na constituio de outros signos.

    No funcionamento das regras da lngua, o sistema de signos, o lxico, resulta de um conjunto de relaes responsvel por fazer da lngua um equilbrio de termos complexos que se condicionam reciprocamente. Assumir, no mbito dos estudos saussurianos, que o componente lexical estruturado e sistemtico, significa considerar sistematizadora a concepo que o autor adota para a vinculao entre signos por relaes sintagmticas (alinhamento de signos na cadeia da fala que se apoia na extenso sentencial) e por relaes associativas paradigmticas (formao de grupos de signos por associao mental, fora do discurso, na memria). Assim, nos jogos de linguagem, o modo de compreenso das unidades lingusticas duplamente articulado e o conjunto de relaes estruturais mantidas entre essas unidades, pode-se pensar, chega a ser mais relevante que elas prprias. (ILARI, 2004, p. 64).

    No estruturalismo de vertente americana, diferentemente do que se pode encontrar no Curso de Lingustica Geral de Saussure, a orientao para o desenvolvimento cientfico da linguagem no inclua o estudo do sentido. Bloomfield, para quem o sentido fazia parte unicamente de processos mentais individuais, sustentava que apenas aps ter sido encerrada uma completa e exaustiva descrio dos aspectos fsicos do mundo seria possvel realizar alguma investigao semntica. (ILARI, 2004, p. 79-80). Para Bloomfield e seguidores, as categorias mentais e conceituais eram um desafio anlise gramatical de lnguas particulares que, naquela poca, ainda eram totalmente desconhecidas. Esse procedimento behaviorista de anlise desencadeou, a princpio, a reduo mnima da semntica a relaes entre estmulos fsicos e verbais, e desenvolveu-se at o ponto de sua extino dos padres de anlise pautados exclusivamente nos nveis fonolgico e morfolgico considerando-se que muito pouco se fez pela sintaxe (WEEDWOOD, 2002, p. 131). Foram significativas as consequncias da

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    [...] adoo da teoria behaviorista da semntica, segundo a qual o significado simplesmente a relao entre um estmulo e a reao verbal. [...] era prefervel, tanto quanto possvel, evitar basear a anlise gramatical de uma lngua em consideraes semnticas [...]. Assim, um dos aspectos mais caractersticos do estruturalismo americano ps-bloomfieldiano foi seu completo desprezo pela semntica. (ibidem, p. 131).

    A ateno estrutural, centrada sobremaneira em aspetos formais morfolgicos e fonolgicos das lnguas descritas pelos estruturalistas americanos, fez com que Bloomfield definisse o lxico, em parte, como a totalidade do conjunto de morfemas (formas mnimas resultantes da associao de fonemas) de uma lngua, enfatizando no componente lexical o que era concreto e, portanto, estava exposto observao do pesquisador. O estudo de unidades lingusticas maiores ficou prejudicado pela falta de definies claras que se pudessem construir a partir da observao dos dados em corpus. A significao, dentro de um modelo terico que desejava a clareza e a segurana das respostas visveis, era um ameaador conjunto de estruturas mentais no-objetivas indesejveis.

    Tratar como lista de irregularidades bsicas o que escapava s generalizaes foi, portanto, a alternativa encontrada pelos estruturalistas americanos para solucionar a questo do lxico e dar o formato de lista aos itens cujas propriedades distribucionais no eram aparentes. Em contraponto, estudos lexicalistas posteriores observaram que h um considervel grau de idiossincrasia afetando o conhecimento que qualquer falante tem sobre o lxico de sua lngua, contudo, a opo terica de deixar no lxico apenas o que irregular e idiossincrtico no se sustentou, uma vez que no se podem negar os aspectos de regularidade do conhecimento que os falantes tm das palavras.

    Nos estudos gerativistas, que tiveram especial expressividade para as pesquisas lingusticas da segunda metade do sc. XX, o componente gramatical de base o sinttico, no qual se concentra todo o potencial gerativo das representaes. Nesse modelo, o componente semntico e o componente fonolgico so considerados nveis interpretativos e o componente lexical, em consonncia com os estudos estruturalistas bloomfieldianos, formado por um conjunto de itens lingusticos cuja organizao ocorre por lista (BORGES NETO, 2004, p. 113). Essa opo de estudo tem a consequncia imediata de resultar na

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    avaliao da sintaxe como um paradigma fechado, se contrastado com o lxico, por exemplo, avaliado como um paradigma aberto em que se depositam itens ainda sem gramtica, pois esto apenas estocados, no entram em relao nem possuem funo (PEREIRA, 2000).

    Em outros termos, dentro do aparato gerativo chomskyano, o lxico da lngua um conjunto de itens lexicais armazenados e no relacionados e reduz-se funo de inserir, nas estruturas de base transformacionais geradas no nvel sinttico, os termos necessrios ao preenchimento das estruturas lingusticas que geram sentenas. Em uma das interpretaes possveis para esse esquema, detalhadamente apresentado em Chomsky (1965), o lxico funciona como um mecanismo alimentador de base, que fornece ao aparato formal abstrato da sintaxe o material lingustico necessrio constituio das sentenas (exceo clara nessa linha terica so os trabalhos em morfologia distribuda, para os quais o lxico componente da gramtica).

    No desenvolvimento da teoria gerativa, cf. aponta Borges Neto (2004, p. 115), essa viso do componente lexical revista e alterada, medida que os itens lexicais passam a ser tratados como feixes de traos e que muitos fenmenos antes explicados exclusivamente por regras transformacionais passam a ser considerados como resultantes de relaes lexicais. O que Borges Neto no avalia a representatividade dessas relaes que comeam a ser consideradas no plano lexical. Apesar da reformulao do papel do lxico na teoria gerativa, os fenmenos lingusticos reservados s relaes lexicais so aqueles que no se pde explicar por regras sintticas e que no lxico, ainda desprovido de gramtica, perpetuam a prtica de lista de irregularidades.

    Pela definio apresentada por Raposo (1992, p. 89), o lxico exposto como [...] o dicionrio da gramtica: as regras desta manipulam os itens lexicais, fazendo um uso crucial da informao a contida.. O autor tambm afirma que, no lxico, esto guardadas tanto as propriedades gerais responsveis pela identificao de classes quanto aquelas propriedades idiossincrticas que identificam itens singulares ou mesmo um pequeno conjunto de itens da lngua. O que se deve destacar sobre esses dois grupos de propriedades que Raposo aponta o fato de eles serem considerados como no-regulares, i.e., como [...] propriedades dos itens lexicais que no podem ser derivadas a partir das regras da gramtica. (RAPOSO, 1992, p. 89), ou seja, so arbitrariedades estocadas.

    No cenrio lingustico atual, a concepo, tradicionalmente difundida desde Bloomfield, de que o lxico uma lista de irregularidades e serve de depositrio a um conjunto de idiossincrasias

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    questionada em trabalhos como Bresnan (2001), Pustejovsky (1995) e Levin e Rappaport-Hovav (1995), os quais argumentam em favor da descrio das regularidades lexicais, de sua organizao e de seu funcionamento, discutindo os reflexos das regras lexicais na sintaxe da lngua. O que emergiu desses recentes estudos foi a considerao de que os falantes dispem de um conhecimento tcito que lhes permite relacionar propriedades semnticas e propriedades sintticas das palavras. Esse conhecimento pode ser generalizado e descrito por meio da criao de classes de palavras que mantenham entre si tanto proximidade de significado quanto de comportamento sinttico.

    2.2 Abordagens Lexicalistas

    Pesquisas recentes no campo da lingustica, destoando da tradio que as precede, dedicam-se a apresentar uma nova dimenso do estudo do componente lexical a partir do tratamento estruturado do lxico e de sua representao. Conforme aponta Moura (2002, p. 1): Depois de um longo perodo em que o lxico foi considerado assistemtico e idiossincrtico, a busca por regularidades e por relaes semnticas sistemticas no campo lexical passou a caracterizar as pesquisas nessa rea.. Ainda segundo o autor, esse novo modelo de estudo configura uma tentativa de [...] explicitar a riqueza do funcionamento do lxico e sua interao com outros componentes da gramtica. (ibidem, p. 1).

    Lexical-Functional Grammar (LFG)12, apresentada por Bresnan (2001), um dos modelos de teoria lexical que ganha destaque a partir do incio da dcada de 1980. Kaplan e Bresnan (1982) desenvolveram esse modelo de anlise dos fenmenos lingusticos que relaciona as funes gramaticais estrutura lexical das lnguas. Para a LFG, o lxico estruturado a ponto de mapear o conjunto de mudanas nas relaes gramaticais, i.e., as relaes gramaticais incluindo-se o processo de alternncia verbal e, dentro dele, a formao de passivas no so estabelecidas pelo mapeamento das diferenas sintticas entre sentenas ou por estruturas internas, mas pela possibilidade de serem mudanas previstas na estrutura lexical subjacente que, obedecendo a determinadas restries, autoriza as possveis mudanas de relao (BRESNAN, 2001).

    12 Outras gramticas de cunho lexical foram desenvolvidas anteriormente; nesta apresentao,

    no se objetiva fazer referncia a todos esses trabalhos, mas realizar um recorte que abarque apenas os que se avalia como sendo os mais expressivos.

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    Nesses termos, as mudanas de relao gramatical so alternncias lexicais e, como j se poderia esperar de um modelo de base lexicalista, esto mapeadas no lxico. O postulado por trs desse princpio (The Principle of Direct Syntactic Encoding) sustenta que todas as mudanas de relao gramatical so lexicais (ibidem, p. 77); alm disso, as informaes gramaticais da lngua esto orientadas por dois nveis representacionais, um referente c-structure (estrutura de constituintes, relativa representao estrutural das sentenas) e outro referente f-structure (estrutura funcional, relativa s funes e s relaes gramaticais presentes na sentena). Tanto as operaes de c-structure quanto as de f-structure esto mapeadas no lxico, onde a possibilidade de no-correspondncia entre estrutura e funo est igualmente prevista (BRESNAN, 2001, p. 19). Assim, a LFG prope-se explicar o funcionamento das lnguas a partir de uma gramtica lexicalmente orientada, em que haja regras gramaticais simples embutidas em uma estrutura lexical complexa.

    Ainda, a LFG sustenta, cf. se apresenta em Bresnan (2001, p. 30), que fenmenos morfolgicos como os processos de formao de palavras so derivados a partir de relaes morfolexicais no morfossintticas. Do mesmo modo, a formao da passiva, comumente tratada na literatura como processo sinttico, , argumenta a autora, tambm derivada por motivaes morfolexicais e circunstanciada por mudanas de relao lexical. Nesse sentido, Bresnan e demais autores desenvolvem uma teoria lexicalista que concebe a formao e a derivao de processos lingusticos, j fartamente discutidos em pesquisas anteriores, por interao no apenas lxico-sinttica, mas tambm lxico-morfolgica, sinalizando a ampliao das relaes significativas entre componentes da gramtica.

    Entre os demais estudos lingusticos de base lexical surgidos recentemente, destaca-se Head-driven Phrase Structure Grammar (HPSG), primeiramente elaborado por Carl Pollard e Ivan Sag e depois desenvolvido por Ivan Sag, Thomas Wasow e Emily Bender. Segundo Arago Neto (2008), a HPSG um modelo de gramtica gerativa fortemente lexicalista, cuja arquitetura (ou estrutura) vale-se da anlise lingustica pautada em trs dos componentes gramaticais: sintaxe, semntica e fonologia. Arago Neto, ancorado nos pressupostos tericos da HPSG, assume que a teoria possibilita generalizaes orientadas pelo ncleo lexical medida que prope suas entidades como complexos de propriedades gramaticais.

    Formulada com base em uma estrutura de traos, a HPSG um modelo de gramtica orientada pela superfcie, do que resulta o no-

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    apagamento de elementos e o no-rearranjo de estruturas sintticas por movimentos posteriores aos processos de gerao. Assim, conhecida como uma teoria lexicalista baseada em restries, a HPSG pode ser descrita: i. como uma teoria que respeita o processamento incremental da lngua a partir de estruturas simples derivadas de propriedades das palavras; ii. como uma teoria que faz uso de princpios, construes, traos e tipos que interagem entre si para descrever as estruturas; iii. e, finalmente, como uma teoria lexicalista que deposita no lxico dados de cunho fonolgico, sinttico e semntico. Dentro desse arcabouo terico, o componente lexical [...] apresenta os elementos signos lexicais que especificam o modo como as estruturas devem ser construdas e, dessa forma, proporcionam velocidade ao processamento lingustico. (ARAGO NETO, 2008, p. 23).

    Outra abordagem de cunho lexical a Teoria do Lxico Gerativo (LG), apresentada e desenvolvida por Pustejovsky (1995). O LG tem como objetivo explicar a natureza polimrfica da linguagem, a semanticalidade das expresses e os usos criativos em novos contextos. Para tanto, Pustejovsky explicita formalmente a composicionalidade da semntica dos itens lexicais, prevendo sua ocorrncia e, tambm, aspectos refinados de seu comportamento em diferentes contextos sintticos.

    O intuito do trabalho de Pustejovsky dar conta do uso criativo do lxico em novos contextos. Para tanto, o autor constri um modelo de estudo destinado composicionalidade lexical enriquecida, objetivando desenvolver uma representao formal da linguagem que capture a natureza gerativa da criatividade lexical e o fenmeno da extenso de sentido, alm de oferecer um tratamento unificado para o fenmeno da polivalncia, mudana de tipos e polissemia regular. Por esse olhar, o comportamento de um item lexical como porta, por exemplo, que pode significar tanto abertura quanto objeto fsico (A porta de metal ou Passei pela porta), explicado por meio de um nico formalismo que prev as possibilidades de ocorrncia deste item.

    O LG ope-se, principalmente, s teorias SEL (sense-enumeration lexicon), que, na avaliao de Pustejovsky, listam de forma descritivista as possibilidades de ocorrncias dos itens lexicais e os diferentes sentidos assumidos na mudana de contexto. Para Pustejovsky (1995), as teorias SEL no do conta de todas as ocorrncias lexicais, nem mesmo servem para embasamento cientfico, j que no delimitam o objeto de estudo como fenomenolgico, apenas listam e enumeram, em um lxico de enumerao dos sentidos, itens lexicais com base em um conjunto finito de traos distintivos.

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    Sob o rtulo de teoria SEL, Pustejovsky inclui trabalhos como Levin (1993), considerando que so modelos de descrio lexical atrelados unicamente enumerao e, assim, incapazes de fornecer uma adequada descrio da semntica das expresses lingusticas. Acertadamente, Pustejovsky percebe nessas pesquisas classificaes centradas na criao de classes lexicais (principalmente classes verbais, que servem aos processos de alternncia). Contudo, o autor reduz o alcance terico de tais estudos quando os limita criao de classes e repetio de itens a cada novo uso. As classes lingusticas identificadas por esses trabalhos so orientadas por critrios relativos ao comportamento sinttico e semntico dos itens lexicais e, assim como as estruturas representacionais propostas pelo LG, evidenciam a estruturao do componente lexical, sua regularidade e a previsibilidade de suas realizaes sintticas.

    Segundo Levin e Rappaport-Hovav (1995, p. 1), a existncia dessas regularidades de ligao entre propriedades semnticas e sintticas das palavras, por exemplo, na relao entre o verbo e seus argumentos [...] sustenta a ideia de que o significado do verbo um fator determinante para a estrutura sinttica das sentenas.13. A constatao dessas regularidades [...] atravs das lnguas fortemente sugere que elas so parte da arquitetura da linguagem.14. Entretanto, a descrio dos componentes de significado relevantes para a sintaxe ainda demanda refinamento, pois: Os componentes de significado mais bvios podem no ser os reais determinantes semnticos do comportamento sinttico.15 (LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 2005, p. 15).

    Finalmente, tomando-se a posio assumida por Pustejovsky (1995), em defesa da existncia de mecanismos semnticos gerativos que, composicionalmente, geram os sentidos das expresses lingusticas, no se pode mais tratar o lxico de maneira breve, como se costumava fazer em pesquisas anteriores. H, nos itens lexicais, uma estrutura semntica interna extremamente rica que permite derivaes de significado em interao composicional entre palavras. Nesse sentido, preciso vencer a viso limitada que se tinha do componente lexical e

    13 Traduo livre, no original: [...] supports the idea that verb meaning is a factor in

    determining the syntatic structure of sentences. (LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 1995, p. 1). 14

    Traduo livre, no original: [...] across languages strongly suggest that they are part of the architecture of language. (LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 1995, p. 1). 15

    Traduo livre, no original: The most obvious components of meaning may not be the actual semantic determinants of syntactic behavior. (LEVIN; RAPPAPORT-HOVAV, 2005, p. 15).

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    reconhecer a relevncia desse conhecimento especialmente para as teorias lingusticas.

    2.3 Resumo do Captulo

    Neste captulo, realizou-se uma retomada do tratamento dado ao componente lexical desde os estudos saussurianos. Antes disso, iniciou-se pela apresentao do clssico debate sobre naturalismo e convencionalismo do signo lingustico, registrado no dilogo Crtilo, de Plato. Em seguida, buscou-se contrastar as descries do componente lexical que vo desde o pressuposto terico de que o lxico altamente regular at o pressuposto contrrio, de que o componente lexical se reduz a uma lista de irregularidades. No final do captulo, est uma sntese das teorias de cunho lexicalista consideradas mais expressivas. Esses estudos, defensores da sistematicidade e, portanto, da previsibilidade do componente lexical, foram representados por Bresnan (2001), pela teoria da HPSG, por Pustejovsky (1995) e por Levin e Rappaport-Hovav (1995) estes dois empregados como embasamento terico neste trabalho. Essa exposio teve o intuito de reforar a tese assumida, de que a estrutura lexical das lnguas rica, regular e capaz de prever, inclusive, o comportamento sinttico dos itens lexicais.

    No captulo seguinte, sero apresentadas noes importantes para a delimitao das ocorrncias lingusticas que, neste trabalho, so classificadas como pertencentes alternncia causativo-incoativa de predicadores inergativos. Definies de aspectos lingusticos como transitividade, inacusatividade e inergatividade sero discutidas para que se possam evidenciar os critrios empregados no estabelecimento de quais verbos alternantes so considerados em cada instncia de alternncia causativa e na identificao da transitividade bsica dos predicadores alternantes.

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    CAPTULO 3 Transitividade Bsica e Natureza dos Predicadores Alternantes

    Como a alternncia causativo-incoativa a partir de verbos primitivamente intransitivos, chamados verbos inergativos, constitui o foco de estudo desta pesquisa, necessrio que se estabelea o procedimento metodolgico aqui adotado para identificar a transitividade bsica do verbo, i.e., preciso esclarecer o que se entende por transitividade e como sero diferenciados os verbos primitivamente transitivos dos primitivamente intransitivos formadores da alternncia focalizada. Este captulo objetiva explicitar tais definies e, para tanto, tambm retoma os procedimentos adotados na literatura para se identificarem, dentro da classe tradicionalmente chamada intransitiva, os predicadores inacusativos e os inergativos, uma vez que essas duas classes verbais formam instncias de alternncia causativa distintas.

    3.1 O Predicador Ncleo da Alternncia Causativa em Foco

    A escolha entre estruturas da lngua distintas que descrevam a mesma cena do mundo no ocorre de maneira desregrada, h condies lingusticas que permitem aos falantes certas formaes, mas bloqueiam outras. Isso pode ser evidenciado nas restries de seleo argumental do lxico. H itens lexicais que permitem, por exemplo, a exposio lingustica de um evento de duas perspectivas distintas e isso caracteriza um processo de alternncia, como a alternncia causativo-incoativa. J outros itens lexicais restringem a possibilidade de expresso lingustica do evento no mundo e podem bloquear a alternncia entre diteses de um mesmo verbo. Sobre esse aspecto, Canado (2005, p. 39) afirma:

    A passagem do evento para a estrutura sinttica no uma relao um-a-um, mas depende de muitos fatores. Primeiramente, essa passagem depende da perspectiva adotada pelo falante para falar sobre os eventos no mundo. Eventos so pluridimensionais e expresses lingsticas so estruturas lineares. [...] para falarmos sobre um evento no mundo, devemos primeiramente escolher uma perspectiva ou um ponto de vista como ponto de partida. Junto a essa escolha, tambm vem a escolha dos itens lexicais a serem empregados. Isso significa que adotar uma

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    perspectiva tambm depende da disponibilidade lexical e morfolgica de uma lngua especfica [...].

    Quando no h restries lexicais, sintticas ou morfolgicas para a alternncia lingustica, ento, um mesmo evento no mundo pode ser descrito de perspectivas distintas; quando h restries, o falante reorganiza a forma de expresso lingustica, buscando estratgias para comunicar o que deseja. Uma categoria lingustica que costuma estar no centro dos processos de alternncia so os verbos. Esses elementos predicadores possuem modos de organizao sinttica de seus argumentos previsveis semanticamente e, se um verbo varia em termos de possibilidades de organizao sinttica, ento, ele abre caminho para um recurso de que dispem os falantes para expressar o mesmo evento sob diferentes perspectivas.

    Conforme j se veio discutindo at este ponto do trabalho, a alternncia causativo-incoativa pode ser derivada de dois tipos de predicadores distintos: verbos considerados intransitivos puros, chamados inergativos, e verbos inacusativos, que seriam basicamente transitivos. Observando essa diferena, Whitaker-Franchi (1989) definiu o primeiro caso como processo de causativizao (ilustrado por (3.1a-b)) e o segundo como processo de ergativizao (ilustrado por (3.1c-d)).

    3.1 (a) O professor passeou os alunos pelo salo do livro. (b) Os alunos passearam pelo salo do livro. (c) Mateus quebrou a maaneta do porto com uma pancada. (d) A maaneta do porto quebrou com uma pancada.

    As cenas descritas pelas sentenas (3.1b) e (3.1d), ambas com ditese intransitiva, traduzem, respectivamente, a perspectiva de desencadeador do evento de passear e a perspectiva de mudana de estado do evento de quebrar, realizando apenas uma das entidades envolvidas no evento: aquela que afetada por ele. Por outro lado, as cenas descritas pelas sentenas (3.1a) e (3.1c), ambas com ditese transitiva, traduzem outra perspectiva dos mesmos eventos, uma perspectiva causativa, agora com duas entidades envolvidas: uma desencadeadora do evento e outra entidade afetada por ele.16

    16 Na verdade, como se demonstrar pela anlise apresentada nos Captulos 5 e 6, o segundo

    argumento de construes como (3.1a) no afetado pelo evento, mas pela induo externa que sofre, mantendo-se na condio de desencadeador do evento denotado pelo verbo.

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    Apesar das propriedades convergentes entre os pares acima, h muitas diferenas entre a alternncia causativa a partir de passear e a alternncia causativa a partir de quebrar. Comea-se por registrar que, ao contrrio de quebrar, passear um verbo que tipicamente ocorre em construes intransitivas e denota atividade, tendo raras realizaes em ditese transitiva. Outro ponto a se considerar, consequente do primeiro, o fato de passear normalmente descrever cenas de uma perspectiva agentiva ((3.1b)), no de uma perspectiva causativa, o que pode gerar certa rejeio ou a estranheza de construes como (3.1a); quebrar, ao contrrio, parece ser amplamente empregado na descrio de cenas em quaisquer perspectivas.

    3.2 Transitividade Bsica

    De acordo com a tradio de estudos gramaticais17, a transitividade foi empregada para classificao dos verbos em pelo menos cinco classes distintas, definidas de acordo com a seleo de objeto direto: verbos transitivos diretos, transitivos indiretos, bitransitivos (diretos e indiretos), intransitivos e de ligao. A oposio entre verbo transitivo e intransitivo ilustra com clareza a aplicao e a ineficincia desses critrios. No mbito das teorias tradicionais de gramtica, chamado transitivo o verbo que exige objeto direto e intransitivo o verbo que recusa objeto direto caso haja regncia de preposio, o objeto indireto e, nessas ocorrncias, a transitividade tambm; caso o verbo selecione dois objetos, um regido por preposio e outro no, classifica-se como bitransitivo; caso o verbo no seja de sentido pleno e tenha valor relacional, ligando o sujeito ao predicativo e servindo se suporte s categorias gramaticais expressas pelas desinncias, classifica-se como de ligao.

    Uma crtica direta definio tradicional de verbo transitivo e de verbo intransitivo pode ser feita com base na variao de transitividade de muitos predicadores verbais. H verbos, como fazer, que sempre ocorrero na presena de objeto, para os quais a definio de verbo transitivo se aplica sem restries. H verbos, como nascer, que sempre rejeitaro a presena de objeto, e para esses a definio de verbo intransitivo se aplica sem restries. O problema est na oscilao de transitividade de um grande conjunto de verbos do portugus, que pode ser ilustrada com o emprego de ler e morrer. O primeiro, embora chamado verbo transitivo, frequentemente empregado

    17 Reproduzida, entre outros, por Cunha e Cintra (2001).

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    intransitivamente (cf. (3.2a)); o segundo, embora chamado verbo intransitivo, pode ser empregado transitivamente (cf. (3.2b)):

    3.2 (a) Alunos de Letras lem pouco. (b) O pai morreu uma morte tranquila.

    Segundo Perini (2000, p. 162), uma soluo de recorrncia para o problema de classificao da transitividade verbal exemplificado em (3.2) afirmar que a transitividade no seria uma propriedade dos verbos, mas de contextos de uso ou de verbos em contexto de uso. Para o autor, essa posio implica o esvaziamento da noo de transitividade, uma vez que passaria a ser uma categoria gramatical suprflua. Entre seus argumentos, Perini considera que as categorias transitivo e intransitivo j no poderiam ser aplicadas aos verbos fora de contexto, tal como esto no lxico. Essa posio viola a definio tradicional, para a qual transitivo o verbo que exige objeto direto (no o que oscila na seleo) e cria uma equivalncia semntica entre ser transitivo e ocorrer com objeto direto, uma vez que dela decorreria, p.ex., a classificao de ler como transitivo quando ocorresse com o objeto e intransitivo quando ocorresse sem o objeto. Nesse caso, [] a noo de transitivo deixaria de ser til, pois no faria mais que repetir a informao j dada pela expresso menos misteriosa que tem objeto direto. (ibidem, p. 163).

    Com base em propriedades paradigmticas dos predicadores verbais, Perini (2000) avalia, possvel que se depreendam generalizaes vindas do comportamento geral das unidades lingusticas, pautadas, logicamente, nas ocorrncias sintagmticas. Em vez de se fundamentar o critrio de definio da transitividade exclusivamente no contexto ou na exigncia e na recusa de objeto direto, Perini amplia a descrio da transitividade em termos de exigncia, recusa e aceitao livre de objeto, o que inclui na descrio gramatical a robusta lista de verbos que oscila quanto transitividade (ler, comer, entre outros que somados chegam a 58% dos verbos do portugus, segundo o autor). Tambm as funes sintticas relevantes para a definio das classes verbais so ampliadas. Enquanto a gramtica tradicional destacava as funes de objeto direto, objeto indireto e predicativo do sujeito, estudos recentes avaliam que as quatro funes relevantes para o estabelecimento da transitividade so objeto direto, complemento do predicado (basicamente o predicativo do sujeito), predicativo (basicamente o predicativo do objeto) e adjunto circunstancial (que inclui objeto indireto e outros casos).

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    Uma consequncia indesejvel dessa multiplicao de funes sintticas e de propriedades relevantes para o estabelecimento da transitividade verbal a profuso de classes. Da aplicao dos critrios essencialmente sintticos empregados por Perini (2000, p. 167) resultam onze classes verbais18, e no mais cinco, conforme prega a tradio gramatical. Para o autor, embora seja ntido o aumento de complexidade na classificao do fenmeno, a ampliao de classes um mal necessrio, j que o prprio fenmeno lingustico da transitividade verbal envolve fatos complexos. Ainda que se reconhea a necessidade de desenvolvimento de um estudo lingustico sobre transitividade que efetivamente d conta de explicar o comportamento dos verbos do portugus, essa questo no ser discutida a fundo aqui, pois est alm dos objetivos de estudo.

    Neste trabalho, a transiti