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GIULIANA CARMO TEMPLE ALUNOS COPISTAS: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DE ESCRITA A PARTIR DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo,como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Escolar Orientadora: Profa. Dra. Marilene Proença Rebello de Souza São Paulo 2007

ALUNOS COPISTAS: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DE … · À Professora e aos alunos que participaram desta pesquisa, abrindo seu cotidiano e contribuindo com suas histórias de vida para

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GIULIANA CARMO TEMPLE

ALUNOS COPISTAS: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DE ESCRITA A PARTIR DA PERSPECTIVA

HISTÓRICO-CULTURAL

Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo,como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Área de concentração: Psicologia Escolar

Orientadora: Profa. Dra. Marilene Proença Rebello de Souza

São Paulo

2007

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na publicação Serviço de Biblioteca e Documentação

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Temple, Giuliana Carmo.

Alunos copistas: uma análise do processo de escrita a partir da perspectiva histórico-cultural / Giuliana Carmo Temple; orientadora Marilene Proença Rebello de Souza. -- São Paulo, 2007.

180 p. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em

Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

1. Psicologia escolar 2. Ensino fundamental 3. Alfabetização 4.

Psicologia histórico-cultural 5. Etnografia I. Título.

LB1051

FOLHA DE APROVAÇÃO Giuliana Carmo Temple Alunos Copistas: Uma Análise do Processo de Escrita a partir da Perspectiva Histórico-Cultural.

Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Escolar.

Aprovado em: ______________________________

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _________________________ Assinatura: __________________________

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _________________________ Assinatura: __________________________

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _________________________ Assinatura: __________________________

AGRADECIMENTOS À Profa. Dra. Marilene Proença, querida orientadora, que acreditou na realização desta

pesquisa, me incentivando e acompanhando pacientemente, muito obrigada!

À Professora e aos alunos que participaram desta pesquisa, abrindo seu cotidiano e

contribuindo com suas histórias de vida para nosso aprendizado.

Às Profas. Dras. Marisa Meira e Elenita Tanamachi, que têm me acompanhado desde o

início da minha formação, e por me colocarem a Psicologia Escolar como um desafio de

vida

Ao Prof. Dr. Fernando Lomônaco, pelas contribuições dadas no Exame de Qualificação.

Ao Prof. Dr. Celestino Alves da Silva Jr., por todas as conversas, leituras e ajuda nas

reflexões teóricas.

A todos os funcionários do Instituto de Psicologia, em especial Olívia e Ronaldo, que

sempre me atenderam e ajudaram tão gentilmente.

À minha querida Mãe (in memorian), que foi a primeira pessoa a acreditar em mim e

acompanhou todos os meus passos. Sei que você está feliz com a conclusão deste

trabalho.

Ao meu Pai, que acredita em mim e sempre me ajudou a tornar meus sonhos possíveis.

Muito obrigada!!

À minha irmã Giovana, companheira dos mais difíceis momentos desses últimos anos.

Obrigada por ter me ajudado a superar a tristeza e a terminar esse trabalho.

À querida Marcinha, por ter voltado para nossas vidas e por ter me ajudado a reencontrar

meu caminho. Obrigada por sua participação no Exame de Qualificação, sem você eu

não conseguiria.

À Santina, que aceitou o desafio de ficar conosco no momento mais difícil, nos ajudando

a vencer a dor e a saudade com sua presença alegre.

À Lílian, minha amiga e irmã de coração. Obrigada por estar ao meu lado em todos

esses anos, me ajudando a superar as dificuldades e compartilhando os momentos

felizes.

As queridas Nilma e Marília, que por dois anos foram mais que amigas, foram minha

família. Obrigada!

Às minhas queridas amigas Raquel, Gisele, Christiane, Flávia e Eni, em diversos

momentos e de várias formas, vocês foram fundamentais para que eu conseguisse fazer

este trabalho.

Ao querido amigo Jair, pela leitura dos textos e pelas boas risadas.

Às queridas primas Lairtes e Camila Temple, pelo trabalho de última hora de revisão e

tradução.

TEMPLE, G. C. Alunos Copistas: Uma Análise do Processo de Escrita a partir da Perspectiva Histórico-Cultural. 2007, 180 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

RESUMO Esta pesquisa visa ampliar o conhecimento no campo da Psicologia Escolar e Educacional a respeito do processo de escolarização das crianças das classes populares. Para tanto, centra-se na constatação de um fenômeno presente no dia-a-dia do processo de aquisição da escrita das crianças das séries iniciais das escolas públicas paulistas. Trata-se do “aluno copista”, ou seja, aquele que somente copia atividades de escrita sem, no entanto, compreender de fato o sentido do que está escrevendo. O objetivo dessa pesquisa é analisar como esse fenômeno se constitui na vida escolar desses alunos e que sentido a escrita adquire para este grupo de alunos copistas, a partir de uma perspectiva histórico-cultural. Propusemo-nos a observar as práticas pedagógicas referentes às solicitações de escrita no contexto escolar, bem como realizar a reconstrução do percurso escolar dos alunos copistas. Utilizamos a abordagem etnográfica como perspectiva teórico-metodológica no campo da psicologia da educação. Partimos de concepções teóricas críticas no campo da Psicologia Escolar e Educacional para entender a vida diária escolar desses alunos, o contexto escolar em que tais situações de aprendizagem são produzidas, e analisamos esta produção à luz da concepção de Luria a respeito da apropriação da escrita pela criança. Durante o ano letivo de 2005, realizamos observações participantes na sala de aula e em outros espaços da escola, entrevistas com os alunos, professoras e diretora, bem como análise dos cadernos que os alunos utilizavam em sala de aula, acompanhando as atividades escolares de quatro alunos da terceira série do Ensino Fundamental. Dentre os aspectos analisados, destacamos: a) a organização das atividades pedagógicas, b) a presença de uma professora substituta, c) os alunos convivendo com o adoecimento da professora, d) as solicitações de escrita, e) as explicações sobre o processo de alfabetização, f) as práticas pedagógicas produzindo alunos copistas e a identificação das marcas subjetivas e, g) o interesse dos alunos copistas pelas atividades pedagógicas. Constatamos que o percurso escolar desses alunos foi marcado pela exclusão em sala de aula, visto que pouco ou nada se lembravam dos dois anos escolares precedentes. No contexto da sala de aula, a cópia ocupava espaço de destaque dentre as atividades propostas, indo muito além de suas funções auxiliares no processo de aquisição da escrita. Embora o contexto concreto do processo de alfabetização tenha afastado essas crianças do significado do trabalho pedagógico, principalmente pela ausência dos motivos que levam à escrita, havia um interesse visível desses alunos para o aprendizado. Por fim, consideramos que a prática da cópia esvaziada de significado não possibilita a apropriação da linguagem escrita e muito menos a formação de sentido pessoal. Entendemos que para reverter esta realidade e possibilitar que os alunos copistas aprendam a escrever, é preciso um comprometimento político e uma prática intencional do professor alfabetizador com os estudos referentes à apropriação da linguagem escrita, visando superar práticas pedagógicas inconsistentes e empíricas, bem como a melhoria das condições de funcionamento e de estrutura do espaço escolar e do trabalho de seus profissionais. Palavras-chave: Psicologia Escolar, Educação Básica, Alfabetização, Psicologia Histórico-Cultural, Etnografia.

TEMPLE, Giuliana. Carmo. Copying Students: An Analysis of the Process of Writing starting from the Historical-Cultural Perspective. 2007, 180 f. Dissertation (Master's degree) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

ABSTRACT This research intends to extend the knowledge in the field of School and Educational Psychology regarding the school process of children in popular classrooms. In order to achieve this object, it focuses on verifying a phenomenon that often appears in the day by day of the process of writing acquisition of children in initial grades at Sao Paulo public schools. It is the “copying student”, in other words, that one that only copies writing activities without really understanding the meaning of what he is writing. The aim of this research is to analyze how this phenomenon takes place in these students’ school life and what meaning is attributed to writing for this group of copying students, starting from a historical-cultural perspective. We intended to observe the referring pedagogic practices to the writing solicitations in the school context, as well as to accomplish the reconstruction of the school course of copying students. We have used the ethnographic approaching as a theoretical-methodological perspective in the field of Educational Psychology. We also have used critical theoretical conceptions in the field of School and Educational Psychology in order to understand these students' daily school life and the school context in which such learning situations are produced. We have analyzed this production enlightened by the conception of Luria regarding the appropriation of the writing for the child. During the school year of 2005, we have done participant observations in the classroom and in other spaces of the school, interviews with the students, the teachers and the principal as well as analyses of the notebooks used by the students in class, accompanying the school activities of four students at the third grade of elementary education. Among the analyzed aspects, we have emphasized: a) the organization of the pedagogic activities, b) the presence of a substitute teacher, c) the students living with the teacher's illness, d) the writing solicitations, e) the explanations in the literacy process, f) the pedagogic practices producing copying students and the identification of the subjective marks and, g) the interest of the copying students for the pedagogic activities. We concluded that these students' school course was marked by the exclusion in classroom, because they remembered very few or nothing about the two precedent academic years. We observed that in the context of the classroom the copying took a remarkable space in the activities, exceeding a lot it’s auxiliary functions in the process of acquisition of writing. Although the concrete context of the literacy process has moved away these children from the meaning of the pedagogic work mainly because of the absence of reasons that take them to writing, there was a visible interest of the students for learning. Finally, we measured that the practice of this meaningless copy doesn't make the appropriation of the written language nor the personal formation possible. We understood that to revert that reality, making it possible for the copying students to learn how to write, a political commitment is necessary as well as an intentional practice of the teacher using the studies that refer to the appropriation of the written language, aiming at overcoming inconsistent and empiric pedagogic practices, as well as to improve the school operation conditions and space structure besides it’s professionals' work. Key-words: School Psychology, Elementary Education, Literacy, Historic-Cultural Psychology, Ethnography.

SUMÁRIO Apresentação ix Introdução 14 Capítulo 1- A Educação Brasileira: breves apontamentos 24

1.1. A concepção Marxista de Trabalho 29 1.1.1.O trabalho desenvolvido na escola 32 1.2. A concepção Marxista de Educação 34 1.2.1 Fracasso Escolar e o Lugar da Psicologia Escolar 37

Capítulo 2- O Aluno Copista A Linguagem Escrita na Perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural e 43

2.1. Os Alunos Copistas 47 2.2. Aspectos da Linguagem Escrita na perspectiva Histórico-Cultural 54 2.2.1. Estágios do Desenvolvimento da Escrita

para Luria 57 2.3. O Papel do Sentido na compreensão do Aluno Copista 71 Capítulo 3- Caminhos Percorridos pela Pesquisa

na Escola 74

3.1. O Campo de Pesquisa 78 3.1.1. Apresentando a Escola Pesquisada 81 3.2. Procedimentos de Coleta de Dados 82

3.2.1. Observações Participantes 82 3.2.2 Entrevistas 86 3.2.3 Análise de Documentos 88 Capítulo 4- Analisando o Processo de Escrita dos

Alunos Copistas 91 4.1. Percurso Escolar dos Alunos Copistas 93 4.2. Organização das Atividades Pedagógicas 101

4.2.1. Professora Substituta 111 4.3. Alunos Convivendo com o Adoecimento da Professora 115 4.4. As Solicitações de Escrita 122 4.4.1. Explicações Sobre o Processo de Alfabetização 129 4.5. As Práticas Pedagógicas Produzindo Alunos Copistas e Marcas Subjetivas 132 4.5.1. Caderno de Reforço 134 4.5.2. O Interesse dos Alunos Copistas pelas Atividades Pedagógicas 137 4.5.3. Os Momentos da Cópia 140 Considerações Finais 150 Referências 155 Anexos 161 Anexo A- Tabela de visitas à escola 162 Anexo B- Frases do dia 163 Anexo C- Exemplo de Registro Ampliado 164 Anexo D- Exemplo de atividades de reforço 168 Anexo E- Exemplo de Material dos Alunos Copistas 170

APRESENTAÇÃO

Minha trajetória na Psicologia Escolar começou em 1999, quando cursava o 3º

ano de Psicologia, na UNESP/Bauru, durante a disciplina Psicologia Escolar II. Neste

ano foi oferecido um estágio extra-curricular por um psicólogo que desenvolvia um

projeto em uma escola de periferia da cidade. O projeto contava com a participação de

alunos dos 3º e 4º anos que foram convidados a trabalhar com os alunos do ensino médio

daquela escola.

No início não compreendia qual era a relação entre a teoria da psicologia

histórico-cultural e a prática desenvolvida em uma sala de aula. Muitos momentos de

angústia permearam este trabalho. Nossas supervisões eram tensas e cansativas. Mas

contamos com a paciência, orientação, preocupação e carinho do Prof. Dr. Tuim Viotto

Filho, nosso supervisor, que nos mostrou o caminho para a realização de uma

intervenção realmente significativa.

Passamos quatro meses nesta escola. Neste período, pudemos discutir com os

alunos temas referentes às relações interpessoais no contexto escolar. Ao término deste

trabalho, tínhamos uma sala comprometida com seu processo de escolarização e com as

relações humanas. Já não éramos as mesmas. Também havíamos passado por uma

transformação pessoal que possibilitou nosso comprometimento com uma educação

humanizadora e com uma psicologia crítica.

A partir deste momento, inseri-me em vários trabalhos realizados pelas docentes

da disciplina Psicologia Escolar, tanto no interior da Universidade como fora dela.

Aprendi com a Profa. Elenita Tanamachi e com a Profa. Marisa Meira a importância de

se discutir a prática do psicólogo escolar, de ter sempre um olhar crítico para as questões

e os problemas da escola e acima de tudo, a importância do trabalho em grupo.

Nos anos seguintes, participei da organização dos encontros de Psicologia Escolar

promovidos pelo Departamento de Psicologia e encerrei minha graduação realizando o

estágio curricular de Psicologia Escolar em uma escola municipal, em que tive a

possibilidade de realizar uma intervenção junto às questões da sexualidade com alunos

da quinta série do ensino fundamental.

Neste mesmo período, também fiz o estágio em Psicologia Social e Comunitária

num bairro de periferia. Nosso trabalho era o de possibilitar condições de discussão

entre os moradores para os problemas existentes no bairro. Os moradores começaram se

organizar para reivindicar junto às autoridades tudo aquilo que lhes estava sendo negado.

Meu período de estágio terminou, mas o trabalho com os moradores do bairro e com as

crianças da escola continuou com outros estagiários.

Quando saí da faculdade, fiz parte de um Centro de Psicologia, UNIPSI, hoje

desativado, sediado na cidade de Bauru, que tinha como objetivo possibilitar o acesso de

toda a população à Psicologia e não apenas às camadas economicamente favorecidas.

Fizemos trabalhos de atendimento individual, projetos em recursos humanos, projetos

em escolas particulares e públicas, cursos para professores etc.

Foi num curso ministrado para professores, no qual discutimos os processos de

alfabetização, que juntamente com as companheiras de trabalho Eni de Fátima Martins e

Flávia Ashbar, fui apresentada ao texto do psicólogo russo Alexander Luria, que

pesquisou o desenvolvimento da escrita na criança.

No ano de 2002, iniciei o Curso de Especialização “Psicologia e Educação:

processos de aprendizagem e escolarização”, promovido pelo Departamento de

Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, do Instituto de

Psicologia da Universidade de São Paulo. A discussões realizadas neste curso

possibilitaram uma visão mais ampla do contexto escolar, principalmente nas questões

referentes à alfabetização, que culminou com o trabalho de conclusão de curso

intitulado: “O desenvolvimento da escrita na criança: contribuições da Psicologia Sócio-

Histórica”, sob orientação da Profa. Dra. Marilene Proença.

As discussões na Especialização, a continuação dos estudos realizados no

UNIPSI e minha prática profissional em escolas públicas e particulares mostraram-me

que meu grande interesse é pela relação estabelecida entre o aluno e a aprendizagem,

bem como o que esse encontro tem produzido. Além disso, interessei-me pelas questões

referentes ao processo de apropriação da linguagem escrita, tão pouco discutido e

pesquisado no meio acadêmico.

Esta dissertação é, portanto, fruto e continuidade dos estudos anteriormente

realizados no Curso de Especialização, no qual estudei o desenvolvimento da escrita na

criança na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural e, que agora continuam em uma

pesquisa realizada com “alunos copistas”.

Os “alunos copistas” são alunos que desenvolveram a habilidade de copiar textos

e atividades propostos pela professora, mas que não compreenderam a linguagem

escrita. Esses alunos conhecem algumas letras, sabem nomeá-las, mas não sabem ler,

além de não saberem escrever quando solicitados a executar tal tarefa.

A seguir, apresento a pesquisa “Alunos Copistas: uma análise do processo de

escrita a partir da perspectiva histórico-cultural“, realizada a partir dos estudos

iniciados no curso de especialização e das práticas profissionais que vivenciei como

psicóloga escolar. Este trabalho divide-se em Introdução, Capítulos 1, 2, 3, 4 e

Considerações Finais assim descritos:

a) Na Introdução, fazemos uma breve revisão bibliográfica sobre a

linguagem escrita, apresentamos os objetivos e apontamos os aspectos

relevantes de uma pesquisa com alunos copistas;

b) No Capítulo 1, “A educação escolar brasileira: breves apontamentos”,

fazemos uma breve análise do trabalho desenvolvido pela educação

escolar brasileira, partindo da concepção marxista de homem e das

relações sociais presentes na sociedade capitalista, e discutimos

aspectos da alfabetização necessários para a apropriação da escrita;

c) O Capítulo 2, “O Aluno Copista e a Linguagem Escrita na perspectiva

da Psicologia Histórico-Cultural”, é dedicado ao tema central deste

trabalho. Buscamos compreender quem são os alunos copistas e como

acontece o fenômeno do copismo. Para tanto, fazemos um estudo

detalhado de uma pesquisa realizada pelo psicólogo soviético e

colaborador de Vigotski, Luria, sobre as fases de desenvolvimento da

escrita nas crianças, para compreender os processos pelos quais os

alunos copistas passam;

d) No terceiro capítulo, “Caminhos percorridos pela Pesquisa na Escola”,

apresentamos a abordagem etnográfica, utilizada no desenvolvimento

desta pesquisa e os procedimentos que foram necessários usar para a

compreensão do aluno copista;

e) No Capítulo 4, “Analisando o Processo de Escrita dos Alunos

Copistas”, analisamos os aspectos educacionais, pedagógicos e

subjetivos presentes no cotidiano da sala de aula dos alunos copistas

f) Nas Considerações Finais, discutimos sobre o processo de

alfabetização que encontramos na realidade pesquisada, produtor de

alunos copistas e, propomos algumas reflexões necessárias para a

superação desta realidade.

Consideramos que esta pesquisa com os alunos copistas pode contribuir para a

compreensão de muitas das questões do fracasso escolar sobre os problemas de

aprendizagem, pois esclarece a realidade do cotidiano escolar e as práticas pedagógicas

do ensino da linguagem escrita.

INTRODUÇÃO

A linguagem escrita é uma das maiores criações da humanidade. Por meio dela

podemos nos expressar e recriar o mundo a nossa volta. Podemos nos comunicar com as

pessoas, escrevendo bilhetes, mandando cartas e e-mails, não importando a distância que

nos separe. Podemos inventar histórias, contos, casos, enfim, uma infinidade de

situações. Podemos contar nossas descobertas, nossos desejos, receios, temores e

felicidades. Pela escrita expressamos o que pensamos e sentimos com relação ao mundo

e às pessoas.

Diferentemente da linguagem oral, que é aprendida nas relações sociais desde o

momento em que nascemos, a linguagem escrita ocupa um lugar especial na

aprendizagem das crianças. Essa aprendizagem acontece principalmente no interior da

escola.

Entretanto, não é somente na escola que as crianças se relacionam com o mundo

escrito. Quando chega à escola, a criança já sabe muito sobre o mundo letrado, entrou

em contato com textos escritos por meio de objetos encontrados dentro de sua casa ou

nas ruas. A criança conhece a linguagem escrita como um objeto social, utilizado pelos

adultos e crianças mais velhas com as quais se relaciona. Isso não acontece somente

quando a criança entra numa sala de aula e começa a se relacionar com uma professora.

Infelizmente, nem todas as pessoas têm a possibilidade de aprender e apropriar-

se dessa produção humana, a linguagem escrita. As escolas estão superlotadas de alunos

que não aprendem o mínimo necessário para a sobrevivência numa sociedade letrada. A

apropriação dos conhecimentos que possibilitam o acesso dos indivíduos à humanização

não acontece. É preciso entender porque o acesso à escrita tornou-se tão hermético.

Primeiramente, devemos compreender que a linguagem escrita é uma produção

social e de domínio público. Ela é usada para que as pessoas possam se comunicar, se

expressar. A escola é a responsável por ensinar às crianças como utilizá-la

adequadamente fora dela. Como nos lembra Ferreiro (2003)

No decorrer dos séculos, a escola (como instituição) operou uma transmutação da escrita. Transformou-a de objeto social em objeto exclusivamente escolar, ocultando ao mesmo tempo suas funções extra-escolares: precisamente aquelas que historicamente deram origem à criação das representações escritas da linguagem. É imperioso (porém nada fácil de conseguir) restabelecer, no nível das práticas escolares, uma verdade elementar: a escrita é importante na escola porque é importante fora da escola, e não o inverso. (p. 20-21)

É exatamente porque a escola transformou um saber social em um saber

guardado, cheio de mistérios e inacessível à maior parte da população, que a cada dia

vemos com indignação o crescente número do fracasso escolar, traduzido em evasão,

abandono, repetência, descrença no sistema de ensino, culpabilização das famílias

pobres e, acima de tudo, crianças desiludidas e frustradas porque falharam em que

deveriam ter tido êxito.

Nosso posicionamento frente ao fracasso escolar, ao realizar este trabalho, é

muito claro: a escola é o lugar que deveria socializar o conhecimento produzido

historicamente pela humanidade, mas que numa sociedade de classes deixa de cumprir

seu papel social porque reproduz as relações sociais de dominação postas pelo sistema

capitalista. O analfabetismo é entendido, nesta perspectiva, como uma conseqüência

lógica de uma sociedade desigual e injusta e, não apenas o resultado da falta de acesso à

escola. É a sociedade excludente que o produz. Na verdade, seria possível resolver essa

questão, garantindo educação básica para todos e, isso só aconteceria em uma sociedade

igualitária.

As discussões sobre os processos de ensino e aprendizagem devem levar em

conta as relações sociais presentes no interior da escola. As escolas públicas, em sua

maioria, têm alunos provindos das camadas populares. Entretanto, muitos ainda são os

“mitos” sobre esses alunos. Os ideários pedagógicos estão permeados de justificativas

preconceituosas sobre porque a população pobre não aprende. Ora os pais são os

culpados porque são analfabetos, trabalham fora, não estimulam; ora as crianças são as

culpadas porque têm problemas emocionais, não estão prontas ou não querem aprender.

(COLLARES e MOYSÉS, 1996)

O que entendemos, na verdade, é que o sistema educacional brasileiro passa por

um grande sucateamento. Os professores cada vez mais têm formação acadêmica

precária, péssimas condições de trabalho e pouca ou nenhuma formação continuada. Os

alunos por sua vez, encontram a escola no estado em que se apresenta, não tendo nem os

materiais pedagógicos adequados, nem condições efetivas de aprender. (ROSSLER,

2004)

A preocupação deste trabalho de pesquisa é com o levantamento de aspectos

referentes ao processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita nesta sala de aula

de terceira série. Pensamos que se faz necessário uma preocupação real e uma

compreensão adequada dos processos de apropriação da escrita.

No ano de 2003, quando concluíamos o trabalho de especialização sobre o

desenvolvimento da escrita na criança, deparamo-nos com alguns problemas que

pensamos serem importantes para a pesquisa acadêmica. Em uma sociedade letrada

como a nossa, é impossível pensar uma criança que não tenha tido contato com as letras,

mesmo que não compreenda seu significado simbólico. (FERREIRO, 1985)

Por outro lado, os processos pelos quais passa a alfabetização brasileira, levam à

produção de um grande número de alunos “analfabetos funcionais” ou “iletrados”, isto é,

que não participam do mundo letrado. Compreendemos esses dois conceitos a partir de

Foucambert (1994), que os define da seguinte maneira: “o analfabetismo funcional

envolve pessoas com vários anos de escolaridade que dominam essas técnicas de

correspondência grafo-fonética num certo período da sua vida, mas perderam esse

domínio por falta de uso e de exercício com elas”. O iletrismo, por sua vez, caracteriza-

se “pelo afastamento em relação às redes de comunicação escrita, pela falta de

familiaridade com livros e jornais, pela exclusão do indivíduo das preocupações e

respostas contidas na elaboração da coisa escrita”. (p. 118-119)

Além do mais, nossa experiência como psicóloga escolar nos mostrava as

queixas dos professores que seus alunos não aprendiam, não conseguiam ler ou escrever.

Os professores também se queixavam muito que pouco ou quase nada podiam fazer com

esses alunos, pois não tinham tempo, materiais adequados ou, realmente não sabiam o

que fazer.

Essas questões nos afetaram profundamente e decidimos pesquisá-las. Para

elaborar o projeto de pesquisa, pensamos em muitas perguntas referentes aos processos

de aprendizagem da linguagem escrita, a relação entre desenvolvimento e aprendizagem

e mais especificamente, o papel da zona de desenvolvimento imediata nessa

aprendizagem1. Pois, se existe um adulto mediador, ou um colega de classe mais

experiente, o que faz com que alguns alunos não aprendam a escrever?

Mediação e Relação Entre Desenvolvimento e Aprendizagem

Também nos detivemos na relação entre a aprendizagem da linguagem escrita e o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores, já que para desenvolver tais

funções, os indivíduos devem apropriar-se da cultura construída historicamente pela

humanidade. Neste contexto, a apropriação da escrita exerce papel fundamental no

processo de humanização dos alunos.

Uma das funções psicológicas superiores que os indivíduos desenvolvem ao

longo da vida é o sentido que eles atribuem aos fatos e acontecimentos vivenciados no

contexto social, que são carregados de significado social, e que adquirem significado

individual, tendo, portanto, sentido pessoal. Além disso, precisamos compreender que o

sentido pessoal está relacionado com o motivo da atividade que lhe corresponde.

1 Zona de desenvolvimento imediata é “o estágio em que a criança traduz no seu desempenho imediato os novos conteúdos e as novas habilidades adquiridas no processo de ensino-aprendizagem, em que ela revela que pode fazer hoje o que ontem não conseguia fazer” (Vigotski, 2001, p. XI). Essa terminologia substitui a anterior, zona de desenvolvimento proximal, a partir da tradução da obra “A construção do pensamento e da linguagem”, do russo para o português feita por Paulo Bezerra.

Compreendendo todos esses processos psicológicos e pedagógicos, acima

expostos, além da nossa prática profissional no interior das escolas, foi possível pensar

em um problema de pesquisa que conseguisse abranger grande parte das questões

levantadas anteriormente. Decidimos, então, pesquisar os alunos que não se apropriaram

da linguagem escrita, mas que desenvolveram habilidades para escrever, e saber qual é o

sentido que a escrita tem para esses alunos, nomeados neste trabalho como “alunos

copistas”.

E é isso que vamos discutir neste trabalho. Qual é o sentido que a linguagem

escrita tem para os alunos copistas, que apenas copiam as letras, mas que não

conseguem escrever sozinhos. Como esses alunos aprendem a copiar, mas não aprendem

a escrever.

A seguir, apresentamos os objetivos deste trabalho e justificamos porque uma

pesquisa com alunos copistas é importante.

Objetivos

Compreendendo a importância da aprendizagem da linguagem escrita na

alfabetização e no desenvolvimento dos indivíduos, essa pesquisa visa:

Objetivo Geral

- Investigar qual é o sentido da escrita para o aluno copista.

Objetivos Específicos

- Observar as práticas pedagógicas referentes às solicitações de escrita;

- Investigar se o “copismo” é parte do processo de apropriação da

linguagem escrita;

- Reconstruir o percurso escolar dos alunos copistas;

- Identificar marcas subjetivas produzidas nos alunos pelo contexto

escolar na aquisição da leitura e da escrita.

A Relevância de uma pesquisa sobre Alunos Copistas

Considerando que a apropriação da linguagem escrita é muito mais do que a

aquisição de habilidades motoras necessárias para escrever, julgamos importante

pesquisar como a aprendizagem da escrita têm acontecido no interior das escolas.

As práticas pedagógicas de ensino da escrita que temos encontrado na educação

infantil e fundamental nos parecem muito mais o treino das habilidades motoras do que

o ensino da linguagem.

Essa atividade de treino de escrita de letras ou sílabas ou palavras e até mesmo de textos que não expressam o desejo de comunicação e expressão das crianças vai, aos poucos, tomando o lugar de todas as demais atividades que deveriam ter lugar na escola privilegiando a cultura da expressão. Em outras palavras, com um olhar orientado pela crítica de Vygotsky, perceberemos que por um longo período - durante o qual a criança se aproxima da escrita - fechamos para a criança os canais de expressão na escola: para as formas pelas quais ela poderia se expressar - a fala, o desenho, a pintura, o faz-de-conta...que formam as bases necessárias para a aquisição da escrita -, não há tempo porque ela está ocupada com a escrita e,

pela escrita ela não pode se expressar ainda, porque está ainda aprendendo as letras. Sem exercitar a expressão, o escrever fica cada vez mais mecânico, pois sem ter o que dizer, a criança não tem porque escrever.(MELLO, 2005, p. 29-30)

Encontramos em muitos autores (FERREIRO, 1989; LURIA, 1989; MELLO;

2005; SANTOS, 2002;VIGOTSKI, 1998) a afirmação de que copiar não é escrever, e

que a habilidade para copiar não se relaciona com a compreensão da escrita.

Entretanto, pretendemos investigar nesta pesquisa realizada com alunos copistas,

se esse momento de cópia faz parte da apropriação da escrita, ou se deve ser superado

por práticas pedagógicas que possibilitem a compreensão da simbolização da linguagem

escrita.

A hipótese da cópia pôde ser pensada a partir de estudos sobre a zona de

desenvolvimento imediata, quando Vigotski (1998) afirma que “uma compreensão plena

do conceito de zona de desenvolvimento proximal deve levar à reavaliação do papel da

imitação no aprendizado”. (p. 114, grifo nosso)3

Entendemos que se a cópia é a imitação da escrita do professor ou dos colegas de

sala que conseguem escrever, a criança está realizando uma atividade com a ajuda de um

mediador, no caso a professora. Para além disso, Vigotski explica que o aprendizado cria

desenvolvimento. Entretanto, somente se a aprendizagem realmente for internalizada é

que será considerado como desenvolvimento real da criança. Se a cópia da escrita adulta

não ultrapassar esse limite de imitação e não for internalizada, não terá acontecido nada

novo no desenvolvimento da criança.

3 Zona de desenvolvimento imediata é o termo que opto utilizar, como explicado anteriormente, entretanto, em algumas traduções mais antigas encontramos o termo “zona de desenvolvimento proximal”.

Para realizar este trabalho com os alunos copistas, escolhemos a terceira série

como campo de pesquisa porque primeiramente, entendemos que as duas primeiras

séries do ensino fundamental, precedidas ou não pela educação infantil, devem cumprir

o papel de alfabetização, sendo que na terceira série a maioria dos alunos deve estar

alfabetizada; posteriormente porque essa era a sala de aula, nesta escola, que tinha mais

alunos copistas, cinco. As demais salas de aula, de segundas, terceiras e quartas- séries,

contavam com dois ou três alunos copistas em cada uma.

Além disso, foi possível acompanhar os alunos durante todo o ano letivo e na

mudança para a quarta série, verificando se houve mudanças qualitativas no processo de

aquisição da linguagem escrita por parte desses alunos.

CAPÍTULO 1

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA: BREVES APONTAMENTOS

Ao pensar essa pesquisa com os alunos copistas, entendemos que seria necessário

fazer uma análise aprofundada da educação brasileira, como está posta nos dias de hoje.

Para tanto, partimos da concepção marxista de homem, bem como da análise que Marx

fez das relações sociais na sociedade capitalista para entender as concepções ideológicas

presentes no sistema educacional atual.

Utilizamos autores que têm pensado e discutido a educação na perspectiva da

pedagogia histórico-crítica, apontando as contradições presentes no sistema educacional

e as possibilidades de superação dessas contradições. Também discutimos a importância

da psicologia escolar numa perspectiva crítica, ou seja, baseada no materialismo

histórico dialético, para a compreensão dos fenômenos educacionais e o papel da

psicologia na superação do fracasso escolar.

A educação numa perspectiva crítica possibilita a compreensão do processo

educativo como fundamental para a construção de sujeitos participativos do seu processo

de humanização. Neste sentido, como nos aponta Saviani (2003b), a ação educativa deve

ser compreendida como necessária para a emancipação do indivíduo à medida que a

educação pertencendo ao âmbito do trabalho não material, está relacionada a idéias,

conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes e habilidades.

Ainda segundo o autor, “o que não é garantido pela natureza tem que ser

produzido historicamente pelos homens (...) podemos dizer que a natureza humana não é

dada ao homem, mas é por ele produzida...”. Desta forma, a ação educativa deve

contribuir para que o indivíduo possa avançar do nível empírico para o nível conceitual e

abstrato, adentrando ao mundo das teorizações e hipóteses sobre a realidade. Este

trabalho deve, portanto, produzir em cada sujeito a humanidade que é produzida

histórica e coletivamente e a educação, então, precisa resgatar os elementos culturais que

tornam o indivíduo verdadeiramente humano. (idem, 2003b, p. 13)

A partir dessa visão de educação queremos possibilitar que por meio de um

trabalho educativo sejam criadas condições para que os sujeitos possam passar do senso

comum à consciência filosófica. Entendemos que senso comum é uma forma de

consciência “fragmentada, desarticulada, incoerente, mecânica, passiva e simplista”; e

consciência filosófica, seria “unitária, articulada, coerente, intencional, ativa e cultivada”

(SAVIANI, 1989, p.10).

É importante salientar que ao desenvolver esta pesquisa com os alunos copistas,

reconhecemos que a aprendizagem da escrita ocupa lugar central no processo educativo,

e a educação, como nos lembra Tanamachi (2000), é

o processo através do qual os indivíduos se apropriam dos conhecimentos produzidos pela humanidade e que a Educação escolar tem um lugar importante (...); a aprendizagem escolar é necessária e universal para o desenvolvimento das características humanas não naturais, mas formadas historicamente. (p. 95).

A educação é um dos direitos infantis assegurados pela Constituição Federal

Brasileira (1988) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (arts. 53 e 54).

Apesar de todas as leis que regulamentam a prática educativa como sendo um direito de

toda criança e adolescente e uma obrigação dos pais de cumpri-la, não é esse o quadro

que temos visto. O Estado não tem oferecido o número suficiente de vagas para todo os

alunos, nem garantido uma educação pública de qualidade, porque a escola “é pensada

como o local de que o Estado se utiliza para assegurar a continuidade do domínio dos

que detêm o controle dos meios de produção e, por extensão, do poder”. (SILVA

JUNIOR, 1990, p.10)

Rossler (2004, p. 82) também discute essa questão ao afirmar que “a educação no

Brasil encontra-se à mercê dos fortes ventos da ideologia neoliberal e pós-moderna que

sopram mundialmente.”

A ideologia neoliberal é a concepção de homem e de mundo presente no sistema

econômico capitalista e por sua “natureza”, presente também nas relações sociais. A

ideologia neoliberal deriva do liberalismo econômico que prega o livre mercado e a livre

negociação das mercadorias entre todos os produtores. Entretanto, a negociação das

mercadorias é feita por homens e entre homens, que mantêm as suas relações sociais

com base nas leis do liberalismo econômico. Nessa concepção de mundo, pressupõe-se

ideologicamente que os homens são seres livres com direito de se relacionar com outros

seres livres. Na sociedade capitalista, as coisas aparecem como pessoas e as pessoas são

dominadas pelas coisas que elas mesmas produzem.

Mas devemos entender que as oportunidades dadas pelo Estado são as baseadas

nas leis do mercado e também aquelas que satisfaçam as atuais necessidades do

mercado. Dizer que todos os homens têm a mesma oportunidade não é verdade. A

liberdade para a procura não é verdadeira na medida em que os homens têm diferentes

formações educacionais e situações econômicas discrepantes. O número de empregos

criados ou as vagas existentes nas escolas não são suficientes para todos que precisam

trabalhar ou para quem tem que estudar. Poderemos somente nos referir à igualdade de

oportunidades quando as pessoas não tiverem que competir umas com as outras.

A ideologia neoliberal prega uma natureza humana, na “perspectiva do homem

apriorístico, com estruturas ou mecanismos prontos que permitem o seu funcionamento”

(BOCK, 2002, p. 17), num homem que nasce pronto em suas características individuais.

Em contradição com a concepção de liberdade, os homens do neoliberalismo nascem

com capacidades e habilidades diferentes uns dos outros. Essas capacidades e

habilidades são inatas, ou são dons divinos recebidos ao nascimento, independentes da

sua vontade. É a partir delas que as pessoas vão se desenvolver e exercer suas atividades.

Essa concepção de homem do neoliberalismo é a concepção de criança-estudante

que permeia os ideários e as práticas pedagógicas. Associada à compreensão de uma

liberdade comum a todos os homens, a escola brasileira entende que quem quer aprender

procura a escola; e quem tem a capacidade para aprender, aprende, quem não tem, não

aprende, nada há a fazer, já que essa habilidade é inata.

O trabalho aqui apresentado compreende o desenvolvimento humano e a prática

pedagógica como sendo construções especificamente humanas e, portanto, sociais. Tudo

o que é criado pelos homens é fruto do desenvolvimento histórico e social da

humanidade.

A concepção social e histórica da formação do indivíduo, discutida neste texto,

vai além da concepção liberal, pois entende o homem como um ser “ativo, social e

histórico; a sociedade como produção histórica dos homens que, através do trabalho,

produzem sua vida material (...)” e não material (BOCK, 2002, p. 17). O homem não é

só a sua condição natural, biológica, mas é o único ser da natureza que utiliza a sua

condição natural para criar sua existência.

Ao longo da história da humanidade, os homens foram se apropriando da

natureza para construírem sua vida e sua história. Os homens dominaram a natureza a

favor de seus interesses e de seu desenvolvimento.

De acordo com Paro (1999, p. 16), “a natureza é o domínio da necessidade-

daquilo que independe da ação humana, daquilo que acontece necessariamente, sem que

o homem possa interferir -, não da liberdade; essa é construída, não preexistente à ação

humana”. A liberdade faz parte da história dos homens, foi construída ao longo da

construção da humanidade e como conseqüência dela. Essa concepção de homem é

oposta à concepção liberal que afirma que a liberdade é um atributo natural dos homens.

Compreendemos na perspectiva do materialismo histórico dialético os homens como

seres históricos, ou seja, que construíram sua existência através do trabalho.

A divisão social do trabalho é anterior ao sistema econômico capitalista. Mas é o

capitalismo que separa o produtor dos meios de produção, das condições objetivas de

vida. Quando o trabalhador é separado dos meios de produção e do produto do seu

trabalho, já que trabalha para outrem, ele também é separado da humanidade produzida

por meio do seu trabalho, tornando-se alienado.

Da simples divisão do trabalho, o capitalismo passa para a divisão

pormenorizada do trabalho, na qual os trabalhadores se especializam em uma

determinada atividade na produção de uma mercadoria. Esse tipo de atividade produz

especialização, ganho de tempo e a possibilidade de criar máquinas que substituam as

atividades humanas. Para o capitalismo esses são ganhos essenciais para o aumento da

mais-valia, mas aumenta a desqualificação do trabalhador e a alienação posta nesse tipo

de trabalho.

Sob esse modo de produção, o trabalho deixa de ser móvel de realização humana para constituir-se em fonte de aniquilamento do ser humano como sujeito. As potencialidades do trabalho concreto – criador de utilidades (bens e serviços) que possibilitam a emancipação humana – são secundarizadas em valor da precedência absoluta do trabalho abstrato – criador do valor econômico que serve à expansão do capital. (PARO, 2001, p. 19)

O que define o sistema capitalista é a produção e a troca das mercadorias. Para

que esse processo aconteça, os trabalhadores têm que vender sua “mão-de-obra”, sua

energia vital para os donos dos meios de produção.

Como nos lembra Silva Junior (1990),

o que se compra e se vende é menos e é mais do que o trabalho propriamente dito. É menos porque o que se vende ou se compra não é o próprio trabalho, mas a ‘força de trabalho’, ou seja, a capacidade humana de realizar trabalho. E é mais, porque, ao vender minha força de trabalho, vendo também, ainda que não me ê conta disso, meu direito de exercer controle sobre a realização do meu trabalho. (p. 26)

As mercadorias produzidas no sistema capitalista possuem dois tipos de valor:

um de uso, outro de troca. O valor de uso de uma mercadoria é a sua utilidade, a

propriedade que a mercadoria tem de atender as necessidades humanas. O valor de troca

é a expressão quantitativa de trabalho humano usado na produção dessa mercadoria, que

indica a propriedade que a mercadoria tem de ser trocada em comparação à outra

mercadoria produzida também por trabalho humano.

Mas os produtores das mercadorias- os trabalhadores- não têm acesso a elas; o

produto de seu trabalho é separado, alienado dele. E o que o trabalhador produz é muito

mais do que o que paga o seu salário; o trabalhador produz mais-valia, ou seja, valor

excedente, trabalho não pago, que ultrapassa o tempo de trabalho necessário para a

manutenção de sua vida e, que é expropriado dele pelo dono dos meios de produção.

Assim, o trabalho na sociedade capitalista é necessariamente o trabalho que

produz mais-valia. É trabalho o processo de trabalho que aumenta o capital. A mais-

valia é o produto específico do sistema de produção capitalista.

E o trabalho humano, a energia vital que o trabalhador despende na produção das

mercadorias, também pode ser considerada uma mercadoria, por ser possuidora de um

valor de troca e um valor de uso. É trocada por dinheiro e é produtora de valor, ou seja,

mais-valia.

Ao analisar o sistema capitalista, Marx (1978) afirma que o trabalhador

produtivo é quem “executa trabalho produtivo, e é produtivo o trabalho que gera

diretamente mais-valia, isto é, que valoriza o capital”. (p.71, grifos no original)

Mais além, Marx afirma que

0 que constitui o valor de uso específico (do trabalho produtivo) para o capital não é seu caráter útil determinado, como tampouco as qualidades úteis peculiares ao produto no qual se objetiva, mas seu caráter de elemento criador de valor de troca (mais-valia). (p. 71)

O trabalho produtivo, no sistema econômico capitalista é o trabalho que produz

mais-valia, que está a serviço do capital, “(...) troca-se diretamente por dinheiro

enquanto capital, isto é, por dinheiro que em si é capital, que está destinado a funcionar

como capital, e como capital se contrapõe à força de trabalho.” (MARX, 1978, p.75,

grifo no original)

No sistema capitalista, o trabalho pode ser dividido em dois tipos: produtivo e

improdutivo. Compreendido o conceito de trabalho produtivo para Marx, passemos ao

seguinte.

1.1.1. O Trabalho Desenvolvido na Escola

O trabalho improdutivo é aquele que não gera mais-valia, não é separável de seu

produtor, mas pode ter como resultado uma produção material (uma obra de arte, por

exemplo) ou uma produção não material (uma aula).

Marx (1978) define trabalho improdutivo da seguinte forma:

Os trabalhos que só se desfrutam como serviço não se transformam em produtos separáveis dos trabalhadores – e, portanto, existem independentemente deles como mercadorias autônomas – ainda que se os possa explorar de maneira diretamente capitalista, constituem magnitudes insignificantes se comparados com o volume da produção capitalista. Por isso, deve-se fazer caso omisso desses trabalhos, e tratá-los somente a propósito do trabalho assalariado, sob a categoria de trabalho assalariado que não é ao mesmo tempo trabalho produtivo. (p.76)

Ao analisar a educação escolar do ponto de vista do sistema capitalista, o

trabalho desenvolvido pela escola pública pode ser entendido como um trabalho não-

material, já que não produz a autovalorização do capital, a mais-valia e se consome em

si mesma, em seu valor de uso. E desta forma, os professores são trabalhadores

improdutivos, porém assalariados. O produto do trabalho escolar é “uma produção não

material”, já que não é separado do ato de sua produção. (MARX, 1978, p.79)

Para Saviani (2003b, p. 6), a educação faz parte do trabalho não-material, já que

ele distingui produção material e não-material em dois aspectos: “aquela em que o

produto se separa do produtor e aquela em que o produto não se separa do ato de

produção; e é nesta segunda modalidade que se localiza a educação.”

Entretanto, não podemos fazer a mesma afirmação sobre o trabalho da escola

particular. O que diferencia o trabalho das escolas em material e não-material é a sua

forma social e não seu conteúdo, seu valor de uso. O trabalho desenvolvido nas escolas

públicas e particulares, em termos de conteúdo, é o mesmo, mas a forma social se difere

quando a instituição particular produz a autovalorização do capital, já que os

professores, quando executando sua atividade, produzem mais-valia para os donos

dessas instituições. Além do valor de uso do trabalho escolar o trabalho desenvolvido

nessas instituições tem valor de troca, pois podem ser comprados porque tornaram-se

mercadorias.

1.2. A Concepção Marxista de Educação

Se realmente nos propomos a fazer uma leitura marxista da educação brasileira, é

importante que compreendamos os conceitos e a importância que Marx dá ao trabalho e

ao entendimento da sociedade capitalista, pois a organização social é determinada pelo

modo de produção material da sociedade. E dessa forma, poderemos entender o papel

que a escola ocupa na sociedade capitalista e, assim, superar visões naturalizantes do

fenômeno educativo.

A análise teórica marxista nos permite compreender que os homens passam por

um desenvolvimento histórico e social para se tornarem efetivamente humanos. Os

homens criaram sua humanidade. Passaram da forma hominizada (biológica), para a

forma humanizada (social) de construção do mundo. Isso significa que nenhum bebê

humano consegue desenvolver suas potencialidades se não conviver com outros seres

humanos, pois as características humanas que hoje parecem ser tão naturais, são

construções sociais e não são transmitidas geneticamente, como por exemplo, a fala ou a

escrita. Leontiev (1978) sintetiza este pensamento da seguinte forma

O homem não nasce dotado das aquisições históricas da humanidade. Resultando estas do desenvolvimento das gerações humanas, não são incorporadas nem nele, nem nas suas disponibilidades naturais, mas no mundo que o rodeia, nas grandes obras da cultura humana. Só apropriando-se

delas, no decurso da sua vida ele adquire propriedades e faculdades verdadeiramente humanas. (p.282)

Isto significa que as crianças nascem seres humanos com a possibilidade se

humanizarem. Mas o processo de humanização depende diretamente das condições

concretas de vida dos indivíduos, sendo que a educação ocupa espaço fundamental.

A educação entendida como apropriação do saber historicamente acumulado, ou seja, como processo pelo qual as novas gerações assimilam as experiências, os conhecimentos e os valores legados pelas gerações precedentes, é fenômeno inerente ao próprio homem e que o acompanha durante toda sua história. (PARO, 2003, p. 105)

Essa educação, à qual o autor se refere, é a educação não formal, não

sistematizada, que é passada culturalmente de uma geração para outra.

A educação escolar é sistematizada, organizada, científica e ocupa lugar central

na formação das crianças, quando entendemos que a humanização só acontece dentro da

sociedade na qual está inserida quando são dadas as condições para o desenvolvimento

humano. É na escola que as crianças têm a possibilidade de se apropriar do

conhecimento construído historicamente pela humanidade e assim humanizarem-se.

Desta forma, a apreensão dos processos da escrita e da leitura é fundamental para

que os indivíduos possam se apropriar dos conhecimentos produzidos pela humanidade

ao longo de sua história.

E nesse sentido, a alfabetização é a via de acesso entre o sujeito e o saber

acumulado historicamente. Quando nos referimos à alfabetização e à importância de ler

e escrever, estamos nos reportando ao “(...) verdadeiro leitor, capaz de desenvolver a

competência para extrair significado das linhas e entrelinhas de um texto (...)”

(AZEVEDO, 1994, p.45).

A alfabetização deve servir para desenvolver seres humanos que possam ir além

daquilo que lhes é dado. É através da alfabetização que as crianças podem se tornar

sujeitos de sua história, participantes ativos e conscientes do seu processo de

humanização, do seu tornar-se homens humanizados.

A educação compreendida numa perspectiva crítica possibilita entender o

processo educativo como fundamental para a construção de sujeitos participativos do seu

processo de humanização. Neste sentido, como nos aponta Saviani (1989), a ação

educativa deve ser compreendida como necessária para a emancipação do indivíduo à

medida que a educação pertencendo ao âmbito do trabalho não material, está relacionada

a idéias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes e habilidades.

Assim, a ação educativa deve contribuir para que o indivíduo possa avançar do

nível empírico para o nível conceitual e abstrato, adentrando ao mundo das teorizações e

hipóteses sobre a realidade. Este trabalho deve, portanto, produzir em cada sujeito a

humanidade que é produzida histórica e coletivamente e a educação, então, precisa

resgatar os elementos culturais que tornam o indivíduo verdadeiramente humano.

(SAVIANI, 1989)

Mas como nos lembra Paro (2003), a escola que é a responsável por transmitir o

saber acumulado historicamente de forma sistematizada, na sociedade capitalista,

participa da divisão social do trabalho, visto que é a única instituição especializada nessa

atividade.

Desta forma, a escola atende às necessidades e exigências do capitalismo, da

ideologia dominante que prega o direito à educação, oferecido pelo Estado, para toda a

população. A ideologia liberal criou a cultura de que a escola é universal e gratuita para

todos os brasileiros. Ideologicamente, a escola está posta como possibilidade para todos,

vai utilizá-la quem souber aproveitar.

1.2.1. Fracasso Escolar e o Lugar da Psicologia Escolar

Não é nossa intenção, nesse item, fazer um levantamento histórico das

produções, autores e acontecimentos que culminaram com as atuais discussões sobre as

práticas da psicologia escolar crítica. Entretanto, algumas reflexões não poderiam deixar

de estar presentes numa pesquisa que estuda as relações entre psicologia e educação, por

isso, faremos breves considerações que entendemos serem pertinentes para o

desenvolvimento deste trabalho.

Historicamente, o Brasil tem produzido o fracasso escolar de milhões de crianças

em processo de alfabetização, com políticas educacionais excludentes, posturas

preconceituosas e marginalizadoras. Tem-se mostrado “uma escola de saber miúdo, de

saber elementar, bem adequada ao adestramento mínimo – necessário e tolerável- do

exército de reserva de trabalhadores acríticos, obedientes e pouco qualificados...”

(AZEVEDO, 1994, p. 48). Por tudo isso, a escola acaba por criar um movimento de

evasão escolar, que pode ser lida como uma expulsão em massa dos alunos.

Para compreender como se dá o fracasso escolar de milhares de crianças que

participam da alfabetização da escola numa sociedade capitalista, devemos compreender

qual é o seu papel. A escola na sociedade capitalista possibilita que as pessoas se

familiarizem com a leitura e a escrita, requisitos básicos para as atividades que terão que

desenvolver nos seus futuros subempregos. Além disso, a escola dissemina e referenda a

ideologia hegemônica, pois

sendo um instrumento de reprodução das relações de produção a escola na sociedade capitalista necessariamente reproduz a dominação e exploração. Daí, seu caráter segregador e marginalizador. Daí, sua natureza seletiva. (SAVIANI, 2003a, p. 30)

Ao falar do fracasso escolar, estamos nos remetendo a um grande problema

enfrentado pela escola e, que é tema central do trabalho do Psicólogo Escolar

comprometido com a superação de visões naturalizantes e psicologizantes de práticas

pedagógicas e psicológicas no interior das escolas.

Embora hoje seja possível discutir uma atuação crítica da psicologia na

educação, essa ainda não é a visão hegemônica do trabalho do psicólogo. Isso se dá

porque a inserção da psicologia na educação, surge no Brasil, como explica Facci

a partir de condições históricas determinadas. Partiu de uma visão organicista, com fundamentos na biologia; de uma visão clínica do trabalho no âmbito educacional, no sentido de diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem, e de uma visão psicometrista, que selecionava os mais ‘aptos’, depositando no aluno a culpa pelo ‘não aprender’. (2004, p. 99-100)

A partir da década de 1980, com a defesa da tese de doutorado de Maria Helena

Souza Patto e a chegada ao Brasil dos trabalhos dos autores soviéticos da psicologia que

compreendem o fenômeno psicológico numa perspectiva marxista e, de outro lado, a

pedagogia histórico-crítica marcando o início da possibilidade de repensar as práticas

pedagógicas alienantes, é que a compreensão das questões educacionais começou a

mudar.

Essa forma tradicional de atuação, começou a ser revista quando apareceu a

necessidade “de se analisar com profundidade a realidade educacional brasileira em toda

sua extensão e de se assumir um posicionamento político definido em relação à

educação e ao papel social da Psicologia” (MEIRA, 2003, p.22). O fracasso escolar das

crianças que não aprendem, passa do âmbito privado e individual, para uma

compreensão mais ampla das relações educacionais que produzem esse fracasso.

Essas reflexões, como esclarece Meira (idem) mais adiante, possibilitaram o

rompimento com o modelo clínico de atuação, que explica os problemas de

aprendizagem

como conseqüência de dificuldades orgânicas; características individuais de personalidade, capacidade intelectual ou habilidades perceptivo-motoras; problemas afetivos e vivenciais; comportamentos inadequados; carências psicológicas e culturais; dificuldades de linguagem; desnutrição; despreparo para enfrentar as tarefas da escola; falta de apoio da família, ‘desagregação’ familiar.

Os pressupostos do modelo tradicional que fundamentaram a prática de muitos

profissionais e ainda orientam tantos outros, são referendados pela ideologia

hegemônica, que visa a adaptação dos indivíduos – principalmente das crianças e

famílias pobres que freqüentam a escola pública - à sociedade e, portanto, à escola.

Desta forma, à psicologia coube o papel de resolver os problemas de

historicamente acumulados como instrumento de passagem da consciência do senso

comum à filosófica e neste movimento, deve criar condições de conscientização de

alunos e professores acerca da importância da apropriação do saber para o

desenvolvimento humano.

Souza (2000), ao discutir o trabalho de intervenção nas escolas afirma que se faz

necessário desmistificar crenças e valores preconceituosos presentes nas escolas, onde se

rotulam crianças e adolescentes como problemáticas, agressivas e delinqüentes; sendo

necessário um trabalho que reconheça estes sujeitos a partir de um outro parâmetro que

não mais seja o da exclusão educacional e social

Afirma a autora que é preciso construir novas alternativas de trabalho no interior

da escola, discuti-las e realizá-las em parceria sobretudo com os professores; rever as

causas do fracasso escolar; superar concepções de carência cultural; conhecer o dia-a-dia

das escolas e definitivamente, construir ações que contribuam para a melhoria da

qualidade do processo de escolarização.

Quando Educação e Psicologia compreendem, juntas, a educação escolar como

um fenômeno social e, trabalham para promover a reflexão do “trabalho improdutivo”

do professor e, as possibilidades “produtivas” que esse trabalho traz em seu interior,

podemos começar a pensar em uma efetiva transformação social. Pois como nos lembra

Paro (2003), “(...) a educação poderá contribuir para a transformação social, na medida

em que for capaz de servir de instrumento em poder dos grupos sociais dominados em

seu esforço de superação da atual sociedade de classes”. (p. 103)

O que o capitalismo chama de trabalho improdutivo, pode produzir uma grande

reflexão a respeito da ideologia dominante, com o intuito de possibilitar que a classe

dominada tome consciência de sua condição e transforme a sociedade de classes.

Ao defender a escola e, principalmente a alfabetização, como o caminho que leva

os sujeitos à apropriação de sua humanidade e à conscientização de sua participação

histórica, entendemos que a educação escolar não modifica a realidade concreta, mas

modifica as consciências que poderão modificar e transformar essa realidade. E nesse

sentido, quando as possibilidades das crianças aprenderem a ler e escrever forem

garantidas, poderemos pensar no início de uma humanidade realmente humanizada.

CAPÍTULO 2

O ALUNO COPISTA E A LINGUAGEM ESCRITA

NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA

HISTÓRICO-CULTURAL

Sabendo que estudos e pesquisas sobre escrita têm partido de diversas

compreensões de desenvolvimento humano e dos processos psicológicos necessários à

aquisição da linguagem escrita pelas crianças, este trabalho tem a preocupação de

esclarecer os pressupostos teóricos que nortearam a pesquisa no que diz respeito à

compreensão teórica de linguagem escrita.

O objetivo deste capítulo é possibilitar a compreensão da linguagem escrita como

uma forma de objetivação humana, ou seja, uma produção da história da humanidade.

Para tanto, partimos da concepção histórico-cultural de compreensão dos processos de

apropriação da escrita.

Abordaremos, portanto, a importância da escrita no desenvolvimento histórico da

humanidade, a importância da aprendizagem da escrita no contexto escolar pelas

crianças e finalmente, os processos explicados por Luria (1989) e Vigotski (1998), que

as crianças passam para se apropriar da linguagem escrita.

Para compreender a importância da aprendizagem, da linguagem escrita e a

necessidade de uma pesquisa científica que aponte as reais condições dessa

aprendizagem no processo de alfabetização, é necessário levar em consideração o que a

escrita representa para o desenvolvimento dos homens e da humanidade.

A linguagem é uma característica essencialmente humana e por meio dela

podemos criar e recriar o mundo; podemos representá-lo usando símbolos e isso nos

possibilita avançar à experiência imediata com as pessoas e objetos, além de controlar

nossos comportamentos.

A aquisição da linguagem, inicialmente a oral, possibilitou a formação de grupos

sociais e a comunicação entre esses grupos. Mais do que isso, a linguagem alterou o

pensamento e o comportamento dos homens, diferenciando-os dos animais. A fala

permitiu que os homens regulassem seus comportamentos, planejando e programando

suas ações.

A linguagem escrita aparece quando os homens têm necessidades de recordar e

transmitir suas experiências, idéias, conceitos etc, para outros homens. Luria (1989)

conceitua a escrita como sendo “uma dessas técnicas auxiliares usadas para fins

psicológicos; a escrita constitui o uso funcional de linhas, pontos e outros signos para

recordar e transmitir idéias e conceitos”. (p.146)

O desenvolvimento da escrita confunde-se com o desenvolvimento da história da

humanidade e, ao longo desse tempo, sua compreensão tomou diferentes formas e

atravessou, pelo menos, três etapas ao longo de cinco mil anos: a pictográfica

(representada por desenhos figurativos), a ideográfica (representação de idéias sem sons

das palavras) e a última, a fonográfica (representação dos sons das palavras). Esse foi

um longo processo que possibilitou o desenvolvimento de capacidades e habilidades

humanas criadas pelos próprios homens.

A aprendizagem da escrita e da leitura é fundamental para o desenvolvimento de

capacidades essencialmente humanas, ou seja, as Funções Psicológicas Superiores. Facci

(2004a, p. 209) discutindo este conceito esclarece que

As FPS e as funções psíquicas elementares mantêm uma relação muito próxima (...) mas somente as formas superiores de conduta, que são produtos da evolução histórica, permitem que os processos psicológicos superiores se desenvolvam. É a apropriação da cultura humana que leva os indivíduos a pensar de forma humana, pois ao utilizarem os signos sociais, ao fazerem relações com os fatos e objetos apreendidos, é que os indivíduos podem compreender a realidade social e natural.

Sem a aprendizagem da leitura e da escrita a compreensão do mundo e, a

formação destas funções, não acontece como poderia. Os indivíduos se adaptam ao

mundo, desenvolvem-se dentro das condições concretas nas quais estão inseridos, mas

não têm garantidas suas possibilidades de humanização.

Por outro lado, a apropriação da linguagem oral acontece desde o momento em

que a criança nasce, em contato com os adultos que falam. As crianças usam a fala para

se comunicar com as outras pessoas e para organizar seu comportamento, “a linguagem

surge inicialmente como um meio de comunicação entre a criança e as pessoas em seu

ambiente. Somente depois da conversão em fala interior, ela vem organizar o

pensamento da criança, ou seja, torna-se uma função mental interna”. (VIGOTSKI,

1998, p. 117).

Resumidamente, esse é o processo psicológico de apropriação da linguagem

oral4. A linguagem escrita não é uma elaboração da linguagem oral, mas é a elaboração

do pensamento, pois como explica Luria (1986)

A linguagem escrita possui uma origem completamente diferente e outra estrutura psicológica. Esta aparece como resultado de uma aprendizagem especial, que começa com o domínio consciente de todos os meios de expressão escrita. No início da formação desta, seu objeto não é tanto a idéia ou pensamento que deve ser expressado, quanto os meios técnicos de escritura das letras e logo das palavras, os quais nunca são objeto de uma tomada de consciência na linguagem oral. (p. 169)

O ensino da linguagem escrita, na educação brasileira, permaneceu até agora

deixado de lado, enfatizando–se as habilidades motoras necessárias para a “escrita

mecânica”.

As discussões em torno da alfabetização infantil estão centradas muito mais nos

mecanismos e técnicas de leitura do que de escrita. Pudemos comprovar isso devido à

carência de trabalhos acadêmicos feitos sobre o tema, durante o processo de

levantamento bibliográfico. Já na década de 1920, Vigotski apontava esse fenômeno,

quando discute a pré-história da linguagem escrita, ressaltando que

Até agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar, em relação ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal. (VIGOTSKI, 1998, p. 139).

4 Não entraremos em detalhes sobre a apropriação da linguagem oral visto que o objetivo deste trabalho é discutir a apropriação da linguagem escrita.

Podemos perceber que transcorrido quase um século, apesar de todos os avanços

científicos, discussões e pesquisas sobre o tema alfabetização, o processo de ensino da

linguagem escrita continua sendo feito da mesma forma.

A educação brasileira tem suas especificidades e passou por momentos de

transformações ao longo do último século, da pedagogia tradicional à escola nova,

culminando com o movimento construtivista amplamente discutido e difundido, que

predomina nos ideários pedagógicos atuais. (SAVIANI, 2003).

Partindo das idéias construtivistas de que as crianças devem construir seu

conhecimento, fazendo reformas educacionais e inviabilizando o trabalho dos

professores, as políticas públicas de educação estão criando um número cada vez maior

de alunos não-alfabetizados.

2.1. Os Alunos Copistas

Se entendermos que o processo de apropriação da escrita passa por uma estrutura

psicológica específica e complexa, devemos compreender quais são os mecanismos de

ensino da linguagem escrita presentes no interior da escola.

É encontrando a escola sucateada e sem cumprir sua função social de possibilitar

o acesso das crianças aos bens culturais construídos pela humanidade, que pudemos

pensar em pesquisar o que chamamos de “produto do fracasso da escola”: os alunos

copistas.

Os alunos copistas estão presentes em todas as escolas e são queixa constante dos

professores. Mas quem são os alunos copistas? O que é o fenômeno do copismo?

Devido à falta de pesquisas científicas sobre o tema, nenhuma definição foi

encontrada, mas que isso, não há nenhuma pesquisa que aponte para a importância de

estudar os alunos copistas. Alguns trabalhos, como o de Santos (2002), pesquisando os

cadernos escolares na primeira série, apontam a cópia em sala de aula como sendo uma

atividade pedagógica presente na aprendizagem da escrita.

Ao longo das observações foi identificado que a cópia assumia importância e destaque (...) A execução dessa atividade exigia e abrangia grande parte dos saberes envolvidos no uso do caderno. A principal atividade a que se prestava o caderno, nessa primeira série, era a cópia (...). (p. 36)

Sendo a cópia uma atividade pedagógica presente na alfabetização, no ensino da

escrita e, a quase inexistência de trabalhos sobre o tema, faz-se necessário compreender

quem é o aluno copista.

Para tanto, propomos como definição de aluno copista o aluno que desenvolveu a

habilidade de escrever, mas não avançou à compreensão da linguagem escrita, que

permaneceu apenas nesse momento de cópia. Os alunos copistas são capazes de copiar

as atividades apresentadas pelo professor com bastante habilidade; conhecem algumas

letras, sabem nomeá-las, mas não sabem ler. Também não sabem escrever quando

solicitados que executem a atividade sozinhos.

O que chamamos de fenômeno do copismo é o produto concreto das discussões

feitas sobre o fracasso escolar. O copismo é a produção pedagógica de alunos que são

capazes de escrever-copiar, na aparência os alunos estão escrevendo, mas a essência

dessa escrita é apenas uma atividade de cópia. É possível produzir o fenômeno do

copismo quando o ensino da linguagem escrita limita-se às habilidades motoras

necessárias para a escrita.

Vigotski (1998), discutindo a diferença entre a apropriação da escrita e da

linguagem escrita afirma que

(...) o ensino da linguagem escrita depende de um treinamento artificial. Tal treinamento requer atenção e esforços enormes, por parte do professor e do aluno, podendo-se, dessa forma, tornar fechado em si mesmo, relegando a linguagem escrita viva a segundo plano. (VIGOTSKI, 1998, p. 139).

Também encontramos essa diferenciação de “escrita-cópia” para “escrita como

tal” no clássico trabalho de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985), “A psicogênese da

língua escrita”. Nele, as autoras afirmam que escrever não é copiar:

Da mesma maneira, pensamos que a evolução da escrita que evidenciamos não depende da maior ou menor destreza gráfica da criança, de sua maior ou menor possibilidade de desenhar letras como as nossas, mas sim do que chamamos seu nível de conceitualização sobre a escrita, quer dizer, o conjunto de hipóteses exploradas para compreender este objeto. Impedindo-as de escrever (isto é, explorar suas hipóteses no ato de produção de um texto) e obrigando-a a copiar (isto é, a repetir o traçado do outro, sem compreender sua estrutura) a impedimos de aprender, quer dizer, descobrir por si mesma. (p. 274-75).

Concordamos com as autoras no que diz respeito ao ato da cópia não representar

a apropriação da linguagem escrita, mas é importante ressaltar que elas compreendem o

desenvolvimento da escrita nas crianças como sendo o desenvolvimento de “hipóteses

sobre a escrita”. Tal compreensão de aprendizagem não corresponde com a discutida

neste trabalho, já que as autoras baseiam-se no construtivismo para explicar como se

desenvolve a escrita, isto é, partem do pressuposto de que as crianças constroem seu

conhecimento, “descobrem por si mesmas” o significado e a estrutura da linguagem

escrita.

Entretanto, é esse ideário construtivista que orienta as práticas pedagógicas no

interior das escolas e referenda o discurso dos professores sobre como as crianças

aprendem a escrever. Na sua discussão sobre o construtivismo, Rossler (2004, p. 77)

explica que “esse mesmo discurso possui um caráter fortemente retórico e sedutor, que

lhe transmite ares de uma teoria e de uma prática crítica, inovadora e transformadora,

supostamente afinada com as necessidades naturais, biológicas, psicológicas e sociais

dos seres humanos.”

É preciso compreender o momento histórico que vivemos para entender porque o

construtivismo é tão sedutor e vai ao encontro dos interesses da escola. O poder de

sedução não resulta da qualidade de suas idéias, mas se aproxima do ideário ideológico

da sociedade contemporânea, reproduzindo elementos presentes no cotidiano das

pessoas. Nesse contexto, os indivíduos estão vulneráveis porque estão submetidos a um

processo de empobrecimento intelectual, afetivo e moral próprio da sociedade pós-

moderna. Mais adiante em seu texto, Rossler (idem, p. 81) discute essa questão e afirma

que

uma prática educativa comprometida com a ideologia e as demandas materiais do capitalismo atual só poderá apresentar como as únicas normas educativas verdadeiras, válidas e viáveis, aquilo que é, de fato, a adaptação

do homem ao mundo atual: a determinados modos de pensar, sentir e agir; a determinadas condições sociais de vida.

Somente uma educação que pretenda adaptar o homem às formas dominantes de

viver, pode difundir o lema “aprender a aprender” (DUARTE, 2000), no qual o mais

importante é aprender a se preparar para o mundo moderno e globalizado, para o

mercado de trabalho competitivo, em detrimento da apropriação dos conhecimentos

produzidos pela humanidade.

Como explicado no capítulo anterior, as concepções pedagógicas de

aprendizagem estão diretamente relacionadas com as concepções de desenvolvimento

humano. Utilizamo-nos da pedagogia histórico-crítica para entender que os

conhecimentos produzidos historicamente pela humanidade devem ser apropriados pelos

sujeitos num processo ativo e participativo. Entretanto, entendemos também, que esses

conhecimentos, mais especificamente a linguagem escrita, devem ser transmitidos por

aqueles que dela se apropriaram, ou seja, os professores.

Não concordamos com a idéia de que as crianças tenham hipóteses sobre algo

que lhes é totalmente novo. Entendemos que as crianças participam do universo escrito

da sociedade contemporânea, mas não podemos esquecer a importância do adulto

mediador no processo de aprendizagem, que não pode ser confundida com pesquisa.

Pois como nos lembra Saviani (2003a):

O ensino não é um processo de pesquisa (...) se a pesquisa é incursão no desconhecido, e por isso ela não pode estar atrelada a esquemas rigidamente lógicos e preconcebidos, também é verdade que: primeiro, o desconhecido só se define por confronto com o conhecido, isto é, se não se domina o já

conhecido, a fim de incorporá-lo mediante a pesquisa, ao domínio do já conhecido. (p.46-47)

Ao analisar o ideário construtivista, Rossler (2004, p. 83-4) afirma que

É parte do mesmo processo [do “aprender a aprender”] a secundarização do papel do educador como transmissor dos conhecimentos produzidos e acumulados ao longo da história da humanidade em favor de uma suposta centralidade do aluno nos processos de ensino-aprendizagem e de uma construção autônoma dos conhecimentos, rejeitando-se, inclusive, a objetividade do conhecimento, isto é, seu caráter transmissível.

Como temos discutido ao longo deste trabalho, a linguagem escrita é uma das

objetivações humanas mais importantes para o desenvolvimento da própria humanidade,

que possibilitou a produção dos conhecimentos acumulados pelos homens. A pedagogia

histórico-crítica entende que e educação escolar é a via de acesso à apropriação destes

conhecimentos. Desta forma, é preciso resgatar o papel do professor como fundamental

neste processo, já que o professor é aquele que garante o acesso aos conteúdos escolares

e vai dirigir o desenvolvimento psíquico dos alunos, atuando diretamente na formação

das funções psicológicas superiores.

Facci (2004a) ao estudar a importância do trabalho do professor nas obras de

Vigotski, esclarece que

Na atividade de estudo, com a orientação do professor, o aluno pode apropriar-se da experiência histórico-social por meio das diversas esferas de conhecimento da ciência. É nesse processo de apropriação do mundo externo, por meio do processo de internalização, que o aluno desenvolve as FPS. A educação, se corretamente organizada, constitui a forma universal e indispensável ao desenvolvimento do processo intelectual. (p. 231)

Ao resgatar a importância do papel do professor no processo de apropriação da

cultura humana, a pedagogia histórico-crítica resgata também a importância dos

conteúdos escolares, ou seja, do conhecimento científico e sistematizado que ficou

deixado de lado no construtivismo.

A apropriação do conhecimento científico no interior da educação escolar, como

discutimos no capítulo anterior, deve possibilitar que os alunos passem do senso comum

à consciência filosófica e, desenvolvam as FPS. Mas para que esse processo aconteça, é

preciso que haja por parte do professor, uma prática educativa intencional.

Para realizar esta tarefa, muitas condições são necessárias, a começar por cursos

de formação que possibilitem o domínio teórico, a reflexão da prática docente

comprometida com a construção de processos educativos qualitativamente superiores.

Além disso, é preciso que o professor tenha condições objetivas de trabalho,

remuneração adequada e volte a ser valorizado socialmente.

Facci (idem, p. 246) afirma que

Na formação do professor, portanto, além do conhecimento de suas experiências pessoais e profissionais, dos saberes práticos, tem que haver uma ruptura com a forma de pensamento e ação próprios do conhecimento cotidiano. A humanização do aluno e do professor está limitada por relações e formas de ação presentes na prática educativa, que refletem a influência de relações mais amplas, presentes na prática social.

É necessário que o professor consiga romper com a ideologia dominante e com

os estereótipos e preconceitos que fazem da escola um local de produção de fracasso.

Em síntese, seria necessário formar o professor como um trabalhador intelectual

autônomo e competente, que possibilitasse que a escola cumprisse seu real papel – o de

socializar o conhecimento produzido historicamente pela humanidade.

A seguir, exporemos a compreensão utilizada neste trabalho sobre o processo de

apropriação da linguagem escrita com base na psicologia histórico-cultural de Vigotski,

sobretudo nas pesquisas realizadas por seus colaboradores, em especial Luria, que foi o

responsável pelas pesquisas sobre escrita.

2.2. Aspectos da Linguagem Escrita na Perspectiva Histórico-Cultural

Em seu texto “O desenvolvimento da escrita na criança”, Luria (1989) descreve o

experimento que realizou na década de 1920 com crianças rurais de quatro a nove anos,

que não eram alfabetizadas, algumas delas freqüentavam o “jardim de infância”. O autor

traça as fases do desenvolvimento da escrita e as mudanças psicológicas ocorridas nestas

crianças que possibilitaram a passagem de uma fase para outra, mais complexa.

O experimento tinha como objetivo compreender o processo de aquisição da

linguagem escrita e os fatores que possibilitam tal aquisição, que se inicia antes mesmo

da entrada da criança na escola.

Para realizar esta pesquisa, Luria pedia às crianças que relembrassem uma série

de frases ditadas, que normalmente ultrapassavam sua capacidade de recordar. Quando

as crianças percebiam serem incapazes de realizar a atividade proposta, ele entregava

lápis e papel e pedia que elas “escrevessem” as frases que lhes eram apresentadas. As

crianças diziam não saber escrever, então ele explicava que “os adultos escrevem coisas

quando devem lembrar-se de algo e, em seguida, explorando a tendência natural da

criança para a imitação puramente externa, sugeríamos que tentasse inventar alguma

coisa e escrevesse aquilo que iríamos dizer.” Eram apresentadas para as crianças, séries

de seis ou oito frases curtas, simples e que não se relacionavam entre si. (p. 147)

Ao explicar que os adultos usam a escrita quando querem relembrar algo, o

pesquisador deu às crianças uma estratégia para usar técnicas intrínsecas, com as quais

não estavam acostumadas, podendo assim, observar como iriam utilizá-la e, de que

forma, objetos até então usados como brinquedos – papel, lápis, rabiscos e desenhos-

transformar-se-iam em instrumentos para atingir o objetivo proposto, o de recordar as

frases ditadas.

As crianças de três a cinco anos, foram incapazes de compreender a escrita como

um instrumento, conseguindo apenas imitar os adultos. Nesses casos, a criança “só está

interessada em ‘escrever como os adultos’; para ela, o ato de escrever não é um meio

para recordar, para representar algum significado, mas um ato suficiente em si mesmo,

um brinquedo.” As crianças mais velhas foram criando estratégias e signos auxiliares

gráficos que lhes possibilitassem ler o que haviam anotado. (ibidem, p. 149)

Esta pesquisa possibilitou a compreensão psicológica de como as crianças

começam a relacionar a escrita como um instrumento capaz de fazê-las recordar,

relembrar algo. Luria percebeu quatro estágios pelos quais o desenvolvimento da escrita

se dá, sendo que estes estágios estão estritamente relacionados entre si e acontecem de

forma dialética, isto é,

(...) a escrita não se desenvolve, de forma alguma, em uma linha reta, com um crescimento e um aperfeiçoamento contínuos. Como qualquer outra

função psicológica cultural, o desenvolvimento da escrita depende, em considerável extensão, das técnicas de escrita usadas e equivale essencialmente à substituição de uma técnica por outra. O desenvolvimento, neste caso, pode ser descrito como uma melhoria gradual do processo de escrita, dentro dos meios de cada técnica, e o ponto de aprimoramento abrupto marcando a transição de uma técnica para outra. Mas a unicidade profundamente dialética deste processo significa que a transição para uma nova técnica inicialmente atrasa, de forma considerável, o processo de escrita, após o que ele então se desenvolve mais até um nível novo e mais elevado. (p. 180, grifo no original)

Desta forma, podemos perceber que a passagem de uma fase para outra requer a

utilização de técnicas pedagógicas diferenciadas e específicas para a apropriação de

novos conhecimentos. A introdução destas novas técnicas altera os processos

psicológicos de desenvolvimento da escrita, podendo dar a impressão de que atrapalhou

ou atrasou o desenvolvimento anterior, entretanto, essa é uma mudança qualitativa no

processo de escrita.

Ainda segundo o autor, pelo fato da apropriação da escrita não acontecer de

forma contínua, mas dialética, nem todas as crianças passam por todos os estágios de

desenvolvimento da escrita, alguns estágios podem se antecipar a outros. Afirma Luria

que “o período de escrita por imagens apresenta-se plenamente desenvolvido quando a

criança atinge a idade de cinco, seis anos; se ele não está claro e completamente

desenvolvido nessa época é apenas porque já começou a ceder lugar à escrita alfabética

simbólica, que a criança aprende na escola - e às vezes mesmo antes”. (p. 173)

Para que a criança se aproprie da linguagem escrita, ela deve compreender qual é

o papel desta na cultura na qual está inserida. Para Luria “a escrita é uma dessas técnicas

auxiliares usadas para fins psicológicos; a escrita constitui o uso funcional de linhas,

pontos e outros signos para recordar e transmitir idéias e conceitos”. (p. 146)

Antes mesmo de recordar e transmitir idéias e conceitos através da escrita, Luria

afirma que

para uma criança ser capaz de escrever ou anotar alguma coisa, duas condições devem ser preenchidas. Em primeiro lugar, as relações da criança com as coisas a seu redor devem ser diferenciadas de forma que tudo o que ela encontra inclua-se em dois grupos principais: a) ou as coisas representam algum interesse para a criança, coisas que gostaria de possuir ou com as quais brinca; b) ou os objetos são instrumentais, isto é, desempenham apenas um papel instrumental ou utilitário, e só tem sentido enquanto auxílio para aquisição de algum outro objeto ou para a obtenção de algum objeto, e, possuem apenas um significado funcional para ela. Em segundo lugar, a criança deve ser capaz de controlar seu próprio comportamento por meio desses subsídios, e neste caso eles já funcionam como sugestões que ela mesma invoca. (p. 145)

É a partir do desenvolvimento de relações funcionais com as coisas ao redor da

criança que começam a se desenvolver formas complexas de comportamento que

possibilitarão a aquisição da linguagem escrita.

De acordo com Luria, o desenvolvimento da escrita na criança passa por quatro

estágios, que serão apresentados e analisados neste momento.

2.2.1 Estágios do Desenvolvimento da Escrita para Luria

1º Estágio – A escrita não serve como auxiliar à memória

Este é o momento no qual a criança entra em contato com a escrita mas ainda não

compreende para que ela serve. Seus ensaios em escrever são apenas imitações do

comportamento que ela observa no adulto, que foram assimilados apenas em sua forma

externa sem que haja o uso correto das características psicológicas necessárias para a

escrita.

Este estágio também é chamado de “pré-história da escrita na criança” ou de

“fase pré-instrumental”, no qual existe uma total incompreensão do mecanismo da

escrita e não há qualquer relação funcional com esta.

Neste estágio, a escrita é feita apenas com rabiscos sem sentido; a criança ainda

não percebeu o significado da escrita como signo auxiliar da memória. Segundo Luria,

“a criança, neste estágio do desenvolvimento, ainda não se relaciona com a escrita como

um instrumento a serviço da memória”. (p.156)

Para exemplificar este estágio, Luria descreve uma criança de seis anos no grupo

intermediário do jardim de infância:

Depois que Yura descobriu, na primeira série [de sentenças], que era incapaz de lembrar, por meios mecânicos, todas as sentenças que lhe foram ditadas, nós lhe sugerimos que as anotasse em um papel; na segunda série, obtivemos resultados como aqueles mostrados na figura 2 [traços em ziguezague]. Apesar da natureza indistinguível daquilo que ele anotava, Yura recordou-se de mais palavras na segunda série que o fizera na primeira, e recebeu um pedaço de doce como recompensa. Quando passamos à terceira série e, novamente, pedimos-lhe que anotasse cada palavra, ele concordou, pegou o lápis e começou (sem ouvir o fim de uma sentença) a rabiscar. Nós não o fizemos parar, ele continuou a rabiscar até cobrir toda a página com rabiscos que não tinham qualquer relação com seu propósito original, que consistia em relembrar as sentenças. (Luria, 1978, p.152)

Como a criança ainda não compreendeu o “princípio subjacente à escrita”, qual

seja, o de auxiliar mnemônico, utiliza sua forma externa de comportamento, imitando a

escrita do adulto e acredita que pode escrever. (p. 150)

Para que a criança avance este momento, passando para os demais estágios, é

necessário que ela compreenda que a escrita tem uma outra função, a de instrumento, e

não mais a de uma brincadeira. Tal compreensão só é possível com a mediação do

adulto, responsável por transmitir às novas gerações as produções históricas e sociais da

humanidade.

2º Estágio - Primeira forma de escrita

Em seus experimentos, Luria pôde observar que quando solicitava a uma criança

que anotasse ou escrevesse algo que lhe estava sendo ditado, num primeiro momento,

ela não compreendia a atividade a ser realizada e escrevia como acreditava ser a escrita,

imitando o comportamento externo que conhecia.

Porém, ele observou que algumas crianças começavam a se relacionar

diferentemente com a escrita, lançando mão de

um processo de criação de um sistema de auxílios técnicos da memória, semelhante à escrita dos povos primitivos. Em si mesmo, nenhum rabisco significava coisa alguma, mas sua posição, situação e relação com outros rabiscos conferiam-lhe a função de auxiliar técnico da memória (p. 157)

Neste estágio de desenvolvimento, a criança ainda não havia se apropriado dos

mecanismos que constituem a escrita, porém começava a compreender a função

mnemônica que ela possui.

Diz Luria que “pelo fato da escrita não ser diferenciada, ela é variável. Após tê-la

usado uma vez, uma criança pode esquecê-la alguns dias e revertê-la aos rabiscos

mecânicos não-relacionados com a tarefa. Este é o primeiro rudimento do que mais tarde

se transformará na escrita, na criança”. É neste momento que a escrita começa a tomar

forma psicológica; a criança começa a se recordar que o rabisco que fez se relaciona

com uma palavra ou frase que havia anotado. (p. 158)

Apresento um exemplo do segundo estágio a seguir

Pediu-se a Brina, cinco anos (primeira vez em nosso laboratório), que anotasse um certo número de sentenças que lhe foram ditadas. Rapidamente ela aprendeu como agir e, após cada palavra (ou sentença) ditada, fazia seus rabiscos. Os resultados aparecem na figura 5. Poder-se-ia pensar que nosso sujeito, a pequena Brina, fez essas marcas sem qualquer conexão com a tarefa de lembrar as sentenças ditadas, exatamente como a maioria das crianças aludidas. Mas, para nossa surpresa, não apenas lembrou-se de todas as sentenças ditadas (é verdade que não eram muitas, apenas cinco), mas também localizou corretamente cada sentença apontando para um rabisco e dizendo: “Essa é uma vaca”, ou “Uma vaca tem quatro pernas e um rabo”, ou “Choveu ontem à tarde” etc. Fica claro que Brina compreendeu a tarefa e empregou uma forma primitiva de escrita, escrevendo por meio de sinais topográficos. Esses sinais eram muito estáveis; quando inquirida diretamente, ela não os misturava; distinguia-os rigorosamente, sabendo com exatidão, o significado de cada um. (p. 157-8)

Essa marca feita pela criança tem duas funções: “organiza o comportamento da

criança, mas ainda não possui um conteúdo próprio; e indica a presença de algum

significado, mas ainda não determina qual seja esse significado”. Isto significa que a

criança se utiliza desta marca, um signo gráfico não-diferenciado, para recordar o que

lhe foi pedido que anotasse, mas a marca em si mesma não possui significado de um

signo simbólico, não há como descobrir o que significam. Essas marcas apenas guiam a

criança em suas recordações. (p. 158)

De acordo com Luria, esse signo gráfico

Signo gráfico primário não-diferenciado não é um signo simbólico que desvende o significado do que foi anotado. Não pode também ser chamado de signo instrumental no sentido integral da palavra, assim como não conduz a criança de volta para o conteúdo do que fora anotado. Nós, antes, diríamos que ele é apenas uma simples sugestão (embora uma sugestão artificialmente criada pela criança) que condicionalmente evoca certos impulsos verbais. Estes impulsos, porém, necessariamente não conduzem a criança de volta à situação que ela havia ‘registrado’; apenas disparam certos processos de associação cujo conteúdo, como vimos, pode ser determinado por condições completamente diferentes, que nada têm a ver com a sugestão dada. (p. 159)

Este signo gráfico produzido pela criança demonstra que ela anotou algo, porém

não temos acesso a ele. O signo gráfico primário tem duas funções para a criança, é uma

evocação do que foi anotado e o precursor do desenvolvimento da escrita.

O próximo passo no desenvolvimento da escrita será a criança diferenciar o signo

gráfico de tal forma que ele realmente signifique algo. Afirma Luria que “só então a

escrita da criança tornar-se-á estável e independente do número de elementos anotados, e

a memória terá ganhado um poderoso instrumento, capaz de ampliar enormemente seu

alcance”. (p. 161)

Baseado em seus experimentos, Luria afirma

(...) que o desenvolvimento da escrita na criança prossegue ao longo de um caminho que podemos descrever como a transformação de um rabisco não-diferenciado para um signo diferenciado. Linhas e rabiscos são substituídos por figuras e imagens, e estas dão lugar a signos. Nesta seqüência de acontecimentos está todo o caminho do desenvolvimento da escrita, tanto na história da civilização como no desenvolvimento da criança. (p. 161)

Neste segundo estágio de desenvolvimento, a criança apresenta rabiscos não-

diferenciados, mas sua relação com a escrita começa a ser funcional; neste momento

estão sendo criadas condições para que a criança avance para o próximo estágio, mais

complexo que este.

3º Estágio – Diferenciação de signos

É neste estágio de desenvolvimento que se inicia a diferenciação de signos

gráficos primários para os signos gráficos diferenciados.

Conforme explica Luria, a diferenciação dos signos ocorre da seguinte forma

na realidade, há dois caminhos pelos quais pode ocorrer a diferenciação do signo primário na criança. Por um lado, a criança pode tentar retratar o conteúdo dado, sem ultrapassar os limites dos rabiscos imitativos, arbitrários, e por outro, pode sofrer a transição de uma forma de escrita que retrata o conteúdo para o registro de uma idéia, isto é, para os pictogramas. Os dois caminhos pressupõem algum salto que deve ser dado pela criança quando substitui o signo primário não-diferenciado por outro diferenciado. Este salto pressupõe uma pequena invenção, cujo significado psicológico é interessante, pois ele altera a própria função psicológica do signo pela transformação do signo primário, que apenas estabelece ostensivamente a existência de uma coisa, em um outro tipo de signo que revela um conteúdo particular. Se esta diferenciação realiza-se com sucesso, transforma um signo-estímulo em um signo-símbolo e um salto qualitativo é dado, assim, no desenvolvimento de formas complexas de comportamento cultural. (p. 161)

A primeira diferenciação da escrita da criança está relacionada com o ritmo da

frase apresentada com o ritmo da produção gráfica. De acordo com Luria “a criança

muito cedo, começa revelar uma tendência em anotar palavras ou frases curtas com

linhas curtas e palavras e frases longas com um grande número de rabiscos”. (p. 162)

Para melhor analisar esta questão, Luria apresenta um exemplo de sua pesquisa:

Demos a Lyuse, quatro anos e oito meses de idade, um certo número de palavras: mamãe, gato, cachorro, boneca. Ela notou todas com os mesmos rabiscos, que não diferiam uns dos outros. A situação mudou consideravelmente, todavia, quando lhe demos longas sentenças com palavras individuais: 1) Menina; 2) Gato; 3) Zhorzhik está patinando; 4) Dois cachorros estão caçando o gato; 5) Há muitos livros na sala, e a lâmpada está queimada; 6) Garrafa; 7) Bola; 8) O gato está dormindo; 9) Nós brincamos o dia inteiro, depois jantamos e, em seguida, voltamos a brincar outra vez. Na escrita que a criança produziu então, as palavras individuais foram representadas por pequenas linhas, mas as sentenças longas foram “escritas” como voltas complicadas; e quanto maior a sentença, mais longa a volta escrita para expressá-la. (p. 162)

Essa diferenciação rítmica não é estável, mas possibilita um salto qualitativo no

desenvolvimento da escrita. Os resultados comprovam que

o processo de escrita, que começou com um gráfico não-diferenciado, puramente imitativo, simples acompanhamento das palavras apresentadas, depois de algum tempo foi transformado em um processo que indicava que superficialmente estabelecera-se uma conexão entre a produção gráfica e a sugestão apresentada. (p. 162)

Desta forma, a escrita da criança passa de uma simples sugestão para tornar-se

um reflexo; reflete o ritmo das palavras apresentadas. É neste momento que ocorre a

primeira diferenciação qualitativa da escrita, mas ainda incapaz de expressar algum

conteúdo. Este salto na compreensão do processo de escrita acontecerá no próximo

estágio de desenvolvimento.

4º Estágio – Fatores que diferenciam a atividade gráfica

Embora esteja clara a capacidade que a criança tem de refletir o ritmo da

sentença apresentada, essa ainda não expressa seu conteúdo. É preciso esperar pelo

próximo passo, quando o signo gráfico começa a ganhar significado.

Segundo Luria, os fatores que possibilitam a diferenciação da atividade gráfica

não diferenciada para uma produção gráfica diferenciada, são o número e a forma. De

acordo com o autor,

(...) o número, ou a quantidade, foi talvez o primeiro fator a dissolver este caráter inexpressivo e puramente imitativo da atividade gráfica, na qual idéias e noções diferentes foram expressas por exatamente o mesmo tipo de linhas e rabiscos. Introduzindo o fator número no material, pudemos prontamente produzir uma atividade gráfica diferenciada nas crianças de 4, 5 anos, levando-as a usar signos para refletir o número dado. É possível que as origens reais da escrita venham a ser encontradas na necessidade de registrar o número ou a quantidade. (p. 164)

O número ou a quantidade, é o primeiro fator de diferenciação da escrita. A

criança ainda continua escrevendo com rabiscos, mas sua relação com a escrita é

alterada quando ela tenta representar a quantidade da sentença ditada. Luria afirma que

“a quantidade foi o fator que dissolveu a produção gráfica elementar, mecânica, não-

diferenciada, e que, pela primeira vez abriu caminho para seu uso como um expediente

auxiliar, erguendo-a assim do nível da imitação meramente mecânica para o status de

um instrumento funcionalmente empregado”. (p. 165)

A produção gráfica desta criança ainda é confusa e, se o fator número for retirado

ela voltará à produção de rabiscos não-diferenciados que em si mesmos não significam

nada.

Mas de acordo com Luria,

o primeiro passo foi dado, a criança tornou-se capaz, pela primeira vez, de ‘escrever’ e, o que sobreleva, de ‘ler’ o que escreveu. Com a transição para esta atividade gráfica primitiva, mas diferenciada, todo o seu comportamento modifica-se: a mesma criança até então incapaz de recordar duas ou três sentenças torna-se apta a lembrar de todas elas com confiança e, o que é mais importante, pela primeira vez é capaz de ler sua própria escrita. (p. 165)

Neste momento, a criança é capaz de ler o que escreveu, recordando-se das

palavras ou frases por meio das marcas que fez no papel.

O segundo fator de diferenciação da escrita relaciona-se com forma, cor ou

tamanho. Quando um destes fatores foi incluído no experimento, a produção gráfica

diferenciada da criança foi acelerada.

Luria explica que

a produção gráfica subitamente começou a adquirir contornos definidos à medida que a criança tentava expressar cor, forma e tamanho- na verdade, começava a ter semelhança grosseira com a pictografia primitiva. A quantidade e a forma distinta levavam a criança à pictografia (...) pela primeira vez, o desenho começava a convergir para uma atividade intelectual complexa. O desenho transforma-se, passando de simples representação para um meio, e o intelecto adquire um instrumento novo e poderoso na forma da primeira escrita diferenciada. (p. 166)

Para compreender melhor esse complexo processo de aparecimento da escrita na

criança mediante a adição dos fatores quantidade, cor e forma, pensamos ser pertinente

reproduzir na íntegra várias sessões do experimento realizado com uma criança, que

mostram com clareza como esse processo ocorre.

Brina Z., cinco anos de idade. A experiência foi realizada em um certo número de sessões consecutivas; em cada uma delas foram ditadas cinco ou seis sentenças, com a instrução de anota-las em ordem para depois relembra-las. Primeira sessão – O pesquisador ditou cinco sentenças: 1) O pássaro está voando; 2) O elefante tem uma tromba comprida. 3) Um automóvel anda depressa. 4) Há ondas altas no mar. 5) O cão late. O sujeito escreveu uma linha para cada uma das sentenças e dispôs as linhas em colunas (ver figura 7 A, I). As linhas eram idênticas. No teste de recordação, lembrou-se apenas de três sentenças, isto é, o mesmo número que havia lembrado sem anotar nada. Lembrou-se espontaneamente, sem olhar para seus rabiscos. Segunda sessão – O pesquisador ditou cinco sentenças que incluíam elementos quantitativos: 1) Um homem tem dois braços e duas perna; 2) Há muitas estrelas no céu; 3) Nariz; 4) Brina tem vinte dentes; 5) O cachorro grande tem quatro cachorrinho. O sujeito traçou linhas dispostas em colunas. Duas mãos e duas pernas eram representadas por duas linhas discretas; as outras sentenças foram representadas cada qual por uma linha (figura 7 A, II). No teste de recordação, o sujeito declarou que havia esquecido tudo, e recusou-se a tentar lembrar-se. Terceira sessão – O pesquisador repetiu a segunda série para ajudá-la a anotar e lembrar-se um pouco melhor daquilo que fora ditado. Ditou então a segunda série outra vez, com algumas mudanças (os rabiscos do sujeito são dados na figura 7 A, III) 1 – Eis um homem e ele tem duas pernas. Sujeito: Então, eu traçarei duas linhas. 2 – No céu há muitas estrelas. Sujeito: Então, eu traçarei muitas linhas. 3 – A garça tem uma perna. (Faz uma marca)...A garça está em uma perna. Aí está você....(pontos) A graça está em uma perna. 4 – Brina tem 20 dente. (traça várias linhas) 5 – A galinha grande e quatro pintinhos (faz uma linha grande e duas pequenas; pensa um pouco e acrescenta mais duas) No teste de resposta, lembrou-se de corretamente de tudo, exceto a sentença no. 2. Quando o pesquisador ditou-lhe esta sentença e perguntou: “Como você pode escrever isto de forma a lembra-lo?”, ela respondeu: “Melhor seria com círculo”. Quarta sessão – O pesquisador novamente ditou sentenças, e o sujeito anotou-as:

1 – O macaco tem um rabo comprido. Sujeito: O macaco (taça uma linha) tem um rabo (traça outra linha) comprido (ainda outra linha) 2 – A coluna é alta. Está bem, então eu traçarei uma linha. A coluna quebrou. 3 – A garrafa está sobre a mesa. Agora eu posso desenhar a mesa e, em seguida, a garrafa. Mas não posso fazê-lo direito. 4 – Há duas árvores. (traça duas linha) Agora eu desenharei os galhos. 5 – É frio no inverno. Está bem. No inverno (traça uma linha) é frio. (traça outra linha). 6 – A meninazinha quer comer. (Taça uma linha). (O pesquisador: “Por que você a desenhou assim?” Sujeito: “Porque eu quis”.) no teste de recordação,ela lembrou-se corretamente dos números 2, 3, 5 e 6 (ver figura 7B). Referindo-se ao número 4, disse: “Este é o macaco com rabo

de representação; em seguida, o ato completo pode ser usado como estratagema, um meio para o registro. (p. 174)

A escrita pictográfica e o desenho - que aparecem na escrita da criança quando os

fatores forma, cor ou tamanho são acrescentados às sentenças - diferenciam-se na

relação estabelecida pela criança com estes signos. Pois, temos que para Luria “uma

criança pode desenhar bem, mas não se relacionar com seu desenho como um

expediente auxiliar. Isto distingue a escrita do desenho e estabelece um limite ao pleno

desenvolvimento da capacidade de ler e escrever pictograficamente, no sentido mais

estrito da palavra”. (p. 176)

A escrita da criança aparece diferenciada da produção anterior; entretanto esta

não é uma escrita no sentido próprio da palavra. A criança deve avançar no sentido de

representar palavras e frases com signos comuns à sua cultura. De acordo com Luria, a

criança encontra duas formas de avançar seu processo de desenvolvimento:

(...) por um lado, a criança instruída a lembrar-se de algo difícil de ser retratado pode, em vez do objeto A, anotar o objeto B, que se relaciona de alguma forma com A. Ou simplesmente anotar alguma marca arbitrária, em vez do objeto que acha difícil retratar. Os dois caminhos levam da escrita pictográfica à escrita simbólica, exceto que o primeiro opera com os mesmos meios de representação pictográfica, enquanto o segundo faz uso de outros expedientes qualitativamente novos (...) a escola e a instrução escolar proporcionam amplas oportunidades para o segundo tipo. (p. 177)

É a partir do uso simbólico da escrita pictográfica que a criança tem a

possibilidade de dar um salto qualitativo em sua produção gráfica. Para recordar o que

foi ditado, a criança pode fazer uma marca que tenha alguma relação com o que precisa

ser lembrado, desenhar um risco comprido para lembrar-se da coluna, por exemplo. Ela

também pode recorrer a algum signo arbitrário, que não mantenha nenhuma relação com

a palavra ditada. Quando ela utiliza o signo arbitrário, está avançando qualitativamente

para a compreensão da escrita alfabética.

O autor afirma que

duas tendências são características da escrita pictográfica de uma criança em um estágio relativamente avançado: o objeto a ser retratado pode ser substituído, quer por alguma parte dele, quer por seus contornos. Em cada caso, a criança já ultrapassou a supramencionada tendência em retratar um objeto em sua totalidade, em todos os seus detalhes, e está no processo de aquisição de habilidades psicológicas, em cuja base se desenvolverá a última forma, a escrita simbólica. (p. 179)

De acordo com Luria, “um grau considerável de desenvolvimento intelectual e de

abstração é necessário para que a criança seja capaz de retratar todo um grupo por uma

ou duas características. Uma criança capaz de agir assim, já está no limite da escrita

simbólica”. Neste momento, a criança é capaz de utilizar-se da escrita simbólica, de

aprender o alfabeto e utilizá-lo de forma adequada, pois compreendeu o papel da escrita,

sua principal função, ou seja, a de auxiliar da memória. (p. 179)

A partir desses experimentos realizados pelo autor, fica claro que o

desenvolvimento da escrita na criança é um processo extremamente complexo, pois é

necessário que a criança entenda os aspectos simbólicos da linguagem escrita para

passar de mero copista para escritor. Além disso, a criança precisa compreender que a

escrita é um símbolo de segunda ordem, isto é, representa algo mas não mantém

nenhuma relação direta com o que está representando, são sinais simbólicos abstratos

culturalmente definidos. Quando a criança compreende isso, a escrita passa a ser um

símbolo de primeira ordem.

Para a criança descobrir isso, precisa descobrir que além de desenhar objetos é

possível desenhar a linguagem. Vigotski (1995) afirma que só então aparece a

verdadeira escrita:

Uma coisa é incontestável: a verdadeira linguagem escrita da criança (e não o domínio do hábito de escrever) se desenvolve de modo semelhante, isto é, passa do desenho de objetos ao desenho das palavras. (p.197)

2.3. O Papel do Sentido na compreensão da escrita do Aluno Copista

Uma vez que este estudo propõe compreender o sentido da escrita para o aluno

copista, partimos de Leontiev, outro psicólogo soviético colaborador de Vigotski, para

apreender o conceito de sentido.

Propusemo-nos a pesquisar este tema, pois entendemos que sendo o aluno

copista um produto concreto do fracasso escolar, uma vítima da alfabetização precária

que temos em nossas escolas brasileiras, precisamos também compreender quais são as

marcas psicológicas produzidas por esse fracasso. A forma que encontramos para

acessar essas marcas subjetivas é identificando o sentido que a linguagem escrita tem

para os alunos que dela não se apropriaram.

Para fazer isso, Leontiev (1978) afirma que devemos fazer um estudo histórico

da consciência, compreendendo-a em sua múltiplas determinações e como produto da

atividade dos indivíduos.

De acordo com o autor, devemos partir

(...) dos fenômenos da vida, característicos da interação real que existe entre o sujeito real e o mundo que o cerca, em toda a objetividade e independentemente das suas relações, ligações e propriedades. Razão por que num estudo histórico da consciência, o sentido é antes de mais uma relação que se cria na vida, na atividade do sujeito. (1978, p. 97)

Desta forma, a análise do sentido deve levar em consideração as condições

concretas de vida dos sujeitos, o contexto no qual ele está inserido; compreender a

construção da consciência de si e do mundo como um fenômeno histórico e social, e não

como uma entidade em si mesma.

Para além desta compreensão, Leontiev (1978) esclarece que “(...) para encontrar

o sentido pessoal devemos descobrir o motivo que lhe corresponde”, portanto, se

queremos saber o sentido da escrita para o aluno copista, devemos descobrir o que

motiva este aluno a escrever, ou a não escrever, que sentimentos permeiam esta relação

e, na concepção deste aluno, qual é a finalidade social e pessoal da escrita. (p.97)

Como afirma Leontiev (1978), “com efeito, o sentido pessoal traduz

precisamente a relação do sujeito com os fenômenos objetivos conscientizados”.

Precisamos, pois, saber qual é a relação que o aluno copista estabelece com a escrita,

compreendendo esta relação em sua constituição histórica e social. (p. 98, grifo no

original)

Sendo a escrita uma função cultural, pertencente às objetivações humanas,

entendemos que os sujeitos têm a possibilidade de se apropriarem delas a partir da

relação com outros homens e não de forma individual, espontânea.

Como nos lembra Meira (2000) se referindo a Vygotski, a compreensão de que

“os processos psicológicos humanos se realizam inicialmente no social enquanto

processos interpessoais e interpsicológicos, para posteriormente tornarem-se individuais,

ou seja, intrapessoais ou intrapsicológicos”, possibilitará entender a compreensão do

sentido da escrita atribuído pelo sujeito como fatores fundamentais na construção da sua

subjetividade.

Nesta perspectiva crítica, o meio social não é algo natural, espontâneo, ao qual os

sujeitos devem se adequar, mas sim, construído pelo gênero humano numa relação

consciente com a sociedade e a história. Isso se ef

CAPÍTULO 3

CAMINHOS PERCORRIDOS

PELA PESQUISA NA ESCOLA

A escolha de uma abordagem metodológica que possibilitasse a compreensão das

relações que permearam o contexto escolar foi de extrema importância para o

desenvolvimento desta pesquisa.

Como o objetivo principal deste trabalho era o de investigar o sentido da escrita

para o aluno copista, entendemos que essa compreensão seria possível se a pesquisadora

convivesse durante um longo período no contexto escolar deste aluno. Optamos por

realizar uma pesquisa do tipo etnográfica, pois como nos lembra André (2004), uma das

“características da etnografia é a preocupação com o significado, com a maneira própria

com que as pessoas vêem a si mesmas, as suas experiências com o mundo que as

cerca”.(p. 29)

A pesquisa etnográfica, uma das pesquisas da abordagem qualitativa, tem o

interesse de descrever a cultura de um determinado grupo social, seus hábitos, valores e

crenças. Para isso, o pesquisador deve permanecer um longo tempo no campo,

defrontando-se com outras culturas e estabelecendo categorias de análise social.

Como na educação o interesse dos pesquisadores é pelos processos pedagógicos,

o que acaba por acontecer é uma adaptação da pesquisa etnográfica, sendo esta melhor

intitulada como pesquisa do tipo etnográfico. Mas para que uma pesquisa possa ser

entendida como sendo do tipo etnográfico, é necessário que utilize algumas técnicas da

etnografia, como a observação participante, a entrevista e a análise de documentos.

(ANDRÉ, 2004).

De acordo com André (2004), outras características devem fazer parte da

pesquisa do tipo etnográfica, como a interação do pesquisador com os sujeitos

pesquisados, pois o pesquisador é o principal instrumento da coleta e análise dos dados.

É dada uma maior ênfase aos processos e nos significados que os sujeitos dão para a sua

realidade, além de um trabalho em campo no seu estado “natural”, ou seja, não há

intenção do pesquisador de modificar o contexto social em que realiza a pesquisa.

É muito importante salientar o papel que o pesquisador desempenha na pesquisa

do tipo etnográfica, pois ele é o principal instrumento da coleta de dados. Lüdke e André

(2004) explicam que “devido ao seu grau de imersão na realidade, o observador está

apto a detectar as situações que provavelmente lhe fornecerão dados discordantes e as

que podem corroborar suas conjecturas”. Cabe, portanto, ao pesquisador “selecionar e

reduzir a realidade sistematicamente”, conforme o desenvolvimento da pesquisa e os

dados que for obtendo nesse processo. (p. 16-17)

A convivência da pesquisadora durante um longo período no campo de pesquisa

possibilitou “documentar o não-documentado”, conhecer as relações postas nesse

espaço e principalmente, conhecer as pessoas que fizeram parte da pesquisa.

(EZPELETA e ROCKWELL, 1989, p. 37).

As relações que foram criadas entre a pesquisadora e os sujeitos estudados,

durante o período da pesquisa, possibilitaram uma maior compreensão da realidade

estudada. A presença da pesquisadora na sala de aula teve a intenção de possibilitar um

“processo de reconstrução dessa prática, desvelando suas múltiplas dimensões,

refazendo seu movimento, apontando suas contradições”. (ANDRÉ, 2004, p. 42).

Para reconstruir e compreender as práticas cotidianas do campo de pesquisa e as

relações entre os sujeitos envolvidos, a pesquisadora optou por utilizar várias técnicas de

investigação da realidade propostas pelas abordagens qualitativas, como entrevistas,

análise de documentos e observação participante.

A observação participante, que ocupa lugar de destaque na pesquisa do tipo

etnográfico, possibilitou que a pesquisadora entrasse em contato direto com os sujeitos

da pesquisa, recriando com os mesmos a realidade concreta que estava sendo estudada,

além de clarear os objetivos da pesquisa e demonstrar que seria necessário realizar

quatro estudos de caso, pois em uma mesma sala de aula estavam presentes quatro

alunos copistas. (LÜDKE e ANDRÉ, 2004).

Neste trabalho, utilizamos o estudo de caso como método de pesquisa para

compreender a realidade escolar dos alunos copistas e investigar o percurso escolar de

cada um desses alunos, e assim descobrir quais foram os fatos marcantes em sua história

escolar e como contribuíram para a criação do fenômeno do copismo. Stake (1988, apud

ANDRÉ, 2004, p.50) salienta que os estudos de caso explicitam a relevância dos

resultados da pesquisa, pois “são extremamente úteis para conhecer os problemas e

ajudar a entender a dinâmica da prática educativa”.

Além de reconstruir a história escolar dos alunos, para fazer esses estudos de

caso levamos em consideração todo o contexto das relações criadas dentro da escola. A

realidade atual da sala de aula, em toda sua complexidade, precisou ser compreendida.

Detivemo-nos em coletar e analisar dados dos alunos copistas sobre as atividades

propostas pela professora, a execução dessas atividades, a forma como foram

executadas, as relações criadas entre esses alunos com a professora e com os colegas de

classe e, principalmente a relação estabelecida com a escrita.

Acreditamos que o estudo de caso contribuiu no desenvolvimento da pesquisa e

na análise dos dados, pois como nos lembra Lüdke e André (2004), “esse tipo de

abordagem enfatiza a complexidade natural das situações, evidenciando a inter-relação

dos seus componentes”. (p. 19)

Dessa forma, tanto as entrevistas, quanto a análise de documentos, como

cadernos escolares e materiais pedagógicos produzidos pela professora permitiram

realizar os estudos de casos, aprofundando o conhecimento sobre as situações e

acontecimentos que foram observados ao longo do ano letivo.

Uma vez que este estudo pretende compreender o sentido da escrita para o aluno

copista, partimos de Leontiev (1978) para apreender o conceito de sentido, analisando as

condições concretas da vida do sujeito, pois como esclarece o autor “(...) para encontrar

o sentido pessoal devemos descobrir o motivo que lhe corresponde”, portanto, se

queremos saber que o sentido da escrita para o aluno copista, devemos descobrir o que

motiva este aluno a escrever, que sentimentos permeiam a relação com a escrita e, na

concepção deste aluno, qual é a finalidade de escrever. (p.97)

Sendo assim, para que seja possível compreender quais são os significados

sociais e os sentidos pessoais dados à prática da escrita estabelecemos como objetivos

específicos a análise das práticas pedagógicas referentes às solicitações de escrita,

verificando se estas práticas mantêm os alunos na condição de copistas; a investigação

do copismo como parte, ou não, do processo de apropriação da escrita e a reconstrução

do percurso escolar destes alunos, que os colocaram na condição de copiadores e não

escritores.

3.1. O Campo de Pesquisa

O trabalho de pesquisa foi realizado durante o ano letivo de 2005, entre os meses

de junho e dezembro, em uma escola estadual de ensino fundamental da cidade de

Marília/SP. A escola está localiza em um bairro de classe média baixa e atende

moradores desta região e de favelas localizadas ao redor.

A pesquisa não foi iniciada no começo do ano letivo porque foi muito difícil

encontrar uma escola que permitisse a entrada de uma pesquisadora interessada em

estudar os alunos copistas. Acreditamos que esse fato ocorreu pela falta de

conhecimento que as escolas ainda têm sobre o assunto, devido à falta de pesquisas e

publicações nesta área.

Nossa busca pelas escolas começou no início do ano letivo, quando realizamos

junto à Diretoria de Ensino da cidade, um levantamento das escolas estaduais de ensino

fundamental. Estabelecemos como critério de seleção as escolas que estivessem

localizadas mais próximas da residência da pesquisadora. Várias foram contatadas, mas

se opuseram à entrada da pesquisadora na escola.

Então iniciamos uma busca por escolas municipais, na Secretaria Municipal de

Educação. Fomos orientadas a procurar uma escola nova, localizada em um bairro de

classe pobre, que estava recebendo alunos de outras três escolas municipais, e que por

isso, passava por alguns problemas.

Entramos em contato com essa escola, explicando o motivo da ligação e a

pesquisa que pretendíamos desenvolver. A escola realmente mostrou-se solícita à

entrada de uma pesquisadora.

Na primeira reunião realizada na escola estavam presentes o diretor e a assistente

de direção. Conversamos bastante sobre o surgimento da escola e a dificuldade de

trabalhar com alunos vindos de diferentes escolas. Explicamos o objetivo da pesquisa e

como seriam feitas as coletas de dados.

A assistente de direção fez uma lista dos alunos que eram considerados copistas,

em sua maioria do período da manhã. Marcamos uma reunião com as professoras para a

semana seguinte.

O encontro com as professoras aconteceu durante a reunião semanal que realizam

com a direção. Explicamos o objetivo do trabalho de pesquisa, demonstrando o desejo

de que o trabalho as envolvesse, e solicitamos que elas elegessem os alunos

considerados copistas. As professoras perguntaram o que entendíamos por aluno copista

e se esse aluno sabia ler. Alguns alunos foram citados e vimos algumas de suas

produções, conversamos com a professora do reforço, que neste momento estava dando

aula e que atenciosamente nos atendeu.

Depois de muito conversar e refletir, chegamos - professoras, assistente de

direção e pesquisadora - à conclusão de que todos os alunos considerados anteriormente

como sendo copistas, estavam em diferentes momentos de processos de aquisição de

leitura e escrita. Todos esses alunos, com muita ou pouca dificuldade conseguiam

escrever sozinhos algumas palavras, sem precisarem recorrer à cópia de um outro

colega. Concordamos que nessa escola não seria possível realizar a pesquisa e o melhor

seria buscar outra escola. Foi sugerida a procura por uma escola estadual.

Continuamos na busca por uma escola de ensino fundamental estadual que

tivesse alunos copistas e permitisse a entrada da pesquisadora. Nesse momento, o

critério de seleção anteriormente estabelecido, o de proximidade da residência, foi

excluído.

Novamente foram feitos vários contatos com outras escolas. Somente uma escola

aceitou receber a pesquisadora após a conversa pelo telefone. Na reunião feita com a

diretora da escola, foram discutidos os objetivos da pesquisa e os critérios para

compreender quem é aluno copistas. Nesse mesmo dia, foram realizadas conversas

informais com as professoras da segunda, terceira e quarta séries para identificar em que

classes encontraríamos os alunos copistas.

A terceira série foi a classe selecionada por ter o maior número de alunos

copistas, cinco alunos, num total de 40. Desses cinco alunos, um saiu da escola durante a

pesquisa. Nessa mesma conversa informal, solicitamos a permissão da professora para

realizar a pesquisa em sua sala de aula, explicando que a presença da pesquisadora seria

semanal, com duração média de uma hora, podendo ou não ter dias estabelecidos para a

realização das observações. A professora concordou com a presença da pesquisadora, e

o que pudemos verificar ao longo de todo o tempo que permanecemos nesta sala, foi que

a professora realmente “abriu” as portas de sua classe.

Participaram desta pesquisa, portanto, quatro alunos, sendo duas meninas e dois

meninos, com idade de nove anos cada. Os demais alunos da sala contribuíram com a

pesquisa como sendo “informantes” do processo de aprendizagem dos alunos estudados,

visto que forneceram informações e materiais que comprovavam as cópias realizadas

pelos alunos copistas. (ANDRÉ, 1995, p.61)

3.1.1. Apresentando a Escola Pesquisada

A escola foi fundada no ano de 1994, sendo que a estrutura física do prédio é

nova, ampla e moderna. São dois blocos de prédios que se ligam ao pátio por meio de

rampas e escadas. O acesso às salas de aula é feito pelas escadas e não existem rampas.

As salas da direção, dos professores, vídeo, informática e secretaria ficam no bloco

anexo, ligado ao pátio por rampas.

A escola funcionava em dois períodos, manhã e tarde, atendendo somente uma

sala de aula de cada série escolar, em cada um dos períodos. As salas eram fixas para

cada classe, isto é, as aulas da manhã aconteciam na parte de baixo e, as aulas da tarde

na parte de cima do prédio, permanecendo trancadas no momento em que não eram

usadas. A única sala de aula comum à todos os alunos é a de artes, usada apenas nas

aulas de educação artística, e trancada nos demais períodos.

O tamanho das salas é pequeno, com capacidade de comportar no máximo 30

alunos, algumas salas tinham 25 outras 40 alunos. Mas todas eram arejadas, limpas, com

carteiras, mesas e armários novos.

Oficialmente, estavam matriculados nesta terceira série 40 alunos, mas esse

número oscilou bastante durante todo o ano, variando entre 35 e 37 alunos presentes.

Alguns alunos saíram da escola, sendo transferidos para outros bairros ou cidades. Fato

importante para a pesquisa, já que um desses alunos era copista e estava sendo estudado.

Desta forma, optamos por utilizar os dados levantados com esse aluno no processo de

análise dos dados.

3.2. Procedimentos de Coleta de Dados

Os procedimentos de coleta de dados utilizados nesta pesquisa foram a

observação participante, entrevistas formais e informais com alunos copistas e

professora, a análise dos materiais pedagógicos produzidos pela professora e os cadernos

escolares. A seguir, descreveremos cada um dos procedimentos.

3.2.1 Observações Participantes

As observações em sala de aula foram o procedimento mais utilizado pela

pesquisadora e o que mais forneceu elementos para a pesquisa. Foram realizadas 18

observações semanais ao longo de todo o ano, sendo que no início da pesquisa as

observações duraram mais tempo e foram intensificadas. Isto se deu por dois motivos:

primeiro, a pesquisa começou no mês de junho, próximo do período de férias, verificou-

se a necessidade de conhecer a sala de aula e acompanhar as atividades que haviam sido

iniciadas e segundo, possibilitar a criação de vínculos com os alunos antes das férias. As

visitas realizadas na escola, as datas das observações, a duração e as atividades

desenvolvidas serão apresentadas no Anexo A.

De modo geral, não houve um intervalo regular entre uma observação e outra,

pois em alguns momentos também foi preciso que a pesquisadora se voltasse para a

análise da observações para verificar se os objetivos da pesquisa estavam sendo

alcançados, e em muitos momentos, os acontecimentos em sala de aula foram clareando

a realização da pesquisa.

No momento das observações, a pesquisadora permanecia em média uma hora

por semana em sala de aula, na posição de observadora - participante, isto é, começamos

o trabalho distante do grupo de alunos e no decorrer da pesquisa, fomos nos

aproximando dos alunos copistas, participando das atividades realizadas por eles em sala

de aula. Houve uma preocupação muito grande da pesquisadora em não atrapalhar as

atividades da aula, solicitando à professora autorização para se locomover entre os

alunos. A pesquisadora sentava preferencialmente no fundo da sala, de onde era possível

observar melhor os alunos. Entretanto, não havia lugares fixos para que eles se

sentassem, então sentava onde tinha lugar ou, como aconteceu muitas vezes, onde eles

pediam para a pesquisadora sentasse.

Esse foi um fato bastante interessante no desenvolvimento da pesquisa, o lugar

que a pesquisadora ocupava na sala de aula. Quando se apresentou para os alunos, a

pesquisadora explicou que realizaria um estudo sobre como eles aprendem a ler e a

escrever, e que ficaria dentro da sala de aula uma vez por semana. Eles ficaram muito

curiosos com a presença da pesquisadora durante bastante tempo, e solicitavam que se

sentasse em lugares diferentes a cada semana, para que ficasse perto deles. A maioria

dos alunos vinha mostrar as atividades prontas no caderno e perguntavam se o que

tinham feito estava certo ou pediam ajuda na realização de algum exercício.

Aos poucos, o papel da pesquisadora na sala de aula e o objetivo da pesquisa

foram sendo explicitados à medida que intensificava sua aproximação dos alunos

copistas. Os demais alunos contribuíram como “informantes”, relatando experiências e

mostrando produções dos alunos “que não sabem escrever”, na voz deles.

Durante as observações, utilizávamos um diário de campo, no qual anotávamos

os principais acontecimentos, bem como as atividades postas na lousa. Não havia uma

seleção do que deveria ser anotado, pois todo o contexto da sala de aula era importante

para a pesquisa, mas procuramos nos deter nas relações estabelecidas entre a professora

e os alunos copistas e as atividades que esses alunos realizavam ou não.

O diário de campo era acessível a todos os alunos, que todas as vezes que a

pesquisadora estava em sala de aula pediam para ler o que tinha sido escrito. Algumas

vezes, eles não entendiam a letra e pediam para que lêssemos, o que era prontamente

atendido. Possibilitar o acesso do diário de campo aos alunos, copistas ou não, foi uma

das formas criadas para explicitar o papel da pesquisadora na sala de aula e permitir que

todos os alunos se sentissem sujeitos ativos e participantes na pesquisa. Os alunos

copistas também tinham acesso ao diário, mas como não conseguiam ler o que estava

escrito folheavam. Quando eles identificavam seu nome, perguntavam o que estava

escrito, nós ou outra criança que estivesse por perto, líamos o trecho citado.

As observações em sala de aula possibilitaram delimitar os alunos que realmente

eram copistas e seriam acompanhados ao longo do ano pela pesquisadora. O que

percebemos nessas observações é que haveria necessidade de focalizar a pesquisa em

quatro alunos: duas meninas e dois meninos, que realmente não sabiam escrever e mal

conseguiam identificar as letras do alfabeto. Embora outros alunos dentro da sala de aula

apresentassem problemas de alfabetização, precisávamos delimitar o objeto de estudo e

os alunos citados foram considerados copistas, pois apesar de não realizarem

independentemente as atividades propostas, conseguiam reproduzir nos cadernos o que

estava na lousa ou copiavam de outros colegas.

Também realizamos observações das aulas de educação artística e aulas de

reforço. As aulas de arte, que deveriam privilegiar momentos de expressão e

criatividade, eram maçantes e repressoras. Os alunos eram obrigados a reproduzir

desenhos feitos na lousa pela professora ou então colorir desenhos impressos. Os alunos

que não obedeciam às regras, pintando com outras cores e fazendo outras formas, eram

repreendidos e os demais alunos acabavam rindo da situação.

Somente uma aula de reforço foi observada ao longo do ano. Isso aconteceu

porque a professora do reforço não permitiu que mais observações acontecessem. Nessa

única observação, o que pudemos notar foi uma diferença gritante entre as duas

professoras. A professora regular, apesar de ter momentos de explosão e gritar com os

alunos, foi sempre muito afetuosa e preocupada com eles, tanto no sentido pedagógico

quanto no sentido pessoal. A professora do reforço, por sua vez, mostrou-se

extremamente autoritária e inflexível, assumindo uma postura muito parecida com a dos

professores tradicionais, não permitindo que os alunos conversassem ou mudassem de

lugar; também utilizava uma régua que batia na mesa para pedir silêncio. O clima dessa

aula era tão tenso que os alunos mal se mexiam nas carteiras. As atividades pedagógicas

observadas foram exercícios de gramática, nos quais os alunos deveriam completar as

letras que faltavam (s, ss, z)5. Não foi observada nenhuma atenção especial com os

alunos copistas, nem na explicação da atividade nem na sua execução. Quando

explicamos os objetivos da pesquisa, a professora disse que não nos preocupássemos

“porque mais cedo ou mais tarde eles vão ter um ‘estalo’”.

Com todos os dados obtidos nas observações participantes, decidimos por fazer

quatro estudos de caso, privilegiando as entrevistas e a análise dos documentos desses

alunos, já que dentro de uma mesma sala de aula encontramos quatro alunos copistas.

3.2.2 Entrevistas

As entrevistas dividiram-se em dois grupos: formais e informais. As informais

eram realizadas dentro da sala de aula ou nos corredores e pátios com as crianças, as

professoras e a diretora e serviam para esclarecer pontos que haviam ficado confusos

para a pesquisadora, como dinâmica de funcionamento da escola, das atividades de sala

de aula e informações sobre os alunos. As entrevistas formais foram feitas com as

crianças em data previamente combinada com o objetivo de reconstruir o percurso

escolar desses alunos.

As entrevistas informais realizadas com a professora, ao longo do ano letivo, que

tinham o objetivo de compreender melhor a dinâmica da sala de aula, as atividades

propostas, a forma de correção dessas atividades, o processo de avaliação dos alunos e a

concepção que ela tinha dos alunos copistas e do processo da cópia, aconteceram dentro

5 Um exemplo de Registro Ampliado, com a observação desta aula de reforço será apresentado no Anexo C.

da sala de aula, no momento em que os alunos estavam envolvidos em alguma atividade.

Também aconteceram conversas nos corredores e nas salas dos professores.

Todas essas informações eram anotadas no diário de campo da pesquisadora,

junto com os dados do dia da observação. Uma única entrevista, feita no final do ano, foi

gravada e posteriormente transcrita.

Durante toda a permanência da pesquisadora em sala de aula, tivemos conversas

informais com os alunos, principalmente com os copistas. Aos poucos fomos nos

aproximando deles e pedindo para ver seus cadernos e atividades. Conversávamos sobre

o que eles tinham feito ou não, porquê, o que gostavam de fazer. As conversas versavam

sobre muitos assuntos, mas o tempo todo a pesquisadora tentava obter informações sobre

seu processo de apropriação da escrita.

Os demais alunos da sala de aula, que estava sentados perto, participavam dessas

conversas e em muitos momentos a pesquisadora teve que interromper as conversas

porque os alunos deixavam de realizar as atividades solicitadas pela professora para

conversar.

As entrevistas formais com os alunos, com duração de 30 minutos cada, foram

previamente marcadas e aconteceram em dois dias, com dois alunos em cada, no período

de aula. Também havia sido combinado com a professora que naqueles dias os alunos

seriam tirados da sala de aula.

Essas entrevistas foram gravadas com o consentimento dos alunos, mas só

puderam acontecer depois que eles se familiarizaram com o aparelho. O primeiro aluno

entrevistado foi o que mais se acanhou com o gravador, falou muito baixo e a

pesquisadora foi obrigada a repetir muitas de suas frases para ter certeza de que ficariam

registradas. Esses registros da pesquisadora foram muito importantes, pois na transcrição

da fita ouve-se muito mal o que o aluno diz. Os demais alunos se sentiram mais à

vontade e a qualidade do som também ficou muito melhor.

As entrevistas com os alunos copistas tinham o objetivo de apreender o sentido

da escrita para eles e refazer seu percurso escolar. A pesquisadora estipulou algumas

questões norteadoras da entrevistas, mas deixou os alunos livres para falar o quanto e

sobre o que eles quisessem. Nos momentos que eles saiam do foco da pergunta, a

pesquisadora retomava a questão e pedia mais detalhes sobre o assunto em pauta.

O que pudemos observar durante as entrevistas foi que os anos escolares

passados estão como que apagados da memória desses alunos. Alguns nem se lembram

do nome da professora do ano anterior. Os alunos se lembravam de algumas atividades e

de alguns colegas, mas o que mais se lembravam é de não conseguirem fazer as

atividades propostas.

3.2.3. Análise de Documentos

Uma outra grande fonte de informações foi os materiais didáticos usados pelos

alunos copistas, em sua maioria atividades em folhas soltas produzidas pela professora,

como as “cruzadinhas” e os cadernos escolares, usados durante as aulas e os cadernos de

reforço, feitos pela professora, que me forneceram dados relativos à concepção

pedagógica do processo de ensino-aprendizagem desta classe.

Também havia os cadernos usados nas aulas de reforço feitas com outra

professora. A esses documentos não tivemos acesso.

A análise dos cadernos escolares durante as aulas observadas possibilitou

verificar quais eram os momentos de cópia e as produções independentes. Nem todas as

atividades colocadas na lousa eram copiadas. Na maioria das vezes os alunos copiavam

o cabeçalho e o começo do exercício e logo paravam. Então eles arrumavam outras

atividades para fazer em sala de aula, que não eram relacionadas com o proposto pela

professora. Eles conversavam, andavam, brincavam com o que estivesse à mão, mas não

voltavam ao caderno. Por isso, observamos uma descontinuidade nas atividades dos

cadernos, um exercício começou a ser copiado mas não terminou, ou terminou de ser

copiado mas não foi resolvido; outras vezes, verificamos que o aluno passou dias sem

copiar nada.

Os cadernos eram divididos de acordo com as matérias, um para português, outro

para matemática e assim por diante. Os alunos copistas tinham no máximo dois

cadernos, mas como não sabiam qual deveriam usar, todo o conteúdo estava

embaralhado, confuso e às vezes muito difícil de entender. Alguns alunos tentavam

resolver algumas atividades propostas pela professora e foi aí que pudemos comprovar

que eles ainda não tinham domínio nenhum sobre a linguagem escrita, pois haviam

terminado de copiar com exatidão o que estava na lousa, mas a resolução do problema

era incompreensível.

Os materiais pedagógicos analisados foram as atividades dadas em sala de aula

para todos os alunos e as atividades montadas num caderno específico para os alunos

copistas. As atividades comuns eram quase sempre “cruzadinhas”, com o desenho de

objetos ou frutas e os espaços para escrever o nome. Ao longo do ano letivo, observamos

que os alunos copistas não conseguiam resolver nenhuma cruzadinha, deixando em

branco ou às vezes colocando letras aleatórias. Numa das últimas observações, vimos

que um dos alunos copistas tinha completado todas as cruzadinhas. Perguntamos se ele

tinha feito sozinho, no que ele respondeu afirmativamente, então solicitamos que ele

lesse e ele não conseguiu. Pedimos para ver a cruzadinha da colega da frente e ela

deixou. Comparando as duas, pudemos observar que até a letra estava igual.

Informações como essa, contidas nos documentos produzidos pelos alunos,

foram muito importantes para a análise dos dados levantados nessa pesquisa e para a

compreensão do aluno copista e os mecanismos que ele utiliza para sobreviver na sala de

aula.

Alguns materiais foram recolhidos pela pesquisadora para serem analisados,

como as cruzadinhas feitas por três alunos copistas. A cruzadinha do quarto aluno se

perdeu em sala de aula.

A pesquisadora solicitou que a professora guardasse os cadernos escolares e os

de reforço dos alunos copistas ao final do ano para que esse material fosse analisado na

pesquisa. A professora prontificou-se a entregar esses materiais no início do ano

seguinte, mas isso não aconteceu, pois os materiais de todos os alunos foram queimados

antes do início do ano letivo pela própria professora.

Os materiais reunidos para análise e uma entrevista feita com um dos alunos

copistas serão apresentados no Anexo E como exemplo. Gostaríamos de ressaltar que os

nomes dos alunos e das professoras foram trocados para resguardar a identidade dos

participantes da pesquisa. Para os alunos foram escolhidos nomes que começassem com

a letra inicial do nome real, pois dessa forma pudemos preservar algumas conversas

sobre a escrita do nome realizadas em sala de aula.

CAPÍTULO 4

ANALISANDO O PROCESSO DE ESCRITA DOS

ALUNOS COPISTAS

As crianças vão para escola para aprender, isso é indiscutível. Muitos são os

saberes que as crianças desconhecem, muitos são os conhecimentos necessários para

avançar na direção de um mundo mais amplo e mais complexo. Mas por onde tudo

começa? Quais são as primeiras noções que a criança deve aprender? Sem sombra de

dúvida, é o código escrito que vai possibilitar, fundamentalmente, o acesso a todos os

outros conhecimentos produzidos pela humanidade.

A atividade escrita faz parte do processo de alfabetização desde os primeiros

momentos da criança na escola, seja no ensino fundamental ou ainda na educação

infantil. Desde muito cedo, a criança que freqüenta a escola depara-se com as atividades

de escrita e com as demais atividades que vão lhe possibilitar escrever, como os

desenhos e as atividades lúdicas. Ao entrar na escola, a criança aprende a usar os

instrumentos próprios desse universo - caderno, lápis, borracha, giz de cera e outros –

seja com orientação da professora, seja por imitação ou por tentativa e erro. (SANTOS,

2002)

Muitas são as formas de possibilitar o acesso das crianças ao universo escrito e

muitas também são as formas de excluir as crianças desse universo. Foram estudados,

nessa pesquisa, quatro alunos copistas de uma terceira série do ensino fundamental, com

histórias escolares muito parecidas, de muito sofrimento e nenhum aprendizado.

Ao realizar entrevistas com as crianças para refazer seu percurso escolar,

constatamos que os dois anos escolares precedentes haviam sido esquecidos, apagados

de suas memórias. Dois alunos, sequer lembravam o nome das professoras da primeira e

segunda série.

Perguntamos para o Breno:

P: Como era sua outra escola?

B: Eu não sei...

P: Você não lembra?

B: Não...

P: E da professora, você lembra?

B: Não....

P: Não? Você não lembra o nome dela?

B: Não...

(Entrevista com Breno)

Entrevistando a Daniela perguntamos:

P: Você lembra da primeira série?

D: Não

P: Onde você fez a primeira série?

D: Lá em cima

P: Mas foi aqui na escola?

D: Foi

P: Você lembra o nome da professora?

D: Não

P: E você lembra como foi? Como era estudar na primeira série?

D: Gostoso

P: O que você gostava?

D: De fazer aquele trabalhinhos de, é... esqueci o nome, cruzadinha.

(Entrevista com Daniela)

A atividade que a aluna gostava de fazer na primeira série, na verdade é uma

atividade dada pela professora da terceira série, que ela está cursando no momento.

Realmente a aluna gosta de fazer as cruzadinhas, fica feliz quando a professora

apresenta essa atividade, mas ela não obtém sucesso na escrita das palavras.

Esse processo de esquecimento e confusão entre as atividades dadas por

diferentes professoras, nos leva a pensar sobre o sentido das atividades pedagógicas para

os alunos copistas, que nos aprofundaremos no decorrer da análise dos dados obtidos.

4.1. Percurso Escolar dos Alunos Copistas

Os Alunos

Os alunos que participaram dessa pesquisa foram dois meninos e duas meninas:

Breno, Cristina, Daniela e Marcos6, todos com nove anos e da mesma sala de aula,

moradores do mesmo bairro e com condições sócio-econômicas semelhantes. Houve um

6 Mais uma vez salientamos para a mudança dos nomes das crianças, para preservar suas identidades e a manutenção das iniciais dos nomes para descrever as atividades realizadas com e pelas crianças.

aluno que participou do início da pesquisa, mas foi transferido de escola no começo do

segundo semestre. Os poucos momentos que tive com esse aluno foram muito

importantes para a pesquisa, pelas informações e explicitações que ele deu sobre a

condição de aluno copista, portanto os dados deste aluno também serão analisados.

Para selecionar os alunos, foi realizada uma entrevista informal com a diretora e

com a professora. A diretora havia dito que aquela sala de aula era a que mais tinha

alunos copistas, mas quando fomos falar com a professora, ela afirmava que não tinha

alunos copistas porque os alunos citados não copiavam nada. Posteriormente entendeu

do que se tratava e começamos a analisar alguns cadernos.

“A diretora diz que estou na escola para fazer uma pesquisa com

alunos copistas; pergunta se a professora tem alunos copistas, ela diz

que não, que seus alunos nem copiam. A diretora pergunta sobre

alguns alunos, a professora continua afirmando que aqueles alunos

não copiam. Ela não entende sobre o que estamos falando. A diretora

explica que alunos copistas são aqueles que conseguem fazer cópia,

mas que quando solicitados não conseguem escrever sozinhos;

também não lêem. A professora diz que sim, que aqueles alunos são

copistas e, que tem mais do que foram citados. Olha para dentro da

sala e vai elencando os alunos”. (RA 1)

“Aponta-nos um aluno; pede para ele trazer seu caderno. Quase todo

o conteúdo que foi passado na lousa foi copiado corretamente.

Quando vemos as atividades que ele deveria realizar sozinho, essas

não foram feitas”. (RA1)

“Há uma menina que também é considerada copista. Peço que ela

traga seu caderno. Ela procura na mochila, tira vários cadernos e

começa a folhear. Demora. A professora pede que pegue um e traga,

“já que não temos a tarde inteira”. Enquanto a aluna vem em nossa

direção, a professora diz que “ela é voada, vive longe, a mãe é pior

ainda”. O que surpreende no caderno dessa aluna é que ela é capaz de

realizar a cópia mas não copia. Existe o cabeçalho do dia 23/05 e a

indicação de uma atividade que não foi feita. Em seguida, o cabeçalho

com a data de hoje (01/06)”. (RA1)

Posteriormente, fiz uma avaliação nos materiais escolares e conversas com a

professora para separar os alunos copistas de alunos que tinham outros problemas de

aprendizagem ou comportamentais. Os cadernos escolares dos anos anteriores, não

puderam ser analisados porque foram “queimados” pelos pais, ou porque estavam

“cheios”, ou porque eram “tranqueiras”.

Santos (2002, p. 85), ao pesquisar os cadernos escolares e seu uso na primeira

série do ensino fundamental, relata alguns dos destinos dados, pelos alunos e suas

famílias, a este instrumento tão comum no espaço escolar, como “brincar, guardar como

algo intocável, jogar fora, utilizar para o aprendizado ou para recordar algo”.

Pergunto para os alunos o que aconteceu com seus cadernos:

Durante a entrevista, pergunto para o Breno: “Você tem seu caderno

da primeira série?”, Ele responde: “Meu pai jogou no lixo”, Pergunto:

“Por quê?”, E ele responde: “Porque ele não gosta de tranqueira”..

Também pergunto para a Daniela: “Você tem o caderno da primeira

série?”, Ela responde: “Minha mãe tacou fogo”.

Questiono Marcos sobre seu caderno: “Você ainda tem seu caderno

da primeira série?”

M: Não

P: O que aconteceu com ele?

M: Minha mãe jogou fora

P: Por quê?

M: porque não tem folha.

(Entrevista com Marcos)

Finalmente chegamos aos quatro alunos copistas, que são apresentados a seguir.

Breno

Menino miúdo, falador e sorridente. É uma criança cativante, com um jeito

serelepe e inocente. O tempo todo está conversando com alguém; brinca com as meninas

e briga com os meninos, durante a aula, ele é um dos alunos que a professora sempre

chama a atenção para a tarefa que está realizando.

Mora com o pai, a irmã de 10 anos e a madrasta, a quem chama de tia. A irmã

estuda na mesma escola, mas em outro período e segundo seu relato, sabe ler e escrever.

A mãe mora com o novo marido e um filho de um ano, deficiente e, desde que se

separou do pai não tem muito contato com o menino. Ele só encontra com a mãe na casa

da avó materna, sente muito falta dela e diz que “se separou da mãe”. A madrasta é

quem o acompanha à escola.

Durante toda pesquisa ele demonstrou muito sofrimento por saber que não sabe

ler e escrever e uma grande crença de que não é mais possível fazê-lo. Conhece algumas

letras e números até o dez; consegue identificar algumas palavras, mas não relaciona

essa atividade com leitura.

Fez os dois primeiros anos do ensino fundamental em outra escola pública e não

se lembra das atividades que fazia nessas séries, nem o nome da professora da primeira

série. Lembra o nome da professora da segunda e de que ela dava “prêmio pra quem

ficasse quietinho”, uma caixa de bombom ou uma lapiseira, mas ele nunca ganhou. Diz

que teve dois cadernos na segunda série, que estavam limpos, já que ele não escrevia

nada, só brincava.

Explica que as crianças vêm para a escola para estudar e que gosta de português,

mas não sabe fazer, também não sabe matemática. Queria aprender a escrever. Uma vez

quis escrever “satanás” , como não sabia, desenhou a cabeça de um diabo no meu diário

de campo (RA 13). Fica confuso quando tenta explicar como as crianças aprendem a

escrever, acha que elas têm que aprender a ler primeiro e é a professora quem ensina

isso. Mas para ensinar a ler, a professora “passa na lousa” exercícios e ele não aprende.

(Entrevista, 25/10/2005)

criança. Essa pessoa é a tia Marta, irmã de sua mãe, professora que tem dado aulas

particulares de reforço escolar para Cristina todos os dias, nos horários em que ela não

está na escola, de manhã e à noite.

Cristina está muito feliz por saber ler e escrever. Quando pergunto se ela

aprenderia se não tivesse a tia Marta, ela me diz que a professora Ruth ensinaria. O que

ela realmente aprendeu nesse ano é que “a gente tem que escrever para depois ler a

palavra que a gente escreveu”. (Entrevista, 25/10/2005)

Daniela

É uma criança magra, de baixa estatura e bastante tranqüila; fala pouco, quase

não conversa com os colegas de sala, fica entretida com suas atividades, copia quase

tudo e tenta fazer alguns exercícios.

Mora com os pais e duas irmãs mais velhas, que sabem ler e escrever. Falou

pouco sobre a família. A mãe não trabalha e o pai é pedreiro, ambos são alfabetizados.

Sua história escolar parece que foi quase que totalmente apagada. Lembra-se das

professoras da primeira e segunda série que cursou na mesma escola que está agora. Mas

quando pergunto que atividades fazia, relata-me os exercícios que tem feito na terceira

série, como as cruzadinhas e o dizer de Deus, muito presentes nessa sala de aula.

Lembra-se dos amigos que fez e das brincadeiras que tinham. No final da entrevista,

lembrou-se que na primeira série “os alunos escreviam os numerais até cem na lousa” e

depois liam.

Agora, na terceira série, copia as atividades da lousa e afirma estar escrevendo ao

realizar essa tarefa. Faz as cruzadinhas que a professora dá, não escreve as palavras

corretamente, mas acredita fazê-lo. Somente uma vez explicitou sua frustração ao não

conseguir resolver um problema.

Durante a entrevista disse que se acha burra por não saber ler e escrever e não vê

possibilidade de mudar essa condição. Chegou a comparar-se com o burro que o pai

tinha, quando diz “eu tô igual ao burro do pai que morreu”. Quando perguntei como as

crianças aprendem ler e escrever, disse que sozinhas, mas quando insisti perguntando se

não deveria ser a professora a ensinar, concordou e afirmou que quando um aluno não

sabe fazer alguma coisa tem que chamar a professora para tirar a dúvida.

Assim como os outros alunos, relaciona as atividades de leitura e escrita, dizendo

que a gente aprende a ler para escrever e aprende a escrever para ler. Acredita que

alguém ainda vai ensiná-la a ler e escrever. (27/10/2005)

Marcos

É muito tímido e quieto. Não conversa com ninguém e passa a maior parte do

tempo brincando sozinho, constrói coisas com lápis e canetas; desenha bastante. Dos

alunos pesquisados foi o que menos apareceu nas observações, algumas vezes solicitou

que eu passasse tarefas em seu caderno.

Fez a duas primeiras séries na mesma escola que faz a terceira. Lembra do nome

da professora da primeira série e de algumas atividades que ela dava, como “coisas para

ler e escrever e um caderninho para escrever (...) escrevia uns nomes, paus e pontos”.

Diz que conseguia realizar as atividades e que gostava da professora, o que mais lembra

é que fazia desenhos.

Na segunda série, a professora deu um trabalho para os alunos sobre a Monalisa7.

Primeiro ele pintou um desenho, depois teve que desenhar sozinho. Ela também dava

“continha”, ele diz que nesta série conseguia fazer os exercícios que a professora dava,

mas agora, na terceira série, não consegue mais fazer.

4.2. Organização das Atividades Pedagógicas

A sala de aula pesquisada tinha 40 alunos, sendo que freqüentavam regularmente

entre 35 e 38 crianças. As carteiras eram dispostas em fileiras apertadas, pois a sala era

muito pequena para todos os alunos e muitas vezes as carteiras ficavam amontoadas.

Não era permitido que os alunos sentassem com os colegas; sempre que isso acontecia, a

professora mandava que eles se separassem. Andar pela sala, porém, foi tolerado muitas

vezes. Em nenhuma das observações, a professora realizou trabalhos em grupos na sala

de aula. Em uma das observações destacamos: “Os alunos estão fazendo alguma

atividade que permite que fiquem em pé. Todos conversam entre si, não há ‘bagunça’”.

(RA 1)

Como cada sala de aula é única e tem uma dinâmica de funcionamento particular,

algumas características observadas na organização dos trabalhos, o trato com os alunos e

7 Na sala onde foi realiza a entrevista, está colado nas paredes o mesmo trabalho sobre a Monalisa à que o aluno se referiu. Quando ele vê os desenhos sorri e fica feliz em me contar que fez esta atividade. Alguns alunos trabalharam com colagens ao invés de desenhar. Todos ficaram muito bonitos.

principalmente a presença dos alunos copistas dentro da sala, permitiu-me refletir como

acontece a manutenção das crianças na condição de não alfabetizados.

As observações foram realizadas em dias e horários diferentes para que várias

atividades pudessem ser acompanhadas; deparei-me com práticas pedagógicas confusas,

diferentes atividades sendo realizadas ao mesmo tempo; alunos fazendo tarefas de

algumas matérias e outros copiando novos conteúdos da lousa. Em nenhum desses

momentos de observação, as atividades foram corrigidas com os alunos, explicando o

que deveria ter sido feito ou tirando dúvidas. A professora também dava algumas

“Professora manda os alunos se sentarem, pede para não chamarem

por ela porque vai corrigir provas”. (RA 6)

“Pergunto para Marcos o que ele está fazendo, Gabriel, que está

sentado ao lado, responde que tem gente fazendo prova e gente

copiando da lousa”. (RA 12)

Outra característica importante dessa sala de aula é que a professora sempre se

valeu da ajuda de duas ou três alunas para passar os conteúdos na lousa. No início da

pesquisa, a professora relatou estar passando por momentos muito difíceis e ter

desenvolvido alergia nas mãos, ficando impossibilitada de usar o giz, por isso pedia

ajuda para algumas alunas para passar a matéria na lousa.

No decorrer das observações, percebi que essa era uma prática freqüente na

organização do trabalho pedagógico, pois além de passar os exercícios na lousa, essas

alunas também ajudavam a professora a organizar o material para as aulas, como

observado nos relatos a seguir:

“Larissa, que estava passando a matéria na lousa, vem falar comigo.

Pergunto se ela é a ajudante da professora. Ela me diz que só passa a

matéria na lousa e que as ajudantes são duas meninas. Fala os nomes

e vai até elas para me mostrar quem são. Volta para sua carteira e

copia o que acabou de passar na lousa”. (RA 2)

“Professora dá instruções da sua mesa, para os alunos fazerem as

atividades (cruzadinha e caça-palavras) e uma redação, enquanto

corrige as provas. Larissa está sentada ao lado da professora,

ajudando-a organizar as provas. Percebo que enquanto alguns alunos

ainda fazem a atividade proposta, muitos outros já terminaram, mas

não têm mais nada para fazer. Alguns ficam quietinhos, outros lêem e

outros conversam”. (RA6)

“Larissa está sentada ao lado da professora. A professora tem duas

alunas-ajudantes, Carol e Larissa. Elas estão vendo alguns papéis. A

professora manda os alunos sentarem corretamente na carteira, vai

observando um por um, dando orientações do que é corretamente”.

(RA7)

“Larissa está passando uma atividade na lousa, a professora está

sentada em sua mesa. A professora vai até o fundo da sala, no

armário, pergunto o que as crianças estão fazendo, ela me diz que os

exercícios de português são de ontem, e a Larissa está passando

matemática”. (RA 12)

Essa prática se mostrou tão comum no espaço pedagógico, que durante a

observação realizada na aula de educação artística, uma das alunas ajudantes dizia para a

professora quais eram os alunos que faziam e os que não faziam atividades, para que a

professora pudesse dar as notas e passar no diário de aula:

“Uma das alunas que é ajudante da professora titular está sentada com

a professora de educação artística. A professora sai de perto e eu

pergunto o que ela está fazendo. Ela diz que está dizendo para a

professora quem é bom e quem não é e a professora está dando notas,

passando no diário a média dos alunos. Pergunto se ela está dando

notas pela professora, ela diz que só está dizendo quem faz e quem

não faz”. (RA10)

Uma outra característica percebida durante as observações foi a naturalização do

não fazer nada dentro da sala de aula. Os alunos que não realizavam as atividades

propostas, ficavam conversando, brincando ou passeando pela sala.

Em alguns momentos a professora pedia que voltassem a seus lugares, mas não

cobrava a realização das tarefas; voltar para os lugares e sentar-se, estava mais ligado

com a disciplina que a professora desejava manter dentro da sala do que com a produção

e execução das atividades. Essa prática era tão comum com os alunos copistas quanto

com os alunos alfabetizados. Este trecho da observação demonstra essa prática:

“O tempo todo, Daniela, uma das alunas que é considerada copista,

fica sentada ao lado da professora. Observo atentamente e não há

nenhuma indicação para que ela volte à sua carteira para realizar as

atividades. Em um dado momento, Danielen vem falar comigo.

Pergunto se ela não vai fazer a atividade. Ela diz que não e sai de

perto”.(RA 2)

“A aluna que estava sentada na minha frente, Maria, também não

copia o que está na lousa. Ela conversa com a colega da frente.

Percebo que Maria fica olhando pela janela. Da janela é possível

observar uma das paisagens que circundam a cidade, um vale.

Pergunto o que a atrai lá fora, ela me responde que é o lago do

vale”.(RA 2)

“Cristina vem conversar comigo, pergunto o que ela está fazendo, diz

que nada porque não tem lápis”.(RA 12)

Mesmo quando houve uma única atividade coletiva observada durante todo o

ano, em que a professora envolveu todos os alunos numa mesma tarefa ─ pedindo que

trouxessem uma conta de luz para realizar um trabalho solicitado pela companhia de

energia elétrica, CPFL, a todas as escolas públicas, para estabelecer a média de consumo

das famílias de baixa renda ─ observei muita dificuldade da professora, a partir da forma

como organizou o trabalho, em manter a atenção dos alunos. Podemos observar essa

passagem neste trecho obtido do diário de campo:

“Alguns alunos ficam muito ansiosos e vão até a mesa da professora.

Ela os manda se sentarem e diz que vai chamar um por um (...)

Professora continua vendo as contas. Os alunos começam a andar pela

sala, olhar pela janela para a quadra, impacientes. A professora diz

que vai pedir para o professor de educação física não levá-los para a

quadra. Eles voltam para seus lugares. Alguns vão até o armário pegar

lápis e canetinha para desenhar”. (RA 7)

Em oposição a essa dinâmica da sala de aula, a professora das aulas de reforço

estabelecia uma relação com os alunos mais rígida, não permitindo que eles

conversassem ou saíssem dos lugares. A forma de apresentar os conteúdos se mostrou

bastante parecida, passando as atividades na lousa e pedindo que os alunos copiassem no

caderno. A professora explicava o que deveria ser feito, mas não dava nenhuma atenção

especial aos alunos que não realizavam as atividades propostas e que, nesse caso, eram

vários. Também nas aulas de reforço, que estes alunos freqüentavam, não havia uma

atenção específica às dificuldades que apresentam, pois lá estavam alunos de diversas

séries e com diversas dificuldades.

“Essa é a professora da segunda série que dá o reforço de português e,

nessa classe, estão misturados os alunos da segunda, terceira e quarta

série. O reforço de matemática é dado pela professora da quarta

série”.(RA10)

“Breno mexe com uma menina, eles correm pela sala. Peço que ele

sente ao meu lado. A professora energicamente diz que é para ele

sentar onde ela mandou, ele senta na primeira carteira. A professora

pega uma régua grande e começa a bater na mesa, os alunos fazem

silêncio. Me diz que hoje é só gramática. Entrega os cadernos. Os

alunos conversam, ela não faz nada. Manda-os copiarem e diz que

não quer nenhum “pio”, que não é para ninguém atrapalhar quem

estiver fazendo. Há uma conversa, ela manda-os ficarem quietos.

Começa a fazer a chamada, num tom de voz muito baixo, faz-se um

silêncio assustador. Lê todos os exercícios e explica como devem ser

feitos. Pede que os alunos repitam as palavras que estão na lousa. Eles

copiam no caderno, mas a professora não tem tempo de corrigir os

exercício”. (RA10)

Durante essa observação na aula de reforço, a professora me disse que eu não

deveria me preocupar com os alunos copistas, pois as três horas de aula de reforço

semanais estavam ajudando bastante e, não importava se eles eram copistas, o

importante é que eles estavam fazendo alguma coisa, que nesse caso continuava sendo

cópia. (RA 10)

Essa fala da professora explicita o que permeia o ideário pedagógico,

principalmente a idéia das professoras que acompanharam esses alunos ao longo dos

anos escolares, os problemas de aprendizagem são problemas dos alunos e

pedagogicamente nada pode ser feito.

Esses problemas são atribuídos à falta de organização familiar ou imaturidade

emocional, campos nos quais as professoras não têm acesso e não podem transformar.

Só lhes resta esperar que os alunos tenham um “estalo”, como explicou essa professora

do reforço8.

Durante uma das observações na sala de aula, a professora fez uma advertência

pública de que uma das alunas estava trocando letras e conversou sobre esse assunto

com toda a sala. A professora criou a possibilidade dos alunos se manifestarem durante o

diálogo da confusão das letras, mas descartou a hipótese levantada por um aluno sobre a

ocorrência do fato, ignorando-o como se ele nem houvesse se expressado; também não

refletiu com os alunos como é possível confundir os sons, nem explicou para a aluna

porque ela estava fazendo isso:

“Conversa com a Caroline, que fez uma redação. Manda a aluna parar

de confundir o “f” e o “v”. Diz que “f” é de faca e “v” de vaca. Passa

uns cinco minutos nessa conversa. Pergunta porque ela confunde, a

aluna não responde. Professora diz que tem medo de ser um problema

de fono. Um dos alunos levanta uma possibilidade de confundir os

sons. A professora pergunta se é pressa e, diz que se o problema for

esse, menos mal”. (RA5)

O desinteresse pelas tarefas repetitivas, criou uma série de atitudes nas crianças

de dispersão frente a essas tarefas. Essas atitudes foram mal vistas pela professora e

8 A esse respeito, existem muitas produções na área, a consultar: Machado e Souza (1997), Souza (2002).

acabaram por produzir uma série de “broncas” e ameaças. Embora tais constatações e

análises apareçam em vários trabalhos acadêmicos no campo da Psicologia Escolar e

Educacional, pouco se vê em sala de aula a superação dessas práticas pedagógicas, como

podemos verificar nos trechos a seguir:

“A professora volta. Grita com alguns alunos que estão em pé e com

os que estão conversando.” (RA9)

“A professora fica brava novamente e diz que vai passar matéria só

para eles se não ficarem quietos.” (RA9)

Patto (1999, p. 304), apresenta durante análise de sua pesquisa, as formas usadas

pelas professoras para manter a ordem e a disciplina dentro da sala de aula, explicando

que “o controle disciplinar dos corpos enquanto forma sutil de vigiar e punir que

historicamente substitui com vantagens outras formas de punição mais diretas e mais

inconvenientes do ponto de vista do poder instituído”, ou seja, que transforma as

crianças em seres com corpos dóceis, já que disciplinados.

A análise de Patto de que “a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos

econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de

obediência)”, decorre da análise do texto “Vigiar e Punir”, em que Foucault (1977, apud

Patto, idem) explica que as disciplinas são “métodos que permitem o controle minucioso

do corpo e que realizam a sujeição constante de suas forças e que lhe impõem uma

relação de docilidade-utilidade”.

Apesar dessa disciplina imposta pela professora para que os alunos permaneçam

sentados ou façam aquilo que ela ordena, há uma atitude das crianças de se

movimentarem, realizarem outras atividades nos momentos em que não têm nada para

fazer ou quando decidem fazer outras coisas.

A seguir, apresento diversos exemplos de como as crianças se distraem,

divertem-se e convivem com seus colegas dentro da sala de aula:

“Bruno começa a conversar com Mateus. Eles estão entretidos com

um livro sobre dinossauros. Eles pegam o livro, folheiam, conversam

sobre os ‘bichos’. Bruno diz que vai desenhar um ‘monstro’ (um dos

dinossauros) no caderno”. (RA 2)

“Um aluno está com um potinho de gliter. Mateus vai até sua carteira

e pede um pouco. Guarda na mão o gliter que ganhou. Breno ainda

está perto de mim. Mateus diz para eles colarem no caderno de Breno.

Vão buscar o caderno e trazem cola junto. Percebo que a professora

começa a olhar em nossa direção e digo que a professora pode não

gostar deles ficarem comigo e que seria melhor se eles fossem para a

carteira de Breno”. (RA 2)

“Os alunos estão fazendo atividades diversas, como desenhar, ler,

mas nada específico, indicado pela professora”. (RA 7)

4.2.1. Professora Substituta

Durante as observações, houve um episódio muito interessante que não pode

deixar de ser relatado, a aula dada pela professora substituta. A professora da sala havia

ido a um curso e não daria aula naquele dia.

A professora substituta é uma jovem estudante de pedagogia que substitui aulas

em diversas escolas e, quando contamos sobre a pesquisa que realizamos com os alunos

copistas desta sala, ela diz que tem visto muitos alunos copistas pelas escolas por onde

passa. Ela se propõe a realizar uma atividade com a classe para sabermos como os

alunos estão, ela diz que a brincadeira vai mostrar quem sabe escrever e quem não sabe.

A professora explicou para a sala que fariam a “Brincadeira do silêncio”. A

atividade consistia no seguinte: cada aluno recebeu uma figura em um pedaço de papel,

com a inicial do nome do objeto ou animal desenhado no seu papel. A professora

começava a brincadeira escolhendo uma figura e escrevendo seu nome na lousa; a

criança que tivesse o animal ou objeto escolhido teria que ir até a lousa e escolher outra

figura, escrevendo o nome desta, até que todos os alunos tivessem escrito. A brincadeira

foi muito divertida, as crianças escolheram os animais, alguns não existiam, elas

trocavam até acertar. Foi muito interessante porque todos os alunos participaram da

atividade falando, opinando, rindo e, em momento nenhum eles desviaram atenção para

outras coisas nem fizeram “bagunça”.

Os alunos copistas escrevendo na lousa:

“Daniela perguntou como escrevia xadrez, a professora soletrou e ela

escreveu. Na letra ‘e’ ela escreveu ‘a’, professora repetiu e ela

corrigiu”.

“Cristina escolheu galo e escreveu sozinha”.

“Breno pediu ajuda para escrever sino, a professora soletrou e ele

escreveu”.

Essa atividade foi ótima para toda a sala, mas principalmente para os alunos

copistas, que se sentiram parte integrante de uma tarefa feita coletivamente na sala de

aula. Como a professora sabia do objetivo desse exercício – compreender o que os

alunos sabiam fazer – ela pôde traçar uma metodologia adequada para que todos eles

participassem sem se sentirem constrangidos: avisou na explicação a brincadeira que

quem não soubesse escrever poderia pedir a sua ajuda. Isso possibilitou que os alunos se

sentissem a vontade para escrever na lousa na frente dos outros colegas, pois seriam

ajudados, além do clima de confraternização se fazer presente entre os alunos no

momento de realizar a brincadeira.

Os alunos copistas, que conheciam as letras, conseguiram com a ajuda da

professora escrever a palavra escolhida. Cristina, que já dava sinais de que estava lendo

e escrevendo, escreveu sem ajuda a palavra ‘galo’.

Entretanto, é preciso fazer uma análise um pouco mais profunda nessa passagem,

para não corrermos o risco de pensar que os alunos copistas estão muito perto da escrita

autônoma. Saber o nome das letras do alfabeto não significa a apropriação do código

escrito, nem seu significado ou sua função. Em outros momentos, quando foram

solicitados a recordar, os alunos copistas não lembraram os nomes das letras, ou quando

essas foram ditadas eles não sabiam quais eram.

Conhecer o código escrito, as letras do alfabeto, é apenas uma parte da

apropriação da linguagem escrita. Se as crianças não aprenderem a utilizá-las, se não for

construído um sentido para essas letras, logo as crianças as esquecem. Porém, quando há

a intenção de compreender os processos de ensino e aprendizagem pelos quais passam

os alunos, com a intenção de superá-los, como fez a tia da Cristina, é possível superar o

copismo.

Durante a aula de reforço, muitas diferenças foram observadas, tanto na forma de

explicação dos conteúdos e resolução dos problemas, quanto no relacionamento da

professora com os alunos. A professora se mostrou muito dedicada ao trabalho

pedagógico, corrigindo os exercícios na lousa com a sala, pedindo a participação de

alguns alunos na resolução de alguns problemas e, sobretudo, verificando as dúvidas e

solucionando-as.

“Rapidamente percebemos uma diferença, a lousa está cheia de

exercícios de matemática, a professora está explicando e os alunos

prestam bastante atenção. Outra diferença, o cabeçalho não tem o

“dizer de Deus”, apenas indica a data e que o tempo está nublado, e

um desenho do sol sendo encoberto por uma nuvem”.

“A professora passa pelas carteiras perguntando se os alunos têm

dúvidas e explica quando aparecem. As crianças fazem a atividade,

andam pela sala sem fazer barulho. A configuração é outra.

Professora vai corrigir os exercícios. No terceiro, pergunta se alguém

quer fazer na lousa. Várias crianças levantam a mão, inclusive

Cristina, que estava com problemas na compreensão do exercício.

Uma delas vai. As crianças deveriam agrupar diferentes moedas de

várias formas para dar um valor. Esse aluno fez de um jeito, ela

pergunta se alguém fez diferente, mais quatro alunos vão resolver na

lousa”. (RA8)

Por outro lado, a professora utilizou recursos coercitivos para manter a

“disciplina” na sala de aula. Fez na lousa uma lista com o número de alunos presentes na

sala e escrevia o nome de quem estava conversando na ordem decrescente, para que

esses fossem os últimos a sair para o recreio. Mas isso não funcionou, as crianças se

rebelaram contra esse método. O que funciona com a professora oficial não funcionou

com a substituta, visto que a primeira nunca cumpre o que ameaça fazer, mas os alunos

não sabiam se essa professora cumpriria ou não.

“Alguns alunos começam a bagunçar. Percebemos que existe duas

colunas de números na lousa, do 1 ao 31. Pensamos que fizesse parte

do exercício, mas serve para a professora marcar os nomes dos alunos

que estão bagunçando. Ela pede silêncio e diz que vai anotar os

nomes dos alunos na lousa e, que estes serão os últimos a sair para o

recreio. Anota três nomes, a partir do número 31, de baixo para cima.

Professora começa a passar mais exercícios, repete que os três que

estão com os nomes na lousa vão ser os últimos a sair. Passa algumas

contas e diz que quem terminar primeiro sai primeiro. Alguns alunos

dizem que não vão fazer. A classe parece descontrolada e a professora

continua passando contas na lousa. Diz: ‘se continuar a conversa,

passo mais’”. (RA8)

Sua intimidação não funciona, pois a sala continua descontrolada até a hora do

recreio, quando as crianças têm que sair na ordem estipulada pela professora.

4.3. Alunos Convivendo Com o Adoecimento da Professora

Durante todo ano em que foi realizada a pesquisa, o convívio com a professora

tornou-se mais próximo, conversamos bastante sobre como ela se sentia trabalhando

com essa sala, sua frustração em não saber o que fazer para resolver os problemas de

aprendizagem dos alunos. Ela também contou sobre acontecimentos de sua vida pessoal,

relatando suas dificuldades frente os problemas pelos quais tem passado. Tudo isso

ajudou a compreender como a professora se construiu ao longo desse ano de trabalho e o

adoecimento que as condições concretas de vida e trabalho provocaram, produzindo

marcas subjetivas de muito sofrimento, que acabaram por influenciar seu trabalho em

sala de aula.

Para analisar essa situação de adoecimento da professora, remetemo-nos ao

clássico trabalho de Wanderley Codo (1999) sobre a Síndrome de Burnout. Segundo o

autor é preciso fazer uma distinção entre burnout e stress

O primeiro envolve atitudes e condutas negativas com relação aos usuários,

clientes, organização e trabalho; é assim uma experiência subjetiva,

envolvendo atitudes e sentimentos que vêm acarretar problemas de ordem

prática e emocional ao trabalhador e à organização. O conceito de stress, por

outro lado, não envolve tais atitudes e condutas, é um esgotamento pessoal

com interferência na vida do indivíduo e não necessariamente na sua relação

com o trabalho. (p. 240)

Outras características da síndrome precisam ser compreendidas, separadamente,

para afirmarmos o seu aparecimento na professora pesquisada :

O trabalhador se envolve afetivamente com seus clientes, se desgasta e, num

extremo, desiste, não agüenta mais, entra em burnout.

A síndrome é entendida como um conceito multidimensional que envolve

três componentes:

1) Exaustão Emocional – situação em que os trabalhadores sentem que não

podem dar mais de si mesmos a nível afetivo. Percebem esgotada a

energia e os recursos emocionais próprios, devido ao contato diário com

os problemas.

2) Despersonalização – desenvolvimento de sentimentos e atitudes

negativas e de cinismo às pessoas destinatárias do trabalho

(usuários/clientes) – endurecimento afetivo, “coisificação” da relação.

3) Falta de envolvimento pessoal no trabalho – tendência de uma “evolução

negativa” no trabalho, afetando a habilidade para realização do trabalho

e o atendimento, ou contato com as pessoas usuárias do trabalho, bem

como com a organização”. (idem, p. 238)

Durante conversas informais, a professora expressou sua insatisfação e

impotência com o trabalho a ser realizado na sala de aula pesquisada. Em uma das

entrevistas, ela relata como se sente aliviada ao perceber que não se sentia impotente

sozinha:

“Então eu pensei, vai ver que sou eu com os meus problemas que não

‘tô’ dando conta, em 20 anos de magistério eu sempre dei, o que ‘tá’

acontecendo? Aí, quando começou as aulas, entrou a [professora] de

educação física, entrou a [professora] de artística: “Eu não vou dar

aula nessa sala por dinheiro nenhum do mundo”. Quer dizer, eu falei:

“Graças a Deus, não sou eu que ‘tô’ louca”. (Entrevista com a

professora)

Em outra entrevista, a professora explicita o que pretende fazer com sua prática

pedagógica nos próximos anos: “Só tenho mais cinco anos para me aposentar, até lá, vou

levando...”.

Segundo Codo (idem, p. 254), esse sentimento pode ser explicado pela síndrome,

já que

o burnout é uma desistência de quem ainda está lá. Encalacrado em uma

situação de trabalho que não pode suportar, mas que também não pode

desistir. O trabalhador arma, inconscientemente, uma retirada psicológica,

um modo de abandonar o trabalho, apesar de continuar no posto. Está

presente na sala de aula, mas passa a considerar cada aula, cada aluno, cada

semestre, como números que vão se somando em uma folha em branco.

Muitas foram as observações nas quais presenciamos a professora doente,

tomando algum medicamento ou referindo-se ao fato de estar doente:

“A diretora pede que a professora venha conversar conosco. Ela tem

dificuldade para se levantar da cadeira; apoia-se a uma bengala. A

diretora pergunta se ela está melhor, reponde que sim. A pesquisadora

é apresentada à professora; ela cumprimenta sorridente. Pergunto o

que houve, ela responde que escorregou”. (RA 1)

“Observamos que a professora toma um remédio”. (RA 2)

Desta forma, é possível entender muitas das suas atitudes e comportamentos

frente aos alunos e aos problemas surgidos no dia-a-dia, a falta de motivação e o

aparente descaso com o processo de aprendizagem.

“Percebemos o processo de adoecimento pelo qual a professora está

passando. O tempo todo grita com os alunos, dizendo que vai

enlouquecer, que não vai mais agüentar. No começo da aula nos

contou que o remédio que o psiquiatra passou, além de ser caro não

estava fazendo efeito. Ele disse que era preciso esperar de trinta a

quarenta dias. A professora achava que naquele dia o remédio estava

começando a fazer efeito. De qualquer forma, seu comportamento de

gritar e ficar muito abalada com a bagunça da sala não mudou. A

professora também verbaliza constantemente a presença e o poder de

Deus para tudo que acontece, diz que ‘só por Deus agüenta

trabalhar’”. (RA3)

“A professora diz que ontem foi ao médico e que está com um

problema nos olhos e pede para que os alunos não escrevem com

caneta gel, pois é muito difícil enxergar, principalmente à noite

quando ela corrige os trabalhos”. (RA6)

“A professora começa a medir a própria pressão. Os alunos vão se

amontoando na mesa dela para ver o que está acontecendo, a

professora explica que está medindo a pressão porque durante a noite

estava alta. Querem ver o estetoscópio. Professora pede para Larissa

levar no fundo da sala para eles verem. As crianças se divertem

ouvindo o coração”. (RA11)

Em entrevistas informais feitas com a professora, ela também relatou como

avalia as políticas publicas para a educação, como elas influenciaram o trabalho

pedagógico, mas se sente impotente frente a essas mudanças. Não acredita que possa

fazer alguma coisa diferente, diz que tentou muitas coisas, certas e erradas, e que nada

adiantou. Revolta-se em saber que não pode exigir muito dos alunos, pois eles sabem

que vão passar de ano direto, que não é preciso ter notas boas para fazê-lo.

“A coisa tá vindo de uma forma...e vai piorar, tá na cara que vai

piorar, né?! Porque agora nós não somos mais professoras, nós

viramos babás, eles mandam eles aqui só pra gente cuidar. Não tem

mais aquela coisa....O aluno fala na sua cara: “Ah, eu vou passar [de

ano] mesmo!” E eu falo: “Não vai, enquanto eu tiver as rédeas dessa

sala você não vai!” O triste é que vai, viu filha?! Ai que ódio!! Então

você se sente impotente porque, eles têm razão... Já tentei de tudo,

bagunceiro pra frente, melhorzinho atrás. Tudo isso não é

pedagógico, não pode fazer isso, mas já tentei o que pode e o que não

pode, nada deu certo. Nada! Tentei falar que não ia ter educação

física, educação artística. Tudo o que é proibido, não pode falar isso,

mas tentei até o que não pode”. (Entrevista com a professora)

Apesar de fazer uma boa análise dos condicionantes externos ao seu trabalho, a

professora permanece tendo uma visão preconceituosa das famílias pobres, justificando

o fracasso escolar dos alunos pelos fatores familiares e pessoais. Acredita que os alunos

não aprendem a escrever porque as famílias são desestruturadas, os pais são separados,

as crianças não vivem com as mães, ou então porque as mães trabalham fora e não dão

atenção.

Esses “adjetivos” foram usados ao longo de todo ano letivo para justificar

problemas de comportamento e dificuldades de aprendizagem. Nos dias de hoje, ainda é

muito freqüente a culpabilização das crianças e das famílias pelo fracasso escolar, que

na verdade deve ser lido como o fracasso da escola. Historicamente essas famílias têm

sido culpabilizadas pelos problemas pedagógicos e políticos de organização do espaço

escolar, mais por um movimento de preconceito com a população trabalhadora do que

com uma real preocupação com a aprendizagem das crianças e seu futuro escolar.

Em pesquisa realizada em 1996, Collares e Moysés apontavam como a escola –

composta por professores, coordenadores e diretores – deposita a responsabilidade de

ensinar nas famílias que são suas usuárias, justificando que não conseguem realizar seu

trabalho porque os alunos não têm o preparo necessário para aprender, que deveria ter

sido dado em casa pelos pais.

Os “mitos” de aprendizagem, ou seja, as justificativas do porquê as crianças não

aprendem, vão desde déficits nutricionais até problemas emocionais, produzidos por

famílias desestruturadas, como pais separados, por exemplo. Desde o final da década de

1980, Maria Helena Souza Patto vem apontando novos rumos que devem ser dados para

esse olhar preconceituoso da escola com as famílias pobres, já que “as explicações do

fracasso escolar baseadas nas teorias do déficit e da diferença cultural precisam ser

revistas a partir do conhecimento dos mecanismos escolares produtores de dificuldades

de aprendizagem”. (1999, p.407)

A escola atribui à família, portanto, responsabilidade sobre o fracasso da vida

escolar das crianças, que na verdade é o resultado do fracasso de um sistema escolar

excludente e seletivo, que perversamente produz analfabetos dentro das salas de aula, ou

seja, “o fracasso da escola pública elementar é o resultado inevitável de um sistema

congenitamente gerador de obstáculos à realização de seus objetivos”. (idem, p. 411)

Em entrevista informal, a professora relatou como é sua comunicação com os

pais dos alunos:

“Caderno de advertência, era para eu ter uns quatro (risos), mas não

adiantou também”.

Perguntamos: Você manda recado pelo caderno deles para os pais?

A professora responde: “Mando, vem assinado. Só que continua a

mesma coisa.”

Nos relatos dados pela professora durante todo ano, constatamos que ela

conhecia muito sobre as histórias familiares de todos seus alunos, mas quando

perguntamos sobre a história escolar dos alunos copistas, ela não sabia. Não soube

informar onde os alunos haviam cursado os anos anteriores, nem como havia sido essa

experiência, pois nunca tinha conversado com as famílias sobre esse assunto.

4.4. As Solicitações de Escrita

Nesse item, vamos analisar as solicitações de escrita feitas pela professora, em

quais momentos ocorreram e quais e como foram elas.

A apresentação de novos conteúdos em sala de aula era feita da seguinte maneira,

na maior parte das vezes, a professora, ou uma de suas alunas ajudantes, passava o

conteúdo na lousa e pedia que os alunos copiassem no caderno e resolvessem a

atividade. Muitas vezes, essa forma de organizar as atividades na classe, foram

observadas e, em nenhuma delas, presenciamos a professora tirando dúvidas ou

corrigindo com a classe os exercícios; ela sempre dizia que estava corrigindo alguma

outra coisa ou que levava para casa os cadernos para serem corrigidos. Apesar de termos

realizado as observações em diferentes horários e dias da semana, não observamos a

devolução de tais cadernos.

A primeira solicitação de escrita que presenciamos na pesquisa, foi no primeiro

contato com a diretora, no qual estabelecíamos os critérios para definir quais eram os

alunos copistas. Ela mostrou uma carta que pediu que dois alunos, que tinham brigado,

escrevessem pedindo desculpas. A escrita das duas cartas é muito diferente uma da

outra, é possível comparar essas diferenças, uma pertencente a um aluno alfabetizado,

outra de um aluno que ainda não sabe escrever. Esse aluno no caso, que não conseguiu

escrever, era o Breno e essa carta encontra-se no anexo E.

“A diretora mostra uma carta que pediu que dois alunos escrevessem,

após uma conversa que tiveram com ela sobre uma briga. Os dois

alunos são da mesma sala de aula. O conteúdo da carta é um pedido

de desculpa pela briga, mas não é um pedido de um para o outro; os

alunos pedem desculpas para as mães, por terem brigado, prometendo

que se comportarão na escola e que vão cantar e dançar para a mãe

quando chegarem em casa. Um dos alunos escreveu toda a carta, com

alguns erros ortográficos, mas realizou a atividade; o outro aluno

escreveu muitas coisas, que não podem ser consideradas palavras.”

(RA1)

Muitos são os exemplos das observações de como foram feitos os pedidos para

que os alunos escrevessem; o mais comum de todos eles foi a cópia da lousa, que na

maior parte das vezes era passado pela aluna ajudante.

“Na lousa havia um conteúdo de geografia, explicando a democracia

e o sistema de votos no Brasil. A mesma aluna que tinha arrumado a

carteira da pesquisadora, começou a passar exercícios de matemática

na lousa. Era para os alunos formularem um problema. A professora

corrigia alguns cadernos.” (RA2)

“Uma das alunas, Carol, está passando a continuação de um exercício

na lousa e também distribui algumas folhas, nas quais os alunos

devem continuar copiando. A pesquisadora pergunta a um dos

meninos ao seu lado que atividade é aquela, ele diz que é prova. A

professora explica que primeiro eles devem copiar o cabeçalho, que

contém o “Dizer de Deus”. Aquilo que chamamos de frase do dia é

explicitamente nomeado pela professora como sendo o ‘Dizer de

Deus’.” (RA4)

Em uma das observações, a professora havia dado uma atividade de construção

de um diálogo, sobre uma conversa hipotética do que os alunos queriam ser quando

crescessem. Matheus, que tinha dúvidas sobre a atividade, perguntou o que era para

fazer, a professora disse que era para fazer uma conversa entre duas pessoas.

Esse foi um momento bastante interessante, pois durante essa observação a

pesquisadora assumiu um papel bastante ativo no processo de resolução da atividade,

ajudando a Cristina a entender o que era para fazer e montando o diálogo proposto pela

professora.

“Deparamo-nos com a Cristina, que havia copiado o cabeçalho, a

frase do dia e a indicação da atividade. Perguntamos se ela não ia

fazer, ela respondeu que não sabia ler nem escrever. Não sabia fazer o

diálogo. Dissemos que ela tinha que pensar numa conversa entre duas

pessoas e escrever no papel. Pedimos que ela fizesse o que

conseguisse (queríamos saber como é a escrita dessa criança). Ela

disse que não conseguia, insistimos e ela aceitou o desafio. Voltamos

para a carteira. Ela se esforçou e escreveu algumas coisas. Veio nos

perguntar como escrevia “triste”. Fomos até sua carteira e

perguntamos qual era sua hipótese, ela não soube responder.

Soletramos. Voltamos para a carteira. Ela foi confirmar com a

professora se estava certo. Passados uns cinco minutos ela puxou uma

cadeira e se apoiou na carteira da pesquisadora para terminar de

escrever. Escrevia muitas coisas, que não conseguíamos

compreender. Esperamos. A professora chegou, contamos o que

estava acontecendo. Esperamos ela terminar. Terminada a escrita,

pedi que ela lesse. Ela começou a ler exatamente aquilo que tinha

escrito, numa leitura silábica, lendo as sílabas separadamente e

tentando juntá-las, mas não obteve sucesso em muitas palavras. Leu o

texto todo assim, se esforçando muito para compreender o que havia

escrito e o significado das palavras, que muitas vezes não eram

realmente palavras. Percebemos que a professora estava muito

emocionada, com lágrimas nos olhos. Alguns colegas da sala se

aproximaram para ver o que estava acontecendo e ela continuou

lendo, um pouco envergonhada mas confiante. As crianças não

interromperam em nenhum momento a leitura, o que possibilitou

confiança. Também percebemos que as crianças estavam surpresas

com o que estava acontecendo.” (RA3)

Essa passagem é bastante interessante, pois, podemos observar a dinâmica da

criança entre o copiar da lousa a atividade proposta, a tentativa de fazer e o sucesso

obtido. Num primeiro momento, a criança faz aquilo que sabe e está acostumada a fazer,

copia o que está na lousa. A aluna sabia que alguma coisa era para ser feita, mas também

sabia que não tinha entendido o que acabara de copiar. Sabíamos que esse era um

momento muito importante para a pesquisa, no sentido de compreender a relação

estabelecida entre a criança e a escrita, mas, para além disso, esse era um momento

muito importante na vida dessa criança. Existiam duas opções: não fazer nada com o que

estava acontecendo na nossa frente e deixar a aluna frustrada, ou incentivá-la na

realização da atividade, independente de saber escrever certo ou errado.

É interessante notar que não foi preciso insistir muito para que a aluna fizesse a

tarefa, pelo contrário, percebemos que a aluna desejava fazer, desejava sentir-se

“sabedora de ler e escrever”; e ela sabia exatamente o que queria expressar por meio da

escrita.

Ao nos reportarmos à teoria sobre escrita que orienta esse trabalho, podemos

comparar a atividade feita pela aluna copista com as atividades que Luria (1989) pedia

que as crianças fizessem – escrever frases ditadas por ele9. Primeiramente porque existiu

um adulto mediando a relação da criança com a escrita, pedindo que ela escrevesse e,

9 Para maior aprofundamento da pesquisa feita por Luria, consultar o capítulo 2 deste trabalho.

depois porque tanto a aluna quanto as crianças pesquisadas por Luria, empenharam-se na

tarefa de escrever, mesmo que não soubessem como fazer.

Num primeiro momento, essa escrita é incompreensível, mas começa a adquirir

contornos de uma escrita futura, pois a criança começa a compreender o significado da

escrita, qual seja é “uma dessas técnicas auxiliares usadas para fins psicológicos; a

escrita constitui o uso funcional de linhas, pontos e outros signos para recordar e

transmitir idéias e conceitos”. (idem, p.146)

Quando falamos sobre a importância de um adulto mediador entre a criança e o

conhecimento e ressaltamos o papel do professor no processo de ensino-aprendizagem,

como sendo esse mediador, estamos afirmando que é preciso ter o compromisso de

ensinar as crianças, ou como afirma Arce (2004), é preciso “ir às raízes do problema e

assumir um posicionamento firme em defesa da educação escolar e da transmissão de

conhecimento como produto da atividade deliberada de ensino por parte do professor”.

(p. 166)

Outra solicitação de escrita muito presente durante o ano, foram a palavras-

cruzadas e os caça-palavras:

“A professora dá uma folha para cada um, para que eles façam

palavra-cruzada de figuras. Alguns alunos pedem ajuda da

pesquisadora, perguntando como se escreve uma palavra (lã, por

exemplo) ou perguntando que figura é aquela que eles não conseguem

identificar, como um saxofone”. (RA5)

“Professora dá instruções para os alunos fazerem as atividades,

cruzadinha e caça-palavras e uma redação da sua mesa, enquanto

corrige as provas”. (RA6)

Essa atividade era a preferida dos alunos, que sempre se envolviam em resolver

as “cruzadinhas”. Mas, assim como as outras solicitações de escrita, nunca observamos

sua correção em sala de aula.

Tendo tantos momentos dedicados à escrita nas atividades pedagógicas, somente

uma vez presenciamos a professora realizar uma atividade de leitura com os alunos, ela

pedia que eles fossem, individualmente, até sua mesa e lessem. Ela realizou esta

atividade pacientemente, esperando o tempo dos alunos e a maioria leu corretamente. Os

alunos copistas não participaram da atividade.

“Professora está tomando leitura, é a primeira vez que ela faz isso. Os

alunos vão até sua mesa e lêem”. (RA 13)

“Volto para minha carteira, a professora continua tomando leitura,

alguns alunos andam pela sala, a maioria está trabalhando, há não

bagunça”. (RA 13)

Outro momento de leitura em sala de aula, mas coletivo, aconteceu quando a

pesquisadora se apresentou para os alunos e eles não entenderam seu nome, então

perguntamos se eles queriam que escrevêssemos na lousa para que eles pudessem ler.

Nessa pergunta que fizemos, está implícito o significado da escrita, o de ler um nome

por exemplo.

“Alguém perguntou como era mesmo o nome da pesquisadora.

Perguntamos se eles queriam que escrevêssemos na lousa, todos

concordaram. Escrevemos com letra cursiva. Alguns alunos

começaram a ler em voz alta”. (RA 2)

4.4.1 Explicações Sobre o Processo de Alfabetização

A partir do momento em que entramos na escola, tentamos investigar com as

professoras quais eram suas hipóteses sobre o fenômeno do copismo, como e porque

acontecia; não nos surpreendemos quando os alunos e suas famílias novamente foram

culpabilizados pelo fracasso escolar. (COLLARES e MOYSÉS, 1996)

Além das explicações sobre o copismo, as professoras se posicionaram com

relação ao processo de alfabetização de forma geral. Os excertos de algumas das

conversas que mantivemos são apresentados a seguir:

“Aproveitamos o momento para conversar com a professora sobre os

alunos copistas. Ela diz que eles estão fazendo reforço três vezes por

semana com a professora da segunda série e, que com ela parece que

eles fazem um pouco mais”. (RA9)

se eles são copistas, pelo menos estão fazendo alguma coisa’”. (RA

10)

Essa alguma coisa que eles estavam fazendo, a que se referia a professora, nada

mais era do que exercícios de cópia. A crença de que a habilidade motora e a prática da

caligrafia levam à boa escrita, permeia os ideários pedagógicos há muito tempo.

Em seu artigo sobre as experiências realizadas com a caligrafia muscular nos

anos de 1930, Vidal (1998) retoma os preceitos higienistas da época, que se

preocupavam em normatizar a escrita, racionalizar o espaço escolar e o espaço corporal

dos alunos. Dessa normatização da escrita provém dos cadernos de caligrafia, pois como

explica a autora

A boa escrita, caracterizada como a escrita clara, legível, rápida, elegante e

com certa liberdade de execução, só poderia ser realizada através da técnica

da caligrafia muscular, baseada em movimentos ritmados do antebraço,

cujo resultado era uma letra inclinada e sem talhe, uniforme no tamanho e

nas ligações, obtida por tração e não por pressão. Diferentemente das

denominações anteriores que re reportavam ao formato da letra, vertical ou

inclinada, a nova caligrafia era chamada muscular, indicando a relação

necessária entre movimento e escrita. (idem, grifo no original)

A relação que se estabelecia entre a boa escrita e os movimentos musculares

necessários para escrever, não levavam em consideração a importância de compreender

a escrita como um sistema de signos culturais, que devem ser apropriados pelos

indivíduos. Essa concepção de escrita dos anos de 1930, como podemos verificar a partir

das falas das professoras, deixou marcas profundas no sistema de ensino de nossa língua.

Por outro lado, a compreensão da linguagem escrita como um sistema de signos

culturais, é muito recente na história da psicologia e da pedagogia. O entendimento de

como as crianças aprendem a escrever ainda está em processo de formação.

Durante a apresentação da pesquisa para os alunos, um deles levantou a mão e

explicou para a pesquisadora como as crianças aprendem a escrever:

“Perguntamos se alguém queria falar alguma coisa, um dos meninos

levantou a mão e disse ‘a gente aprende a escrever rabiscando e

desenhando’”.(RA 2)

De todos os personagens da pesquisa que levantaram hipóteses sobre o processo

de alfabetização, ele foi o único, talvez por estar vivenciando o processo, que conseguiu

expressar aquilo que Vigotski (1995) afirma

Uma coisa é incontestável: a verdadeira linguagem escrita da criança (e não o

domínio do hábito de escrever) se desenvolve de modo semelhante, isto é,

passa do desenho de objetos ao desenho das palavras. (p. 197)

4.5. As Práticas Pedagógicas Produzindo Alunos Copistas e Marcas

Subjetivas

A escola produz em todos nós, alunos que por ela passamos, diversos tipos de

marcas subjetivas, que guardamos e lembramos por pouco ou muito tempo, dependendo

da intensidade com que foram gravadas. É na escola que passamos a maior parte da

nossa infância e adolescência; conhecemos amigos, colegas, companheiros, que

levaremos pela vida afora ou nos esqueceremos logo, dependendo dos sentimentos que

tenhamos tido.

Durante a pesquisa que realizamos, com 35 crianças da terceira série, convivendo

semanalmente com alunos alfabetizados e não alfabetizados, presenciamos muitas

histórias de sofrimento, a produção de muitas marcas subjetivas gravadas intensa e

negativamente. Também presenciamos histórias de alegrias, amizades e esperança, mas

essas foram poucas.

Entendemos que para compreender o processo de produção e manutenção do

fenômeno do copismo, é preciso conhecer as condições reais nas quais se fizeram e, isso

implica em saber quais foram os sofrimentos pelos quais os alunos copistas passaram.

O trabalho com emoções que essa dissertação traz, é com a intenção de buscar

conhecer o sentido da escrita para os alunos copistas, mas entendendo que o sentido

pessoal é construído a partir de relações sociais concretas.

Martins (2005), ao discutir esse tema, o sentido pessoal, explica como se dá essa

relação

Consideremos que o processo ativo que coloca o homem em relação com o

mundo e com os outros homens suscite reações emocionais e sentimentos

mediadores da relação do indivíduo para com o experenciado, e que

contribuem ou não para a construção de seu sentido pessoal. (p. 123)

É, portanto, a partir das relações, que construímos ou não os sentidos que

atribuímos às coisas de nossas vidas. Esses conceitos ajudam a construir não uma, mas

várias respostas para a pergunta que norteou toda essa pesquisa, qual o sentido da escrita

para o aluno copistas.

Partindo da compreensão que os sentimentos e as emoções vivenciadas de forma

negativa, contribuem com a possibilidade de não construir sentido pessoal, sobre uma

determinada experiência, e lembrando que Leontiev (1978, p. 97) explica que “para

encontrar o sentido pessoal devemos descobrir o motivo que lhe corresponde”, vamos

conhecer quais foram as experiências pelas quais os alunos copistas passaram.

4.5.1.. Caderno de Reforço

Não podemos deixar de ressaltar um fato muito interessante que acompanhou os

alunos copistas durante todo o ano letivo: o caderno de reforço feito pela professora da

3a. série.

No segundo semestre, a professora nos contou que desde o começo do ano estava

fazendo um caderno de atividades para os alunos copistas, mas que não sabia se daria

certo porque não sabia alfabetizar. Esses cadernos continham atividades de escrita que

eram colados nas folhas, cujo material didático havia sido fornecido por uma colega

dela, também professora.

Os excertos a seguir mostram os alunos fazendo as atividades do caderno de

reforço e foram retirados de diversas observações:

“A professora pede que os alunos copistas nos mostrem o caderno de

atividades que ela está fazendo para eles. Quase todas as atividades

são de cópia! Existe uma atividade na qual eles devem classificar as

palavras de oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas. Ela nos explica

que está fazendo esse caderno ‘para ver se ajuda alguma coisa’, mas

como ela não é alfabetizadora acha que não vai dar muito certo”. (RA

9)

“Daniela pediu para a pesquisadora ver seu caderno, enquanto olhava

o de outra aluna. Vimos seu caderno de reforço, fez até o exercício da

letra ‘c’. Vou folheando. Quando chegamos no ‘m’, ela reconhece a

letra. Pedimos para ler ‘miado’ ele lê ‘macaco’. A pesquisadora não

corrige, pois ela pensa estar lendo”. (RA11)

“Daniela está do lado da pesquisadora fazendo o caderno de reforço

dado pela professora, ou melhor, está copiando o que a professora

colou no caderno”. (RA 13)

“A pesquisadora vai até a carteira do Bruno, pede para ver seu

caderno, ele mostra o da sala e o do reforço, dado pela professora, que

acrescentou umas colagens com frases para ele copiar. Ele copiou

algumas coisas, mas pulou palavras”.(RA 13)

Após algumas análises desse material dado pela professora para todos os alunos

copistas, verificamos com a orientadora deste trabalho, que se tratava de fotocópia

reduzida da Cartilha “Caminho Suave”10, contendo todas as lições de todas as famílias

silábicas, de diferentes edições da cartilha ao longo de suas edições.

É interessante considerar como um instrumento usado no espaço escolar por

tanto tempo e tão controverso, volta “repaginado”, assumindo status de material didático

10 Anexos D.

eficiente no ensino da linguagem escrita, sem que a professora saiba do que se trata esse

material efetivamente.

Mortatti (2000), ao analisar a utilização histórica da cartilha no espaço escolar,

afirma que “a partir dos anos de 1980, passa-se a questionar programaticamente a

necessidade dos métodos e da cartilha de alfabetização, em decorrência da intensa

divulgação, entre nós, dos pensamentos construtivistas e interacionistas sobre

alfabetização”, pois com o advento do construtivismo, ressalta-se a importância de como

se aprende, em detrimento do como se ensina.

Desta forma, preocupados com a forma como os alunos aprendem, os pedagogos,

adeptos ao construtivismo, aboliram o uso das cartilhas no espaço escolar por

entenderem que estas eram incompatíveis com a relação com as quais a crianças

estabelecem com o universo escrito, muito mais amplo e rico do que o encontrado em

frases prontas e sem sentido.

O que se verifica na prática de sala de aula do professor é que sem a cartilha,

muitos ficaram sem saber o que fazer, sem saber como ensinar os alunos a ler e escrever,

pois não compreenderam o que foi explicado pelo construtivismo, como os alunos

aprendem. A solução foi transformar o instrumento de ensino em material didático, ou

seja, introduzir de forma encoberta a cartilha em sala de aula “apenas para consulta

quando da preparação de suas aulas, e no ensino e aprendizagem do modelo de leitura e

escrita”. (idem)

A seguir apresentamos um fato ocorrido com Breno a partir de uma lição do seu

caderno de reforço, que demonstra o quanto a imaginação de uma criança pode

transcender as limitações das frases da cartilha:

“A pesquisadora vai folheando junto com Breno seu caderno de reforço.

Pedimos para ele ler ‘cartaz’, ele consegue decodificar as letras, mas não consegue

juntar a palavra. Uma aluna está do nosso lado e lê a palavra. Ele relaciona cartaz com

satanás, e dá risada. Pedimos para ele escrever satanás, ele escreve uma palavra que não

dá para ler, dizemos que não é daquele jeito que escreve e mostramos como é. Ele diz

que não sabe e que por isso vai desenhar. Desenha e fala que é o diabo, faz outro

desenho, do satanás”. (RA 13)

4.5.2. O Interesse dos Alunos Copistas pelas Atividades Pedagógicas

Apesar das explicações do senso comum sobre o fenômeno do copismo

culpabilizarem as crianças por não aprenderem a ler e escrever, justificando sua falta de

interesse pelos conteúdos escolares, os alunos copistas pesquisados demonstraram

interesses por diversas atividades pedagógicas durante o ano letivo.

Infelizmente, por causa das condições concretas da sala de aula – como

organização do espaço físico e das atividades pedagógicas, as relações sociais entre

alunos e professora, concepções pedagógicas, dentre outras – não é possível criar

condições de maior contato entre os alunos que não estão ainda alfabetizados e os

materiais didático-pedagógicos, o que ajudaria no seu processo de aprendizagem.

Devido a esses fatores, os alunos copistas não tiveram mais espaços nos quais pudessem

se interessar pelas atividades pedagógicas, por isso apenas alguns exemplos serão

apresentados.

Num dia em que a maioria dos alunos tinha saído da sala de aula para ensaiar a

quadrilha da Festa Junina, aconteceu um episódio muito interessante, que relatamos a

seguir:

“Breno vem perto de nós com um livrinho, pedindo para ler. O título

era “A espada era a lei”, uma das histórias sobre o Rei Arthur.

Perguntamos para a professora se ele tinha alguma atividade para

fazer, ela responde ‘leitura’. Perguntamos se podemos ler a história e

ela diz que sim. Outros cinco alunos se aproximam. Gabriel pega o

caderno com anotações e lê algumas coisas. Diz: “agora eu sei o que

você faz aqui”, “o quê?”, perguntamos, “você escreve tudo o que a

professora fala e o que os alunos falam para a professora”. Conta sua

descoberta para o colega que está do lado. Começamos a ler a

história, que de repente acaba. O livro havia sido colado com outro.

Os alunos escolhem outro livro, “O Espantalho Inteligente”, do Pedro

Bandeira. Lemos até os outros alunos voltarem”. (RA 5)

Importante notar como o interesse pela atividade de leitura partiu de Breno, um

aluno que não sabe ler nem escrever, mas que aprendeu o significado social da leitura e,

como esse seu interesse mobilizou e despertou em outros alunos a vontade de ouvir uma

história. Essa atividade só foi interrompida porque os demais alunos voltaram para a sala

e a professora começou outra atividade.

Como expusemos em outros momentos, apenas uma vez observamos a

professora realizar uma atividade de leitura com os alunos, de forma individual. A

leitura coletiva de um livro nunca aconteceu e esse seria um bom momento para integrar

4.5.3. Os Momentos da Cópia

Essa parte da análise compreende como a cópia comparece na produção escrita

dos alunos de modo geral e como os alunos copistas se relacionam com a construção

desse fenômeno chamado copismo, que aqui não é entendido como um atributo ou uma

capacidade natural das crianças, mas como uma construção cultural possibilitada pela

dificuldade de compreender como se dão os processos de apropriação da linguagem

escrita.

Não é nossa intenção nesse trabalho analisar os diversos métodos de ensino da

linguagem escrita existentes e optar por um deles, resolvendo assim, um problema

histórico da alfabetização brasileira; mas apenas apontar e refletir sobre os resultados

concretos dos processos de alfabetização, vivenciados por um grupo de alunos que sofre

por não aprender a ler e escrever.

A cópia, historicamente, tem ocupado grande espaço nas atividades de sala de

aula e, é por meio dela, utilizando mais freqüentemente a lousa como instrumento

fundamental, que a professora transmite as informações que julga importantes para os

alunos; é uma forma de comunicar a todos as mesmas informações, fazendo-as visíveis e

acessíveis a todos. (SANTOS, 2002)

Copiar faz parte das atividades comuns a todos os alunos, mas como saber quem

é o aluno que só copia e que não entende o que está copiando?

Na primeira visita à escola, estabelecemos com a diretora os critérios de

avaliação para considerar os alunos como copistas ou não; esses critérios são melhor

explicados nos exemplos a seguir:

“A professora nos aponta um aluno; pede para ele trazer seu caderno.

Quase todo o conteúdo que foi passado na lousa foi copiado

corretamente. Quando vemos as atividades que ele deveria realizar

sozinho, não foram feitas”. (RA 1)

“Conversamos sobre outro aluno. Pedimos que ele traga o caderno;

ele traz. Similarmente ao caderno anterior, este caderno contém as

atividades escritas na lousa, mas não as atividades que deveriam ter

sido feitas pelo aluno”. (RA1)

Consideramos copistas os alunos que realizavam cópia das atividades dada pela

professora, mas que não sabiam escrever sozinhos ou ler aquilo que haviam copiado. Ao

longo da pesquisa, os alunos copistas mostraram que compreendiam essa sua condição

demonstrando muito sofrimento.

Mas uma das passagens mais interessantes durante a pesquisa, aconteceu assim

que chegamos na escola, no primeiro contato que tivemos com um dos alunos copistas,

Mateus, que foi transferido no meio do ano:

“Essa é a primeira vez que vamos à escola e conhecemos esse menino

muito esperto, falador. Corria descalço pelo pátio. Perguntamos seu

nome e o que estava fazendo correndo àquela hora.

M: Vou falar com a diretora.

P: ela está ocupada, falando com outro aluno.

M: Ah.... E você, que tá fazendo aqui?

P: eu também vim conversar com a diretora.

M: pra quê?

P: para ver se ela me deixa fazer uma pesquisa na escola.

M: o que é isso?

P: eu estudo como as crianças aprendem a ler e escrever.

M: eu não sei ler nem escrever.

P: você não sabe ler nem escrever nada?

M: Não. Eu só escrevo copiando de algum lugar.

P: em que série você tá?

M: 3 ª

P: quantos anos você tem?

M: 9.

Pego meu diário de campo e pergunto se posso escrever seu nome.

Ele diz que sim. Escrevo.

M: (olha o que escrevi) Esse é meu nome. Eu sei escrever meu nome.

P: que mais você sabe escrever?

M: mais nada.” (RA 1)

Essa passagem aconteceu antes mesmo do encontro com a diretora, antes de

estabelecermos os critérios de avaliação dos alunos copistas. O que esse aluno expressou

tão claramente justifica a realização deste trabalho, pois a existência do copismo em sala

de aula significa que crianças concretas estão vivenciando esses processos de fracasso da

escola.

Apesar da capacidade para realizar o que chamamos de cópia perfeita – copiar

exatamente o que está na lousa, ter compreensão espacial do caderno, escrever as

palavras corretamente – nem sempre os alunos copistas realizavam a cópia, e nunca

conseguiam ler aquilo que tinham copiado, como vemos nos exemplos tirados de

algumas observações:

“Cristina começa a copiar a atividade, acompanhamos. Ela copia

exatamente como está na lousa. Pedimos que ela leia o enunciado, ela

não consegue”. (RA 8)

“Vemos o do Breno. Ele está copiando, observamos que tem bastante

coisa escrita. Ele copia, perguntamos se ele tem feito tudo ele diz que

sim. Pedimos para ver o caderno. São fragmentos de atividades

copiadas em diferentes dias, mas sem resolução. Ele termina de

copiar e se distrai”. (RA 8)

“Continuamos observando Cristina, ela copia tudo que está na lousa.

Vemos o caderno da Daniela, que também é copista. Tem algumas

coisas copiadas, mas hoje ela copiou muito pouco. Pedimos que leia

algumas coisas, ela não consegue”.(RA 8)

“Breno está sentado mais à frente. Ele começou a copiar da lousa mas

diz que não quer continuar”.(RA 13)

Percebemos que os momentos de cópia oscilavam entre totalmente sem sentido

ou como uma forma de aproximar o aluno das atividades que estavam sendo feitas na

sala de aula. Apesar de algumas vezes não realizar a cópia, a maioria das atividades

passadas na lousa eram copiadas, porque essa era a tarefa que os alunos copistas haviam

internalizado, era o que eles sabiam fazer, copiar. Durante a pesquisa, ficou muito claro

que os alunos sabiam que não conseguiam escrever sozinhos, mas em alguns momentos

pareciam acreditar que sabiam escrever quando copiavam.

Em algumas observações, percebemos que depois de copiar o que estava na

lousa, os alunos copistas sentiam-se satisfeitos por terem terminado de fazer suas

obrigações, pois quando perguntávamos se eles não iam fazer os exercícios, eles

afirmavam que já tinham terminado.

No excerto a seguir, relatamos quando pedimos para um dos alunos copistas

copiar o que estava na lousa, contra sua vontade, para saber como ele faria a atividade:

“Bruno, um dos alunos que é considerado copista, sentou-se ao lado

da pesquisadora. É um menino que fala bastante. Ele estava

brincando. Perguntamos se ele não vai copiar, ele acena que não.

Perguntamos onde está seu caderno, ele responde que na sua carteira.

Pedimos para ver. Ele traz o caderno. Somente duas folhas estão

escritas, incompletas. Perguntamos se é do ano inteiro ele responde

que sim. Começamos um diálogo.

P: você não vai copiar?

B: eu não sei ler nem escrever.

P: você sabe copiar?

B: sei.

P: você não vai copiar?

B: não gosto.

P: copia para eu ver como você faz.

(Ele copia o primeiro item do exercício e me mostra. A cópia é

perfeita. Falta um número)

P: não está faltando um número? (ele olha para o caderno e para a

lousa)

B: o nove. (Arruma e pára de copiar. Começa a brincar)

P: você não vai mais copiar?

B: não gosto.

(Me mostra um desenho, diz que gosta de desenhar)” (RA2)

Algumas vezes, foi possível notar um movimento de retrocesso na realização da

atividade de cópia da lousa, do cabeçalho, por exemplo. Isso pode ser explicado pelo

movimento dialético presente na aquisição da escrita, explicado por Luria (1989, p. 180)

“a escrita não se desenvolve, de forma alguma, em uma linha reta, com um crescimento

e um aperfeiçoamento contínuos”. Isso significa que o desenvolvimento da escrita é

processual, acontece o tempo todo e todos os dias da criança na escola. Da mesma forma

acontece com a construção ou não do sentido pessoal da escrita para a criança.

“Breno começa a fazer a atividade. Copia o cabeçalho com o nome da

escola, cidade e data. Perguntamos se ele sabe que letra é “m” (de

Marília) ele diz que não. Perguntamos se sabe o que está escrito, ele

responde que não. Consegue identificar a palavra Marília, mas não

consegue ler. Leva 10 minutos para copiar o cabeçalho”.(RA4)

“Kelvin, que é um aluno alfabetizado, está sentado atrás da

pesquisadora, até 13:20min não tinha terminado de copiar o ‘dizer de

Deus’. Professora apaga e ele fica frustrado, mas não fala nada. Outro

aluno conta o acontecido para a professora, ela manda-o copiar do

caderno do colega”.(RA 4)

“Cristina vem mostrar seu caderno, o que copiou da lousa.

Percebemos que faltam algumas palavras, as últimas da frase.

Mostramos para ela e ela diz que pulou porque não cabe na linha do

caderno. Explicamos como fazer, ela corrige”. (RA 13)

“Marcos pede para a pesquisadora ver seu caderno. Vimos que em

alguns momentos ele fez a mesma coisa que a Cristina, em outros

copiou tudo, mas percebemos também que ele tem mais dificuldade

para escrever, algumas palavras estão escritas erradas”.(RA 13)

Mesmo os alunos alfabetizados, algumas vezes tiveram dificuldades em copiar o

que estava na lousa, como visto no exemplo acima. Além disso, copiar do caderno de

algum colega, quando o aluno tinha faltado à aula ou o trecho em questão já tinha sido

apagado, também era prática freqüente na organização das atividades em sala de aula.

“Matheus Santos é um dos alunos que está conversando. A professora

manda-o terminar de copiar a matéria do dia que faltou”.(RA 9)

Copiar do caderno do colega permitia que o aluno recuperasse a matéria e as

atividades dadas no dia em que havia faltado, mas por outro lado, realizar essa ação no

horário da aula, atrapalhava as outras atividades que a criança deveria fazer junto com os

colegas.

Devido à realização da cópia da matéria e exercícios do dia em que faltara, ou

por ficar conversando com os colegas de sala, algumas vezes os alunos não terminavam

de fazer as atividades do dia, então a professora ameaçava passar pelas carteiras para

verificar se haviam feito a tarefa do dia, mas logo em seguida dizia que teriam até o dia

seguinte para terminar as tarefas. Vemos a seguir um exemplo de uma dessas

observações:

“A professora pede que fiquem em silêncio e diz que ‘quer tudo

copiado e que vai passar de carteira em carteira olhando se fizeram

tudo’. Ela também lhes dá a possibilidade de terminar os exercícios

em casa, dizendo que ‘amanhã tem que estar tudo feito’”. (RA 2)

Um dos alunos copista diz que realizou a atividade sozinho e nos explica como

fez o caça-palavras, pedimos que ele leia mas ele não consegue, também não consegue

explicar como fez a cruzadinha. Pensamos ser provável que ele tivesse executado

sozinho a atividade de encontrar as palavras referentes ao texto no caça-palavras, pois é

uma atividade de fácil execução, é fácil encontrar as palavras, pela semelhança; mas não

descartamos a hipótese de que tanto a cruzadinha quanto o caça-palavras tivessem sido

copiados de algum colega.

“Breno vem conversar. Pedimos para ver sua atividade. É um caça-

palavras e uma cruzadinha de um texto sobre tempestade. Ele diz que

fez tudo sozinho e complementa dizendo que está escrevendo.

Pedimos que ele leia o que fez, ele não consegue, diz que não sabe.

Perguntamos como ele fez, ele diz que procurou as palavras que

apareciam em negrito no texto e as achou no caça-palavras, mas não

consegue explicar como fez a cruzadinha”. (RA 6)

Em comparação com essa atividade do aluno copista, um aluno alfabetizado

explica como realizou as suas tarefas

“Pedimos para ver as folhas de atividade de Felipe, sentado à minha

frente. A letra é muito mais bem feita que a do Breno. Perguntamos

como ele fez. Ele me explica todos os passos que utilizou para

executar a atividade. Pedimos que leia algumas coisas, o que ele

realiza corretamente”. (RA 6)

A cópia, que esse aluno fazia das atividades dos colegas, confirmou-se

posteriormente, quando perguntamos à aluna que sentava atrás dele e ela nos disse,

como se contasse um segredo, que ele copiava tudo dela.

“Daniela vem mostrar o que fez. Completou todas as cruzadinhas com

letras, mas nenhuma formou uma palavra. Pedimos para ficar com a

cruzadinha, ela dá. Vamos ver o que Breno fez. Toda a cruzadinha

está completa. Perguntamos se ele que fez, diz que sim. Perguntamos

se copiou, ele diz que copiou da colega que senta atrás. Pedimos para

ele tentar fazer sozinho, ele diz que não sabe. Perguntamos para a

aluna de trás se ele tem copiado dela, ela diz que tudo, como se me

confessa um segredo”. (RA10)

Após essa exaustiva apresentação das experiências pelas quais os alunos copistas

passaram e, depois de todos os exemplos apresentados sobre os momentos de cópia

vivenciados pelos alunos, nos remetemos a Martins (2005), que também discute sentido

pessoal, para tentar compreender como o sentido da escrita vai se construindo para os

alunos copistas.

Lembramos que, em sua análise sobre o sentido, a autora está se referindo a

pessoas que compreendem o que estão fazendo na escola, que sabem ler e escrever, mas

que não atribuem sentido ao que fazem.

Nessas condições desintegra-se a unidade entre o significado e o sentido destas atividades. As atividades escolares possuem uma significação para a pessoa, mas apenas na medida em que são necessárias para futuras operações de trabalho. Na medida em que essas atividades encontram-se subjugadas a esta esfera de significação, os motivos encontram-se condicionados pelos fins, ou, por outra, os primeiros encontram-se determinados pelos segundos e não seu contrário. Como conseqüência, ocorre um esvaziamento da própria construção do sentido pessoal destas atividades, comprometendo sobremaneira a expressão do sentido no significado. Assim sendo, as atividades escolares têm seu significado empobrecido quanto mais são determinadas por significações para com as quais o indivíduo não mantém uma relação pessoal efetiva e consciente. (p. 130-131, grifo nosso)

Dito de outra forma, as atividades escolares perdem sua significação na medida

em que os alunos se afastam, ou são afastados, dos seus significados.

É exatamente isso que observamos nos alunos copistas, eles compreenderam o

significado cultural da escrita, e demonstram isso quando pediram que lêssemos uma

história ou quando tentavam expressar suas idéias numa redação.

O fato é que, como os motivos da atividade – escrever – não têm uma finalidade

para eles – para que – não acontece a construção do sentido pessoal. Ou seja, a escrita

não tem sentido para os alunos copistas e, possivelmente, nunca terá, pois sua

significação está muito distante da sua realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho apresentado objetivou compreender o sentido da escrita para o aluno

copista, a partir de exaustiva presença da pesquisadora numa sala de aula de terceira

série com quatro alunos que não aprenderam a escrever. Os resultados desta pesquisa

indicam aquilo que supúnhamos ao propor este trabalho: não é possível para o aluno

copista construir um sentido sobre a escrita a partir dos motivos que o levam a escrever.

Leontiev (1978, p.97) explica que “para encontrar o sentido pessoal devemos

descobrir o motivo que lhe corresponde”, portanto, se queremos saber qual o sentido da

escrita para o aluno copista, devemos descobrir qual é o motivo que o aluno tem para

escrever, qual é a finalidade da linguagem escrita para ele.

Se ao longo de sua história escolar a criança não aprendeu para que serve a

linguagem escrita, a sua finalidade e, como pode utilizá-la, como auxiliar mnemônico ou

para expor suas idéias, podemos supor que não há motivo para a criança escrever.

As análises das atividades realizadas pelos alunos originaram-se na concepção de

é a partir da atividade que os indivíduos apropriam-se das objetivações humanas e, que

para Luria (1989) a compreensão da escrita só se dá a partir da atividade da escrita, ou

melhor, é na realização da atividade escrita com a mediação do adulto que os alunos

deveriam apropriar-se da linguagem escrita.

Podemos afirmar que, durante o desenvolvimento deste trabalho, a construção do

sentido da escrita para o aluno copista foi compreendida na relação estabelecida entre o

aluno e as atividades de escrita, observadas no contexto da sala de aula que foram

produzidas.

Percebemos que as crianças não tinham motivos reais para escrever, pois as

atividades de escrita propostas pela professora, em quase sua totalidade, consistiam de

cópia, ou da lousa ou nos cadernos de reforço. Os motivos observados para a realização

da escrita encerravam-se em si mesmos, visto que as atividades feitas pelos alunos

copistas eram a cópias das atividades propostas pela professora e, por diversas vezes

apareceram em sua fala, quando ela dizia que “queria tudo copiado”.

A prática da cópia, tão antiga quanto comum no espaço escolar, tem a

possibilidade de colocar a criança em contato com a linguagem escrita, quando ela ainda

não é capaz de escrever sozinha, dando a criança a possibilidade de imitar a escrita do

adulto, que tem importante papel na aprendizagem. (VIGOTSKI, 1998)

Porém, essa atividade não pode ser utilizada como um fim em si mesma,

devendo ser vista como uma das técnicas auxiliares do processo de alfabetização, porque

senão corremos o risco de ao invés da cópia colaborar para o desenvolvimento motor da

criança, transformá-la em um instrumento de limitação das possibilidades humanas dos

alunos envolvidos no processo de alfabetização.

Precisamos, portanto, possibilitar que haja uma mudança de motivo nas

atividades realizadas pela criança no interior da sala de aula. Se o motivo para a criança

fazer a tarefa, ou escrever, for somente o de passar no exame ou ser promovido para uma

série superior, ela não compreenderá o verdadeiro sentido de realizar tais atividades, que

é o de aprender e, assim desenvolver características psicológicas essencialmente

humanas, as Funções Psicológicas Superiores.

Como explica Leontiev (1978), é na realização da atividade que é possível fazer

essa mudança de motivo

Como se faz a mudança de motivo? A resposta é simples. Em certas condições, o resultado da ação conta mais que o motivo que realmente suscita a ação. A criança começa por fazer conscientemente os seus deveres para poder mais rapidamente ir brincar. Mas o resultado é bem maior: não apenas pode ir brincar, como ainda ter boa nota. Produz-se uma nova “objetivação” das suas necessidades, quer isto dizer que elas se elevam de um grau. (p. 299-300, grifo nosso)

O “resultado da ação”, de um aluno copista, aconteceria se ele pudesse escrever

sozinho uma palavra. Para que isso acontecesse, alterando o motivo da escrita deste

aluno, seria necessário uma prática pedagógica intencional por parte do professor no

sentido de alfabetizar o aluno, possibilitando que ele adentrasse ao mundo da linguagem

escrita, compreendendo seus significados.

Entretanto, se é possível permanecer em uma sala de aula sem aprender a

escrever e, mesmo assim ser promovido a uma série superior, sem que os participantes e

responsáveis pelo espaço escolar não se mobilizem no sentido oposto a essa realidade,

realmente não há motivo para a criança aprender a escrever.

Os alunos copistas pesquisados aprenderam ao longo destes anos na escola o

significado social da linguagem escrita, mas não estão aprendendo um motivo para

aprender essa linguagem, visto que estão em um contexto escolar que possibilita que

eles participem sem escrever.

Pudemos constatar a partir das observações e análises que realizamos ao longo

deste trabalho, que o copismo por si mesmo, não leva à escrita consciente, pois dos

quatro alunos pesquisados ao longo do ano letivo, apenas uma aluna terminou o ano

escrevendo. Como explicamos no capítulo anterior, este fato só foi possível pela

intervenção direta e intencional de sua tia, também professora, que se propôs a

alfabetizá-la.

Isto demonstra que ― ao contrário do que afirmam as teorias pedagógicas que

defendem a escrita mecânica ou a caligrafia muscular como facilitadoras de uma boa

escrita ―, a prática da cópia esvaziada de significado não possibilita a apropriação da

linguagem escrita e muito menos a formação de sentido pessoal.

É importante levantar essa discussão sobre a construção pedagógica dos alunos

copistas no interior da sala de aula, para que os profissionais da educação, como

professores, pedagogos e psicólogos escolares, possam pensar e criar ações práticas e

eficientes para o ensino da linguagem escrita.

Consideramos, desta forma, que é necessário repensar a estrutura educacional

brasileira que cria condições para o surgimento de problemas tão graves no interior da

escola. Também precisamos promover ações junto aos professores para refletir essa

situação e pensar em possibilidades de transformar essa realidade.

Entendemos que para reverter essa realidade e possibilitar que os alunos copistas

aprendam a escrever, é preciso um comprometimento político e uma prática intencional

do professor alfabetizador.

Como os trabalhos e estudos referentes à apropriação da linguagem escrita ainda

são poucos, muitas são as dúvidas sobre como as crianças aprendem a escrever, o que

acaba por criar práticas pedagógicas inconsistentes e empíricas.

Esta pesquisa demonstra, portanto, que é necessário aprofundarmos os estudos

sobre a escrita em uma abordagem histórico-cultural, desvelando os processos

educacionais, pedagógicos e subjetivos presentes na apropriação dessa modalidade de

linguagem fundamental na constituição do processo de humanização.

A abordagem histórico-cultural nos permite compreender que o processo

educativo não é espontâneo e natural, mas deve ser realizado intencionalmente pelos

responsáveis pela educação.

Este estudo copistas explica que o fenômeno do copismo é criado no interior da

sala de aula pelo contexto educacional que temos hoje. Observamos que os alunos

copistas interessam-se pelas atividades pedagógicas, chegando a solicitar que a

pesquisadora realizasse leituras e passasse atividades no caderno. Essa compreensão

social de um problema pedagógico freqüente, é fundamental para o trabalho do

psicólogo escolar, pois amplia seu olhar para a construção do fenômeno psíquico.

Após todos esses anos de discussões críticas sobre as causas do fracasso escolar

de milhares de crianças brasileiras, é chegada a hora de pensarmos quais foram e são as

marcas subjetivas produzidas em nossos alunos. Os alunos copistas são apenas uma

parte dos muitos problemas de alfabetização. Muitos outros ainda precisam se estudados

e compreendidos.

Entendemos que esta pesquisa é apenas parte de um movimento presente na

Psicologia Escolar Crítica, de compreensão e superação das dificuldades encontradas na

escola. Também sabemos que precisamos aprofundar nossos estudos a respeito da

compreensão e apropriação dos processos pedagógicos e subjetivos da linguagem

escrita, contribuindo assim, para a humanização dos trabalhos educativos.

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ANEXOS

ANEXO A TABELA DE VISITAS À ESCOLA

DIA

HORÁRIO

DURAÇÃO

ATIVIDADE DESENVOLVIDA

01/06/2005

Primeira visita a escola (RA 1)

06/06/2005

15:30-17:10

1h40min

Observação em sala de aula (RA 2)

20/06/2005

15:30-17:10

1h40min

Observação em sala de aula (RA 3)

27/06/2005

12:40-14:40

2h

Observação em sala de aula (RA 4)

04/07/2005

13:30-14:40

1h10min

Observação em sala de aula (RA 5)

04/08/2005

13:20-14:30

1h10min

Observação em sala de aula (RA 6)

11/08/2005

13:20-14:30

1h10min

Observação em sala de aula (RA 7)

23/08/2005

13:20-14:30

1h10min

Observação em sala de aula (RA 8)

15/09/2005

13:20-14:40

1h20min

Observação em sala de aula (RA 9)

29/09/2005

15:30-18:00

2h30min

Observação aula de artes, observação em sala de aula, observação aula de reforço (RA 10)

06/10/2005

13:40-14:50

1h10min

Observação em sala de aula (RA 11)

25/10/2005

14:00-15:30

1h30min

Entrevista com Breno e Cristina

27/10/2005

15:45-16:45

1h

Entrevista com Daniela e Marcos

05/11/2005

13:20-14:30

1h10min

Observação aula de artes. Alunos assistiram “Cinderela”

10/11/2005

Aplicação SARESP

11/11/2005

13:20-14:30

1h10min

Observação aula de artes. Alunos Continuaram assistindo “Cinderela”. Conversa com professora.

17/11/2005

13:30-14:30

1h

Observação em sala de aula (RA 12)

29/11/2005

13:30-15:00

1h30min

Observação em sala de aula (RA 13)

09/12/2005

13:30-14:30

1h

Conversa com professora. Último dia de aula.

ANEXO B

FRASES DO DIA

20/06/05 (RA 3): “Ensine os mais velhos a serem moderados, sérios, prudentes e firmes

na fé, no amor e na perseverança”. Tito 2:2.

27/06/05 (RA 4): “...Ao domínio próprio juntem a perseverança e à

perseverança a Devoção a Deus”. Pedro 1:6.

04/08/05 (RA 6): “Como é grande a tua bondade que reservaste aos que te

temem, da qual usas, perante os filhos dos homens, para com os que em ti

se refugiam”. Salmos 31:19.

17/11/05 (RA 12): “E vocês, jovens sejam obedientes aos mais velhos. Que todos

prestem serviços uns aos outros com humildade, pois as escrituras sagradas dizem: Deus

é contra os orgulhosos, mas dá graça aos humildes”.. Pedro 5:5.

29/11/05 (RA 13): “Se eu, O Senhor e O Mestre, lavei os pés de vocês, então você deve

lavar os pés uns dos outros”. João 13:14.

ANEXO C EXEMPLO DE REGISTRO AMPLIADO

RA 10- 29/09/05 15:30-18:00 (2h30min) As observações de hoje dividem-se em três momentos: aula de educação artística, aula com a professora titular e aula de reforço. Cheguei logo após o recreio ter terminado. Encontrei com a professora titular no pátio. Uma das funcionárias da escola chamou-a e disse que tinha dado bronca nas meninas da sala porque elas estão “mexendo” com os meninos. “Elas ‘mexem’ com eles e se escondem no banheiro”, disse. A professora perguntou quem era e citou alguns nomes, a funcionária disse que eram quase todas e, que na próxima reunião será necessário conversar com as mães e pedir que elas “coloquem um freio nessas meninas”. A professora concordou, dizendo que elas fazem a mesma coisa na sala de aula; completou dizendo que um dos meninos “que não é gente e adora uma bunda” passa a mão ou pega na cintura das meninas. Então as meninas reclamam e ela diz que se elas não estivessem perto dele isso não aconteceria. A conversa se encerrou e pensei ser melhor retomar essa conversa em outra ocasião, já que minha opinião não foi pedida e o trabalho que desenvolvo na escola é de outra natureza. Subimos as escadas que levam para a sala e relatei minhas intenções de trabalhar com os alunos copistas em outros espaços fora da sala. A professora disse que eu poderia fazer o que quisesse, já que “eles não fazem nada na sala mesmo”. Ela me avisou que era aula de educação artística, mas que eu poderia participar. Abriu a porta e pediu licença, avisando que eu desceria com a turma para a sala apropriada. 15:30-16:20: A professora de educação artística, que eu não tinha conhecido ainda, estava falando sobre um concurso de desmatamento, para o qual os alunos devem fazer um desenho. Para abordar o tema, ela começou a perguntar o que era a Natureza, e disse que Deus havia preparado a Natureza para nós. Continuou dizendo que o homem está destruindo essa natureza, com queimadas, desmatamentos, poluição etc. Perguntou o que vai acontecer em conseqüência ao desmatamento, as crianças responderam que nós vamos morrer porque não vamos respirar, já que as árvores produzem oxigênio. A professora disse que eles deviam fazer um desenho bem criativo e descemos para a sala. Os alunos ficaram muito felizes por eu acompanhá-los. Descemos as escadas conversando e percebi que a Cristina estava diferente. Perguntei o que ela tinha, respondeu que nada. Perguntei se estava triste ela respondeu que sim, mas não quis contar porquê. Entramos na sala. Eu nunca tinha estado na sala de artes. É muito colorida, com pinturas nas paredes de personagens de gibis brasileiros. Existem dez mesas quadradas com quatro cadeiras cada. Os alunos sentam-se em grupos, escolhendo com quem

sentar; a professora não interfere nas escolhas, aliás, parece importar-se muito pouco com o que os alunos fazem, em silêncio é claro. Até se organizarem, os alunos gritam muito, arrastam cadeiras, procuram seus cadernos. Alguns alunos estão sem cadernos de desenho, a professora começa a distribuir alguns. Em uma das mesas, quatro crianças estavam sentadas e mais umas quatro em volta dela. A professora distribui dois cadernos e sobrou um em sua mão. Dois meninos literalmente brigavam pelo caderno, ela ameaçava dar para um e acabou dando para o outro. Todos os alunos gritavam. A professora começou a gritar, sem ser ouvida, dizendo que ia começar a anotar. Por fim os alunos, que já estavam todos com caderno e lápis de cor, se acalmaram e ela explicou que era para desenhar árvores. Tinha um modelo na lousa, com uma árvore bastante frondosa e grande na frente, ao fundo árvores menores e uma árvore serrada. Muito mal a professora explicou o conceito de profundidade, dizendo que “quando a gente vê muitas árvores, as da frente são maiores e as do fundo menores”. Os alunos não entenderam o conceito, mas copiaram exatamente como estava na lousa; alguns “criaram” suas próprias árvores, outros fizeram exatamente igual. Estou sentada junto com Breno e Daniela. Eles adoram o trabalho de desenhar e começam a fazem enquanto a professora ainda está explicando a atividade. Breno entende o que é para fazer e faz dois desenhos. O primeiro é igual ao da professora. Ele leva para ela ver e, ganha um “parabéns” escrito no caderno. Ele me mostra, pergunto o que está escrito e ele dá os ombros, dizendo “não sei”. Outro aluno que estava por perto diz “parabéns”, ele repete para mim como se estivesse lendo. Cristina se aproxima: P: e o seu desenho? C: não quero fazer... P: o que você tem? C: dor de cabeça. P: dor de cabeça ou está triste? C: dor de cabeça, mas também tô triste... P: o que aconteceu? C: nada. P: o que você tá sentindo? C: vem aqui. (me puxa para fora da sala, virando à esquerda e verificando se não havia ninguém perto) P: o que foi? C: é que hoje eu fiquei triste... P: por quê? C: porque meu pai e minha mãe ficaram brigando.... e eu não queria vir na escola.... P: por quê? C: prá cuidar da minha mãe... P: seu pai bateu na sua mãe? (acena afirmativamente olhando para baixo) (seguro seu rosto e peço para olhar para mim) P: quantos anos você tem? C: 9

P: então, você é criança. Não é sua obrigação cuidar da sua mãe. (ela começa a chorar) É a sua mãe que tem que cuidar de você. Quantos anos ela tem? C: 28. P: a sua mãe já tem idade para cuidar dela, ela tem que resolver seus problemas. Você tem que cuidar de você, da sua vida, que é vir na escola, estudar e crescer. (continua chorando) Aí sim você vai poder cuidar da sua mãe e do seu pai. (começa a enxugar as lágrimas) C: eu quero que você fique perto de mim. P: tá bom, vou ficar.

Entramos na sala e eu a acompanho até sua mesa. Fico encostada atrás dela. Ela começa a desenhar e olha o tempo todo para ver se ainda estou lá. Ela desenha um sol sorrindo atrás de duas montanhas. Os olhos do sol estão fechado. Imito o sol e pergunto se é assim que ele está. Ela diz que sim e desenha cílios. Pergunto como escreve sol, ela olha para cima, pensando. Digo que pode escrever como acha que é. Ela pensa mais um pouco e escreve corretamente. Também escreve “ovo”. Digo que está certo e ela sorri, satisfeita. Começa a conversar com as meninas da mesa.

Algumas crianças trazem seus desenhos para eu ver. A maioria é igual ao da professora. O de um dos meninos é bem diferente, muito bonito, feito à canetinha. As árvores estão sobre duas montanhas algumas pessoas estão perto. Digo que o desenho está ótimo. Ele sorri. Mostra para a professora. Ela diz que está feio porque ele não pintou as montanhas e que não vai aceitar. Ele diz que acha feio pintar as montanhas, ela diz que tem que pintar. Ele sai frustrado dizendo que acha feio.

Uma das alunas que é ajudante da professora titular está sentada com a professora. A professora sai de perto e eu pergunto o que ela está fazendo. Ela diz que está dizendo para a professora quem é bom e quem não é e a professora está dando notas, passando no diário a média dos alunos. Pergunto se ela está dando notas pela professora, ela diz que só está dizendo quem faz e quem não faz.

Volto para a mesa onde estava. Daniela fez um desenho igual ao da lousa, à lápis preto, apenas acrescentou alguns passarinhos. Mostra para a professora, ela diz que está lindo. Ela volta me contando que seu desenho está lindo e que vai colocar mais passarinhos; faz com caneta esferográfica.

Breno começa a fazer outro desenho, com lápis de cor. Desenha o tronco da árvore de marrom, pinta, desenha a copa de verde, pinta. Faz uma seqüência de cinco ou seis árvores, que ficam parecendo pinheiros. Mostra para a professora, ela diz que está muito bom, mas diz, pacientemente, que é para ele fazer um desenho por folha, e não um atrás do outro.

Vejo o desenho do Marcos. Ele desenhou apenas uma árvore, muito grande e está pintando de verde, bem forte. Tem uma pessoa no desenho, pergunto quem é, ele responde que é o serrador.

A aula acaba. A professora avisa, os alunos parecem não ouvir. Ela pede que eles saiam, eles começam a sair bem devagar.

16:20-17:10: Voltamos para a sala de aula. Sento no fundo da sala, perto do armário de ferro, que é aberto, onde os livros e cadernos ficam à disposição dos alunos.

Cristina chega perto, para conversar. Na prateleira do armário os livros estão separados por áreas. Ela olha, consegue ler “desenho” e “matemática”, mas não consegue ler “história”. Algumas crianças ainda estão chegando na sala de aula e param na mesa da professora, conversando e bagunçando. Ela grita: “ vocês vão se bater na minha mesa? E o que vocês têm no cérebro, nada? Que respeito você tem, hein, Breno!”. Pede que os alunos sentem e começa a explicar sobre o bingo que vai ter na escola. Pergunto quando é, ela me diz que é na próxima semana e me explica (explicando também para os alunos) como vai funcionar. Diz que cada aluno tem que levar uma cartelinha para casa, que custa R$ 5,00. Os pais que não quiserem podem devolver “amanhã”. A professora começa a chamar os alunos pelas fileiras para entregar a cartelinha. Breno anda pela sala. Senta na sua carteira e conversa com a menina que está atrás dele. Levanta. Mexe com a Larissa, que está sentada ao lado da professora. Professora grita muito alto para ele parar e sentar na carteira. Ele senta. Larissa, outra aluna, distribui uma cruzadinha para cada aluno. Me dá uma e puxa. Pergunta se eu quero. Respondo que sim. Ela pergunta se eu quero uma de cada (que eles já tinham feito), digo que sim e ela pede para a professora. A professora entrega para ela e pergunta se eu quero mais alguma coisa, digo que não. Daniela vem me mostrar o que fez. Completou todas as cruzadinhas com letras, mas nenhuma formou uma palavra. Peço para ficar com a cruzadinha, ela me dá. Vou ver o que Breno fez. Toda a cruzadinha está completa. Pergunto se ele que fez, diz que sim. Pergunto se copiou, ele diz que copiou da colega que senta atrás. Peço para ele tentar fazer sozinho, ele diz que não sabe. Pergunto para a aluna de trás, se ele tem copiado dela, ela diz que tudo - como se me confessa um segredo. Peço pra ficar com a cruzadinha dos dois, eles me entregam. Professora continua fazendo chamada e entregando a cartelinha do bingo. Diz que só é para as crianças fazerem a cruzadinha depois de terminar as provas de português e matemática e entregar para ela corrigir. Os alunos começam a bagunçar, professora manda Larissa (que está sentada ao seu lado) marcar na lousa quem faz bagunça. Vou até a carteira da Cristina, ela diz que fez as quatro cruzadinhas sozinha. A professora grita para as crianças ficarem quieta. Um dos alunos choraminga. A professora vai ver o que aconteceu, ele diz que perdeu algumas grafites, numa menção de que alguém poderia ter pego. Ela diz que a sala pode ter todos os defeitos do mundo, mas que ninguém pega nada de ninguém e completa: “porque eles sabem que Jesus olha os passos de cada um”. Vou ver as atividades do Marcos, ele diz que fez as cruzadinhas sozinho. Olho o caderno, algumas palavras estão bem escritas, outras estão pela metade. A aula termina e vou para a aula de reforço acompanhar os quatro alunos copistas. 17:10- 18:00- Chegamos na sala e as atividades já estão na lousa. Há uma frase depois do cabeçalho de cunho moralista, mas não é “o dizer de Deus”. A professora é tão autoritária que eu me sinto intimidada. Essa é a professora da segunda série que dá o

reforço de português e, nessa classe, estão misturados os alunos da segunda, terceira e quarta série. O reforço de matemática é dado pela professora da quarta série. Alguns alunos pedem para ir ao banheiro e ela deixa. Os meninos fazem bagunça e ela diz que “a partir da semana que vem está todo mundo proibido de ir ao banheiro”. Breno mexe com uma menina e eles correm pela sala. Peço que ele sente ao meu lado. A professora energicamente diz que é para ele sentar onde ela mandou, ele senta na primeira carteira. A professora pega uma régua grande e começa a bater na mesa, os alunos fazem silêncio. Me diz que hoje é só gramática. Entrega os cadernos. Os alunos conversam, ela não diz nada. Manda-os copiarem e diz que não quer nenhum “pio”, que não é para ninguém atrapalhar quem estiver fazendo. Há uma conversa, ela manda-os ficarem quietos. Começa a fazer a chamada, num tom de voz muito baixo, faz-se um silêncio assustador. Daniel, também da terceira série, conversa com uma menina, a professora diz que se ele falar outra vez não volta nunca mais. Ele enfrenta e diz que a colega está sem lápis. A professora arruma um lápis. Termina a chamada. Lê todos os exercícios e explica como devem ser feitos. Pede que os alunos repitam as palavras. De onde estava não pude ver se os meus alunos repetiram as palavras. Pergunto se posso passar pelas carteiras, ela autoriza. Professora vai ao banheiro, ninguém se mexe, ninguém conversa. Leandro me pergunta como resolve o exercício quatro, a professora volta, peço que pergunte para ela. Ela explica.

Professora me diz que “as três horas de reforço semanais estão ajudando bastante, não importa se eles são copistas, pelo menos estão fazendo alguma coisa”. (Em conversa anterior, a professora tinha dito que mais cedo ou mais tarde eles vão ter o “estalo” e vão ler e escrever)

Daniel termina e mostra para a professora. Ele não copiou do jeito que estava na lousa. Ela grita que é para ele fazer igual da lousa, como ela quer. Manda apagar e fazer de novo. Diz baixinho: “folgado”.

A professora avisa que faltam dez minutos para terminar a aula. Os alunos que terminaram levam para ela corrigir. A sala está num silêncio total. Eles movimentam-se sem fazer barulho.

Vou olhar os cadernos dos meus alunos. Cristina só copiou. Breno fez alguns exercícios corretamente. Daniela fez como Daniel havia feito, e teve que apagar e copiar de novo. Marcos fez tudo muito confuso, algumas palavras copiadas eram impossíveis de ler.

Os alunos vão embora em silêncio.

ANEXO D EXEMPLOS DE ATIVIDADES DE REFORÇO

ANEXO E

EXEMPLO DE MATERIAL DOS ALUNOS COPISTAS

Legenda: P: pesquisadora B: Breno P: dia 25 de outubro de 2005, entrevista com Breno. Oi Breno, tudo bom? B: tudo. P: olha, a gente conversou algumas coisas mas não estava gravando. B: tá. P: tá? Agora ta gravando e eu vou fazer algumas perguntas, você responde pra mim? B: respondo P: então tá bom. A gente tava falando da sua outra escola, né?! Como é que era mesmo sua outra escola? B: eu não sei... P: você não lembra? B: não... P: e da professora, você lembra? B: não... P: não? Você não lembra o nome dela? B: humhum... P: não? B: não. ..... P: e o que você lembra da outra escola? B: só do meu amigo! P: e como chamava o seu amigo? B: Lucas. P: Lucas... e você falou que gostava de fazer o que com ele? B: ele me dava bolacha. P: ele te dava bolacha?! Bolacha do quê? B: de chocolate. P: é a que você mais gosta? B: é. P: é?! E o seu caderno da primeira série, você tem? B: não. P: não?! Onde que tá? B: meu pai jogou no lixo. P: seu pai jogou no lixo? Por quê? B: porque ele não gosta de “tranqueira”. P: não gosta de “tranqueira”?

.... P: e a segunda série? Você lembra da segunda série? B: não... P: não?! B: não. P: você não lembra de nada? B: não. P: você não lembra de nada que foi muito legal, assim, você gostou muito, nem que foi muito ruim, que você detestou? B: não... P: não?!.... você não lembra de nada Bruno?! B: eu não gosto de lembrar. P: por quê? Foi ruim? B: (acena afirmativamente com a cabeça) P: foi? O que foi ruim? B: o carro (fala uma palavra que não entendo) P: hã? B: eu fiquei com medo de um carro. P: você ficou com medo de um carro? B: da escola! P: da escola?! Que carro que era esse? B: ele ia explodir, o carro. P: o carro explodiu? B: ia explodir, mas não explodiu não... P: como chamava sua professora da segunda série? B: não sei... P: mas foi aqui nessa escola que você estudou a segunda série? B: não P: não foi aqui? B: ... ainda não estudei aqui P: hã? B: ainda não estudava aqui. P: onde você estudava? B: na outra escola, mas eu não lembro o nome (fica desapontado) P: mas na segunda série você não tava aqui? B: hã? P: na segunda série você tava aqui... B: eu acho que eu tava... P: então, você lembra o nome da professora da segunda série? B: Maria Helena P: Maria Helena... você gostou da segunda série? B: ela dava prêmio P: prêmio? Pra quê? B: pra quem ficasse quietinho P: quietinho? Que prêmio ela dava? B: uma caixa de bombom... e uma lapiseira

P: você ganhou alguma vez? B: (acena negativamente com a cabeça) P: não?! (risos) B: (risos) eu só fazia bagunça P: você só fazia bagunça? E o que você fazia? B: hã? P: você lembra de alguma coisa que você fazia no caderno? B: eu só brincava! P: só brincava? B: você escrevia alguma coisa? B: não. P: não? B: meu caderno tava limpo. P: seu caderno tava limpo? Quantos cadernos você teve na segunda série? B: (mostra dois com os dedos) P: dois? B: eu não fiz nenhum. P: você não fez nenhum? Você não fez nada em nenhum? B: (acena negativamente com a cabeça) P: não? B: (silêncio) P: pra que a gente vem na escola, Breno? B: pra estudar! P: pra estudar? E você, gosta de estudar? B: (silêncio) P: ah, responde pra mim, vai! B: eu só gosto de fazer português... mas eu não sei P: o que você não sabe? B: de nada... P: o que você não sabe de nada? B: (silêncio) P: você não sabe nada de português? B: nem de matemática (desapontado) P: nem de matemática? Você sabe os números? B: (acena negativamente com a cabeça) P: não? B: eu sei até o dez P: até o dez? você sabe escrever, fazer o número? B: o que? Escrever o nome? P: não escrever o nome do número, desenhar o número B: o número eu sei P: sabe? Até o dez? Depois você não sabe mais? B: não P: e fazer conta? B: também não P: não?

B: eu não faço conta P: você não sabe fazer conta? B: não P: e você sabe escrever, palavra? B: não P: e ler, você sabe ler alguma coisa? B: não P: o seu nome você sabe escrever? B: sei P: sabe?! Que mais você sabe escrever? B: só! P: só?! E você nunca quis aprender a escrever? B: eu queria P: você queria? E por que você acha que você não aprende? B: não sei! P: como é que você acha que as crianças aprendem a escrever? B: a “lê”! P: como? Como a criança aprende a escrever? B: lendo! P: alguém tem que ensinar a criança a escrever? B: a professora P: a professora? e a professora Ruth, ensina você a escrever? B: ela passa coisa na lousa P: ela passa coisa na lousa, mas passando coisa na lousa você aprende a escrever? B: (acena negativamente com a cabeça) P: não? E se ela passar coisa na lousa você aprende a ler? B: (acena negativamente com a cabeça) P: na segunda série você conseguia escrever alguma coisa? B: (acena negativamente com a cabeça) P: e a professora falava alguma coisa? B: não P: não?! Deixa eu falar uma outra pergunta pra você, por que a gente escreve? B: não sei P: por que as pessoas escrevem? B: pra aprender a ler P: pra aprender a ler? Mas pra que serve as coisas que são escritas? B: pra ler P: pra ler?! E você acha que todo mundo tem que aprender a ler e escrever? B: (silêncio) ... acho que sim P: sim? Por quê? B: não sei P: é importante saber ler e escrever? B: ... às vezes meu pai chama eu de burro P: seu pai chama você de burro? B: ... e de cavalo P: de cavalo? Quando ele chama você de burro e de cavalo?

B: ela tem 10 anos P: como chama sua irmã? B: Tainá P: Tainá? Ela tem 10 anos? E você tem quantos anos? B: 9 P: e a sua irmã sabe ler e escrever? B: sabe P: sabe? E ela não te ajuda? B: (acena negativamente com a cabeça) P: não? Mas você pede pra ela te ajudar? B: ela não ajuda P: ela estuda aqui nessa escola também? B: estuda, só que cedo P: ela estuda de manhã? B: sim P: que série ela tá? B: hã? Quarta P: e a sua mãe, como chama? B: Cida P: ah, Cida... e você não tá morando com a sua mãe, né?! Quanto tempo faz que você mora com a sua tia? B: 2 anos P: 2 anos? B: eu separei da minha mãe P: você separou da sua mãe? Como assim? B: é, tinha uma briga P: teve uma briga? Quem que brigou? B: meu pai foi me buscar com o carro, pra eu num ir sozinho, que meu irmão já tinha ido, eu já tava dentro do carro, isso foi na outra escola. Aí minha mãe veio e queria me buscar também, aí, aí, aí, ela falou pro meu pai que ela que ia me buscar pra me levar pra casa dele, dela. Aí... lá tinha duas polícia, aí a polícia veio, e a professora me deu uma bala e uma folha pra mim desenhar lá fora, aí ela mandou eu ir lá fora com meu pai, aí ela foi lá na delegacia assinou um negócio P: quem que assinou? B: meu pai, aí, aí, meu pai falou um negócio, me pegou... P: ah, então deixa eu ver se eu entendi, você tava na escola, aí você ia sair da escola e seu pai foi te buscar de carro, e a sua mãe também foi te buscar, e aí seu pai e sua mãe brigaram, porque os dois queriam te buscar. Mas eles já não estavam mais morando junto? B: não P: não? B: não, porque minha mãe não gostava mais do meu pai, e ela já tinha mais um marido P: ah, ela já tinha outro marido? B: aí os dois tinham um menino com a mão e o pé torto P: é seu irmão? B: é (fala o nome do irmão)

B: eu não sei onde ela mora P: e ela não tem telefone? B: tem celular P: e você sabe o número? B: não, só sei o número do meu irmão e do meu pai. Você tem celular? P: tenho, mas eu não trouxe B: senão toca? P: é, atrapalha. Você lembrou o nome da professora da primeira série? B: nem o nome da escola P: nem o da escola?! A professora de segunda-série, como é o nome dela mesmo? B: Maria Helena P: então tá bom Breno. Obrigada por você ter conversado comigo e ter deixado eu gravar!