Upload
rafael-simoes
View
16
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
232
Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Julio Cortzar: trs vises do
conto em conjuno Roxana Guadalupe Herrera Alvarez*
Resumo:
A partir do ensaio Kafka y sus precursores, de Jorge Luis Borges (1899-1986),
faz-se uma incurso pelo terreno do conto, relacionando as vises que Edgar
Allan Poe (1809-1849), Machado de Assis (1839-1908) e Julio Cortzar (1914-
1984) possuem sobre esse gnero. Prope-se uma possvel conexo entre os
trs escritores, considerados mestres do conto, pela via da proposta do ensaio
borgeano, destacando as similaridades dos enfoques que pautam a elaborao
artstica dos contos dos trs autores. D-se destaque relao comprovada
entre Poe e Machado de Assis e entre Poe e Cortzar, expondo a possibilidade
de pensar tambm numa relao estreita entre Machado de Assis e Cortzar.
Palavras-chave:
Conto, Literatura Comparada, Allan Poe, Borges, Cortzar
Precursores: uma proposta borgeana
Jorge Luis Borges, em seu ensaio Kakfa y sus precursores (BORGES, 2007, p.
162-166), admitiu considerar Kafka um escritor singular. No entanto, com o
passar do tempo, foi percebendo sua capacidade de reconhecer a voz do escritor
em textos de diversas pocas, gneros e latitudes. Esse exerccio de
reconhecimento, sem dvida, estabelece a possibilidade de pensar a literatura
como um amplo campo de inter-relaes mediadas por parentescos nem sempre
bvios. Borges continua seu ensaio citando alguns exemplos dos textos
relacionados com Kafka, seis ao todo, em ordem cronolgica: o primeiro se
refere ao paradoxo de Zeno contra o movimento; o segundo alude a um texto
chins sobre o unicrnio; o terceiro faz meno a um texto de Lowrie que
recolhe duas parbolas de Kierkegaard; o quarto um poema de Browning
intitulado Fears and Scruples; o quinto e o sexto so dois contos, um trata da
recluso na terra natal e o outro, de uma viagem que nunca se completa.
* Doutora em Teoria da Literatura, Departamento de Letras Modernas IBILCE/UNESP/CSJRP.
233
Borges afirma que os heterogneos exemplos recolhidos por ele guardam com
Kafka e com a obra kafkiana uma estreita semelhana sem, contudo, esses
exemplos guardarem entre si a mesma relao de semelhana. Eis aqui o ponto
mais importante apontado por Borges:
Si no me equivoco, las heterogneas piezas que he enumerado se parecen a Kafka; si no
me equivoco, no todas se parecen entre s. Este ltimo hecho es el ms significativo. En
cada uno de esos textos est la idiosincrasia de Kafka, en grado mayor o menor, pero si
Kafka no hubiera escrito, no la percibiramos; vale decir, no existira. (Idem, p. 165-166)
Borges recolhe a questo central do seu ensaio nessas linhas: se Kafka no
tivesse produzido seus escritos, no seria possvel reunir os seis textos to
dspares citados por Borges. Dessa forma, possvel afirmar que Borges
estabelece um princpio bastante simples, talvez bvio, mas deveras
perturbador. O escritor determina seus precursores. o olhar retrospectivo e
no o prospectivo que determina a relao entre escritores. Logo, as obras
situadas em outros tempos e noutras culturas e lnguas se congregam ao redor
da obra de um determinado escritor graas ao poder de um ato consciente de
leitura, cuja tarefa revelar identidades esquivas. Essa afirmao est
diretamente relacionada com as primeiras linhas do ensaio de Borges: Yo
premedit alguna vez un examen de los precursores de Kafka. A ste, al
principio, lo pens tan singular como el fnix de las alabanzas retricas; a poco
de frecuentarlo, cre reconocer su voz, o sus hbitos, en textos de diversas
literaturas y de diversas pocas (Idem, p. 162). Como possvel apreciar nas
palavras do autor argentino, o ato de leitura, o exame minucioso revelam
conexes imprevisveis. E o mais importante: nem sempre o escritor est
consciente da relao que sua obra guarda com textos de diversas culturas,
pocas e lnguas. Nem preciso. Essa tarefa de juntar as peas dessa relao
ignorada pelo escritor cabe ao leitor. Ele vai congregando e colecionando as
semelhanas e os ecos de idiossincrasias latentes at construir um mapa de
coordenadas improvveis. Cabe perguntar: como mtodo, qual o valor de um
olhar to vasto como o de Borges?
Sem dvida, a Literatura Comparada estabelece uma srie de princpios teis
para estudar um dado conjunto de textos sob determinados propsitos. Um
desses objetivos poderia ser estabelecer as influncias que agem sobre um
escritor ou uma obra (Cf. GUILLN, 1994). No entanto, a influncia, para ser
um conceito passvel de aplicao, precisa do estudioso uma aferio palpvel
234
do fato. Isso diz respeito identificao inequvoca de uma dada influncia a
partir da existncia de uma citao explcita de uma obra em outra; pode ser a
confisso direta do escritor, que em seus prprios textos admite se identificar
com determinados autores e obras; tambm pode ser a constatao, por meio
da consulta de documentos histricos, de que um determinado conjunto de
idias ou obras ditou os rumos da produo de um conjunto de textos. Nesses
casos, a influncia no deixa de contar com um fato capaz de ser invocado
quando preciso provar as relaes entre textos ou autores. Contudo,
inegvel que a influncia um conceito voltil mesmo amparado e cercado
pelas balizas dos estudos da Literatura Comparada. Quando a determinao da
influncia no conta com provas concretas talvez o comparatista se sinta
inclinado a rejeitar uma provvel conexo entre obras e autores precisamente
porque falta a prova material, to cara s abordagens cientficas.
A partir do impasse que se cria ao no se aceitar, dentro do campo da pesquisa,
uma conexo entre obras e autores estabelecida pela mera intuio, o ensaio de
Borges proporciona uma opo forjada no mbito da prpria arte. O
pensamento de Borges, no ensaio em pauta, volta-se em direo possibilidade
de considerar a literatura um fenmeno ininterrupto, no demarcado nem por
autores nem por escolas.1 Nesse grande e nico texto, produzido e animado por
um s e nico esprito, todos os textos, em suma, se encontram.
No inoportuno dizer que essa idia to vasta, mas extremamente coerente,
procede de um olhar ancorado na Arte. inegvel que um escritor v a
literatura de uma perspectiva distinta da do estudioso da literatura. Um artista,
quando analisa seu campo artstico, capaz de apresentar perspectivas
assentadas em sua experincia e, por conseguinte, muitas vezes as perguntas
so respondidas com afirmaes que no se adaptam aos caminhos traados
pelos princpios de uma dada cincia. Para um estudioso da literatura, a
afirmao de que a totalidade das obras literrias constitui um nico texto
escrito por uma nica mo poderia soar to radical ao ponto de invalidar as
abordagens classificatrias de literaturas nacionais, movimentos de poca e
todos os conceitos organizadores de textos e autores, segundo a lgica do
tempo. Mas sempre h como invocar a linha que separa a arte do seu estudo
para impedir o colapso.
Voltando ao pensamento de Borges sobre Kafka e seus precursores, constata-se
que essa perspectiva borgeana, contrria ao que num primeiro momento se
1 Em seu ensaio A flor de Coleridge, Borges abole os conceitos de autoria e de textos isolados para condensar tudo num s esprito deflagrador do fenmeno literrio, expresso num s grande e ininterrupto texto (v. bibliografia).
235
poderia esperar da tarefa dos estudos literrios, provoca uma reao incmoda.
Se os precursores so escolhidos pelo prprio texto gerado pelo escritor, e se
esses precursores podem ser identificados pela leitura atenta, isso significa
admitir que a literatura no pode ser apreciada em seu desenvolvimento
estritamente linear e cronolgico. Seria preciso supor que a literatura devesse
ser apreciada como um fenmeno em que as chamadas influncias no so
sempre explcitas. Isso estabelece o desafio de abandonar o terreno das
influncias confessadas por um dado escritor para empreender a tarefa de
estabelecer relaes entre literaturas muito diversas no tempo e nas geografias
sem um antecedente a uni-las. Tambm exigiria do pesquisador dispensar as
provas materiais da influncia a determinao das leituras realizadas pelo
escritor objeto de estudo e documentadas em diversos escritos; a tarefa de
vasculhar os textos do escritor procura de uma frase especfica retirada de
uma obra; a confisso de que h um mestre etc. para empreender um
caminho ngreme, alumiado somente pela fraca luz da idia borgeana.
Sem dvida, isso levaria, ainda, a um caminho bastante radical: em ltima
instncia, todos os textos literrios esto profundamente relacionados entre si.
Alm disso, Borges afirma em seu ensaio que, no caso do poema de Browning,
os versos prenunciam os escritos de Kafka, mas tambm verdade que a
existncia dos escritos de Kafka possibilita uma singular leitura do poema de
Browning. O poema de Browning no era lido em sua poca do mesmo modo
que se l hoje depois de ter lido as obras de Kafka. Nesse sentido, Borges
observa que a tarefa de todo escritor modifica a concepo de passado e
tambm modificar a do futuro (BORGES, 2007, p. 166). E ainda, para
obscurecer mais, Borges afirma que as primeiras obras de Kafka so menos
precursoras da obra kafkiana do que os textos citados como precursores! Desse
modo, encontram-se os grandes temas kafkianos disseminados na literatura de
variadas pocas e lugares e no necessariamente nos primeiros escritos desse
autor. Assim, o conceito de evoluo tambm questionado. No h evoluo
sem que se julgue existir nos primeiros escritos de um autor as sementes do
que na maturidade se revelar um grande tema ou uma tcnica eficiente.
Evoluo, nesse sentido, , tambm, um conceito precrio, pois h autores
rompendo com seus primrdios e lanando-se a uma plenitude nunca antes
prenunciada.
As reflexes advindas do ensaio de Borges estabelecem, sem dvida, um novo
percurso na compreenso das relaes entre os diversos escritos constitutivos
do grande acervo da literatura, entendida como o conjunto de textos vistos
236
alm das delimitaes das distintas pocas e dos diversos pases e lnguas.
Nesse sentido, um escritor de uma dada nao poderia ter um precursor, sem o
(re)conhecer, numa outra fronteira, a se expressar numa outra lngua e numa
outra poca. Essa sintonia poderia estar ancorada nas reminiscncias do estilo,
das idiossincrasias, do tom, da atmosfera, dos temas, das personagens e
somente se revelaria pelo poder de evocao de um leitor atento, como Borges
deixa entrever.
Seria lcito indagar se essa evocao que correlaciona textos e autores de
pocas e naes dspares, sem sinais explcitos desse pressuposto
relacionamento, poderia se tornar um mtodo eficaz para abordagem e estudo
da literatura. Sim e no. A resposta afirmativa estaria amparada no prprio
carter do objeto estudado, como Borges parece elucidar. As obras literrias
produzidas numa dada poca extrapolam os limites impostos pelo momento,
pelos costumes coetneos e adquirem, na leitura empreendida em outras
pocas, significaes se no radicalmente diversas das de seu tempo, pelo
menos amplificadas pelo novo contexto temporal que as acolhe. Disso se
depreende que o estudo de um texto literrio, alicerado em abordagens
histricas ou sociolgicas, com o intuito de compreender os costumes e
motivaes prprios de uma dada poca, no est excludo dessa perspectiva de
leitura, uma vez que a compreenso do texto prope um trabalho de
reunificao de perspectivas, tanto das que se mantm ligadas ao tempo da
concepo artstica do texto, quanto s da poca em que a nova leitura
realizada. Esses fios temporais se superpem e enredam permitindo verificar
que um texto de pocas passadas pode estar presente em tom, atmosfera,
idiossincrasias num dado texto atual. E esse dilogo possvel graas a um
ponto em comum entre escritores: a possesso de um olhar que, fixando-se nos
objetos de seu tempo, capaz de dotar esses objetos de uma ordenao capaz
de fazer sentido tambm ou somente no futuro. E esse fazer sentido no
corresponde, necessariamente, a entender as significaes completas da
ordenao original, tambm diz respeito ao fato de os objetos do passado
continuarem existindo, mesmo com outras roupagens, para o olhar de leitores
de pocas futuras. Isso tem a ver com o que se costuma dizer da literatura:
possuidora de um sentido universal do humano.
Por outro lado, a resposta negativa questo acima exposta, relaciona-se com
a falta de provas materiais: citaes, aluses, pardias, parfrases, plgios e
demais. Esses vestgios explcitos, levantados dentro de um dado texto, indicam
claros caminhos em direo relao inequvoca entre autores e textos de
237
diversas procedncias. Mas tambm limitam grandemente a possibilidade de
estabelecer nexos entre obras a partir da percepo global de uma semelhana
difusa, estabelecida em termos menos explcitos: o tom da composio de um
conto, por exemplo.
O conto em perspectiva
lugar-comum dos estudos literrios considerar o conto um produto de origem
popular, de veiculao oral. Afirma-se que muitas de suas caractersticas
advm, precisamente, desse tom descontrado das narrativas movidas pelo
sabor do momento. Um relato oral aduna o tom do contador de histrias e o
cenrio do qual se pode extrair boa parte do interesse da narrativa. Ento,
pensar o conto nesses termos permite supor que todos os contos tm uma
matriz comum, guardada e garantida pelas origens incertas do gnero. Nesse
sentido, seria fcil e apropriado dizer que o primeiro contista, cuja identidade
talvez nunca seja revelada , obrigatoriamente, precursor de toda a linhagem
de contistas conhecidos at hoje. E essa afirmao no carece de lgica, pelo
contrrio, tem o mrito de dar ao conto um aspecto coeso e quase eterno (cf.
MARTN TAFFAREL, 2001).
No entanto, difcil sustentar, mesmo dentro de um gnero como o conto,
relaes to amplas de aproximao entre autores e textos. Aqui entra outro
lugar-comum dos estudos literrios, o que diz respeito viso da literatura
organizada em movimentos de poca, com um conjunto de caractersticas
prprias cuja funo delimitar estilos. Por meio dessa viso, cria-se um
pequeno empecilho idia de um precursor comum para todos os contistas,
pois havendo distintos estilos de poca, marcados por caractersticas prprias,
como seria possvel falar de um precursor para todos eles?
Considera-se que um determinado movimento literrio visto em seu conjunto,
caracteriza-se por manter a coeso por meio de um grupo de escritores que se
expressa aderindo a uma determinada conveno, a qual tornar reconhecvel a
produo desses artistas como dentro de um dado movimento e os far ser
excludos de outro. Consta que essa tentativa delimitadora pode ser
amplamente questionada, como o provam os trabalhos mais acurados sobre
autores inclassificveis.2 Ento, a objeo possibilidade de estabelecer um
precursor, acima das fronteiras dos movimentos literrios, no se sustentaria,
principalmente porque o conto poderia ser apreciado mais como estrutura
2 Machado de Assis um caso atpico na histria da literatura brasileira. H dificuldades em consider-lo ora romntico, ora realista, segundo as pocas e estilo de sua produo. um escritor que parece no se adequar s caractersticas atribudas ao Romantismo e ao Realismo.
238
composicional, cujas caractersticas, nesse nvel de apreciao, poderiam ser
citadas em seu conjunto, e menos como variao ao sabor dos estilos de poca.
Desse modo, as afinidades textuais revelar-se-iam alm das fronteiras dos
movimentos literrios, alm das convenes literrias.
Voltando proposta do ensaio de Borges, ao afinar as fronteiras demarcadoras
dos estilos de poca, seria possvel ver nos contos cultivados nesses distintos
tempos, pases e lnguas um incessante dilogo em busca de uma forma
comum. Porm, pode-se pensar que a idia de manter um gnero como
norteador, neste caso, o conto, anular a ampla viso borgeana que d
literatura uma natureza quase infindvel. No entanto, a delimitao proposta
pelos gneros est compreendida tambm nessa vasta apreciao borgeana da
literatura. E ao tomar o conto como fio condutor, ser possvel estabelecer um
canal de comunicao entre trs autores, de pocas, lnguas e geografias
diversas: o estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), o brasileiro Joaquim
Maria Machado de Assis (1839-1908) e o argentino Julio Cortzar (1914-1984).
Poe considerado um dos mestres do conto moderno. Isso supe dizer que o
conto, antes do sculo XIX, havia sido, em certo sentido, eclipsado vrias vezes
por outros gneros. Tomando o ramo hispnico do gnero que serve de guia
para imaginar o acontecido em outros contextos , das suas origens milenares,
passando pela Idade Mdia, mais especificamente nos antigos territrios que
hoje congregam a Espanha, houve o cultivo de um tipo de conto breve que
servia a interesses elitistas e cuja finalidade eminentemente didtica se
destacava como marca registrada. Esses relatos recebiam durante essa poca
nomes variados: eixemplo, fbula, aplogo, novela. Vejam-se os textos
recolhidos em El Conde Lucanor, do infante Don Juan Manuel, para citar um
exemplo consagrado. Tem-se, durante a Renascena, o cultivo de um tipo de
relato mais extenso, tambm ligado aos valores religiosos, filosficos e morais
segundo a perspectiva da poca. As Novelas ejemplares, de Miguel de
Cervantes, obra publicada no sculo XV, um exemplo bem acabado de conto.
J no Sculo das Luzes houve uma srie de realizaes nesse campo tambm,
porm deixadas em segundo plano pelos ensaios, as fbulas e a poesia (cf.
OMIL; PIEROLA, s.d.). Com a chegada do sculo XIX, segundo as periodizaes
literrias aceitas, passam a conviver e a se suceder nesse sculo o Romantismo,
o Naturalismo, o Realismo, para citar os estilos de poca mais lembrados. Cada
um desses movimentos apresenta um carter particular de realizaes
artsticas, como recolhem tantos manuais de literatura. E nesse sculo que o
conto volta a se revelar um gnero importante.
239
Julio Cortzar e Edgar Allan Poe
Poe nasceu e viveu nos primeiros anos do sculo XIX nos Estados Unidos e,
segundo a biografia elaborada pelo escritor argentino Julio Cortzar como
introduo a um volume de contos do escritor norte-americano traduzidos para
o espanhol pelo prprio Cortzar, Poe conviveu com um entorno vulgar e sua
capacidade artstica foi, por muitos, admirada, mas tambm ignorada por outros
tantos. Em suma, Cortzar sustenta que Poe era um deslocado, um homem sem
possibilidade de encontrar eco paras suas inquietaes intelectuais e artsticas
em seu meio. Sem dvida, Poe, circundado pela aura de artista incompreendido,
como tem sido plasmado na histria da literatura, recebe, como foi apontado
acima, o ttulo de mestre do conto moderno, junto com Maupassant e Tchekov.
E a categoria de mestre foi atingida por ele graas a um conjunto de poemas e
contos admiravelmente construdos e a uma srie de ensaios voltados criao
e elaborao de obras literrias e ao comentrio sagaz de obras de seus
contemporneos (cf. CORTZAR, 1993, p. 103-146).
As reflexes de Poe sobre a literatura so interessantes porque as alicera numa
perspectiva intelectual do ato de escrever. Munido de um talento lgico colocado
ao servio da sua arte, Poe soube descrever e dissecar o percurso de sua mente
na arquitetura de um longo e lgubre poema intitulado O corvo, cujo
desvendamento, no que diz respeito a sua criao e elaborao, referido
minuciosamente no conhecido ensaio A Filosofia da composio.3 Mesmo que
tal ensaio dedique a totalidade das reflexes poesia e feitura do poema, no
escapa que as idias expostas com uma preciso surpreendente possam
tambm servir para refletir sobre outro gnero que, para Cortzar, guarda
profunda relao com o poema: o conto.
Em seu ensaio A Filosofia da composio, Poe (1999, p. 101-114) afirma que
o poeta deve buscar para sua obra um grande tema humano e um tom
adequado para tratar esse tema; deve escolher o ritmo da linguagem, o qual
deve espelhar o tom e o tema; deve prever o clmax, que poder coincidir com o
final do poema para poder construir as demais partes ao redor desse ponto alto
que se deseja atingir. Como se v, Poe afirma que a escolha deliberada de um
dado efeito que se deseja impor sobre o leitor deve nortear todo o trabalho de
construo do poema. Sem essa intencionalidade no possvel encontrar os
elementos adequados para compor o texto.
3 Cortzar observa, no texto sobre Poe, que o escritor norte-americano certamente criou uma espcie de jogo com o qual pretendia convencer o leitor de seu ensaio que tivera domnio absoluto no ato de compor um poema extenso. Cortzar afirma que muito escapa da conscincia de todo escritor com relao composio de suas obras.
240
Um dos grandes mritos de Cortzar ter interpretado e trazido as idias de
Poe para o mbito de sua prpria produo ensastica e contstica. O escritor
argentino recolhe em dois conhecidos ensaios uma teoria sobre o conto
espelhada em Poe: Alguns aspectos do conto (CORTZAR, 1993, p. 147-163)
e Do conto breve e seus arredores (Idem, p. 227-237). O escritor argentino
elaborou uma teoria do conto a partir dos conceitos de tenso e intensidade,
descritos no ensaio Alguns aspectos do conto. Esses princpios nascem de uma
leitura eficaz e sensvel dos escritos literrios e crticos de Poe. Sem dvida,
tenso e intensidade so conceitos globais que devem ser compreendidos a
partir da leitura completa de um dado conto. Tenso e intensidade resultam da
necessria somatria de todos os elementos utilizados para estruturar um conto
e dizem respeito ao tema e ao trabalho preciso com a linguagem. A escolha do
tema, como diz Cortzar, muito importante porque ligado a ele surgem as
palavras precisas que vo construir o conto. A tenso procede da relao de
economia presente no conto, de tal modo que seus elementos no sobrem nem
faltem. Isso redunda num cuidado com a elaborao de cada frase e as
digresses nunca so contempladas. A intensidade procede de um trabalho na
vertical, como diz Cortzar, num processo de aprofundamento at atingir uma
fora capaz de atingir o leitor em cheio, do mesmo modo como o escritor o foi
por conta da elaborao do conto.
O trabalho de anlise profunda da obra de Poe foi empreendido por Cortzar
quando fez a traduo dos contos do escritor norte-americano. Sem dvida, a
tarefa de verter para o espanhol as narrativas de Poe causou em Cortzar a
impresso de estar apreciando o tecido pelo avesso. Penetrar na mquina de
elaborao dos contos de Poe obrigou o escritor argentino a percorrer um
caminho de criao tambm, pois ao traduzir uma obra literria, inegvel que
a linguagem em que se traduz dever perseguir os sentidos poticos da obra
original. Esse trabalho meticuloso de traduo revelou para Cortzar
possibilidades criativas reveladas na forma de seus contos mais clebres: Casa
tomada, a histria de dois irmos coagidos a deixar sua casa por uma fora
inexplicvel , sem dvida, um belo dilogo intertextual com A queda do solar
de Usher; Manuscrito hallado en un bolsillo [Manuscrito encontrado num
bolso] retoma uma viagem sem retorno empreendida como o protagonista de
Manuscrito encontrado numa garrafa. Esses dois exemplos contam com o
reconhecimento de que Poe foi uma das mais atuantes e reconhecidas
influncias de Cortzar. Um leitor desavisado, que por ventura lesse primeiro
um desses contos de Cortzar e continuao um dos de Poe, e nada soubesse
241
de estudos literrios nem sobre ordenao cronolgica, poderia pensar que o
argentino influenciou o norte-americano, por uma questo de ingenuidade
temporal, talvez. Esse equvoco serviria para nos alertar sobre a pretensa
circularidade do tempo e dos fenmenos, como j disse certa vez Borges em
seu conto Las ruinas circulares [As runas circulares]. Obviamente, numa
percepo dessa natureza, no h necessidade de situar o passado e o futuro,
pois se encontram coexistindo sempre num dado ponto. Retomando o ensaio
borgeano, pode-se perceber que se o escritor permite estabelecer seus
precursores, no de forma voluntria, mas por afinidades percebidas entre suas
obras e as de seus predecessores graas ao trabalho de leitura, provavelmente
poder-se-ia estabelecer uma afinidade entre Julio Cortzar e Machado de Assis.
Seria possvel dizer que Machado de Assis , em certo sentido, precursor de
Julio Cortzar.
Machado de Assis e Edgar Allan Poe
conhecido o prlogo do volume machadiano de contos intitulado Vrias
histrias. Nele, o escritor brasileiro aprecia os contos de Poe e os destaca como
sendo entre os primeiros escritos da Amrica. (MACHADO DE ASSIS, 1992, p.
476). Tambm sabido que Machado de Assis traduziu o poema O corvo.
Nesse labor analtico e delicado de traduo, houve um processo anlogo ao
vivenciado por Cortzar. Traduzir propiciou a Machado de Assis um exerccio
literrio de apreciao crtica, um esforo para encontrar no prprio idioma
afinidades de ritmo frasal e intelectual com a obra de Poe. Assim, a tarefa
tradutria deve ter contribudo para o desvendamento de certos procedimentos
da linguagem do escritor estadunidense que no escaparam ao olhar atento do
escritor brasileiro.4
Voltando aos contos, h dois casos particulares na prosa de Machado de Assis
que vale a pena citar, destacando a relao com os escritos de Poe. Os contos
O enfermeiro, angustiante releitura de O corao denunciador, de Poe, sem,
contudo, dar aos sentimentos de culpa e remorso um lugar de destaque, como
no conto do norte-americano, e A causa secreta que espelha uma situao de
sadismo invertido. O Fortunato machadiano o torturador. No conto O barril de
Amontillado, de Poe, Fortunato vitimado pela inveja de um algoz sem nome.
Essas duas narrativas de Machado de Assis recolhem, sem dvida, um dilogo
intertextual com os contos de Poe. H um processo de estilizao mais evidente
4 Sobre a importncia do ato de traduzir, consulte-se o ensaio de Jorge Luis Borges intitulado Las versiones homricas e o ensaio de Walter Benjamin A tarefarenncia do tradutor (v. Bibliografia).
242
em A causa secreta, principalmente porque a reminiscncia do conto de Poe
est no nome de uma das personagens, Fortunato que, de vtima no conto de
Poe, passa a algoz no conto machadiano, como j foi apontado. No outro conto,
o enfermeiro v esmorecer com o passar do tempo o remorso e acaba eximido
de qualquer culpa pelas circunstncias. J no conto de Poe, a personagem
admite sua loucura e no esforo de ocultar o crime, tentando agir de modo
normal e inocente, incrimina-se e confessa o assassinato aos brados. Os
narradores-protagonistas desses dois contos tm em comum a necessidade de
se explicar. A percepo do dilogo entre os contos de Machado de Assis e os de
Poe5 coloca em evidncia uma afinidade intelectual que eclodir numa possvel
relao entre o escritor brasileiro e Cortzar, como j se disse, pela via
borgeana.
Machado de Assis, precursor de Julio Cortzar
Sabe-se que o escritor brasileiro admirava a obra de Poe. Logo, se Poe
admirado por Cortzar e Machado de Assis, possvel inferir a existncia de
uma relao de afinidade entre o escritor brasileiro e argentino, oriunda, no de
um necessrio contato de um com a obra do outro, mas de uma postura crtica
face criao artstica e da abordagem de alguns temas. No caso especfico do
conto, Machado de Assis pode ser um legtimo precursor de Cortzar, num lato
sentido borgeano. Principalmente porque, parafraseando Borges, se Cortzar
no tivesse escrito seus contos, no seria possvel encontrar ecos de sua
perspectiva crtica e de alguns temas em contos de Machado de Assis. Logo, a
perspectiva machadiana do conto encontra ecos na obra de Cortzar, dessa
forma, o escritor argentino escolheu como seu precursor o escritor brasileiro,
segundo a curiosa perspectiva borgeana.
Uma relao mais imediata entre as obras de Cortzar e Machado de Assis a
que aponta a utilizao por parte de ambos de um narrador-defunto. No conto
Las babas del diablo, includo no volume Las armas secretas, de Cortzar, o
narrador, um fotgrafo, escreve olhando as nuvens que passam sobre sua
desgraa, confessa sua condio de morto e passa a relatar as circunstncias de
seu decesso.6 J o romance machadiano intitulado Memrias Pstumas de Brs
5 Para obter mais informaes sobre a relao entre os textos de Machado de Assis e de Edgar Allan Poe consulte-se a obra Machado de Assis: um escritor na capital dos trpicos, de Patrcia Lessa Flores da Cunha. Um estudo importante sobre a relao intertextual entre os dois autores. Oferece um estudo interessante de uma srie de textos dos dois autores, do qual no consta a relao estabelecida entre os contos citados neste artigo. 6 No prlogo do volume Las armas secretas, de Julio Cortzar, Susana Jakfalvi observa que o narrador de Las babas del diablo , dada sua complexidade, j foi identificado com Michel, o
243
Cubas apresenta um autor-narrador defunto que vai organizando suas
lembranas ao sabor de uma conscincia irnica, capaz de desvendar uma
existncia ftil. Esse expediente narrativo um narrador que se confessa
defunto uma semelhana que no escapa. No entanto, inegvel que cada
escritor imprimiu uma vontade peculiar quando concebeu um narrador nessas
condies. Na perspectiva dos estudos voltados obra de Cortzar, o narrador-
defunto inserido no fantstico ou no neofantstico, como quer o crtico
argentino Jaime Alazraki.7 Nesse sentido, o narrador-defunto de Cortzar
desestabiliza uma noo de real e prope uma viso perturbadora, tpica dos
seus contos. J o narrador-defunto machadiano nem sequer coloca em pauta a
possibilidade de se deter em seu provvel carter fantstico. Desvia-se o foco
do carter surpreendente do narrador j estar morto e referir sua histria e se
aceita como parte inerente da narrativa, cujo tom eminentemente irnico.
Talvez esse exemplo baste para expor um grau de aproximao entre Cortzar e
Machado de Assis, dada a escolha de narradores em estreita afinidade. Contudo,
h um ponto que demonstra uma afinidade muito maior entre o escritor
argentino e o brasileiro. Trata-se da conscincia crtica com que ambos
empreenderam o ofcio de escritor. Nesse ponto, ser oportuno lembrar que
tanto Cortzar quanto Machado de Assis tiveram em Poe um mestre. O conto,
gnero difcil, assim designado pelo escritor brasileiro, foi cultivado pelos trs
artistas visando a excelncia do gnero. Tal objetivo fica patente na proposta de
elaborao dos textos literrios desses autores. Para Poe, como se viu, uma
composio literria perfeita persegue um propsito claro: planeja-se a obra a
partir do efeito a ser obtido, no sem antes ter planejado cuidadosamente o
eplogo. Para Cortzar, o conto precisa de uma clara noo de economia e
harmonizao entre os elementos que o constituem, de tal modo que possa
impactar o leitor. Para Machado, o conto, produto contundente, ergue-se pela
mo segura de um narrador, cujo olhar impregnado de certo desencanto pela
vida, vai oferecendo caracteres desvendados ironicamente, os quais produzem
no leitor ora o riso agitado, ora o riso melanclico. Sem dvida, os trs
escritores optam pela consecuo do impacto como a mais habilidosa forma de
capturar e golpear o leitor. H nos trs a construo medida, cujo resultado
fotgrafo e tradutor que morreu e conta sua histria, j foi apontado como a lente da mquina fotogrfica, e j foi analisado como o prprio tempo (v. Bibliografia). 7 Jaime Alazraki, em seu ensaio Qu es lo neofantstico? aponta uma srie de caractersticas que separam o neofantstico da concepo clssica de gnero fantstico. Insere Cortzar nesse novo gnero e depreende dos contos do escritor argentino muito do que caracteriza o neofantstico (v. Bibliografia).
244
um final impregnado de surpresa, seja pela via do estranho, como em Poe, pela
do fantstico, como em Cortzar, pela da ironia, como em Machado.
Alm da identificao existente entre os trs escritores, no que diz respeito ao
trabalho com a construo do conto, Cortzar e Machado de Assis podem,
ainda, ser aproximados em termos da temtica de alguns textos. Tome-se o
texto cortazariano Distante espejo [Distante espelho], obra pouco conhecida e
ausente das antologias mais comuns, e o conto machadiano O espelho. No
relato de Cortzar, h um narrador em primeira pessoa, tambm personagem,
que se apresenta como ser arredio. um professor interiorano, dado ao deleite
da leitura. Na tarde do dia 15 de junho de um ano no definido, contrariando o
costume cotidiano de permanecer fechado em seu quarto a tarde toda,
impelido a sair. Vai pelas ruas da cidade sentindo o calor do sol e, subitamente,
afirma ter sido tomado por uma sensao que parece cindir corpo e alma. O
corpo deseja ir por um determinado caminho e a alma, por outro. Empurrado
por uma fora estranha, abandona o projeto de ir at a praa do povoado e
ruma em direo casa de uma colega da escola. Toca a campainha
insistentemente e se d conta de que no h ningum. Movido por algo
incompreensvel, entra na casa e percebe que est na penso onde mora. Tudo
como na penso. Reconhece a sala, os mveis e v a porta do seu quarto.
Entra e se v a si mesmo lendo confortavelmente vestido. O horror paralisa o
corpo do observador, que se percebe realizando todas as atividades habituais
sem notar-se a si mesmo enquanto observador. O observado passa pelo
observador como diante de um espelho bem conhecido, sem olhar a imagem
diretamente. A dissociao dura at o momento em que o observador e o
observado saem do quarto e vo at a rua. Ao voltar, j so um s ser e tm a
certeza de terem entrado, dessa vez, na verdadeira penso em que moram.
Indescritvel a sensao e o prenncio da insnia. Dedica o tempo a gravar na
escrivaninha suas iniciais: G. M. Fica acordado at o amanhecer e vai se deitar
lembrando que ter aula s nove da manh. Depois da aula, decide ir at a casa
da colega da escola. Ela o recebe e ele entra receoso de encontrar a moblia e o
quarto da penso, mas tudo diferente, est na casa da colega. Respira
aliviado, mas, ao entrar na sala, tem a impresso de que entrar novamente em
seu quarto da penso. A impresso dura pouco, pois encontra mveis
desconhecidos e no os dele. Porm, a sensao de alvio dura pouco. A colega
da escola, ao mostrar a moblia da sala, no reprime um sentimento de
desapontamento ao ver a escrivaninha rabiscada, talvez por obra dos netinhos.
Ao chegar mais perto, o narrador-personagem encontra gravadas as iniciais G.
245
M. Suas iniciais. Como possvel notar, o impacto e o efeito-surpresa do texto
procedem do fato de ter havido uma espcie de superposio inexplicvel de
espaos e tempos, tudo captado por uma conscincia que observa, fora e dentro
de si. No entanto, tambm possvel pensar num simples acaso que pode ter
gerado a existncia de dois pares de iniciais, G.M., em duas escrivaninhas
diferentes. Essa ambigidade capaz de instaurar uma dvida que s faz
aumentar o impacto do final do conto.
J o conto machadiano O espelho narra uma surpreendente experincia
vinculada descoberta da prpria identidade. O narrador refere a um grupo de
amigos a experincia vivenciada em sua juventude: a descoberta de que h
duas almas, uma que olha de dentro para fora e outra, de fora para dentro.
Essa ltima a alma exterior, que pode ser um esprito, um fluido, pessoas,
uma operao, um objeto qualquer. Refere a poca em que foi nomeado alferes
da guarda nacional e como foi chamado por uma tia que pediu para v-lo e que
levasse a farda. No quarto destinado a ele, a tia mandou colocar um grande,
velho e rico espelho. Tantas atenes recebidas fizeram o rapaz eliminar o
homem para ceder espao ao alferes. Sua alma exterior se identificava com
tudo o que era prprio de seu posto e com os elogios recebidos. Um dia,
estando sozinho na casa da tia, depois de dias sumido na mais completa
solido, decide se olhar no espelho. Tem a ntida sensao de se sentir cindido
em dois e pensa ter visto sua imagem esfumaada no reflexo do espelho.
Agoniado com a sensao de incompletude refletida, decide vestir o uniforme e
olhar-se no espelho. Contempla sua imagem completa e clara, sua alma exterior
estava ntegra no espelho. Subitamente percebe que ao vestir o uniforme
consegue se sentir completo e, desse modo, enfrenta a solido ao longo de dias.
Depois que a narrativa termina, o narrador escapole e deixa seus ouvintes
surpresos.
possvel estabelecer uma relao entre os dois textos apresentados. Tanto o
de Cortzar quanto o de Machado se debruam sobre a problemtica da
identidade vista a partir de um confronto crucial. O momento decisivo
vivenciado pelas personagens estabelece um percurso incmodo, pois revela
que a sensao unvoca do indivduo pode ser somente uma iluso. Diante da
possibilidade da ciso entre alma e corpo, como no texto de Cortzar, ou entre a
alma interior e a exterior, como no conto de Machado, os narradores atualizam
em suas narrativas o dilema humano, sintetizado em pares j conhecidos: ser
ou parecer, estar acordado ou sonhar, viver ou morrer, ser ou no ser... Os
corpos aparentemente slidos, quando enfrentados aos seus respectivos
246
reflexos, devolvem um simulacro cujo impacto sobre o observador revela a
precariedade da capacidade perceptiva e, qui, a da prpria certeza de existir
coerentemente.
Como possvel notar, Machado de Assis e Cortzar tangenciam, em seus
relatos, um grande tema humano tomando como fio condutor o espelho e seu
reflexo. Tal coincidncia no tratamento de um tema no deve surpreender,
porque o espelho um objeto cuja simbologia recolhe abundantes matizes nos
variados contextos culturais. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1989, p. 393-
396), o espelho o smbolo da sabedoria e do conhecimento, tambm
utilizado para a arte da adivinhao. Considera-se, igualmente, como a alma,
que capaz de refletir a beleza ou a feira, mas no passivamente, pois a alma,
enquanto instrumento puro, refletir melhor e poder se fundir com o que
reflete, transformando-se.
Dessa forma, colocados juntos, os textos se iluminam mutuamente e o leitor
capaz de, ao modo da proposta borgeana, traar intersees e rotas que
propiciam o encontro entre a perspectiva machadiana e a cortazariana. Mas a
afinidade no esta presente s no tratamento do tema, tambm possvel
perceber o comprometimento, por parte dos dois autores, com a elaborao do
conto. Ambas narrativas seguem um percurso que recolhe uma srie de
elementos postos a funcionar com o objetivo de conseguir um grande impacto
final. No texto de Cortzar, a sequncia de eventos se apia numa aparente
feio comum: a vida regrada de um professor interiorano e solitrio se v
subitamente alterada num dia qualquer em que experimenta uma sensao de
intranqilidade a lan-lo rua, em busca de algo indefinido. Essa sada ser o
ponto de partida de uma experincia estranha: a ciso de alma e corpo. A partir
desse dado intangvel, s definido pela subjetividade da personagem, os
eventos comeam a criar um cenrio inquietante que se revela perturbador,
quando no final do relato, o narrador-personagem acredita reconhecer, na sala
da colega da escola, as iniciais G. M. gravadas numa escrivaninha desconhecida.
O ato de gravar as iniciais foi executado por ele, sem dvida, numa escrivaninha
da penso em que mora, mas como apareceram as letras num outro espao
fsico? J o conto de Machado de Assis vai se tecendo a partir da introduo de
um narrador em terceira pessoa que cede a voz a uma personagem que relatar
sua incomum experincia. Na juventude, sendo alferes, vai visitar uma tia e
recebe atenes constantes, de tal modo que passa a se identificar
profundamente com sua posio de alferes, esquecendo sua vida de antes. Um
dia, enfrenta uma situao inusitada que em si uma revelao: abandonado
247
de todos e ao se contemplar no espelho, sua figura se esvai. S quando se olha
vestido de uniforme de alferes passa a se enxergar slido e real. Desse modo,
enfrenta a verdade dos fatos: a alma exterior pode ser capaz de sustentar a
identidade de um ser. Tal revelao deixa sumidos na perplexidade seus
ouvintes e tambm o leitor.
Como possvel apreciar, os desfechos dos contos propem situaes cuja
compreenso d ao leitor a capacidade de entender como a mobilizao gradual
dos elementos narrativos, no incio, meio e fim da narrativa, teve o propsito de
atingir o ponto alto, na forma de uma grande revelao. No conto de Cortzar, o
desvendamento da precariedade do que chamado de real. No conto de
Machado de Assis, a incerteza da prpria existncia. O leitor, contundido pela
revelao do grande tema dos contos, saboreia, aps a leitura, uma sensao
de desassossego. Nesse ponto, oportuno assinalar que Poe, Machado de Assis
e Cortzar pertencem linhagem dos contistas devotados a desbaratar qualquer
esperana e a pr em constante dvida toda e qualquer certeza que possa
trazer um pouco de consolo e segurana diante das coisas intrincadas do
mundo. O leitor que os escolhe e l sabe de antemo as pontes que ter de
cortar e as explicaes s quais ter de renunciar.
Poe, Machado de Assis e Cortzar: sintonias reveladoras
Uma vez apreciada a possibilidade de descobrir afinidades entre Machado de
Assis e Cortzar, pela via borgeana, ser oportuno se referir trade de
contistas, formada por Poe, Machado de Assis e Cortzar, como impulsionada
por um mesmo ideal de realizao artstica. A sintonia percebida entre esses
trs mestres do conto seria tal qual o parentesco intudo por Borges em seu
ensaio Kafka y sus precursores: a obra de um determinado autor capaz de
mobilizar reminiscncias na produo de outro escritor, pelo ato da leitura,
mesmo que no tenham uma relao comprovada nem se reconheam as
influncias. No caso da trade em pauta, sem a existncia de Poe, qui no
seria possvel pensar em aproximar Machado de Assis e Cortzar. O fato de o
escritor brasileiro e o argentino terem reconhecido em Poe um grande mestre,
esboa a possibilidade de encontrar afinidades entre os dois escritores latino-
americanos. Tais afinidades dizem respeito postura crtica com a qual se
dedicaram tarefa de escrever e adeso s idias de Poe sobre a elaborao
do conto, cingindo-se consecuo de um grande efeito ligado basicamente ao
eplogo. Cortzar dedicou ensaios a essa temtica, nos quais possvel notar a
adeso s idias de Poe. Vejam-se os j citados Do conto breve e seus
248
arredores e Alguns aspectos do conto. As breves aluses de Machado de
Assis, na introduo de alguns volumes de contos, obra de Poe e a magistral
elaborao dos seus prprios contos, cuja leitura vai desvendando o engenhoso
maquinismo posto em movimento em cada texto, revelam um trabalho de
reflexo em parte motivado pelas idias de Poe. Trata-se de um reconhecimento
da obra do escritor estadunidense e de suas importantes realizaes sem,
contudo, deixar de dar s prprias obras uma marca singular.
Tal singularidade se faz mais patente ao se incursionar pelo campo do fantstico
e do estranho, classificados como gneros autnomos por Todorov (2003, p. 47-
63). Segundo a viso desse crtico, a contstica de Poe dialoga basicamente com
o estranho, pois, em muitos contos, h uma revelao que faz cair por terra a
presuno da existncia de um fenmeno sobrenatural. H o desvendamento ou
explicao racional dos fatos, antes tomados como espectrais. Veja-se o conto
j citado A queda do solar de Usher, no qual h o episdio da irm do amigo
do narrador-protagonista que parece ter ressuscitado, mas, na verdade, o que
acontece que a depositaram num nicho quando sofreu um ataque de
catalepsia e, ao voltar a si, descobre ter sido posta dentro de um atade,
consegue escapar e volta para se vingar do irmo. Esse gnero se revela ideal
para ser moldado de acordo com as propostas de Poe, j que um dado efeito e
um final contundente podem ser obtidos na elaborao de contos acordes com o
gnero estranho ou fantstico. Por outro lado, ser oportuno observar que no
escapa a qualquer estudioso do gnero fantstico o fato de Machado de Assis,
ao incursionar pelo gnero, preferir sacrificar a realizao pura e simples de um
relato fantstico para pr o texto ao servio de uma aparente tese moral, como
no conto Sem olhos, em que o adultrio aparece punido de forma
estarrecedora, ou para resvalar pelas fronteiras do grotesco e do irnico, como
em Um esqueleto. J Cortzar preferia revolucionar o gnero fantstico no
abrindo mo dos expedientes tradicionais do gnero com o objetivo de neg-los,
revitaliz-los e atualiz-los. Prova disso o j citado relato Casa tomada, uma
angustiante experincia motivada por uma presena nunca conhecida nem
revelada e devotada a expulsar dois irmos do lar. Nesse sentido, muito difcil
apontar afinidades entre Machado de Assis e Cortzar no terreno do fantstico,
pois o cultivo desse gnero, possvel via de estudo, mais parece afastar os dois
escritores latino-americanos e no aproxim-los. Onde residiria, ento, o
territrio comum desses dois escritores? Como foi apontado acima, na
conscincia voltada elaborao artstica, no reconhecimento de que o conto
um gnero difcil porque visa economia de meios, obteno de um grande
249
efeito revelado basicamente no eplogo, estrutura bem concebida e executada,
segundo os ditames de Poe, e preferncia por dados temas, como o da
identidade, j comentado. Nesse sentido, tambm outros escritores poderiam
ser aproximados por essa via e formariam uma constelao: a dos influenciados
por Edgar Allan Poe. Do mesmo modo, seria possvel encontrar nas obras desses
artistas pontos em comum que os aproximariam entre si, pela influncia do
mestre Poe. Como possvel notar, segundo Borges cada escritor crea a sus
precursores no sentido de que, ao ler um determinado escritor, o leitor pode
lembrar e identificar o tom, o estilo ou outro aspecto presente num dado
escritor. Essa rememorao estabelece uma relao importante entre os
escritores por meio do ato de leitura. No caso especfico de Machado de Assis e
Cortzar, o grande ponto que os aproxima a influncia reconhecida de Poe,
alm de ter se dedicado traduo de obras do escritor estadunidense em
alguma etapa de suas vidas. Esse diferencial importante, qui outros
escritores reconheam a influncia de Poe, mas jamais se dedicaram traduo
de textos do escritor estadunidense. Haveria, ento, a possibilidade de criar
constelaes com diferenciais bem estabelecidos.
De todo o exposto, depreende-se que o papel de revelar os parentescos entre
escritores cabe, muitas vezes, aos leitores. E essa , precisamente, a idia
subjacente no ensaio borgeano: a tarefa da leitura, empreendida como
atividade vital, capaz de revelar que a literatura , como j dizia Borges no
ensaio La flor de Coleridge, um s e grande texto, escrito por um nico
esprito espalhado em infinitas mos.
Bibliografia:
ALAZRAKI, Jaime. Qu es lo neofantstico? In: ROAS, David (Org.). Teoras de
lo fantstico. Madrid: Arco/Libros, 2001.
BENJAMIN, Walter. A tarefarenncia do tradutor. In: HEIDERMANN, W. (Org).
Clssicos da teoria da traduo. Florianpolis: UFSC, Ncleo de Traduo, 2001.
BORGES, Jorge Luis. Kafka y sus precursores. Otras inquisiciones. Madrid:
Alianza, 2007.
_____. La flor de Coleridge. Otras inquisiciones. Madrid: Alianza, 2007.
_____. Las ruinas circulares. Ficciones. Madrid: Alianza, 1997.
_____. Las versiones homricas. Obras completas 1923-1949. Buenos Aires:
Emec, 1994.
250
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Espelho. Dicionrio de smbolos. Mitos,
sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros. Trad. Vera da Costa
e Silva e outros. 2 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1989.
CORTZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. Valise de cronpio. 2a ed. So
Paulo: Perspectiva, 1993.
_____. Do conto breve e seus arredores. Valise de cronpio. 2a ed. So Paulo:
Perspectiva, 1993.
_____. Poe: o poeta, o narrador e o crtico. Valise de cronpio. 2a ed. So
Paulo: Perspectiva, 1993.
_____. Casa tomada. Cuentos completos I. Madrid: Alfaguara, 1994.
_____. Distante espejo. Cuentos completos I. Madrid: Alfaguara, 1994.
_____. Las babas del diablo. Cuentos completos I. Madrid: Alfaguara, 1994.
_____. Manuscrito hallado en un bolsillo. Cuentos completos II. Madrid:
Alfaguara, 1994.
CUNHA, Patrcia L. F. Machado de Assis: um escritor na capital dos trpicos.
Porto Alegre: IEL; Editora Unisinos, 1998.
GUILLN, C. A esttica do estudo de influncias em literatura comparada. In:
COUTINHO, E. F.; CARVALHAL, T. F. (orgs.). Literatura comparada: textos
fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
JAKFALVI, Susana (ed.). Las babas del diablo. In: CORTZAR, Julio. Las armas
secretas. 11 ed. Madrid: Ctedra, 1992.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Advertncia de Vrias Histrias. Obra
completa II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
_____. A causa secreta. Obra completa II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
_____. Memrias pstumas de Brs Cubas. Obra completa I. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1992.
_____. O enfermeiro. Obra completa II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
_____. O espelho. Obra completa II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
MAGALHES JUNIOR, R. (org.). Sem olhos. Contos fantsticos de Machado de
Assis. Rio de Janeiro: Edies Bloch, 1973.
_____ (org.). Um esqueleto. Contos fantsticos de Machado de Assis. Rio de
Janeiro: Edies Bloch, 1973.
MARTN TAFFAREL, Teresa. El tejido del cuento. El tejido del cuento. Barcelona:
Octaedro, 2001.
251
_____. De la transmisin oral al cuento literario. El tejido del cuento. Barcelona:
Octaedro, 2001.
OMIL, Alba; PIEROLA, Raul A. El cuento y sus claves. Buenos Aires: Nova, s.d.
POE, Edgar Allan. A Filosofia da composio. Poemas e ensaios. 3 ed. rev. So
Paulo: Globo, 1999.
_____. A queda do solar de Usher. Fico completa, poesias e ensaios. Rio de
Janeiro: Nova Aguiar, 2001.
_____. Manuscrito encontrado numa garrafa. Fico completa, poesias e
ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 2001.
_____. O barril do Amontillado. Fico completa, poesias e ensaios. Rio de
Janeiro: Nova Aguiar, 2001.
_____. O corao denunciador. Fico completa, poesias e ensaios. Rio de
Janeiro: Nova Aguiar, 2001.
TODOROV, Tzvetan. O estranho e o maravilhoso. Introduo literatura
fantstica. 2 ed. Trad. Maria Clara Correa Castello. So Paulo: Perspectiva,
2003.
Title:
Edgar Allan Poe, Machado de Assis, and Julio Cortzar: Three Views in
Conjunction on the Short Story
Abstract:
Based on the essay Kafka y sus precursores, by Jorge Luis Borges (1899-
1986), the present essay looks for coinciding views from Edgar Allan Poe (1809-
1849), Machado de Assis (1839-1908), and Julio Cortzar (1914-1984) on that
literary genre. A possible connection between the three writers, regarded as
masters of the short story, is suggested having the Borgean essay as a starting
point, while emphasizing the similarities of their views on what guides the
artistic elaboration of the short stories. The confirmed relationship between Poe
and Machado de Assis, and between Poe and Cortzar are emphasized, opening
a door to the possibility of also thinking of a close relationship between Machado
de Assis and Cortzar.
Keywords:
Short story; Compared Literature, Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges, Julio
Cortzar
Recebido em 15.10.2010. Aprovado em 26.04.2010.