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232 Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Julio Cortázar: três visões do conto em conjunção Roxana Guadalupe Herrera Alvarez * Resumo: A partir do ensaio “Kafka y sus precursores”, de Jorge Luis Borges (1899-1986), faz-se uma incursão pelo terreno do conto, relacionando as visões que Edgar Allan Poe (1809-1849), Machado de Assis (1839-1908) e Julio Cortázar (1914- 1984) possuem sobre esse gênero. Propõe-se uma possível conexão entre os três escritores, considerados mestres do conto, pela via da proposta do ensaio borgeano, destacando as similaridades dos enfoques que pautam a elaboração artística dos contos dos três autores. Dá-se destaque à relação comprovada entre Poe e Machado de Assis e entre Poe e Cortázar, expondo a possibilidade de pensar também numa relação estreita entre Machado de Assis e Cortázar. Palavras-chave: Conto, Literatura Comparada, Allan Poe, Borges, Cortázar Precursores: uma proposta borgeana Jorge Luis Borges, em seu ensaio “Kakfa y sus precursores” (BORGES, 2007, p. 162-166), admitiu considerar Kafka um escritor singular. No entanto, com o passar do tempo, foi percebendo sua capacidade de reconhecer a voz do escritor em textos de diversas épocas, gêneros e latitudes. Esse exercício de reconhecimento, sem dúvida, estabelece a possibilidade de pensar a literatura como um amplo campo de inter-relações mediadas por parentescos nem sempre óbvios. Borges continua seu ensaio citando alguns exemplos dos textos relacionados com Kafka, seis ao todo, em ordem cronológica: o primeiro se refere ao paradoxo de Zeno contra o movimento; o segundo alude a um texto chinês sobre o unicórnio; o terceiro faz menção a um texto de Lowrie que recolhe duas parábolas de Kierkegaard; o quarto é um poema de Browning intitulado Fears and Scruples; o quinto e o sexto são dois contos, um trata da reclusão na terra natal e o outro, de uma viagem que nunca se completa. * Doutora em Teoria da Literatura, Departamento de Letras Modernas IBILCE/UNESP/CSJRP.

ALVAREZ, Roxana G. H. Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Julio Cortázar Três Visões Do Conto Em Conjunção

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    Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Julio Cortzar: trs vises do

    conto em conjuno Roxana Guadalupe Herrera Alvarez*

    Resumo:

    A partir do ensaio Kafka y sus precursores, de Jorge Luis Borges (1899-1986),

    faz-se uma incurso pelo terreno do conto, relacionando as vises que Edgar

    Allan Poe (1809-1849), Machado de Assis (1839-1908) e Julio Cortzar (1914-

    1984) possuem sobre esse gnero. Prope-se uma possvel conexo entre os

    trs escritores, considerados mestres do conto, pela via da proposta do ensaio

    borgeano, destacando as similaridades dos enfoques que pautam a elaborao

    artstica dos contos dos trs autores. D-se destaque relao comprovada

    entre Poe e Machado de Assis e entre Poe e Cortzar, expondo a possibilidade

    de pensar tambm numa relao estreita entre Machado de Assis e Cortzar.

    Palavras-chave:

    Conto, Literatura Comparada, Allan Poe, Borges, Cortzar

    Precursores: uma proposta borgeana

    Jorge Luis Borges, em seu ensaio Kakfa y sus precursores (BORGES, 2007, p.

    162-166), admitiu considerar Kafka um escritor singular. No entanto, com o

    passar do tempo, foi percebendo sua capacidade de reconhecer a voz do escritor

    em textos de diversas pocas, gneros e latitudes. Esse exerccio de

    reconhecimento, sem dvida, estabelece a possibilidade de pensar a literatura

    como um amplo campo de inter-relaes mediadas por parentescos nem sempre

    bvios. Borges continua seu ensaio citando alguns exemplos dos textos

    relacionados com Kafka, seis ao todo, em ordem cronolgica: o primeiro se

    refere ao paradoxo de Zeno contra o movimento; o segundo alude a um texto

    chins sobre o unicrnio; o terceiro faz meno a um texto de Lowrie que

    recolhe duas parbolas de Kierkegaard; o quarto um poema de Browning

    intitulado Fears and Scruples; o quinto e o sexto so dois contos, um trata da

    recluso na terra natal e o outro, de uma viagem que nunca se completa.

    * Doutora em Teoria da Literatura, Departamento de Letras Modernas IBILCE/UNESP/CSJRP.

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    Borges afirma que os heterogneos exemplos recolhidos por ele guardam com

    Kafka e com a obra kafkiana uma estreita semelhana sem, contudo, esses

    exemplos guardarem entre si a mesma relao de semelhana. Eis aqui o ponto

    mais importante apontado por Borges:

    Si no me equivoco, las heterogneas piezas que he enumerado se parecen a Kafka; si no

    me equivoco, no todas se parecen entre s. Este ltimo hecho es el ms significativo. En

    cada uno de esos textos est la idiosincrasia de Kafka, en grado mayor o menor, pero si

    Kafka no hubiera escrito, no la percibiramos; vale decir, no existira. (Idem, p. 165-166)

    Borges recolhe a questo central do seu ensaio nessas linhas: se Kafka no

    tivesse produzido seus escritos, no seria possvel reunir os seis textos to

    dspares citados por Borges. Dessa forma, possvel afirmar que Borges

    estabelece um princpio bastante simples, talvez bvio, mas deveras

    perturbador. O escritor determina seus precursores. o olhar retrospectivo e

    no o prospectivo que determina a relao entre escritores. Logo, as obras

    situadas em outros tempos e noutras culturas e lnguas se congregam ao redor

    da obra de um determinado escritor graas ao poder de um ato consciente de

    leitura, cuja tarefa revelar identidades esquivas. Essa afirmao est

    diretamente relacionada com as primeiras linhas do ensaio de Borges: Yo

    premedit alguna vez un examen de los precursores de Kafka. A ste, al

    principio, lo pens tan singular como el fnix de las alabanzas retricas; a poco

    de frecuentarlo, cre reconocer su voz, o sus hbitos, en textos de diversas

    literaturas y de diversas pocas (Idem, p. 162). Como possvel apreciar nas

    palavras do autor argentino, o ato de leitura, o exame minucioso revelam

    conexes imprevisveis. E o mais importante: nem sempre o escritor est

    consciente da relao que sua obra guarda com textos de diversas culturas,

    pocas e lnguas. Nem preciso. Essa tarefa de juntar as peas dessa relao

    ignorada pelo escritor cabe ao leitor. Ele vai congregando e colecionando as

    semelhanas e os ecos de idiossincrasias latentes at construir um mapa de

    coordenadas improvveis. Cabe perguntar: como mtodo, qual o valor de um

    olhar to vasto como o de Borges?

    Sem dvida, a Literatura Comparada estabelece uma srie de princpios teis

    para estudar um dado conjunto de textos sob determinados propsitos. Um

    desses objetivos poderia ser estabelecer as influncias que agem sobre um

    escritor ou uma obra (Cf. GUILLN, 1994). No entanto, a influncia, para ser

    um conceito passvel de aplicao, precisa do estudioso uma aferio palpvel

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    do fato. Isso diz respeito identificao inequvoca de uma dada influncia a

    partir da existncia de uma citao explcita de uma obra em outra; pode ser a

    confisso direta do escritor, que em seus prprios textos admite se identificar

    com determinados autores e obras; tambm pode ser a constatao, por meio

    da consulta de documentos histricos, de que um determinado conjunto de

    idias ou obras ditou os rumos da produo de um conjunto de textos. Nesses

    casos, a influncia no deixa de contar com um fato capaz de ser invocado

    quando preciso provar as relaes entre textos ou autores. Contudo,

    inegvel que a influncia um conceito voltil mesmo amparado e cercado

    pelas balizas dos estudos da Literatura Comparada. Quando a determinao da

    influncia no conta com provas concretas talvez o comparatista se sinta

    inclinado a rejeitar uma provvel conexo entre obras e autores precisamente

    porque falta a prova material, to cara s abordagens cientficas.

    A partir do impasse que se cria ao no se aceitar, dentro do campo da pesquisa,

    uma conexo entre obras e autores estabelecida pela mera intuio, o ensaio de

    Borges proporciona uma opo forjada no mbito da prpria arte. O

    pensamento de Borges, no ensaio em pauta, volta-se em direo possibilidade

    de considerar a literatura um fenmeno ininterrupto, no demarcado nem por

    autores nem por escolas.1 Nesse grande e nico texto, produzido e animado por

    um s e nico esprito, todos os textos, em suma, se encontram.

    No inoportuno dizer que essa idia to vasta, mas extremamente coerente,

    procede de um olhar ancorado na Arte. inegvel que um escritor v a

    literatura de uma perspectiva distinta da do estudioso da literatura. Um artista,

    quando analisa seu campo artstico, capaz de apresentar perspectivas

    assentadas em sua experincia e, por conseguinte, muitas vezes as perguntas

    so respondidas com afirmaes que no se adaptam aos caminhos traados

    pelos princpios de uma dada cincia. Para um estudioso da literatura, a

    afirmao de que a totalidade das obras literrias constitui um nico texto

    escrito por uma nica mo poderia soar to radical ao ponto de invalidar as

    abordagens classificatrias de literaturas nacionais, movimentos de poca e

    todos os conceitos organizadores de textos e autores, segundo a lgica do

    tempo. Mas sempre h como invocar a linha que separa a arte do seu estudo

    para impedir o colapso.

    Voltando ao pensamento de Borges sobre Kafka e seus precursores, constata-se

    que essa perspectiva borgeana, contrria ao que num primeiro momento se

    1 Em seu ensaio A flor de Coleridge, Borges abole os conceitos de autoria e de textos isolados para condensar tudo num s esprito deflagrador do fenmeno literrio, expresso num s grande e ininterrupto texto (v. bibliografia).

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    poderia esperar da tarefa dos estudos literrios, provoca uma reao incmoda.

    Se os precursores so escolhidos pelo prprio texto gerado pelo escritor, e se

    esses precursores podem ser identificados pela leitura atenta, isso significa

    admitir que a literatura no pode ser apreciada em seu desenvolvimento

    estritamente linear e cronolgico. Seria preciso supor que a literatura devesse

    ser apreciada como um fenmeno em que as chamadas influncias no so

    sempre explcitas. Isso estabelece o desafio de abandonar o terreno das

    influncias confessadas por um dado escritor para empreender a tarefa de

    estabelecer relaes entre literaturas muito diversas no tempo e nas geografias

    sem um antecedente a uni-las. Tambm exigiria do pesquisador dispensar as

    provas materiais da influncia a determinao das leituras realizadas pelo

    escritor objeto de estudo e documentadas em diversos escritos; a tarefa de

    vasculhar os textos do escritor procura de uma frase especfica retirada de

    uma obra; a confisso de que h um mestre etc. para empreender um

    caminho ngreme, alumiado somente pela fraca luz da idia borgeana.

    Sem dvida, isso levaria, ainda, a um caminho bastante radical: em ltima

    instncia, todos os textos literrios esto profundamente relacionados entre si.

    Alm disso, Borges afirma em seu ensaio que, no caso do poema de Browning,

    os versos prenunciam os escritos de Kafka, mas tambm verdade que a

    existncia dos escritos de Kafka possibilita uma singular leitura do poema de

    Browning. O poema de Browning no era lido em sua poca do mesmo modo

    que se l hoje depois de ter lido as obras de Kafka. Nesse sentido, Borges

    observa que a tarefa de todo escritor modifica a concepo de passado e

    tambm modificar a do futuro (BORGES, 2007, p. 166). E ainda, para

    obscurecer mais, Borges afirma que as primeiras obras de Kafka so menos

    precursoras da obra kafkiana do que os textos citados como precursores! Desse

    modo, encontram-se os grandes temas kafkianos disseminados na literatura de

    variadas pocas e lugares e no necessariamente nos primeiros escritos desse

    autor. Assim, o conceito de evoluo tambm questionado. No h evoluo

    sem que se julgue existir nos primeiros escritos de um autor as sementes do

    que na maturidade se revelar um grande tema ou uma tcnica eficiente.

    Evoluo, nesse sentido, , tambm, um conceito precrio, pois h autores

    rompendo com seus primrdios e lanando-se a uma plenitude nunca antes

    prenunciada.

    As reflexes advindas do ensaio de Borges estabelecem, sem dvida, um novo

    percurso na compreenso das relaes entre os diversos escritos constitutivos

    do grande acervo da literatura, entendida como o conjunto de textos vistos

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    alm das delimitaes das distintas pocas e dos diversos pases e lnguas.

    Nesse sentido, um escritor de uma dada nao poderia ter um precursor, sem o

    (re)conhecer, numa outra fronteira, a se expressar numa outra lngua e numa

    outra poca. Essa sintonia poderia estar ancorada nas reminiscncias do estilo,

    das idiossincrasias, do tom, da atmosfera, dos temas, das personagens e

    somente se revelaria pelo poder de evocao de um leitor atento, como Borges

    deixa entrever.

    Seria lcito indagar se essa evocao que correlaciona textos e autores de

    pocas e naes dspares, sem sinais explcitos desse pressuposto

    relacionamento, poderia se tornar um mtodo eficaz para abordagem e estudo

    da literatura. Sim e no. A resposta afirmativa estaria amparada no prprio

    carter do objeto estudado, como Borges parece elucidar. As obras literrias

    produzidas numa dada poca extrapolam os limites impostos pelo momento,

    pelos costumes coetneos e adquirem, na leitura empreendida em outras

    pocas, significaes se no radicalmente diversas das de seu tempo, pelo

    menos amplificadas pelo novo contexto temporal que as acolhe. Disso se

    depreende que o estudo de um texto literrio, alicerado em abordagens

    histricas ou sociolgicas, com o intuito de compreender os costumes e

    motivaes prprios de uma dada poca, no est excludo dessa perspectiva de

    leitura, uma vez que a compreenso do texto prope um trabalho de

    reunificao de perspectivas, tanto das que se mantm ligadas ao tempo da

    concepo artstica do texto, quanto s da poca em que a nova leitura

    realizada. Esses fios temporais se superpem e enredam permitindo verificar

    que um texto de pocas passadas pode estar presente em tom, atmosfera,

    idiossincrasias num dado texto atual. E esse dilogo possvel graas a um

    ponto em comum entre escritores: a possesso de um olhar que, fixando-se nos

    objetos de seu tempo, capaz de dotar esses objetos de uma ordenao capaz

    de fazer sentido tambm ou somente no futuro. E esse fazer sentido no

    corresponde, necessariamente, a entender as significaes completas da

    ordenao original, tambm diz respeito ao fato de os objetos do passado

    continuarem existindo, mesmo com outras roupagens, para o olhar de leitores

    de pocas futuras. Isso tem a ver com o que se costuma dizer da literatura:

    possuidora de um sentido universal do humano.

    Por outro lado, a resposta negativa questo acima exposta, relaciona-se com

    a falta de provas materiais: citaes, aluses, pardias, parfrases, plgios e

    demais. Esses vestgios explcitos, levantados dentro de um dado texto, indicam

    claros caminhos em direo relao inequvoca entre autores e textos de

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    diversas procedncias. Mas tambm limitam grandemente a possibilidade de

    estabelecer nexos entre obras a partir da percepo global de uma semelhana

    difusa, estabelecida em termos menos explcitos: o tom da composio de um

    conto, por exemplo.

    O conto em perspectiva

    lugar-comum dos estudos literrios considerar o conto um produto de origem

    popular, de veiculao oral. Afirma-se que muitas de suas caractersticas

    advm, precisamente, desse tom descontrado das narrativas movidas pelo

    sabor do momento. Um relato oral aduna o tom do contador de histrias e o

    cenrio do qual se pode extrair boa parte do interesse da narrativa. Ento,

    pensar o conto nesses termos permite supor que todos os contos tm uma

    matriz comum, guardada e garantida pelas origens incertas do gnero. Nesse

    sentido, seria fcil e apropriado dizer que o primeiro contista, cuja identidade

    talvez nunca seja revelada , obrigatoriamente, precursor de toda a linhagem

    de contistas conhecidos at hoje. E essa afirmao no carece de lgica, pelo

    contrrio, tem o mrito de dar ao conto um aspecto coeso e quase eterno (cf.

    MARTN TAFFAREL, 2001).

    No entanto, difcil sustentar, mesmo dentro de um gnero como o conto,

    relaes to amplas de aproximao entre autores e textos. Aqui entra outro

    lugar-comum dos estudos literrios, o que diz respeito viso da literatura

    organizada em movimentos de poca, com um conjunto de caractersticas

    prprias cuja funo delimitar estilos. Por meio dessa viso, cria-se um

    pequeno empecilho idia de um precursor comum para todos os contistas,

    pois havendo distintos estilos de poca, marcados por caractersticas prprias,

    como seria possvel falar de um precursor para todos eles?

    Considera-se que um determinado movimento literrio visto em seu conjunto,

    caracteriza-se por manter a coeso por meio de um grupo de escritores que se

    expressa aderindo a uma determinada conveno, a qual tornar reconhecvel a

    produo desses artistas como dentro de um dado movimento e os far ser

    excludos de outro. Consta que essa tentativa delimitadora pode ser

    amplamente questionada, como o provam os trabalhos mais acurados sobre

    autores inclassificveis.2 Ento, a objeo possibilidade de estabelecer um

    precursor, acima das fronteiras dos movimentos literrios, no se sustentaria,

    principalmente porque o conto poderia ser apreciado mais como estrutura

    2 Machado de Assis um caso atpico na histria da literatura brasileira. H dificuldades em consider-lo ora romntico, ora realista, segundo as pocas e estilo de sua produo. um escritor que parece no se adequar s caractersticas atribudas ao Romantismo e ao Realismo.

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    composicional, cujas caractersticas, nesse nvel de apreciao, poderiam ser

    citadas em seu conjunto, e menos como variao ao sabor dos estilos de poca.

    Desse modo, as afinidades textuais revelar-se-iam alm das fronteiras dos

    movimentos literrios, alm das convenes literrias.

    Voltando proposta do ensaio de Borges, ao afinar as fronteiras demarcadoras

    dos estilos de poca, seria possvel ver nos contos cultivados nesses distintos

    tempos, pases e lnguas um incessante dilogo em busca de uma forma

    comum. Porm, pode-se pensar que a idia de manter um gnero como

    norteador, neste caso, o conto, anular a ampla viso borgeana que d

    literatura uma natureza quase infindvel. No entanto, a delimitao proposta

    pelos gneros est compreendida tambm nessa vasta apreciao borgeana da

    literatura. E ao tomar o conto como fio condutor, ser possvel estabelecer um

    canal de comunicao entre trs autores, de pocas, lnguas e geografias

    diversas: o estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), o brasileiro Joaquim

    Maria Machado de Assis (1839-1908) e o argentino Julio Cortzar (1914-1984).

    Poe considerado um dos mestres do conto moderno. Isso supe dizer que o

    conto, antes do sculo XIX, havia sido, em certo sentido, eclipsado vrias vezes

    por outros gneros. Tomando o ramo hispnico do gnero que serve de guia

    para imaginar o acontecido em outros contextos , das suas origens milenares,

    passando pela Idade Mdia, mais especificamente nos antigos territrios que

    hoje congregam a Espanha, houve o cultivo de um tipo de conto breve que

    servia a interesses elitistas e cuja finalidade eminentemente didtica se

    destacava como marca registrada. Esses relatos recebiam durante essa poca

    nomes variados: eixemplo, fbula, aplogo, novela. Vejam-se os textos

    recolhidos em El Conde Lucanor, do infante Don Juan Manuel, para citar um

    exemplo consagrado. Tem-se, durante a Renascena, o cultivo de um tipo de

    relato mais extenso, tambm ligado aos valores religiosos, filosficos e morais

    segundo a perspectiva da poca. As Novelas ejemplares, de Miguel de

    Cervantes, obra publicada no sculo XV, um exemplo bem acabado de conto.

    J no Sculo das Luzes houve uma srie de realizaes nesse campo tambm,

    porm deixadas em segundo plano pelos ensaios, as fbulas e a poesia (cf.

    OMIL; PIEROLA, s.d.). Com a chegada do sculo XIX, segundo as periodizaes

    literrias aceitas, passam a conviver e a se suceder nesse sculo o Romantismo,

    o Naturalismo, o Realismo, para citar os estilos de poca mais lembrados. Cada

    um desses movimentos apresenta um carter particular de realizaes

    artsticas, como recolhem tantos manuais de literatura. E nesse sculo que o

    conto volta a se revelar um gnero importante.

  • 239

    Julio Cortzar e Edgar Allan Poe

    Poe nasceu e viveu nos primeiros anos do sculo XIX nos Estados Unidos e,

    segundo a biografia elaborada pelo escritor argentino Julio Cortzar como

    introduo a um volume de contos do escritor norte-americano traduzidos para

    o espanhol pelo prprio Cortzar, Poe conviveu com um entorno vulgar e sua

    capacidade artstica foi, por muitos, admirada, mas tambm ignorada por outros

    tantos. Em suma, Cortzar sustenta que Poe era um deslocado, um homem sem

    possibilidade de encontrar eco paras suas inquietaes intelectuais e artsticas

    em seu meio. Sem dvida, Poe, circundado pela aura de artista incompreendido,

    como tem sido plasmado na histria da literatura, recebe, como foi apontado

    acima, o ttulo de mestre do conto moderno, junto com Maupassant e Tchekov.

    E a categoria de mestre foi atingida por ele graas a um conjunto de poemas e

    contos admiravelmente construdos e a uma srie de ensaios voltados criao

    e elaborao de obras literrias e ao comentrio sagaz de obras de seus

    contemporneos (cf. CORTZAR, 1993, p. 103-146).

    As reflexes de Poe sobre a literatura so interessantes porque as alicera numa

    perspectiva intelectual do ato de escrever. Munido de um talento lgico colocado

    ao servio da sua arte, Poe soube descrever e dissecar o percurso de sua mente

    na arquitetura de um longo e lgubre poema intitulado O corvo, cujo

    desvendamento, no que diz respeito a sua criao e elaborao, referido

    minuciosamente no conhecido ensaio A Filosofia da composio.3 Mesmo que

    tal ensaio dedique a totalidade das reflexes poesia e feitura do poema, no

    escapa que as idias expostas com uma preciso surpreendente possam

    tambm servir para refletir sobre outro gnero que, para Cortzar, guarda

    profunda relao com o poema: o conto.

    Em seu ensaio A Filosofia da composio, Poe (1999, p. 101-114) afirma que

    o poeta deve buscar para sua obra um grande tema humano e um tom

    adequado para tratar esse tema; deve escolher o ritmo da linguagem, o qual

    deve espelhar o tom e o tema; deve prever o clmax, que poder coincidir com o

    final do poema para poder construir as demais partes ao redor desse ponto alto

    que se deseja atingir. Como se v, Poe afirma que a escolha deliberada de um

    dado efeito que se deseja impor sobre o leitor deve nortear todo o trabalho de

    construo do poema. Sem essa intencionalidade no possvel encontrar os

    elementos adequados para compor o texto.

    3 Cortzar observa, no texto sobre Poe, que o escritor norte-americano certamente criou uma espcie de jogo com o qual pretendia convencer o leitor de seu ensaio que tivera domnio absoluto no ato de compor um poema extenso. Cortzar afirma que muito escapa da conscincia de todo escritor com relao composio de suas obras.

  • 240

    Um dos grandes mritos de Cortzar ter interpretado e trazido as idias de

    Poe para o mbito de sua prpria produo ensastica e contstica. O escritor

    argentino recolhe em dois conhecidos ensaios uma teoria sobre o conto

    espelhada em Poe: Alguns aspectos do conto (CORTZAR, 1993, p. 147-163)

    e Do conto breve e seus arredores (Idem, p. 227-237). O escritor argentino

    elaborou uma teoria do conto a partir dos conceitos de tenso e intensidade,

    descritos no ensaio Alguns aspectos do conto. Esses princpios nascem de uma

    leitura eficaz e sensvel dos escritos literrios e crticos de Poe. Sem dvida,

    tenso e intensidade so conceitos globais que devem ser compreendidos a

    partir da leitura completa de um dado conto. Tenso e intensidade resultam da

    necessria somatria de todos os elementos utilizados para estruturar um conto

    e dizem respeito ao tema e ao trabalho preciso com a linguagem. A escolha do

    tema, como diz Cortzar, muito importante porque ligado a ele surgem as

    palavras precisas que vo construir o conto. A tenso procede da relao de

    economia presente no conto, de tal modo que seus elementos no sobrem nem

    faltem. Isso redunda num cuidado com a elaborao de cada frase e as

    digresses nunca so contempladas. A intensidade procede de um trabalho na

    vertical, como diz Cortzar, num processo de aprofundamento at atingir uma

    fora capaz de atingir o leitor em cheio, do mesmo modo como o escritor o foi

    por conta da elaborao do conto.

    O trabalho de anlise profunda da obra de Poe foi empreendido por Cortzar

    quando fez a traduo dos contos do escritor norte-americano. Sem dvida, a

    tarefa de verter para o espanhol as narrativas de Poe causou em Cortzar a

    impresso de estar apreciando o tecido pelo avesso. Penetrar na mquina de

    elaborao dos contos de Poe obrigou o escritor argentino a percorrer um

    caminho de criao tambm, pois ao traduzir uma obra literria, inegvel que

    a linguagem em que se traduz dever perseguir os sentidos poticos da obra

    original. Esse trabalho meticuloso de traduo revelou para Cortzar

    possibilidades criativas reveladas na forma de seus contos mais clebres: Casa

    tomada, a histria de dois irmos coagidos a deixar sua casa por uma fora

    inexplicvel , sem dvida, um belo dilogo intertextual com A queda do solar

    de Usher; Manuscrito hallado en un bolsillo [Manuscrito encontrado num

    bolso] retoma uma viagem sem retorno empreendida como o protagonista de

    Manuscrito encontrado numa garrafa. Esses dois exemplos contam com o

    reconhecimento de que Poe foi uma das mais atuantes e reconhecidas

    influncias de Cortzar. Um leitor desavisado, que por ventura lesse primeiro

    um desses contos de Cortzar e continuao um dos de Poe, e nada soubesse

  • 241

    de estudos literrios nem sobre ordenao cronolgica, poderia pensar que o

    argentino influenciou o norte-americano, por uma questo de ingenuidade

    temporal, talvez. Esse equvoco serviria para nos alertar sobre a pretensa

    circularidade do tempo e dos fenmenos, como j disse certa vez Borges em

    seu conto Las ruinas circulares [As runas circulares]. Obviamente, numa

    percepo dessa natureza, no h necessidade de situar o passado e o futuro,

    pois se encontram coexistindo sempre num dado ponto. Retomando o ensaio

    borgeano, pode-se perceber que se o escritor permite estabelecer seus

    precursores, no de forma voluntria, mas por afinidades percebidas entre suas

    obras e as de seus predecessores graas ao trabalho de leitura, provavelmente

    poder-se-ia estabelecer uma afinidade entre Julio Cortzar e Machado de Assis.

    Seria possvel dizer que Machado de Assis , em certo sentido, precursor de

    Julio Cortzar.

    Machado de Assis e Edgar Allan Poe

    conhecido o prlogo do volume machadiano de contos intitulado Vrias

    histrias. Nele, o escritor brasileiro aprecia os contos de Poe e os destaca como

    sendo entre os primeiros escritos da Amrica. (MACHADO DE ASSIS, 1992, p.

    476). Tambm sabido que Machado de Assis traduziu o poema O corvo.

    Nesse labor analtico e delicado de traduo, houve um processo anlogo ao

    vivenciado por Cortzar. Traduzir propiciou a Machado de Assis um exerccio

    literrio de apreciao crtica, um esforo para encontrar no prprio idioma

    afinidades de ritmo frasal e intelectual com a obra de Poe. Assim, a tarefa

    tradutria deve ter contribudo para o desvendamento de certos procedimentos

    da linguagem do escritor estadunidense que no escaparam ao olhar atento do

    escritor brasileiro.4

    Voltando aos contos, h dois casos particulares na prosa de Machado de Assis

    que vale a pena citar, destacando a relao com os escritos de Poe. Os contos

    O enfermeiro, angustiante releitura de O corao denunciador, de Poe, sem,

    contudo, dar aos sentimentos de culpa e remorso um lugar de destaque, como

    no conto do norte-americano, e A causa secreta que espelha uma situao de

    sadismo invertido. O Fortunato machadiano o torturador. No conto O barril de

    Amontillado, de Poe, Fortunato vitimado pela inveja de um algoz sem nome.

    Essas duas narrativas de Machado de Assis recolhem, sem dvida, um dilogo

    intertextual com os contos de Poe. H um processo de estilizao mais evidente

    4 Sobre a importncia do ato de traduzir, consulte-se o ensaio de Jorge Luis Borges intitulado Las versiones homricas e o ensaio de Walter Benjamin A tarefarenncia do tradutor (v. Bibliografia).

  • 242

    em A causa secreta, principalmente porque a reminiscncia do conto de Poe

    est no nome de uma das personagens, Fortunato que, de vtima no conto de

    Poe, passa a algoz no conto machadiano, como j foi apontado. No outro conto,

    o enfermeiro v esmorecer com o passar do tempo o remorso e acaba eximido

    de qualquer culpa pelas circunstncias. J no conto de Poe, a personagem

    admite sua loucura e no esforo de ocultar o crime, tentando agir de modo

    normal e inocente, incrimina-se e confessa o assassinato aos brados. Os

    narradores-protagonistas desses dois contos tm em comum a necessidade de

    se explicar. A percepo do dilogo entre os contos de Machado de Assis e os de

    Poe5 coloca em evidncia uma afinidade intelectual que eclodir numa possvel

    relao entre o escritor brasileiro e Cortzar, como j se disse, pela via

    borgeana.

    Machado de Assis, precursor de Julio Cortzar

    Sabe-se que o escritor brasileiro admirava a obra de Poe. Logo, se Poe

    admirado por Cortzar e Machado de Assis, possvel inferir a existncia de

    uma relao de afinidade entre o escritor brasileiro e argentino, oriunda, no de

    um necessrio contato de um com a obra do outro, mas de uma postura crtica

    face criao artstica e da abordagem de alguns temas. No caso especfico do

    conto, Machado de Assis pode ser um legtimo precursor de Cortzar, num lato

    sentido borgeano. Principalmente porque, parafraseando Borges, se Cortzar

    no tivesse escrito seus contos, no seria possvel encontrar ecos de sua

    perspectiva crtica e de alguns temas em contos de Machado de Assis. Logo, a

    perspectiva machadiana do conto encontra ecos na obra de Cortzar, dessa

    forma, o escritor argentino escolheu como seu precursor o escritor brasileiro,

    segundo a curiosa perspectiva borgeana.

    Uma relao mais imediata entre as obras de Cortzar e Machado de Assis a

    que aponta a utilizao por parte de ambos de um narrador-defunto. No conto

    Las babas del diablo, includo no volume Las armas secretas, de Cortzar, o

    narrador, um fotgrafo, escreve olhando as nuvens que passam sobre sua

    desgraa, confessa sua condio de morto e passa a relatar as circunstncias de

    seu decesso.6 J o romance machadiano intitulado Memrias Pstumas de Brs

    5 Para obter mais informaes sobre a relao entre os textos de Machado de Assis e de Edgar Allan Poe consulte-se a obra Machado de Assis: um escritor na capital dos trpicos, de Patrcia Lessa Flores da Cunha. Um estudo importante sobre a relao intertextual entre os dois autores. Oferece um estudo interessante de uma srie de textos dos dois autores, do qual no consta a relao estabelecida entre os contos citados neste artigo. 6 No prlogo do volume Las armas secretas, de Julio Cortzar, Susana Jakfalvi observa que o narrador de Las babas del diablo , dada sua complexidade, j foi identificado com Michel, o

  • 243

    Cubas apresenta um autor-narrador defunto que vai organizando suas

    lembranas ao sabor de uma conscincia irnica, capaz de desvendar uma

    existncia ftil. Esse expediente narrativo um narrador que se confessa

    defunto uma semelhana que no escapa. No entanto, inegvel que cada

    escritor imprimiu uma vontade peculiar quando concebeu um narrador nessas

    condies. Na perspectiva dos estudos voltados obra de Cortzar, o narrador-

    defunto inserido no fantstico ou no neofantstico, como quer o crtico

    argentino Jaime Alazraki.7 Nesse sentido, o narrador-defunto de Cortzar

    desestabiliza uma noo de real e prope uma viso perturbadora, tpica dos

    seus contos. J o narrador-defunto machadiano nem sequer coloca em pauta a

    possibilidade de se deter em seu provvel carter fantstico. Desvia-se o foco

    do carter surpreendente do narrador j estar morto e referir sua histria e se

    aceita como parte inerente da narrativa, cujo tom eminentemente irnico.

    Talvez esse exemplo baste para expor um grau de aproximao entre Cortzar e

    Machado de Assis, dada a escolha de narradores em estreita afinidade. Contudo,

    h um ponto que demonstra uma afinidade muito maior entre o escritor

    argentino e o brasileiro. Trata-se da conscincia crtica com que ambos

    empreenderam o ofcio de escritor. Nesse ponto, ser oportuno lembrar que

    tanto Cortzar quanto Machado de Assis tiveram em Poe um mestre. O conto,

    gnero difcil, assim designado pelo escritor brasileiro, foi cultivado pelos trs

    artistas visando a excelncia do gnero. Tal objetivo fica patente na proposta de

    elaborao dos textos literrios desses autores. Para Poe, como se viu, uma

    composio literria perfeita persegue um propsito claro: planeja-se a obra a

    partir do efeito a ser obtido, no sem antes ter planejado cuidadosamente o

    eplogo. Para Cortzar, o conto precisa de uma clara noo de economia e

    harmonizao entre os elementos que o constituem, de tal modo que possa

    impactar o leitor. Para Machado, o conto, produto contundente, ergue-se pela

    mo segura de um narrador, cujo olhar impregnado de certo desencanto pela

    vida, vai oferecendo caracteres desvendados ironicamente, os quais produzem

    no leitor ora o riso agitado, ora o riso melanclico. Sem dvida, os trs

    escritores optam pela consecuo do impacto como a mais habilidosa forma de

    capturar e golpear o leitor. H nos trs a construo medida, cujo resultado

    fotgrafo e tradutor que morreu e conta sua histria, j foi apontado como a lente da mquina fotogrfica, e j foi analisado como o prprio tempo (v. Bibliografia). 7 Jaime Alazraki, em seu ensaio Qu es lo neofantstico? aponta uma srie de caractersticas que separam o neofantstico da concepo clssica de gnero fantstico. Insere Cortzar nesse novo gnero e depreende dos contos do escritor argentino muito do que caracteriza o neofantstico (v. Bibliografia).

  • 244

    um final impregnado de surpresa, seja pela via do estranho, como em Poe, pela

    do fantstico, como em Cortzar, pela da ironia, como em Machado.

    Alm da identificao existente entre os trs escritores, no que diz respeito ao

    trabalho com a construo do conto, Cortzar e Machado de Assis podem,

    ainda, ser aproximados em termos da temtica de alguns textos. Tome-se o

    texto cortazariano Distante espejo [Distante espelho], obra pouco conhecida e

    ausente das antologias mais comuns, e o conto machadiano O espelho. No

    relato de Cortzar, h um narrador em primeira pessoa, tambm personagem,

    que se apresenta como ser arredio. um professor interiorano, dado ao deleite

    da leitura. Na tarde do dia 15 de junho de um ano no definido, contrariando o

    costume cotidiano de permanecer fechado em seu quarto a tarde toda,

    impelido a sair. Vai pelas ruas da cidade sentindo o calor do sol e, subitamente,

    afirma ter sido tomado por uma sensao que parece cindir corpo e alma. O

    corpo deseja ir por um determinado caminho e a alma, por outro. Empurrado

    por uma fora estranha, abandona o projeto de ir at a praa do povoado e

    ruma em direo casa de uma colega da escola. Toca a campainha

    insistentemente e se d conta de que no h ningum. Movido por algo

    incompreensvel, entra na casa e percebe que est na penso onde mora. Tudo

    como na penso. Reconhece a sala, os mveis e v a porta do seu quarto.

    Entra e se v a si mesmo lendo confortavelmente vestido. O horror paralisa o

    corpo do observador, que se percebe realizando todas as atividades habituais

    sem notar-se a si mesmo enquanto observador. O observado passa pelo

    observador como diante de um espelho bem conhecido, sem olhar a imagem

    diretamente. A dissociao dura at o momento em que o observador e o

    observado saem do quarto e vo at a rua. Ao voltar, j so um s ser e tm a

    certeza de terem entrado, dessa vez, na verdadeira penso em que moram.

    Indescritvel a sensao e o prenncio da insnia. Dedica o tempo a gravar na

    escrivaninha suas iniciais: G. M. Fica acordado at o amanhecer e vai se deitar

    lembrando que ter aula s nove da manh. Depois da aula, decide ir at a casa

    da colega da escola. Ela o recebe e ele entra receoso de encontrar a moblia e o

    quarto da penso, mas tudo diferente, est na casa da colega. Respira

    aliviado, mas, ao entrar na sala, tem a impresso de que entrar novamente em

    seu quarto da penso. A impresso dura pouco, pois encontra mveis

    desconhecidos e no os dele. Porm, a sensao de alvio dura pouco. A colega

    da escola, ao mostrar a moblia da sala, no reprime um sentimento de

    desapontamento ao ver a escrivaninha rabiscada, talvez por obra dos netinhos.

    Ao chegar mais perto, o narrador-personagem encontra gravadas as iniciais G.

  • 245

    M. Suas iniciais. Como possvel notar, o impacto e o efeito-surpresa do texto

    procedem do fato de ter havido uma espcie de superposio inexplicvel de

    espaos e tempos, tudo captado por uma conscincia que observa, fora e dentro

    de si. No entanto, tambm possvel pensar num simples acaso que pode ter

    gerado a existncia de dois pares de iniciais, G.M., em duas escrivaninhas

    diferentes. Essa ambigidade capaz de instaurar uma dvida que s faz

    aumentar o impacto do final do conto.

    J o conto machadiano O espelho narra uma surpreendente experincia

    vinculada descoberta da prpria identidade. O narrador refere a um grupo de

    amigos a experincia vivenciada em sua juventude: a descoberta de que h

    duas almas, uma que olha de dentro para fora e outra, de fora para dentro.

    Essa ltima a alma exterior, que pode ser um esprito, um fluido, pessoas,

    uma operao, um objeto qualquer. Refere a poca em que foi nomeado alferes

    da guarda nacional e como foi chamado por uma tia que pediu para v-lo e que

    levasse a farda. No quarto destinado a ele, a tia mandou colocar um grande,

    velho e rico espelho. Tantas atenes recebidas fizeram o rapaz eliminar o

    homem para ceder espao ao alferes. Sua alma exterior se identificava com

    tudo o que era prprio de seu posto e com os elogios recebidos. Um dia,

    estando sozinho na casa da tia, depois de dias sumido na mais completa

    solido, decide se olhar no espelho. Tem a ntida sensao de se sentir cindido

    em dois e pensa ter visto sua imagem esfumaada no reflexo do espelho.

    Agoniado com a sensao de incompletude refletida, decide vestir o uniforme e

    olhar-se no espelho. Contempla sua imagem completa e clara, sua alma exterior

    estava ntegra no espelho. Subitamente percebe que ao vestir o uniforme

    consegue se sentir completo e, desse modo, enfrenta a solido ao longo de dias.

    Depois que a narrativa termina, o narrador escapole e deixa seus ouvintes

    surpresos.

    possvel estabelecer uma relao entre os dois textos apresentados. Tanto o

    de Cortzar quanto o de Machado se debruam sobre a problemtica da

    identidade vista a partir de um confronto crucial. O momento decisivo

    vivenciado pelas personagens estabelece um percurso incmodo, pois revela

    que a sensao unvoca do indivduo pode ser somente uma iluso. Diante da

    possibilidade da ciso entre alma e corpo, como no texto de Cortzar, ou entre a

    alma interior e a exterior, como no conto de Machado, os narradores atualizam

    em suas narrativas o dilema humano, sintetizado em pares j conhecidos: ser

    ou parecer, estar acordado ou sonhar, viver ou morrer, ser ou no ser... Os

    corpos aparentemente slidos, quando enfrentados aos seus respectivos

  • 246

    reflexos, devolvem um simulacro cujo impacto sobre o observador revela a

    precariedade da capacidade perceptiva e, qui, a da prpria certeza de existir

    coerentemente.

    Como possvel notar, Machado de Assis e Cortzar tangenciam, em seus

    relatos, um grande tema humano tomando como fio condutor o espelho e seu

    reflexo. Tal coincidncia no tratamento de um tema no deve surpreender,

    porque o espelho um objeto cuja simbologia recolhe abundantes matizes nos

    variados contextos culturais. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1989, p. 393-

    396), o espelho o smbolo da sabedoria e do conhecimento, tambm

    utilizado para a arte da adivinhao. Considera-se, igualmente, como a alma,

    que capaz de refletir a beleza ou a feira, mas no passivamente, pois a alma,

    enquanto instrumento puro, refletir melhor e poder se fundir com o que

    reflete, transformando-se.

    Dessa forma, colocados juntos, os textos se iluminam mutuamente e o leitor

    capaz de, ao modo da proposta borgeana, traar intersees e rotas que

    propiciam o encontro entre a perspectiva machadiana e a cortazariana. Mas a

    afinidade no esta presente s no tratamento do tema, tambm possvel

    perceber o comprometimento, por parte dos dois autores, com a elaborao do

    conto. Ambas narrativas seguem um percurso que recolhe uma srie de

    elementos postos a funcionar com o objetivo de conseguir um grande impacto

    final. No texto de Cortzar, a sequncia de eventos se apia numa aparente

    feio comum: a vida regrada de um professor interiorano e solitrio se v

    subitamente alterada num dia qualquer em que experimenta uma sensao de

    intranqilidade a lan-lo rua, em busca de algo indefinido. Essa sada ser o

    ponto de partida de uma experincia estranha: a ciso de alma e corpo. A partir

    desse dado intangvel, s definido pela subjetividade da personagem, os

    eventos comeam a criar um cenrio inquietante que se revela perturbador,

    quando no final do relato, o narrador-personagem acredita reconhecer, na sala

    da colega da escola, as iniciais G. M. gravadas numa escrivaninha desconhecida.

    O ato de gravar as iniciais foi executado por ele, sem dvida, numa escrivaninha

    da penso em que mora, mas como apareceram as letras num outro espao

    fsico? J o conto de Machado de Assis vai se tecendo a partir da introduo de

    um narrador em terceira pessoa que cede a voz a uma personagem que relatar

    sua incomum experincia. Na juventude, sendo alferes, vai visitar uma tia e

    recebe atenes constantes, de tal modo que passa a se identificar

    profundamente com sua posio de alferes, esquecendo sua vida de antes. Um

    dia, enfrenta uma situao inusitada que em si uma revelao: abandonado

  • 247

    de todos e ao se contemplar no espelho, sua figura se esvai. S quando se olha

    vestido de uniforme de alferes passa a se enxergar slido e real. Desse modo,

    enfrenta a verdade dos fatos: a alma exterior pode ser capaz de sustentar a

    identidade de um ser. Tal revelao deixa sumidos na perplexidade seus

    ouvintes e tambm o leitor.

    Como possvel apreciar, os desfechos dos contos propem situaes cuja

    compreenso d ao leitor a capacidade de entender como a mobilizao gradual

    dos elementos narrativos, no incio, meio e fim da narrativa, teve o propsito de

    atingir o ponto alto, na forma de uma grande revelao. No conto de Cortzar, o

    desvendamento da precariedade do que chamado de real. No conto de

    Machado de Assis, a incerteza da prpria existncia. O leitor, contundido pela

    revelao do grande tema dos contos, saboreia, aps a leitura, uma sensao

    de desassossego. Nesse ponto, oportuno assinalar que Poe, Machado de Assis

    e Cortzar pertencem linhagem dos contistas devotados a desbaratar qualquer

    esperana e a pr em constante dvida toda e qualquer certeza que possa

    trazer um pouco de consolo e segurana diante das coisas intrincadas do

    mundo. O leitor que os escolhe e l sabe de antemo as pontes que ter de

    cortar e as explicaes s quais ter de renunciar.

    Poe, Machado de Assis e Cortzar: sintonias reveladoras

    Uma vez apreciada a possibilidade de descobrir afinidades entre Machado de

    Assis e Cortzar, pela via borgeana, ser oportuno se referir trade de

    contistas, formada por Poe, Machado de Assis e Cortzar, como impulsionada

    por um mesmo ideal de realizao artstica. A sintonia percebida entre esses

    trs mestres do conto seria tal qual o parentesco intudo por Borges em seu

    ensaio Kafka y sus precursores: a obra de um determinado autor capaz de

    mobilizar reminiscncias na produo de outro escritor, pelo ato da leitura,

    mesmo que no tenham uma relao comprovada nem se reconheam as

    influncias. No caso da trade em pauta, sem a existncia de Poe, qui no

    seria possvel pensar em aproximar Machado de Assis e Cortzar. O fato de o

    escritor brasileiro e o argentino terem reconhecido em Poe um grande mestre,

    esboa a possibilidade de encontrar afinidades entre os dois escritores latino-

    americanos. Tais afinidades dizem respeito postura crtica com a qual se

    dedicaram tarefa de escrever e adeso s idias de Poe sobre a elaborao

    do conto, cingindo-se consecuo de um grande efeito ligado basicamente ao

    eplogo. Cortzar dedicou ensaios a essa temtica, nos quais possvel notar a

    adeso s idias de Poe. Vejam-se os j citados Do conto breve e seus

  • 248

    arredores e Alguns aspectos do conto. As breves aluses de Machado de

    Assis, na introduo de alguns volumes de contos, obra de Poe e a magistral

    elaborao dos seus prprios contos, cuja leitura vai desvendando o engenhoso

    maquinismo posto em movimento em cada texto, revelam um trabalho de

    reflexo em parte motivado pelas idias de Poe. Trata-se de um reconhecimento

    da obra do escritor estadunidense e de suas importantes realizaes sem,

    contudo, deixar de dar s prprias obras uma marca singular.

    Tal singularidade se faz mais patente ao se incursionar pelo campo do fantstico

    e do estranho, classificados como gneros autnomos por Todorov (2003, p. 47-

    63). Segundo a viso desse crtico, a contstica de Poe dialoga basicamente com

    o estranho, pois, em muitos contos, h uma revelao que faz cair por terra a

    presuno da existncia de um fenmeno sobrenatural. H o desvendamento ou

    explicao racional dos fatos, antes tomados como espectrais. Veja-se o conto

    j citado A queda do solar de Usher, no qual h o episdio da irm do amigo

    do narrador-protagonista que parece ter ressuscitado, mas, na verdade, o que

    acontece que a depositaram num nicho quando sofreu um ataque de

    catalepsia e, ao voltar a si, descobre ter sido posta dentro de um atade,

    consegue escapar e volta para se vingar do irmo. Esse gnero se revela ideal

    para ser moldado de acordo com as propostas de Poe, j que um dado efeito e

    um final contundente podem ser obtidos na elaborao de contos acordes com o

    gnero estranho ou fantstico. Por outro lado, ser oportuno observar que no

    escapa a qualquer estudioso do gnero fantstico o fato de Machado de Assis,

    ao incursionar pelo gnero, preferir sacrificar a realizao pura e simples de um

    relato fantstico para pr o texto ao servio de uma aparente tese moral, como

    no conto Sem olhos, em que o adultrio aparece punido de forma

    estarrecedora, ou para resvalar pelas fronteiras do grotesco e do irnico, como

    em Um esqueleto. J Cortzar preferia revolucionar o gnero fantstico no

    abrindo mo dos expedientes tradicionais do gnero com o objetivo de neg-los,

    revitaliz-los e atualiz-los. Prova disso o j citado relato Casa tomada, uma

    angustiante experincia motivada por uma presena nunca conhecida nem

    revelada e devotada a expulsar dois irmos do lar. Nesse sentido, muito difcil

    apontar afinidades entre Machado de Assis e Cortzar no terreno do fantstico,

    pois o cultivo desse gnero, possvel via de estudo, mais parece afastar os dois

    escritores latino-americanos e no aproxim-los. Onde residiria, ento, o

    territrio comum desses dois escritores? Como foi apontado acima, na

    conscincia voltada elaborao artstica, no reconhecimento de que o conto

    um gnero difcil porque visa economia de meios, obteno de um grande

  • 249

    efeito revelado basicamente no eplogo, estrutura bem concebida e executada,

    segundo os ditames de Poe, e preferncia por dados temas, como o da

    identidade, j comentado. Nesse sentido, tambm outros escritores poderiam

    ser aproximados por essa via e formariam uma constelao: a dos influenciados

    por Edgar Allan Poe. Do mesmo modo, seria possvel encontrar nas obras desses

    artistas pontos em comum que os aproximariam entre si, pela influncia do

    mestre Poe. Como possvel notar, segundo Borges cada escritor crea a sus

    precursores no sentido de que, ao ler um determinado escritor, o leitor pode

    lembrar e identificar o tom, o estilo ou outro aspecto presente num dado

    escritor. Essa rememorao estabelece uma relao importante entre os

    escritores por meio do ato de leitura. No caso especfico de Machado de Assis e

    Cortzar, o grande ponto que os aproxima a influncia reconhecida de Poe,

    alm de ter se dedicado traduo de obras do escritor estadunidense em

    alguma etapa de suas vidas. Esse diferencial importante, qui outros

    escritores reconheam a influncia de Poe, mas jamais se dedicaram traduo

    de textos do escritor estadunidense. Haveria, ento, a possibilidade de criar

    constelaes com diferenciais bem estabelecidos.

    De todo o exposto, depreende-se que o papel de revelar os parentescos entre

    escritores cabe, muitas vezes, aos leitores. E essa , precisamente, a idia

    subjacente no ensaio borgeano: a tarefa da leitura, empreendida como

    atividade vital, capaz de revelar que a literatura , como j dizia Borges no

    ensaio La flor de Coleridge, um s e grande texto, escrito por um nico

    esprito espalhado em infinitas mos.

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    Title:

    Edgar Allan Poe, Machado de Assis, and Julio Cortzar: Three Views in

    Conjunction on the Short Story

    Abstract:

    Based on the essay Kafka y sus precursores, by Jorge Luis Borges (1899-

    1986), the present essay looks for coinciding views from Edgar Allan Poe (1809-

    1849), Machado de Assis (1839-1908), and Julio Cortzar (1914-1984) on that

    literary genre. A possible connection between the three writers, regarded as

    masters of the short story, is suggested having the Borgean essay as a starting

    point, while emphasizing the similarities of their views on what guides the

    artistic elaboration of the short stories. The confirmed relationship between Poe

    and Machado de Assis, and between Poe and Cortzar are emphasized, opening

    a door to the possibility of also thinking of a close relationship between Machado

    de Assis and Cortzar.

    Keywords:

    Short story; Compared Literature, Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges, Julio

    Cortzar

    Recebido em 15.10.2010. Aprovado em 26.04.2010.