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Álvaro Andrade Garcia o verão dentro do peito Coleção Poesia Orbital Belo Horizonte 1997 1

Álvaro Andrade Garcia o verão dentro do peito · Fazer moda com o sotaque alheio e dar trabalho para a ‘equipe lexicográfica permanente’, que sempre prestigiou a poesia. Brincadeiras

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Álvaro Andrade Garciao verão dentro do peito

Coleção Poesia OrbitalBelo Horizonte 1997

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Prefácio

Não sou adepto de apresentações, nem de escritos que antecedem poemas. Eles devem, no máximo, ter posfácios. Mas como faço parte dessa coleção, resolvi seguir instruções à risca. Por isso, sugiro que este texto seja lido após a matéria em verso queaqui apresento.

O livro contempla três tipos de poemas: os livres, que acabam saindo da gaveta nessas oportunidades, os litúrgicos, que se aglutinaram em torno do título Sinais de Vida, e os Poemas Nordestinos, que traduzem uma nova fase, lúdica.

Sobre os livres pouco tenho a dizer, além deles. Gostaria apenas de ressaltar que Beijing é a maneira correta, segundo os chineses, de grafar Pequim no nosso alfabeto.Os poemas de Sinais de Vida registram os anos que vivo com tons litúrgicas. Eles são espirituais e intimistas. Surgiram com Oração para os 80', publicado em Faculdade dos Sensos, e esses agora simbolizam os 90’. Sua leitura é repetitiva, despojada, com estrofes recorrentes, combinações cíclicas de palavras e aquele sotaque de on budista, como se lêssemos em voz alta no pensamento.

Os Poemas Nordestinos fazem um resgate gráfico da sonoridade tropical. Devem ser lidos em voz alta, com toda intensidade, ritmos e acentos de sotaque. Vogal escancarada, t e d originais. Mas não se trata de fidelidade absoluta. O poeta se julga no direito de inventar. Fazer moda com o sotaque alheio e dar trabalho para a ‘equipe lexicográfica permanente’, que sempre prestigiou a poesia. Brincadeiras à parte, escrever e ler compõem enigmas. Cabe a você, meu leitor, decifrá-los agora.

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A PALAVRA VIVA

a palavra lava o que agente mentea palavra mente onde agente sentea palavra cansa a palavra amansaa palavra passa o que agente pensaa palavra amassa

a palavra atrasa o que agente esquecea palavra aquece o que agente teimaa palavra queimaa palavra fogo que agente apaga

a palavra tralha que agente afastaa palavra gagaa palavra lavraa palavra ato

mato onde agente embrenhaa palavra exata onde nada ataa palavra sacra

a palavra senha a palavra laca amargadoce luzassanha brilho soa

bela voaa palavra garça

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taça

a palavra que agente bebea palavra tonta a palavra esquece

a palavra enterra o que agente trocaa palavra cavaa palavra covaafoga trama aplainaa palavra amaina

amanhece

a palavra espaço diacomo brisa

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DOIS POEMAS DE CASAL

IAh então é isso

ah então é issotô sabendovocê é assimvocê sempre é assimvocê é tristevocê aprofunda demaise fica a fim de envelhecertira a barbatô sabendovai sair com outravocê sempre sai com outraé! não tem nada a vernuma boa, brincadeiramentirosovocê é um grande mentirosolevou a sério?eu prefiro não falarvocê é herméticovocê é louconão quero perder sua amizadepor que nunca foi nada alémmas eu sempre disse issovocê é que esperaque eu fale algoque não tem nada a ver

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qualé? nunca me viu?você leva tudo a sériovocê é difícil de convivernossa que cabeça complicadavocê é enrolado mesmonuma boanão é nada disso

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IILouc’aritmética de um louc’amor

eu sou 1como vocêvocê é 22 para 2não falta nadaeu sou 1você é 22 mais 1é sempre 31 mais 1é sempre 2nós somos 2mas 2 assimé 1 menos 1é parte do 2que é 1é vocêdisso sobram 2quem sabe 1ou ainda 3acabam 1só 1para cada 1

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A sopa beijingtinha cheiro de sim

A sopa beijingtinha gosto de ti

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sujeito estrambóticode olho estrogeno valgonariz aduncomanco de estreito vultoesse sujeito estropio

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NATAL 91

Ise isso é natalsou naldívio das ovas de jesussou carne e osso sem devaneio

IIo natal é normal como a rima barata da loja Pernambucana

o natal é regular como um salgado na mesa do baro natal é deus menino como o álibi é do assassino

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SINAIS DE VIDAOU O VERÃO DENTRO DO PEITO

Iuma gaiola de ossosentre os braços

o sangue espessono espaço oculto

onde o sol nutrehumores

o corpo tensoentre bandagens de peleno tumulto dos músculos

a relva verdeuma árvore vazadapelo leque de luz

a árvore amadaa selva da almaoutra vez

a força dos músculosos punhos do sangue

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as batidas n’aortaestamos vivosainda estamos

suspiramos a chamatragamos a chamae ainda assim duvidamos dela

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II

as mãos dentro do corpo por vezes serenas e móveis

as mãos dentro do corpopor vezes ferozes e firmes

— como lâminas —

o sopro dos sereso hálito denso e matinal

corre pela relvaentre gotas solares

o corpo se inventa de contentamento

sobre cada osso empilhadoum acórdão de sinais de vida

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III

o vento envolve a casae corre apressadoentre ramagens e frestas

esmiúça ventarolas e rodapés

o corpo imóvel e mornoestirado na cama

os pés fora do lençol

a janela de gotasopaca e doce

o vento percorre os caminhoscomo um enxame, sete bestas zoando

o mundo é um imenso cão de caçafarejando cada quina, cada frincha

até nos encontrar

estamos vivosainda estamossuspiramos a chamatragamos a chamae ainda assim duvidamos dela

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IV

a vida corrige os atosatravessa os enganosa vida atrás dos braços

os músculos da voza vida ultrapassa a vida

não antes não depoisnada mesmo por fazer

atravessar apenas— palmo a palmo —esse minúsculo solonde há luzpara todas as gotas

estamos vivosainda estamos

suspiramos a chamatragamos a chamae ainda assim duvidamos dela

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A DUCHA 4 ESTAÇÕES

a ducha quatro estações faz da água um arranjode quadros de matissee azulejos decoradoscomo nos prédios de galdi

a ducha quatro instantesa ducha quatro cantos

a ducha nuaa ducha quadroiluminadapelo grito do papagaio

a ducha quadriculadaempeixeada de cacosde rios que escorremno pêlo

o shampoo nos olhoso som com sotaque de peixecaolho & borbulhante

bons fluidos me banhamnessa ensolarada manhã

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PONTE

entre dois corpos uma bocaentre dois portos um oceano

entre dois corpos uma faíscaum cisco de cores um talismã

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( colibri com bem te vi )

c o l i b e m t i b r ib e m c o t i b r i l ib e m c o t i l i b r it i b e m c o b r i l i

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póemasnordestinos

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ema de pódéstino nortesoldenór de mórdete de mortesoldesol de soltesal de sortesolde

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( opódisnada )

o pó de nadao podes nada

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xutádade nadacom bodexutádada nada

de bode

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( autobiográfica )

minha vógalsó traz dónasci sacinuma bela és quinade minamar um dia és quecio tê que casa com xis

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acabei no óno mar fundobororódaqui saiomar nâo

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gorduxa exdrúxulaé rima réprimida

a x é s u a d a

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ó x ó s s i v ê m d ô c ê a m ô

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se émulhé

pódisê

xá mâ

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só de corrêo s o i o s

parecequeébom

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imórtálizei tújésus

lúcifersem luz

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