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O Porto e rio Douro: a construção de uma nova relação
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O Porto e rio Douro: a construo de uma nova relao
lvaro Domingues
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RESUMO
O incio do sculo XXI marca o final de um ciclo muito longo durante o qual o rio Douro foi o principal
suporte e gerador da construo da cidade e da sua relao com a regio e com o mundo.
Hoje, o rio sobretudo um cenrio e a sua presena, um elemento de produo de imaginrio que
est a mudar radicalmente os impulsos da urbanizao das suas margens e uma nova maneira de
pensar a relao da cidade com o seu territrios de influncia. O passado e as suas memrias cons-
trudas ou ficcionadas, so a matria-prima que se usa para reconstruir novas funes e significados.
O tempo longo da histria comprime-se numa nica imagem fixa, onde, desde as velhas muralhas
medievais at aos ltimos investimentos que resultaram do impulso do desenvolvimento industrial e
porturio oitocentista, tudo se congela para fixar o relato de um tempo mtico onde se misturam rela-
tos da cidade dos bispos, dos clrigos ou dos senhores do tempo da fundao do reino de Portugal
(Portus Cale) e das rotas comerciais com a Flandres na Alta Idade Mdia, com os tempos prsperos
das Descobertas nos sculos XV e XVI, com o comrcio com o Brasil e a Inglaterra e, claro, com o
sculo XVIII da fundao da Companhia dos Vinhos do Alto Douro, poca em que o Porto desempe-
nha um papel de monoplio no comrcio do vinho do Porto. Passados os tempos trgicos das inva-
ses e dos exrcitos de Napoleo, ficou tambm a marca do sculo XIX e as suas obras de enorme
importncia: as pontes de ferro (uma delas de Gustave Eiffel), a chegada do caminho-de-ferro, a
artificializao das margens para a acostagem de navios, a enorme alfndega, as fbricas, os arma-
zns, o carro elctrico, etc., e a cidade dos negcios que se estende na margem direita em frente
outra margem onde cresce o entreposto vinhateiro de Vila Nova de Gaia. Amarrados ao cais, flu-
tuam os rabelos (barcos tradicionais do transporte de vinho pelo rio) a compor um primeiro plano
para guardar imagens e recordaes.
Para montante, o rio foi domesticado por uma sequncia de grandes barragens. O vinho do Porto j
no desce o rio nos barcos Rabelos. A regio demarcada dos Vinhos do Alto Douro, agora classifica-
da (como tambm o velho burgo do Porto) como Patrimnio da Humanidade, permanece na sua
dupla importncia econmica e esttica, entalada entre a lgica do negcio global que o vinho,
as preocupaes de manter uma fisionomia de paisagem patrimonializada, a chegada do turismo e
dos seus negcios, e, como sempre, a preocupao em manter as pessoas e sustentar uma econo-
mia dividida entre grandes empresas e quintas, e pequenos e muitos agricultores, cada vez mais
envelhecidos e a verem sair os seus descendentes.
Esta transformao pode observar-se em vrias escalas e tipos de interveno: desde a reciclagem
de velhos edifcios e infra-estruturas que perderam a sua funo e se converteram em equipamentos
culturais, construo de raiz de uma espcie de parques temticos para esplanadas e cais de cru-
zeiros, multiplicao de condomnios residenciais com vistas exclusivas, ao redesenho de espaos
pblicos e passeios marginais, s adegas adaptadas para receber visitantes, plataformas de helicp-
teros para ver o Porto do cu, hotis, etc. Margens de cidade ps-industrial reciclando o passado e
actualizando uma nova condio urbana que evolui com outras relaes e outros modos de fazer
cidade e conectar pessoas e territrios. O porto do Porto agora uma especial waterfront como
agora se diz.
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O Porto e rio Douro: a construo de uma nova relao
1. O rio Douro: o porto do Porto
O Porto uma cidade inde-
levelmente ligada com o rio
Douro e com as histrias
que o tempo foi tecendo
em torno dessa relao.
Do tempo longo da histria
chegam relatos que so
habituais nos mitos funda-
cionais das cidades. Sufi-
cientemente longe dos peri-
gos que vinham por mar, a
cidade foi-se desenvolven-
do junto de um ponto onde
a travessia era mais favorvel. Desde a colina amuralhada onde ainda est a
catedral medieval, o burgo foi descendo at s margens, at ribeira, ao longo
da qual se construram muralhas que acumulavam a sua funo militar e a regula-
o do comrcio. Domnio e poder, comrcio e relao, so constantes do cdi-
go gentico das cidades, aqui reforadas pelas facilidades que as estradas da
gua podiam oferecer quando as outras estradas eram menos eficientes e incons-
tantes. As barcas de passagem fariam a relao Norte/Sul, documentadas desde
a presena romana; o traado E/O do rio Douro permitia a ligao com as terras
do interior e assim se completariam cruzamentos que sempre as cidades so.
Numa outra escala, a ligao com o Atlntico seria tambm uma outra porta,
mais vasta, para a geografia das economias-mundo que se foram alargando em
contextos e mercados diversos at hoje.
este tipo de narrativa que os historiadores demonstram e documentam abundan-
temente mesmo antes da fundao de Portugal portus cale -, cujo nome tem
origem na cidade do Porto. O territrio da bacia do Douro est cheio de testemu-
nhos de presenas culturais misturadas desde as gravuras paleolticas do Ca, ao
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santurio rupestre de Panias (Vila Real), ao embate e fuso de Romanos, Sue-
vos (sculo V), Visigodos, ou Muulmanos (scs. VIII-XI). Desde meados do sculo
XII, j num perodo de maior segurana, os monges de Cister multiplicaram a sua
influncia no territrio, arroteando terras, plantando vinhas, aproveitando as
influncias cruzadas entre a influncia climtica do atlntico e do mediterrneo.
Esta prosperidade marca no s a ligao da regio do Douro ao Porto, como
tambm a insero nas rotas comerciais hanseticas com a Flandres e o Norte da
Europa, a economia-mundo de ento. O vinho surge desde muito cedo como
um dos principais produtos dessas transaces, tal como o sumagre, uma planta
importante para a indstria dos curtumes.
Nos sculos XIV e XV, com o envolvimento do reino de Portugal na conquista do
Norte de frica e na empresa das Descobertas, o Porto refora o seu perfil de
cidade de navegantes e mercadores, desenvolvendo-se ao longo da margem
direita do Douro onde se localizavam os estaleiros e se desenvolviam as activida-
des mercantis.
No sculo XVIII a fundao da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto
Douro (1756-1834) reforou a importncia nacional e internacional da cidade, a
sua relao com o territrio interior
o Alto Douro -, e o seu papel
mediador nas relaes internacio-
nais. O monoplio do comrcio do
vinho do Porto, acelerou a ocupa-
o da margem esquerda do rio,
Vila Nova de Gaia, transformada
progressivamente em entreposto
vinhateiro e pea fundadora de
uma cidade de duas margens que
a partir de ento se foi desenvol-
vendo. A Junta da Obras Pblicas
(1763-1833) desenvolver um ambicioso plano de estruturao da cidade medie-
val e regular a expanso extra-muros, incluindo um conjunto de grandes obras de
construo de novas infraestruturas porturias (NONELL, A. G. (1998), Porto,
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1763/1852 a construo da cidade entre despotismo e liberalismo, Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto (policopiado).
At ao sculo XIX e ao caminho-de-ferro, as estradas da gua tiveram uma impor-
tncia basilar. Ao longo do
curso interior do Douro, os
barcos rabelos faziam o per-
curso dos vinhos do Alto
Douro. Do Porto, por mar,
saam os navios para a pes-
ca nos bancos da Terra
Nova e para o comrcio e
as carreiras de passageiros
para Lisboa, para frica,
para o Brasil. Para trajectos
mais curtos, a navegao
no rio Douro era tambm
usada intensamente para o
abastecimento dirio da cidade, desde as lenhas e o carvo, at a uma infinida-
de de produtos alimentares e bens de consumo corrente.
A construo da Alfndega Nova (c.1860), com um acesso em tnel ligando
rede de caminho-de-ferro, marca uma das maiores obras de artificializao das
margens, ao mesmo tempo que as fbricas se vo instalando desde o Freixo, at
Massarelos e Lordelo, sobretudo junto das margens onde desaguam pequenos rios
e onde as condies topogrficas so mais favorveis.
A partir do sculo XVI, a viticultura de qualidade, com objectivos comerciais, assu-
me importncia crescente na zona dos vinhos de Lamego, designao que abar-
ca os vinhos de qualidade diferenciada de grande parte do actual Baixo Corgo,
mas tambm em outras reas que no sculo XVIII viro a integrar a regio demar-
cada do Douro, como as encostas dos rios Tvora e Pinho.
A expanso vitcola prosseguiu no sculo XVII, a par de alteraes na tecnologia
da produo de vinhos e de um maior envolvimento nos mercados europeus de
vinhos. Em 1675, aparece pela primeira vez, uma referncia documental desig-
nao "vinho do Porto", referente a vinho exportado para a Holanda. Por essa altu-
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ra, inicia-se um importante fluxo comercial para Inglaterra, favorecido pelas guer-
ras entre esse pas e a Frana. Rapidamente, o "vinho do Porto" domina o mercado
ingls de vinhos, ultrapassando os franceses, os espanhis e os italianos, de tal for-
ma que alguns autores britnicos o consideraram "the englishmen's wine". Em 1703,
o Tratado de Methuen, entre Portugal e a Gr-bretan