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Artigo: A Crítica Marxiana da Questão de Método Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 1º sem. 2015. ISSN: 2177-6342 0 A CRÍTICA MARXIANA DA QUESTÃO DE MÉTODO THE MARXIAN CRITIQUE OF THE QUESTION OF METHOD Antônio José Lopes Alves RESUMO No presente artigo se explicita o modo como a questão de método aparece no desenvolvimento maduro da crítica marxiana da economia política. Neste sentido, a argumentação indica o caráter particular que o problema da determinação da esfera dos procedimentos tem na cientificidade marxiana. Evidencia-se uma distinção radical para com a forma com que esta temática emerge e se desenvolve a partir dos primeiros momentos da filosofia moderna e medra nas elaborações kantiana e hegeliana. Em Marx, não somente o método não ocupa o lugar central da teorização, submetendo-se, ao contrário à regência do objeto, como o problema mesmo da delimitação gnosio-epistêmica como elemento decisivo se acha superada. Por assim dizer, o próprio discurso do método se encontra negado. PALAVRAS-CHAVE: Marx; Crítica da Economia Política; Ontologia; Teoria; Método; Fundamento ABSTRACT In this article explains how the question of method appears in the mature development of the Marxian critique of political economy. In this sense, the argument indicates the particular character that the problem of determining the sphere of scientific procedures has the Marxian. It is evident to a radical distinction with the way this theme emerges and evolves from the first moments of modern philosophy and thrives in Kantian and Hegelian elaborations. In Marx, the method not only does not occupy the central place of theorizing, submitting instead to the regency of the object, as the same problem of delimitation gnosio-epistemic as a decisive element finds himself overcome. So to speak, the discourse of the method as such is denied. KEYSWORD: Marx; Critique of Political Economy; Ontology; Theory; Method; Foundation Doutor em Filosofia, Professor da UFMG e Membro do Grupo de Pesquisa Marxologia: Filosofia e Estudos Confluentes, CNPq. E-mail. [email protected]

Alves a Crítica Marxiana Da Questão de Método

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Alves a Crítica Marxiana Da Questão de Método

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  • Artigo: A Crtica Marxiana da Questo de Mtodo

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 1 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 0

    A CRTICA MARXIANA DA QUESTO DE MTODO THE MARXIAN CRITIQUE OF THE QUESTION OF METHOD

    Antnio Jos Lopes Alves

    RESUMO

    No presente artigo se explicita o modo como a questo de mtodo aparece no

    desenvolvimento maduro da crtica marxiana da economia poltica. Neste

    sentido, a argumentao indica o carter particular que o problema da

    determinao da esfera dos procedimentos tem na cientificidade marxiana.

    Evidencia-se uma distino radical para com a forma com que esta temtica

    emerge e se desenvolve a partir dos primeiros momentos da filosofia moderna e

    medra nas elaboraes kantiana e hegeliana. Em Marx, no somente o mtodo

    no ocupa o lugar central da teorizao, submetendo-se, ao contrrio regncia

    do objeto, como o problema mesmo da delimitao gnosio-epistmica como

    elemento decisivo se acha superada. Por assim dizer, o prprio discurso do

    mtodo se encontra negado.

    PALAVRAS-CHAVE: Marx; Crtica da Economia Poltica; Ontologia; Teoria;

    Mtodo; Fundamento

    ABSTRACT

    In this article explains how the question of method appears in the mature

    development of the Marxian critique of political economy. In this sense, the

    argument indicates the particular character that the problem of determining the

    sphere of scientific procedures has the Marxian. It is evident to a radical

    distinction with the way this theme emerges and evolves from the first moments

    of modern philosophy and thrives in Kantian and Hegelian elaborations. In

    Marx, the method not only does not occupy the central place of theorizing,

    submitting instead to the regency of the object, as the same problem of

    delimitation gnosio-epistemic as a decisive element finds himself overcome. So

    to speak, the discourse of the method as such is denied.

    KEYSWORD: Marx; Critique of Political Economy; Ontology; Theory;

    Method; Foundation

    Doutor em Filosofia, Professor da UFMG e Membro do Grupo de Pesquisa Marxologia: Filosofia e Estudos

    Confluentes, CNPq. E-mail. [email protected]

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    INTRODUO

    Em seus contornos mais especficos a investigao da qual resulta a discusso a

    seguir teve como objeto o padro de cincia que formata e determina a crtica marxiana da

    economia poltica em sua fase mais desenvolvida. O mbito problemtico no se

    circunscreveu propriamente esfera metodolgica, nem mesmo como captulo de um

    desvendamento epistmico, mas acabou por configurar-se numa aproximao explicativa

    do estatuto das categorias no pensamento de Marx. Um terreno, portanto, bem mais amplo,

    em cujas demarcaes se abarca, obviamente a questo de mtodo. O projeto assim

    delimitado e efetivado teve por inspirao e orientao intelectuais e tericas a propositura

    chasiniana do Retorno a Marx, buscando desdobrar aspectos indicados pelo pensador

    brasileiro, mas igualmente intentando descobrir outros aspectos da questo da cientificidade

    marxiana.

    Neste sentido, tratou-se tanto de uma continuao quanto de um desdobramento

    diferenciados, animado pela proposta de aprofundar o conhecimento acerca da resoluo do

    problema do conhecimento na reflexo terica marxiana. O resultado a que se chegou, e ao

    qual se subsume necessariamente a especfica temtica do mtodo, de o talhe terico da

    cientificidade da economia poltica a configura como uma inteleco cujo o marco principal

    determinar e explicitar a differentia specifica dos processos sociais em sua objetividade

    prpria. Deste modo, o caminho do conhecimento depende do feitio eminentemente

    particular e finito da processualidade societria em exame, seja num sentido histrico, seja

    num sentido ontolgico. Em outros termos, a soluo do conhecer est necessariamente

    subsumida pelas determinaes que conformam e delimitam os complexos sintticos

    categoriais que perfazem o objeto tomado. O que vale para o rastreamento das distines de

    natureza precisamente histrica, na diversidade que comportam os desenvolvimentos das

    formas de sociabilidade, como igualmente para a identificao da esfera de pertinncia e

    vigncia das categorias nos diferentes momentos e modos de relao dentro de uma mesma

    totalidade histrico-social. Resulta disso, no haver no pensamento de Marx uma

    delimitao unvoca e definida em termos assertricos acerca "do" mtodo adequado.

    possvel encontrar, ao contrrio, antes, a indicao de determinado Weg, demasiado geral,

    no qual o conhecimento mesmo desenha porquanto se proceda, sem a cauo da suposio

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    de autonomia transcendental da razo nem a de uma figurao espiritual objetiva

    considerada princpio do mundo. O caminho por isso um dado roteiro, sujeito aos

    percalos, s idas e vindas, s dificuldades prprias da lida com a objetividade do concreto

    que necessariamente transcendente, num sentido fsico e efetivo, o sujeito real que dele se

    aproxima e entabula a conhec-lo.

    Nada mais distante, por conseguinte, das pretensas garantias de validade, e (por que

    no?) verdade, a priori que tanto seduziu a filosofia moderna e a embalou em seu sono

    gnosio-epistmico. Por um parte, o roteiro do efetivo conhecer acorda o sujeito das iluses

    onricas da autoimagem construda em torno da racionalidade autoposta e autossustentada.

    O que no significa, de outra parte, a interdio do conhecer, to a gosto das tendncias

    predominantes e ainda em alta voga na atualidade. Diversamente, a propositura marxiana

    "to somente" - o que no pouco, contudo - reposiciona a atividade cognitiva, e seus

    desdobramentos efetivos, num devido lugar, determinado pela posio concreta estatuda

    pela conformao particular do objeto da teoria do social. Como no possvel evadir-se ou

    isolar-se da efetividade em que est imerso o sujeito real do conhecimento, seno,

    novamente, no mundo encantado do cogito e de suas deidades congneres, a apropriao

    terica da realidade social se d num conjunto de condies objetivas que podem tanto pr

    no horizonte quanto retirar da vista as possibilidades de inteleco1. A imagem do cientista

    no corresponde mais quele de um analista que, dispondo de uma ferramenta pas-par-tour

    metodolgica esquadrinhe, de sua posio autrquica, o conjunto da extenso ou de um em-

    si, ou ainda na suposio de uma continuidade necessria e homloga entre a lgica da

    cabea e a forma do existir. Ao contrrio, revela-se o investigador em sua contextura de

    coisa concreta determinada s voltas com a objetividade que precisa vitalmente deslindar.

    Ser objetivo que no se apresenta num primeiro momento mais que um registro intuitivo e

    representacional, mas que no esgota nisso seu ser existente, tem uma da dada espessura de

    ser, a qual se ergue como convite e desafio cognitivos. Quem conhece, situado antes do

    mais, como um determinado que concreto socialmente delimitado, forceja por conhecer e

    apreender em passos de aproximao que destrinche a malha plena do existir. Analisando

    1 No se delonga aqui muito acerca da questo da posio (Standpunkt) que determina o conhecer como

    posicionamento social, na medida em que esta apresentao se ocupa mais especificamente da descrio

    crtica do conhecer como atividade in actu. Para maiores esclarecimentos especificamente sobre a questo do

    Standpunkt em Marx: Cf. Alves, A.J.L. A questo do Standpunkt na cientificidade marxiana: a querela do

    trabalho produtivo na economia poltica, In Verinotio, n. 12, 2011, p. 87 a 93.

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    sim, mas como um anatomista, as fibras determinativas que tecem urdidura e trama do

    objeto, para descobrir e fazer visvel as formas especficas de Dasein que perfazem o tecido

    vivo da realidade social. Anatomia que se concretiza na vigncia inarredvel da

    corporalidade particular que fendido desde suas mais imediatas epidermes at o conjunto

    de elementos e funes que se conectam pelas vias da construo efetiva de relaes

    histricas de produo da vida humana. O que torna manifesto tambm o alcance da

    analogia travejado pela estrutura ontolgica particular do social em diferena com o

    orgnico, ao mesmo tempo em que afasta qualquer suspeita de uma suposta orgnica da

    sociabilidade. A sociabilidade, como conjunto de relaes, existe efetivamente se reproduz

    no tempo pela via das prprias interaes concretas dos indivduos sociais na configurao

    particular, no caso do mundo do capital, dada pela viger das classes. E a analogia cessa a.

    No se recobre o social pelo orgnico, assim como no se abre a alameda ao sentido oposto.

    Produo que da interatividade objetiva, a vida societria no tem num suposto princpio

    nico ou determinador da sua essncia para atualizar-se, mas de natureza transiente e

    mutvel, na medida das transformaes das condies historicamente produzidas e

    mobilizadas pelos homens reais. Que se retenha esta ltima observao como advertncia

    s interpretaes enviesada ou mesmo m-f da imputao.

    I. FUNDAMENTO E MTODO

    O carter da pesquisa supracitada, bem como os resultados nela obtidos, e que aqui

    sero apresentados, permitem definir que o problema do conhecimento, em Marx, no

    resolve por sua remisso, nem muito menos sua reduo, quele do mtodo. O que se

    observa exatamente o afastamento explcito para com o padro epistemolgico da

    reflexo filosfica dominante acerca da cientificidade. Essa objeo tradio

    preponderante das leituras se d num duplo registro. Primeiro como oposio ao

    vnculo imediato a Hegel, no, evidentemente, na direo de uma total inexistncia de

    relao, mas tentando demonstrar a distancia crtica, de natureza ontolgica, que os separa.

    O que permite, ao mesmo tempo, preservar o Hegel que h na reflexo marxiana, e em

    nada traz prejuzo em que esteja l. Segundo, talvez o mais complicado, mas exigido pelo

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    primeiro lado da polmica, a apresentao do que anteriormente j foi referido como

    antimtodo em Marx. Ou seja, no apenas o mtodo marxiano no um derivado da

    dialtica de Hegel ou de qualquer outra , mas que a prpria questo de mtodo perde o

    sentido em Marx, se posta nos termos tradicionais desde Descartes ou Kant. Neste

    momento possvel situar de modo mais exato o significado radical da distino do

    pensamento marxiano com relao tradio que lhe imediatamente anterior, uma vez

    que a posio de que Marx, por assim dizer, desmonta o discurso do mtodo. Sendo um

    tanto ousado, e arriscado, poderamos dizer mesmo que em Marx no h a operao de um

    mtodo, de um conjunto de procedimentos que conformem a subjetividade cientfica

    qualificando-a ao conhecimento do verdadeiro. No h estrada real {Landstrae} para a

    cincia, adverte Marx no prefcio edio francesa de O Capital, no havendo assim um

    caminho nico, privilegiado ou previamente configurado de acesso cognio de mundo. A

    seguir, arremata afirmando que, s aqueles que no temem a fadiga de galgar suas

    escarpas abruptas que tm a chance de chegar a seus cimos luminosos (MARX, 1998,

    p.31).

    O ponto de partida de nossa recusa da leitura epistemologista da obra marxiana se

    ancora, conforme se explicitou no primeiro captulo desta tese, na conquista terica

    produzida por Jos Chasin no interior de sua proposta filosfica de retorno a Marx, cujos

    primeiros resultados analticos se acham consolidados em seu Marx: Estatuto Ontolgico e

    Resoluo Metodolgica, publicado, inicialmente, como posfcio a Pensando com Marx,

    em 1995. Neste escrito, Chasin expe o que denomina de ontologia estatutria,

    determinao do carter presente na obra marxiana, a qual se apresenta como produto de

    uma dcada e meia de pesquisa rigorosa na obra de Marx, em especial s questes relativas

    ao processo de formao do pensamento marxiano em suas feies prprias. Neste sentido,

    os estudos de Chasin se situam nos antpodas das correntes majoritrias, uma vez que se

    prope escavao cuidadosa dos escritos marxianos. Busca encontrar, nos prprios

    textos e termos de Marx, o padro de racionalidade que os conforma e que, ao mesmo

    tempo deles resulta.

    Mas qual a natureza desta ontologia, desta referncia terica ao ser das coisas e a

    forma de ser dos entes? Metafsica? Hermenutica? Fenomenolgica? Estatutria. Numa

    palavra, antissistmica, no afeita a construes apriorsticas nem exercitada como puro

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    jogo de categorias. Tema pela primeira vez levantado por Lukcs, num dos captulos de sua

    penltima obra intitulada, Para uma Ontologia do Ser Social (v.I, 2012, p. 281-302), a

    existncia de uma ontologia na obra marxiana, e das relaes desta com a questo de

    mtodo, foi tambm objeto de exame rigoroso no texto chasiniano acima referido. Chasin,

    seguindo os passos analticos e os indicativos recolhidos da prpria obra de Marx acerca

    desta questo, em especial os contidos em Introduo de 1857, desenvolve um exame

    cuidadoso das principais determinaes dos procedimentos marxianos, buscando configurar

    um esboo de conjunto desta problemtica. Pesquisa atenta, a qual se teve por motivao

    certas observaes lukacsianas, em muito acabou por super-las, e, em certa medida,

    corrigi-las. A este respeito, Lukcs explicitamente termina por confinar o carter ontolgico

    da obra marxiana em termos bastante tradicionais e acadmicos dentro de contornos usuais

    na filosofia, em sua relao como ponto de partida e arrimo de um sistema. Alm disso, h

    tambm uma demasiada aproximao a Hegel, atravs da postulao de que haveria neste

    ltimo uma ontologia tendente ao efetivo, por ele no desenvolvida, desvirtuada pelo

    esquematismo lgico, a qual teria sido recolhida e modificada por Marx no sentido da

    apreenso do mundo concreto por si. Chasin, ao contrrio, baseando-se no que denomina

    trs crticas ontolgicas, da poltica, da especulao hegeliana e da economia poltica,

    produzidas por Marx, pretende mostrar o movimento de constituio do pensamento

    marxiano em exata oposio ao idealismo. No apenas, e em primeiro lugar,

    metodologicamente, mas do ponto de vista da questo do ser. Em Hegel h uma identidade

    entre Ser e Ideia, em Marx no. Haveria no pensamento marxiano uma prioridade na ordem

    do ser do mundo efetivo em relao s formas de conscincia e idealidade. No h um

    princpio racional que explique o mundo e se realize por meio da histria, ao revs, h a

    histria efetiva da produo humana de mundo, atravessada por toda sorte de contradies e

    tenses. Como padro de reflexo que apreende e reproduz a trama do real, os fundamentos

    do pensamento marxiano no podem se articular num sistema ou esquematismo, mas num

    conjunto de evidncias e proposies gerais, obtidas pela prpria pesquisa do mundo.

    Deste modo Chasin destaca, num escrito postumamente referido, que,

    (...) a ontologia marxiana no uma resoluo de carter absoluto, nos moldes do

    sistema convencional, mas a condio de possibilidade de resoluo do saber. ,

    em outras palavras, um estatuto movente e movido de cientificidade, orienta e

    orientado pela cincia e pela prtica universal dos homens. Orienta e orientada,

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    guia e guiada, corrige e corrigida. Ou seja, no um absoluto inquestionvel,

    uma certeza estabelecida por deduo a partir de axiomas, de uma vez para

    sempre (CHASIN apud VAISMAN, 2001, p. IX).

    A ontologia marxiana, deste modo, nunca se apresenta como um todo fechado de categorias

    encadeada numa ordem de determinaes a priori e sistemtica, nem se postula como

    ltimo e permanente delineamento das formas de ser. Ao revs, coloca-se, antes de tudo,

    como,

    Afirmao da objetividade do mundo e a possibilidade de ser conhecido,

    possibilidade determinada que scio-historicamente, exercendo a funo de

    base e guia para a cincia da histria, especificamente como ontologia regional do

    ser social, e que se nutre das cincias e a elas respondem tanto quanto elas

    mesmas tm de responder aos lineamentos ontolgicos pelos quais se guiam, mas

    os quais no tomam como cogulos de saber imutvel. De sorte que ontologia e

    cincia se potencializam e se criticam recproca e permanentemente (CHASIN

    apud VAISMAN, 2001, p. VII).

    No sendo ento um conjunto de noes abstratas das quais, sob a gide de um esquema

    que seria conformado por estas mesmas, se extrairiam os resultados particulares. Em

    verdade, desta ltima etapa, a compreenso dos resultados, que se ergue uma ontologia

    estatutria. Assim, a esfera mais geral e a mais particular, no ato de conhecimento, guardam

    uma relao bem especfica, no de concorrncia ou oposio, mas de promoo e correo

    mtuas e contnuas.

    Neste sentido, clarifica-se como improcedente supor base da crtica da economia

    poltica uma forma de lgica ou de sistema de categorias qualquer construdo a priori,

    independentemente de sua sofisticao ou de permitir uma compreenso de algum tipo da

    contraditoriedade imanente ao real. Em havendo a explicitao de elementos contraditrios

    na ordem do capital pelo pensamento marxiano, e h, com certeza, tais traos, antes de

    configurarem um princpio de inteligibilidade puro ou de indicar uma substncia,

    pertencem ao carter imanente das coisas abordadas. Em Marx, a contradio no um

    postulado metodolgico a priori, nem regra de procedimento (tratar o mundo pela tica

    da contradio), mas caracterstica da sntese efetiva que preside a existncia concreta de

    dados produtos humanos numa sociabilidade atravessada por um tipo especfico de

    determinaes. Assim sendo, em havendo algo de dialtico na obra marxiana, no seu

    mtodo, mas a prpria coisa, objeto de estudo. No se trata aqui da operao, mediante a

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    qual um determinado contedo seja conformado no ato de sua abordagem por uma teoria

    geral ou lgica da contradio de qualquer espcie. Muito ao contrrio, trata-se da

    investigao do objeto, que parte de sua forma de existir a mais imediata, como se

    apresenta efetivamente, seu Dasein, para, a partir da, descortinar por meio da anlise de

    suas determinaes a sua forma essencial, a qual contraditria. Por exemplo, a

    mercadoria, um ente atravessado em sua essncia pela contradio entre valor de uso

    (conjunto de propriedades concretas que a tornam aptas a satisfazer alguma necessidade

    social) e, por outro lado, valor (propriedade social que a torna trocvel por outro produto

    qualquer). No uma lgica da contradio que rege a pesquisa, mas esta ltima que

    desvela, ou no, a contradio imanente forma da mercadoria.

    E aqui cabe um esclarecimento. No se trata, evidente, de afirmar uma dialtica da

    materialidade, independente de saber-se o que seja isso, ou mesmo da sua existncia ou

    no, mas de explicitar a posio reciprocamente contraditria das determinaes na

    imanncia da forma mercadoria. Forma que no pode ser identificada como "natural" aos

    produtos como produtos, mas assumida por estes em seu existir concreto no modo de

    produo capitalista. Neste sentido, igualmente patente que no a cadeira, por exemplo,

    em sua materialidade concreta, como coisa feita deste ou daquele material, que possui uma

    articulao contraditria de determinaes, como poderia supor-se partindo de um

    materialismo abstrato e empiricista (dialtico ou no), mas a da sua existncia, objetiva,

    como mercadoria. A contradio se afirma como cerne da forma de ser das coisas como

    mercadoria, e no apenas por serem resultados do trabalho humano. Que a forma

    mercadoria apresente consequncias efetivas limitadoras ou promotoras de

    desenvolvimento para a prpria produo humana outra questo, a qual concerne

    relao progressivamente contraditria entre o desenvolvimento das foras produtivas e a

    prevalncia das relaes capitalistas de produo. O que confirma e no nega, pois que

    determina de maneira precisa seu estatuto, o carter efetivo e objetivo da contradio no

    pensamento marxiano. Pois, uma vez que a compreenso daquela se instaura de maneira

    diversa seja da questo de mtodo moderna, de Descartes a Kant, seja da identidade entre

    mtodo e desenvolvimento real, tese que atravessa o sistema hegeliano.

    neste diapaso que Marx afirma no posfcio segunda edio de O Capital que

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    Meu mtodo dialtico, em seu fundamento {Grundlage}, no somente diferente

    do hegeliano, mas tambm seu oposto direto {direktes Gegenteil}. Para Hegel,

    o processo do pensamento {Denkproze}, que ele, sob o nome de ideia {Idee},

    transformada num sujeito autnomo, o demiurgo do efetivo {Wirklichen}, este

    apenas a sua manifestao externa (MARX, 1998, 23, p. 27).

    Ou seja, a distino entre Marx e Hegel se d num nvel muito mais essencial que aquele

    circunscrito esfera dos procedimentos. O fundamento hegeliano a da identidade entre

    ser e ideia antes referida. Identidade que inverte a relao de determinao real entre ser e

    pensar, fazendo do primeiro um modo de ser particular ou fugidio, e em si inconsistente de

    manifestao do segundo. a postulao de um ser para alm dos entes, parte deles, o

    qual o determina a multiplicidade de coisas e processos como a srie de modos

    contingentes de seu aparecer. Por isso, a histria humana, em Hegel, fenomenologia da

    substncia racional automovente, uma coisa/pensamento autnoma e viva. Para Marx,

    continuando o texto acima citado, pelo contrrio, o ideal {Ideelle} nada mais seno o

    material transposto {bersetzte} e traduzido {umgesetzte} para a cabea do homem

    (MARX, 1998, p. 23). Resulta disso que a natureza da teoria traduo da coisa enquanto

    efetivamente existente para a forma do pensamento. Sendo assim, a explicitao de uma

    lgica, de um modo de ser especfico de um ente especfico. No h uma homologia direta

    entre ser e idealidade, entre o processo pelo qual a coisa o que ela e aquele outro atravs

    do qual a rede de suas determinaes abordada e apropriada conceitualmente pela cabea.

    Neste sentido, tambm no posfcio, numa conhecida passagem, a qual tomada (e

    traduzida) unilateralmente, Marx arremata a discusso. Assevera que em Hegel a dialtica

    em sendo um processo de desenvolvimento da Ideia, de um ente da pura razo, que por suas

    mais variadas diabruras pe efetivamente o mundo, ela, a dialtica, est assentada sobre

    a cabea [steht bei ihm auf dem Kopf]. preciso invert-la [Man mu sie umstlpen], para

    que possa ser descoberto o seu ncleo racional [rationellen Kern] envolvido no invlucro

    mstico (MARX, 1998, p. 23). Em outros termos, no se trata de uma inverso de cunho

    metodolgico ou lgico, mas remete ordem de determinao dos entes como tais. Ao

    invs de assentar as categorias na cabea, isto , na racionalidade pura da substncia

    ideal, deve-se assent-las na efetividade do mundo. Da razo como postulado forma de

    ser como descoberta, eis a rota do distanciamento entre Marx e a especulao hegeliana, e

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    permite o descortino tanto dos mritos do grande pensador quanto das mazelas que

    pervertem as conquistas tericas.

    Assim, ncleo racional a evidncia da contradio e da dinamicidade como

    traos imanentes aos modos de ser e aparecer ferido de morte pelo invlucro mstico, a

    transformao de um carter dos entes em substncia que lhes subjaz, para aqum e para

    alm deles. Sendo entes e processos to somente formas de aparecer, ainda que necessrias,

    da substncia. Neste sentido, acaba por tomar uma face eminentemente conservadora na

    medida em que faz do desenvolvimento efetivo to somente momento do evolver da

    substncia mstica, uma etapa de realizao da racionalidade posta desde o princpio como

    pressuposto e no como conquista possvel. Como resultante mais que conhecida tem-se a

    santificao do existente em nome da razo pressuposta em todo processo e o estancamento

    da prpria mudana.

    Nada mais distante disso que a compreenso das categorias como Daseinsformen,

    formas de ser (de estar a) e no do ser Existenzbestimmungenen, determinaes de

    existncia, como aparece explicitado pela primeira vez em Introduo de 1857, aos

    Grundrisse (MARX, Bd.42, 1983, p.40) a qual aparece plenamente exercitada em O

    Capital2. As categorias no so entes da pura razo, existentes apenas e diretamente na

    forma conceitual ou como regras de ao dos sujeitos, mas so formas de ser da efetividade

    que podem ser capturadas e transformadas em conceitos. No contexto estrito definido pelo

    conhecer, produo de conceitos pela atividade da cabea humana, os quais correspondem,

    ou no, na forma do pensamento, ao fim do processo, ao objeto concreto abordado. um

    roteiro que vai da coisa enquanto complexo imediato de determinaes, o concreto tal qual

    se apresenta, a populao ou a mercadoria, por exemplo, reproduo de sua articulao

    ntima e imanente como concreto representado no pensamento. No final, o que se deve ter

    a apreenso das relaes sociais de produes e das classes nelas implicadas, bem como do

    valor como determinao social da mercadoria em contradio com o valor de uso. Das

    categorias na forma do ser (in der Form des Seins) quelas do pensamento e da

    racionalidade. Pressuposto aqui est evidentemente a posio do real e do ser como

    objetividade, como complexo de categorias, de determinaes articuladas em uma rede de 2 Para maiores esclarecimentos, remete-se o leitor cientificidade na obra marxiana de maturidade: uma

    teoria das Daseinsformen, conforme consta das referncias deste artigo, tese de doutorado, da lavra do autor,

    em especial ao captulo IV intitulado O valor e suas formas.

  • Artigo: A Crtica Marxiana da Questo de Mtodo

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 1 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 10

    relaes recprocas, e por vezes antitticas, que existem independentemente das operaes

    mentais pelas quais venham a ser capturados. Complexo de ser que por si mesmo e reage

    ao sujeito nas suas mais variadas formas de atividade, e no apenas na cognio.

    Objetividade que aponta, ao mesmo tempo, tanto para o carter de por si da coisa, quanto

    sua possibilidade de vir-a-ser objeto de uma dada atividade, inclusive do pensamento.

    Alm disso, vale ressaltar que Daseinsformen apontam em seu sentido direto para formas

    do efetivamente existente, ou seja, das coisas, da mundaneidade, do concreto, e no do ser

    em sentido geral. V-se confirmado mais uma vez a natureza no especulativa do

    movimento cognitivo, pois, este no tem como pressuposto o ser em sua generalidade, mas

    a multiplicidade dos entes, dos quais cabe apreender seu ser, a forma nas quais as

    determinaes de existncia se articulam e o fazem ser o que e como .

    A pesquisa, no obstante a sua aparncia, no se reduz pura recolha e justaposio

    empirista de caracteres, nem a posio destes num esquema silogstico qualquer. o

    processo no qual as abstraes produzidas pela investigao da coisa, a extrao de dados

    aspectos, perdem seu carter simples e extremamente geral, ganhando em concretude e

    especificao. a investigao de uma dada poca concreta da produo humana, por

    exemplo, partindo de seu aspecto mais imediatamente constatvel em direo

    determinao de suas principais categorias, de suas formas de ser, passando pelo processo

    de extrao de abstrao de dentre seus elementos aqueles comuns a outros momentos

    histrico-sociais, bem como, e principalmente, daqueles que a distingue das demais. um

    traado no qual se tem em tela a diferena especfica a cada ente ou processo estudado. Por

    exemplo, a determinao da forma social particular que assumem os meios e condies de

    produo da vida humana, bem como o intercmbio, no modo de produo capitalista. No

    a subsuno da concretude a uma tipologia ou a um princpio gerais, mas a dilucidao

    das determinaes particulares do concreto, assim como a sua reproduo pelo pensamento.

    apreenso da sntese das categorias conforme sua articulao na realidade. No se trata de

    simples reflexo ou impresso, mas de traduo da sntese concreta de determinaes

    na forma da efetividade para a de uma sntese de determinaes na forma do representado.

    Traduzir comporta, evidentemente, uma mudana necessria de registro. Frente s palavras

    de um dado idioma tem que se apresentar outras, na lngua do sujeito que traduz, que

    comportem a rede de significados original e no apenas um nome. O que por si pode abrir

  • Antnio Jos Lopes Alves

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 2 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 11

    caminho, involuntariamente ou no, ao adensamento ou mesmo desvirtuao de sentido.

    De modo anlogo, a traduo do concreto existente em concreto pensado exige no a

    introjeo pura e simples da coisa - entes ou processos - no crebro ou uma representao

    imagtica qualquer, mas a posio da rede de determinaes numa forma especfica de

    reproduo ideal.

    o exato roteiro que vai das abstraes razoveis s determinaes de existncias -

    conforme tematizado tambm por Chasin em Marx: Estatuto Ontolgico e Resoluo

    Metodolgica - que se v realizado na anlise da mercadoria. Parte-se da mercadoria como

    forma elementar (Elementarform) da riqueza no mundo do capital para se alar

    identificao do valor como categoria determinante da produo (MARX, 1998, Bd.23,

    p.49). Forma elementar, por que modo de ser particular assumido pelos produtos da

    atividade humana vital no interior da sociabilidade capitalista, enquanto realizaes do

    trabalho assalariado, inserido na troca entre fora de trabalho e capital. O ponto de partida

    da anlise marxiana no o valor, que exatamente o que cabe ser elucidado, nem muito

    menos o conceito de valor, mas a mercadoria tal qual ela na efetividade, na

    mundaneidade do capital. Neste sentido, Marx nunca parte de conceitos, mas da coisa tal

    qual ela se apresenta, para, atravs da sua anlise, da investigao da srie de suas

    determinaes, das mais aparentes s mais essenciais, alcanar um conjunto de categorias

    simples que conformem a lgica da coisa estudada. No caso especfico da mercadoria,

    valor e valor de uso, na sequncia, trabalho abstrato e trabalho concreto, e a partir da num

    movimento crescente de especificao, a delimitao do trabalho abstrato, simples gelatina

    de trabalho humano social, sans phrase, como substantia do valor da mercadoria (MARX,

    1998, Bd.23, p. 56-61). O caminho assim percorrido pela atividade do conhecimento

    comea tomando a mercadoria em sua aparente simplicidade, com a qual os agentes da

    troca esto acostumados e nela imersos, bem como de opacidade imediata, para chegar

    mercadoria como figura desvelada, um plenum de determinaes de existncia. Momento

    final este em que agora se torna visvel no somente um conjunto de abstraes, mas a

    articulao das mesmas, as quais perfazem a coisa como ente enquanto tal. Articulao esta

    parametrizada pela identificao precisa do que constitui o momento predominante

    (bergreifendes Moment), da categoria que determina em ltima instncia a forma de ser

    especfica do objeto. Momento, ou elemento constitutivo duma dada totalidade de

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    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 1 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 12

    determinaes, o qual delimita a natureza da relao entre as categorias. No caso da

    mercadoria, o valor, e sua substncia, o trabalho abstrato. No que as demais categorias

    sejam simplesmente negadas em sua vigncia ou existncia, mas estas tm definida sua

    esfera em relao quela que delimita a coisa como coisa especfica. Assim, o valor no

    pode existir, na pura abstrao, par soi mme. To somente o pela sua existncia como

    determinao social de dado produto do trabalho humano concreto. Entretanto, no por

    ser apenas produto do trabalho, dirigido a uma necessidade especfica, que algo se torna

    mercadoria. Um produto no por si imediatamente mercadoria, somente o sob a

    condio de ser tambm imediatamente, ser-para-outro, ser para a troca, realizao e

    relao de trabalho social geral incorporado num valor de uso. Da a regncia ser do valor,

    da categoria atravs da qual a trocabilidade universal das coisas e atividades efetivada

    como aspecto imanente ao produto. Realizao do trabalho humano na particularidade

    histrica da troca de fora de trabalho por salrio. Como momento predominante da forma

    mercadoria, o valor uma determinao central obtida pela anlise da efetividade da

    mercadoria, e no um pressuposto analtico ou princpio do qual se deduziriam as demais

    formas como modos de sua existncia particulares. A este respeito, num manuscrito datado

    de pouco antes de sua morte, Marx observa contra Adolph Wagner, crtico alemo de sua

    obra que atribua categoria valor papel similar quelas desempenhadas nos sistemas

    filosficos pelas ideias claras e distintas das quais se deduz o mundo que,

    (...) eu no divido o valor em valor de uso e valor de troca, como termos

    antitticos em que se decomponha o abstrato, o valor, mas afirmo que a forma social concreta do produto do trabalho, da mercadoria, por uma parte valor de uso e por outra parte valor, no valor de troca, posto que este uma simples forma de manifestar-se e no seu prprio contedo (MARX, 1962, p.369).

    O que se tem desenhado, ainda que sumariamente, na analtica da coisa mercadoria,

    poderia ser descrito como um mtodo? Por certo um caminho dado foi percorrido, mas

    valeria ele para todo e qualquer objeto? O que podemos observar no o exerccio de uma

    metodologia universal ou a descrio de uma chave de interpretao dos fenmenos, mas

    um simples roteiro de percurso. Passos por meio dos quais se atravessa as sendas de

    aspectos e elementos de uma dada concretude, uma via que no est dada, mas que se

    percorre. Neste sentido, e apenas neste, talvez, um mtodo (), um caminho que se

  • Antnio Jos Lopes Alves

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    segue em direo a um algum objetivo ou lugar. A palavra grega que marxianamente

    tomada em seu sentido o mais literal, pois, h apenas caminhos especficos para o

    desvelamento da verdade de coisas especficas. Da mesma maneira que somente caminhos

    especficos podem nos levar a lugares especficos. Certamente, caminhos e atalhos, desvios

    e bifurcaes, podem nos levar, como roteiro alternativo ao destino. Mas isso ao preo de

    nos perdermos em sendas e, mesmo, nos afastar-nos demasiado do objetivo.

    Assim, como nem todos os caminhos no nos levam a todos os lugares, sendo o

    roteiro definido pelo objeto, o conhecimento, ao menos em seus incios, no possui um

    mapa detalhado de antemo. Resta-nos o parmetro oferecido pela prpria coisa, no

    havendo uma fundao a priori que decida a questo do saber anteriormente ao prprio

    saber. Portanto, todo movimento de conhecimento uma caminhada pelas escarpas

    tortuosas do objeto enfrentado. Marx assim se acha aqui em franca oposio a toda a

    tradio filosfica moderna anterior. Para essa, a posse de um mtodo seria a garantia de

    verdade da cincia. Em consequncia, o momento de prefigurao da subjetividade do

    pesquisador seria o momento central de constituio do saber, e o objeto, um produto do

    modo de conceb-lo. Na obra marxiana d-se o oposto, a cientificidade tem seu fundamento

    na investigao minuciosa das determinaes da coisa sob o mando da prpria coisa

    tornada objeto da atividade cientfica. Neste sentido, afirmamos com Chasin, com certa

    tranquilidade e uma dose inevitvel de ousadia que, a rigor no h uma questo de mtodo

    no pensamento marxiano (CHASIN, 2009, p.89). Melhor ainda, no haveria sequer

    mtodo strictu senso, se todo mtodo pressupe um fundamento gnosiolgico, ou seja,

    uma teoria autnoma das faculdades humanas, preliminarmente estabelecida, que sustente,

    ao menos parcialmente a possibilidade do conhecimento (CHASIN, 2009, p.89). Assim

    sendo, nunca ocorre em Marx uma preponderncia da questo do conhecimento, da sua

    possibilidade ou das vias de se atingi-lo. No que isto seja descurado. Mas de muito

    evidente o fato de que tais questes somente apaream referidas aps um dado percurso,

    mais ou menos acabado, no qual certa articulao do material se torna coerentemente

    apresentvel. Disto testemunha o lugar destinado por Marx questo do mtodo da

    economia poltica na supracitada Introduo de 1857, como terceira parte, aps a

    dilucidao das relaes entre produo, consumo, troca e distribuio no interior da

    produo de mercadorias. Igualmente a questo da possibilidade da verdade do

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    conhecimento, que depende mais da determinao histrico-social do pensamento, do

    Standpunkt no qual se faz a cincia, do que da posse de uma metodologia especial. A este

    respeito, vale referir a anlise, feita por Marx no mesmo posfcio a segunda de O Capital,

    acerca da impossibilidade social da economia poltica na Alemanha de seu tempo, na exata

    medida do descompasso da realidade alem com aquela predominante nas duas outras

    potncias europeias (MARX, 1998, p. 19-22).

    De toda esta questo resulta no haver em Marx tambm uma garantia prvia da

    verdade, ainda que possa haver verdade, a obteno de um dado conhecimento pela

    investigao e exame da coisa. Neste contexto, Marx se situa a uma segura distncia tanto

    frente tradio epistemolgica moderna, a afirmao da garantia a priori do verdadeiro

    mediante a posse de um mtodo universal de conhecimento, quanto da pura negao in

    limine da possibilidade do conhecimento do verdadeiro. Essa ltima, advogada pelas

    diversas correntes que compartilham do perspectivismo, que caracteriza a linhagem

    filosfica de origem em Nietzsche, a qual desaguou nas vrias propostas de hermenuticas

    surgidas no decorrer do sculo XX e ainda vigentes. A possibilidade do conhecimento, na

    obra marxiana, afirmada como evidncia da relao prtica com o mundo e a verdade

    posta como meta a ser alcanada mediante o exame da efetividade e o descortino das

    determinaes que a enformam objetivamente.

    A seguir, sero apresentados de forma mais detalhada dois momentos nos quais o

    exame do caminho (Weg) percorrido pela crtica marxiana da economia poltica em sua

    feio mais madura em direo apreenso da differentia specifica do capital. Marx no se

    dedicou com muita frequncia a esse tipo de incurso ao problema do conhecer, e do

    mtodo em especial, de forma destacada, mas podem-se destacar duas ocasies em que isso

    se deu em sua obra. Primeiramente, na famosa Einleitung zun den Grundrisse, redigida

    em 1857, qual o prprio Marx refere no prefcio Para Crtica da Economia Poltica, de

    1859. No obstante seu autor a tenha considerado inadequada, dado o risco de antecipar

    contedo e concluses somente compreensveis na medida em que o texto integral, escrito

    entre 1857-1858, fosse ento apropriado pelo leitor, em razo deste ter se mantido na forma

    de manuscrito no publicado, acaba a introduo em questo tendo grande importncia para

    a compreenso do pensamento marxiano. A segunda ocorrncia desse tipo de discusso a

    registrada no posfcio segunda edio de O Capital, j em resposta a certas objees que

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    demonstraram incompreenses acerca do caminho do conhecimento trilhado pela crtica da

    economia poltica em sua principal obra.

    II. A CRTICA DO MTODO O exame especfico acerca do mtodo na Introduo de 1857 se localiza na sua parte

    terceira, no obstante a questo j tenha sido referida ou mesmo sumariamente discutida

    nos dois itens anteriores. Tal exame se dava no contexto da circunscrio inicial do estatuto

    das categorias, o qual tambm se apresenta em Die Methode der politischen konomie, em

    igual mbito. Isso decisivo para a compreenso do espao determinado, nunca

    determinante, que o problema do mtodo possui no pensamento marxiano. Esse tema

    jamais abordado em sentido autnomo, desconectado do objeto, como a elaborao de um

    sistema de procedimentos a ser aplicado no enfrentamento cognitivo a qualquer complexo

    categorial. No por acaso, o exame do modo (Weise) ou do caminho (Weg) mais adequado

    ao conhecimento da realidade social principia no com uma simples discusso de

    fundamentao a priori do mtodo, com o estabelecimento de um preceito ou de uma regra

    procedimental, mas com o exame da contextura do prprio objeto. A questo primeira no

    afinal qual o melhor modo de organizar previamente a aproximao, e sim afinal do que

    que nos aproximamos. A determinao da contextura ntica do objeto precede a do modo

    de apropri-lo conceitualmente. Em outros termos, o que o concreto? Essa interrogao se

    desdobra pelas pginas da Einleitung e passa a retracejar, na sequncia de seu

    desenvolvimento e discusso, o caminho percorrido pela apreenso das categorias mais

    essenciais ao modo de produo capitalista. Frise-se que se trata da compreenso de um

    itinerrio de viagem j concluda, de percorrer sob a forma do objeto aquelas sendas que o

    foram sob o modo da prtica cognitiva da cincia. No tem esse excursionar pelas vias do

    mtodo nenhum talhe prescritivo, mas um carter puramente demonstrativo, sinttico e

    representativo. H que atentar para o fato de que Marx somente expe a questo do Weg

    aps a identificao das categorias mais importantes da produo (produo, distribuio,

    troca e consumo), do carter especfico destas e, principalmente, do exame da articulao e

    das relaes recprocas havidas entre elas.

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    A parte do escrito em questo comea exatamente pela determinao do prprio

    concreto. Com a investigao acerca da diferena entre o concreto propriamente dito e o

    imediato, o dado puro, conforme este se oferece intuio e representao. A

    populao, p.ex., tal qual esta aparece diretamente, uma Abstraktion, uma noo ou uma

    percepo emprica vazia, quando no se leva em considerao as determinaes que

    delimitam e ordenam a sua existncia enquanto efetividade. O que no significa a

    postulao da existncia de um princpio a priori ideal ou suprassensvel, frente ao qual o

    emprico como tal seria declarado como falso ou irreal. Os entes ou processos que se

    encontram na experincia so o ponto de partida irrecusvel de qualquer propositura

    cientfica. Nesse sentido, o existir-a, concretamente, da populao die Grundlage und das

    Subjekt des ganzen gesellschaftlichen Produktionsakts ist (MARX, 1983, p.35). A questo

    no discutir a efetividade da populao, mas sim encontrar as categorias, bem como a

    concatenao que vige entre estas, que a determinam e a perfazem como tal. A concretude

    da populao, como ente, no posta em suspeita. O adversrio marxiano no o emprico,

    o finito, o que equivaleria posio especulativa de negar concretude ao mundo objetivo

    por-si, mas sim, o empirismo, a reduo da concretude ao conjunto de determinidades

    imediatamente perceptveis e mensurveis do concreto existente. Alm disso, importante

    frisar que a cada nova determinao ou pressuposio que se descobre, uma srie de outras

    trazida tona. Ou seja, no discurso cientfico marxiano no possvel definir uma

    categoria em ltima instncia, que determine em absoluto, como fundamento primeiro ou

    qual os complexos categoriais realmente existentes possam ser simplesmente reduzidos

    conceitualmente. A analtica escava e abstrai das figuras empricas sejam tais, processos

    ou entes as suas determinaes.

    A anlise tem como meta extrair e fixar determinaes que encaminhem a cognio

    na direo do ultrapassamento da chaotische Vorstellung des Ganzen, da apreenso do

    finito dado em sua determinidade imediata. um procedimento de cunho analtico, ou seja,

    cuja dmarche reside no destrinar o concreto na figurao em que este se apresenta, e

    assim separar os aspectos nele presentes. O que indica haver duas pressuposies bsicas,

    que se situam aqum da ordem propriamente metodolgica, mas que a delimitam e

    orientam. Primeiro, a afirmao da existncia por-si, e no somente em-si, da efetividade

    sensvel. A citerioridade do finito , por conseguinte, um ponto de honra central para a

  • Antnio Jos Lopes Alves

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    posio marxiana. No o ato conceitual ou terico que d realidade concreta a um objeto

    efetivo - Gegenstand, para retomar as Ad Feuerbach (MARX, 1969, p. 5) - mas, ao

    contrrio, aquele, como atividade de um ente igualmente concreto, deve ter como

    Ausgangspunkt a plenitude do efetivo, do que , como referencial para a apreenso, e o

    posterior estabelecimento em nvel terico, do ser, da determinao, deste. Em segundo

    lugar, e como corolrio necessrio da posio analtica de Marx, emerge a afirmao de que

    as categorias como tais so formas determinativas do finito efetivamente existente. Em

    outros termos, os aspectos essenciais obtidos analiticamente no so entendidos como

    apangios da inteleco, mas como determinaes da prpria coisa teoricamente

    enfrentada, no caso, da produo dos indivduos sociais produzindo como uma populao

    particular. No se trata da recusa do emprico em favor de outra dimenso de realidade que,

    supostamente, se situaria acima ou alm do finito. O ente ou o processo a ser

    esclarecido j, de sada, objetivamente, uma totalidade de categorias. Ao contrrio, a

    questo a de discernir o aspecto essencial, ou o conjunto deles, que determina a forma de

    existir, do Dasein, no caso, da populao. A populao como tal, em sua finitude, j o

    concreto. O que se debate a definio do que a torna essa populao particular,

    produzindo segundo o modo historicamente determinado pelo capital. O que, de certo

    modo, afasta a posio marxiana do registro hegeliano, apesar das aparncias discursivas. O

    concreto como Zusammenfassung vieler Bestimmungen uma pressuposio antes de tudo

    de talhe ontolgico. A sntese ou concatenao categorial das diferentes determinaes

    existe como forma da efetividade da coisa, e na coisa, independentemente da inteleco.

    Coisa e inteleco so momentos do processo, mas no esto nem necessariamente

    dispostos um ao outro adequadamente, nem tm a mesmo contextura de ser. O primeiro

    termo do processo, a coisa, delimita e, a sim, est obrigatoriamente pressuposta

    cognio. O movimento desta ltima que, ao aproximar-se analiticamente, tem por

    finalidade a produo de uma sntese pensada (MARX, 1983, p. 35). Em Marx, o ser e o

    pensar permanecem existindo como momentos diversos de uma relao real e determinada,

    no se identificam, apesar de poder estabelecer-se entre ambos uma dada conexo qualquer.

    A partir do esclarecimento da questo que necessariamente est pressuposta naquela

    do conhecimento, se d a distino entre dois Wege frente efetividade imediatamente

    dada, populao. De um lado, o caminho seguido pela economia poltica, o qual consiste

  • Artigo: A Crtica Marxiana da Questo de Mtodo

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    em obter por meio da anlise da totalidade imediata de relaes, categorias cada vez mais

    simples, com base nas quais se construram os sistemas explicativos clssicos acerca da

    produo capitalista. Este caminho contempla um granu de verdade, porquanto se efetive

    na abstrao de determinados pontos importantes e os fixe como categorias cientficas,

    conceitos. No entanto, a operosidade conceitual das categorias acaba por resumir-se seja

    elaborao de um sistema que as toma como expresses da produo em geral como

    absoluto ou natural, seja como conceitos gerais dos quais se deduzem dadas relaes

    particulares como seus casos. De outro lado, est aquele ltimo (Das letztre), seguido por

    Marx, o qual inclui como etapa necessria a que se empreende a viagem de volta (die Reise

    wieder rckwrts) ao concreto efetivamente existente, populao, mas no mais como

    uma representao ou figurao catica do todo, e sim como uma reproduo conceitual do

    fundamento e sujeito reais da produo. A totalidade categorial por-si retomada agora

    como conjunto de categorias, devidamente articuladas, no pensamento, como sntese

    pensada. O caminho cientfico marxiano opera, portanto, num roteiro que vai do concreto

    conforme este se oferece imediatamente ao concreto compreendido como tal pelo

    pensamento, passando pelo trecho da abstrao, no qual os momentos isolados (einzelnen

    Momente) so mais ou menos fixados e abstrados (mehr oder weniger fixiert und

    abstrahiert) (MARX, 1983, p. 35). Procedimento esse que o modus operandi de Marx tem

    em comum com aquele da economia poltica clssica. No entanto, o movimento de

    aproximao cientfica da realidade no cessa na obteno daqueles momentos abstratos, ao

    contrrio, estes so remetidos concretude que perfazem a cada complexo particular

    analisado (por exemplo, a produo ou o intercmbio) e obtm uma determinada feio e

    um alcance determinativo prprio que depende do efetivamente existente. No h, por

    conseguinte, como j se o assinalou, uma instncia categorial que seja o fundamento do

    discurso, ao redor do qual, as demais figuras conceituais se moveriam como peas de um

    mecanismo terico de carter sistmico. De certo modo, pode-se afirmar que no existe, ao

    menos num sentido tradicional, um sistema em Marx.

    Nesse sentido, o caminho (der Weg) propriamente marxiano, em distino ao que

    ocorria nos autores da Economia Poltica, no se estaca na posse das categorias mais

    simples em seu isolamento, nem mesmo faz delas o arrimo conceitual que sustenta, lgica

    ou arbitrariamente, uma arquitetnica teortica. Tais figuraes abstratas, as quais assim o

  • Antnio Jos Lopes Alves

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    so no somente por seu teor ideal, e sim por seu carter vcuo e indeterminado, no tem,

    portanto, um peso especfico de princpios irrevogveis, a partir dos quais os processos

    explicados seriam deduzidos ou arrimados. Essas so to somente abstraes, ao menos

    nas etapas mais primaciais do processo de aproximao cientfica. Formas ideais nas quais

    se capturam e se expressam determinados lineamentos categoriais do concreto. Alm disso,

    e por isso mesmo, no tm tais figuras o modo de existncia da universalidade a priori, da

    qual o existente particular e finito seria uma simples ecloso. Como as categorias pensadas

    no possuem preexistncia e nem autonomia frente ao concreto, essas devem ser sempre

    cotejadas e matizadas pelo desenvolvimento processual efetivo que se tem em exame.

    Assim, a produo em geral no tem legitimidade cientfica seno com base na sua

    remisso a um dado modo de produzir concreto e particular. A procedncia ou adequao

    de uma categoria cientfica no assegurada simplesmente por sua coerncia, interna ou

    com a teoria. E, portanto, nem mesmo por seu contedo. So normalmente apenas certos

    traos gerais e ainda informes do complexo categorial investigado. Essa qualidade depende

    acima de tudo da aproximao do concretum objetivamente posto, em sua particularidade

    imanente e inerente, a fim de tomar posse dele como Gedankenkonkretum. No por outra

    razo, Marx define seu modo de proceder como aquele que vom Abstrakten zum Konkreten

    aufzusteigen (MARX, 1983, p. 35). Elevao que tem como alvo no o encontro de formas

    puras do pensamento, tomadas ento como a verdade ltima do concretamente existente,

    como o seria nos marcos do idealismo stricto sensu.

    Retomando o problema da determinao da questo de mtodo em funo daquela

    atinente delimitao do estatuto de realidade do objeto, Marx fornece como sustentao

    da indicao do caminho que inclui a Reise wieder rckwrts como die wissenschaftlich

    richtige Methode a pressuposio bsica de que o concreto como tal uma sntese de

    muitas determinaes. Ou uma unidade dos diversos (Einheit des Mannigfaltigen). No se

    trata, por conseguinte, de uma assertiva cuja legitimidade seja instaurada

    metodologicamente, mas assentada num ponto de partida acerca da natureza de entes ou

    processos como objetividade e imanncia. Carter objetivo de ser que se perfaz exatamente

    pela articulao plena de suas categorias, pela concatenao particular que fornece a

    delimitao de sua finitude e distino. No o ato de conhecer um arranjo dado pela

    subjetividade metodologicamente orientada a um mero em-si ou informidade de um real

  • Artigo: A Crtica Marxiana da Questo de Mtodo

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 1 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 20

    absolutamente desconexo. Ao contrrio, a cognio se aproxima de um processo ou ente

    real, o qual tem em-si e por-si uma dada configurao objetiva, uma forma de ser, que cabe

    capturar conceitualmente, traduzindo-a numa figurao mental que reproduza e tambm

    explique o modo de ser da concretude. A sntese categorial no , a um nvel mais primrio

    e essencial, uma dao terica, mas o carter especfico dos prprios existentes. Tal fato

    explicaria inclusive o porqu de o pensar reproduzi-lo como articulao de categorias. E

    aqui importante repisar que tanto o pensar quanto o existir, ambos permanecem como

    momentos de uma relao, de uma defrontao, efetiva; ou seja, mantm cada qual seu

    estatuto prprio, sem se identificarem. Com evidente acento categorial pendendo para a

    prioridade do existente, do concreto, frente ao pensamento que o vasculha e forceja por

    conhec-lo. Como tal, o que existe no obra do pensamento, nem o que como simples

    momento da transitividade da substncia racional. A concretude sinttica, o existente, em

    Marx, nesse contexto, se diz de dois modos: primeiro como este ente ou processo efetivo

    por-si; depois, como totalidade de pensamentos. Assim, O sujeito real permanece

    existindo como sempre em sua autonomia fora da cabea; at quando a cabea se comporta

    apenas teoricamente, apenas especulativamente {Das reale Subjekt bleibt nach wie vor

    auerhalb des Kopfes in seiner Selbstndigkeit bestehn; solange sich der Kopf nmlich nur

    spekulativ verhlt, nur theoretisch}. A cientificidade no definida em separado da

    efetividade sobre a qual se debrua, ao invs, deve delimitar-se sempre em funo da

    processualidade concreta a ser explicada. Em outros termos, Tambm para o mtodo

    terico, por conseguinte, deve o sujeito, a sociedade, ter-se sempre vista como

    pressuposio da representao {Auch bei der theoretischen Methode daher mu das

    Subjekt, die Gesellschaft, als Voraussetzung stets der Vorstellung vorschweben} (MARX,

    1983, p. 36).

    A esse respeito, bastante revelador o fato de que Marx, ao invs de elaborar uma

    justificativa epistmica ou metodolgica, atinente prioritariamente esfera procedimental,

    passe a discutir a natureza mesma das categorias. As formas so abordas em sua dplice

    existncia possvel; como integrantes imanentes concretude da coisa e tambm como

    figuras ideais que representam teoricamente estes elementos. A longa exposio que se

    segue apresentao dos Wege - seu prprio e aquele incompleto seguido pela Economia

    Poltica - se debrua sobre questes que remetem ao modo de existncia das categorias e

  • Antnio Jos Lopes Alves

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 2 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 21

    sobre os contornos e parmetros que definem a validade cientfica das mesmas. O problema

    central est sempre em delimitar o alcance explicativo e discursivo das categorias em

    referncia ao estatuto do objeto, s diversas formas de sociabilidade e de interatividade,

    buscando encontrar o papel que aquelas cumprem na particularidade concreta. Nesse

    sentido, a existncia antidiluviana de algumas categorias da vida social, como o valor de

    troca ou o dinheiro, por exemplo, no fazem delas um princpio trans-histrico da

    produo. Essas, ao contrrio, existem exprimindo relaes sociais particulares,

    determinadas numa dada poca, e delimitando-se por esta funo expressiva. A categoria

    pode ter existido historicamente de maneira abstrata, isolada e antes da srie de conexes

    e elementos histrico-sociais, que a transformam em uma forma societria plenamente

    desenvolvida; que a remeta a um conjunto mais complexo e multiforme de relaes sociais.

    Complexidade essa que se determina pelo grau de reciprocidade e de interdependncia

    efetivamente existentes entre os diversos nichos e dimenses da produo social da vida

    humana. A resposta inquirio acerca da possibilidade de existncia independente

    (unabhngige) da assim chamada categoria mais simples frente quela concreta revela, na

    sua aparente simplicidade, o quanto a soluo deriva da prpria analtica da coisa

    examinada e no de uma diretriz de carter epistmico: a depend (MARX, 1983, p.36). A

    dependncia irremedivel do estatuto das categorias como conceito e da articulao destas

    numa forma discursiva do talhe concreto do objeto sua contextura e maturao uma

    dmarche caracterstica da cientificidade marxiana. De um ponto de vista jurdico, exempi

    gratia, a posse pode aparecer como uma existncia ou forma de existncia social real, mas

    pressupondo sempre uma configurao particular, finita e concreta, na qual agrupamentos

    determinados exercem domnio sobre condies materiais e elementos do mundo.

    As observaes acerca da categoria trabalho so ainda mais esclarecedoras,

    porquanto apontem para o fato de que esta somente pde vir a existir nesta simplicidade,

    como Arbeit berhalpt, a partir do prprio desenvolvimento histrico. O aumento da

    complexidade da prpria interatividade social, com a emergncia na modernidade da forma

    do capital, o arrimo efetivo da categoria. Nesse contexto, a existncia da categoria

    aparentemente simples oculta toda uma rota de transformaes histricas na forma da

    produo que colocam a atividade mesma como pressuposio essencial,

    independentemente do cunho particular de cada ofcio produtivo. O que aponta para o fato

  • Artigo: A Crtica Marxiana da Questo de Mtodo

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 1 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 22

    de que o carter, simples ou complexo, de uma categoria no advm somente do ato

    cognitivo, da abstrao, mas, acima de tudo, ao do evolver efetivo da coisa ou processo

    por-si, da produo social como tal. O carter geral ou universal de uma categoria uma

    emergncia posta pelo desenvolvimento da produo da vida. Nesse sentido, Assim as

    abstraes mais gerais s surgem no desenvolvimento mais geral do concreto, onde aparece

    uma srie comum, partilhada por todos {So entstehn die allgemeinsten Abstraktionen

    berhaupt nur bei der reichsten konkreten Entwicklung, wo eines vielen gemeinsam

    erscheint, allen gemein} (MARX, 1983, p. 38).

    Esse aspecto do problema aponta para uma das questes mais importantes

    envolvidas na posio marxiana acerca da produo do conhecimento. O trabalho em geral

    como categoria no tem apenas um princpio de existncia, aquele referente atividade de

    conhecer operada pelos sujeitos reais, vivos e ativos, no confronto das propriedades

    concretas de seu aparelho sensrio-cognitivo com aquelas pertencentes efetividade

    objetiva externa a eles. Alm disso, a categoria simples, mais depurada de elementos

    particulares e acessrios ou contingenciais, por isso, mais oca, requer como condio de

    possibilidade a existncia de uma forma societria na qual as diversas modalidades de

    atividade produtiva fsica ou ideal tenham um mesmo metro social. Ou seja, a categoria

    trabalho em geral tambm implicada e explicada por uma sociedade onde os vrios

    tipos de trabalho se equivalem, sejam equiparveis, cotejados objetivamente a partir de um

    mdium ou terceiro que desempenhe a funo de mediao social. O trabalho como

    produtor de riqueza-capital, de mais-valor , portanto, a pressuposio social efetiva do

    trabalho em geral como categoria cientfica. O que d bem a dimenso da particularidade

    concreta a qual se subsume a prpria cientificidade. A aproximao cientfica da realidade

    social historicamente produzida pelos prprios homens est irremediavelmente

    condicionada pelo talhe especfico deste mesmo objeto. No existindo uma instncia que

    possa ser tomada como exterior coisa a ser elucidada. O que torna mais complexa a

    questo da objetividade, se comparada ao modo como esta se d no campo das cincias

    naturais e lgico-matemticas. O carter objetivo do conhecimento do social no negado,

    mas condicionado pelo desenvolvimento mesmo dessa esfera, a qual abarca como parte

    integrante tambm o sujeito concreto que faz cincia. A sensibilidade a determinadas

    variaes das condies - num sentido, extremo, a existncia plena do objeto como tal -

  • Antnio Jos Lopes Alves

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 2 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 23

    bem maior que nas cincias da natureza ou matemticas. O fato da situao social do

    cientista e do locus no qual se produz o conhecimento ganha um relevo proeminente. Mas

    ilusrio tomar esse aspecto como constante somente da cientificidade social. Basta pensar

    na constelao de problemas observveis na histria da fsica, por exemplo, de Aristteles a

    Galileu/Descartes/Newton, para perceber o alcance efetivo dos condicionamentos histrico-

    sociais, tanto num sentido limitador quanto facilitador, tm para a construo do edifcio da

    cientificidade em geral. Essa consequncia j afasta, pois, da reflexo marxiana acerca do

    problema qualquer pretenso a esboar um paradigma nico, abstrato e universalizador da

    cientificidade, do fazer cincia. O desenvolvimento real do objeto condiciona e determina

    as possibilidades de sua aproximao:

    Por conseguinte, a abstrao mais simples, a qual a moderna economia coloca

    acima de todas e que exprime uma conexo antiqussima e vlida para todas as

    formas de sociedade, porm apenas aparece nessa verdadeira abstrao prtica

    como categoria da sociedade moderna (MARX, 1983, p. 39)3.

    A seguir, adverte Marx para o limite da validade cientfica das categorias mais simples,

    mais abstratas, aparentemente mais vazias de contedo determinante, o qual a cientificidade

    dominante tende a exacerbar. A economia poltica confere quelas um carter universal que

    atravessaria as mais diferentes formas de produo social, como um elemento a-histrico e

    permanente tanto em sua vigncia abstrata como em seus lineamentos mais essenciais. Da

    derivaria, em parte, a concepo das leis da produo como leis naturais e imutveis. Ao

    contrrio, as leis ou regras que regulam a produo nas diversas sociedades histricas

    concretas, com as formas de ser e modos peculiares de existncia, no tem a fixidez suposta

    na natureza, nem muito menos so marcas antropolgicas indelveis e inalterveis no

    tempo. Por um lado, como formas sociais, concretas e finitas de existncia, so as leis da

    produo indefinitamente transformveis, podendo vir a sofrer reconfiguraes que lhes

    alterem o talhe da vigncia e mesmo seu contedo mais determinante. Por outro lado,

    aquelas que se caracterizam pela sua mxima universalidade, no so igualmente

    fundamentos do itinerrio histrico, princpios a priori de determinao da interatividade

    societria. Diversamente,

    3Die einfachste Abstraktion also, welche die moderne konomie an die Spitze stellt und die eine uralte und

    fr alle Gesellschaftsformen gltige Beziehung ausdrckt, erscheint doch nur in dieser Abstraktion praktisch

    wahr als Kategorie der modernsten Gesellschaft.

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    (...) mesmo as categorias abstratas apesar de sua validade justamente por sua abstrao para todas as pocas so, no entanto, na determinidade desta abstrao mesma, igualmente produto de relaes histricas e possuem sua plena

    validade {Vollgltigkeit} apenas para, e no interior, destas relaes (MARX,

    1983, p. 39).

    A universalidade das categorias tem a espessura no de um fundamento absoluto que se

    desdobraria como histria, mas aquela de pontos comuns que se tornam, ou no, pela via do

    desenvolvimento concreto das formas societrias, traos determinativos potencialmente

    irreversveis. A validade terica de um conceito geral tem seu fundamento real no carter

    categorial efetivo que se expressa idealmente como universal. Este um dos sentidos em

    que se pode entender a observao marxiana, frequentemente malbaratada, de que a

    anatomia do homem uma chave para a anatomia do macaco. Certas categorias, no

    obstante sua existncia antediluviana, somente ganham consistncia ntica plena quando

    incorporadas num complexo de maior estatura e de interconexes internas mais matizada.

    O que no resulta, bem entendido, em atribuir ao passado os sentidos efetivos do presente,

    nem, ao contrrio, em simplesmente explicar a categoria no presente acompanhando seus

    desdobramentos histricos. A compreenso do valor como medium social somente

    possvel porquanto este o seja mais que um episdio ou fenmeno acessrio da

    sociabilidade, quando a prpria troca se tornou um elemento vital da produo como tal e,

    principalmente, quando a atividade produtiva e seu princpio subjetivo circulam como

    valores.

    Ainda no contexto desta discusso, mas num outro registro, aparece um dos

    momentos mais referidos da discusso de Marx sobre o conhecer, mas que talvez um dos

    mais desentendidos. A partir da delimitao das condies histricas da existncia concreta

    das categorias simples, em especial, da remisso questo da determinao dessa pelo

    desenvolvimento social, Marx passa a abordar as relaes existentes entre os modos mais

    medrados de interatividade societria com aqueles que os antecederam. A realidade

    histrica capitalista, em sendo a forma mais desenvolvida da sociabilidade baseada em uma

    forma qualquer de propriedade privada das condies da produo, aparece, por

    conseguinte, como o modo a partir do qual as categorias podem ser tomadas, no que tange,

    inclusive, dilucidao de formaes societrias anteriores ou ainda no propriamente

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    desenvolvidas. No por um motivo de carter epistmico ou em funo de uma simples

    arbitrariedade. Mas na exata medida em que ela [a sociedade moderna] edificou-se com

    aqueles destroos e elementos, dos quais certos restos ainda no superados nela se

    conservam {mit deren Trmmern und Elementen sie sich aufgebaut, von denen teils noch

    unberwundne Reste sich in ihr fortschleppen} (MARX, 1983, p.39). Em outros termos, a

    forma mais desenvolvida, em que pese sua differentia specifica, sua particularidade,

    edificou-se (sich aufgebaut) a partir da reconfigurao ntica de, ao menos, algumas das

    categorias pertencentes a formaes que as antecederam no tempo. Remodelao que, em

    certos casos, correspondeu dao de carter universal s categorias, como a do trabalho,

    por exemplo, que eram preenchidas na realidade social efetiva por um contedo

    extremamente particularizante. As categorias, como as condies objetivas da produo que

    se tornam propriamente capital apenas dentro de uma dada relao social objetiva, tm sua

    forma de existncia societria concreta reconfigurada e oferecem com isso um novo

    contedo determinativo para a atividade produtiva. Ainda que estas permaneam material

    ou objetivamente (os meios de trabalho, por exemplo) existentes com suas propriedades

    fsicas e objetivas que lhe sejam inerentes. somente a partir desse contexto bem preciso

    que se pode tomar com justeza e correo a observao marxiana de que A anatomia do

    homem uma chave para a anatomia do macaco (Die Anatomie des Menschen ist ein

    Schlssel zur Anatomie des Affen) (MARX, 1983, p. 39).

    Em primeirssimo lugar, h que ressaltar com nfase que duas das tradues da

    Einleitung zun den Grundrisse, daquelas examinadas no curso de elaborao do presente

    trabalho uma delas, brasileira (MARX, 1974, p.126)4 ao estranhamente elidirem o

    vocbulo ein (um/uma) do a entender ao leitor ou ao estudioso menos atentos que se trata

    de uma prescrio de talhe epistmico. Ou mesmo da indicao de uma norma marxista

    universal e obrigatria pela qual as formas menos desenvolvidas ou menos complexas de

    existncia necessariamente, por assim dizer, se resolveriam no remetimento de suas

    categorias, ou do modo particular destas existirem, quelas das mais maturadas. Nada mais

    falso, levando-se em considerao tanto as observaes que antecedem quanto aquelas que

    4 Cabe aqui referir a existncia de duas outras tradues brasileiras, as quais no comentem a eliso acima

    apontada: uma referente apenas ao item O Mtodo da Economia Poltica, publicada na Coleo Primeira

    Verso,n. 71, IFCH-UNICAMP, 1997, e aquela j constante da primeira traduo completa dos Grundrisse

    em portugus publicada pela Boitempo Editorial em 2011.

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    se sucedem clebre afirmao. Marx, certamente, argumenta no sentido de haver uma

    relao entre modalidades historicamente diversas, em termos de grau de complexidade, de

    vida e produo sociais. No obstante, isto no significa asseverar que o modo de ser

    concretamente mais desenvolvido de uma categoria numa dada sociedade hodierna fornea,

    por si s, a possibilidade do entendimento desta mesma forma do ser social em sociedades

    anteriores. Afora isso, h perigo desse tipo de entendimento epistmico resultar na

    atribuio, ainda que implcita e no deliberada, de um tipo de evolucionismo ao

    pensamento marxiano. Ainda que as categorias que perfazem a interatividade social

    burguesa possam ser um dos elementos que auxiliem na decifrao do modo de ser destas

    em momentos histricos anteriores, tal no se d, entretanto, sob o signo da pura e simples

    identidade. Nesse sentido,

    A economia burguesa fornece assim a chave para a antiga etc. Mas de modo

    algum moda dos economistas, que borram todas as diferenas histricas e veem

    a burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, a

    corveia etc. quando se o faz com a renda fundiria. Mas no se o deve identific-

    las. Alm disso, sendo a sociedade burguesa mesmo apenas uma forma opositiva

    de desenvolvimento, por isso, relaes de formas anteriores frequentemente

    apenas so nela encontradas totalmente atrofiadas ou at travestidas (MARX,

    1983, p. 39)5.

    A funo heurstica desempenhada pela figurao moderna das categorias, tendo em vista o

    conhecimento de pocas anteriores (ou menos complexas) da produo social da vida

    humana, porquanto possuam aquelas uma verdade (eine Wahrheit), somente pode ser

    tomada (zu nehmen) cum grano salis (MARX, 1983, p. 40). Essa prudncia cientfica se

    torna tanto mais essencial, quanto mais se deva ter em mente que a atividade de conhecer

    para Marx, antes de tudo, o ato de apreender, fixar e, posteriormente, estabelecer

    teoricamente o conjunto de determinaes, e da articulao destas, que perfazem um dado

    modo de existncia histrico da sociabilidade. Ou seja, a distino o mais precisa possvel,

    a indicao da differentia specifica permanece como meta e diretriz inegociveis da

    aproximao cientfica no discurso marxiano. Essa cautela cientfica na identificao do

    5Die brgerliche konomie liefert so den Schlssel zur antiken etc. Keineswegs aber in der Art der

    konomen, die alle historischen Unterschiede verwischen Und in allen Gesellschaftsformen die brgerlichen

    sehen. Man kann Tribut, Zehnten etc. verstehn, wenn man die Grundrente kennt. Man mu sie aber nicht

    identifizieren. Da ferner die brgerliche Gesellschaft selbst nur eine gegenstzliche Form der Entwicklung, so

    werden Verhltnisse frhrer Formen oft nur ganz verkmmert in ihr anzutreffen sein oder gar travestiert.

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    papel das categorias traz como consequncia o que pode ser identificado como antimtodo

    marxiano. No no sentido, evidentemente da ausncia de procedimentos ou regras de

    produo da inteleco, mas como elemento que relativiza o papel central atribudo

    metodologia, pelo menos desde as auroras da modernidade. A esfera dos procedimentos

    cognitivos se resolve apenas na medida em que remeta ao modo de existncia objetivo do

    objeto e no aos modos como um suposto sujeito autnomo, este na realidade igualmente

    determinado histrico-socialmente, se aproxime deste ou daquele modo dado a priori do

    efetivamente existente.

    No por outra razo, Marx definir como principal ponto a reter (festzuhalten) o fato

    de que o concreto a ser explicado, o sujeito, aqui, a moderna sociedade burguesa, est

    dado tanto na efetividade quanto na cabea (in der Wirklichkeit so im Kopf, das Subjekt,

    hier die moderne brgerliche Gesellschaft, gegeben ist) (MARX, 1974, p.126). Em outros

    termos, a base do mtodo marxiano no se situa numa pressuposio epistmica, mas no

    reconhecimento de que o ente ou o processo examinado est duplamente dado, no somente

    como conjunto articulado de categorias mentais, mas, antes de tudo, como uma srie

    articulada de categorias que perfazem a concretude. A sntese categorial est dada, positiva

    e prioritariamente na realidade em relao ao ato da cognio. Como corolrio, die

    Kategorien daher Daseinsformen, Existenzbestimmungenen. Da tambm resulta a j

    assinalada inexistncia da chave de cunho conceitual a partir da qual um construto

    metodolgico pudesse ser erigido e passasse assim a funcionar. A analtica das formas da

    concretude no pode, por conseguinte, ser sobreposta ou substituda por um receiturio

    procedimental de carter prescritivo. Apenas a decifrao categorial, da qual a extrao das

    abstraes mais gerais to somente um momento, pode abrir caminho compreenso e

    explicao dos complexos efetivamente existentes. Nesse sentido, no parece haver no

    discurso marxiano nada que autorize a sua identificao com uma metodologia qualquer,

    seja esta de talhe lgico seja de cunho historicista. Ademais, acerca dessa ltima questo

    importante notar como reiteradamente Marx chama a ateno para o quo equivocado pode

    ser meramente acompanhar o desenvolvimento histrico, cronolgico, de uma da categoria.

    Por outro lado, como die politische konomie ist nicht Technologie (MARX, 1974, p. 21),

    a questo da decifrao da differentia specifica dos modos de produo social da vida no

    se soluciona com o exame da atividade produtiva em sua figura mais imediata, como

  • Artigo: A Crtica Marxiana da Questo de Mtodo

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    produo de valor de uso, de seus elementos objetivos ou da forma abstrata e emprica da

    relao dos homens com a natureza. Ao contrrio, o problema apenas encontra soluo

    porquanto se atinja a aproximao a mais rigorosa possvel da forma de ser social

    particular na qual aquela atividade transcorre num determinado modo de produzir a vida

    humana. Trata-se, portanto, de identificar analiticamente um dado padro de existncia

    categorial, o qual configura propriamente um modo, ao qual, uma vez subsumidas, as

    categorias ganham sua pertinncia histrico-concreta:

    Em todas as formas de sociedade uma produo que determina todas as outras e

    cujas relaes por isso designa {anweist} tambm a todos os outros, seu lugar

    {Rang} e influncia {Einflu}. um matiz {Beleuchtung} geral, no qual todas as outras cores esto imersas {getaucht sind} e [que] as modifica em sua

    particularidade. um ter {ther} particular que determina o peso especfico de

    todo o existente (Daseins) que nele eclode {hervorstechend} (MARX, 1983,

    p.41).

    A metfora atmosfrica tem aqui uma especial importncia na medida em que acentua tanto

    a imerso das categorias num dado modo particular de existncia social concreta, quanto o

    espraiamento desse halo societrio por todos os nichos e meandros da sociabilidade, como

    determinao essencial, qual esto subsumidas as demais relaes e formas e que estas

    realizam. Pode ser compreendido igualmente como um determinado matiz ou tonalidade

    (Beleuchtung) dominante que enquadra e formata as outras cores e matizes, fornecendo-os

    seu espao e configurao adequados. Como princpio eficiente cujo escopo reside em

    matizar as relaes que lhe so subordinadas e dependentes, a forma social da produo

    humana no borra ou apaga as demais coloraes societrias, mas as define, ou mesmo

    redefine, tornando leve, ou intensamente, diferente a tonalidade anterior. O que altera

    sobremaneira os modos de interao dos elementos, na medida em que estes passem a

    refletir tons de outros comprimentos. Esse recurso torna, alm disso, mais palpvel a

    natureza eminentemente relacional da determinao categorial.

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    III. PARA ALM DE HEGEL: O FUNDAMENTO MATERIALISTA DA CRTICA

    O tratamento que encontra em Introduo de 1857 o problema da relao entre o

    estatuto das categorias e a definio dos procedimentos adequados cognio das conexes

    da interatividade social, permite colocar a questo de mtodo conforme aparece em O

    Capital sob um ngulo diverso do predominante na tradio das leituras da obra marxiana.

    O desafio no tornar palatvel a pretensa absoro marxiana do mtodo dialtico

    hegeliano, mas o de explicitar as bases mesmas do procedimento da crtica da economia

    poltica, a qual contempla a abordagem da relao contraditria entre as determinaes que

    perfazem as formas da produo social capitalista. A questo do fundamento (Grundlage)

    e no da fundamentao, como quer a traduo, altamente enviesada pelo imprio da

    gnosiologia, oferecida na coleo Os Economistas (MARX, L. I, 1985, p. 20)6 do mtodo

    de O Capital no se resolve mediante sua ancoragem numa pretensa herana hegeliana de

    talhe lgico, mas somente com a compreenso da sua dplice determinao pelo objeto.

    Primeiro, da subsuno ativa coisa que se investiga. Em segundo lugar, como resultante

    necessria do primeiro aspecto, da forma analtica de proceder.

    Esse problema exige sua remisso a outro, que ser referido por Marx prximo ao

    fecho do posfcio em questo, mas que no mais das vezes absolutamente ignorado pelos

    intrpretes afiliados convico da existncia de uma herana hegeliana que orientaria au

    fond o discurso marxiano. Referimo-nos aqui indicao de que se deve distinguir o modo

    de apresentao formal daquele do modo de pesquisa (mu sich die Darstellungsweise

    formell von der Forschungsweise unterscheiden) (Cf. MARX, 1998, 23, p. 27). O modo de

    apresentar, que se configura como uma totalidade de enunciados que tm como alvo tornar

    disponvel compreenso um dado contedo, a crtica da economia poltica, no pode ser

    sobreposto ou fazer recobrir quele mediante o qual o conhecimento foi efetivamente

    conquistado e produzido. Ou seja, entre o modo de apresentar, o qual obviamente contm

    como Marx mesmo o reconhece uma srie de elementos ou formas de mediao

    recolhidos ao jargo hegeliano, e o modo de descobrir as determinaes, analtico por

    excelncia, h, seno uma convivncia tensa, ao menos uma diferena essencial. Afora isso,

    6 O que pode ser observado com especial clareza em O Capital, livro I.

  • Artigo: A Crtica Marxiana da Questo de Mtodo

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 1 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 30

    h que atentar tambm para o fato de que, mesmo incorporando os insights formais da

    dialtica hegeliana, o modo de exposio dialtico de Marx, se este existir, no

    necessariamente precisa ser idntico ou simples caso daquele de seu mestre. A exposio

    dialtica das relaes categoriais determinativas no pensamento marxiano so, ao menos

    como telos declarado, exposio de relaes reais diferente em cerne de uma pura dialtica

    de conceitos, de uma armao lgica autossustentada. A trama de desenvolvimento

    categorial, ao contrrio do que ocorre grosso modo em Hegel, no a descrio da histria

    da categoria real, mas a exposio crtica das conexes daquela com as demais constantes

    do complexo examinado. Os passos apresentados so modos de remetimento concreto e

    finito das determinaes entre si, cuja logicidade, num sentido assaz amplo, somente vigora

    no mbito circunscrito na e pela finitude da coisa efetiva. Assim, quando se acentua em

    demasia o papel do modo de apresentar, extravasando sua validade para alm de seu peso

    especfico na elaborao marxiana, normalmente se perde de vista o modo de descobrir,

    aquele que caracteriza propriamente o procedimento marxiano diante da concretude social

    capitalista, bem como como este modula e delimita as etapas da apresentao do material

    conhecido. As posies tericas que aproximam Marx a Hegel, ou melhor, a crtica da

    economia poltica Wissenschaft der Logik passam ao largo dessa questo e no abordam o

    problema do estatuto das categorias marxianas. Portanto, tambm tratam da resoluo

    metodolgica, a partir de uma inquirio que se centra unicamente na economia interna do

    discurso apresentado, sem interrogar-se pelo como se armam os conceitos assim expostos.

    Como Marx procede ante a seu objeto? Dialeticamente? Deixemos pois que o

    prprio discurso marxiano nos ajude a esclarec-lo: A pesquisa tem de apropriar-se em

    detalhe da matria, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e detectar sua

    conexo interior {Die hat den Sto sich im Detail anzueignen, seine verschiednen

    Entwicklungsformen zu analysieren und deren innres Band aufzuspren. Erst nachdem

    diese Arbeit vollbracht, kann die wirkliche Bewegung entsprechend dargestellt werden}.

    Somente uma vez efetivada essa aproximao da articulao categorial que perfaz a coisa

    que possvel empreender uma exposio do conhecido, na qual se espelha agora

    idealmente a vida da matria {spiegelt sich nun das Leben des Stoffs ideell wider}

    (MARX, 1998, p.23). O que se tem aqui uma retomada sinttica da apresentao da

    discusso do mtodo de O Capital feita por um peridico russo, citada e avalizada por

  • Antnio Jos Lopes Alves

    Sapere Aude Belo Horizonte, v.6 - n.11, p.xxx-xxx 2 sem. 2015. ISSN: 2177-6342 31

    Marx no posfcio segunda edio. importante ressaltar que numa passagem, igualmente

    transcrita por Marx, o autor do mesmo artigo russo faz notar, ainda que de modo cido, a

    distino entre Darstellungsweise e Forschungsweise, assinalando o talhe analtico do

    segundo em oposio ao aparentemente idealista do primeiro.

    Nesse sentido, parece ser de utilidade apanhar alguns dos pontos principais do

    extrato da resenha em questo, contido no corpo do posfcio. Em primeiro lugar, h que

    indicar o fato de o ponto de partida (Ausgangspunkt) no ser um princpio conceitual a

    priori ou uma chave de interpretao previamente interposta entre o pesquisador e a

    matria examinada, nem mesmo um conceito anteriormente fixado. Como analtica, o

    procedimento tem sempre como referencial a apario ou manifestao externa (uere

    Erscheinung) (MARX, 1998, 23, p. 26) com a qual aquela se depara. No se trata ento de

    uma crtica de conceitos ou formas puramente ideais, nem, por conseguinte, de prover uma

    articulao cujo arrimo e balizamento se situem no terreno de uma logicidade previamente

    desenhada. O incio do processo de pesquisa tem sempre como material a coisa tal qual ela

    se apresenta na efetividade social, na dimenso mais citerior da prtica social, na qual os

    homens reais tm de defrontar com o cotidiano e os desafios desta. Citerioridade que

    referida logo na abertura da obra, quando se indica a uere Erscheinung do modo de