Alvo - Iraque o que a imprensa não contou

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  • NORMAN SOLOMON E REESE ERLICH

    ALVO: IRAQUE

    O que a imprensa no contou

  • EXPRESSOPOPULAR

    NORMAN SOLOMON E REESE ERLICH

    ALVO: IRAQUE

    O que a imprensa no contou

  • Copyright 2004, by Expresso Popular

    Ttulo original: Target Iraq: Wath The Midia Didnt Tell YouTraduo: Tatiana Carvalho de Azevedo e Mait Carvalho CasacchiReviso: Geraldo Martins de Azevedo FilhoProjeto grfico, diagramao e capa: ZAP DesignImpresso: Cromosete

    Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida sem a autorizao da editora.

    1 edio: dezembro de 2004

    EDITORA EXPRESSO POPULAR LTDARua Abolio, 266 - Bela VistaCEP 01319-010 - So Paulo-SPFone/Fax: (11) 3112-0941Correio eletrnico: [email protected]

    Solomon, NormanAlvo: Iraque: o que a imprensa no contou / Norman

    Solomon e Reese Erlich ; traduo [de] Tatiana Carvalhode Azevedo e Mait Carvalho Casacchi. --1.ed.-- So Paulo: Expresso Popular, 2005.

    144 p.

    Ttulo original: Target Iraq: wath mdia didrit tell You.Livro indexado em GeoDados-http://www.geodados.uem.br

    1. Iraque Guerra Histria. 2. Iraque Poltica egoverno. 3. Iraque Relaes exteriores EstadosUnidos. 4. Iraque Guerra e imprensa. 5. Armas dedestruio de massa Iraque. 6. Iraque Guerra Motivos. 7. Iraque Guerra Geoge Bush. 8. Iraque Recursos minerais. I. Erlich, Reese. II. Ttulo.

    CDD 21.ed. 327.567073956.70443

    Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

    S689a

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)(Biblioteca Central - UEM, Maring PR., Brasil)

  • SUMR IO

    OS CADVERES DE FALUJA ACUSAM GEORGE BUSH ........................... 7

    JOS ARBEX JR.

    I RAQUE NO PREC IP C IO ..................................................................................................... 13

    NORMAN SOLOMON

    COBERTURA DA IMPRENSA : UMA ABORDAGEM POR BA IXO .......... 23

    REESE ERLICH

    A GUERRA DA IMPRENSA

    NORMAN SOLOMON .................................................................................................................. 3 5

    VOZES DAS RUAS IRAQUIANAS .................................................................................. 51

    REESE ERLICH

    PASSANDO PELO 11 DE SETEMBRO, TERROR ISMO E

    ARMAS DE DESTRU IO EM MASSA ..................................................................... 61

    NORMAN SOLOMON

    URNIO ENR IQUEC IDO : O SEGREDO SUJO DOS EUA ............................ 77

    REESE ERLICH

    O USO DE EUFEMISMOS PARA O TERMO UNILATERAL ...................... 89

    NORMAN SOLOMON

    SANES ........................................................................................................................................... 109

    RESSE ERLICH

    A CAMINHO DA GUERRA .................................................................................................. 121

    NORMAN SOLOMON

    A QUESTO DO PETRLEO .............................................................................................. 133

    REESE ERLICH

  • OS CADVERES DE FALU JAACUSAM GEORGE BUSH

    Jo s A rbex J r.

    O monstruoso ataque das tropas estadunidenses aFaluja, no Iraque, iniciado em 8 de novembro de 2004,foi a primeira grande demonstrao do que o mundopode esperar aps a reeleio de George Bush ao cargode presidente dos Estados Unidos. Conduzido CasaBranca, no ano 2000, graas a um processo fraudulen-to, Bush interpretou sua vitria eleitoral, quatro anosdepois, como um aval concedido pela opinio pblicaestadunidense aos ataques terroristas de suas tropascontra outros povos, em particular o iraquiano. Os ca-dveres de Faluja, fortaleza da resistncia iraquiana aosinvasores, so os primeiros trofus da nova administra-o Bush.

    As grandes corporaes da mdia estadunidense tmuma grande responsabilidade por isso, por uma simplesrazo: elas ocultam as dimenses reais do massacre, da

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    chacina, da crueldade que atinge, de preferncia, crian-as, mulheres, idosos, os cidados comuns, pacficos edesarmados do Iraque.

    Certo: ficamos, eventualmente, sabendo que um sol-dado estadunidense dispara, a sangue frio e com covar-dia, contra um homem mortalmente ferido, desarmadoe estendido indefeso no cho; sabemos tambm quemesquitas so profanadas e que iraquianos presos sotorturados e humilhados por sorridentes oficiais de TioSam; aqui e ali escapam imagens de mes desesperadas,carregando no colo filhos pequenos esvaindo em san-gue. Mas isso tudo, horrvel como , constitui apenas aponta do iceberg, como indicam relatos de organizaeshumanitrias e de observadores independentes, incluin-do a Cruz Vermelha, Anistia Internacional e vrios ou-tros. A julgar por esses testemunhos, amparados em fotose documentos que circulam pela Internet, no exage-ro afirmar que as tropas de Bush praticaram umgenocdio de grandes propores no Iraque e, particu-larmente, em Faluja.

    As corporaes da mdia aprenderam a lio doVietn, e sabem que uma opinio pblica bem informadadificilmente aceitaria a imposio de tais horrores a umapopulao inocente. Da o pacto de cumplicidade comas Foras Armadas dos Estados Unidos, sintetizado pelafigura do jornalista embedded, ou acamado em tra-duo livre do ingls. O jornalista embedded aquele queaceitou se submeter a uma srie de 50 normas estabe-lecidas pelo Pentgono, como condio para acompa-nhar as tropas.

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    As normas previam, entre outras coisas, que ele nopoderia reportar nada que no fosse aprovado peloschefes do regimento em que se encontra, o mesmo va-lendo para as transmisses de imagens. Tampouco po-deria deslocar-se para reas consideradas perigosas. Emresumo, no teria a menor independncia, nem sequerpara observar os fatos. Uma boa descrio do corres-pondente embedded foi feita pelo jornalista israelense UriAvnery, durante a invaso do Iraque, em maro de 2003:

    Os mdicos esto comprometidos pelo juramento de Hipcrates

    a salvar vidas na medida do possvel. Os jornalistas esto fora-

    dos pela honra profissional a dizer a verdade, da maneira como

    a vem. Nunca tantos jornalistas traram tanto o seu dever como

    na cobertura. O pecado original deles foi aceitar o acordo de

    participar de unidades do exrcito. O termo estadunidense

    embedded soa como sendo posto a cama, e a isso corresponde

    na prtica.

    Um jornalista que aceita a cama de uma unidade do exrcito se

    torna um escravo voluntrio. agregado aos subordinados, ao

    comandante, levado para os lugares que interessam ao coman-

    dante, v e escuta aquilo que o comandante deseja. pior do

    que ser um porta-voz oficial do exrcito, por pretender ser um

    reprter independente.

    O problema no que voc s v uma frao pequena do grande

    mosaico da guerra, mas sim transmitir uma viso falsa daque-

    la pequena frao. Na guerra das Malvinas e na primeira do

    Golfo, foi vetado o acesso dos jornalistas s reas de conflito.

    Parece que desta vez algum brilhante no Pentgono teve uma

    idia: Para que afast-los? Deixemos que entrem. Diremos o

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    que escrever e transmitir, e comero em nossas mos, como

    mascotes.

    Desde os 19 anos, sou jornalista. Sempre tive orgulho de ser jor-

    nalista. Hoje, estou envergonhado, ao ver um grande grupo de

    jornalistas sentado diante de um general cheio de estrelas, escu-

    tando avidamente o que chamam de informaes, sem formu-

    lar nem a pergunta mais simples. E quando um reprter coloca

    alguma questo real, ningum protesta quando o general responde

    com frmulas de propaganda banais. Quase todos os relatos

    jornalsticos desta guerra formam um espelho deformado. Nele

    ns vemos um quadro manipulado, deformado e mentiroso.1

    A operao de falsificao das informaes, comonota Avnery, brilhante: aparentemente, concede-se aojornalista total liberdade de presenciar os combates; seusmovimentos so monitorados pelo Exrcito em nome desua prpria segurana, assim como a possibilidade decobrir tal ou qual rea determinada unicamente porrazes de estratgia militar. Oficialmente, portanto, noh censura, de forma alguma. Na prtica, so aceitosapenas os correspondentes bem comportados que acei-tam deitar-se na cama dos oficiais. Avnery observa, comamarga ironia: Jlio Csar, quando comandava suastropas nos confins do imprio romano, integrava aoregimento prostitutas encarregadas de prestar servio aossoldados; Bush integra correspondentes de guerra. Comodiz Reese Erlich, co-autor do livro aqui apresentado:

    1 Jornal Brasil de Fato no 6, de 13 a 19 de abril de 2003, p. 10.

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    A maioria dos jornalistas enviados ao exterior j aceitou as

    condies do imprio. Eu no conheci sequer um correspondente

    internacional no Iraque que discordasse da idia de que os Es-

    tados Unidos e a Inglaterra tm o direito de depor o governo

    iraquiano por meio da fora. Eles discordavam apenas em rela-

    o ao momento, se a ao deveria ser unilateral e se uma ocu-

    pao de longo prazo seria o melhor a fazer.

    Claro que no cabe a Bush o mrito de ter inventadoa crueldade. Ele apenas prolonga, intensifica e aprofundaa tradio imperial dos Estados Unidos, sentida na pelepelos habitantes de Hiroshima e Nagasaqui, Vietn, Laose Cambodja apenas para citar alguns exemplos demorticnios bem conhecidos, sem falar das ditadurasmilitares latino-americanas. Norman Solomon, o outroco-autor deste livro, lembra as responsabilidades dopresidente Bill Clinton pela tragdia iraquiana. Clintonmanteve a poltica de sanes econmicas e comerciaiscontra o Iraque, decretada por George Bush (pai), logoaps o primeiro ataque a Bagd, em 1991:

    Os efeitos das sanes martelavam meu pensamento quando

    nossa delegao visitou, em Bagd, o Hospital Peditrico Al-

    Mansour, onde mes, sentadas em colches finos, acompanha-

    vam o sofrimento de seus filhos, vtimas de leucemia e cncer.

    Os jovens no estavam recebendo a quimioterapia adequada

    resultado direto das sanes impostas pelos EUA.

    Ao andar pela ala do cncer, lembrei-me de uma resposta da

    ento secretria de Estado, Madeleine Albright, durante uma

    entrevista no programa de TV 60 Minutes que foi ao ar em 6

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    de maio de 1996. Lesley Stahl, correspondente da CBS, afirmou:

    Ouvimos dizer que meio milho de crianas morreram e ento

    perguntou: um preo que vale a pena pagar? Albright repli-

    cou: Eu acho que uma deciso muito difcil, mas o preo

    acreditamos que vale a pena pag-lo.

    Solomon e Erlich visitaram vrias vezes o Iraque, nosmeses que antecederam a invaso de 2003. Eles ofere-cem aqui um relato a um s tempo vvido e pungentedaquilo que viram e ouviram quando soavam os tam-bores da guerra e a populao se preparava para enfren-tar mais um terrvel pesadelo. O resultado um livrodoloroso, mas esclarecedor. doloroso, por fazer enxer-gar as engrenagens implacveis da mquina do imp-rio em movimento: como um pesadelo, o leitor revive,do ponto de vista dos iraquianos, as horas infinitamen-te longas que antecederam o ataque, ao mesmo tempoem que chamado a refletir sobre as manobras falsifi-cadoras da mdia; esclarecedor, por recuperar a faceprofundamente humana das vtimas, constituir de cor-po e alma aquilo que nos jornais aparece como nme-ros e estatsticas.

    Trata-se, infelizmente, de um livro atual e mais ne-cessrio do que nunca.

    Dezembro de 2004

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    I RAQUE NO PREC I P C IO

    Norman So lomon

    13 de setembro de 2002. No Aeroporto Internacio-nal de Saddam, um oficial iraquiano, com modos edu-cados e firmes, confiscou meu telefone celular. No foiuma grande surpresa. Eu acabara de entrar em um Es-tado totalitrio, e as ltimas experincias daquele pascom a entrada de bombas guiadas por satlite haviamsido terrveis. Depois de tantos anos vivendo sob blo-queio, qualquer tecnologia relativa a satlites seria sus-peita, especialmente nas mos de um estadunidense. Noseria a ltima vez que o governo iraquiano agiriadaquela maneira: com uma represso estpida eestranhamente justificvel.

    Em menos de uma hora, nossa delegao se encon-trava em frente do Hotel Al-Rashid. Equipes de televi-so haviam ocupado a entrada. Era pouco mais de duasda manh, e as luzes de suas cmeras banhavam omosaico da entrada do hotel com uma estranha

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    luminescncia. Na calada, o congressista da delegaohesitou, preocupado com o que via na entrada. NickRahall, um democrata do Oeste da Virgnia, completandoseu dcimo terceiro turno na Cmara dos Deputados,estava bem longe de casa ele era o primeiro membrodo Congresso a pisar em solo iraquiano durante a pre-sidncia de George W. Bush.

    Rahall olhou as cmeras de TV e depois olhou no-vamente o mosaico de cores. Uma sinistra semelhanaa um presidente anterior, George H. W. Bush, invadiu aentrada do hotel, junto a faixas que proclamavam emletras maisculas: Bush um criminoso. Cuidadosa-mente, o congressista avanou pela lateral at o saguodo hotel, protegido de forma a evitar a inconveninciade ser fotografado.

    Com as tenses crescendo gradativamente, a propa-ganda do governo iraquiano parecia grosseira e fcil deser esquecida. Por toda a capital, inmeros retratos deSaddam Hussein vinham acompanhados de ridculasodes de adorao. Tudo era bastante precrio. Mas, comose aproximava a guerra entre os Estados Unidos e oIraque, muitos fatos cruciais dessa realidade poderiamser facilmente ignorados, mal compreendidos ou mes-mo evitados pelos estadunidenses.

    Depois do saguo, em um corredor nos fundos doprimeiro andar do hotel, perto do bar de bebidas noalcolicas, os convidados poderiam ganhar tempo nosvrios computadores de uma pequena loja, administra-da por um jovem bastante determinado e com uma limi-tada porm suficiente noo da lngua inglesa, alm de

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    um evidente desejo de servir. Dia aps dia, ele ajudou amim e a outros estrangeiros a utilizar sua rede de com-putadores e a navegar na Internet. Seu trabalho, semdvida, inclua o monitoramento de usurios para o go-verno; porm, sua honestidade era bvia, e ele possuauma espcie de estupidez que no poderia ser fingimen-to. J no quarto dia, sentia-se confortvel o suficiente parame contar sobre a igreja protestante que freqentava aosdomingos, e falar de sua f em Jesus, o Prncipe da Paz.No mesmo dia, conversei com um reprter de um jornalbritnico que havia se hospedado no Al-Rashid em 1991,durante a Guerra do Golfo, quando freqentes ataques abomba (do seu governo e do meu) causaram grandesestragos. Eu me surpreendi ao ouvir que, mesmo naque-la situao, os iraquianos que ele conheceu no lhe fo-ram hostis; de alguma forma, aquela sua cultura pareciaevitar o dio que deles se esperava. Tentei imaginar asituao inversa: se a fora area do Iraque estivessebombardeando cidades estadunidenses, os visitantesiraquianos com certeza seriam recebidos com fria e dio.

    noite, nossa delegao foi a um restaurante ao arlivre s margens do rio Tigre. Uma brisa fresca sopravada gua escura; mesas luz de velas espalhavam-se aolongo da margem. Era uma noite adorvel, com casaise grupos de amigos se divertindo enquanto o Sol davalugar noite sob a luz da Lua. O outono chegara. Embreve, aquele lugar idlico, um rio que era o bero dacivilizao, iria se tornar uma zona de guerra.

    Tariq Aziz nos recebeu em seu escritrio. O vice-pri-meiro-ministro parecia um velho duro em sua farda.

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    Um clima pesado de pessimismo preencheu a sala. Azizapresentou sua interpretao do que Washington haviameticulosamente reservado para o Iraque: A destruiovir se cedermos ou se no cedermos.

    A data era 14 de setembro de 2002. No escritrio deAziz estavam membros da delegao trazidos peloInstitute for Public Accuracy o congressista Rahall,junto a James Abourezk, ex-senador dos EUA, JamesJennings, presidente da Conscincia Internacional e eu.Os estadunidenses se revezavam ao afirmar que a din-mica fatal das ltimas semanas poderia ser mudada se como um primeiro passo o Iraque concordasse empermitir inspees irrestritas. Era difcil argumentar comAziz quando ele dizia em um ingls formal: Se os ins-petores voltarem, no h garantia de que evitem a guer-ra. Eles podem ser usados, alis, como um pretexto parase provocar uma nova crise. Aziz no acreditava queas inspees de armas fossem um meio de protelar oataque, sugerindo que seria necessria uma frmulacompreensvel para qualquer soluo em longo prazo,presumidamente incluindo uma garantia de no-agres-so da parte dos EUA e o fim das sanes econmicas.

    Dois dias depois, o Iraque mudou oficialmente a suaposio e anunciou a disposio de permitir que os ins-petores de armas das Naes Unidas voltassem ao pas.Avaliando as chances de se evitar a guerra, o governode Bagd adotou uma longa estratgia ainda que muitoarriscada, seria melhor do que nada. Vrios anos antes,Washington havia usado inspetores da Unscom (ComioEspecial das Naes Unidas) para propsitos de espio-

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    nagem, o que no tinha relao alguma com a missoautorizada das Naes Unidas. No final de 2002, novosgrupos de inspeo no Iraque poderiam fornecer dadosvaliosos aos Estados Unidos, aumentando a probabili-dade de um ataque militar subseqente.

    Agora somos um pas que enfrenta a ameaa de umaguerra, disse-nos Saadoun Hammadi, porta-voz da As-semblia Nacional do Iraque. Temos de nos preparar paraisso. Homem grisalho e de aparncia frgil, Hammadiestava melanclico: O governo dos EUA agora est fa-lando de guerra. Ns no daremos a outra face. Iremoslutar. No apenas as nossas Foras Armadas iro lutar. Onosso povo ir lutar. Enquanto essas palavras tornavamo ar mais pesado, aquele senhor magro fez uma pausa, edepois acrescentou: Eu mesmo irei lutar. Naquele mo-mento, pensei ter visto a luz de seus olhos se apagar, comobrasas consumidas pelo fogo.

    Os oficiais que conhecemos em Bagd eram homensinteligentes, dotados de um discurso coerente. Mesmoassim, serviam ao regime de Saddam Hussein, sujeitan-do os cidados iraquianos a uma represso severa. Soba sua ditadura, na ausncia total de um debate aberto, asociedade civil no poderia de fato existir. Enquanto isso,fotos de Hussein em diversas poses cerimoniais, pou-co formais ou bastante pessoais, s vezes mesmo dandouma boa risada apareciam diariamente nas primeiraspginas dos jornais do Iraque, apresentando-o como umcuidadoso guardio do povo, ainda que cruel. Seu com-portamento era ao mesmo tempo caricato e atroz,farsesco e trgico.

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    Um paradoxo grotesco se desenrolava. Meu pas, osEstados Unidos da Amrica, um lugar de muitas liber-dades democrticas, preparava-se para atacar, semmotivos, uma nao que se encontrava presa entre atirania de seu lder e o governo dos EUA. A possibilida-de de uma soluo pacfica parecia terrivelmente remota;a dimenso do sofrimento por vir era difcil de serapreendida.

    O cu sobre Bagd parecia um prenncio de novoshorrores, incompreensveis ainda que evitveis. Ao con-templar a capital do Iraque, pensei em algo que AlbertCamus certa vez escrevera: E, de agora em diante, anica direo honrosa ser arriscar tudo em uma gran-de aposta: palavras so mais poderosas que munies.

    Do dcimo segundo andar do Hotel Al-Rashid, a vistaera parecida com o espetculo de qualquer grande me-trpole. Carros em constante movimento por largasavenidas, e o horizonte repleto de grandes edifcios queinvadiam bairros residenciais. No havia nada fora docomum com exceo de que, se tudo corresse comoplanejado, o dinheiro que eu pago em impostos dentroem breve ajudaria a transformar grande parte desta ci-dade em um inferno.

    Com a chegada do outono, um importante artigo doNew York Times citou a ansiedade do mais alto escalodo governo em esboar um plano de guerra: Oficiaisdisseram que qualquer ataque teria incio com umaextensa campanha area conduzida por bombardeirosB-2, armados com mais de 900 quilos de bombas guia-das por satlite, para nocautear o comando iraquiano,

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    os postos de controle e a defesa area. Esse tipo de lin-guagem vulgar facilita o entendimento.

    A questo da distncia, que parece tornar menosgrave a situao do Iraque, e as medidas do governofacilitaram para que Washington no fosse perturbadapor causa das ruinosas sanes ao Iraque, durante osdoze anos anteriores. Os efeitos das sanes martelavammeu pensamento quando nossa delegao visitou, emBagd, o Hospital Peditrico Al-Mansour, onde mes,sentadas em colches finos, acompanhavam o sofrimen-to de seus filhos, vtimas de leucemia e cncer. Os jo-vens no estavam recebendo a quimioterapia adequada resultado direto das sanes impostas pelos EUA.

    Ao andar pela ala do cncer, lembrei-me de umaresposta da ento secretria de Estado, MadeleineAlbright, durante uma entrevista no programa de TV 60Minutes que foi ao ar em 6 de maio de 1996. LesleyStahl, correspondente da CBS, afirmou: Ouvimos dizerque meio milho de crianas morreram e ento pergun-tou: um preo que vale a pena pagar? Albright re-plicou: Eu acho que uma deciso muito difcil, mas opreo acreditamos que vale a pena pag-lo.

    As conseqncias das sanes se mantinham. O De-partamento de Estado dos EUA continuava a vetar al-guns carregamentos cruciais de suprimentos mdicosbsicos ao Iraque, incluindo itens como centrfugas es-peciais para tratamento de sangue, refrigeradores deplasma e bombas de fuso. Aps trs visitas ao Sul doIraque (mais recentemente em setembro de 2002), a Dra.Eva-Maria Hobiger, oncologista no Lainz Hospital, em

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    Viena, disse em um ingls imperfeito e sincero: Com aajuda dessas mquinas, a vida de muitas crianas doen-tes pode ser salva. Deve ser considerado crime quandocrianas inocentes que esto sofrendo so o alvo dapoltica.

    Gostaria de levar todos os polticos de Washingtonpara ver uma garota de 7 anos que sofria de leucemia,a quem fizemos uma visita no hospital. Talvez eles pu-dessem parar alguns instantes para assistir aosangramento incontrolvel de seus lbios, e angstianos olhos temerosos de sua me.

    Em outubro de 2002, uma resoluo circulou pelaAssemblia e pelo Senado para autorizar um intensoataque do exrcito dos EUA contra o Iraque. Eu quasepodia ouvir a voz spera e proftica do senador WayneMorse gritando, em 1964, o ano em que ele votou con-tra a Resoluo do Golfo de Tonkin: No sei porquepensamos, s por sermos poderosos, que temos o direitode tentar substituir o poder em nome do direito.

    Mesmo com os anos de sano e as mortes que cau-saram, os mais altos oficiais de Washington tomandouma deciso muito difcil em relao guerra aindaconsideraram que valia a pena pagar o preo com vidashumanas. Com a cobertura da imprensa dominada pordiscursos geopolticos e anlises estratgicas, a dimen-so moral da guerra perdeu referncia.

    Eu duvido que algum estadunidense se sentiria con-fortvel em uma visita ao Hospital Peditrico Al-Mansour.S posso imaginar, horrorizado, estar naquele hospitalcom msseis explodindo mais uma vez em Bagd.

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    No final de 2002, era muito mais fcil aderir ao dis-curso oficial sobre uma extensa campanha areaconduzida por bombardeiros B-2, armados com 900quilos de bombas guiadas por satlite.

  • COBERTURA DA IMPRENSA :UMA ABORDAGEM POR BA IXO

    Reese E r l i ch

    Os reprteres fazem amizade de modo bastante r-pido no Iraque. Divide-se uma srie de experincias desde telecomunicaes de m qualidade a oficiaisiraquianos desconfiados e editores irritados.

    Bert e eu ento aproveitamos. Bert o pseudnimoque escolhi para um reprter que trabalha para um dosprincipais veculos britnicos. No estou usando seu nomeverdadeiro pois no quero arrumar-lhe confuso. Os re-prteres dizem coisas entre si que jamais diriam em p-blico. Ento convido o leitor a um bar metafrico onde,depois de algumas cervejas, os reprteres falam de tudo.Bert e eu dividimos um txi para um passeio por Bagd.Passamos pelas modernas avenidas da cidade, que reme-tem poca de bonana do pas, antes das sanes.

    Comentei que Saddam Hussein estava reconstruindoos quartis do partido Baath, que haviam sido destrudospor um mssil estadunidense.

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    Ele tem muito dinheiro para isso, percebi natural-mente.

    Voc se daria bem com os meus editores, disse Bertjovialmente, com um sotaque entre Oxford e o Sul deLondres. Eles adoram ouvir sobre a corrupo no Iraquee a m distribuio de recursos.

    Bert politicamente moderado e forte crtico do go-verno de Hussein, mas se sente pressionado por seuseditores, muito mais conservadores que ele. Sempreque eu proponho histrias mostrando o impacto dassanes nos cidados iraquianos, disse ele, os edito-res chamam de notcia fria. Mas eles nunca se can-sam de retrabalhar histrias antigas de corrupo erepresso no Iraque. Bert internalizou as prefernciasde seus editores e geralmente escreve matrias que sabeque iro gostar. A alternativa escrever matrias quenunca sero publicadas ou que ficaro escondidas nasltimas pginas do jornal.

    O problema vai alm de disputas entre reprteres eeditores. A maioria dos jornalistas enviados ao exteriorj aceitou as condies do imprio. Eu no conheci se-quer um correspondente internacional no Iraque que dis-cordasse da idia de que os EUA e a Inglaterra tm odireito de depor o governo iraquiano por meio da for-a. Eles discordavam apenas em relao ao momento,se a ao deveria ser unilateral e se uma ocupao delongo prazo seria o melhor a fazer.

    A maioria das pessoas no mundo, e grande parteda imprensa fora dos EUA e da Inglaterra, ainda acre-dita em soberania nacional, a noo sagrada e fora de

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    moda da Carta de Direitos das Naes Unidas. Nenhumpas tem o direito de depor um governo estrangeiroou de ocupar uma nao, mesmo que esta seja terri-velmente repressora com seus prprios cidados. Seos EUA podem depor Hussein, o que impede a Rssiade ocupar a Gergia ou outra das ex-repblicas sovi-ticas e instalar regimes mais convenientes? As possi-bilidades so infinitas.

    Apesar dos vrios discursos e dos documentos pu-blicados, a administrao Bush nunca conseguiu de-monstrar de forma convincente que o Iraque apresentauma ameaa imediata para seus vizinhos. Diferente de1991, quando o Iraque ocupou o Kuwait, nenhum pasvizinho afirmou temer uma invaso do Iraque. Os EUAnunca decidiriam atacar o Iraque antes de uma Assem-blia Geral das Naes Unidas, pois seriam certamentederrotados. O pas prefere negociaes por baixo dospanos no Conselho de Segurana.

    Quando eu levanto a questo da soberania em con-versas casuais com meus colegas de profisso, eles meolham como se eu tivesse vindo de Marte. Claro que osEUA tm o direito de depor Saddam Hussein, dizem eles,pois ele possui armas de destruio em massa e pode seruma futura ameaa a outros pases. A suposio impl-cita de que os Estados Unidos por serem a nicasuperpotncia no mundo tm o direito de tomar taldeciso. Os EUA tm de lidar com a responsabilidade dedepor ditaduras inimigas e instalar ditaduras amigveis.A nica questo se sanes ou invases so a maneiramais eficiente de faz-lo.

  • N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H

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    Os governos de Bush e Blair [Tony Blair, primeiro-ministro ingls] lutam em 2 frentes de batalha: uma con-tra o Iraque, outra pela opinio pblica em seus pases.A grande imprensa um campo de batalha como asfortificaes em Bagd. E, em sua maioria, Bush e Blairtm apoio dos soldados da imprensa que montam bar-ricadas em seus pases.

    Os EUA deveriam ter a melhor e mais livre imprensado mundo, mas, pela minha experincia, tendo feito ma-tria em diversos pases, percebo que, quanto mais altose sobe na hierarquia jornalstica, menos liberdade temo reprter.

    O tpico aspirante a correspondente internacionalforma-se na universidade e comea a trabalhar em umjornal local ou em uma estao de rdio ou TV. O di-nheiro pouco e as horas so longas. (Reprteres dejornais de pequenas cidades podem receber, no incio umsalrio menor que 18 mil dlares por ano.) Mas, talvezdepois de 2 anos, eles sobem alguns degraus em dire-o a empresas maiores. Aps cerca de 5 anos, algunsdos reprteres mais dedicados e mais talentosos conse-guem emprego nos jornais dirios das grandes cidadesou nas principais emissoras de rdio ou de televiso. Unspoucos comeam a fazer trabalhos freelance [trabalhoavulso, sem vnculo empregatcio, por conta prpria] noexterior e ento se juntam grande imprensa, mas souma minoria.

    Os primeiros anos so de trabalho de campo. Mes-mo os melhores cursos de jornalismo do ao aluno ape-nas um esboo do que a verdadeira reportagem. Eu sei.

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    Eu dei aula em faculdades de jornalismo por 10 anos. Auniversidade nunca ensina a encontrar fontes em umanotcia recente, ou como confirmar uma matria de forada redao quando os celulares no funcionam, ou comoescrever uma histria de 800 palavras em 30 minutos.A melhor educao que um jornalista pode receber naprtica.

    Alm das habilidades jornalsticas, os jovens repr-teres tambm aprendem sobre os parmetros aceitveisda reportagem. H pouca censura formal na imprensados EUA. Mas se aprende quais so as fontes aceitveise quais as inaceitveis. A maioria dos cargos oficiais epolticos aceitvel e, quanto mais alto seu cargo, me-lhor. Antes do colapso de Enron, por exemplo, CEO KenLay (sic) poderia ser citado como um especialista em as-suntos relativos a energia e a economia mas agora co-nhecemos sua viso tendenciosa dos fatos.

    Muitas outras fontes so consideradas alm do acei-tvel e, ento, so ignoradas ou ridicularizadas. Nacio-nalistas negros, marxistas ou advogados sindicaisprogressistas de questes trabalhistas entram nessa ca-tegoria. O mesmo se aplica aos conservadores fora dapoltica tradicional de Washington, como muulmanosconservadores e certos intelectuais de direita.

    No Iraque, eu vi tudo isso em primeira mo. Tome-mos o Voices in the Wilderness como exemplo, um grupopacifista com sede em Chicago. Alguns de seus lderesparticiparam de uma viglia no deserto iraquiano nomomento exato em que os Estados Unidos comearamo bombardeio na Guerra do Golfo, em 1991. Voices in

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    the Wilderness levou centenas de estadunidenses aoIraque, incluindo 3 congressistas em setembro de 2002. responsvel por projetos de ajuda comunitria emBagd e estabeleceu importantes contatos com Organi-zaes No Governamentais (ONGs).

    Pode-se concordar ou discordar da viso do Voicesin the Wilderness. Eu discordo de sua abordagem paci-fista, por exemplo. Porm, como jornalistas, devemosreconhec-los como uma organizao legtima, parte deum crescente movimento antiguerra, que mobilizoucentenas de milhares de pessoas na Inglaterra e nosEstados Unidos em setembro e outubro de 2002.

    Mas no este o tratamento que recebem da maiorparte da grande imprensa. Ramzi Kysia, um dosorganizadores do Voices in the Wilderness que morouem Bagd, parou certo dia na central de imprensa paradeixar um press release [comunicado, texto preparadopara a imprensa]. Ele convidou correspondentes inter-nacionais para cobrirem a visita de um professorestadunidense, que era contra a guerra, a uma escolairaquiana.

    Eu estava l quando Kysia entregou o press releasea uma equipe de televiso. Assim que ele se foi, a equi-pe nem se preocupou em l-lo at o final antes de de-clarar que aquilo era propaganda. Eles no consideravamo Voices uma fonte legtima e, portanto, o grupo pode-ria ser ignorado.

    De fato, algumas semanas depois, quando o Voicesorganizou uma marcha contra a guerra em Bagd, JohnBurns, do New York Times, falou do evento em tom de

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    stira. Ele ressaltou de maneira depreciativa que SaddamHussein probe todas as manifestaes, com exceodaquelas contra os Estados Unidos (New York Times, 27/10/02). Enquanto Saddam certamente censura opiniesde oposio, os protestos de estadunidenses em Bagdcontra as polticas dos Estados Unidos so merecedoresde divulgao direta. No posso conceber um tom toridculo permeando a matria do New York Times sedissidentes iraquianos marchassem em Washington emapoio s polticas dos EUA.

    O Wall Street Journal (4/11/02) tratou o Voices mui-to mais objetivamente, mas em contexto humorsticonum artigo sobre 2 ocidentais malucos que visitam oIraque como turistas.

    Em 1990, levei um grupo de alunos para visitar o SanFrancisco Chronicle. Eu fazia trabalhos freelances parao Chronicle desde 1989. E propus a seguinte pauta hi-pottica ao ento editor do Servio Internacional doChronicle, David Hipschman: E se eu quisesse publicaruma matria sobre a amante de Saddam Hussein? Eupediria 2 fontes que sustentassem a afirmao, respon-deu ele calmamente. Ento, perguntei: E se eu tivessea mesma histria dizendo que o presidente Bush tem umaamante? Ele riu: Ento eu pediria fotos de ambos nacama.

    Qualquer reprter mais experiente sabe que os edito-res podem exigir nveis de evidncias com pouca subs-tncia ou impossveis de serem alcanados. Se um reprtererra na citao de algum ou faz uso de uma informaoerrada ao produzir um artigo crtico sobre Saddam

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    Hussein, os editores no levantam grandes objees.Porm, se um artigo que critica a poltica dos EUA con-tm os mesmos erros, abrem-se as portas do inferno. Nomnimo, algum do Departamento de Estado ou doPentgono liga para reclamar. Grupos conservadores daimprensa e apresentadores de talk show [programa deentrevistas] nas rdios tambm faro presso. RaymondBooner, um reprter do New York Times que escreveuartigos precisos criticando a poltica estadunidense emEl Salvador, foi retirado daquele pas na dcada de 1980,justamente quando se fazia tal campanha conservadora.

    Quando os reprteres esto prontos para se tornaremcorrespondentes internacionais um processo que podelevar 10 anos ou mais eles entendem as regras do jogo.Tornar-se um correspondente internacional um bomnegcio. interessante e desafiador. Viaja-se freqente-mente e se conhecem lderes internacionais. Voc podever o seu crdito na primeira pgina do jornal. O traba-lho gera reconhecimento.

    E existe a questo do dinheiro. Eu fiz uma pesquisainformal sobre os salrios dos correspondentes interna-cionais nos pases que visitei. (Lembre-se: reprteresdizem coisas uns aos outros que no diriam em pbli-co.) Salrios de reprteres que conheci, que trabalhamperodo integral na rdio ou em publicaes impressasda grande imprensa, chegam de 90 a 125 mil dlares porano. Esse valor no considera os correspondentestelevisivos, que podem ganhar o dobro disso ou mais.

    Um reprter do New York Times em uma sucursal nafrica disse-me em uma noite de cerveja, que ser cor-

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    respondente internacional um grande passo na carreirano Times. Depois de alguns anos na frica, ele planeja-va mudar para um pas de maior prestgio antes de tra-balhar a sua promoo s mesas da editoria em NovaYork. Os reprteres do Times so grandes conhecedoresdos acordos internacionais, mas, se for para ganhar umPrmio Pulitzer, devem fazer matria em um pas demaior importncia. No momento, Iraque e Oriente M-dio se encaixam no perfil.

    Dinheiro, prestgio, opes de carreira, predileesideolgicas combinados desiluso de no poderpublicar uma histria que desagrade o governo , tudoisso influencia os correspondentes internacionais. Nose ganha um Pulitzer desafiando os princpios bsicosdo imprio.

    Oficiais do Iraque perceberam que no teriam umacobertura justa de muitos dos correspondentes interna-cionais. Ento, o que fizeram? Responderam com um doscomportamentos menos sofisticados e mais incompeten-tes de que eu j tive conhecimento.

    O processo tem incio ao se solicitar um visto de jor-nalista no Iraque. Um telefonema Iraqi Interest Sectionno final de 2002 revelou que obter um visto de jornalis-ta pode levar 2 meses ou mais. Ento, tentei contatar di-versos altos oficiais em Bagd, amigos de amigosjornalistas. No deu certo. Os iraquianos so muito des-confiados de reprteres que eles no conhecem, e muitomais de quem escreve histrias que no lhes agradam.

    Nem pense em se infiltrar com um visto de turistacomo muitos correspondentes fazem em alguns pases

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    repressores. (Conversa hipottica com um guarda de fron-teira: sempre quis visitar a Babilnia. E, falando nisso,existe artilharia de defesa posicionada do lado de l?)

    Por sorte, aprendi com a delegao do meu co-autorao Iraque e coloquei o meu nome na lista dos reprte-res que acompanhavam o congressista. Recebemos nos-sos vistos em 10 dias. Tecnicamente, os vistos s serviampara acompanhar a delegao, mas ento percebi quepoderamos ficar mais tempo em Bagd.

    Todos os reprteres tinham guias governamentais,popularmente chamados de inspetores. Eles ajudavama agendar entrevistas e serviam como intrpretes. Elestambm se certificavam de que voc no fosse a deter-minados lugares ou falasse com determinadas pessoas.Para mostrar o nvel de parania do Iraque, at mesmoONGs como a Voices in the Wilderness possuam inspe-tores.

    Eu criei uma boa relao com o meu inspetor; ele eratimo para contornar a frustrante burocracia iraquianae fazer as entrevistas acontecerem. Eu no estava ten-tando visitar lugares polmicos. Mas nos foi recusada,entretanto, a permisso para visitar a Cidade de SaddanCity, a parte mais pobre de Bagd.

    No final de outubro, depois que aconteceram mani-festaes espontneas exigindo informaes sobre oparadeiro de prisioneiros polticos iraquianos, o gover-no ficou muito aborrecido com a cobertura da impren-sa. Expulsou correspondentes internacionais da CNN efez saber aos outros reprteres que seus vistos estariamlimitados a 10 dias de permanncia. Mas no final do ano,

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    o governo permitiu que os jornalistas ficassem por maistempo para cobrir a inspeo de armas.

    Tais aes obviamente intimidaram os reprteres, quepensavam: ser que o contedo da minha matria de-terminar minha expulso do pas, ou a proibio devoltar? O governo iraquiano usa vrias formas de inti-midao, o que resulta na autocensura de alguns repr-teres.

    um mtodo clssico usado pelos que esto no po-der para intimidar reprteres. Se um presidente dos EUAno gosta de certa cobertura, o governo pode impedirque o reprter ofensor consiga entrevistas exclusivas,ou pode no retornar telefonemas. Correspondentes in-ternacionais podem ser forados a sair do pas. Repr-teres logo aprendem a se autocensurar, ou ento estofora da jogada.

    As polticas de imprensa dos EUA e do Iraque tmmuito mais em comum do que seus respectivos lderespoderiam admitir.

  • A GUERRA DA IMPRENSA

    Norman So lomon

    Por muitas dcadas, Helen Thomas cobriu a CasaBranca como reprter pela United Press International(UPI). Sua coluna passou a ser publicada em diversos ve-culos no comeo do sculo 21 e quando o espectro daguerra cresceu, em 2002, ela no se omitiu. As bombaslanadas no Iraque tambm vo atingir os nossos direi-tos civis se Bush e seus parceiros se mantiverem nessadireo, disse Thomas no incio de novembro duranteum discurso no MIT (Instituto de Tecnologia deMassachucetts). Analisando sua carreira, falou: Eu mecensurei durante 50 anos quando eu era reprter.

    Ainda que se queira que os jornalistas deixem suasopinies pessoais fora da matria, esperamos ter acessoa todos os fatos relevantes. Raramente o caso. Muitasinformaes fundamentais so filtradas. O processogeralmente sutil em uma sociedade com liberdadesdemocrticas e pouca censura declarada. Ces de circo

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    pulam quando seus treinadores estalam o chicote, re-gistrou George Orwell mais de meio sculo atrs, maso co realmente bem treinado aquele que consegue daro salto mortal mesmo quando no h chicote. No hchicotes visveis nas modernas salas de imprensa e nosestdios de rdio e TV dos EUA. Editores, reprteres,produtores ou correspondentes no esto encoleirados.Mas, na grande imprensa, poucos jornalistas conseguemtrilhar outros caminhos.

    Na verdade, a fora desse processo de controle re-side justamente em sua ausncia aparente, observou ocrtico de mdia Herbert Schiller. O resultado sistmicodesejado comumente alcanado por um processoinstitucional brando, porm efetivo. Schiller continuou:a educao de jornalistas e outros profissionais damdia, moldados em um sistema de penalidades e recom-pensas por fazerem o que deles esperado, com normasapresentadas como regras objetivas, e a ocasional masdefinitiva intruso que vem de cima. A alavanca prin-cipal a internalizao de valores. O conformismo setorna habitual. Entre os resultados est uma dinmicaque Orwell descreveu como o reflexo condicionado deuma parada brusca, como que por instinto, no momentoem que surge um pensamento perigoso... e de se sentirdesmotivado ou repelir qualquer linha de raciocnio queseja capaz de conduzir a uma direo herege.

    Em contraste com a censura estatal, que geralmente fcil de se reconhecer, a autocensura entre os jorna-listas raramente assumida. Jornalistas tendem a evi-tar falar em pblico sobre obstculos que limitam seu

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    trabalho; eles praticamente fazem a autocensura daautocensura. No ambiente altamente competitivo daimprensa, no necessrio ser um cientista em ascen-so, ou mesmo um cientista social, para saber que adiscrdia no alavanca carreiras. Isso verdade princi-palmente em tempos de guerra. As recompensas decooperar para progredir so claras, assim como o riscode no suprir as expectativas.

    Verdades ocasionais de jornalistas de renome podemser esclarecedoras. Oito meses depois do 11 de setem-bro, em uma entrevista com a rede de televiso BBC, DanRather disse que os jornalistas estadunidenses estavamintimidados devido aos ataques. Fazendo o que ele cha-mou de comparao obscena, o ncora da rede denotcias CBS considerou: Houve um tempo na fricado Sul em que se colocavam pneus em chamas ao redordo pescoo de dissidentes. E, de certa forma, o medo que o pescoo seja o seu, que voc tenha ao redor deleum pneu em chamas pela sua falta de patriotismo. Agora esse medo que impede que os jornalistas faam a maisdura das perguntas. Logo completou: Eu no me isen-to dessa crtica. O que estamos falando aqui ainda quese queira reconhec-lo ou no, ou cham-lo pelo pr-prio nome ou no de uma forma de autocensura. Eutemo que essa obsesso patritica passe por cima dosvalores que o pas procura defender.

    No dia 8 de novembro de 2002, o mesmo dia em queo Conselho de Segurana das Naes Unidas aprovou suaprincipal resoluo sobre o Iraque, o programa All Things

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    Considered da National Public Radio, levou ao ar umamatria do experiente correspondente Tom Gjelten. Umaguerra contra o Iraque comearia com uma campanhaarea, e os recursos para a fase de ao j esto definiti-vamente estruturados, afirmou. O tom garantia: Oficiaisde defesa esto confiantes de que o programa das NaesUnidas no vai atrapalhar os seus planos. Por uma cau-sa, eles continuam com as preparaes de guerra. Umexperiente oficial do exrcito disse: Quando a situaoexigir, temos de estar prontos para botar para quebrar.

    Prontos para botar para quebrar. Era uma frasenotvel para um oficial do alto escalo do Pentgonousar para se referir a aes que certamente matariam umgrande nmero de pessoas. No se respondeu com ne-nhuma crtica ao comentrio; nenhuma das centenas depalavras dos reprteres ofereceu uma perspectiva con-trria linguagem eufemstica que distanciou os ouvin-tes das catstrofes humanas da guerra de fato. Esse tipode reportagem seguro. So mnimas as chances de ir-ritar fontes do governo, executivos da imprensa, donosde redes de comunicao, publicitrios ou no caso deemissoras pblicas grandes financiadores. Enquan-to a National Public Radio est mais para Rdio Nacio-nal do Pentgono, as reclamaes dos ouvintes parecempouco importar queles no comando. Isso no deveriaser surpresa. O presidente e CEO da National PublicRadio, Kevin Klose, j foi diretor da InternationalBroadcasting Bureau, a agncia governamentalestadunidense responsvel pelo Voice of America, RadioFree Europe, Radio Liberty e Radio and Television Mart.

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    Quem planeja a guerra e quem a consuma sempreconfiou nas enormes lacunas entre as horrendas reali-dades da guerra e suas respectivas coberturas pela im-prensa profissional. Mesmo quando a carnificina chegouao seu apogeu no Vietn, mais tarde escreveu o corres-pondente freelance Michael Herr, a imprensa dos EUAnunca encontrou uma maneira significativa de escre-ver sobre morte, do que certamente se tratava tudo aqui-lo. Os mais repulsivos e evidentes caminhos para asantidade nesse meio de mortes receberam um trata-mento especial nos jornais e no ar.

    Quando surge a possibilidade da guerra, e principal-mente depois que ela comea, uma aflio maior ocupaa maioria dos veculos estadunidenses. O espetculo damdia torna-se mais do que a mera regurgitao dosfatos. A dieta da mdia recheada de exageros moralis-tas. ncoras, generais, oficiais de Washington, reprte-res e especialistas preenchem as telas de TV com anlisesde tticas e estratgias. Os grficos simulados por com-putador foram os limites tcnicos de dissimulao,enquanto o Pentgono testa a sua ltima tecnologia deguerra.

    Transmisses ao vivo via satlite parecem ter feitoda guerra algo imediato, com espectadores sendo enco-rajados a admirar os msseis atingindo Bagd, como sefosse uma exibio de fogos de artifcio. Os principaismecanismos para amenizar a situao so geralmentetidos como os mais esclarecedores. A televiso prometelevar a guerra para dentro de nossas casas, mas mesmoquando o sangue escorre e as agonias se prolongam em

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    lugares distantes, a cobertura funciona para nos tornarmais emocionalmente obtusos do que nunca. No so-mos apenas anestesiados; tambm podemos ser conven-cidos de que nosso conhecimento est se tornando maispreciso. Com a guerra, a televiso acentua os mitos deinter-relao, ainda que ela nos retire a verdadeira re-lao com os demais.

    O que vemos, pergunta o analista de mdia MarkCrispin Miller, quando nos sentamos na sala e assis-timos guerra? Vivenciamos um evento real? Na ver-dade, essa experincia fundamentalmente absurda.Mais do que bvia, h a incongruncia da escala, adisjuno radical das locaes. Enquanto uma guerra uma das maiores coisas que podem acontecer a umanao ou a um povo, devastando famlias, destruindotelhados e paredes, ns a vemos comprimida eminiaturizada em um imponente objeto que reluz bemno centro de nossos lares. E a TV contm guerras emformatos sutis. Enquanto ela nos confronta com his-trias de morte, privao, mutilao, ela imediatamentecancela a memria daquele sofrimento, substituindosuas prprias imagens de desespero por um comercial alegre e infinitamente iluminado. Pretenses par-te, as redes de comunicao so fbricas de iluso: Oreprter de TV nos conforta como John Wayne con-fortou nossos avs, parecendo deter toda a realidadenas mos. ... Como ningum parece viver na televiso,ningum parece morrer nela. E a existncia tempor-ria do noticirio retira o peso de todos os momentosterminais.

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    Os principais veculos de imprensa oferecem, sim,algum jornalismo de qualidade. Mas as desunidas ilhasda imprensa independente esto perdidas em um oceanode confiana nos relatrios de fontes oficiais.

    Como qualquer executivo de publicidade sabe, a es-sncia da propaganda a repetio. A menos que este-jam repercutindo na cmara de eco da imprensanacional, histrias e perspectivas particulares geralmentetm pouco efeito.

    Em teoria, qualquer pessoa nos Estados Unidos temliberdade para falar o que pensa. Liberdade para serescutado j outra questo. Fontes de informao e adiversidade efetiva de pontos de vista deveriam alcan-ar o pblico de forma constante, mas no alcanam.Enquanto isso, todos os tipos de pronunciamentos ofi-ciais de Washington ocupam os noticirios que raramen-te se submetem a um questionamento direto. A enormedistncia entre liberdade de expresso e direito de serescutado uma explicao parcial de por que a crenafervorosa na benevolncia mundial do Tio Sam con-tinua to disseminada entre os estadunidenses. Superes-timada pelas vozes dominantes da comunicao demassa, a atual opinio pblica que surge do discurso doPentgono rapidamente se dissemina e se cristaliza. Asgrandes empresas de notcias esto saturadas de cons-cincia corporativa. J estamos to acostumados aosefeitos que no costumamos refletir sobre eles. Enquantoassumimos que a cobertura reflete o julgamento de jor-nalistas profissionais, esses jornalistas esto envolvidos

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    com uma indstria de mdia dominada por corporaes,com poder financeiro suficiente para redefinir o signi-ficado do profissionalismo funcional.

    Nunca podemos nos esquecer de que a guerra umgrande muito grande negcio.

    William Hartung, experiente pesquisador no WorldPolicy Institute, sediado em Manhattan, apontou no fi-nal de 2002 que a estratgia de governo de Bush deguerra de preveno no Iraque o plano de um peque-no crculo conservador de grupos lobistas de tanques earmas, como o Project for a New American Century(PNAC), cujos membros tm forado essa aproximaopor mais de uma dcada. Hartung acrescenta:

    Na corrida para a eleio presidencial de 2000, o PNACpublicou o relatrio Rebuilding Americas Defenses, queserviu como base para a estratgia militar de Bush/Rumsfeld no Pentgono, incluindo a criao de termoscomo mudana de regime. O documento de fundaodo PNAC um apelo unilateral ao retorno das polticasdo incio da poca Reagan de paz por meio da fora foi assinado por Paul Wolfowitz, Dick Cheney, DonaldRumsfeld e muitos outros que se tornariam jogadoresoficiais no time da segurana nacional de Bush. Assimcomo a Coalition for the Liberation of Iraqi, um gruporecm-formado por antigos e atuais membros deWashington e programado para promover a poltica admi-nistrativa de Bush no Iraque, o PNAC demonstrou o seuapoio com uma forte rede de ideologias conservadoras,fundaes de direita e grandes empreiteiros de defesa.Bruce P. Jackson, um ex-vice-presidente da Lockheed

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    Martin, que membro e fundador signatrio do relatrioda misso do PNAC, atua como presidente da Coalitionfor the Liberation of Iraqi. Ao adotar a estratgia promo-vida por essa rede de conservadores, a administrao Bushconseguiu mais de 150 bilhes de dlares para gastosmilitares e subsdios exportao de armas desde 11 desetembro de 2001, sendo que a maioria vai para as maioresprodutoras de armas como Boeing, Lockheed Martin eNorthrop Grumman.

    Tais interesses em comum por negcios militares soforas poderosas na indstria da mdia impulsionada pordiretrizes corporativas a fim de maximizar os lucros. Oproblema principal da imprensa estadunidense profun-damente estrutural. As ondas de rdio e televiso supos-tamente pertencem ao pblico, mas so as grandescompanhias que as controlam. Grande parte das empre-sas de comunicao de massa como emissoras de r-dio, TV a cabo, jornais, revistas, livros, filmes, a indstriada msica e, num crescente, a Internet so domina-das por grandes entidades corporativas. Cada vez mais,as emissoras pblicas so tambm submetidas ao gran-de capital. Junto comisso politicamente apontada dainstituio sem fins lucrativos Corporation for PublicBroadcasting, doadores corporativos exercem pesadainfluncia em programas por meio do financiamento deprogramas especficos.

    E quando a guerra est nos planos de Washington, acobertura da imprensa distorce os fatos ao mximo.

    Quando o governo dos Estados Unidos usou de for-ma imprpria os inspetores de armamentos das Naes

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    Unidas no Iraque para fins de espionagem, os principaisfatos foram ampla e rapidamente retratados pela imprensaestadunidense no comeo de 1999 mas, durante osmeses que se seguiram, os fatos fundamentais sobre aespionagem e os srios danos que ela causou no forammuito publicados. Em 2002, as omisses e as distoresda imprensa sobre o assunto j eram lugar-comum.

    Muito da cobertura estava em sincronia com as men-tiras repetidas pelos principais oficiais dos EUA, comoo secretrio de Defesa Donald Rumsfeld, que passou ainsistir que Saddam Hussein havia expulsado os inspe-tores de armas das Naes Unidas quatro anos antes. Emuma coletiva de imprensa no Pentgono, em 3 de se-tembro de 2002, com a falta de considerao tpica paracom os assuntos inconvenientes, Rumsfeld disse: Fo-ram os iraquianos que acabaram com as inspees, issotodos sabemos. Protestamos quando os iraquianos ex-pulsaram os inspetores... Teria sido bom se eles no ostivessem expulsado? Sim, teria sido melhor. Ambos ospartidos repetiam essa mentira. Apenas um dos muitosexemplos: quando o senador democrata John Kerry, deMassachusetts, apareceu no Hardball da rede MSNBC,em meados de 2002, e afirmou categoricamente queSaddam Hussein expulsou os inspetores em 1998.

    O Iraque no expulsou os inspetores. O diretor daUnscom Richard Butler os retirou em dezembro de 1998 pouco antes de um bombardeio dos EUA batizado deOperao Raposa do Deserto.

    Com novas inspees sendo procedidas no final de2002, a especialista em armas biolgicas Susan Wright

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    levantou algo que no poderia ser compreendido nocontexto criado pela cobertura evasiva da imprensa: Seos iraquianos perceberem que a organizao de inspe-o das Naes Unidas est mais uma vez sendo usadapara fins de espionagem, as inspees colocam o Iraqueem uma situao contraditria. Se o Iraque concordar,sabe que suas defesas sero minuciosamente examina-das. Se resistir, sua resistncia pode ser usada como umgatilho para que o governo dos Estados Unidos disparea guerra.

    Mesmo quando jornalistas estadunidenses mencio-naram a espionagem que ocorrera da ltima vez que osinspetores das Naes Unidas estiveram no Iraque, osfatos foram amenizados ou eufemizados. Buscando umacooperao legtima entre os inspetores e as agncias deinteligncia nacionais, Bill Keller, do New York Times,escreveu um editorial no dia 16 de novembro de 2002que, rpida e cautelosamente, tocou em registros hist-ricos de espionagem dos EUA: A operao anterior deinspeo da Unscom provavelmente ultrapassou os li-mites ao ajudar os EUA a acessarem informaes, ain-da que dando algum crdito aos apelos anti-EUA deSaddam.

    Mais freqentemente em 2002, ao se referir espio-nagem, os noticirios transformavam os fatos em me-ras alegaes. No New York Times do dia 3 de agosto,Barbara Crossette escreveu que a equipe da Unscom foidissolvida depois que o Sr. Hussein acusou a antigacomisso de ser uma operao estadunidense de espio-nagem e se recusou a discutir o assunto. No dia 18 de

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    novembro, no programa All Things Considered, daemissora NPR, a correspondente Vicky OHara disse: Oltimo esforo dos inspetores de armas das Naes Uni-das no Iraque teve seu fim em meio a acusaes de Bagdde que os inspetores estavam espionando para os Esta-dos Unidos. No dia seguinte, o Los Angeles Times pu-blicou que, 4 anos antes, Bagd acusou a presena deespies na equipe, e os Estados Unidos reclamaram di-zendo que o Iraque estava usando a acusao como umadesculpa para obstruir o trabalho de inspeo.

    Uma simples frase em uma matria de John Diamond,no USA Today, publicada em 8 de agosto de 2002, foiduplamente manipuladora: O Iraque expulsou os inspe-tores de armamentos das Naes Unidas quatro anos atrse os acusou de serem espies. Enquanto a segunda parteda frase extremamente dissimulada, a primeira parte completamente falsa. Meses depois, o USA Today aindase recusava a publicar uma retratao ou correo.

    Os principais veculos de notcias continuaram arepetir a mentira como um fato. Alguns exemplos:

    CBS Evening News, 9 de novembro de 2002: Masenquanto os inspetores de armas das Naes Unidas sepreparam para voltar ao Iraque pela primeira vez desdeque Saddam os expulsou em 1998, os EUA enfrentamuma delicada ao compensatria: transformar o con-senso internacional a favor do desarmamento em umconsenso a favor da guerra.

    Washington Times, 14 de novembro de 2002: OIraque expulsou os inspetores das Naes Unidas qua-tro anos atrs.

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    - Bob Woodward, no Washington Post, 17 de novem-bro de 2002: O discurso criticou firmemente as NaesUnidas por no impor a inspeo de armas ao Iraque,especificamente durante os 4 ltimos anos, desde queSaddam os expulsou.

    Nenhum produto precisa de uma propaganda maiseficiente do que a do desperdcio de uma enorme quan-tidade de recursos enquanto se massacra um grandenmero de pessoas.

    A onda de eufemismo sobre a guerra nos EstadosUnidos comeou muitas dcadas atrs. No novidadeque o governo federal no possui mais um departamentoou um plano oramentrio para a guerra. Agora, tudo chamado de defesa, uma palavra com uma fortecarga inerente de justificativa. O efeito sutil de mudaressa nomenclatura pode ser medido pelo fato de quemesmo quem se ope aos irresponsveis gastos milita-res constantemente se refere a eles como gastos de de-fesa.

    Desde a dcada de 1980, o cruzamento entre duasavenidas, Pennsylvania e Madison, aumentou a capa-cidade da imprensa de higienizar gradativamente a des-truio em massa conhecida como guerra. A primeiraadministrao de Bush promoveu as tcnicas de rela-es pblicas para as aes militares dos EUA ao esco-lher nomes para as operaes que eram pensados demaneira a moldar as percepes polticas, como cha-ma a ateno o lingista Geoff Nunberg. A invaso aoPanam, em dezembro de 1989, seguiu com o nome deOperao Justa Causa, sucesso imediato na imprensa.

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    Um bom nmero de ncoras adotou a frase justa cau-sa, o que incentivou os governos de Bush e Clinton acontinuarem usando nomes to tendenciosos. Comoaponta Nunberg, tudo questo de nomenclatura. E no coincidncia que nomes com esse novo estilo foramintroduzidos praticamente ao mesmo tempo em que osprogramas de televiso a cabo comearam a caracteri-zar sua cobertura das principais histrias com chama-das apelativas e logotipos. O Pentgono passou afornecer imagens como as de videogames dos ataquescom msseis estadunidenses, ao mesmo tempo em queexibia slogans escritos com letras garrafais nas telas dateleviso.

    Desde a Guerra do Golfo, no incio de 1991, polti-cos tm comumente se referido quele paroxismo demorte violenta como Operao Tempestade no Deser-to ou, mais comumente, apenas Tempestade no De-serto. Para um ouvinte leigo, soa como um ato danatureza, ou talvez um ato de Deus. De qualquer ma-neira, de acordo com o vago esprito evocado pelo nomede Tempestade no Deserto, homens como Dick Cheney,Norman Schwarzkopf e Collin Powell podem muito bemter dado uma fora nas ocorrncias divinamente natu-rais: fortes ventos e uma chuva de mais de 900 tonela-das de bombas laser guiadas por satlite caindo dos cus.Como comentou o chefe de relaes pblicas do Exr-cito, major-general Charles McClain, logo aps o trminoda Guerra do Golfo: O sucesso da aceitao de umaoperao pode ser to importante quanto o sucesso desua execuo.

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    Em outubro de 2001, enquanto lanavam msseis noAfeganisto, o time de Bush surgiu com o nome Ope-rao Justia Infinita, rapidamente mudado depois deperceberem que era ofensivo aos muulmanos, devido sua crena de que somente Al pode oferecer justiainfinita. O substituto, Liberdade Duradoura, foi bemrecebido pela grande imprensa estadunidense, umazona livre de ironia em que o nico inconvenientepoderia sugerir que as pessoas no teriam outra oposeno a duradoura liberdade do Pentgono de lanarsuas bombas.

    Ao planejar as aes militares dos EUA, os operado-res da Casa Branca pensam como executivos demarketing. Foi um deslize significativo quando, em 2002,o chefe de gabinete do governo Bush, Andrew Card, disseao New York Times: De um ponto de vista publicitrio,no se introduz novos produtos em agosto. No porcoincidncia, as justificativas da guerra por vir no Iraqueno surgiram antes de setembro.

    Os lderes da mdia na Casa Branca sem dvida gas-taram energia considervel examinado as opes decomo batizar o ataque to esperado ao Iraque. E, mes-mo quando a maioria dos estadunidenses soubesse onovo nome da misso, jamais saberamos os nomes dosiraquianos mortos em nossos nomes.

  • VOZES DAS RUAS I RAQU IANAS

    Reese E r l i ch

    Cai a noite na poeirenta estrada de pista dupla noLeste do Iraque, quando o motorista do txi comenta quesua famlia mora em uma cidadezinha prxima. Quan-do pergunto se ele se importaria que um visitanteestadunidense conhecesse sua famlia, o motorista pisanos freios e faz a volta com o carro.

    Por que no?, diz ele com um sorriso.Depois de dirigir por cerca de 30 minutos, o txi der-

    rapa e pra em frente de uma casa em um distrito declasse operria. A vila de pequenas casas abriga suagrande famlia de 20 pessoas: operrios, motoristas decaminho e um comerciante.

    E ento comea uma das mais francas e honestasentrevistas que um reprter conseguiu no Iraque deSaddam Hussein. Os reprteres normalmente so acom-panhados o tempo todo por um inspetor do governo,

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    sendo que sua simples presena pode inibir certas con-versas. Mesmo sem inspetores, os iraquianos so cau-telosos com discusses polticas quando h estranhospor perto.

    Um dos irmos fluente em ingls. ele quem falaa maior parte do tempo e traduz a conversa para osoutros membros da famlia.

    Se houver guerra, ficaremos em casa, disse fran-camente. Aprendemos com a ltima guerra que ir paraabrigos ou para o interior do pas no adianta.

    Durante a Guerra do Golfo Prsico, em 1991, osEUA bombardearam o abrigo Ameriyah, em Bagd,matando centenas de pessoas. Os EUA mais tarde afir-maram que o refgio era um posto de comando e cen-tro de controle do Exrcito de Hussein. Hoje, qualquerum pode visitar o local, transformado em museu, paraver provas de que os mortos eram civis. De maneirasemelhante, os EUA bombardearam pontes em distan-tes reas rurais, o que tambm resultou em baixascivis.

    No difcil entender por que tantos iraquianos che-garam concluso de que melhor ficar em casa do queir para abrigos ou para a casa dos parentes no interior.

    Enquanto, em pblico, praticamente todos osiraquianos manifestam seu apoio a Saddam Hussein, osmembros desta famlia, como muitos iraquianos,enfatizaram reservadamente o seu desgosto pelo gover-no. Saddam no trouxe nada alm da guerra, disse umdos membros da famlia, mas tambm no queremosque os Estados Unidos invadam nosso pas.

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    Todo iraquiano entrevistado manifestou um senti-mento parecido. dio a Saddam Hussein no significaque o povo queira a ocupao do Iraque pelos EUA.

    Ns nos preocupamos com a fragmentao do pas,disse outro da famlia. Quase aconteceu em 1991. Nossoamigo aqui curdo e ele no pode nem visitar os seusparentes.

    O amigo, um homem de cerca de 30 anos, de origemcurda, explica que sua famlia vive no Norte do Iraque,agora controlado por grupos curdos sob proteoestadunidense. Ele desistiu de visitar os parentes devi-do s dificuldades criadas pelas autoridades curdas eiraquianas na fronteira estabelecida pelos EUA aps aGuerra do Golfo.

    O medo de uma nao fragmentada uma preocupa-o vlida. Muitos iraquianos temem que, se os EstadosUnidos invadirem, o pas se dividir em um Norte decontrole curdo e um Sul controlado por muulmanos Shia.Mesmo se no houver uma diviso formal, dizem eles,as diferenas tnicas e religiosas so uma ameaa de frag-mentao do pas, como aconteceu com o Afeganisto.

    O plano de Bush para uma mudana de regimetambm uma questo que preocupa. Os iraquianostemem pensar em quem ir governar o Iraque ps-Hussein. Nunca ouvimos falar da maioria desses lde-res exilados, diz o irmo, referindo-se aos lderes doCongresso Nacional do Iraque, citados pelos EUA comolderes em potencial de um governo ps-Hussein.

    E o rei?, continuou ele, referindo-se possibilidadede os EUA trazerem de volta um parente do rei Faisal II,

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    deposto em 1958 durante a luta do pas contra ocolonialismo britnico. Quem hoje em dia se lembra dorei ou sabe alguma coisa sobre monarquia? Quem osEUA iro nomear para governar o pas e como essenovo lder o far?

    Alguns ocidentais esto promovendo o retorno deum monarca ao Iraque, assim como os EUA promo-veram Zahir Shah durante a guerra no Afeganisto.O rei, de 88 anos, foi largamente saudado por ser umaalternativa respeitosa e popular ao Taleb. Apenasmais tarde o povo estadunidense descobriria que ZahirShah mal conseguia falar e no possua base polticadentro do Afeganisto. Hoje ele permanece protegidoem seu palcio em Kabul, sem papel significativo nopas.

    O governo Bush sabe que no ser fcil substituirSaddam Hussein. Por meio de sua rgida ditadura,Hussein conseguiu manter o Iraque unido. Esta umadas razes pelas quais os EUA e a Inglaterra apoiaramo ditador durante a dcada de 1980.

    Como a invaso do Afeganisto pelos EUA nos mos-tra, entretanto, muito mais fcil depor um velho regi-me do que estabelecer um novo governo que funcione,sem se preocupar com o regime democrtico. Talvez sejapor isso que o governo considerou a possibilidade deinstalar um general militar estadunidense para gover-nar o Iraque at que lderes locais possam ser investi-gados e indicados. Com razo, o povo iraquiano noconsegue entender por que um ditador militar dos EUA melhor que um ditador local.

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    Ao final dessa improvisada entrevista em grupo, opatriarca da famlia diz: Estamos cansados da guerra.No queremos outra com os EUA, nem com mais nin-gum.

    Todos os iraquianos entrevistados disseram estar can-sados da guerra, mas alguns estavam dispostos a lutar.

    Enquanto a maior parte de Bagd apresenta edifciosde concreto construdos a partir da dcada de 1960, nocentro velho da cidade existem ainda casas antigas e lojasde madeira. O caf Al Zahawi parece ter sado de um filmeda dcada de 1930. Alguns homens, esto sentados embancos de madeiras, fumando cachimbos cheios com umtabaco perfumado. Outros jogam domin em mesas rus-ticamente construdas. H apenas homens aqui.

    Ibrahim Jaleel, clrigo de 40 anos, tem uma perspec-tiva diferente quanto s recentes guerras no Iraque. Jaleeldiz que os iraquianos esto acostumados guerra eno sentiro medo se outra vier. Jaleel diz que resistir invaso dos EUA.

    At a ltima gota de nosso sangue iremos lutar ematar qualquer estrangeiro que tente ocupar esta ter-ra, diz ele. De acordo com os ensinamentos islmicos,devemos defender trs coisas: nosso pas, nossa honrae nossas propriedades. Defend-las o nosso martrio.

    Ao dizer isso, Jaleel ecoa o discurso do governo deque iraquianos iro lutar com todas as suas foras paracombater a invaso dos EUA. Para alguns, esta a ex-presso de um sentimento sincero; muitos outros vopermanecer passivos.

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    O centro de Bagd um lugar barulhento e cheio deareia. Os motoristas tocam suas buzinas pelo menorproblema no trnsito; finas camadas de areia cobrem asfachadas. A pequena loja de Fadhil Hider um refgioda desarmonia. Ele vende canetas, rosrios e uma infi-nidade de bugigangas.

    Aos 61 anos de idade, Hider viveu a era doneocolonialismo britnico, quando a monarquia gover-nava o Iraque. Na verdade, ele tem um pster do reiFaisal II bastante visvel no fundo de sua loja. Indaga-do se tal mostra evidente de simpatia com o velho regi-me teria lhe causado problemas polticos, ele d deombros e diz No. Indagado se a famlia real possuialgum apoio popular no Iraque hoje em dia, ele d deombros e diz No mais uma vez.

    Hider no critica Saddam Hussein, mas tambm noelogia o lder. De forma impressionante, Hider no dizcoisa alguma sobre resistir invaso estadunidense. Eleexpressa a desesperana sentida por muitos iraquianos.

    O que podemos fazer? Eu vou fechar a minha loja.E muitos outros faro o mesmo. E iremos esperar peloque vai acontecer depois. uma guerra entre dois Esta-dos. Um possui uma tecnologia altamente sofisticada.O outro, no. Hider expressa um verdadeiro horror idia de uma invaso por parte dos EUA, e diz que l-deres estrangeiros no deveriam dizer ao povo iraquianoo que fazer.

    Se o povo iraquiano quer mudanas, as mudanastm de ser trazidas pelo prprio povo, no de fora. Seh algum problema com o governo, ele tem de ser

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    mudado pelo prprio povo no por Bush ou Blair ouChirac.

    A Universidade de Bagd um complexo de prdiossombrios de cimento cinza, ao que parece inspirados nagrandiosidade arquitetnica de um prdio de apartamen-tos de Moscou. Os alunos tm aula em salas mobiliadascom simples e duras cadeiras de madeira, sem ar-con-dicionado para combater os inmeros dias do extremocalor do deserto.

    Enfileirados do lado de fora da sala do professor,esperando por explicaes sobre as aulas, alguns estu-dantes estavam vidos para falar com um reprterestadunidense. De forma quase contemplativa, algunsdeles reproduziram o esperado de iraquianos leais. Suasafirmaes pareceriam absurdas em qualquer situao.

    Ns gostamos do nosso presidente Saddam Husseine temos orgulho dele, diz Reem Al Baikuty, aluna doquarto ano do curso de ingls. Temos orgulho de tudoo que ele faz e de tudo o que ele fala. Ela ento defen-de sua onipresena com psteres, pinturas, murais eesttuas de Saddam Hussein um culto personalida-de que constrangeria Joseph Stalin.

    Outros estudantes so menos entusiastas, entretan-to. Enquanto ningum critica Hussein abertamente, al-guns alunos indicam com balanar de ombros econfirmam com a cabea que Hussein criticado.

    Uma aluna da graduao, que pediu para no ter onome citado, viveu nos Estados Unidos por 10 anos. Elaafirmou que realmente gostava do povo e do sistema de

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    governo dos EUA, mas ento voltou ao Iraque com suafamlia e teve de viver a Guerra do Golfo Prsico.

    Quando vemos televiso, dizemos que o povo[estadunidense] tem de tudo. Eles possuem timas es-colas, tima educao, timo padro de vida. Por queento atormentar um povo que est apenas comeandono mundo? Eu vou ter um filho em abril e penso: Essebeb chegar mesmo? Em que mundo ele ir viver?

    Essa universitria, que ainda tem amigos nos Esta-dos Unidos, diz que ela e seu marido tero de fazer umaterrvel escolha se as tropas estadunidenses invadiremBagd.

    Meu marido e eu estvamos falando sobre isso ou-tro dia, disse ela. Se um estadunidense vier minhaporta, ele disse Eu o matarei. Eu no sei o que faria.

    Saad Hasani o professor que esses alunos vieramver. Ele estudou na Universidade de Leeds, na Inglater-ra, e ensina teatro ingls moderno na Universidade deBagd. De certa maneira, ele um homem de 2 mundos com um p na Europa ocidental e outro no Iraque.

    O professor Hasani afirma reservadamente que algunsiraquianos com influncias ocidentais podem apoiar adeposio do presidente Hussein pelos EUA, mas que amaioria dos iraquianos se ope a ela de fato. Ele cita umantigo ditado rabe: Eu e meu irmo contra meu pri-mo, mas eu, meu irmo e meu primo contra um estran-geiro.

    Sempre difcil para um reprter saber se as pessoasesto realmente falando o que sentem. Este reprtervisitou o Afeganisto em janeiro de 2002 e entrevistou

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    dezenas de pessoas escolhidas ao acaso. Praticamentetodas elas disseram que odiavam o regime Taleb e sau-davam o exrcito estadunidense. Mesmo pessoas quehaviam sido feridas ou que possuam parentes mortospor bombas dos EUA expressavam tal sentimento.

    Se eu tivesse entrevistado essas mesmas pessoas seismeses antes, muitas teriam elogiado o Taleb e denun-ciado os EUA. s vezes as pessoas dizem o que elaspensam que voc quer ouvir e o que politicamenteseguro.

    Os estadunidenses no deveriam se surpreender portais atitudes. Imagine o que voc faria se um reprteraparecesse em seu trabalho e pedisse uma opinio ver-dadeira do seu chefe e dos seus colegas. Mesmo que elete prometesse completo anonimato, voc ainda poderiaficar um pouco circunspecto. Voc acharia que h mui-ta coisa em jogo. Se um novo chefe estiver por vir, vocpode se sentir mais vontade para criticar o chefe an-tigo, mas ainda ter cuidado ao falar sobre o novo.Afegos e iraquianos no so diferentes; mas no apenas o seu trabalho que est em jogo.

    Depois da invaso e ocupao do Iraque, reprteresestadunidenses certamente iro encontrar pessoas comcrticas ao regime de Saddam Hussein. Alguns iraquianosiro elogiar o exrcito estadunidense. Estaro falandoa verdade?

    O que voc diria sobre o seu novo chefe?

  • PASSANDO PELO 11 DE SETEMBRO,TERROR ISMO E ARMAS DE

    DESTRU IO EM MASSA

    Norman So lomon

    Aqueles a quem o mal feito fazem o mal de volta(W. H. Auden)Em meados de 2002, um pouco antes de o Congres-

    so votar a autorizao da guerra dos EUA contra oIraque, uma pesquisa da CBS News constatou que 51%dos estadunidenses acreditavam que Saddam Husseinestava envolvido nos ataques de 11 de setembro de 2001.Logo depois, o Pew Research Center reportou que doisteros da populao estadunidense concordava queSaddam Hussein auxiliou os terroristas nos ataques de11 de setembro.

    Nesse meio tempo, um correspondente em Wa-shington da Inter Press Service publicou que As agn-cias de espionagem dos EUA so unnimes em afirmarque as evidncias que ligam Bagd aos ataques de 11

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    de setembro, ou quaisquer ataques a alvos ocidentaisdesde 1993, simplesmente no existem. No havia basefactual para assertivas de uma ligao do Iraque comessas recentes manifestaes terroristas. Mas as pesqui-sas podem explicar como a Casa Branca foi capaz deconseguir apoio para transformar o Iraque em um alvo.

    A administrao Bush nunca hesitou em explorar asansiedades da opinio pblica que surgiram com oseventos traumticos de 11 de setembro de 2001. Teste-munhando em Capitol Hill, exatamente 53 semanas maistarde, Donald Rumsfeld no perdeu o jogo de cinturaquando um membro do Comit de Servios Armados doSenado questionou a necessidade de os EUA atacaremo Iraque.

    Senador Mark Dayton: O que nos move agora a to-mar uma deciso precipitada e a agir precipitadamente?

    Secretrio de Defesa Rumsfeld: O que nos move? Oque nos move que 3 mil pessoas foram mortas.

    Como uma questo prtica, era quase bvio que ale-gaes ligando Bagd aos ataques de 11 de setembrocareciam de evidncias. Supostamente houve um encon-tro em Praga entre o seqestrador de 11 de setembro,Mohammed Atta, e um oficial da inteligncia do Iraque,mas depois de muitas reportagens nos principais vecu-los dos EUA, a declarao foi desmentida (com a ajudado presidente tcheco, Vaclav Havel). Outra tentativasurgiu quando Rumsfeld acusou Saddam Hussein de darabrigo a agentes da Al Qaeda. Como afirmou o jornalbritnico Guardian, eles realmente viajaram aoCurdisto iraquiano, o que algo fora de seu controle.

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    No entanto, tais mentiras geralmente ganham cada vezmais fora. Como disse uma vez Mark Twain, Umamentira pode percorrer meio mundo antes que a verdadeconsiga ao menos calar as botas.

    Ex-analista da CIA, Kenneth Pollack teve uma enor-me exposio na imprensa no final de 2002 com seulivro The Threatening Storm: The Case for Invading Iraq.A divulgao do livro de Pollack mais pareceu uma di-vulgao da guerra. Durante uma apario tpica como ncora Wolf Blitzer, da CNN, que por 2 vezes usou afrase um livro novo e importante, Pollack explicouporque ele via a invaso macia do Iraque como algodesejado e prtico: A diferena real foi a mudana em11 de setembro. A idia de que o ps-11 de setembro que o povo estadunidense agora estaria disposto a fazersacrifcios para prevenir que ameaas externas se con-sumem no interior do pas tornou possvel pensar emuma grande fora de invaso.

    Correspondente no Oriente Mdio, Robert Fisk es-tava no Independent de Londres quando, logo aps aresoluo do Conselho de Segurana das Naes Uni-das em novembro de 2002, escreveu: O Iraque notem absolutamente nada a ver com o 11 de setembro.Se os Estados Unidos invadirem o Iraque, teremos denos lembrar disso. Em muitos nveis psicolgicos, otime de Bush era capaz de manipular as emoes ps-11 de setembro muito alm da sombra doenvolvimento iraquiano naquele crime contra a hu-manidade. As mudanas dramticas no clima polti-co depois de 11 de setembro incluram um drstico

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    reforo nessa atitude fervorosamente abastecidapelos gostos de Rumsfeld, Dick Cheney e do presidente de que nosso Exrcito deveria atacar inimigos empotencial antes que eles pudessem nos atacar. Al-guns polticos e especialistas desejavam confrontar arealidade de que esta seria uma frmula para umaguerra perptua, e para o surgimento de um grandenmero de novos adversrios, que veriam como lgicarecproca a adoo de crena.

    O conselheiro de segurana nacional do PresidenteBush sentiu que o governo no tinha muitas opes comHussein, relatou o reprter Bob Woodward em meadosde novembro de 2002. Uma frase de Condoleezza Riceresumiu a situao: Cuide logo das ameaas.

    Determinar exatamente o que constitui uma ameaa e como cuidar dela seria uma tarefa para se resol-ver na Oval Office (Salo Oval).

    Certamente, a imprensa respondeu ao 11 de setem-bro com horror, averso e condenao total. O desejoterrorista de destruir e matar era perverso. Ao mesmotempo, o desejo do Pentgono de destruir e matar tor-nou-se mais e mais autojustificvel nos ltimos mesesde 2002. Enquanto reprteres e especialistas repetiamas afirmaes oficiais de Washington, a idia de umanova guerra no Iraque parecia mais aceitvel. Havia umaescassa preocupao quanto aos civis iraquianos, cujosltimos momentos, antes de serem atacados por msseis,se assemelhariam queles dos que padeceram nos ata-ques ao World Trade Center (WTC) e ao Pentgono.

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    Os maiores triunfos da propaganda foram alcana-dos, no por se fazer algo, mas por evit-lo, observouh muito tempo Aldous Huxley. Grande a verdade,porm maior, de um ponto de vista prtico, o silnciosobre a verdade. Apesar do tumulto da imprensa sobreo 11 de setembro, um silncio rigorosamente seletivo rondou a cobertura da grande imprensa. Para os homensda poltica em Washington, a utilidade prtica desse si-lncio imensurvel. Em resposta aos assassinatos emmassa cometidos por seqestradores, a ao moralista doExrcito dos EUA permanece clara contanto que osinteresses permaneam sem questionamento.

    Na manh de 11 de setembro de 2001, enquanto equi-pes de resgate combatiam a densa fumaa e os destro-os, o analista da ABC News, Vincent Cannistraro,ajudava a colocar os eventos descobertos em perspecti-va para milhes de espectadores. Cannistraro um ex-oficial do alto escalo da Central Intelligence Agency(CIA). Ele estava no comando dos trabalhos da CIA comos contras na Nicargua no incio da dcada de 1980.Depois de se mudar para o Conselho de Segurana Nacio-nal, em 1984, tornou-se supervisor de ajuda secreta sguerrilhas afegs. Em outras palavras, Cannistraro temuma longa histria de ajuda a terroristas primeiro, aoscontras, que rotineiramente mataram civis nicaragen-ses; depois, aos rebeldes mujahedeen no Afeganisto, taiscomo Osama bin Laden.

    Como pode uma associao terrorista de longa data,apoiada pelo Estado, agora denunciar o terrorismo? fcil. Tudo o que necessrio que a cobertura da

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    imprensa faa uma abordagem, como de costume, nohistrica, para no se utilizar de fatos inconvenientes.Em seu livro 1984, George Orwell descreve a dinmicamental: O processo tem de ser consciente, ou ele noser dotado de preciso suficiente; mas tambm deve serinconsciente, seno ele ter uma sensao de falsidadee uma carga de culpa... Dizer mentiras deliberadas en-quanto se acredita nelas piamente, esquecer qualquerfato que tenha se tornado inconveniente e, depois, quan-do se torna novamente necessrio, traz-lo de volta pelotempo que for preciso, negar a existncia de uma reali-dade objetiva e, por todo o tempo, dar-se conta da rea-lidade que algum nega tudo isso indispensavelmentenecessrio.

    O secretrio de Estado Collin Powell denunciou aque-les que acham que, com a destruio de prdios, com oassassinato de pessoas podem de alguma maneira alcan-ar um objetivo poltico. Powell descrevia os seqestra-dores que haviam atingido seu pas horas antes. Semquerer, tambm estava descrevendo vrios dos principaisoficiais em Washington. Certamente, polticos estaduni-denses acreditaram que poderiam alcanar objetivospolticos com a destruio de prdios, com o assassi-nato de pessoas, quando optaram por lanar msseis emBagd em 1991, ou em Belgrado em 1999. Mas raro oquestionamento da mdia estadunidense quanto s ma-tanas perpetradas pelo governo dos EUA. Apenas algu-mas crueldades merecem destaque. Apenas algumasvtimas merecem empatia. Apenas certos crimes contraa humanidade merecem nossas lgrimas.

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    As mudanas de significado dependem geralmentede uma nica palavra. No mundo das relaes pblicas,sucesso ou fracasso podem depender das respostas dopovo a certos jogos de palavras. Desde os ataques de 11de setembro, nenhuma palavra de efeito tem encontra-do mais uso do que terrorismo. Durante os 2 primei-ros dias de outubro de 2001, a pgina na Internet da CNNapresentava um pequeno e estranho anncio. Tem ha-vido falsas acusaes de que a CNN no usou a palavraterrorista para se referir queles que atacaram o WorldTrade Center e o Pentgono, dizia a notcia. Na ver-dade, a CNN tem constante e repetidamente se referidoaos atacantes e seqestradores como terroristas, e con-tinuar fazendo isso.

    O repdio da CNN era preciso e reafirmado porpadres convencionais da imprensa. Mas ele contornauma questo bsica: exatamente, o que terrorismo?

    Para os jornalistas tradicionais deste pas, esta umano-questo sobre um no-assunto. Mais do que nun-ca, a prpria funo da marca terrorista parece bvia.Um grupo de pessoas se apoderou de companhias arease as usou como msseis guiados contra milhares depessoas, disse o executivo da NBC News, Bill Wheatley.Se isso no cabe na definio de terrorismo, o quecabe?

    Verdade. Ao mesmo tempo, notvel que os vecu-los de imprensa estadunidenses consideram grupos deterroristas usando os mesmo critrios que o governo dosEUA. Os editores geralmente declaram que os reprte-res no precisam de nenhuma diretiva formal o uso

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    apropriado simplesmente compreendido. Por outrolado, a agncia mundial de notcias Reuters assumiu auma abordagem diferente durante dcadas. Como partede uma poltica para evitar o uso de palavras emotivas,diz a agncia de notcias, no usamos termos comoterrorista e defensor da liberdade a menos que elessejam uma meno direta ou sejam atribuveis a tercei-ros. Ns no caracterizamos os sujeitos das notcias, masretratamos suas aes, sua identidade e seu passado paraque os leitores possam tomar suas prprias decisesbaseadas nos fatos.

    A Reuters cobre 60 pases. A denominao de terro-rista uma constante em muitos deles. Por trs dospanos, muitos governos tentaram pressionar a Reuterspara uma mudana na cobertura usando a palavra ter-rorista para falar de seus inimigos. Do ponto de vistados lderes do governo de Ankara, de Jerusalm ou deMoscou, os noticirios deveriam denominar de terro-ristas seus violentos inimigos. J para os curdos, pa-lestinos ou tchetchnios, os noticirios deveriamdenominar os lderes violentos de Ankara, de Jerusalmou de Moscou como terroristas tambm.

    Em outubro de 1998, o intelectual e ativista EqbalAhmed fez algumas recomendaes aos Estados Unidos.A primeira delas: Evite extremismos. ... No condeneo terror israelense, o terror paquistans, o terror nica-ragense, o terror salvadorenho, por um lado, e depoisreclame do terror afego ou do terror palestino. Nofunciona. Tente ser razovel. Uma superpotncia nopode promover o terror em um lugar e racionalmente

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    esperar desencorajar o terrorismo em outro. No as-sim que funciona neste mundo interligado.

    Se os reprteres estadunidenses difundissem suadefinio de terrorismo para incluir toda a violnciacometida contra civis para com vistas a objetivos pol-ticos, encontrariam forte oposio em diversos nveis.Durante os anos de 1980, se houvesse uma poltica bemdefinida para o terrorismo, a imprensa teria denomina-do as guerrilhas dos contra da Nicargua alm dosgovernos salvadorenho e guatemalteco como terro-ristas apoiados pelos EUA.

    No lxico poltico dos EUA, terrorismo como usa-do para descrever, por exemplo, a morte de israelenses no pode ser usado para descrever a morte de pales-tinos. Porm, em uma reportagem de outubro de 2002,o grupo israelense de direitos humanos BTselem docu-mentou que 80% dos palestinos assassinados pela For-a de Defesa Israelense durante a coero do toque derecolher eram crianas. Doze pessoas com menos dedezesseis anos foram mortas, outras dezenas feridas portiros israelenses em reas ocupadas, durante um pero-do de 4 meses. Nenhum desses mortos oferecia perigo vida dos soldados, informa o BTselem.

    O professor de poltica George Monbiot ajudou aestabelecer o contexto para o procedimento moral daCasa Branca contra o Iraque, em uma coluna de agostode 2002, no Guardian, quando ele avaliou a perspecti-va de George Bush em declarar guerra a outra naoporque aquela nao havia desafiado lei internacional.

  • N O R M A N S O L O M O N E R E E S E E R L I C H

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    Monbiot apontou: Desde que Bush subiu ao poder, ogoverno dos Estados Unidos quebrou mais alianas in-ternacionais e ignorou mais tratados das Naes Uni-das que todo o resto do mundo em 20 anos. Ele eliminouos tratados de armas biolgicas ao experimentar, ilegal-mente, suas prprias armas biolgicas. Recusou a per-misso de acesso total a inspetores de armas qumicas aseus laboratrios, e sabotou tentativas de inspeesqumicas no Iraque. Cancelou o acordo de msseisantibalsticos, e parece estar pronto para violar o trata-do de proibio aos testes nucleares. Permitiu que gru-pos da CIA recomeassem operaes secretas do tipo queincluiu, no passado, o assassinato de chefes de Estadoestrangeiros. Sabotou o acordo de armas de pequenoporte, questionou a corte criminal internacional, recu-sou-se a assinar o protocolo de mudana climtica e, mspassado, procurou imobilizar o tratado das Naes Uni-das contra tortura.

    Nenhuma dubiedade foi empregada mais deliberada-mente no Oriente Mdio que a poltica dos EUA relativaa armas de destruio em massa. De acordo comWashington e a maioria dos noticirios estadunidenses,os polticos dos EUA sempre desfrutaram de uma base mo-ral inquestionvel em confronto com o ditador do Iraque.

    Uma parte da imprensa diria britnica tem sido com-preensivelmente mais ctica. Cientistas respeitveis deambos os lados do Atlntico avisaram ontem que os EUAesto desenvolvendo uma nova gerao de armas quequestionam e possivelmente violam acordos internacio-nais de guerras biolgicas e qumicas, publicou o cor-

  • A L V O : I R A Q U E

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    respondente do Guardian, Julian Borger, de Washington,em 29 de outubro de 2002. Os cientistas tambm apon-taram para o paradoxo de os EUA desenvolverem taisarmas no momento em que propem uma ao militarcontra o Iraque, justificando-se no fato de SaddamHussein estar quebrando acordos internacionais. MalcomDando, professor de Segurana Nacional na Universida-de de Bradford, e Mark Wheelis, palestrante emMicrobiologia na Universidade da Califrnia, dizem queos EUA esto encorajando um colapso no controle dearmas com sua pesquisa sobre armas biolgicas, antraze armas no letais usadas contra multides hostis, e pelocarter secreto como esses programas esto se