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Amanha Voce Vai Entender - Rebecca Stead

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • Copyright 2009 Rebecca SteadEdio publicada mediante acordo comHandon House Childrens Books, uma diviso de Handon House, Inc. TTULO ORIGINALWhen You Reach Me TRADUOFlvia Souto Maior

    PREPARAOMarina Vargas REVISORachel AgavinoMilena Vargas ADAPTAO DE CAPAJulio Moreira ILUSTRAO DE CAPAEva Vazquez Merino GERAO DE EPUBTrio Studio REVISO DE EPUBJuliana Latini E-ISBN978-85-8057-116-5 Edio digital: 2013 Todos os direitos desta edio reservados Editora Intrnseca Ltda.Rua Marqus de So Vicente, 99, 3 andar22451-041 GveaRio de Janeiro RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

  • Para Sean, Jack e Eli, campees de risadasem horas imprprias, de amor intenso e de

    questes extremamente profundas.

  • A expe r in c ia m a is be la que podem ost e r o m is t e r io s o .

    A lbe r t E in s t e inComo vejo o mundo (1931)

  • C o is a s que g ua r da m os em um a c a ixa

    Ento mame recebeu o carto-postal hoje. Est escrito Parabns em letrascursivas grandes, e bem no alto ca o endereo do Estdio TV-15, na rua58. Depois de trs anos tentando, ela nalmente conseguiu. Vaiparticipar do programa A Pirmide de 20 Mil Dlares, apresentado por DickClark.

    No postal h uma lista de coisas para levar. Ela precisa de algumasmudas de roupa, caso ganhe e passe para a prxima fase que elesngem ser no dia seguinte, embora gravem cinco programas em umanica tarde. Presilhas de cabelo so opcionais, mas ela sem dvida levariaalgumas. Diferentemente de mim, mame tem cabelos lisos e ruivos, quebalanam bastante e podem impedir que os Estados Unidos vejam seupequeno rosto sardento.

    E, no nal do carto, tem a data em que ela deve aparecer, rabiscadaem caneta azul: 27 de abril de 1979. Exatamente como voc disse.

    Olho na caixa que est embaixo da cama, onde tenho guardado seusbilhetes durante os ltimos meses. L est ele, escrito com sua letramida: 27 de abril; Estdio TV-15 . As palavras esto tremidas, como se vocas tivesse escrito no metr. Sua ltima prova.

    Ainda penso na carta que pediu que eu escrevesse. Isso me incomoda,mesmo sabendo que voc se foi, e que no tenho mais a quem entreg-la.s vezes a elaboro em minha cabea, tentando delinear a histria quevoc queria que eu contasse sobre tudo o que aconteceu no outono e noinverno passados. Tudo ainda est l, como um lme a que posso assistirquando quiser. Ou seja, nunca.

  • C o is a s que s e pe r dem

    Mame surrupiou um calendrio grande do trabalho e colou o ms deabril com fita adesiva na parede da cozinha. Ela usou uma caneta marca-texto verde e grossa, tambm surrupiada do trabalho, para desenhar umapirmide, com cifres e pontos de exclamao em volta, no dia 27 deabril. Saiu e comprou um timer especial em forma de ovo que conta meiominuto precisamente. No h timers em forma de ovo no almoxarifado doescritrio.

    Vinte e sete de abril tambm aniversrio de Richard. Mame sepergunta se no seria um bom pressgio. Richard seu namorado. Ele eeu vamos ajud-la a praticar todas as noites, e por isso que estou emminha escrivaninha, e no assistindo TV, como sempre fao depois daescola direito de nascena de toda criana com chave. assim quechamam as crianas que tm a chave de casa e cam sozinhas depois daescola at um adulto chegar para fazer o jantar. Mame odeia essaexpresso. Ela diz que remete a calabouos e deve ter sido inventada poralgum severo e terrvel, com um oramento ilimitado para cuidar dosfilhos.

    Provavelmente algum alemo diz, olhando para Richard, que alemo, mas no severo nem terrvel.

    Na Alemanha, segundo Richard, eu seria uma das Schlsselkinder, oque significa criana-chave.

    Voc tem sorte ele me diz. Chaves so poder. Tem gente queprecisa chegar e bater na porta.

    verdade que ele no tem uma chave. Bem, ele tem a chave doapartamento dele, mas no a do nosso.

    Richard se parece com os caras que imagino em veleiros alto, loiro emuito arrumadinho, mesmo nos ns de semana. Ou talvez eu imagineque os caras sejam assim nos veleiros porque Richard adora velejar. Suaspernas so muito longas e no cabem muito bem embaixo da mesa dacozinha, ento ele tem que sentar meio de lado, com os joelhos viradospara o corredor. Ele parece ainda maior perto de mame, que baixinhae to magra que precisa comprar cintos em lojas infantis e fazer um furoextra na pulseira do relgio para que no caia do brao.

    Mame chama Richard de Sr. Perfeito, por causa de sua aparncia eporque ele sabe tudo. E todas as vezes que ela o chama de Sr. Perfeito,Richard d um tapinha no joelho direito. Ele faz isso porque sua pernadireita mais curta que a esquerda. Todos os seus sapatos do p direitotm uma plataforma de cinco centmetros pregada na sola, para que aspernas fiquem do mesmo tamanho. Descalo, ele manca um pouco.

    Voc deveria agradecer por essa perna diz mame. s porisso que o deixamos vir aqui.

    Richard j vem aqui h quase dois anos.

  • * * *

    Temos exatamente 21 dias para preparar mame para o programa. Ento,em vez de assistir TV, estou copiando palavras para ela praticar noite. Escrevo cada palavra em uma das chas brancas que ela surrupioudo trabalho. Quando junto sete, prendo os cartes com um elstico, queela tambm surrupiou do trabalho.

    Ouo sua chave na porta e escondo minha pilha de palavras, paraque ela no possa espiar.

    Miranda?Ela faz barulho andando pelo corredor (tem usado um tamanco

    ultimamente), para e enfia a cabea em meu quarto. Voc est com muita fome? Estava pensando em esperar o Richard

    para o jantar. Posso esperar.A verdade que acabei de comer um pacote de salgadinhos. Comer

    bobagens depois da escola outro direito fundamental das crianas comchave. Estou certa de que na Alemanha tambm assim.

    Tem certeza de que no est com fome? Quer que eu corte umama para voc?

    Que tipo de bobagem se come na Alemanha? pergunto. Salgadinhos de salsicha?

    Ela olha para mim. No tenho ideia. Por que est perguntando? Por nada. Quer a ma ou no? No. E no que aqui. Estou escrevendo as palavras para mais

    tarde. timo. Ela sorri, enfia a mo no bolso do casaco e diz: Pega!Ento joga algo na minha direo, e eu pego um conjunto novinho de

    canetas marca-texto, de vrias cores, amarradas com um elstico grosso.Em seguida, volta para a cozinha batendo os tamancos.

    Richard e eu chegamos concluso de que quanto mais mame odeiao trabalho, mais coisas surrupia do almoxarifado. Olho para as canetaspor um instante e logo volto para a pilha de palavras.

    Mame precisa ganhar aquele dinheiro.

  • C o is a s que e s con dem os

    Meu nome foi dado em homenagem a um criminoso. Mame diz que essa uma forma dramtica de ver as coisas, mas s vezes a verdade dramtica.

    O nome Miranda representa os direitos das pessoas ela me disseno ltimo outono, quando fiquei chateada porque Robbie B. falou na aulade educao fsica que recebi esse nome por causa de um sequestrador.

    Eu havia esquecido minhas chaves na escola e tive que esperar duashoras e meia no mercado da Belle, na avenida Amsterdam, at quemame chegasse do trabalho. No me importei muito em esperar. AjudeiBelle um pouco. E eu tinha meu livro, claro.

    Ainda est lendo a mesma coisa? perguntou Belle assim que mesentei para ler na cadeira dobrvel ao lado da caixa registradora. Olivro parece meio detonado.

    No estou lendo a mesma coisa ainda respondi. Estou lendonovamente. J devo ter lido umas cem vezes, e por isso que parece todetonado.

    Certo disse Belle , ento me conte algo sobre esse livro. Qual a primeira frase? Eu nunca julgo um livro pela capa. Julgo pela primeirafrase.

    Eu sabia a primeira frase do livro sem nem precisar olhar. Era uma noite escura e tempestuosa falei.Ela fez um gesto positivo com a cabea. Clssico. Gosto disso. A histria sobre o qu?Pensei por um momento. sobre uma menina chamada Meg O pai dela desapareceu, e ela

    viaja at outro planeta para salv-lo. O que mais? Ela tem namorado? Mais ou menos respondi. Mas isso no importa muito. Quantos anos ela tem? Doze.Na verdade, no livro no diz a idade de Meg, mas eu tenho 12, ento

    para mim como se ela tambm tivesse. Quando o li pela primeira vez,eu tinha 11 anos, e ela parecia ter 11 tambm.

    Ah, 12 disse Belle. Ainda tem muito tempo para namorados.Por que no comea do incio?

    Comear o que do incio? A histria. Conte-me a histria. Desde o incio.Ento comecei a contar a ela a histria do livro. No li, apenas falei

    sobre ele, comeando com a primeira cena, em que Meg acorda noitecom medo da tempestade.

    Enquanto ouvia, Belle fez um sanduche de peru para mim e me deuumas dez vitaminas C mastigveis, porque achou que eu estava meiofanhosa. Quando ela foi ao banheiro, peguei escondido um cachinho de

  • uvas, que eu amo, mas nunca posso comer porque mame no gosta daforma como os coletores so tratados na Califrnia e se recusa a comprar.

    * * *

    Quando mame finalmente chegou, abraou Belle e disse: Fico devendo uma.Como se eu fosse um fardo em vez de uma pessoa que, com muita

    boa vontade, ajudou a descarregar trs caixas de bananas verdes evistoriou a seo de artigos refrigerados em busca de produtos vencidos.Depois, mame comprou uma caixa de morangos, embora eu saiba queela acha os morangos da Belle muito caros e no to bons. Ela os chamade OFMs, que significa objetos em forma de morango.

    * * *

    De onde Robbie B. tirou essa ideia idiota de que algum colocaria nafilha o nome de um assassino? perguntou mame.

    Ainda faltava metade do quarteiro para chegarmos ao nosso prdio,mas ela j estava com a chave na mo. Mame no gosta de carmexendo na bolsa na frente do prdio, facilitando para os assaltantes.

    Assassino, no eu disse. Sequestrador. O pai dele promotorpblico. Ele disse que a lei Miranda tem esse nome por causa de um carachamado Sr. Miranda, que cometeu um crime horrvel. verdade?

    Tecnicamente? Talvez. A lei Miranda essencial, sabe As pessoasprecisam saber que tm o direito de permanecer em silncio e de ter umadvogado. Que tipo de sistema judicial teramos sem

    Talvez quer dizer sim? E tambm tem Shakespeare. Ele inventou o nome Miranda, sabia?

    Para A tempestade.Faz muito sentido agora que reeti sobre isso: mame queria ser

    advogada criminalista. Ela comeou a faculdade de direito e quaseterminou o primeiro ano, mas logo eu nasci e ela teve que abandonar ocurso. Hoje, trabalha como assistente jurdica, mas em um escritrio bempequeno no qual tem que ser recepcionista e secretria tambm. Richard um dos advogados. Eles prestam muitos servios gratuitos para pessoaspobres. s vezes, at para criminosos. Mas nunca imaginei que ela mebatizaria em homenagem a um deles.

    Mame destrancou a porta do lobby, que de ferro e vidro e devepesar mais de 130 quilos, e a empurrou com fora para abrir, os saltosescorregando no cho de ladrilhos. Quando entramos, inclinou-se contraa porta at ouvir o clique que signica que a trava foi acionada. Quando

  • a porta se fecha sozinha, normalmente no tranca, o que deixa mamelouca, e uma das coisas que o senhorio no quer consertar.

    E ento? Ele era sequestrador ou no? insisto e aperto o boto doelevador.

    Est bem, voc venceu disse mame. Dei esse nome a vocem homenagem a um monstro, Mira. Desculpe-me. Se no gosta dele,pode trocar se quiser.

    Isso era to tpico de mame Ela no entende que uma pessoa caligada a seu nome, e que algo assim possa ser um choque.

    No apartamento, jogou o casaco sobre uma cadeira na cozinha,encheu a espagueteira com gua e colocou para ferver. Ela estava usandouma blusa laranja de gola alta e saia jeans, com meias listradas de roxo epreto.

    Meias bonitas bufei.Ou pelo menos tentei bufar. No sei bem como , embora as pessoas

    nos livros faam isso o tempo todo.Ela se encostou na pia e passou os olhos pela correspondncia. Voc j implicou comigo por causa das meias hoje de manh, Mira. Ah. Normalmente ela ainda est na cama quando saio para a

    escola, ento no posso apreciar seu modelito at que volte do trabalho. Belo esmalte, ento.

    Suas unhas estavam pintadas de azul metlico. Ela devia t-las feitono escritrio naquele dia.

    Ela revirou os olhos: Est brava porque teve que car esperando no mercado da Belle?

    Eu estava superocupada No podia simplesmente sair. No. Eu gosto de ficar com a Belle.Fiquei imaginando se ela tinha feito as unhas antes, depois ou

    durante sua tarde superocupada. Voc podia ter ido para a casa do Sal, sabeSal e a me dele, Louisa, moram no apartamento em cima do nosso.

    Ele costumava ser meu melhor amigo. Eu disse que gosto de ficar com a Belle. Mesmo assim. Acho que devamos esconder uma chave na

    mangueira de incndio, para a prxima vez.Ento, depois do jantar, escondemos nossa chave extra no bocal da

    mangueira enrolada e empoeirada que cava na escada. A mangueira toda craquelada e tem uns cem anos. Mame sempre diz que, se houverum incndio de verdade, aquilo no servir para nada e teremos quepular pela janela no jardim do vizinho. Ainda bem que moramos nosegundo andar.

    * * *

  • Voc me pediu para mencionar a chave. Se um dia eu decidir mesmoescrever sua carta, o que provavelmente no farei, essa a histria quecontarei.

  • A r oda da - r e l m pa g o

    H duas partes em A Pirmide de 20 Mil Dlares. Mame chama a primeirade rodada-relmpago, porque preciso fazer tudo rpido. Osconcorrentes tentam fazer seus parceiros-celebridades adivinharem setepalavras comuns, dando dicas. Se a primeira palavra garfo, oparticipante deve dizer: Usa-se para levar a comida boca No umacolher, um

    Se tiver um crebro e mame diz que ele pode no ter , oparceiro-celebridade dir Garfo!, ento soar uma campainha e aprxima palavra aparecer em uma pequena tela oculta. Cada equipetem trinta segundos para as sete palavras.

    Depois a pequena tela gira, e so as celebridades que do as dicaspara os concorrentes adivinharem. Outras sete palavras, outros trintasegundos. A tela gira mais uma vez, e os concorrentes do as dicasnovamente.

    possvel marcar 21 pontos na rodada-relmpago. Acertando tudo,ganha-se um bnus de 2.100 dlares. Porm, o mais importante derrotara outra equipe, porque o grupo que ganha a rodada-relmpago vai para oCrculo dos Vencedores, e o Crculo dos Vencedores onde est a grana.

    * * *

    No temos muito tempo para praticar esta noite porque dia de reuniode condomnio. Uma vez por ms, os vizinhos sentam-se em nossa sala ereclamam, enquanto mame toma nota usando taquigraa. Muitaspessoas nem se do o trabalho de comparecer. So sempre os mesmos.Aqueles que no recebem convites para ir a muitos lugares e cam bravosporque a calefao no to forte quanto gostariam. Louisa trabalha emuma casa de repouso e diz que, para os idosos, nunca est quente obastante.

    Depois da reunio, durante a qual o Sr. Nunzi normalmente faz maisum buraco em nosso sof com o cigarro, mame sempre escreve umacarta ao senhorio e manda uma cpia para alguma agncia da cidadeque deveria se preocupar com o fato de termos ou no gua quente, coma porta do lobby, que no tranca, e com o elevador, que ca emperrandoentre os andares. Mas nada nunca muda.

    * * *

    Nossa campainha vai comear a tocar a qualquer minuto. Mame esttreinando algumas rodadas-relmpago com Richard enquanto fao

  • limonada com polpa congelada e abro um pacote de Oreo.Louisa usa sua batida de sempre, e eu abro a porta com o prato de

    biscoitos. Ela pega um e suspira. Est usando jeans e seus sapatos brancosde enfermeira, os quais tira e deixa na porta. Louisa odeia essas reunies,mas participa em considerao a mame. E algum precisa prestarateno aos cigarros do Sr. Nunzi para garantir que ele no coloque fogo emnosso apartamento acidentalmente.

    Limonada? pergunto.Recuso-me a car de garonete durante as reunies da mame, mas

    sempre sirvo uma bebida a Louisa. Eu adoraria diz ela e me segue at a cozinha.Assim que lhe entrego o copo, a campainha toca por quase um

    minuto sem parar. Por que, por que, por que as pessoas tm que carapertando o boto para sempre?

    So velhinhos diz Louisa, como se pudesse ler minha mente. Esto to acostumados a serem ignorados

    Ela pega mais dois biscoitos e vai abrir a porta. Louisa normalmenteno come o que chama de alimentos processados, mas diz que noaguentaria at o fim uma reunio de condomnio sem Oreo.

    Quinze minutos depois, mame est sentada no cho da sala,escrevendo como louca enquanto as pessoas se revezam para dizer que oelevador est sujo, que h guimbas de cigarro nas escadas e que asecadora no poro esturricou a cala de algum.

    Eu me encosto na parede do corredor e a vejo levantar o dedo parasinalizar Sra. Bindocker que fale mais devagar. Quando ela comea,nem a taquigrafia da mame consegue acompanhar.

    * * *

    Mame chorou na primeira vez que viu nosso apartamento. Ela conta queestava imundo. O cho de madeira estava praticamente preto, asjanelas tinham uma crosta de sujeira, e as paredes estavam manchadascom algo que ela nem queria imaginar o que seria. Sempre com essasmesmas palavras.

    Eu estava l naquele dia em uma cadeirinha para bebs. Estavafrio, e mame usava um casaco novo. No havia cabides nos armrios, eela no queria colocar o casaco no cho sujo ou pendurar em um dosaquecedores descascados e barulhentos. Ento, carregou-o enquanto ia decmodo em cmodo, dizendo a si mesma que no eram to ruins assim.

    Nesse ponto da histria, eu cava tentando imaginar algum lugaronde ela poderia ter colocado o casaco, se tivesse se permitido pensar.

    Por que no pendurou no varo do armrio do corredor? euperguntava.

    Empoeirado respondia ela.

  • No peitoril da janela da cozinha? Empoeirado. E em cima da porta do quarto? Eu no alcanava. E estava empoeirado.O que mame fez naquele dia, h quase doze anos, foi vestir

    novamente o casaco, pegar minha cadeirinha e andar at uma loja, ondecomprou um pano, sabo, sacos de lixo, um rolo de plstico adesivo,esponjas, limpa-vidros e papel toalha.

    Quando voltou para casa, ela jogou tudo no cho. Ento, dobrou ocasaco e o enou na sacola vazia da loja, que pendurou em umamaaneta. Ento, passou a tarde limpando o apartamento. Eu no eraboba, diz ela, ento me aconcheguei em minha cadeirinha e tirei umalonga soneca.

    Ela conheceu Louisa, que tambm no tinha marido, no lobby doprdio naquele primeiro dia. Ambas estavam levando o lixo para asgrandes latas que cam do lado de fora. Louisa segurava Sal. Ele estavachorando, mas parou quando me viu.

    Eu sei de tudo isso porque costumava pedir para ouvir a histriavrias vezes: a histria do dia em que conheci Sal.

  • C o is a s que c hu t a m

    Perder Sal era como uma longa lista de coisas ruins, e na primeirametade estava o fato de que eu teria que voltar para casa sozinha epassar pelo maluco que fica em nossa esquina.

    Ele apareceu no comeo do ano escolar, quando Sal e eu aindavoltvamos da escola juntos. Algumas crianas o chamavam de Pin,apelido para Pinel, ou de Chutador, porque ele costumava comear a darchutes de repente, como se estivesse tentando acertar um dos carros quepassavam depressa pela avenida Amsterdam. s vezes, ele balanava opunho no ar e gritava coisas loucas como Qual a velocidade dequeima?, Onde est a cpula?, e jogava a cabea para trs, davagargalhadas altas e ensandecidas e todos podiam ver que ele tinha umastrinta obturaes nos dentes. Estava sempre na esquina, s vezesdormindo com a cabea embaixo da caixa de correio.

    * * *

    No o chamem de Pin disse mame. um nome horrvel paraum ser humano.

    Mesmo para um ser humano que pinel? No importa. horrvel mesmo assim. Bem, e voc o chama de qu? No o chamo de nada disse ela , mas penso nele como o

    homem da gargalhada.

    * * *

    Quando eu ainda voltava para casa com Sal, era fcil fingir que o homemda gargalhada no me assustava, porque Sal ngia tambm. Ele tentavano demonstrar, mas morria de medo quando o via agitando o punho noar e dando chutes na direo dos carros. Dava para perceber porque orosto de Sal ficava quase paralisado. Conheo todas as expresses dele.

    Costumava pensar em Sal como parte de mim: Sal e Miranda,Miranda e Sal. Sabia que no era assim de verdade, mas era como eu mesentia.

    Quando ramos muito pequenos para ir escola, Sal e eufrequentvamos juntos a creche, que cava no apartamento de umamoa no m do quarteiro. Ela havia recolhido algumas amostras detapete em uma loja na avenida Amsterdam e escrevera o nome dascrianas no verso. Depois do almoo, ela distribua os quadrados de tapetee escolhamos nosso lugar no cho da sala para a hora da soneca. Sal e eu

  • sempre alinhvamos os nossos para formar um retngulo.Uma vez, quando Sal teve febre e Louisa no foi trabalhar para cuidar

    dele em casa, a moa da creche me entregou meu quadrado de tapetena hora da soneca e, um segundo depois, entregou-me tambm o de Sal.

    Sei como , querida disse ela.Ento me deitei no cho, sem dormir, porque Sal no estava l para

    encostar os ps nos meus.

    * * *

    Quando apareceu pela primeira vez em nossa esquina, no ltimo outono,o homem da gargalhada estava sempre resmungando baixinho:Livrossaco, bolsossapato, livrossaco, bolsossapato.

    Ele dizia como um canto: livrossaco, bolsossapato, livrossaco, bolsossapato.E s vezes cava batendo com os punhos na cabea. Sal e eunormalmente tentvamos prestar ateno em nossa conversa e agir comose no estivssemos notando. So incrveis as coisas que as pessoas ngemno notar.

    * * *

    Por que voc acha que ele dorme assim, com a cabea embaixo dacaixa de correio? perguntei a Richard quando o homem da gargalhadaera novidade e eu ainda estava tentando entend-lo.

    No sei disse Richard, tirando os olhos do jornal. Talvez paraningum pisar na cabea dele.

    Muito engraado. E o que um bolso-sapato? Bolso-sapato disse ele, com a expresso sria. Significado: um

    bolso escondido no sapato. bom ter um, caso algum tente roubar vocenquanto dorme com a cabea embaixo da caixa de correio.

    Ha, ha, ha falei. Ah, Sr. Perfeito disse mame. Voc e sua incrvel cabea de

    dicionrio! Ela estava de bom humor naquele dia.Richard deu um tapinha no joelho direito e voltou a seu jornal.

  • C o is a s que f ic a m en r o la da s

    Para a sorte de mame, alguns idosos da casa de repouso onde Louisatrabalha gostam de assistir ao A Pirmide de 20 Mil Dlares na hora doalmoo. Louisa faz anotaes a cada programa e as traz depois dotrabalho. Ela sai s 16h, ento tenho tempo de escrever as palavras do dianos cartes surrupiados antes que mame chegue em casa.

    Esta noite, mame e Richard esto treinando na sala. Eu deveria estarno quarto fazendo a lio de casa, mas em vez disso estou fazendo ns epensando.

    Foi Richard quem me ensinou a fazer ns. Ele aprendeu na infncia,quando velejava, e at hoje carrega pedaos de corda na maleta. Ele dizque quando est tentando resolver um problema no trabalho, pega ascordas, faz os ns, desfaz e depois faz novamente. Isso coloca seuspensamentos nos eixos.

    H dois natais, o primeiro dele conosco, Richard me deu meu prprioconjunto de cordas e comeou a me mostrar os ns. Hoje, consigo fazertodos os que ele sabe, at mesmo o volta do el, que z invertido poralguns meses at acertar. Ento estou atando e desatando ns e vendo seisso me ajuda a resolver meu problema, que voc. No consigo imaginaro que espera de mim.

    Se quisesse apenas saber o que aconteceu naquele dia do invernopassado, seria fcil. No seria divertido, mas seria fcil. Mas no isso quediz seu bilhete. Ali, pede que eu escreva a histria do que aconteceu etudo o que levou ao acontecimento. E, como mame gosta de dizer, a j seriauma caca completamente diferente. S que ela no usa a palavra caca.

    Porque, mesmo que voc ainda estivesse aqui, mesmo que eu decidisseescrever a carta, no saberia por onde comear. Pelo dia em que ohomem da gargalhada apareceu na esquina? Pelo dia em que mame eLouisa se conheceram no lobby? Pelo dia em que encontrei seu primeirobilhete?

    No h resposta. Mas se algum me obrigasse a escolher um dia parao incio de toda a histria de verdade, eu diria que foi quando Salapanhou.

  • C o is a s que m a r c a m

    Aconteceu no outono, quando Sal e eu ainda voltvamos juntos da escolatodos os dias: um quarteiro da avenida West End at a Broadway, umquarteiro da Broadway at a Amsterdam, passando pelo homem dagargalhada na esquina, e mais meio quarteiro at a porta do prdio.

    Aquele trecho do meio, entre a Broadway e a Amsterdam, quasetodo uma grande garagem. A calada inclinada, e tnhamos que tomarcuidado quando havia gelo, seno podamos escorregar bem na frente dobando de meninos que estava sempre por l. Se caamos, elesaproveitavam e se juntavam ao redor, rindo e, s vezes, nos chamando decoisas que faziam nosso corao acelerar pelo restante do caminho.

    * * *

    No dia em que Sal apanhou, no havia gelo no cho, porque ainda eraoutubro. Eu carregava o grande cartaz dos Mistrios da Cincia, que tinhafeito na escola. Havia desenhado letras grandes para o ttulo, que era Porque bocejamos?.

    H muitas teorias interessantes sobre o bocejo. Algumas pessoas achamque tudo comeou como uma forma de mostrar os dentes para assustarpredadores, ou de alongar os msculos faciais, ou de avisar ao restante datribo que era hora de dormir. Minha teoria, que inclu no cartaz, quebocejar uma forma bem mais educada de dizer a uma pessoa que elaest matando os outros de tdio. isso ou um espirro em cmera lenta.Mas ningum sabe ao certo, e por isso trata-se de um mistrio da cincia.

    * * *

    No dia em que Sal apanhou, os meninos da garagem estavam l, comosempre. No dia anterior, tinha havido uma briga; um deles encostou ooutro contra um carro estacionado e bateu nele. O garoto que apanhouestava com as duas mos erguidas, como se dissesse Chega!, mas, todasas vezes que tentava sair do cap do carro, o outro o empurrava parabaixo e continuava batendo. Os outros meninos estavam pulando egritando, e Sal e eu atravessamos a rua para no sermos atingidos poracidente.

    Naquele dia dos socos, os garotos estavam tranquilos, ento camos dolado normal da rua. Porm, assim que chegamos perto da garagem,algum se afastou do grupo. Ele veio em nossa direo e bloqueou apassagem, obrigando-nos a parar. Olhei para cima e vi um garoto nomuito grande, usando um casaco verde do exrcito. Ele fechou a mo e

  • fez um movimento que veio como uma onda e acertou Sal bem noestmago. Com fora. Sal se curvou para a frente como se fosse vomitar.E ento o garoto lhe deu um soco na cara.

    Sal! gritei.Olhei para o mercado da Belle, na Amsterdam, mas no havia

    ningum ali. Sal estava curvado e paralisado. O garoto cou l por algunssegundos, com a cabea inclinada para o lado. Deve ser loucura, masparecia que ele estava lendo meu cartaz dos Mistrios da Cincia. Depois elese virou e comeou a andar na direo da Broadway, como se nadativesse acontecido.

    * * *

    Sal! Abaixei-me para ver seu rosto. Parecia normal, mas uma dasbochechas estava toda vermelha. Vamos falei. Estamos quasechegando em casa.

    Os ps de Sal comearam a se mover. S depois de alguns passos,percebi que os garotos no estavam rindo, assobiando, nem xingando. Elesno tinham dado um pio. Olhei para trs e os vi ali, prestando atenono menino com o casaco verde do exrcito, que continuava indo na outradireo.

    Ei! gritou um deles no meio da rua. Que diabos foi isso?Mas o garoto no olhou para trs.Sal se movimentava devagar. Ele arregaou as mangas da jaqueta dos

    Yankees que ganhara de aniversrio de sua me, com lgrimas escorrendopelos olhos. Quase chorei, mas consegui segurar. Eu precisava lev-lo paracasa e ainda tnhamos que passar pelo homem da gargalhada.

    Ele estava na esquina, andando em crculos e fazendo saudaes. Salestava chorando mais e andando curvado. Comeou a pingar um poucode sangue de seu nariz, e ele limpou com o punho da jaqueta, listradode azul e branco. Ele estava com nsia. Parecia que realmente ia vomitar.

    Quando nos viu, o homem da gargalhada esticou os braos do lado docorpo e cou reto. Ele me fez lembrar do grande quebra-nozes demadeira que Louisa coloca na mesa da cozinha na poca do Natal.

    Criana esperta! disse ele.O maluco deu um passo em nossa direo, e foi o suciente para Sal

    correr para casa. Eu corri atrs dele, tentando segurar meu cartaz e tiraras chaves do bolso da cala.

    Quando consegui abrir a porta e entramos no lobby, Sal foi direto paraseu apartamento e fechou a porta na minha cara. Bati vrias vezes, masLouisa ainda no havia chegado do trabalho e ele no me deixou entrar.

    * * *

  • Se no me engano, esse o comeo da histria que voc quer que euconte. E eu ainda no sabia, mas foi tambm o m da minha amizadecom Sal.

  • As r eg r a s de m a m e pa r a a v ida em N ov a Yo r k

    1. Sempre pegue a chave antes de chegar porta.

    2. Se um estranho estiver parado na frente do prdio, nunca entre continue andando pelo quarteiro at que ele tenha ido embora.

    3. Olhe para a frente. Se houver algum agindo de forma estranha,que aparente estar bbado ou ser perigoso, atravesse a rua, masdisfarce um pouco. Passe a impresso de que j planejava atravessar.

    4. Nunca mostre seu dinheiro na rua.

    * * *

    Eu tenho meu prprio truque. Se estou com medo de algum na rua,viro para ele ( sempre um menino) e digo:

    Com licena, por acaso sabe que horas so?Esse meu modo de dizer pessoa:Vejo voc como um amigo, e no h motivo para me machucar ou

    tirar algo de mim. Nem relgio eu tenho, e provavelmente no vai valer apena me assaltar.

    At agora tem funcionado que uma beleza, como diria Richard. Edescobri que a maioria das pessoas de quem tenho medo, na verdade, bastante amigvel.

  • C o is a s que de s e j a m os

    Miranda mame chama da cozinha. Precisamos que voc marqueo tempo. O tique-taque desse timer em forma de ovo est meenlouquecendo.

    Ento presto ateno ao ponteiro dos segundos do relgio da cozinhaenquanto Richard d as dicas a mame. Depois mame d as dicasenquanto Richard adivinha.

    Posso jogar? pergunto aps cinco rodadas. Claro. Richard, voc marca o tempo um pouco?Mame se espreguia e tira o suter roxo. Quando ele passa pela

    cabea, o cabelo dela cai sobre os ombros, balanando. Como sempre, issome faz amaldioar meu pai que no existe, que o responsvel por meucabelo liso, castanho e bem normalzinho. Culpo meu pai por ter esse cabeloescorrido e sem graa, mas, fora isso, no guardo nenhum rancor dele.

    Em meu livro, Meg est procurando pelo pai. Quando ela nalmentechega a Camazotz, que um planeta mais ou menos perto do asterismoda Caarola, onde o pai foi feito prisioneiro, o homem mau com olhosvermelhos pergunta por que ela quer o pai, e ela diz: Voc nunca tevepai? No o queremos por alguma razo. Queremos porque ele nosso pai.

    Imagino que por nunca ter tido pai, no gostaria de ter um agora. Nose pode sentir falta de algo que nunca se teve.

    * * *

    Richard est olhando para o relgio da cozinha, esperando que oponteiro dos segundos chegue ao doze.

    Certo. Prepare-se Valendo!Olho para a primeira ficha. algo que se passa na torrada digo. Manteiga! grita mame.Prxima ficha. Voc bebe milk-shake com isso, suga por meio disso. Canudo! grita mame.Prxima. de couro e segura as calas! Cinto! doce, toma-se no inverno, depois de andar de tren! Chocolate quente!

    * * *

  • bom jogar. No ter que pensar em nada a no ser na prxima palavra,e fazer com que mame no pense em nada a no ser nas prximaspalavras que saem da minha boca. Passamos voando pelo grupo de setepalavras.

    Voc boa nisso diz mame, quando terminamos com cincosegundos de sobra.

    Eu sorrio. Acho que voc vai ganhar. De verdade digo a ela. No alimente muitas expectativas adverte ela. Isso s a

    rodada-relmpago. a parte fcil.

    * * *

    Na verdade, nossas expectativas j foram alimentadas. Nossa lista dedesejos est presa geladeira por um m que mame surrupiou dotrabalho:

    Viagem para a ChinaCmera boa para a viagem para a ChinaCarpete para o quarto da MirandaTV nova

    E Richard escreveu barco vela no m da lista, embora seja difcilimaginar onde o estacionaramos.

    De qualquer forma, essa a lista oficial. Mas Richard e eu temos nossoprprio plano secreto para o dinheiro, se mame ganhar.

  • C o is a s que e s p r e it a m

    No dia em que Sal apanhou, em outubro, Louisa subiu depois do jantarpara conversar com mame em seu quarto. Elas decidiram que Salprecisava de um descanso, o que signicava que ele poderia faltar escola e ficar vendo televiso no dia seguinte.

    Portanto, na outra tarde, voltei sozinha para casa. Eu estava commuitos pensamentos na cabea, e pretendia estar conversandoprofundamente comigo mesma quando passasse pelo homem dagargalhada. Estava quase chegando garagem quando percebi quealgum me seguia. Olhei para trs e vi o garoto que bateu em Sal. Eleestava a uns dois passos de distncia, com a mesma jaqueta verde doexrcito que usava no dia anterior.

    Eu quase entrei em pnico. Sempre sei quando isso vai acontecerporque meus joelhos e meu pescoo comeam a formigar. Ento, antes derealmente decidir o que fazer, virei e o encarei.

    Com licena, por acaso sabe que horas so? Minha voz soouquase normal, o que era bom.

    Vamos ver Ele virou a cabea para trs e olhou na direo daBroadway, como se houvesse um relgio gigante pairando no ar bem atrsde ns. So 15h16.

    Conrmei com a cabea, como se tambm estivesse vendo o relgioinvisvel.

    Obrigada.No parecia que ele ia me bater, mas, ainda assim, meu corao

    estava acelerado. Est vendo aquele prdio grande e marrom? Ele apontou.

    Ontem, o sol comeou a se pr atrs dele s 15h12. Agora, j est nametade Ele olhou para mim. Alm disso, j se passou um dia, eestamos em outubro, ento os dias esto ficando mais curtos.

    Olhei para ele. Ele olhou para baixo, para sua mo, que segurava umachave. E enfiou a outra mo no bolso da cala.

    No tenho relgio disse. Ah falei , nem eu.Ele fez um gesto positivo com a cabea, e perdi o medo. Mas logo que

    o medo passou, eu me senti culpada. Olhe para voc, disse meucrebro. Conversando com o menino que acertou Sal! Esse o jeitocomo meu crebro conversa comigo.

    Tenho que ir falei, sem olhar para trs at chegar esquina.Quando me virei, o menino que acertara Sal j havia ido embora. Foi

    ento que percebi que ele devia morar no apartamento em cima dagaragem, aquele com plantas mortas na escada de incndio e lenispendurados nas janelas.

    Tinha esquecido completamente o homem da gargalhada. Ele estavaembaixo da caixa de correio, com as pernas esticadas, e tomei cuidado

  • para no acord-lo.

  • C o is a s que qu ic a m

    Depois que foi agredido, Sal comeou a jogar basquete na viela atrs donosso prdio. As janelas da nossa sala do para l, e eu o ouvia batendobola de 15h30 at 17h todos os dias. Havia um aro enferrujado, sem rede,que fazia barulho de metal sacudindo sempre que ele o acertava.

    O apartamento de Sal e Louisa praticamente igual ao nosso. Temosos mesmos quartos retangulares, os mesmos lustres de cordinha nocorredor, a mesma cozinha com formato estranho e os mesmos fornosimprevisveis. O nosso fica no andar de cima, e o deles bem embaixo.

    H diferenas. O piso da cozinha deles de quadrados de linleoamarelo e laranja e o nosso branco com pontos dourados, e a cama deSal ca encostada em uma parede diferente do quarto. Mas temos omesmo piso no banheiro azulejos hexagonais brancos. Se olho bastantepara eles, consigo ver diversos padres nos hexgonos: linhas, echas, atores. como se eles se transformassem em vrias guras. O tipo decoisa que voc nunca deve tentar explicar a outra pessoa. Mas, quandoramos pequenos, falei com Sal sobre isso, depois fomos ao banheiro delepara olhar juntos para o piso. Sal e Miranda, Miranda e Sal.

    * * *

    Sal jogava cada vez mais basquete e falava cada vez menos comigo.Perguntei quatrocentas vezes se ele estava bem, se estava zangadocomigo, se havia algo errado, 399 vezes ele respondeu Sim, No eNada. Ento, na ltima vez que perguntei, ele me disse enquantoestvamos no lobby, e ele olhava para os ps que no queria almoarnem voltar para casa comigo por um tempo.

    Mas ainda quer ser meu amigo ou nem isso? perguntei.Ele continuou olhando para os ps e disse que no, que achava que

    no queria, por um tempo.

    * * *

    Tive sorte, acho, de aquela ser a mesma semana em que Julia decidiu,por algum motivo, punir Annemarie.

    As meninas da escola brigam h anos, mas s quando Sal meabandonou fui forada a not-las. J as vi trocarem de melhor amiga,comearem guerrinhas, chorarem, destrocarem de melhor amiga, fazerempactos, gritarem e agarrarem os braos umas das outras daquele falso jeitoempolgado etc. Sabia quais delas torturavam Alice Evans, que, mesmo jestando no sexto ano, ainda esperava muito tempo para fazer xixi e nunca

  • queria dizer em voz alta que precisava ir ao banheiro. As meninasesperavam Alice car desesperada, agitando um p, depois o outro, eento comeavam a fazer perguntas: Alice, diziam, voc j fez a liode matemtica? A pgina que diz multiplique para vericar suasrespostas? Como voc fez?

    E Alice pulava desesperadamente enquanto mostrava a elas.Eu sabia que as meninas sempre andavam em duplas, e Julia e

    Annemarie andavam em dupla havia um bom tempo. Eu odiava Julia. Enunca tinha parado para pensar muito sobre Annemarie.

    Minha primeira lembrana de Julia do segundo ano, quando zemosautorretratos na aula de arte. Ela reclamou que no havia cartolina dacor caf com leite para sua pele, ou chocolate com 60% de cacau paraseus olhos. Eu me lembro de t-la encarado enquanto essas palavrassaam de sua boca e pensar: sua pele marrom-clara, seus olhos somarrom-escuros. Por que no usa logo o marrom, sua idiota? Jay Stringerno reclamou do papel, nem as outras dez crianas que usaram marrom.Eu no reclamei do estpido rosa-escuro que me deram. Ela achavaminha pele rosa-escura?

    Mas logo descobri que Julia no era como ns. Ela tinha viajado omundo todo com os pais. Desaparecia da escola e voltava duas semanasdepois com laos de cetim nas tranas, um vestido novo de veludo comdecote canoa ou trs anis dourados em um s dedo. Ela aprendera sobreo chocolate com 60% de cacau na Sua, onde seus pais lhe compraramvrios deles, alm de um pequeno relgio de prata que ela estava sempreexibindo para as pessoas.

    * * *

    Ainda no sei o que Annemarie fez de errado, mas durante a leiturasilenciosa, naquela tera, Julia lhe disse que, como punio, elas noalmoariam juntas pelo restante da semana. Julia era tima em fazeranncios em voz alta, para todo mundo ouvir. Ento, na quarta-feira,perguntei a Annemarie se ela queria sair para almoar comigo, e ela dissesim.

    * * *

    No sexto ano as crianas com dinheiro, mesmo que pouco, saem paraalmoar, a menos que algo esteja acontecendo, como na primeira semanade aula, quando havia um homem correndo completamente nu pelaBroadway e ns tivemos que comer no refeitrio da escola enquanto apolcia tentava peg-lo.

  • A maioria vai comer pizza, vai ao McDonalds ou, de vez em quando,vai lanchonete do Jimmy, que tem um nome de verdade, mas achamamos assim porque a nica pessoa que j vimos trabalhando l umcara chamado Jimmy.

    A pizza o que mais vale a pena. Por 1,50 dlar possvel comprarduas fatias, uma lata de refrigerante e um pirulito de cereja do baldinhode doces que ca ao lado do caixa. No primeiro dia em que almoamosjuntas, Annemarie e eu demos a sorte de encontrar dois bancos, um dolado do outro, no balco, embaixo da bandeira da Itlia.

    Achei um pouco nojento comer pizza com a Annemarie porque elaarrancou o queijo de sua fatia como uma casquinha de ferida e o comeu,deixando todo o resto no prato. Mas ela riu das minhas piadas (a maioriaroubada de Richard, que ruim para contar piadas, mas conhece ummonte) e me convidou para ir sua casa depois da escola, o quecompensou o restante. Seria uma tarde a menos ouvindo a bola debasquete de Sal. E o homem da gargalhada provavelmente estariadormindo embaixo da caixa de correio quando eu voltasse.

  • C o is a s que que im a m

    O apartamento de Annemarie no exigia chaves. No prdio, havia umporteiro que a cumprimentava quando ela chegava e, l em cima, era seupai quem abria a porta.

    Seu pai tirou o dia de folga? sussurrei. No respondeu Annemarie , ele trabalha em casa, ilustrando

    peridicos mdicos. Sua me tambm est aqui?Ela fez que no com a cabea. Ela est no trabalho.O quarto de Annemarie era mais ou menos do tamanho do meu, mas

    tinha cortinas bonitas e as paredes eram completamente cobertas comtodo o tipo de imagens e fotograas, e eu no conseguia parar de olhar.Acho que havia centenas.

    Ns nos conhecemos h muito tempo disse Annemarie, sentadana cama, que tinha uma colcha meio asitica e uns cinquentatravesseiros.

    Quem?Ela corou. Ah, achei que voc estivesse olhando as fotos da Julia.Foi quando percebi que o quarto era repleto de fotos da garota.

    Talvez no exatamente coberto, mas eram muitas elas duas de pijama,ou no parque, ou com roupas sosticadas do lado de fora de algumteatro.

    Toc, toc! O pai de Annemarie chegou com salsichinhas em umprato. Meu prazo para o trabalho est se esgotando disse ele. Quando isso acontece, eu cozinho. Voc quer mostarda? Experimente omolhinho. Volto j com cidra de ma.

    Ele voltou em trinta segundos com um copo de cidra para mim, masentregou a Annemarie o que parecia ser gua pura. Parece que ela nempercebeu.

    O tapete de Annemarie era suave e macio, quase como uma cama, eeu me deitei nele. Mostarda sempre faz meus lbios queimarem, mas noliguei. Valeu a pena.

  • O C r c u lo do s Ven c edo r e s

    Mame est cando muito boa na rodada-relmpago. Ela quase semprealcana as sete palavras em trinta segundos, no importa quem estejadando as dicas e quem esteja adivinhando.

    A segunda parte de A Pirmide de 20 Mil Dlares chamada de Crculodos Vencedores, porque preciso vencer a rodada-relmpago para chegara ela. Nessa parte, os parceiros-celebridade do as dicas e o concorrentetem que adivinhar. Dessa vez no so palavras, e sim categorias. Assim, sea celebridade diz tulipa, margarida, rosa, o concorrente tem que dizertipos de flor.

    Essa fcil. Algumas so mais difceis de adivinhar, como coisas quedeclamamos (poesia, o juramento bandeira) ou coisas que apertamos(o tubo de pasta de dente, a mo de algum).

    A ltima categoria sempre extremamente difcil de adivinhar pode ser coisas que se prolongam ou coisas que torcemos. ela quesepara o concorrente do grande prmio, e mame diz que alguns dosparceiros-celebridades so mais burros que uma porta, o que no ajudamuito.

    Se mame vencer a primeira rodada-relmpago e acertar corretamentetodas as categorias do Crculo dos Vencedores, ganhar 10 mil dlares. Seganhar na segunda rodada, o prmio aumenta para 15 mil. E se ganharna terceira, so 20 mil dlares. E isso o que chamo de grande prmio.

    Durante a rodada-relmpago, pode-se apontar ou gesticular comoquiser. Se a palavra nariz, permitido apontar para o nariz. Mas asregras mudam no Crculo dos Vencedores. No permitido nenhumgesto, e por isso estou amarrando as mos de Richard minha cadeira.Estou usando o n volta do fiel.

    Voc est fazendo ao contrrio novamente diz Richard, olhandopara mim. Essa ponta deveria passar no meio do lao Isso Certo!

    Mame fica nos olhando como se fssemos malucos. Isso mesmo necessrio? Ela precisa treinar diz ele. Para quando voc ganhar o veleiro.Mame revira os olhos.Minhas chas esto prontas escrevi tudo em letras de forma

    grossas, para que Richard pudesse ler a distncia. Vou levantar uma porvez atrs de mame, onde Richard possa ver. No programa de verdade,eles tm grandes painis que cam girando atrs do concorrente pararevelar a categoria seguinte, mas, obviamente, no temos esse tipo detecnologia.

    As anotaes que Louisa faz na hora do almoo so boas. Ela escreveat o que Dick Clark fala no incio do Crculo dos Vencedores. Elesempre usa as mesmas palavras: Aqui est seu primeiro assuntoValendo!

    Programamos o timer em forma de ovo para um minuto. Mame tem

  • que adivinhar seis categorias antes que o tempo termine. Aqui est seu primeiro assunto digo, tentando imitar Dick Clark.

    Valendo! Levanto a primeira ficha para que Richard possa v-la.A cha diz coisas em que subimos. Richard conrma com a cabea

    e comea a dar as dicas a mame. Um trepa-trepa, uma montanha Coisas altas? responde ela.Richard faz que no com a cabea. Hum degraus Coisas que vo para cima! grita mame.Ele faz que no novamente. Uma escada de mo Coisas em que subimos! Ding! digo, imitando o som da campainha, e levanto a cha

    seguinte. Certo diz Richard. Paris, queijo, vinho Coisas chiques! grita Mame. Coisas romnticas! Po Coisas francesas! Ding.Prxima ficha. Um travesseiro diz Richard. Um gatinho. Coisas gordinhas? Uma bola de algodo Coisas macias coisas fofas! Ding.Prxima ficha. Um carrinho de beb, um carrinho de compras Coisas que levam coisas? chuta mame. Coisas com rodas?Richard faz que no com a cabea, pensa, e diz: Um balano. Coisas que empurramos! Ding!O timer em forma de ovo desliga. Olhamos uns para os outros. Mame

    acertou apenas quatro das seis categorias. Ningum fala nada. No faz mal diz ela por fim. Ainda temos duas semanas.

  • C o is a s de que g ua r da m os s eg r edo

    Demorei um pouco para perceber que o garoto que bateu em Salfrequentava nossa escola. Estvamos trabalhando em nossos projetos paraa Rua Principal, a maquete de um quarteiro da cidade, que estvamosconstruindo no fundo da sala de aula. A turma do Sr. Tompkin estudaprdios todos os anos. Mame diz que ele um arquiteto frustrado.

    Por que ele frustrado? perguntei. complicado. Ela disse que tinha a ver com a guerra.

    Professores no precisavam lutar no Vietn, ento muitos jovens que noqueriam ir para a guerra tornaram-se professores.

    Em vez de se tornarem o que realmente queriam, ela quis dizer.

    * * *

    Jay Stringer, um gnio de 12 anos e lder da Comisso de Planejamentodo Projeto da Rua Principal, j havia construdo um prdio inteiro depapelo, com sadas de incndio e caixa-dgua, e recentemente haviacomeado a fazer duas cabines telefnicas, que, segundo ele, teriamportinhas que iam abrir e fechar.

    Annemarie estava ocupada com os seixos e a cola extra-forte,trabalhando em uma parede de pedras para o parque que Jay Stringerhavia aprovado na semana anterior. Julia estava fazendo um vni depapel alumnio que, dizia ela, sobrevoaria a rua preso por um o denilon. O vni ainda no estava aprovado, mas Julia continuou com oprojeto mesmo assim. Ela havia escrito Proposta Pendente em um pedao depapel e pregado na lateral de uma caixa de sapato cheia de papelalumnio e linha de pesca. Alice Evans estava tentando fazer hidrantesde argila que, at ento, pareciam apenas caroos. Ficar o tempo todocom tanta vontade de fazer xixi deve prejudicar sua capacidade deconcentrao.

    Eu trabalhava na minha proposta de parquinho. Meu escorregadorprimeiro cou muito ngreme, depois muito plano, depois muito confuso,porque apaguei demais. Eu teria que pedir outra folha de papelquadriculado, o que sempre fazia Jay Stringer suspirar e revirar os olhos,porque ele as trazia de casa.

    O telefone da sala de aula tocou e, depois de atender, o Sr. Tompkinperguntou se algum queria ajudar um pouco na secretaria. Levantei amo. A secretria da escola normalmente d aos ajudantes algunschocolatinhos e bombons.

    * * *

  • Peguei meu livro e desci pelo corrimo at o primeiro andar, ondeencontrei Rodete em sua mesa, no escritrio principal. Dizem que ela asecretria, mas, at onde sei, praticamente dirige a escola. E tenta fazertudo sem sair de sua cadeira, que tem rodinhas por isso que todos achamam de Rodete. Ela roda pelo escritrio o dia inteiro, empurrando ocho com os ps. como um jogo de pinball em cmera lenta.

    O dentista precisa de um ajudante disse-me ela, andando com acadeira at uma das mesas, onde pegou uma folha de papel.

    estranho frequentar uma escola por quase sete anos e um diadescobrir que h um consultrio de dentista l dentro. Mas foiexatamente isso o que aconteceu. Rodete se levantou e eu a segui at om de um corredor no qual nunca tinha reparado antes. Havia umaporta aberta e, do outro lado, um consultrio de verdade.

    Fomos at a sala de espera, e pude ver o interior de outra sala, comuma cadeira de dentista. Presa nela, havia uma pequena pia branca e, noalto, uma grande luminria prateada. As paredes estavam cobertas depsteres sobre placa, escovao de dentes e a importncia de comermas.

    Rodete chamou: Bruce?Um homem de barba grisalha e curta apareceu na sala de espera. Ele

    estava usando uma daquelas toucas verdes de mdico e me abriu umsorriso largo e perfeito.

    Ol. Voc minha primeira paciente de hoje? No, essa Miranda disse Rodete. Ela ser sua ajudante.

    Estou com a lista de pacientes aqui. E me entregou um pedao depapel.

    Vi um monte de nomes e nmeros de salas de aula. Eles vo ao dentista da escola? perguntei. to esquisitoRodete pegou de volta o papel e disse: H 98 alunos do sexto ano nessa escola, e 89 vieram hoje. Ento, se

    no consegue fazer esse trabalho com educao, pode voltar direto parasua sala, porque posso chamar outra pessoa.

    Senti o rosto queimar e pensei que realmente fosse chorar. s vezes,quando me pegam desprevenida, choro por qualquer coisa.

    O dentista colocou a mo em meu ombro e sorriu novamente. Eleparecia um risadista prossional, o que faz sentido para um dentista,acho.

    Meus servios so gratuitos, Miranda. Algumas famlias no tmcomo pagar um dentista. Ou precisam desse dinheiro para outras coisas.

    Ah!Fiquei imaginando que seria melhor no deixar minha me descobrir

    isso. Ela est sempre reclamando que os servios de sade deveriam sergratuitos para todos. Aposto que agendaria rapidinho uma consulta paramim no dentista da escola.

    Ele olhou para Rodete. Ela deu um sorrisinho forado e me entregou

  • a lista novamente. Ento, tirou um chocolate do bolso e passou-o paramim, bem na frente do dentista, e Louisa certa vez me disse que comerchocolate o mesmo que acertar os dentes com um martelo.

    * * *

    Sa com minha lista. No chame todas as crianas de uma vez avisou o dentista.

    Traga-os de dois em dois.Decidi chamar primeiro as crianas pequenas. Bati na porta das salas

    de aula, os professores vieram correndo ver meu recado e me entregaramas crianas. Levei dois alunos do jardim de infncia para o consultrio,quei lendo meu livro na sala de espera por algum tempo e depois fuibuscar um estudante do segundo ano e outro do quarto. Subi e desci asescadas vrias vezes. No consigo acreditar que Rodete tenha feito issoalguma vez na vida.

    Quando voltei at o dentista com a segunda leva, uma aluna dojardim de infncia j estava esperando para ir para sua sala. Tinha umgrande adesivo com um dente feliz colado na camiseta. Levei-a de voltae fui buscar o ltimo da lista, um aluno do sexto ano, como eu: MarcusHeilbroner, na sala 6-506. Nunca tinha ouvido falar dele.

    Bati na janelinha da porta da sala, balanando meu papel. Oprofessor, Sr. Anderson, veio abrir e lhe mostrei a lista.

    Marcus chamou ele, e um menino se levantou.Era o menino que batera em Sal. Estava com o cabelo bem curto, mas,

    denitivamente, era a mesma pessoa. Meu crebro comeou a gritarcomigo: o garoto que acertou Sal! Ele estuda na nossa escola? O garotoque acertou Sal estuda na nossa escola? Enquanto isso, o menino veio atonde eu estava com o Sr. Anderson.

    Consulta com o dentista sussurrou o Sr. Anderson.Marcus conrmou com a cabea, voltou mesa, pegou um livro,

    passou direto por mim e saiu da sala. Eu fui atrs. Ele sabia o caminho.

    * * *

    Bem-vindo de volta, Marcus disse o dentista, de dentro da sala. Belo corte de cabelo.

    O aluno do quarto ano estava na cadeira, cuspindo na pequena piabranca. As outras duas crianas estavam devidamente adesivadas,esperando para voltar s salas de aula. Marcus se jogou em uma cadeira eabriu um livro chamado Conceitos de matemtica.

    O Sr. Tompkin agia como se todos na classe fossem parte de uma

  • grande e feliz turma de matemtica, mas no demorou muito parapercebermos que havia um sistema: livros vermelhos para gnios como JayStringer; laranja para gente como eu, que ia bem, e amarelos para os quesaam da sala duas vezes por semana para encontrar a Sra. Dudley, quedava reforo de matemtica. O livro de Marcus era diferente grosso,com capa dura e letras midas. Ento imaginei que, mesmo sendo azul,cor abaixo do amarelo no arco-ris, equivaleria pelo menos a um vermelho.

    Gosta de matemtica? perguntei.Marcus olhou para cima e eu tive a forte impresso de que ele no se

    lembrava de ter me visto antes, de ter batido em Sal ou de ter faladocomigo sobre o sol.

    Sim respondeu devagar, como se eu fosse burra ou algo assim ,gosto de matemtica. E retomou a leitura.

    Acompanhei as duas crianas que esperavam at suas salas. Umadelas segurava um carto brilhante em forma de ma que dizia queprecisava retornar. Havia uma linha que a me dela tinha que assinar.Crie, pensei, fazendo careta.

    Quando voltei ao consultrio, o menino do quarto ano ainda estava nacadeira e Marcus ainda lia seu livro, de matemtica. Por mim, tudo bem.Peguei meu livro, que estava onde eu o havia deixado sobre a mesa, e mesentei para ler.

    Algumas pessoas acham que possvel, sabe? sussurrou Marcus. O qu?Ele apontou para o meu livro. Viajar no tempo. Algumas pessoas acham que possvel. A no ser

    que essas moas tenham mentido, no comeo do livro. O qu? As moas do livro Sra. O Qu, Sra. Onde e Sra. Quem. Sra. O Que Isso, Sra. Quem e Sra. Qual corrigi.Ele deu de ombros. Mentiram como? Elas nunca mentiram.Eu estava cando irritada. A verdade que odeio pensar em outras

    pessoas lendo meu livro. como ver algum mexendo na caixa de coisasparticulares que guardo embaixo da cama.

    Voc no lembra? Ele se inclinou na cadeira. Elas estoviajando no tempo, certo? Por todo o universo, certo? E prometem quelamenina que a levaro de volta para casa cinco minutos antes do horrioem que saiu. Mas no fazem isso.

    Como voc sabe que elas no a levaram para casa cinco minutosantes? Quer dizer no h relgio nem nada. Elas saem noite e voltamna mesma noite. Talvez tenham sado s 20h30 e voltado s 20h25.

    Ele riu. No precisa ter relgio. Pense. No comeo do livro, aquela menina

    anda no meio da horta Meg. H?

  • Voc fica dizendo aquela menina, mas o nome dela Meg. Ento, ela anda at o outro lado da horta e senta em um muro de

    pedras, certo? E ela consegue ver a horta de onde est sentada,conversando com aquele menino, certo? E as moas aparecem e os levamembora.

    O nome dele Calvin. E da que conseguem ver a horta? Da que a horta o lugar onde eles aparecem quando voltam para

    casa no m do livro. Lembra? Eles caem em cima dos brcolis. Ento, setivessem chegado em casa cinco minutos antes do horrio em que saram,como aquelas moas prometeram, teriam visto a si mesmos chegando. Antesde partirem.

    Coloquei o livro na mesa e balancei a cabea: Pense nisso. Eles no haviam sado ainda. Como poderiam ter

    voltado? Eles nem tinham certeza se conseguiriam voltar. No importa se sabiam ou no. No tem nada a ver com isso.

    Ele se recostou e enou as mos nos bolsos. Se eles caram em cimados brcolis s 20h25, deveriam estar em cima dos brcolis s 20h25. Pontofinal.

    Isso no faz sentido falei. E se eles no tivessem conseguidosalvar o pai de Meg e voltar sos e salvos?

    Ento nunca teriam cado em cima dos brcolis. Mas caram, nofoi?

    Sim, mas o fim no pode acontecer antes do meio!Ele sorriu. Por que no? No sei uma questo de senso comum! Senso comum! J leu a Teoria da Relatividade? Sabe? De Einstein?Fiquei olhando para ele. Einstein diz que o senso comum apenas o hbito de pensar algo.

    o modo como estamos acostumados a pensar sobre tal coisa, e muitasvezes ele s atrapalha.

    Atrapalha o qu? Atrapalha a verdade. Quer dizer costumava ser senso comum que

    o mundo era plano, e o sol girava a seu redor. Mas em algum momento,algum teve que rejeitar essa hiptese, ou pelo menos question-la.

    Bem, claro que algum fez isso. Sim, d. Coprnico fez isso! Olhe, s estou dizendo que no m do

    livro eles no voltam cinco minutos antes de terem sado. Ou teriam vistoa si mesmos voltando antes de partirem.

    Eu desisti. Estava escuro na horta disse. Talvez s no tenham

    conseguido ver a si mesmos de onde estavam sentados. Pensei nisso disse ele. Mas eles teriam ouvido toda a gritaria, e

    o cachorro Meu Deus, e o que importa? uma histria Algum inventou tudo!

    Voc percebeu isso, no?

  • Ele deu de ombros. A histria inventada. Mas viajar no tempo possvel. Em teoria.

    J li alguns artigos sobre isso. Uau. Voc gosta mesmo de matemtica, no?Ele sorriu novamente. Com o cabelo to curto, sua cabea parecia

    uma bola perfeitamente redonda quando ele sorria. Est mais para fsica, nesse caso. Est bem. Voc gosta mesmo de fsica, no? Gosto. Ele pegou meu livro da mesa e o folheou. Na verdade,

    tive uma conversa quase igual a essa com minha professora logo aps lereste livro. Ela tambm no me entendeu no comeo.

    Ela? O Sr. Anderson ele. Voc no repara muito nas pessoas, no?

    No foi o Sr. Anderson. Isso foi no segundo ano. Escrevi umaresenha sobre a histria.

    No segundo ano?Ele colocou o livro na mesa. Sim. Em Detroit, onde morvamos at o ano passado. Mas no falo

    mais sobre essas teorias. Normalmente. Por que no?Ele me lanou um olhar. As pessoas no querem pensar sobre isso. Posso imaginar por qu falei. Minha cabea est doendo. Ainda assim, voc se saiu melhor do que a maioria. bastante

    esperta.Revirei os olhos. Nooosssa, obrigada.

    * * *

    Certo, Marcus o dentista chamou da outra sala. Sua vez!Vi Marcus deitar na cadeira e voltar a ler o livro de matemtica,

    segurando-o com uma das mos enquanto o dentista trabalhava do outrolado. O aluno do quarto ano me esperava na porta, com seu adesivocolado.

    Miranda, voc pode voltar para sua sala disse o dentista. Marcus ainda vai car um tempo por aqui. Ele subir sozinho quandoterminarmos.

    Ento peguei meu livro e subi as escadas com o menino. Quandochegamos ao corredor onde cava a sala dele, ele parou, e eu o espereitirar o adesivo da camisa, dobr-lo e enfi-lo no bolso.

  • C o is a s que c he ir a m m a l

    Por um bom tempo, Colin fora apenas o garoto baixinho que parecia cairna minha sala todos os anos. No terceiro ano, ele e eu passamos quaseuma semana convencendo Alice Evans de que veludo era um tipo depele de animal, e ela se recusou a usar veludo pelo restante do ano. Foraisso, nunca andamos juntos. J o vira com seu skate no parque algumasvezes, e ele sempre me deixou andar um pouco nele, mas s isso.

    E, de repente, ele estava em todos os lugares. Descia comigo e comAnnemarie na hora do almoo ou gritava Esperem! e voltava pelaBroadway conosco depois da escola, para beber alguma coisa nalanchonete do Jimmy.

    Foi Colin quem teve a ideia de pedir um emprego a Jimmy. Tenhoquase certeza de que ele estava brincando. Colin estava sempre dizendocoisas estranhas s pessoas, o que, em parte, dava certo orgulho, mas, poroutro lado, dava vontade de no estar perto dele. Carente de ateno, como mame o chamaria.

    Ei disse Colin a Jimmy certo dia, depois da escola, no incio denovembro, enquanto pagvamos nossos refrigerantes , voc est sempresozinho aqui. Que tal perguntar para o dono se ele no quer arrumar umemprego para ns?

    Eu sou o dono disse Jimmy. E quem so ns?Estvamos Annemarie, Colin e eu parados ali. Ns disse Colin. Poderamos trabalhar depois da escola.Jimmy pegou um pedao de picles da bancada de preparao, cujo

    nome eu ainda no conhecia, e colocou-o na boca. No preciso de ajuda assim to tarde. Que tal na hora em que eu

    abro? Temos intervalo para o almoo s 10h45 disse Colin.Um almoo estupidamente cedo. Na nossa escola, quanto mais velho

    voc fica, mais idiota o horrio do almoo.Jimmy fez que sim com a cabea. Pode ser.

    * * *

    No achei que ele tivesse falado srio, mas Colin disse que devamosaparecer na hora do almoo no dia seguinte, para ter certeza.

    E, no nal, era srio. Ns trs trabalhamos na hora do almoo pelorestante da semana. Lavamos muitas bandejas de plstico sujas degordura, pesamos montes de carne fatiada (o que to nojento quantoparece), empilhamos refrescos no balco refrigerado, cortamos tomates efizemos tudo o que Jimmy nos pedia.

  • Acho que cou claro que Jimmy era meio estranho, porque nenhumapessoa normal daria um emprego de quarenta minutos por dia a trsalunos do sexto ano. No primeiro dia, Jimmy gastou cerca de cincominutos apontando para um cofrinho de plstico no formato do FredFlintstone que ele tinha em uma prateleira na sala dos fundos.

    Nunca toquem no cofrinho disse. Nunca.Quando comentei com Annemarie que Jimmy era estranho, ela disse: , mas um estranho legal, no um estranho bizarro. Voc acha? perguntei. E o cofrinho esquisito em forma de

    personagem de desenho animado?Ela deu de ombros. Meu pai tambm coleciona umas coisas assim. Muitas pessoas

    colecionam.Acontece que Jimmy no pretendia nos pagar em dinheiro. Em vez

    disso, cada um de ns podia pegar um refrigerante e fazer um sanduchecom as coisas que cavam na bancada de preparao, que tinha apenasalface, tomate, cebola, queijo processado, queijo suo e picles. Os outrosingredientes peru fatiado, presunto, rosbife, salame, uma grandeporo de salada de atum e almndegas que cavam em uma panelaeltrica no podamos consumir.

    Todos os dias, levvamos nossos sanduches de queijo para a escola ecomamos nas carteiras, no perodo da leitura silenciosa. Eu me sentavaao lado de Alice Evans, que nunca reclamava de nada, e Annemarie sesentava com Jay Stringer, que cava alheio ao mundo enquanto lia, masColin se sentava ao lado de Julia.

    Sr. Tompkin! disse Julia na sexta-feira da primeira semana emque trabalhamos na lanchonete do Jimmy. Colin est comendo nacarteira de novo. E eu detesto cheiro de picles.

    O Sr. Tompkin olhou por cima do livro, arrumou o palito de dentesque tinha no canto da boca e disse:

    Experimente respirar pela boca.

  • C o is a s que n o e s que cem os

    A porta do nosso apartamento estava destrancada quando cheguei daescola naquela sexta-feira, o que era estranho. Era mais do que estranho,na verdade: nunca havia acontecido antes. Mas imaginei que mamesimplesmente tivesse se esquecido de trancar quando sara de manhpara trabalhar. Agora parece estpido dizer isso, mas foi o que pensei nahora.

    Quando entrei, no entanto, de repente senti medo, tive a sensao deno estar sozinha no apartamento. Larguei a mochila no corredor e corripara a casa de Sal. Ele foi at a porta, mas abriu-a apenas o sucientepara espremer seu corpo pela fresta.

    Minha porta estava destrancada expliquei. No estranho? . Talvez voc tenha se esquecido de tranc-la disse ele, e cou

    ali, atravessado no meio da porta.Definitivamente, no estava me convidando para entrar. , talvez. Eu podia ouvir o barulho da televiso atrs dele, e

    estava passando um comercial. O.k. Ele olhou para o teto, atrs de mim.Eu me senti uma idiota. O.k. At mais.Subi as escadas, preparei uma tigela de cereais com dois dedos de

    acar por cima e liguei a televiso. Mame chegou por volta das 18h. Voc se esqueceu de trancar a porta de manh falei. O qu? No esqueci, no. Bem, estava destrancada quando cheguei. Estava? Ela comeou a andar de cmodo em cmodo, abrindo

    gavetas e portas de armrios, e eu fui atrs. No pode ser disse ela. Eu nunca me esqueceria de trancar a

    porta.Nada parecia fora do lugar. Ela caminhou at a cozinha e parou. Acho que no me lembro especicamente de ter trancado a porta,

    mas sei que nunca a teria deixado destrancadaMame encheu a espagueteira com gua, e conversamos sobre outras

    coisas enquanto ela arrumava a mesa e eu descascava algumas cenouras.Mas volta e meia ela se interrompia para dizer:

    Como posso ter me esquecido de trancar a porta?Estvamos no meio do jantar quando ela se levantou de repente e

    saiu do apartamento. Mame?Encontrei-a na escadaria, olhando o bocal da mangueira de incndio. Eu sabia disse ela. Eu nunca me esqueceria de trancar a

    porta. Nunca.A chave havia sumido. Procuramos novamente em todos os cmodos,

    mas no demos por falta de nada.

  • No faz sentido disse mame diante de sua caixa de joias,olhando as pulseiras de ouro que tinham pertencido me dela. Porque algum roubaria a chave, destrancaria a porta e no levaria nada?

    * * *

    Isso foi na sexta-feira tarde. Encontrei seu primeiro bilhete na segunda-feira de manh.

  • O p r im e ir o b ilhe t e

    Seu primeiro bilhete estava escrito em letras midas, em um pequenoquadrado de papel carto que parecia ter sido molhado. Eu estavaarrumando a mochila para a escola quando percebi algo saindo do livroque eu pegara na biblioteca e no me dera o trabalho de ler sobre umavila de esquilos, ou talvez ratos.

    M:Isso dicil. Mais dicil do que imaginei, mesmo com sua

    ajuda. Mas tenho treinado, e a preparao vai bem. Estou vindopara salvar a vida de seu amigo, e a minha.

    Peo dois favores.Primeiro, voc precisa me escrever uma carta.Segundo, por favor, lembre-se de mencionar onde ca a chave

    de sua casa.Essa uma viagem dicil. No serei eu mesmo quando

    encontrar voc.

    Fiquei assustada. Mame cou assustada. Ela tirou a manh de folga etrocou as fechaduras, mesmo dizendo que M poderia ser qualquerpessoa, que aquilo no tinha nada a ver com o desaparecimento da chavee que o bilhete poderia ter sido colocado no livro por qualquer um,provavelmente anos antes, e nunca saberamos por qu.

    Mas no estranho? perguntei. Nossa chave foi roubada nasexta, e agora, na segunda-feira, achamos um bilhete perguntando ondeela est?

    estranho disse mame. Ela colocou as mos na cintura. Mas,se voc pensar bem, uma coisa no pode estar relacionada com a outra.Algum com a chave no teria que perguntar onde ela est. No fazsentido.

    * * *

    Ela estava certa, claro. A ordem das coisas estava invertida. Mas emalgum lugar da minha cabea comeou a soar um sininho. Nem notei aprincpio.

  • C o is a s en v ie s a da s

    Na segunda semana, Jimmy disse que podamos comear a servir osclientes.

    Mas primeiro vocs precisam aprender o corte em V falou. Muito importante.

    Mas ele disse Plecisam, puxou os olhos com os dedos e se abaixoufazendo uma reverncia. Era a imitao clssica de um chins. Eu nuncatinha visto um adulto fazer isso. Se mame estivesse l, teria acertado acabea dele com uma bandeja de plstico.

    O que em V? perguntou Colin.O corte em V era o jeito especial como Jimmy cortava os pes de

    sanduche. Sempre um ngulo de 45 graus disse.Ele era muito srio em relao a isso. Cortava um lado do po e ento,

    cuidadosamente, deslizava a faca para fora e a enfiava do outro lado.A parte de cima do po deveria levantar, formando exatamente um

    V. Por isso Jimmy o chamava de corte em V. Ele deu um pozinho acada um de ns e observou enquanto tentvamos cort-lo. O corte deAnnemarie foi perfeito. O de Colin foi passvel. O meu, um desastre.Quando levantei a parte de cima, as rebarbas do po carampenduradas, e Jimmy disse que a aparncia no estava atraente.

    Pode usar esse para o seu sanduche disse ele, fazendo cara feiapara o meu pozinho retalhado. Tente novamente amanh.

    Ento Annemarie e Colin colocaram aventais e foram para trs dobalco ajudar os clientes, enquanto eu conferia o pedido de pes nosfundos e saa para comprar guardanapos. Annemarie disse depois queJimmy podia falar o que quisesse, mas era ele quem no estava atraentecom aquela camiseta branca esgarada e manchada de amarelo debaixodos braos. Aquilo me fez sentir um pouco melhor, mas no muito.

    Assim que Colin colocou o avental, Jimmy comeou a cham-lo demoa.

    Ei, moa, traga um pouco de maionese aqui. Ei, moa, passe-meaquelas bandejas.

    Colin s ria, pois assim que ele .Todos os dias daquela semana cortei meu po assim que cheguei

    lanchonete, e todos os dias Jimmy balanava a cabea negativamente.Colin e Annemarie trabalhavam juntos atrs do balco. Jimmy tinhacomeado a cham-los de casal do balco e a fazer sons desagradveis debeijos quando passava por eles, o que deixava Annemarie vermelha,enquanto Colin apenas sorria como um pateta.

    Jimmy disse que enquanto eu praticava o corte em V, podia carencarregada do chocolate quente. Ele usava pacotes de chocolate quenteinstantneo, aos quais s era preciso acrescentar gua. Mas ningumnunca pedia. E acho que ele nem olhava mais para os meus pezinhos

  • depois dos primeiros dias. No importava, porque eles estavam cada vezpiores.

  • C o is a s b r a n c a s

    A primeira vez que eu trouxe Annemarie at nossa casa depois da escola,desejei duas coisas. Primeiro, que os garotos no estivessem na frente dagaragem. Havia pouco tempo eles tinham comeado a me dizer coisas,coisas diferentes, que incluam palavras como doura e gatinha.Mame disse que isso acontece com as meninas em uma determinadaidade, e que o que os garotos querem ver alguma reao, de qualquertipo.

    No ria, no os chame de cretinos, no saia correndo disse ela. No faa nada. Aja como se eles fossem invisveis.

    Meu segundo desejo era que o homem da gargalhada tivesse idoembora, que estivesse dormindo ou, pelo menos, distrado com outrapessoa ou outra coisa quando ns passssemos.

    Chegamos Broadway. Quer parar para tomar um refrigerante? perguntei.Annemarie deu de ombros. No, obrigada.Seguimos para a Amsterdam. Tentei acompanhar a conversa de

    Annemarie, mas na maior parte do tempo quei espremendo os olhospara enxergar o restante do quarteiro. Por milagre, os garotos noestavam na frente da garagem. Agradeci em silncio ao universo, e entocruzamos a rua at minha esquina.

    Anjo! gritou o homem da gargalhada.Ele estava olhando para Annemarie, e no pude deixar de pensar

    que, dependendo da ideia que voc tem de paraso, Annemarie poderiase parecer com um anjo. O casaco dela era bem branco e ia at os ps,mesmo sendo o meio de novembro, que no era to frio assim. Como seupai mantinha aquele casaco to limpo ainda um mistrio para mim.

    Anjo!Eu ri. Estava tentando mostrar a Annemarie como era absurdamente

    engraado ter um sem-teto esquisito bem ali na minha esquina. Meuprprio sem-teto esquisito!

    R! Anjo falei. Essa nova. Anjo! ele gritou novamente, e agora estava apontando para ela. Ele est apontando para mim? perguntou Annemarie,

    diminuindo o passo. No respondi, afastando-a o mximo que podia do homem da

    gargalhada sem jog-la no meio da rua.

    * * *

    Quando chegamos l em cima, aconteceu algo estranho. Depois de viver

  • ali praticamente todos os dias da minha vida, vi nosso apartamento comose fosse a primeira vez. Notei tudo o que normalmente me era invisvel: aespuma escapando do sof em dois pontos, as queimaduras dos cigarrosdo Sr. Nunzi, a tinta descascada no teto e a mancha escura perto doaquecedor, onde as gotas de gua haviam marcado o cho de madeira.

    Com licena pedi. Volto j.No banheiro, olhei para os ladrilhos hexagonais brancos no cho e no

    vi nada alm da sujeira entre eles. Escondi o pote de vaselina de vinteanos de mame no armrio de remdios, que j foi pintado tantas vezesque no fecha mais.

    Gostei do seu quarto gritou Annemarie quando sa do banheiro.Virei-me devagar e olhei para o cmodo, imaginando que tipo de

    horror veria l dentro. Mas, na verdade, estava tudo certo: sem cortinasou carpete, mas com o que comum, um quarto normal com uma amigasentada na cama, que tinha apenas um travesseiro. Eu entrei e fechei aporta.

    Quando mame chegou, acompanhamos Annemarie de volta a seuprdio. Por sorte, naquela hora o homem da gargalhada estava embaixode sua caixa de correio. Eu queria que mame casse surpresa quando oporteiro de Annemarie me chamou de Srta. Miranda, mas ela apenassorriu para ele.

    Deu para perceber que o pai de Annemarie cou encantado commame as pessoas sempre gostam dela. Ele nos ofereceu um bolinhopolvilhado com acar que havia na cozinha, e mame comeu dois delesenquanto eu agradeci e recusei, pois ainda no havia jantado. Mame riue tossiu um pouco de acar, o que fez o pai de Annemarie rir. Olhei oacar em sua camiseta e quei imaginando que, se ela tivesse algumaideia de como estava, no riria daquele jeito.

  • O s eg un do b ilhe t e

    Os pes de sanduche so entregues na loja do Jimmy de manh cedo,antes de ele chegar. Ainda vejo o grande saco de papel encostado naporta fechada todos os dias quando vou para a escola. No coloco os psna lanchonete desde dezembro, mas adquiri o hbito de olhar paraaquele saco, e quando o vejo, sempre acho que estou sentindo o cheirodo po que est ali dentro, mesmo sabendo que no passa de umalembrana.

    Em novembro, eu contava a encomenda de pes de Jimmy todos osdias, tirando os pes de dois em dois e colocando-os no saco vazio do diaanterior. Lembro-me de ter encontrado seu segundo bilhete no meio dosaco, na segunda-feira.

    A mesma letrinha esquisita, o mesmo papel enrugado. Mas essecomeava com meu nome.

    Miranda:Sua carta deve contar uma histria uma histria

    verdadeira. Voc no pode comear agora, pois a maior parte delaainda no aconteceu. E mesmo depois que acontecer, no precisater pressa. Mas no espere muito, pois suas lembranas podem seapagar. Exijo o mximo de detalhes que possa dar. A viagem dicil, e preciso pedir meus favores enquanto ainda consigo ouvirminha mente.

    Mais uma coisa: sei que voc mostrou meu primeiro bilhete aalgum. Peo-lhe que no mostre os outros. Por favor. No estoupedindo por mim.

    Li e reli o bilhete. Mas preciso dizer que no tinha ideia do que elesignificava at recentemente. E preciso dizer mais uma coisa: fiquei commedo. Voc me assustou de verdade.

    * * *

    Voc est contando esses pezinhos ou memorizando-os?Jimmy estava atrs do balco, empurrando um pedao de presunto

    bem rpido para a frente e para trs no fatiador eltrico, como elegostava de fazer.

    Enei o bilhete no bolso e voltei a contar os pes, mas havia meperdido e tive que comear tudo de novo.

    Alguns minutos depois, um caminho de entregas parou em frente loja, e Jimmy foi falar com o motorista.

  • Ei disse Colin assim que Jimmy fechou a porta , vamosdescobrir o que est no cofrinho do Fred Flintstone.

    De jeito nenhum falou Annemarie. Voc enlouqueceu? Voc ca vigiando eu disse a ela enquanto seguia Colin at a

    sala dos fundos. Ele j estava com o cofre nas mos, sacudindo-o, masquase no havia barulho.

    Gente disse Annemarie. melhor no Estamos s olhando! gritei. Ande logo disse a Colin.Ele estava tentando tirar o tampo de borracha que havia debaixo do

    cofre. Deixe-me tentar sussurrei. No. J consegui disse ele, e o tampo estava em suas mos.Batemos as testas tentando olhar dentro do buraco ao mesmo tempo e

    ento juntamos os rostos, algo que eu no esperava fazer. Quase nodava para ver o rosto de Colin daquela posio, mas senti que ele sorria.

    Legal disse ele. Est cheio de notas de dois dlares!Ele estava certo. O cofre estava praticamente lotado de notas de dois

    dlares, dobradas em pequenos tringulos, com o nmero 2 aparecendodos lados.

    Gente, ele est vindo! Annemarie parecia em pnico.Afastamos as cabeas, e Colin enou o tampo de borracha de volta

    no lugar. Eu estava na frente quando Jimmy abriu a porta para o cara daentrega, que carregava uma pilha de refrigerantes em um carrinho.

    Ei, moa! gritou Jimmy. Preciso de voc. Isso trabalho parahomem.

    Desculpe. Colin veio cambaleante, dos fundos, usando seuavental. Pausa para ir ao banheiro.

    Annemarie sorriu para mim enquanto Colin e Jimmy colocavam osrefrigerantes na geladeira grande perto da porta.

    Vocs so malucos, sabia? disse ela.Eu ainda podia sentir o ponto onde a cabea de Colin cara colada

    minha. Eu sei. O que fizemos foi meio estpido.Voltamos para a escola com Colin entre ns duas. Ele andava em

    zigue-zague e batia os ombros nos nossos, dizendo: Boing! Cinco pontos. Boing! Dez pontos.E ns ramos como idiotas.

  • C o is a s que a f a s t a m os

    Est pronta? pergunta Richard a mame.Estamos treinando ainda mais agora. Ele se senta em uma cadeira de

    frente para ela. Eu marco o tempo. Mame fecha os olhos, e eu sei queela est levantando uma pontinha de seu vu. Ela faz um sinal positivocom a cabea, e ns comeamos.

    Mame diz que todos ns temos um vu que nos separa do restantedo mundo, como o que as noivas usam no dia do casamento. S que esse invisvel. Andamos felizes com um vu invisvel no rosto. O mundo caum pouco borrado, mas gostamos dele assim.

    s vezes, porm, nosso vu tirado por alguns instantes, como se umvento o soprasse para longe. E quando ele levanta, podemos ver tudocomo realmente , por apenas aqueles poucos segundos antes que o vuvolte a seu lugar. Enxergamos toda a beleza, a crueldade, a tristeza e oamor. Mas, na maior parte do tempo, camos felizes por no vermos isso.Algumas pessoas aprendem a levantar seu vu sozinhas. Assim, noprecisam mais depender do vento.

    Ela no quer dizer que haja um vu de verdade. E no se trata demgica, ou de que talvez Deus esteja olhando diretamente para voc, ouque um anjo esteja sentado ao seu lado, nem nada desse tipo. Mameno pensa assim. apenas seu jeito de dizer que, na maior parte dotempo, as pessoas se distraem com as coisas pequenas e ignoram o maisimportante. Para jogar no Crculo dos Vencedores, mame precisa entrarem um determinado estado de esprito. Ela diz que como levantar umapontinha de seu vu, o suciente para ver mais do que o normal, masno a ponto de ser completamente distrada pela vida, pela morte e pelabeleza disso tudo. Ela precisa abrir a mente, diz, para que, quando asdicas comecem, possa enxergar o o que as une. claro que, se acelebridade que jogar com ela for burra como uma porta, no vai adiantarnada.

    * * *

    Pensei muito sobre esses vus. Fico me perguntando se, de vez emquando, algum nasce sem ele. Algum que veja o mais importante otempo todo. Como voc, talvez.

  • C o is a s que c on t a m os

    Um pouco antes do dia de Ao de Graas, Colin e Annemarie estavamatrs do balco pesando uma pilha pegajosa de peru fatiado emmontinhos de 100 gramas, separados por pedaos de papel celofane.Jimmy disse que deveriam fazer o suficiente para uma semana inteira.

    No vai estragar? perguntou Annemarie. Vai nada. Essa coisa cheia de conservantes.Colin lambeu os beios e disse: Hum, hum. Peru qumico. Cale essa boca disse Jimmy.Pela primeira vez, fiquei feliz por contar os pes.Agora que estvamos l, Jimmy parecia no ter nada para fazer. Ele se

    sentava em uma das banquetas presas ao cho em frente grande janelada frente e cava me observando com os braos cruzados e as mosenadas debaixo das axilas manchadas de amarelo. Ele j tinha rejeitadomeu corte em V daquele dia o po esperava por mim em uma bandejaatrs de Annemarie, endurecendo, como sempre. Por sorte, Jimmy nuncalimitou a quantidade de maionese que podamos usar.

    Olhe disse Jimmy, apontando o queixo na direo da janela. L vai uma de suas amiguinhas.

    Do outro lado da rua, Julia andava sozinha com sua mochila decamura laranja e uma faixa de cabelo do mesmo tecido. Combinarmochilas e faixas de cabelo devia ser a ltima moda na Sua, pensei.

    Est falando da Miss Sua? Peguei dois pezinhos e joguei-os nosaco que estava aos meus ps. Ela no minha amiga. Nem de longe.

    Ele sorriu lentamente. Miss Sua. Essa boa. Ele olhou para fora por mais um instante,

    e depois se levantou. Voc engraada, sabia?Dei de ombros, ainda contando, mas feliz. Um elogio de Jimmy era

    coisa rara. Quando terminei, dobrei a ponta do saco e o arrastei para seulugar, atrs do balco. Jimmy havia desaparecido nos fundos. Annemarieestava rindo de algo que Colin tinha dito.

    Desde que nossas testas tinham se tocado, olhar para Colin fazia comque eu me sentisse estranha. Mas era uma estranheza boa, no umaestranheza esquisita.

    Oitenta! gritei para Jimmy.Na mosca. Mais sorte da prxima vez! gritou ele de volta.Colin olhou para mim e deu um sorrisinho, fazendo meu estmago

    quase flutuar dentro do corpo. Ele no v a hora de a encomenda vir errada, sabe Voc deveria

    jogar um pozinho no lixo um dia, s para deix-lo feliz. No d ouvidos a ele, Miranda disse Annemarie. Ele s est

    tentando arranjar confuso novamente.

  • Mas, enquanto ela falava comigo, olhava para Colin com umaexpresso engraada, como se seu estmago tambm estivesse flutuando.

  • C o is a s c om p lic a da s

    Annemarie e eu paramos no banheiro do quarto andar antes devoltarmos para a sala de aula depois do almoo. Ela disse que queria lavaras mos de novo depois de mexer com todo aquele peru.

    Hoje foi divertido falou, olhando-se no espelho e penteando oscabelos com os dedos. Queria que tivssemos mais de quarentaminutos para o almoo.

    Odeio contar os pes eu disse. chato.Ela riu. Pelo menos suas mos no ficam cheirando a peru qumico.Pelo menos voc pode car de brincadeira com Colin atrs do balco,

    pensei. Sempre tenho que sair para comprar algo, que limpar algumameleca ou que conversar com o Sr. Manchas Amarelas.

    Vamos chamei. Estou faminta.Julia estava parada do lado de fora da nossa sala, quase como se

    estivesse nos esperando. Ah, no! Ela suspirou profundamente e apontou para o brao de

    Annemarie. Ah, Annemarie, seu suter azul-turquesa. Seu favorito.Pobrezinha!

    E mame achava que eu era dramtica.Annemarie olhou para a bainha do suter, suja de mostarda. Eu no

    tinha ideia de que aquele era seu suter favorito. Isso sai disse Annemarie. Meu pai consegue limpar.Julia encostou-se parede e arrumou a faixa no cabelo. No entendo por que est trabalhando. Voc no precisa de

    dinheiro. E parou para me olhar. E, sem querer ofender, mas aquelelugar meio nojento. Vi uma barata l uma vez.

    Eu gosto de l disse Annemarie. Na verdade, bem divertido. Aquele cara que trabalha l repugnante. Ele no repugnante! falei. E ele no trabalha l

    acrescentei, fazendo aspas no ar. Ele o dono. Ns no recebemos pagamento disse Annemarie, com calma.

    Ele s nos d sanduches. E refrigerantes completei, mostrando meu Sprite. Certo disse Julia, falando apenas com Annemarie, como se eu

    no existisse. Como se voc pudesse car comendo sanduches etomando refrigerante.

    Annemarie fechou um pouco a cara. Ah, bom. Tudo bem disse Julia. Deixe para l.O Sr. Tompkin veio at a porta. Por que vocs trs no esto aqui dentro? A leitura comeou h

    cinco minutos.Enquanto entrvamos na sala, falei baixinho a Annemarie:

  • No de estranhar que voc no queira mais ser amiga dela. Ela to grossa com voc.

    Por um instante, Annemarie no disse nada. Depois sussurrou: , s vezes.Ns nos separamos e fomos para nossos lugares.O Sr. Tompkin havia deixado um livro em minha mesa. Ele sempre

    tentava me fazer ler algo novo. Esse tinha a gura de uma menina cheiade atitude na capa e uns prdios atrs dela. Coloquei a menina corajosade lado, peguei o meu livro e abri em uma pgina qualquer para ver ondeeu iria comear.

    Meg estava no planeta Camazotz, onde vrios menininhos, na frentede suas casas iguais, jogavam com suas bolas iguais. As bolas batiam nocho exatamente ao mesmo tempo, todas as vezes. Ento os meninos seviravam no mesmo instante e entravam nas casas idnticas. Menos umdeles. Ele estava sozinho do lado de fora e a bola corria para a rua. Ame dele saa, muito nervosa, e o levava de volta para dentro.

    Estava imaginando como o Sr. Tompkin odiaria a ideia de um lugaronde todas as casas fossem exatamente iguais quando algo me atingiucom fora atrs da orelha. Virei a cabea e vi Julia rindo em silncio atrsde seu livro. Olhei para o cho e vi o elstico que ela havia atirado emmim. Na minha cabea.

    Achei que estivssemos apenas irritando uma outra, mas estavaenganada. Era guerra.

  • C o is a s in v is v e is

    Quando vi Marcus novamente, tive certeza de que ele se lembraria demim. Eu estava na secretaria porque o Sr. Tompkin me pedira parapegar algumas cpias mimeografadas.

    O motivo pelo qual vocs, crianas, precisam de projetos do sistemade gua est alm do meu entendimento disse Rodete enquanto meentregava tudo, sentada em sua cadeira.

    So para a maquete da Rua Principal expliquei. Estamostentando fazer hidrantes que funcionem de verdade.

    Bem, isso deve ser a coisa mais besta que j ouvi disse ela, e medispensou com um gesto.

    * * *

    Amo o cheiro de cpias recm-tiradas. Mame diz que tenho atrao porcheiros perigosos, e sempre d como exemplo o fato de eu adorar ficar nomeio da nuvem quente dos exaustores das lavanderias a seco e respirarfundo vrias vezes. H algo parecido com comida-que-no--comida nocheiro desses exaustores. Ela sempre me tira de perto e diz que temcerteza de que em dez anos descobriremos que aquilo causa doenashorrveis.

    Eu estava voltando para as escadas, inalando silenciosamente o cheirodos 32 projetos recm-copiados do sistema de guas da cidade de NovaYork, quando Marcus veio descendo, lendo um livro.

    Ei chamei, mas ele passou direto por mim, passou pela secretariae foi at o consultrio do dentista.

    De volta sala, distribu os projetos como o Sr. Tompkin havia pedido.Rasguei sem querer a folha de Julia entes de entregar a ela e a amasseium pouco, sem querer tambm. Alice Evans estava se contorcendo emsua cadeira, como se danasse a hula-hula. Revirei os olhos. No deestranhar que ela seja a nica aluna do sexto ano que precisa trazer umamuda de roupas extra para a escola.

  • C o is a s s qua is n o s a peg a m os

    Segundo Jimmy, h uma nota de dois dlares em circulao para cadadoze notas de um dlar.

    Mas as pessoas cam com elas disse ele, enquanto eu colocavameu casaco para ir at a loja. A lmpada que ca sobre a pia da sala dosfundos havia queimado, e Jimmy no tinha outra. As pessoas achamque as notas de dois dlares so especiais. por isso que no se v muitasdelas por a.

    , pensei. Pessoas como voc! Mas quei quieta, porque eu nodeveria saber o que ele guardava no cofrinho do Fred Flintstone.

    Mas eles odeiam essas notas na A&P. No h espao na caixaregistradora para as notas de dois dlares. Eles tm que tirar a bandeja eguard-las embaixo. E sempre esquecem que elas esto l. Por isso vocprecisa pedi-las.

    Certo falei. Vou pedir.

    * * *

    Annemarie estava atrs do balco usando seu avental, toda feliz. Algumascrianas da escola haviam entrado clientes pagantes e ela estavaescrevendo o nome delas com maionese nos sanduches antes de colocara parte de cima dos pes, cortados em um V perfeito. Colin estava aseu lado, fazendo a mesma coisa. Annemarie fez um gesto mechamando. Notei que ou ela estava com muito calor, ou estava usandomaquiagem.

    Vou perguntar ao Jimmy se podemos comer almndegas no almoo cochichou ela. J que amanh dia de Ao de Graas.

    timo respondi, embora no achasse aquelas almndegas muitomelhores que meu sanduche de queijo de sempre. Elas cavam ali napanela dia aps dia.

    Volto j disse a ela. Se algum pedir chocolate quente, digaque esperem por mim.

    * * *

    No havia nenhuma nota de dois dlares na A&P, e quando voltei paraa lanchonete do Jimmy com as lmpadas, as crianas tinham ido emborae Julia estava parada em frente ao balco de sanduches. Annemarie eColin j haviam comeado a preparar seus almoos. Imaginei que Jimmytinha negado as almndegas, porque eles estavam pegando queijo.