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1 = AMARGO Marcio Sgreccia

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AMARGO Marcio Sgreccia

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“Amargo é meu destino. Tem o travor do fel”. Nunca conhecera a misericórdia. Agora só pensava em morrer. Grossas lágrimas escorriam pelo seu rosto enrugado. Envelhecida pelo tempo, tinha os cabelos brancos emoldurando a face dura. Esculpira sua imagem numa pedra. Olhava pela janela e via apenas o céu azul. Naquele momento, nenhuma nuvem. Distante, alguém usava uma furadeira. O som parecia um longo gemido. Os vincos do seu rosto foram feitos assim. Como aquele som. Que de uma certa forma a irritava. Invadia o pequeno quarto. Local do seu longo infortúnio e penúria. A solidão inesperada. Conquistada dia-a-dia, uma guerra a ser vencida. Do lado da cama, uma pequena cômoda. Dentro da gaveta, alguns pertences. Objetos desnecessários. Como um espelho que ela não conseguia alcançar. Pedira para que o virassem. Não queria mais ver seus olhos. Não queria mais ver seu rosto. O céu não tinha mais cor. O azul não mais a interessava. Tentava olhar para si mesma. Era uma atitude estranha que a incomodava. Olhar-se. Desvestir sua alma. Uma tentativa inútil de renascimento. Sua vida não tinha mais sentido. Talvez nunca tivesse sentido. Abriram a porta. Uma senhora entrou com um sorriso no rosto. “Bom-dia, minha amiga. Vou fazer a oração. Posso?” Sua resposta veio evasiva. A senhora chegou mais perto, puxou a cadeira, sentou-se ao lado da cama. Arrumou o lençol e a colcha branca que a cobria. O cobertor estava dobrado ao pé da cama. “Quer que estenda o cobertor?” Ela acenou negativamente. “De madrugada fez um pouco de frio. O tempo muda a todo o momento. Vamos orar?” Ela cerrou os olhos. Respirou fundo. Como se dormisse ouviu as preces da visitante. Mecanicamente a visitante desfilou o rosário. Eternas ave-marias ininterruptas. Um hábito rotineiro. Que não a perturbava mais. As imagens que via eram mais um produto de sua mente. Divagava para que as horas passassem. Divagava para que as horas morressem. Era uma mulher acuada e paranóica. Seu corpo não obedece mais. Secou por dentro. Por fora, deixa de existir. Sem movimentos, ela é um objeto inerte. Conseguiu criar uma impressão. Não a realidade. A realidade era um paradoxo para a sua verdade. Desencadeia um processo de alucinação com imagens entortadas. Perde a noção da vida ambiental. Pode modificar tudo o tempo todo. Seu caminho cruzou o tempo, a memória, a imaginação, o comportamento humano. Seu caminho descruzou o tempo, a memória, as condições especiais do horror, o que é concernente ao mundo que ela representa. Não teve condições de

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modificá-lo. Algumas das imagens mais fortes, que sucedem ao longo de sua vida, foram apagadas. Sumiram num estalar de dedos. Deixaram de respirar. Foram sufocadas dentro de um saco plástico. Mãos bandidas. Quer sentir as mãos. Tocar-se. Perceber-se. Seu corpo é uma corrente silenciosa. Não tem certeza se o sangue continua a percorrê-lo. Não tem mais extremidades. Nem sensações. Exilou-se no próprio corpo. Desterrou partes dele. Gestos emigrantes partiram de um país desconhecido. Uma região que ignorou seus pedaços. Tornara-se sonolenta. Qualquer barulho a despertava. Quando acordada, sentia-se morta. Preferia dormir. Dormindo, podia sonhar. Nos sonhos era um ser livre. Seu corpo comandava todos os movimentos: andar, sentar, deitar, correr, dançar. Mas estava ali no quarto. Não por ela escolhido. Uma prisão de quatro paredes, uma porta quase sempre fechada e uma janela, sempre aberta. Lá fora, a prisão maior. Podia perceber isso. As pessoas, num ir e vir enlouquecido. Prisioneiras do tempo, do espaço, dos faróis, das horas, dos dias e das noites. Correndo com o tempo. Envelhecendo com o tempo. O que lhe chamava mais a atenção eram as paredes do quarto. Principalmente, um dos ângulos. Quantas vezes olhara para aquele canto. Até que descobriu a junção das duas paredes, formada pelas diagonais. Tinham lá sua beleza! Mesmo não sendo de livre e espontânea vontade, ficaria ali, naquele quarto. Até o fim dos seus dias. Qual a razão daquelas diagonais? Por que foram feitas assim? Uma sensação de acuamento causada na vida do ser humano. Um canto onde se nasce, deve desenvolver-se. Por fim, morrer. Descia-se o olhar para um metro abaixo, encontrava o pequeno guarda roupa. Um móvel velho, malfeito, escuro. Na verdade, um jazigo para o pouco de figurino que era ali guardado. Quem o teria feito? Ou melhor, talhado? Uma peça imutável. A não ser se lhe trocassem as roupas dentro dele. Dentro dele, o mofo, o abandono, a escuridão, o silêncio. O estático. Mesmo quando as portas são abertas, mostram um espelho embaçado. Revelando a sua cor, a sua pele, a poeira acumulada. Não podia sofrer nenhuma transformação. Dentro dele não se revela nenhum outro mundo. Longa letargia provocada num determinado momento de sua vida, um breve instante, perdera o equilíbrio. Arranhara o desastre. Magnetizou a morte inesperada. Sorrateira. Escondendo-se atrás de todos os biombos. Deixando neles o hálito frio. Cobrindo todos os móveis com o manto letal. Um gesto clássico. Inoportuno. De gelar. Provoca assombro e arrepios. Desliza-se pelas paredes do quarto. Toca suavemente a madeira do guarda-roupa. Toma contato com a solidão. Olha-se no espelho virado dentro da gaveta da cômoda. Contempla-se. A seguir, atinge com um golpe, o rosto enrugado. Enfermiço. Ela abre os olhos. Relacionam-se. Ambas estão confinadas. Ela está com medo. Não consegue forças para gritar.

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Encena uma luta. O azul do céu lá fora a escavar o mundo. Há um sussurro na imensidão. A noite desce igualando sombras e luzes. Uma gota de orvalho cai sobre uma folha de lírio. Outras chegarão. Borrifadas de sereno. A temperatura está amena. Uma teia de aranha ficou pronta. A seguir, uma mariposa incauta e desatenta choca-se contra fios invisíveis. A implacável caçadora corre para saber quem acabou de chegar. Envolve delicadamente sua presa com mechas de seda. Um pouco distante, a grande planície alonga-se até os rochedos. A planície está gravemente ferida. Esta noite haverá lágrimas. A lua surgiu detrás das pedras escuras. Perto da estrada ressequida um cão uiva de dor. Com a manhã terminará sua lenta agonia. O sol sugará sua vida. Ela deitara-se mais cedo, já que ninguém partilhava suas palavras. Mendigara sons o dia inteiro. Sentia-se cansada. A cabeça vazia. O sono perturbador pesava-lhe as pálpebras. Dormiu logo, envolta em lençóis encardidos. Sonhara novamente com um mago. Ele abria sua boca. Colocava um cristal sobre a língua. De onde só se via a noite, ele mergulhava seus olhos brilhantes. Com uma voz semelhante a tempestades, repetiu: “A vida de seu pai está por um fio”. Acordou assustada. Com o rosto molhado de suor. Se estivesse dormindo atravessaria as planícies. E os desertos. Sentiu no quarto o odor de folhas maceradas de hera. Um insolúvel enigma. Deu início à seleção de cenas em sua mente. O som vinha mais forte. Impassível. Descontrolado. Como a trilha sonora de um filme. Só conseguia ouvir o som. As imagens estavam em negativo. Poderiam ser reveladas com o tempo. Com um esforço supremo de memória. Ou viriam como uma moldura envernizada. Ou desfocadas. Desgastadas como o próprio tempo. Sem provocar nenhuma sensação. Sendo apagada a seguir. Submersa a cada tentativa de coragem. De se fazer descobertas surpreendentes. Procura

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enfrentar um tempo perdido em busca das memórias do corpo. Tentou. Rastreou. Até despertar a inquietação sem tréguas do desejo. Inoculado na alma. Escondido entre cheiros e as cortinas do quarto. Ele era um ano mais moço. Pouca importância. Afinal, eram adolescentes. Ele chegou no horário combinado. Olham-se. Abraçam-se. E despedem-se para sempre. Foi sua primeira história de amor. Sem palavras. Nenhum lamento. Nem conseguia imaginar como tudo aconteceu. Não lhe fora dada esta chance. O amor, ele o levou junto, para sempre. Uma emoção genuína, pura bobagem do passado. Sem nenhum momento de redenção, reviu a cena. Ele nem sequer olhou para trás. Havia uma delicadeza no seu andar. Uma versão fugidia. Ousou guardá-la na retina. Não conseguiu controlar os sentimentos. Lágrimas escapam dos olhos. Lágrimas quentes, vivas. Não chora de tristeza. Chora o esquecimento. Foi até à igreja, vazia naquela hora. Sentou-se num dos bancos. Olhou em volta. Um silêncio sepulcral e incômodo. Nenhum estímulo para nada. Não abriu a boca para repetir as monótonas orações. A boca estava seca. Sem saliva. Os olhares diagonais das estátuas vigiavam-na. Imobilizados. Ao entrar na igreja, tentava, inconscientemente, preservar a imagem do momento que vivia. No fundo da nave, perto do altar de São Sebastião, ficava o espaço reservado para as velas. Nunca conseguira compreender porque as pessoas cumpriam tais promessas. O fogo era o milagre. Hipnótico. Pulsante. Acendeu um toco de vela apagada no meio da cera branca derretida. Contemplou um longo tempo a chama. Jurou vingança eterna. As paredes do quarto e o interior do se corpo parecem paralisados no tempo. A cor branca chega a lhe doer. Percebe que já não mexe mais as sobrancelhas quando quer expressar o que a desagrada. Nem aperta muito os olhos. Sente a alma engessada. Com o passar dos dias e noites sem fim, aprendeu a sonhar um mundo diferente. Docemente consternada, imagina ver árvores, pequenos bosques. Se chove, conta as gotas de chuva batendo na vidraça. Se o vento chega anunciando uma tempestade, ela o silencia. Reencontrou o abandono. A tristeza não a imobiliza. Ela a inventa. O exílio é o roteiro de uma vida. Pode ser qualquer coisa imaginada. Deitada naquela cama dentro de um quarto tumular, o passo seguinte é o desconhecido. Ele está à sua espreita. Convida-a para um devaneio. Ela vagueia pelas ruas e campos. Todos os encontros são fortuitos. Há sempre uma vaga idéia. É empurrada para o constrangimento. Tem pressa de chegar a um lugar. Com uma percepção diferente do tempo. Podia ser uma data, como exemplo. Qualquer coisa pode ser um sinal. Um

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dado importante. Com luz e identidade própria. Nem tudo se encaixa. E pode ser desviado. À sua frente, uma rua que desce. Ela não sabe para onde está indo. Nunca estivera lá. Ela precisa continuar. Descer. Desce correndo. É um desafio. São as mesmas obsessões. Um confronto inevitável. Desespera. Tenta se proteger. Não é esse o caminho válido. Está no seu minúsculo quarto, com uma janela sem cortinas. Na sala, discutem o tempo todo. As relações familiares estão desgastadas. Não se olham mais. Um olhar ferino é uma canção de gesta da hostilidade. Seus heróis não são heróis. Nasceram de uma tática combinada. Tem cheiro de guerra nesta casa. De pessoas feridas. Sem possibilidades de redenção. Há um embate. Alguém grita e chora. Ela não quer ouvir mais nada. Para ela não havia separação. Nem vida nem morte. Era tudo a mesma coisa. Armou seu balanço no galho de uma seringueira, na beira do abismo. O seu exorcismo começava. Lá de cima. Seu nicho. Vendo tudo muito pequeno lá no fundo. Como formigas e árvores anãs. A atração foi imediata. Incômoda, só quando olhava muito ao inclinar o corpo. Sentia tonteira, mas nenhum medo. Somente dela o lugar dos desejos. De sonhos. O futuro. Caso houvesse mesmo um futuro. O ir e vir de uma corda e um pedaço de tábua amarrada. Entre eles, a impossibilidade? Se seu corpo flutuava no ar, numa fração de segundos. Imaginou se soltando um dia. Fazendo dos braços um forte par de asas. A corda poderia apodrecer. Alguém poderia cortá-la. Ou afrouxar-lhe o nó. Riu de tudo isso. Sua vida era uma vida sem importância. Um quase nada. Sentimentos do resto. Uma vida sem contra-regras. Sem contracenar. Sem merecimentos. Sem festa de aniversário. Quanta inveja do bolo com velas acesas. Tanto quanto o tempo de anos vividos. Além do vestido de babados. Ela mencionou tocar. Impedidas pelas duas, sua tia e sua prima-irmã, a aniversariante. Saiu da festa porque não lhe ofereceram nem um pedaço de bolo. Viu tudo do peitoril da janela, reprimida do lado de fora da casa. Uma festa com sorrisos forçados. Doces açucarados. Sem muitas falas. A mesma emoção trancada. Cantam os parabéns para você bem rápido. Fora do tom. Precisam terminar depressa. Porque era mais uma festa desafinada no interior de Minas. Eles haviam terminado, ela continuou a cantar e a bater palmas. Todos olharam na sua direção. As meninas riram com uma mão na boca. Ela saiu da janela. Sem presentes no Natal, lá vinha outro castigo. Mas aquele cheiro de mato era seu. Aspirava-o até o âmago do peito. O fundo da grota

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guardava os segredos. Precisava descer lá um dia. Um olhar mais demorado. A exploração do olhar, uma obsessão. Ao examinar o mundo do alto, ia comparando as coisas. De como tirar proveito delas. Das coisas vividas e sofridas. Quem sabe, das coisas invisíveis. Ela tinha treze para quatorze anos. Mais ou menos. Alguma coisa como tempo, ano, mês ligados a datas acaba se perdendo. Uma nuvem invade sua mente. Mas era uma noite clara, com estrelas e fazia calor. Depois que todos foram se deitar, ela abriu a porta do quarto, no fundo da cozinha. Com o quarto fechado, era insuportável o calor. Vestiu sua camisola feita de saca de açúcar. Todas suas roupas de baixo eram deste tecido grosseiro. Depois de alvejado, ficava branquinho. Lavado com sabão de pedra feito ali mesmo na fazenda, ficava um cheiro de coisa limpa. Dentro do pequeno baú onde guardava seus pertences, ela colocou folhas de canela. Durante a noite ela cheirava a canela. Suava um pouco. Ergueu a camisola, deixando as pernas de fora. Cochilava quando sentiu a mão dele sobre suas pernas. Acordou assustada. Ele levou a outra mão sobre sua boca, impedindo-a de gritar. Ela não sabia o que estava acontecendo. Nunca fora incomodada daquele jeito. Ele fechou a porta do quarto sem fazer nenhum barulho. Tirou a camisa. As botas. Desabotoou a braguilha. Ela sentiu o cheiro de cachaça exalando do corpo dele. Do suor dele. Ele ajoelhou-se no chão e ergueu todo o vestido. Com a mão foi alisando suas pernas, as cochas, a virilha, a vagina. Com um dedo, penetrou dentro dela, friccionando-lhe o clitóris. Assustada, sem poder reagir, escondeu o rosto entre as mãos. Emitiu um soluço, com a respiração tensa, apavorada. Ele aproximou seu rosto do rosto dela. Tirou-lhe a mão, beijou-lhe a orelha, o pescoço, o rosto, sufocando-a com seus lábios. A barba crescida incomodava sua pele. Enquanto continuava beijando, uma das mãos buscou os seios que começavam a crescer. Depois, suas mãos apalpavam suas nádegas, o sexo. Ela foi perdendo a noção da realidade. Sentia-se prisioneira, como ela fazia com as borboletas de sua coleção. Não podia gritar, não podia correr, não podia chorar. Ele desceu as calças, a cueca e tocou seu membro enrijecido nas suas cochas. O movimento constante do pesado corpo dele sobre o seu, ondulando-se sobre ela, sem saber o que deveria fazer. Pela primeira vez ela ouviu alguém sussurrar no seu ouvido: “Minha linda menina!” A seguir, ele rasgou sua camisola, deixando-a nua. Beijou-lhe os seios, o ventre e o sexo. Sua

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língua alisava sua vagina e ela teve seu primeiro orgasmo. Demorado. Mais do que um gemido. Um lamento. Ele gostou do que ouviu. Continuou sugando-lhe o sexo. Parecia que seus lábios iriam engolir seu sexo. Ele foi subindo com sua língua sobre ela até forçá-la a abrir as pernas. Foi num ímpeto. Ela gritou de dor. Ele a penetrou de uma só vez, arrebentando-a por dentro. Com estocadas violentas de suas nádegas, ele foi triturando seu corpo, esmiuçando-lhe as entranhas, escavando com seus pênis enorme a dor mais terrível deste mundo. Com uma das mãos enormes, segurava-lhe a nádegas e as empurrava contra si. Beijando-lhe a boca, os olhos, os cabelos, as orelhas, ofegante, ele gozou. Urrou de prazer e contentamento. Parecia não parar mais. O esperma saia pelas bordas dos grandes lábios. Ele estava ofegante, deliciado. Continuou com o pênis dentro dela, unindo-se ao seu desespero e à sensação de prazer. Com o corpo molhado de suor pelo esforço, virou-se de lado, depois ficou de costa, arrumando-a sobre ele. Ela ergueu o corpo, ele a segurou pelos braços com firmeza. Ele recomeçou os movimentos. Ela teve outro orgasmo. Mais outro. “Isso, isso, repetia ele, isso, isso, isso”. A dor misturada ao prazer era uma sensação diferente. Estonteante. Ela estava zonza. Cansada. Com um urro abafado ele gozou novamente. Estava desesperado de prazer. Contaminado pela sensação. Dominado pela presa dominada. Retirou-a de cima dele. Ela sentiu o cheiro acre do esperma escorrendo do seu corpo. Misturado ao esperma, sangue. Toda a região genital estava muito dolorida e machucada. Não tinha mais força para nada. Virara uma boneca de pano nas mãos do tio. Um homem de meia idade, solteiro, calado. Às vezes, ria sozinho. Outra, isolava-se do mundo. Escolhia um cavalo e saia cavalgando pelo mundo afora. Depois de dias, voltava, sujo, cansado, faminto. Nestes dias, parecia transtornado. Diziam que era perturbado. Nascera assim, deste jeito. Era a sina dele. Nada poderia mudar. Nem promessas, missas, jejuns, velas acesas, terços e novenas. Diziam também que tinha um espírito do mal dentro dele. Que ninguém conseguiu tirar. Quando trabalhava, era como um touro. Quando estava lunático, brigava com todo mundo. Certa vez quebrou o cabo de uma enxada de um só golpe. Jogou a enxada longe. Ele retirou o corpo dela que estava sobre si. Agarrou-a com seus braços fortes, apertando-a. Dormiu algumas horas. Ela tentou esconder sua tristeza. Lágrimas brotaram dos olhos. Soluçou baixinho. Nesta hora gostaria de ir para o colo da mãe. Que a protegeria com um abraço carinhoso. Não sabia quem era sua mãe. Nunca soube dela, se tinha ido embora, se tinha sumido para um outro lugar, se tinha morrido. Chamava os tios de pai e mãe. Só isso. Depois de um tempo, ele acordou. Exalando um cheiro insuportável

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da boca, beijou-a. Depois foi beijando-a até o sexo. Lambeu-lhe o sexo dolorido. Ela sentiu o membro dele enrijecer-se, procurando-a, sôfrego. Ele a penetrou novamente. Mas ela não sentiu mais nada. De madrugada, ela foi acordada aos solavancos. “Acorda, belezura, acorda.” Ela acordou assustada. Ele já estava vestido. Disse-lhe bem baixinho. “De noite, volto no mesmo horário. Deixa a porta encostada. Vou mostrar você lá na venda. Fiz uma aposta e eles vão saber que você é minha agora. Só minha.” Deu uma risada sarcástica. “Até mais”. Acariciou seus cabelos cheirando a suor e sabão de pedra. Ela levantou em seguida. Foi até a bica, tentou se lavar. Estava toda dolorida. Depois, voltou para o quarto. Nos lençóis, marcas de sangue e de um líquido branco. Leitoso. Tirou do baú o vestido de algodão, que só usava para as festas. Vestiu-o. Estava meio apertado na cintura. Saiu pela porta da cozinha. Alguma coisa lhe dizia que não seria recomendável ficar mais tempo naquela casa. Passou pelo curral. Algumas vacas estavam chegando para a ordenha. Olhou para a casa adormecida. Uma visão intolerável. Correu pela estrada em direção à cidade. Os chinelos de borracha que ganhara de presente no Natal empoeiravam-lhe os pés. Trágica caminhada. Sozinha. Desesperada. Sem saber para onde. Fugindo da experiência agônica. Está confusa, atordoada e cheia de mágoa. Uma profunda tristeza toma conta dos seus sentimentos. Se pudesse chorar. Mas as lágrimas não descem. Pensou em se jogar do abismo. Faltou-lhe ousadia. Ainda não consegue avaliar o que lhe acontecera. Sabe o que é pecado. O coração acelera uma emoção constrangedora. Não quer se lembrar de nada. De nada. Tem vontade de explodir. Almas errantes, alma errante. Quando anjos, santos e deuses nos abandonam. O inferno a esperava com suas chamas, bem ali, na curva da estrada. A velha avó a prevenira várias vezes com sua voz cruel. Não foi culpa sua. Não foi. Está agitada sem encontrar um argumento, sem nenhuma aspiração. Caminha contra o ritmo. Precisa apenas de coragem. O canto dos pássaros a incomoda. Não consegue silenciar a alma. Impiedosa manhã com o sol nascendo atrás do morro. Tentou expulsar a dor do espírito. Mas o chão estava gritando. Quando a mosca pousou na ponta do seu nariz, abriu os olhos. Pôde notá-la com mais detalhes. O pequeno inseto tocava as asas com as patas traseiras. Parecia limpá-las. Depois, andou sobre o nariz. Era um deslizar que fazia cócegas. Por último, caminhou pela testa, traçando desenhos coreográficos, como um Pollock. Ela cerrou os olhos. Queria sentir aquele toque. Deixava-se

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acariciar depois de tantos anos. A mosca vôou e saiu pela janela. Neste instante, entrou a enfermeira que lhe fazia a higiene. Retirou os lençóis. Dava-lhe um bom-dia com o mesmo sorriso. Tinha uma única máscara. Os gestos iguais, mecânicos, rápidos, práticos. Acostumada a uma rígida rotina, tornara-se um hábito manter os pacientes limpos e bem cuidados. Fazia parte do seu pensamento cristão. Exercia sua caridade. Tirou-lhe a fralda. Com um pano umedecido, banhou-lhe o corpo todo. A tepidez da toalha era um bálsamo. Refrescava-lhe o corpo, não mais dolorido nem mais cansado. Um corpo à espera. Longos estes dias após dias, este envelhecer cotidiano, enfraquecendo células, músculos e nervos. Rosto petrificado de uma esfinge no deserto. Ou, uma máscara do teatro grego. Tragédia, nem tanto de encanto, mas de sofrimento. O canto do cisne impossibilitado de seguir a rota da migração. Colombina fantasia transitando no salão, desfigurado e sem música. Ela se via, como se ela estivesse lá longe. Colocada à nova fralda, cobriu-a novamente. Perguntou, como sempre, se estava bem, se queria mudar a posição da cama. Ou, que a virasse de lado. Ela aquiesceu com um pequeno gesto de agradecimento. Seu refrão. Não gostava de permanecer muito tempo de lado. Sentia-se muito cansada. Os ombros comprimiam o coração. Mais precisamente, os ossos recobertos por uma camada de pele enrugada. Ela sabia que estava morta do pescoço para baixo. Não tinha mais membros. Só pedaços vivos. Seu corpo fragmentou-se de espelhos. Perdera o seu limite interior. Apenas a cabeça continuava a viver, a explorar sensações e lembranças. Tudo muito vago. Seu universo interior era formado de nervos e silêncios. De nenhuma alegria. Nem tampouco de tristeza. De memória. De mármore. De tempo esgarçado. De tempo sem passado, nem futuro. Conjuga o tempo ausente. Sem trajetória. Sem diálogos com o mundo. Sem perguntas. Também sem nenhuma resposta. O imponderável. Mas gostaria de saber onde morava, lá dentro. No escuro. No seu estágio esfacelado. Uma alma errante. A enfermeira saiu, carregando o material descartável em dois sacos plásticos. Ela não estava aqui nem lá. Não se sentia. Tocou em si mesma, mas a pele parecia insensível, indolor. Não sabia mais em que lugar sua alma se apoiava. Estava com medo. Cheia de medo. Encolheu-se toda. O medo paralisava os gestos, a mente. Encostada nos degraus da porta de entrada da igreja tentou dormir. Ouviu o relógio bater as horas. O tempo não passava. A noite estrelada e triste. Olhar as estrelas não era o bastante. Não lhe cobria a

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vergonha nem se prestava a coordenar seus pensamentos. O cansaço abraçou-a por completo. Como um manto pesado. Inútil descobrir-se. Dormiu assim. Sonhou com uma mulher do seu lado esquerdo, a uma distância de um metro. Disse-lhe que sempre estaria lá e que ela poderia chamá-la a qualquer momento. Seu nome era impronunciável. Mas os humanos a chamavam por um apelido: Morte. Ela não deveria temê-la, mas, pelo menos lhe ser cordial. Estava totalmente coberta por uma vestimenta negra. Não viu seu rosto nem suas mãos. Ao acordar cedo com alguém vestido de negro, ela deu um grito de pavor. Parecia a mesma imagem do sonho. A mulher tentou acalmá-la, após fazer o sinal da cruz várias vezes. Disse que vinha todas as manhãs abrir a igreja. Mais tarde, o padre celebraria a missa. Como ele era muito idoso, às vezes vinha, às vezes não. Ela distribuía a comunhão para os fiéis que desejavam comungar. Pegou-a pela mão e a fez entrar na igreja. Um cheiro de incenso e vela misturava-se ao mofo impregnado no teto e nas paredes manchadas. A mulher levou-a até à sacristia. Ela usou o banheiro. Depois lavou o rosto, molhando os cabelos. A mulher estendeu-lhe uma toalha branca. Ela enxugou as mãos e o rosto molhado. A mulher de preto enxugou-lhe os cabelos. Perguntou quem era. Ela ficou em silêncio. Não queria dizer nada. Não tinha nada para falar. A mulher começou arrumando os paramentos para a celebração da missa. Depois, tirou a toalha de seda pintada com cachos de uvas e ramas de trigo. Dobrou-a com cuidado. Guardou-a numa gaveta. Arrumou no galheteiro a água e o vinho. Colocou uma hóstia branca na patena que cobria o cálice folheado a ouro. Abriu o missal no dia do santo a ser lembrado nas orações. Fez uma genuflexão diante do sacrário e juntas, ocuparam o primeiro banco da igreja vazia. Ela tirou o rosário da bolsa e balbuciava os mantras. Ela sentou-se zonza e atordoada. Encostou sua cabeça no banco e cochilou. Na sua mente, as cenas da fazenda, o homem nu beijando-lhe os seios, os sexos, lágrimas brotando dos olhos, o esperma quente sobre o ventre, os gemidos de dor misturados aos de prazer, a cantilena do velho padre celebrando a missa, os poucos fiéis respondendo às mensagens vindas do altar, quatro velas acesas, o sino tocando na hora da transformação, o homem sobre ela gemendo, gozando e penetrando-a com os movimentos das nádegas, o padre vestido com uma bata vermelha, o sangue escorrendo pelo ventre e entre as pernas, misturando-se ao vinho, às marteladas dos pregos do Cristo na cruz, às estocadas dentro de si, o pênis vasculhando seu ventre, o padre erguendo o cálice dourado anunciando nele a dor cristalizada em palavras e mistérios gloriosos. Acordou quando a mulher puxou-a pela manga. A igreja já estava vazia e as velas apagadas. Disse que precisa trancar a igreja. Ela a seguiu. A mulher trancou a grande porta de madeira da entrada

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do templo, guardou a enorme chave de ferro e fez o último sinal da cruz. Cruzaram juntas o jardim e algumas ruas com calçamento de pedra. Chegaram a uma casa pintada de branco. Ela abriu o portão e entraram na casa. Foi o tempo da mulher ouvir um baque surdo. O corpo da menina amontoou-se no chão, entre os retalhos de tecidos e os manequins com vestidos alinhavados. Os quatro manequins sorriam o enigma do mundo. Neste instante, uma tempestade desabou com toda sua fúria. Raios e trovões rasgaram o céu coberto de nuvens escuras e pesado. A costureira correu para fechar as janelas da sala invadida pelo vento, espalhando jornais, revistas, retalhos e tecidos pelo chão. Talvez fosse a chegada daquela estranha menina. Na certa, um aviso, uma suspeita. Fechou as janelas, colocou as revistas sobre a cadeira. Foi até a cozinha fazer um pouco de café. A menina estava dormindo no pequeno quarto vizinho ao seu. Era o quarto de prova, onde as freguesas experimentavam os modelos a serem costurados e terminados. Pensou um pouco em tudo o que estava acontecendo. Enquanto a água fervia na chaleira, foi ver novamente a menina. Cobriu-a com uma manta cerzida com retalhos das sobras de tecidos. Um fio lacrimoso escorria pelo canto dos olhos. Com a toalha, enxugou-lhe o rosto. Todos estes momentos tristes se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Tinha certeza. O batente da janela emoldurava o céu. Um dia luminoso e claro. Distante dali, muito longe, além do infinito, as luzes dos anéis de Saturno misturavam-se. Estrelas famintas apostavam uma corrida pelo suicídio. Uma nuvem de fumaça eclodiu após a fulminante colisão. Io, a lua de Júpiter, iniciava sua dança da morte. A nebulosa próxima de Antares explodiu em milhares de faíscas douradas. O mais novo cometa com sua gigantesca cauda iridiscente a vasculhar como um andarilho a dimensão angustiante, sem começo nem fim. Ele está distante de nós como uma ironia do criador. Nossa sordidez também perambula a ponto de nos ignorarmos a nós mesmos. Nem mesmo uma tentativa. O significado mais intenso e mais profundo é o mistério da grande soberana do mundo que sempre caminha, anda, percorre sua rota anelada e nunca se cansa. Mas onde ela habita? Escondida, ela é uma sobrevivente. Desolada, mergulha dentro de si, descobre sua jornada sem destino nem futuro. Um olhar que perambula às cegas. Sem se abater, sem perder a força de viver. E se você perguntar: “Ei, como se chama isto?” Penetramos no meio de formações vegetais quase alucinadas. Paisagens de sonhos. Todas as forças

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desenfreadas da humanidade imperam ali. Marcam encontro. Velha como o tempo. Sua cabeça recoberta de cabelos frios. Nada lhe pertence. Nem sua beleza roubada de todas as mulheres. Seu andar adormece os mortos. Tudo nela é frio como um sopro de vento gelado. Ela pode ser um anjo que ilumina. Queima e regenera. Tranqüilas estrelas das constelações de Virgo e Capricórnio! Um cometa errante e ensangüentado acorrendo das profundezas celestes. Tudo ao seu redor empalidece. A sombra da morte recua sua face e esconde as mãos recobertas de pedras preciosas. Ai de ti, ignorância, ai de ti! O fim dessa prolongada ausência e a tempestuosa lembrança, ainda uma marca no seu coração entristecido, acabaria fazendo parte do passado. Hoje, lá dentro, tocando as marcas das cicatrizes, sua história a fazia rir. Contemplava o passado como dias que se foram. Não mais parte da sua vida. Esquecer tudo, aos poucos. Como são esquecidos os minutos, o tempo, o olhar distante e perdido. O que contava hoje era o presente. Estar presente. Estar no presente. Estar inteira, mesmo sabendo que sua vida não podia mais chorar seu amor infeliz, ela mesma. Ela, sua imagem diante de um espelho, sua duplicidade. Duas vidas diferentes, a real e a imaginada, ambas, refletidas. Aparições repentinas. Portas abertas que apontavam para uma estrada. Uma estrada que passava por esta porta. Um caminho sem começo e que não sabia onde terminava. O ponto de saturação da esperança. Modulações não resolvidas dos sons que sua alma subverteu. Ferindo sagrados princípios do repouso e do equilíbrio. A morte, sua indisfarçada presença, companheira inseparável, com seu toque inesperado de serenidade, estava ali, novamente. Como sempre, com seu longo vestido negro. As mãos secas e magras, revestidas com um par de luvas de seda. O fluxo constante do seu hálito gelado sugere a posse de inusitadas supresas. Mas nada acontece de verdade. Uma longa espera. O tempo que se fizer necessário. As asas do destino são como as asas feitas por sua avó. Armação de arame, papel crepom, penas cortadas, formatadas com o dedo, desenhando um bojo e coladas, uma sobreposta à outra. Fileiras de penas postiças. Invenções para consumir a diletante imaginação na hora de coroar a Virgem. Um coro de crianças cantando “Com minha mãe estarei”. Velas acesas misturadas à fumaça do turíbulo, balançando brasas acesas. Cheiro perfumado de incenso de igreja. Pinturas de anjos com caras de crianças falecidas. Estão todas ali, olhando para todos os lados da nave.

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Retocadas, com os lábios carmesins, as faces rosadas, os cabelos anelados. Nenhuma ilusão. Infindavelmente e, para sempre, consagram a mais elevada alegria. A morte contempla o que elas são. Naquela noite, teve um sonho estranho. Uma mulher desconhecida chega até ela, toma-lhe a mão, coloca-a sobre a própria testa. Dali, saiu uma serpente negra. A mulher esmaga a serpente com os pés. Na cabeça traz a lua, enfeitada de estrelas. A soberana do mundo, que sempre caminha, anda pelos ares e nunca se cansa. Seus cabelos frios, mortiços, cobrem-lhe os ombros e não mais lhe pertencem. Velha como o tempo, esconde seus despojos no vestido roto que foi belo um dia. Tudo o que toca acaba salpicado de gelo. E aquele local nunca mais se aquece. Ela virá, implacável, roçar o mato seco ao redor da sua alma, perto do coração. A cidade só tem duas ruas. Uma, calçada de pedras da região. A outra, de terra. Fileiras de casas com a mesma fachada contornam, face a face, a rua de pedra. A outra, apenas, de um lado. Só tem uma pequena venda. Na praça principal, onde fica a igreja, várias casas têm uma árvore plantada perto das fachadas. Paisagens calcinadas pelas pinturas de branco das paredes. Sem vontade de nada. Dentro das janelas, sombras aveludadas e escondidas. Poucas palavras, algumas canções antigas, um recitar de sons baixos. Mistérios dolorosos. Na venda, comercializam açúcar mascavo e rapadura. À noite, os homens se reúnem para tomar cachaça. Conversam pouco. Falam do silêncio. Tudo está em permanente repouso. Uma estrada coberta de pó e pedras liga a cidade ao resto do mundo. A estrada começa no cemitério. Dizem que é a passagem da morte para a vida. Para o destino indeterminado. Coisas do incerto. De mundos instaurados. Quem for embora de lá, sem olhar para trás, se conseguir, conhecerá o futuro. Tem que ser num dia em que uma criança for enterrada ao amanhecer, logo que o sol sair. Dizem que esta estrada, em noite de lua cheia, vira uma serpente. Move-se como ela e mata sua fome material devorando quem por lá caminhar. Os incautos fazem o sinal da cruz. Os medrosos vivem atormentados. Dizem também que seu corpo, além da poeira e das pedras, reveste-se de nuvens e sua cabeça chega até o mar.

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Atrás da casa pintada de azul nas janelas ficava o quintal. Um pé de goiabeira e outro de mamão. Algumas margaridas amarelas cujas folhas acabavam sendo devoradas pelas três galinhas que lhe devoravam as folhas e os brotos. Mais ao fundo, fazendo meia com o muro, dois pequenos quartos. Ambos de alvenaria, pintados de cal. O sol brilhava na pintura, expandindo-a mais. A janela do quarto esquerdo estava aberta. A do lado direito permanecia fechada. Ela demorou em chegar até lá. Ficou a olhar as galinhas ciscando o chão meio gretado. Alguém varrera o local, recolhendo a terra solta até um canto do muro. A janela aberta chamava-a. Caminhou lentamente como se fosse invisível. Da janela, sentiu um cheiro de comida azeda. Foi até à janela. A única luz era a que entrava por aquela abertura. O quarto era pequeno. Uma cama e um pequeno baú. Na parede, um crucifixo e um quadro de Nossa Senhora Aparecida, emoldurado. Sentada sobre a cama, uma mulher bastante idosa, vestindo uma camisola de saco de algodão. Os cabelos brancos, lisos, escorriam pela cara e pelos ombros. Ela tinha um prato de macarronada sobre o colo. Pegava um punhado daqueles fios cozidos e os jogava pelo quarto. O baú estava recoberto com uma dúzia deles. Uma colcha de odores putrefatos e o encanto de uma renda justificando a sintonia de um desenho irregular. Um cenário plasticamente impressionante. A velha enrugada, com o nariz grande, o olhar paralisado, olhou para a janela no momento em que praticava outro encantamento. Seu gesto ficou paralisado no ar. Permaneceu assim, entre o gesto estático e o olhar incrédulo. Sua representação do mundo fixava-se dentro de uma sombra. A luz havia sido espantada e diluída à exaustão. A velha lançou um grito roufenho. Jogou o punhado de macarrão na direção da janela. O prato caiu no chão espalhando todo o resto da macarronada. O desencanto transformou-se em ódio. Uma ruína progressiva renasceu, insana e marcante. Começou um choro convulsivo, obedecendo ao mesmo gesto de impotência e tortura. Começou a arrancar fios de seu cabelo e a mastigá-los. O ir e vir de um brinquedo que não vai a lugar nenhum. A menina saiu da janela, mais do que enojada. Do lado, o outro quarto com a porta e a janela fechadas. E, entre os dois, um imenso vazio. Já é dezembro em meu silêncio. O tempo não consegue tomar conta do meu corpo. Trespassa-o. Aprendo a me ouvir mais. Quando veio arrumar o quarto, trocar a roupa de cama, a camareira ergueu o lençol branco no ar.

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Uma grande escultura branca era estendida, com dobras e movimentos. Ela permanecia abraçada a este desenho orgânico, desconhecendo-o. Chamava à existência aquilo que não conseguia ver. Só meus olhos estavam abertos. Sei que apenas meu espírito conhece a faculdade do refinamento. Não sei mais chorar como antigamente. Não consigo me expressar mais nada. Nem falar. Sei que é ele que fala enquanto me ensina onde não há distâncias nem fronteira. Certa vez, eu o ouvi nitidamente: “Deixar de ser uma paisagem”. Durante o dia, São João do Desterro é um povoado sonolento. À noite, cães e sombras encontram-se nas ruas. Ouço seus latidos. Alguns ganem e choram. As sombras são seres atormentados. Todos fogem delas. Cerram as portas e janelas, colocam cruzes de madeira e tranças de alho nas portas. Para proteção. Se conseguirem penetrar por uma fresta, levam a alma de alguém que lhes servirá de alimento. Corujas piam à caça de ratos e insetos. Há também pequenos e grandes silêncios nestas ruas desertas. São partes dos segredos da minha alma. Com os olhos presos nas vigas escuras do telhado, devasso minha mente. Quero rever meus pais. Uma lágrima sufocada pergunta por minha mãe. Onde será que eles estão agora? Ainda pensam em mim? Quando me doaram, não sei se foi por algum dinheiro, talvez um vestido usado, um chapéu sem mais serventia. Não há ruas da minha infância onde eu possa percorrê-las. Minha memória é um disfarce. Expandir-se como uma dor na correnteza do rio. Um apagar-se lentamente como chama desnecessária. Levanta e sem nada temer, abre a janela que faz um ruído seco. Faz calor. Não há vento esta noite, nenhuma brisa toca seu rosto. Olha para cima. “Meu Deus, está cheio de estrelas!” A curiosidade ainda pairava na edícula no fundo da casa. Ela emprestava um pouco de mistério. A voz lanhada de uma mulher vocalizava a manhã. Lá fora, fazia um pouco de frio, trazido pela névoa que cobria toda a baixada. Encostou seu ouvido à porta. A voz era pequena, e era uma tocante elegia para a morte. O tom lancinante apertando o coração, sufocando a alma. As

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palavras ininteligíveis, ecoavam fora do tempo, criando um certo clima de estranhamento. Às vezes, era o uivo de um animal, talvez um pássaro em fuga. Ela percebe que ali há um outro significado, diferente. Soube que é uma velha e que está morrendo. Que é cega. Se pudesse levar-lhe um pouco daquela névoa que lhe escapa das mãos! Quem sabe ela poderia descortinar as paisagens desoladas de São João do Desterro. Onde estas nuvens invisíveis e densas desapareciam? Ela não se deixa ver. É uma história antiga. Dizem que ela nascera muito feia. Os olhos caídos, o nariz muito grande, os poucos cabelos lisos escorridos pelos ombros, o corpo disforme, a mudez. Não falava, não chorava, não sorria. Até que, levada à escola, aprendera com os outros alunos a falar. Conseguiu escrever seu nome. Podia ler alguma coisa. Só não se acostumara com as brincadeiras desastrosas das outras crianças. Tão diferentes dela. Iniciadas na vida, com suas brincadeiras, bonecas, roupas. Imaginários. Olhara-se uma única vez num espelho. Tal foi o choque que o quebrou. Na casa, fazia todos os trabalhos pesados, como se fosse uma obrigação. Marginalizada desde pequena, rejeitada pelos irmãos, trancara-se no seu quarto. Passava horas fazendo crochet. Depois, desmanchava para aproveitar a mesma linha. Não aconteceu quase nada em sua vida. O nada foi seu ritual. Até que tomou uma decisão. Não queria mais ver nada. Nem as coisas do mundo. Nem seus irmãos, sua mãe, seu pai, a vaca que ordenhava, a tina vazia que precisava encher de água. Sua roupa maltrapilha de algodão barato. Chegava uma visita, coisa bastante rara, ela não era apresentada. Ficava encostada na parede, junto ao batente da porta. Até que a um sinal da mãe, ela se afastava. Um dia, imaginou montanhas. A primeira, coberta de uma espessa mata. Depois, outra, com plantações, outra, com caminhos e pedras. Podia-se ver o mundo lá do alto. Aprendera aquela música, vinda não sei de onde. Ouviram, acharam engraçados. Com o tempo, acostumaram com aquela cadência. Que não os incomodava em nada. Vivendo mais na escuridão da sua mente, ela adquiriu uma doença rara nos olhos, que a foi cegando, lentamente. Só ela sabia a causa. Seu sangue abrasava-lhe nas veias. Um dia, deixou de ver, quando ouviu pela última vez que apenas os belos deveriam viver. Apenas os belos. Os feios traziam este estigma na alma. Eram feios lá dentro deles. Pactuavam com seres demoníacos. Não poderiam freqüentar a igreja, nem sequer assistir à missa dos domingos. Também, naqueles seus andrajos, mesmo que tivessem sido lavados com sabão de pedra, feito com banha de porco. E cinzas.

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Neste dia ensolarado de junho, o sol ilumina parte do armário do meu quarto. Detalhe da porta avança como um quadro que se destaca do restante do móvel. Formas abstratas, desenhadas pela mão da natureza, multiplicam-se em tons que vão do amarelo ao marrom mais escuro. Onde a luz bate mais forte, aparece uma sombra escura, em declive até o chão. A madeira permanece com uma única tonalidade. Sem graça, incômoda, achatada, sem nenhuma importância. Aquela luz está relacionada com a árvore que este armário um dia chegou a ser. Uma árvore frondosa, com uma estranha junção de elementos entranhados na história do mundo. Certas coisas que podem ser ditas por palavras, certamente movimentaram a história deste móvel parcialmente iluminado. É aí que se faz pressentir algo que sempre esteve presente. Trata-se da vida. Ou, de uma de suas linguagens. Que hoje, não é vida nem é morte. Algo transitório, manipulado por centenas de mãos e ferramentas. Mudanças ocorridas da noite para o dia. Até a concretização final. O móvel exposto numa loja foi adquirido por algumas pessoas, repassado de lugar em lugar, abandonado. E está agora no meu quarto. Recebendo este milagre da vida que é o jorro de luz ocasional e temporário. Destas paredes ele não mais se separará. Permanece imóvel, encostado no meio de uma delas. Adiantando-se como uma guardiã. De quase nada, além da memória simultaneamente perdida. Faz parte de um cenário plasticamente impressionante. Com sua luz e sua sombra. É assim que ele representa o mundo. Se abrirmos uma de suas portas, nos vemos diante de um espelho. É aí que tudo pode começar. Há um desencanto na minha maneira de olhar. Estou num plano invertido. Pela minha mente transitam os integrantes da minha resistência. Meus pensamentos fogem de mim como o ar que exalo. São fugitivos seres. Furtivos, ora momentâneos. Sucumbiram à doença do meu cérebro. Que ainda luta e quer viver. Gostaria de ter à minha frente um vaso de flores. Quem sabe, margaridas brancas e amarelas. Ter a sensação de tocar a maciez de suas pétalas. O sol ilumina intensamente. Uma gota de suor escorre da minha testa. Sinto náuseas. Lá fora, há um terraço alcantilado. Uma paisagem verdejante, pessoas cuidando de outros pacientes sentados nos bancos, enfermeiras indo e vindo. Um jardineiro apara a grama. O cheiro de mato espalha-se no ar. Invade meu cérebro, minha mente oscila. Ajoelhada à soleira da porta de entrada, uma

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menina brinca com alguns seixos. É a cena mais marcante. Ninguém faz barulho. Todos estão imóveis. Estáticos. Compondo para uma foto. Do lado de fora do mundo, tudo é igual. Eterno e fugaz retorno de todas as coisas. Como o ar livre. As nuvens. Uma brisa. A chuva. E a passageira luz solar do meu quarto queimando meu silêncio. É inverno no meu corpo. Tudo é muito singelo naquela casa. Desde o pequeno portão de ferro da entrada do que eles chamam de jardim. As grades estão enferrujadas e necessitam de nova pintura. O jardim consiste de dois pés de roseira, um de cada lado da passagem de tijolos. Mato e capim cuidam de embelezar o restante espaço vazio. A sala tem um sofá recoberto de napa. Duas cadeiras juntas. Uma pequena mesa com pilhas de revistas de moda. Na parede em frente uma gravura representando o coração de Jesus, numa moldura de madeira, entalhada com desenhos mais claros. Coberta de verniz. Na outra porta, cerrada por uma cortina de cetim, é o quarto de costura. Duas máquinas, três cadeiras para empilhar moldes, tecidos, agulhas, linhas, tesouras, alfinetes, uma fita métrica. Espalhadas pelo chão, tiras de tecidos. Uma janela aberta dá para a rua sem nenhum movimento. Há poeira por todo canto. A rua é de terra batida, com pedregulhos. A rua é o norte e o sul. Não se pede nada em troca. De lá não se vai a lugar algum. Meu destino está traçado. Consiste em celebrar a imperfeição humana. Basta que me vejam. Olhem meus nervos, um feixe de fibras óticas. Cegas. Os cabelos brancos caem a cada dia como formas de despedida. Um lençol branco cobre meu corpo e repete a mesma cor das paredes. Meu corpo está pintado de branco, nas veias. Não tenho nem sinto os movimentos. Mais um outro ritual. O do meu rosto e das suas cicatrizes. A cada dia, rugas cortam minha pele, deixando sulcos bem mais profundos. Não tenho nenhuma marca registrada na alma. Meus olhos oscilam para os lados. Meu cérebro insiste em romper com a realidade, minha monocromática tragédia familiar. Ele é o mistificador de Delos. Vejo-o trazendo nas mãos um relógio renegando os marcadores, apóstolos do Templo. Rasteiam no ar formas de violência,

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desferindo golpes e sofrimentos. São elas minha cítara, técnica arcaica do meu êxtase. Suas cordas feridas sondam o que está do outro lado. Ela vinha todas as manhãs, no mesmo horário. Saía de madrugada de casa, trancava portas e janelas, apagava as luzes, colocava o cadeado no portão. Seguia pela rua escura e mal iluminada até o ponto do ônibus. Entrava no ônibus, sentava-se no lugar de sempre, olhava pela janela a tristeza do lugar. Depois de hora e meia, descia no terminal. Caminhava mais meia hora. Entrava no serviço no mesmo horário, sem se atrasar. Lia as dietas, preparava o desjejum. Servia as refeições em silêncio. Obedecia, simplesmente. Não falava com ninguém. Era permitido, mas ela não gostava. Bastava a si a sua dor. Entrou no quarto como de costume. Nesta manhã, ela trazia um mingau de maisena. Seria ela muda? Sentou-se numa cadeira ao lado da cama, ajeitou a bandeja com o prato, e com uma colher oferecia o alimento. Estava bom, morno, adocicado. Um gesto comum e, repetido, vezes e vezes. Um gesto de poder. Um gesto que embriagava. A embriaguez do poder. Uma pequena troca de favores. Eram iguais. Seres comuns à beira do abismo. Um olhar que não expressava sentimentos. Nem falava de seus temores, dúvidas, sofrimentos. Um olhar duro. Um olhar cronometrado. Um olhar que se esgotou. Um olhar que poderia estar diante do absoluto. Um ser devastado por uma paixão sem limites. Agora, sob controle. Graças ao desespero e o desconforto projetado em sua vida. O encontro consigo mesma ainda não foi marcado. Os dias são seus maiores obstáculos. É um olhar cego. Que antecipa seu calvário. Ao atravessar cada porta pode encontrar o caminho da libertação. Mas não é isso o que realmente quer. Ela é mais uma vítima da miséria e da falta de perspectiva. Alguém involucrado neste esquema social. Ela já sabe que não terá uma segunda chance. Existe uma relação de cumplicidade com o não. Que lhe aferrolha a alma. Nada vai funcionar daqui para frente. Nem sequer um convite. Existem elementos perturbadores e inquietantes rondando sua mente. Não é capaz de sentir dor. Não chora. A imperfeição humana é celebrada no seu caminho de ir e vir da cozinha para os quartos. Cada porta é seu último encontro. Parece-lhe confortável e previsível. Não questiona. Não investiga o que lhe interessa sobre a vida. O desafio está em sua sombra. Não vê muita diferença entre a noite e o dia. A contradição é fundamental para sua sobrevivência. Nunca se arrependeu por não falar de sua identidade.

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Apagou-se. Há lugares inacreditáveis em sua alma. Com um desfecho de impacto. À luz da ambivalência tentou investigar os limites do bem e do mal. Foi a várias igrejas, confessou com muitos padres. Tentou um médico espírita, depois um charlatão. Queria entender como tudo interagia em sua vida. Qual a razão do seu medo. De todas as discórdias. De todas as alegrias. Porque a dor e o sofrimento não se afastam do seu passado. Porque chorava sem parar e apanhava da sua mãe desesperada e impotente. Sem uma perspectiva de uma vida normal. Mal conseguiu freqüentar a escola. Tinha medo dos colegas, dos professores, do sino convidando para o recreio. Da hora do lanche. Imaginava que era de vidro por dentro. A qualquer hora, poderia se quebrar. Com a colher, recolheu os restos no fundo prato. Foi recusado. Ela colocou a colher ao lado do prato, sobre a bandeja. Levantou-se com um gesto premeditado. Arrastou a cadeira para o lado da cama, deixando-a no mesmo lugar em que estava antes. Segurou a bandeja com firmeza, suas mãos eram belas, os dedos longos. Ajeitou o avental e saiu do quarto. Sem fazer barulho com os sapatos. Ela flutuava. Adoro esse lugar. Pelo menos no começo. Quando podia me locomover com mais facilidade com as muletas. Gosto do silêncio. O vento nas árvores é a música dos deuses. Esta música da natureza me encanta. Na capela, um grupo de pessoas entoa a canção dos mortos. É a maneira de mostrar o último elo com os restos de quem não mais existe. O tempo os levou. Alguém usará luto por algo que morreu. Nada mais corta meu coração. Mesmo quando as palavras bastam por si e não mais se conhece o outro sentido delas. Tudo se acaba, num piscar de olhos. Aprendemos a correr atrás do que se perdeu. E esquecemos de gravar nossos silêncios. De ocultá-los dentro dos travesseiros. Sei que a morte não gosta de flores. Ela gosta de permanecer abraçada logo após se deliciar com o último alento. Gélida carícia. Ouço as carpideiras entoando seus gritos de dor que arrebentam a alma. A seguir, uma fila caminhará a passos vagarosos pela avenida arborizada. Caminham numa lenta agonia. Gostaria que meu féretro seguisse só, numa noite estrelada e de luar. Eu lido com a morte. A morte sabe lidar com o poder da vida. Juntos, trabalhamos a parte oculta da minha realidade. O que não pode ser revelado. Pensamentos e sonhos desaparecem. A morte é uma sensação doce e frágil. Impenetrável como uma pedra. Se estou apática, ela se apresenta alegre e vitalizante, como uma bailarina solta no salão, tomada pela música. Quando

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sou sutilmente tocada, conheço os limites da paixão. Tenho febres e pesadelos. Quase sempre, sou forçada a optar pelo ato de dormir e imagino fazer certas coisas, como caminhar livremente por uma rua. Obviamente eu estou dormindo. Por não dizer, adormecida. Mas ajo como se estivesse sonhando. Tudo é perigoso. Sobreviver é uma experiência que percorre caminhos e desafios. Minha vida pode se tornar um perfeito tríptico de Jeronimus Bosch. Em mim há passagens abruptas. Numa das mãos carrego céus e nuvens. Na outra, cenas do inferno. São paisagens invertidas. Quase alucinadas. Sem contornos. O esplendor último da beleza. Sinto seus efeitos em todas as células do meu corpo. Tudo o que imagino fazer nasce de um desejo. Onde tudo se mistura. Não há limites para uma paisagem. Uma paisagem não é só uma paisagem. Pode ser parte de um desejo seminal. De uma imagem ligando-se a outra imagem. Plenas de intolerâncias e impasses. Progressivamente delirantes. Iluminando áreas indefinidas da minha mente. Minha alma insere flores secas onde sinto certa tristeza. Se eu conseguisse tirar boas notas com a professora particular, ganharia dois presentes. Um vestido novo e uma sessão de cinema, no domingo. Esforcei-me ao máximo. Tinha dificuldades com números e a tabuada. Minha professora, dona Esmeralda, era uma senhora já aposentada. A vida inteira dedicara-se aos seus alunos. Mesmos idosos, continuavam sendo os seus alunos. Gostava de receber a visita deles. Algumas ex-alunas, agora avós, levam-lhe ramalhetes de flores, com alguns poemas, frases românticas, acrósticos com estrelas pulverizadas com purpurina. Dona Esmeralda recebia com um sorriso murcho no rosto coberto de rugas, o cabelo branco amarrado com uma fita vermelha, o vestido cobrindo-lhe os pés, com a mesma tira de renda engomada na gola e nos punhos. Ela era uma tradição. Fazia com que sua nova aluna lesse trechos do Antigo Testamento. Lá estavam todas as histórias do mundo. E as palavras tinham um valor único porque pertenciam ao livro sagrado. E, ela, sua única aluna, estava indo bem em português e na leitura. Precisava ser mais dedicada com os números. Os números estavam em toda parte. No corpo humano, imagine, tente contar os fios de cabelo, as

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folhas das árvores, as penas dos pássaros, a quantidade de trevos floridos no jardim, as milhares de estrelas. Lua e sol havia apenas um, portanto, era mais fácil. Uma maneira fácil, fácil, era contar os grãos de feijão quando os estivesse escolhendo, separando os grãos minguados dos bons, tirando pedaços de ramos misturados com grãos de areia. Um exercício fascinante, porque esses grãos eram uma dádiva de Deus. O vestido estava quase pronto. Experimentá-lo com os olhos fechados foi uma tortura. Queria vê-lo depois de pronto, depois da última prova, na hora de vestir para a sessão de cinema. Ouviu um barulho na rua. Foi até a janela e, por detrás da cortina, viu seu tio a cavalo. Na garupa, uma jovem vestida de noiva, com um buquê de flores murchas nas mãos, o olhar distante, o véu cobrindo a anca do animal. O gozado era que ela estava com o vestido levantado, com as pernas de fora. Ele, de roupa nova, paletó, uma gravata com o nó desapertado, um chapéu de abas viradas. Ele sentiu o olhar dela. Olhou para a janela mas não a viu. Ela sentiu o olhar do estuprador. Escondeu-se atrás da cortina, o coração batendo descompassado como o trotar do cavalo. Desapareceram na primeira esquina. Ela respirou fundo. Foi para seu quarto, deitou-se na cama, a cabeça tonta, pesada. A costureira percebeu algo no ar. Foi até o quarto e perguntou se ela estava bem. Ela disse que sim, só meio zonza. “Coisas de mulher”. “Estes sintomas são comuns nas meninas. Logo desaparecem quando o sangue descer”. Após um sono agitado, resolveu banhar-se. Ficou um bom tempo deixando a água lavar seu corpo e também refrescar sua alma. Depois, pegou uma folha de caderno, seu lápis e tentou alguma coisa. No princípio, nada. Ficou olhando para aquela folha vazia diante dos seus olhos. Escrever o quê? Na certa, sua professora iria confundi-la com uma tonta qualquer. De repente, sentiu-se motivada e escreveu, ainda com certa dificuldade, porque o pulso estava duro, os dedos pesados. Era verde, como a folha da laranjeira Suave como o perfume em botão Mais doce que o mel Em favos da colméia Rara delícia é olhar uma abelha Alcançar o néctar das flores Longas filas de esperanças De todas as maravilhas da natureza A pedra do seu nome há de trazer. Leu e releu. Ficou maravilhada com o que havia escrito. Na certa, não fora ela. Fora a mão divina ou, a mão de um poeta dirigindo sua mão. Guardou o acróstico. Era um presente para a professora, dona Esmeralda.

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Lá fora, a vida alegre e efêmera, plena de imaginação, colorida, vibrante. Aqui, o canto fúnebre. Neste exato momento, como acontece todos os dias, gostaria de ouvir uma música bela. Aquela que nos toca e favorece os silêncios. Creio que ninguém, a maioria, pensa que a música é um bálsamo. Refresca-nos por dentro. Abre-nos o contato. Neste recanto onde todos os hóspedes foram abandonados de uma certa forma, o estar aqui é o suficiente. Nada acontece além dos mesmos gestos e da repetição monótona dos dias. Do vazio das horas. Da impermanência do amor e do carinho. Há quanto tempo eu gostaria de receber um gesto de carinho. Um só. Um toque apenas. Além de um olhar sereno que não fosse responsável. Um sorriso matreiro e brincalhão. O ar da graça. Nada disto acontece. Seria exigir demais. Exagerar na imaginação. Sou um ser humano que os homens esqueceram. Fui transformada num farrapo. Uma peça inútil, que não se deve considerar. A penumbra é a minha luz interior. Será que o tempo se lembrará de mim? De como eu sou realmente? De como minhas mãos eram úteis no trato com as coisas? Estou fechada novamente, adequando-me ao passar rastejante do tempo. Vivo atrás da muralha dos meus medos, porque os anos passaram muito depressa. Quero o alvorecer mergulhada na paixão de estar viva, poder vestir-me, sorrir diante do espelho, escolher o sapato da moda, caminhar a esmo, ir atrás do desconhecido. Envelheci sem a volúpia, sem conhecer o êxtase de um impulso qualquer. Poucas vezes fiz meu coração explodir, colocando-me aos brados á qualquer manifestação de anarquia. Não conheci o espírito da minha época. Nada em mim modificou. Um gesto feito de um sopro, fluido e pulsante, a escorrer pelo corpo como se fosse natural. Não importa sua natureza, de onde vem. Para onde irá. Se é violento ou de uma paz ancestral. Este gesto que não vem. Que não chega nunca! Contei as horas, os minutos, os dias! Domingo chegou meio cinzento, ameaçando chuva. Minha madrinha avisara antes: “Se chover, não tem cinema”. “Mas, por quê?”

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“Porque, se chove, tem trovoada, raios, e a luz da cidade apaga. Fica tudo no escuro. Entendeu?” Afinal, deu apenas uma garoa lá pelas dez horas. Diante do espelho do guarda-roupa eu me via com o vestido novo sobre o meu corpo. Minha alegria tomava conta do meu corpo. Vinha não sei de onde. Estava em toda parte. Estava ali, eu podia senti-la grudada nas cortinas, no vidro das vidraças, na madeira da porta, no cheiro de qualquer coisa vindo do ar, nas nuvens, nos postes, nos fios elétricos, nos tijolos das casas, nas ruas, nas árvores, no pequeno pé de malva, meu Deus, nas minhas mãos! Vesti-me bem antes. Arrumei meu cabelo, ajeitei o laço de fita vermelho do vestido, calcei minhas meias soquete, o sapato apertava um pouquinho do lado direito. No bolso, uma folha de papel com o acróstico e um raminho de violetas colado com grude. Fomos para o cinema, passamos na casa de dona Esmeralda, sua filha recebeu o presente. Enfrentamos uma fila barulhenta e entramos no Cine Colorado. Um espaço enorme, com cadeiras e mais cadeiras que rangiam como uma música desafinada, toda vez que alguém sentava ou se movia. Quando as luzes foram apagadas, um barulho ensurdecedor de pés e mãos e gritos. Os números apareciam na tela, de 10 a 1, numa contagem regressiva. Todos repetiam em coro: 9,8,7....O título do filme eu já havia visto num cartaz pregado perto da bilheteria: Sangue e Areia. Os atores principais: Tyrone Power, Rita Hayworth e Linda Darnell. Um toureiro, segurando na mão esquerda uma capa vermelha. Erguendo-se nas pontas dos pés, levanta o braço direito. Com a espada tenta dominar o animal enfurecido. Olé! Estamos no intervalo para o almoço. Nestas poucas horas, procuro dormir um pouco. Habituei-me a isso. Às vezes, quando estou dormindo, lembro-me de fatos que me aconteceram. Acordo sobressaltada, porque não tenho mais tanta certeza. Aliás, nada mais é certeza para mim. Lembrei-me de uma frase que li de um lindo livro do meu amado Gide. Por um acaso ele me caiu nas mãos, por obra do destino. Nunca mais saiu da minha cabeceira. Li-o tantas vezes quanto o desejei. A frase é: “Não, meu céu não se escureceu por eu não tomar mais as lanternas por estrelas”. Sou como Ulisses. Estou acorrentada ao mastro do encantamento. Há um grande silêncio ao meu redor. Por um átimo, minha mente também silencia. Este silêncio é a minha marcha fúnebre. Uma composição sem notas escritas à mão, que evoca uma confusão de

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sentimentos entre acordes de um tom tumular. Vence o destino mais uma vez. Vence a falha trágica dos meus movimentos paralisados. Meus gestos, onde estão? Como poderei sentir novamente minha face? Quando estarei à mercê de ventos severos e cortantes? Dias de sol, fins de tarde a adormecer aprisionada por uma soturna sonolência, noites varadas pela lua cheia. O tempo é a simples contagem de um capricho. Estou com a sensação de frio interior que há na alma. Lembrei-me de minha madrinha quando estava triste a implorar clemência para seus santos de devoção. Ou, simplesmente, acendia uma vela para a Virgem. Com voz embargada, repetia várias vezes para a pequena imagem sorridente, dentro de um oratório de papelão, forrado de papel brilhante: “Concede-me um pequeno milagre e um ramo de flores vou lhe dar”. “Quem é você?”, ela perguntou para uma mulher estranha, parada diante da porta do quarto. “Sou do mundo dos mortos”. Sem prestar muita atenção na resposta da mulher, vagou pelo quarto, em todas as direções. Depois, caminhou ao redor da cama. Examinou seu próprio corpo deitado na cama, coberto pelos lençóis. Parecia que estava dormindo. Tocou em seu rosto riscado pelas rugas profundas. “Você é a sombra que nos habita?” “Não”, retrucou ela. Remexeu nos seus cabelos brancos e desgrenhados, tentou arrumá-los. “Como posso estar aqui, de pé, andando, se estou deitada na cama?” “Lá está apenas seu corpo. Você não é o seu corpo”. “Isto quer dizer que não estou morta?” “Ainda não. Você vive como todos os seres humanos vivem”. “É um sonho então?” “Não. Você dorme mas não é um sonho. É real. Pode caminhar, sair do quarto, ir aonde quiser. Quase tudo lhe é permitido fazer”. Chegou perto da mulher, examinou-a. Seus olhos eram claros, com muita luminosidade. Os gestos leves, delicados. O rosto suave, sem marcas. Os cabelos brancos, caindo-lhe nos ombros. “Sabe o que eu gostaria de fazer agora? De tricotar.” “Da próxima vez, vou trazer agulhas e lã”. “Da próxima vez vou me lembrar do que está acontecendo aqui?” “Ainda não”. “Ah! Como é bom tocar o chão, as paredes, ir até a janela e ver o mundo”. “Você não pode ser impiedosa por ser ainda incapaz de alcançar a memória do seu tempo”. Ela foi até a janela, ansiosa por olhar o jardim. Sentia-se convalescente. Estava mudada. Talvez

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pronta para morrer. Um arremedo de sorriso repuxou-lhe os traços fincados do rosto. Ela estava cheia de esperança. “Acho que é primavera, não é? Sinto o perfume das flores exalando no ar”. Voltou-se para a mulher. “Qual é o seu nome?” “Rosário”, respondeu. “Amanhã podemos caminhar juntas pelo jardim?”. “Sim, se você quiser”. Sentiu-se comovida. Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Tocou nelas e uma gota de sal cristalizado caiu do seu dedo. Ficou sem dizer nada. Com o olhar voltado para a janela, amplamente aberta, divisou o céu azul. “Hoje o dia está mais luminoso do que ontem”. Rosário esteve em silêncio por algum tempo. Parecia uma eternidade quando respondeu: “Ontem será mais luminoso que amanhã”. Na saída do cinema, eu reparei que quase todas as meninas e moças usavam modelos parecidos. Minha madrinha varou madrugadas costurando, corrigindo, cortando vestidos. Eles seriam usados para a estréia do filme. A pintura dos lábios, dos olhos, o mesmo penteado, a tentativa inútil de olhar, de manter aquele olhar enigmático e sedutor. Em cada uma delas o mesmo sonho. De repetir e repetir a falsa representação de uma imagem refletida gigantesca na tela. Rita Hayworth é uma deslumbrante obsessão. É quase uma doença, uma tortura de se ver diante de todos os espelhos. Quando toca uma guitarra e ouvimos apenas a voz, deixou-nos perplexas. Perguntaram-me se eu gostei do filme. Respondi que gostara mais do momento exato em que os touros eram enlouquecidos e mortos. Um belo filme. Fiquei impressionada com a história de Juan, na pele do lindo Tyrone Power. Um toureiro determinado e que sonha em ser o mais famoso “el matador” de toda a Espanha. Torna-se arrogante e sua ambição o leva à morte. Como os animais negros, soberbamente assassinados num balé, uma mágica evocação da morte. A morte gosta de multidões e flores. Em ambas, havia o sentimento de solidão e exílio. Ultrapassava a fronteira natural da vida. Rosário acrescentou: “Vivemos o tempo das horas desiguais”. Paroxismos corporais na hora de se fazer um gesto, ousar uma aproximação,

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um deslizar pelo chão como se arrastassem pesadamente a cauda do vestido, o roçar intermitente do tecido contra o piso, a narrativa de uma ausência, como se elas momentaneamente olhassem para trás e, nesse momento, foram transformadas em estátuas de sal. E de abandono estético. “Eu sou uma pessoa que você não conhece”. “Minha alma errante esta à procura de algum lugar”. “Sinto dor na terra”. “ A vida comum ficou para trás, como um trapo velho, um vestido a ser remendado”. “Você não mais precisa dele”. “ Ele apenas trará alguma espécie de recordação. Um momento de alegria ou de tristeza. Nada mais”. “ Ainda não tenho certeza do que está me esperando”. “ Não importa. A única certeza está no quarto ao lado, a morte. Ela está `a sua espreita. A qualquer momento, ela pode entrar e dar-lhe as boas-vindas. Ela a acolherá em seus braços, e juntas, caminharão por um bom tempo”. “ Como é a morte?” “Ela está em todos os lugares, porque em todos os lugares está o nosso pensamento. A morte é como um pensamento. Ela se revela com seus focos luminosos, como as luzes de um carro, à noite, em alta velocidade pela estrada e que nos ofusca, quando cruzamos com ela. Se olharmos pelo retrovisor, ela pode estar bem atrás, ou do nosso lado, seguindo-nos como uma sombra paralela. Pode ir e voltar, aparecer e desaparecer. Pouco importa o que está por nos acontecer. Ela chega, como uma face gloriosa. Permanece por um bom tempo, escutando os sons da nossa vida, na respiração que vai aos poucos, desaparecendo e que ela guarda num frasco. Ela guarda nele a nossa vida. Nossos últimos momentos. Nosso último olhar. Você já teve a ocasião de perceber este último olhar?”. A notícia alastrou pela cidade. Um grave acidente na estrada provocado por um caminhão de carga. Na curva do Desterro, um caminhão bateu de frente com os dois carros dos Meireles. Disseram que não houve sobreviventes. Um dos carros pegou fogo e os velhos morreram carbonizados. A cidade inteira correu para lá. Meu coração saía pela boca. Meu corpo todo tremia. No quarto do fundo, a cega gritou o mais doloroso grito de dor que ouvi na minha vida. Aquele grito ecoou na minha alma. Invadiu meu corpo. Eu andava de lá para cá dentro da casa sem saber o que fazer. Minha madrinha saíra à cata de maiores informações. Quando voltou, estava lívida, com um olhar diferente. Falou sobre a tragédia: “Não sobrou ninguém”. Depois de um suspiro

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profundo, que pareceu tentar aliviá-la de um peso na alma, como se carregasse a culpa na fronte, balbuciou: “Um homem que carpia perto da estrada viu o acidente. O caminhão bateu de frente com o primeiro carro, não dando chances para o segundo, que vinha logo atrás. Ele estava cuidando do mato ao redor das plantações quando ouviu um tremendo estrondo. Olhou para a estrada e viu uma montanha de ferro retorcido pegando fogo. Não deu para salvar ninguém. Foi o que ele contou”. Enquanto eu a olhava estupefata, desabafou: “A fazenda dos Meireles é sua agora”. Foi para a cozinha, tomou uma xícara de café, trancou-se no quarto. Saiu com um vestido novo, o mais bonito. Disse que tinha questões a tratar com o advogado. Quando retornou com um sorriso vitorioso, trocou de roupa. Ia dar uma passada no velório. Implorei para ir também. Negou-me, dizendo que melhor não, para evitar comentários. “Nem no enterro deles?” “Nem no enterro”. Ela foi sozinha. Corri até meu quarto. Atrás da porta, eu dependurara um calendário. Marquei a data. Era uma quarta-feira. Rosário cruzou os braços em cruz e murmurou solenemente: “Na quarta-feira, dia favorável à alta ciência, a roupa será verde, ou de um pano de reflexo de cores; o colar será de pérolas de vidro oco, contendo mercúrio; os perfumes serão o benjoim, a noz moscada e o estoraque; as flores, o narciso, o lírio, a mercurial, a fumaria e a mangerona; a pedra preciosa será a ágata”. Descruzou os braços e fez uma vênia nas quatro direções. A seguir, Rosário caminhou sobre o quarto. Eu diria que ela fazia o mesmo movimento de ir e vir com os pés sem sair do lugar. Mas parecia caminhar em todas as direções. “Vivo mergulhada entre a vida do espírito e a do corpo. Há uma brecha, um hiato. Estou ali. Perene, a flutuar”. Desviei minha atenção dos seus pés e a olhei nos olhos. Eles brilhavam como duas estrelas. Pareciam deformados pela luz que deles emergia. Tudo a sua volta, com este olhar, tornava-se um amálgama de objetos sem nenhuma utilidade. Meu guarda-roupa assumia uma conotação de sucata. A cama, um objeto descartável, talvez, uma daquelas esculturas que artistas e curadores da moda tanto apreciam em quase todas as galerias. Por dentro, estão definitivamente mortos na sua criatividade. Convivem com o mundo caricato reiterando o absurdo do cotidiano. Os objetos do meu quarto, vistos assim, estavam deformados pela luz que vinha do teto e que me incomodava. Prestava mais atenção aos seus contornos e não mais às superfícies brilhantes do verniz. Vistos separados, à contraluz,

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revelavam o parentesco com as máquinas caça-níqueis e dos jogos eletrônicos. Totalmente alienados de suas funções, o pouco mobiliário do meu quarto era uma quantidade de coisas inúteis. Como poderiam transformar toda aquela madeira, tantos troncos de árvores, nestas “coisas” rotineiras e baratas? “Eu não vivo em estado de sofrimento. Mas de espera. Marquei um encontro com alguém que não apareceu. Nem nunca virá”. “Quem?” ousei perguntar. “No vaivém do tempo esta é uma realidade de vida do espírito. Não do corpo”. Após um breve silêncio que durou uma eternidade, Rosário tocou a face. O gesto de uma estátua delicada a recuperar sua memória. “Não sei se você chegou a ler naquelas agendas, frases como estas: “No Egito antigo, as bibliotecas eram chamadas “tesouro do remédios da alma”. De fato, nelas se curava a ignorância, a mais perigosa das enfermidades e origem de todas as outras”. Esta é a grande diferença. A única, talvez”. Rosário deambulou pelo quarto, mas eu tinha a sensação de que ela continuava no mesmo lugar. Era como ela vivia. Num alheamento de si mas penetrante na busca empreendida. Ela se despia de si mesma. Retratava-se em mil faces diferentes. Mas se você as olha, são fileiras e fileiras de rostos infinitamente iguais. Eu perseguia o impossível, mas tudo estava tão perto, era tocante e tocável! “São leves resquícios da memória. Experiências. É parte do meu destino. Dele não tenho outra escolha”. Voltei-me para a janela, porque o som do vento nas árvores era uma vibração estonteante. “Já não estamos apartadas de nossos corpos?” “Você ainda não. Levará um certo tempo. Não passa de um pensamento, por enquanto”. Queria sentir minhas mãos, eu as sentia sem nenhuma emoção. “ Quer dizer que tenho uma dupla existência?” “Sim, você tem”. Rosário tentava medir as palavras. “Um encarceramento em um corpo terrestre, que apenas sofre, espera o fim do carma. Outra é viver livre, nas regiões celestiais de que fala o poeta. Estas luzes que estão acesas no seu quarto, nos corredores, na capela, na sua mente, são falsas luzes. Vivem em um universo de restos”. Na suave tarde de maio, uma multidão silenciosa reuniu-se diante do velório. As lojas baixaram suas portas. Em sinal de luto, a câmara suspendeu as sessões e as aulas dos dois grupos escolares. A avenida principal, por onde passaria o cortejo fúnebre, foi recoberta com palha de café, para que as rodas da carruagem funerária não produzissem ruídos que atrapalhassem seu repouso.

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O prefeito, juntamente com o vigário da paróquia, sugeriu um funeral discreto, sem músicas e discursos. Apenas os sinos tocando o lúgubre som, a pequenos intervalos. Alguém sugeriu que tocassem no alto-falante uma famosa música de Verdi, da ópera Nabucco: “Va, pensiero sul’ali dorate”. Só tocaram uma vez. Os esquifes foram levados até às sepulturas provisórias em meio a uma pompa de dois empanachados cavalos negros. “Eu posso ver o futuro?” “Claro que pode”. “De que maneira?” “Olhando para além do olhar”. “Como é que isso funciona?” “Tente. É uma questão de vontade”. Estou paralisada diante da minha cama. Olhando para uma massa de carne que apenas respira. E que sou eu. E que não sabe quem é na verdade. Dentro de mim estou escondida. Não sei bem onde. Mas estou. Do outro lado, adormecida, tento sacrificar meu corpo e minha alma. Numa vã tentativa. Como se uma janela abrisse na minha mente, consigo ver algo nebuloso. Ou pressentir. Vejo um palacete transformado numa miserável casa de cômodos. Estou perto, muito perto da morte. Não há ninguém por perto para me socorrer. No estado de penúria a que me vi reduzida, fez com que uns míseros centavos fossem gastos no meu enterro, como uma indigente. Uma cerimônia simples, o padre não quis fazer a oração dos mortos. Tenho direito a um pequeno toque de sinos. É o sinal de que irão imediatamente me esquecer. “Este é o meu futuro? Eu, eu queria ouvir pelo menos uma música! Uma sinfonia de Beethoven! Não ouço nada!” “A música nunca dorme. Nem mesmo no fim de uma prolongada ausência. Onde quase nada acontece. Não deve se angustiar por isso”. No quarto da madrinha havia um guarda-roupa repleto de “trastes”, conforme ela me dizia. Quando estava melancólica, chamava-me e víamos juntas seus álbuns de retratos. Num deles ela guardava fotos de toda sua família. Todos estavam mortos. Ela era sozinha neste mundo. Uma parte do guarda-roupa estava reservada para seus inúmeros pares de sapatos. Ao todo contei quarenta caixas. Eram sapatos de vários modelos e cores. Noutra parte, caixas com roupas. Na tampa da caixa lia-se: “Bailarina”. Noutra: “La Violetera” e assim, sucessivamente: “Cigana”, “Cleópatra”, “Soldadinho de Chumbo”,

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“Branca de Neve”, “Princesa Árabe”, “Chinesa”. Na caixa maior: “Scarlet O’Hara ( E O Vento Levou). Tempos antigos dos festivos bailes de carnaval. Ela freqüentava todos. Gostava da alegria das músicas, dos confetes, do cheiro do lança-perfume, da vibração das brincadeiras do salão, dos foliões mascarados, das colombinas e pierrots. Chegara a namorar um palhaço nas três noites seguidas. Na última noite, de pois de muita loucura, ele desapareceu. Ela acha que ele voltara ao baile com outra fantasia. Neste baile ela estava a cara da Vivien Leigh, a cara. Sofrera muito. Foi um duro golpe. Ainda mais, sendo passada para trás, como se fosse uma brincadeira de mal gosto, “uma roleta-russa do amor”. Tomara uma decisão; seria seu último baile! Tempos evocados. Tempos perdidos na memória do tempo. Que não voltam nunca mais. “Foi uma época”, ela repetia, “uma época”. Mantinha o olhar vago, tentando buscar na memória, a sensação exata, a emoção perfeita, o sonho revivido. Tanto tempo que até perdera o fio da meada. Meus documentos ficaram prontos. Assinei a papelada da escritura. Uma cópia ficou conosco, a original, no cofre do banco. Eu era a nova proprietária da fazenda dos Meireles. A única herdeira. A sede da fazenda continuava fechada, a meses. Recusava-me a ir lá. Minha madrinha achava que deveríamos arrendar as terras. Concordei, dizendo que estava coberta de razão. Mas, eu tinha um outro plano em mente. Precisava colocá-lo em ação. Numa quarta-feira, minha madrinha viajou para tratar de negócios. Voltaria no dia seguinte. Tudo estava saindo como eu planejara. Peguei a caixa com o vestido azul da Scarlet. Chamei um táxi. Fui para a fazenda. Mantive os olhos fechados. Não tinha coragem de abri-los. De ver a extraordinária paisagem que nos rodeava. As montanhas, o cheiro cru do mato, os sons da natureza. Tudo doía lá dentro, no estômago. Tinha vontade de gritar. De me sacudir, de quebrar tudo, sei lá. Pensei que não seria capaz. Talvez desistisse. Na certa era loucura. Estava perturbada, incapaz de desvendar seu mistério. Por isso me torturava. Deixava-me arrastar por idéias absurdas. Fantasias ensandecidas. Transtornadas. Podia ser pura tolice mas não importava. Eu mesma me condenara à morte. Só que não havia guilhotina para a execução. Minha alma atravessava a região do exílio. Um local sob condições inóspitas. Sem nenhuma idéia do mundo. Estava em terra firme, chão de terra batida, com pedras e areia. Minha impressão era de que estava em alto-mar. Não há como controlar as ondas. Eu não passava de um personagem bizarro nesta história toda. Em dado momento, na entrada da fazenda, pedi ao motorista que parasse o carro. Tive vontade de voltar. Ele parou o carro. Eu desci com a caixa. Na dúvida, paguei a corrida e pedi a ele que retornasse. Esperei-o fazer a manobra do veículo, deixando um rastro de poeira. Não podia parar mais.

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Estava decidida. Na minha mente desenvolvera a fragilidade da perfeição. Um ato. Fazê-lo com a mais efêmera das paixões. No meu rosto, o retrato do orgulho, do orgulho em estado bruto. Estava traçada a pequena tragédia da minha traição. Seca, áspera e rude. É isto que ilumina a gente. “Quando falo, sou agonizante”. Estas palavras me perseguem, por encanto. Nunca desaparecem. Vejo-as escritas nas paredes, no ar. Ando pelo quarto, como um andarilho prossegue sua viagem pelo mundo, ao redor das coisas. Sinto medo, mas penso que o domino. Há algo de misterioso no olhar da minha alma. Que invalida todas as críticas. Todas as perdas. Todo o horror da tragédia que se transforma numa metamorfose dentro de mim. O tempo repete-se. Repetição do tempo numa apatia profunda. Todos fogem de mim como pássaros afugentados de um campo. É um vazio assustador. Tenho a incumbência de respeitar o mundo dos mortos. Rosário é minha testemunha. A presença silenciosa da morte que não mais se preocupa com o destino. As palavras de Aquiles me consolam: “Vem, diz-me, e então nós dois saberemos”. Não me pertenço inteira nesta engrenagem. Com a grande caixa protegida pelos braços, caminhou até a sede da fazenda. Há anos não punha os pés lá. Estava do mesmo jeito. Com as paredes desgastadas pelo tempo. Portas e janelas trancadas. Dentro, poeira e cômodos vazios. Parou diante da entrada principal. Uma pequena escada levava até o alpendre. Vasos de plantas mortas por falta de água e cuidados. Folhas secas e camadas de poeira acumulada. Colocou a caixa no piso sujo do alpendre. Destampou-a e tirou o vestido. A cor desbotara com o tempo e a falta de uso. O tecido desgastado, exercia o glamour sobre um universo de restos. Apoiou o vestido contra o corpo, examinando-se. Jogou-o no chão e despiu-se. Foi jogando suas peças dentro da caixa vazia. Este gesto de esvaziar-se de si mesma ajudava-a a descobrir o demônio que havia nela. Ousava seduzir-se. Novamente pegou o vestido azul. Vestiu-o. O figurino se desfaz, se esgarça, está envelhecido. Um pedaço da saia rasga. A renda fora devorada pelas traças. Mal consegue abotoar o zíper das costas. Está solto e deixa-o assim mesmo. Entrava no cenário para compor o seu réquiem. Seu personagem invade o local com um simples olhar. Vasculha tudo, do telhado ao chão. Diante de si

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existe apenas o horror. Os olhos esbugalhados expõem sua alma à luz. Está preste a se precipitar no calvário. Carrega uma cicatriz no coração, a cicatriz da mater dolorosa de Lúcifer no seu encantamento. Esta idéia que a cega, fascina-a dentro do seu abismo pessoal. Encontra um pedaço de bambu. Com ele traça um ritual. Um risco ao redor de toda a casa. Sua respiração está ofegante. É um risco de morte. Uma voz incontrolável cantarola na sua mente: “Tu quebras as naus de Tarsis com um vento oriental”. Era um som da sua infância. Buscou nele o último momento da sua vida. A última luz, o último olhar. A penitência e a confissão. Recordara a voz de sua mãe. Não sabia se cantava ou recitava uma oração. Aquele som ecoava dentro da casa. Paralisada, ouvia aquelas palavras repetidas como se elas fossem o farol do fim do mundo. Sua âncora. Porque seu espírito havia naufragado. Sublinhava um tempo e hesitações. Construíra num lapso de tempo a sua imagem de modo a não poder controlar mais as coisas. E que importância elas tinham? Olhou para os contornos das mãos sujas da poeira negra e encardida da vara de bambu. A linha da vida estava entrecortada. O fim da linha é algo iminente. Não há mais para onde ir. Nem como se recompor. Dinamiza os fragmentos, os restos da esfinge petrificada. Seu último gesto foi riscar um fósforo. “A idéia não pode morrer. Ela pode ser ressuscitada”, argumentou Rosário, tirando-me do estupor em que me achava. “Somos almas errantes. De um coração aberto para um coração ferido”. Mostrou uma foto amarelecida e desgastada pelo tempo. “Veja esta foto. Eu a trago estampada no meu peito como uma faca atravessada no coração. Tente ler”. As palavras escritas à tinta estavam já apagadas. Era a foto de um homem. Usava terno, camisa branca com colarinho alto e um lenço como gravata. O nariz adunco, a boca pequena e bem traçada, as sobrancelhas finas, os olhos claros. “Morreu na primeira guerra mundial, durante o incêndio de um asilo, em Paris. Dele só restou esta foto”, sussurrou. Nela ainda se lia: “De alguém que noticiou o falecimento do seu pai com cento e um anos, meus sufrágios!” No lado posterior: “Bela fotografia do meu velho e amigo T.B. Infelizmente não foi bem saboreada pelos meus olhos já cansados e à procura das trevas”.

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Atrás da velha casa ficava um pequeno depósito de ferragens, onde guardavam também um trator quebrado, enxadas, ancinhos, escavadeiras, vassouras, selas, caixas vazias e galões com querosene. Não havia luz elétrica na fazenda. Várias vezes encheu uma garrafa vazia e espalhou o mal cheiroso líquido nas paredes, janelas e portas da casa. Teve vontade de cantar. Não vinha nenhuma letra de música. Até que se lembrou de “Lábios que beijei”. Cantarolou por um tempo, caminhando ao redor da casa, tocando naquelas paredes, fazendo o sinal da cruz, arrastando-se dentro do vestido. Ele começava a incomodá-la. Rasgou uma parte da saia e parte da manga. Depois, desenhou uma estrela com querosene, frente à porta de entrada, no alpendre. Nela ateou fogo. Porque ali batia sol. Linhas luminosas brilharam como se tivessem sido invocadas. Ele era uma verdade sem mistura de mentira. Era real. Vivo. Aos poucos o fogo esfarrapou-se em todas as direções. Subindo pelas paredes, alcançou a madeira do telhado. Logo uma parte do teto desabou. Nas paredes apareceram rachaduras. Desde que foram erguidas, corroeram seu espírito. Aquelas chamas poderosas eram a encarnação do mal consumindo em sua expressão mais acabada. Um lacrado na sua pele. Diante de si o espetáculo da miséria humana. Começa a rir. Urina no vestido. As chamas ardiam provocando um ruído agônico. Ao mesmo tempo triste. Uma multidão de almas errantes gemendo seus últimos momentos. Nela, a mágoa era estéril. Não sentia medo, nem desejo. Sua existência havia se tornado um fardo necessário. Mesmo assim, iluminava-se neste salto para o inferno. Uma coluna de fumaça branca e espessa avolumou-se pelo buraco do telhado. As paredes da sala, impregnadas com o óleo derramado, ardiam espalhando uma fumaça negra. Algumas paredes começaram a tremer. O fogo propagou-se por todo o telhado. As chamas envolveram todos os cômodos da velha casa. Uma rajada de calor atravessou os vidros estilhaçados das janelas. O fogo rugia de recinto a recinto. Devorava tudo o que encontrava pela frente. Brasas estavam sendo lançadas do telhado. Ondas de intenso calor fustigavam a grama seca do jardim abandonado. A dezenas de metros de distância ela acompanhava o fim de tudo. Com um barulho, as paredes cederam e caíram, tombadas para fora. Ela esmurrou o ar. Nada mais podia exigir da vida. Estava tudo ali o que sempre quis. Sempre há uma carne instável, confinada. Ela era a imagem desse mundo

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Numa condição terminal adentrando o circuito da dor. A velha fazenda, embora queimada, permaneceria ali aos pedaços. Com seus restos. O desejo de realizar algo mais desaparecera para sempre. Escapando-se no ar. A casa não passaria mais do que uma parede embrulhada pelo espaço. E que pode morrer a um pequeno toque. Acometido pela dor do conhecimento. Alucinante como um sonho. Implacável como o silêncio das cinzas, agora seus diálogos. Com um grito profundo, trafegando em um campo da intuição, tentou abafar o que sua alma em chamas não conseguia: “Esqueçam-me, esqueçam-me”. Havia uma sensação de luz e sombra alternando-se, proporcionando uma iluminação cambiante. O quarto tornara-se de repente, uma peça soturna, sufocante, não encontrando mais caminhos para seus passos. Nele tudo era austero, a vislumbrar impasses. “Só a noite nos assiste, agora”, falou Rosário. “Está na hora de afrontarmos as profundezas dela”. “Não podemos acender uma vela para iluminar tamanha escuridão?” “Quando tudo era luz, a luz não estava em parte alguma”. “E o que vamos fazer?” “Caminhar”. Ambas caminham para a porta. O corredor parece não ter começo nem fim. É um espaço contínuo. “Não se assuste. É assim mesmo. Este local está situado em um universo privado de ilusões e de esclarecimentos. Estamos num exílio sem saída.” Rosário vai abrindo as portas dos quartos. São vários, impossível contá-los. “São infinitos, quase eternos”. Ela não podia mexer as sobrancelhas nem abrir muito as pálpebras. Ela era cada vez menos. Mas não tinha mais tanta importância. Elas eram ação e pensamentos vinculados. Espectros denunciando a existência de realidades em conflito e a dilaceração. Dirigiu seus olhos para os pés de Rosário. Uma sombra se liga aos seus calcanhares, torna-se enorme e distorcida como se não pertencesse a um ser humano. Um lugar sem rupturas e reatamentos. Longe dos bares violentos, com os cheiros dos suores e bebidas. E das canções alegres com letras que falam de amor, de agressões, artifícios e solidão. Um silênciário guardião se fez inviolado e era uma qualidade. Ele poderia estar em algum lugar à nossa espera. Todos os quartos estavam vazios. “Para onde estamos indo?” Rosário voltou o rosto e pareceu sorrir. Seus olhos cintilam. “Vamos em busca da noite iluminada. Onde todas as utopias estão em silêncio”.

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São Paulo, 20 de abril/2001 E-mail: [email protected] Certificado de Registro Fundação Biblioteca Nacional Ministério da Cultura Rio de Janeiro, 22 de maio de 2001-06-11 Número do Registro: 230.942 Livro: 407 Folha: 102