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A Amazônia na Era Pombalina
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1 Carta
CARTAS QUE FORAM NA FROTA QUE SAIUDESTE PORTO EM 2 DE FEVEREIRO DE 1752
ILM e Exm Sr. meu irmo do meu corao:63 Alguma vez ha-via de haver em que eu com violncia pegasse na pena para escrever-lhe,porque o assunto sobre que fao teno de discorrer nesta relao tale to lastimoso, que, at para o tratar com um irmo a quem cordialissi-mamente amo, se faz violento e repugnante, como V. Ex conhecerpelo discurso dela.
V. Ex no ignora as vastas terras de que se compe este Esta-do, que principiando no mar oceano e correndo contra o sul pela serrada Ibiapaba, voltando contra oeste pelas minas de So Flix e Nativida-de,64 continuando pelas largas terras at o Mato Grosso, e vindo peloque hoje possumos, continuando a buscar outra vez o norte, compreen-dendo parte dos rios Sarar, Madeira, Negro, Solimes, Amazonas, e ascampinas e matas que ficam at o rio de Vicente Pinzn, no Cabo do
63 Meu irmo do meu corao: A primeira observao que se impe fazer sobre estacorrespondncia, prende-se a este tratamento de irmo para irmo; que mostraclaramente no se destinar a correspondncia a uma eventual publicao; com oque, evidentemente, cresce de valor documental.
64 Minas de S. Flix e Natividade, situadas nas margens do rio Tocantins; o quemostra que em tempos idos do sculo XVIII, grande parte do territrio goianopertencia ao Estado do Gro-Par, ou assim foi considerado.(M.)
Norte, compreendem mais de 1.500 lguas de sertes cheios de precio-sssimos terrenos.
Tambm V. Ex no ignora que todos estes sertes esto povoa-dos de inumerveis gentios de diversas naes, que, exceo de alguns quevivem de corso, que so mui poucos, so de gnio dcil, fceis de persuadire sumamente hbeis para todas as artes que lhes quiserem ensinar.
V. Ex tambm conhece o quanto os nossos augustos monar-cas se tm empenhado para fazerem teis aos seus vassalos os grandestesouros que ainda nos esto incgnitos nestes sertes, mas fazendo ain-da maior excesso por achar meio com que possam salvar as infinitas al-mas que todos os dias se esto perdendo nesta larga extenso do pas.
Toda esta piedade crist, que os nossos soberanos tm tidoat agora para a extenso da f e para salvar estas miserveis gentes, etodo o zelo de utilizar ao Reino com as preciosas drogas destes sertes ede enriquecer aos vassalos, no s se tm baldado, mas continuando opresente sistema se perdero, como se tm perdido, e se no poderorestabelecer da mxima e total runa a que tm chegado.
Tem o sistema presente produzido to contrrios efeitos, quecom grande mgoa assento e provo que no s se no tem convertido ogentio da terra, mas que, contrariamente, muitos cristos tm no s to-mado os costumes dos gentios, mas ainda tm seguido os seus, sendomaior lstima que at tenham entrado neste nmero muitos eclesisticos.
No se tm convertido os gentios como digo, porque indo-sebuscar ao mal o so trazidos s aldeias; nelas lhes ensinam uma gria a quechamam lngua geral, que s o nas aldeias; nelas ficam exercitando a mai-or parte dos seus ritos; ali, so levemente instrudos em alguns mistrios danossa santa f, mas to superficialmente que creio que os homens so mui-to poucos os que tenham leis, nem ainda daquelas que necessidade mediso precisas para se salvarem pela causa que logo direi.
Como V. Ex sabe, na forma do Regimento das Misses65 seentregou s Religies, com o nome de que lhe davam, o governo espiri-
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65 Regimento das Misses: males decorrentes da extenso a que chegara em suasaplicaes. Do de 1 de abril de 1680, no se conhece nenhum exemplar. O queexistia no Arquivo Pblico do Par, segundo me disse o grande mestre SerafimLeite, desapareceu. (M.)
tual e temporal, a total soberania de todos os gentios no se limitandoela s aos aldeanos, mas a todos os infelizes e infinitos homens que nas-cem nestes sertes.
Como este absoluto poder que eles arrogaram a si, debaixodo pretexto aparente de missionrios, e em fraude da mesma lei lho deu, tirano, no podia produzir outra coisa que violncias, violncias tocontinuadas, e to executadas, como referirei algumas.
Depois que no ms de janeiro de 1652 fundavam os religiososda Companhia o colgio desta cidade, para cuja fundao a Cmara emoradores dela lhes deram licena, assinando primeiro o Pe. Joo deSoto Maior, padre reitor do dito colgio, um termo de s ensinarem adoutrina e no entenderem com escravos, nem na administrao dosndios, se seguiu vir logo no dito ano o Pe. Antnio Vieira, com licenapara fundar as igrejas que lhe parecessem, e as mais isenes que cons-tam da carta do Sr. Rei D. Joo o 4,66 escrita ao dito Pe. Antnio Vieira,em data de 21 de outubro de 1652.
Com a vinda deste padre, e com as ordens que depois se ex-pediram da nossa Corte sobre o cativeiro e liberdade dos ndios, se se-guiram as grandes alteraes do Maranho, originadas da autoridade queos padres se arrogaram e da consternao em que se viram os povos
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66 Carta de D. Joo IV a Vieira, de 21-X-1642.Foi publicada? Parece que por Berredo: no. In Histria da Companhia, pelo Pa-dre Jos de Morais, Memrias coligidas por Cndido Mendes de Almeida, TomoI, 276, Rio, 1860. Tomo Primeiro. Captulo VII, pg. 358 Rio de Janeiro, 1860.Chegaro finalmente aos pissimos ouvidos do serenssimo Senhor D. Joao IV,pai daquela Cristandade, o escandaloso procedimento destes injustos usurpado-res da liberdade dos indios, etc... rdua empresa na verdade, e de que se nopodiam prometer seno arriscados efeitos, como sucedeu, e vimos no captulopassado; pois no era ainda chegado o tempo, que a mo poderosa do Altssimotinha reservado para o ano de 1757. Pondo-se ento tudo em uma exata execu-o e com providncias muito antecipadas pelo Governador e Capito-Generaldo Estado, Francisco Xavier de Mendona Furtado, sem o menor motim dospovos; motivo por que se faz credor em nossos escritos da grande glria quenesta parte lhe tocou, pelo que diz respeito liberdade dos indios, por ser o ni-co executor em obra to pia, to justa e de to importantssimas circunstncias.Chame-se a isto amor verdade, de que se preza a nossa pena, amante da razo,por ser em tempo em que nos no faltam motivos de ressentidos pelo extraordi-nrio rigor com que o dito Governo nos trata com as suas ordens. In Histriada Companhia de Jesus, pelo Padre Jos de Morais, ano de 1755, da mesma Com-panhia.
pelo monoplio que os ditos religiosos tinham feito do servio dosndios, em total runa das fazendas dos moradores e da conservaodo Estado.
Com a vinda do Governador Gomes Freire,67 e com a prisoe justia que ele mandou fazer nos cabeas dos amotinados, ficou opovo contido, mas no remediado; porque, vindo o Regimento das Mis-ses, passado justissimamente pelas informaes que ento foram pre-sentes, ocultando-se no gabinete a impossibilidade se dava para reduzira praxe o que h no imaginrio que nele se fez para se extorquir aquelasreais ordens, no vieram elas pelo trato do tempo a surtir outro efeitomais do que dar-se s Religies, com ttulo corado,68 a soberania e go-verno desptico que elas muitos anos antes tinham arrogado a si, e fica-rem os povos gemendo debaixo do peso em que os tm posto a ambi-o e orgulho dos regulares, que, principiando em geral virtude e zelo dareligio, tm acabado no abominvel vcio da avareza, ficando assim nos em guerra civil com os povos, mas at as mesmas Religies entre si,umas com as outras, como se ver pelo discurso deste papel.
A soberania e despotismo que acima digo se faz evidente,quando bem se repara o alto poder em que as Religies foram constitu-das pelo dito Regimento; porque nas suas aldeias defendido que entrepessoa alguma mais que de passagem; porm, nem justia, nem rei soa conhecidos. Rei, nunca o ouviram nomear, e porque parea totalmen-te outra repblica, defendido com graves penas impostas pelos missio-nrios que nestas aldeias se fale portugus, sem que baste para fazer ce-der aos padres deste sistema as repetidas ordens de S.M. para que apren-dam a lngua portuguesa, porque isto inteiramente contra a tirania doseu governo.
Esquecendo-se totalmente da sua obrigao, porque devendos cuidar de nela educar a estes povos no verdadeiro conhecimento dalei evanglica, na deformidade dos vcios e no santo temor de Deus, emnada disto se cuida, porque, passados os primeiros anos em que vo osrapazes doutrina, em pegando no remo j no cuidam em missa, con-fisso ou outro algum sinal de catlico; o ponto est em que conduzam
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67 Gomes Freire de Andrada: Posse: 27-V-1682 at 14-VII-1687.68 Titulo corado: disfarado, enganador.
os gneros pertencentes aos Regulares; em que andem neste ministriosem parar um instante, e sem terem outro dia de seu mais do que o do-mingo, vindo assim a despontar no dia 7 com mais poder do que oPapa.
Por seguirem a obstinao de fazerem aprender aos ndios adita gria, at tm chegado ao precipcio de, ao menos aparentemente,admitirem a pluralidade dos deuses pela falta que nela h de vocbulos.
Para V. Ex poder compreender bem este absurdo, que naverdade se faz incrvel, preciso saber que a palavra Tupana na tal gria Deus; as duas Au e Mirim o mesmo que grande e pequeno, e so osditos ndios educados para explicarem Deus dizendo Tupana Au Deusgrande; e os santos, suas imagens e vernicas Tupana Mirim = Deus pe-queno; e isto que eles dizem que um modo de explicar, por no haverna tal lngua a palavra Santo, sempre dado por elemento de religio auma gente silvestre, lhes forma uma idia de muitos deuses, o que to-talmente defendido e oposto verdadeira f que nos ensina a IgrejaCatlica. Alm de que, este erro se poderia emendar ainda seguindo aerrada mxima de se ensinar a tal gria barbarizando a palavra santo, as-sim como tm barbarizado infinitas palavras portuguesas que se achaminseridas nela, e de que poderia fazer um catlogo se fosse necessrio.
As Religies, por seguirem a sua destinao, se do grandepena de fazer aprender aos religiosos, depois de sarem das aulas, a tallngua da moda geral, e perguntando eu a alguns para que era este traba-lho, me responderam que eram a isso obrigados como missionrios,porque assim o mandava um Breve de Alexandre 7;69 ao que lhes res-pondi que o Breve era para os missionrios que iam pregar o evangelhos regies aonde era preciso estabelecer-se e falar a lngua do pas parapoderem fazer fruto com a sua misso, mas no no sistema presente,em que aos mestres e aos discpulos lhes era preciso, para se entende-rem, largar cada um a lngua materna para se comunicarem em uma griainventada para confuso e total separao dos homens e em notrioprejuzo da sociedade humana.
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69 Breve do Papa Alexandre VII: Fabio Gighi, nasceu em 1599. Papa de 1655 a 1667.Os missionrios deviam conhecer a lngua dos povos que iam evangelizar.Ainda no localizei este Breve.
Vendo-se estes moradores na consternao de no se pode-rem comunicar com os ndios, se viram na preciso de aprender tam-bm a gria que lhes inventaram para se poderem servir deles, e isto queento foi necessidade passou a hbito, e ao excesso de serem hoje muipoucas as pessoas que nesta cidade falam portugus, principalmentemulheres, que at no possvel, conforme me tm dito os mesmos pa-dres, que se confessem seno na lngua geral, como eles lhe chamam.
Pelo que respeita liberdade dos ndios, em que S. M. temcuidado tanto, e que tanto desvelo lhe tem dado para que se renda justi-a a esta miservel gente, cada dia est em pior estado e padecendo con-tnuas vexaes, sendo as maiores dos mesmos missionrios nas aldeiasonde no podem ter o recurso que tm os outros que se acham em cati-veiros particulares; porque estes, em recorrendo s justias, logo so jul-gados livres e ficam em sua plena liberdade; pelo contrrio os aldeanos,em falando em liberdade, so pela mesma justia metidos no duro jugode cativeiro perptuo a que esto condenados.
Para me explicar melhor: pelo Regimento das Misses70 foidado aos Regulares o governo supremo sobre todos os ndios e queestes vivessem aldeados, e que fossem governados pelos padres missio-nrios e ficassem os ditos ndios obrigados s aldeias, sem que possamdelas sair para viverem em outra parte por nenhuma razo que seja.Destes ndios,71 assim aldeados, compete a cada missionrio 25 para oseu servio, sem que neste nmero entrem sacristos, barbeiro e todosos mais oficiais mecnicos.
Fora destes ndios de servio tm os padres da Companhia aaldeia de Maracu,72 na capitania do Maranho, e a de Gonari, nesta, eos padres capuchos outras povoaes a que eles chamam Doutrina, cujosmoradores de umas e outras povoaes no podem fazer servio algumque no seja para os padres, e alm desta gente todas as das aldeias daRepartio, que deveram ser dos moradores e que eles lhes usurpam, e
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70 O mal do Regimento das Misses.71 ndios: eram 25 para cada aldeia.72 No item 16 do Regimento das Misses, menciona-se a aldeia de Maracu e a de
Gonari, para atenderem ao servio dos padres da Companhia, respectivamentede S. Lus do Maranho e de Belem do Par. (M.)
ainda que no podem deixar de lhes conceder, experimentam a fraudeque em seu lugar direi.
Esta aparente liberdade que sempre clamam as Religies omais rigoroso cativeiro que se pode imaginar, como demonstrarei com abrevidade possvel.
Chega qualquer pessoa que vai para o serto a uma aldeia dendio seu conhecido, ajusta-se com ele, apresenta-o ao missionrio portaria, diz o ndio que quer ir com aquele homem, pediu o mesmo, eisto assim que parecia um contrato feito, e que o miservel ndio deviagozar toda a liberdade, ainda no h exemplo de que assim sucedesse,que se desse liberdade ao ndio para ir com o seu conhecido; e se instaque quer ir, metido em um tronco e nele escalado a aoites, no se li-vrando deste vil castigo nem ainda os mesmos Principais, como infinitasvezes tem sucedido, e as mais delas injusta e inumanamente como no-trio e constante em todas estas terras.
Como a subsistncia das fazendas depende de gente para asua cultura, deram s Religies para nunca lhes faltar, o que certamentese faz incrvel, e que no deveria lembrar no s a tantas Religies intei-ras de homens sacerdotes e letrados, mas nem ainda ao mais mpio e ig-norante, e inumano homem do mundo.
Como tm todas estas aldeias s suas ordens; logo que se ima-gina qualquer delito em alguns daqueles miserveis ndios, degradadopara uma das fazendas dos padres onde haja maior necessidade; nela ,logo que chega, casado73 com uma escrava da comunidade; a, reputadotambm escravo e dela no tornar a sair, no s ele, mas nem seus fi-lhos ou netos, e isto, que parece incrvel, contudo notrio e constantea todos os que vivem destas partes, e se prova em parte pela petio queme fez no Maranho um tal Pedro, que os padres reputam seu escravocom toda a sua famlia, o qual at tem recorrido ao Geral da Companhiapara que lhe declare a sua liberdade. Sem que pudesse ver resposta algu-ma, me requereu pela dita petio de que remeto a cpia, e dizendo-lheeu que lhe no podia ali deferir, por no ter tomado posse, que me viesse
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73 Casamentos forados de ndios com escravas: note-se que desde 30 de julho de1566, foram prescritas penas para os que assim fizessem. Vide Rodolfo Garcia,Ensaio sobre a Histria Poltica e Administrativa do Brasil, Rio, 1956.
requerer a esta cidade ou que fosse requerer Corte; me disse que vinhasem dvida, e depois foi sumido, que no tornou a aparecer, e pelalista inserta na dita petio, ver V. Ex s esta dvida quanta gentesoma.
A liberdade que se tem nas aldeias se acaba de ver do queconsta da cpia da outra petio que remeto, em que um miservel ndiochamado Manuel, da aldeia de Uricuru,74 me requereu, pelos relevantesservios que nela alega, lhe desse licena para viver ou nesta cidade ounos seus arredores, onde melhor conta lhe fizesse, por ser um homemque passava de 60 anos, e que desejava viver a seu gosto. Quando meparecia que o miservel, atendendo ao seu servio e aos seus anos, mepedia uma coisa em que no haveria dvida nenhuma, consultei com oPe. Jlio Pereira, Prior deste Colgio, a petio; enfureceu-se muito comela, e me disse que o ndio era um magao e que pertencia quela aldeia,e deveria ir para nela servir a S. M.; advertindo porm que, pela sua ida-de, na forma do Regimento das Misses, j se no deveria mandar emlista nem entrar na repartio; fiquei certamente admirado da avarezacom que se trata a restituio dos ndios s aldeias, que nem escapoueste pobre velho, e fiquei tambm confuso, sem saber em que consistiaa liberdade desta pobre gente por que tanto clamam as Religies.
Querendo eu intimamente aclarar neste negcio, chamei aoPrior dos ndios, que um moo que aqui tem boa opinio, e eu tenhopor verdadeira, e lhe perguntei se conhecia este ndio; ele disse que nos o conhecia, mas que ele lhe fizera a petio, e por pejo deixara de prnela que o miservel tinha sido metido em um tronco, onde tinha, ape-sar dos seus largos anos, levado muitas palmatoadas, e com esta informa-o me acabei de desenganar da tirania e rigoroso cativeiro em que estasdesgraadas gentes vivem debaixo dos clamores da liberdade.
Finalmente, porque no tinham liberdade em coisa alguma, atos casamentos so a arbtrio dos padres, porque devendo casar todos, noest na sua mo o chegarem pessoa, mas h de ser com aquela que lhesnomear o padre missionrio, ainda que alis seja contra sua vontade; e este-jam ajustados com outra mulher, ou elas com outro marido.
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74 Aldeia de Uricuru, ou como em Serafim Leite, T. X., Uaricuru e ainda Aricuru,(S. Miguel).
Todos estes fatos se fazem certamente incrveis, mas aindamal que to verdadeiros so e que s refiro em eptome o que no po-deria narrar em muitas resmas de papel.
Falta-me ainda explicar do fomento e origem de todas estasdesordens e da total runa deste Estado, o que farei com a brevidadeque me for possvel.
Conseguindo os Regulares que S. Maj. lhes desse, no s ogoverno espiritual das aldeias, mas tambm o temporal75 e poltico, sepersuadiram logo que estas aldeias todas eram suas; que S. M., os seusgovernadores, nem os povos, tinham nada com elas; que qualquer ndio,que se lhes mandava buscar era uma violncia ou usurpao que se lhesfazia; que o pequeno servio que qualquer particular tirava delas era umroubo ao comum da religio; que livremente poderiam e deviam fazerum monoplio de trabalho destes miserveis, arruinando com ele e como grosso comrcio que fazem, no s o Errio Real, mas a praa em co-mum, e as plantaes e lavouras em particular.
Persuadiram-se as Religies que aquelas aldeias eram suas,porque so governadas por um missionrio que nelas reside, o qual bati-za, faz casamentos, dispensa nos impedimentos, administra absoluta edespoticamente todo o espiritual, sem que ao ordinrio seja lcito co-nhecer das inumerveis e repetidas desordens que nelas se fazem e deque podem atestar os prelados deste Estado com fatos certos e notrios.
Administram mais com um governo absoluto e despticotodo o temporal, sem que das suas injustias e violncias haja para quemrecorrer, porque no dito governo no h ordem ou forma de proceder,e em conseqncia no se admite apelao ou recurso para tribunal al-gum. Tambm no h correo nas ditas povoaes, nem governo tosuperior que possa tomar conhecimento e procedimento algum destesmissionrios.
Finalmente, deram estes padres em um novo modo de gover-nar uma to grande repblica como esta, o qual no lembrou nunca aos
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75 Item I do Regimento de 21 de dezembro de 1686, que se prende ao ocorrido noMaranho, com a rebelio de Beckmann; porque nele se mencionam as informa-es prestadas ao rei D. Pedro II pelo primeiro governador Gomes Freire deAndrada, que ali esteve de 15 de maro de 1685 at 14 de julho de 1687. (M.)
maiores legisladores, qual o de manterem estes largos povos em paz,quietao e justia, sem mais leis ou polcia que o arbtrio de uns poucosde padres, que o mais douto no sabe uma questo de teologia.
Dois efeitos para trs, alm de outros que direi abaixo, estepoder absoluto e ambos abominveis, exacrandos e perniciosos.
O primeiro, o odioso e violento que se faz aos Regulares76
ouvir falar em Rei, e ainda que na aparncia o salvem, ele serve infinitasvezes de pretexto para os seus fins particulares; no podem deixar ou-tras muitas de demonstrar o nimo; evidentemente porque logo que oPrior lhes d qualquer ordem da parte de S. Maj. resposta certa quefaro tudo o que for dar gosto a V. Ex neste pouco tempo me tem su-cedido algumas vezes, e instando que ali no h nada meu mais do que aobrigao de servir a El-Rei, de quem todos somos vassalos, e a quemdevemos obedecer dizem que assim , porm, que basta que o Governa-dor o mande para se fazer tudo; e ultimamente no se faz nada, nem seexecuta nunca ordem, porque, se no absolutamente a favor das Reli-gies, metida em confuso, sem que jamais se possa executar, o quefaz contra o seu sistema, que o que sempre imaginaram que deve estarileso.
O segundo que estes padres exercitam uma jurisdio real, eno lhes dando S. Maj. no Regimento das Misses o governo absoluto,parece que ficaram sujeitos aos meios ordinrios, isto , que exercitam asua jurisdio regulada pelas leis do Reino, como expressa o 2 do ditoRegimento,77 que devero s conhecer em primeira instncia, dandoapelao e agravo, entrando nas ditas terras o ouvidor em correio;porque no est reservado no dito Regimento para conhecer dos crimesque nas ditas aldeias se cometem; porque S. Maj. s deu aos padres o go-verno temporal, mas no o poder de castigar crimes e conhecer destas co-isas e das cveis, sem mais apelao que para o Padre Visitador, ouVice-Provincial que com poder supremo as sentencia, cujo abuso temproduzido os efeitos que V. Ex pode imaginar de semelhante desordem.
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76 Os Regulares e o Rei: a posio dos primeiros em relao ao segundo.77 2 do Regimento das Misses: o de 1686 encontra-se no tomo IV, 369, apndice
D, da Histria da Companhia de Jesus no Brasil, do P. Serafim Leite, S. J., Rio, 1943.
Como os Regulares se viram senhores absolutos desta gente edas suas povoaes; como se foram fazendo senhores das maiores emelhores fazendas deste Estado, vieram a absorver naturalmente todo ocomrcio, assim dos sertes como o particular desta cidade, e vieram acair os direitos reais e dzimos, e em conseqncia a cair o Estado, semremisso.
No Regimento das Misses dado a cada missionrio 25 ndiospara seu servio, exceo dos pescadores e oficiais mecnicos; em 19aldeias78 que nesta Capitania tm os padres da Companhia, importamainda, usando s do seu direito, em 475 homens que andam trabalhandopara eles, sem falar nos infinitos que tm nas suas fazendas; e os de 50anos para cima, que, sendo muitos no entram na relao que do, nemna repartio, na forma do Regimento; e a todos obrigam a trabalhar parao comum da Religio, e so pagos a duas varas cada ms de pano fiadopelas ndias nas aldeias, por conta dos padres, em cujo negcio no salcanam o pagamento, mas lhes sobejam muitas peas de pano, prin-cipalmente na Capitania do Maranho.
Alm de todos estes ndios, acrescem mais para os serviosdos padres todos os que constituem as povoaes,79 que so as maispopulosas, a que os padres da Companhia do Carmo e das Mercs chamam Fazendas, e os padres Capuchos Doutrinas, e somados to-dos passam de 12.000 homens, alm das suas famlias, que andam conti-nuamente adquirindo para as Religies, tanto na droga dos sertes,como em todas as plantaes que podem servir ao comrcio de fora, epara o particular, creio o seguinte: que como tm toda esta gente, no sde graa, mas avanando tanto sobre o seu mesmo trabalho, pelo modocom que so satisfeitos, como acima digo, foram os Regulares absorven-do em si o comrcio, proporo do que foram por meios estranhos einquos precipitando os particulares tambm por outra conseqncia na-tural.
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78 Companhia de Jesus; possua no Par, a 21-XI-1751, 19 aldeias, nas quais tinham,no mnimo, 475 homens trabalhando para ela; fora os muitos outros existentesnas suas vastas e ricas fazendas, com engenhos e tudo.
79 Povoaes: a estas os padres da Companhia, do Carmo e das Mercs, chamavamde fazendas, e os Capuchos doutrinas.
Como os Regulares, debaixo do pretexto de missionrios, fo-ram fazendo o comrcio; como se persuadiram que o monopolizandolhe achariam maior avano; como a este monoplio que intentaram econseguiram era totalmente oposto o comrcio e extrao das drogasdo serto que faziam os particulares;80 trataram de os arruinar, para fi-carem senhores absolutos de todas as drogas, e que somente da sua mofossem recebidas, para o que se valeram dos dois meios seguintes.
Primeiro, principiaram a lamentar os ndios que no era poss-vel que, sendo servos, trabalhassem todo um ms pelo limitado preo deduas varas de pano.
Depois que os que passavam aos sertes, no s lhes no pa-gavam aquele nfimo ordenado, mas que at lhes furtavam os ndios,para o que lhes deram causa alguns peralvilhos que passaram aos ser-tes, e que eles no desestimaram.
Depois de espalhadas estas vozes de piedade e no sei se atpelos plpitos, lhes foram servindo nas aldeias para, em chegando canoas apedir ndios, lhes irem dizendo que o ordenado era pouco e que deveriadar-se mais queles pobres, e com efeito foram concordando os homensque iam ao seu negcio, acrescentando a 4 at 6 varas, alm de outrosrefrescos, para poderem fazer as suas viagens, por no perderem a mon-o e carregao que levavam.
Vendo-se nas aldeias que ainda isto no bastava, inventaramoutra idia que acabava totalmente de arruinar a navegao do serto: efoi que pagassem aos ndios primeiro que sassem da aldeia.
Logo depois que saam, os ndios em tendo ocasio fugiam, edeixavam os miserveis perdidos, sem ter quem lhes navegasse a canoa,e se chegavam por acaso outra vez a pedir socorro, se lhes respondiaque, como no restituam os primeiros, que se lhes no podiam dar outros,e vinham a perder a viagem e o pagamento que tinham feito aos ndiosna aldeia, para onde se recolhiam pouco tempo depois os fugidos, semque at agora conste do castigo que nela recebiam.
A repetio destes feitos ps aos homens to faltos de meiose to cheios de temor, que pouco a pouco foram deixando o comrcio
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80 Particulares: os colonos e os comerciantes.
do serto, e o puseram de sorte que ainda no ano de 1726 passaram aoserto 150 canoas, e de ento para c foram em tal decadncia, que oano passado apenas foram 3 e ainda este ano no tenho despachado ne-nhuma dos moradores, quando j da Companhia foram 28, do Carmo24, alm das dos Capuchos.
Ainda no bastando para acabar de arruinar o comrcio todasestas coisas, lembrou aos Regulares outra para o acabar de precipitar,qual a que vou referir.
Costumam-se nesta terra pagar os dzimos das drogas dossertes ao embarcar, e no se mete nada a bordo que se no pese primeiro;e nesta forma vem toda esta fazenda a pagar de sada 40 por cento, por-que cada arroba de cacau, que vale este ano dez tostes, paga um tosto;paga mais, de ver o peso, dez ris, e vem a ser onze por cento.
Na entrada da Casa da ndia, em Lisboa, paga cada arroba dedireitos 400 ris, mais de outras miudezas cem ris, e vem a ser 50 por100, que juntos aos direitos de sada vem a importar 60 por 100.
Pagam os efeitos que se carregam para esta terra, no Consulado,em Lisboa, 4 por 100, e se so do pas pagam tambm na Mercearia 5por cento, e vem a ser na sada em Lisboa 9 por 100.
Na entrada desta Alfndega pagam as fazendas 10 por 100,conforme o novo estabelecimento, e importam os direitos da sada deLisboa e entrada nesta vila 19 por 100 que, juntas aos 60 dos efeitos daterra, importam todos estes direitos em 80 por 100, sobre o comrciogeral deste Estado.
Como os Regulares, assim como no pagam direitos dos efei-tos da terra tambm no pagam, com o pretexto das misses, nem oConsulado e Mercearia, em Lisboa, nem neste Estado a Alfndega, ecomo no pagam direitos em parte alguma, se demonstra por um verda-deiro clculo que na balana do comrcio vm a ganhar padres 80 por100 contra os seculares, e dele compreender V. Ex o progresso quepodem fazer os pobres negociantes quando tm contra si o Corpo Po-deroso81 com 80 por 100 de ganho certo no comrcio contra eles.
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81 Corpo poderoso: expresso usada por F. X. M. F. em muitas outras cartas, refe-rindo-se Companhia de Jesus.
Os efeitos que as Religies metem no so to poucos queme no segurassem que s pertencente ao Colgio entrou na Alfndegaeste ano mais de 80$ cruzados,82 ainda que os seus maiores amigos di-zem que no passavam de 60.
Concluo, ultimamente, que se faa conta na Casa da ndia, ese ver que o que esta casta de negcio tem surtido que se h de acharque quase todos os gneros que a ela chegam, ou so das mesmas Reli-gies em seu nome, ou contados aqui a elas pelos negociantes, para po-derem fazer este segundo comrcio, porque s as ditas Religies so assenhoras absolutas destas preciosas drogas.
No contentes os Regulares com arruinar o comrcio geral defora, e em conseqncia com o Real Errio, que o de que pende a sub-sistncia, at tm arrogado a si o particular, monopolizando at os vve-res e arruinando os ofcios e artes fabris de que depende a conservaoda Repblica, como mostrarei com brevidade.
preciso assentar que cada Religio desta forma, em si mesma,uma Repblica; nela se acha toda a casta de oficial; nela h pescadores;nela h os grandes currais e, por conseguinte, so senhoras das carnes, edas pescarias, tanto de peixe como de tartarugas, porque todas so feitaspelas suas canoas e pelos seus ndios, sem que haja uma s canoa quesirva ao pblico neste til trabalho. As manteigas das mesmas tartarugasso tambm feitas por ordem dos missionrios; finalmente, todos os v-veres so das Religies, exceo de alguma pequena parte que algummorador, ainda que raro, manda fabricar.
Tendo por uma parte as Religies, dentro dos seus conventos,os oficiais mecnicos no s para se servirem a si, mas aos particulares,sem que haja algum que possa fazer obra que no seja com socorro dascomunidades, largando-lhes por grossos jornais os obreiros, vindos detoda a sorte a ficar dentro dos claustros o cabedal que devera girar naRepblica, e que devera sustentar nela o grande corpo de oficiais,83 que uma das partes principais que a constituem e que a animam.
Tendo pela outra todos os comestveis de que so senho-res, vem a faltar na mesma Repblica o cabedal em que trafica tanta
122 Marcos Carneiro de Mendona
82 80$ cruzados: oitenta mil.83 Corpo de oficiais: carpinteiros, pedreiros, etc.
quantidade de gente e vem por necessria conseqncia a carregarsobre o povo a quantidade de pobres que o monoplio dos padrestem feito, e que deveriam ser homens ricos e de importncia ao p-blico.
Porque no fique isto s em discurso, o provarei com o quepresentemente agora aqui presencio.
Intentaram os padres da Companhia tomar este ano o aou-gue; opuseram-se-lhes os das Mercs e, como deram a carne mais ba-rata, ficaram com ele e o tm atualmente dentro de seu convento, aon-de poucos dias antes de eu aqui chegar, sobre um sargento querer umapouca de carne, ou sobre o seu pagamento, teve umas razes contraum frade leigo; das razes passou s obras, e ficou o frade com a cabe-a partida, e vim eu ainda a tempo de castigar o sargento, no sei secom muita razo.
Pelo que respeita ao peixe esta terra muito falta dele, masainda no dia de ontem sucedeu aos capites de Paru e Tapajs, vendoalguns dos meus antecessores remediar este dano, e por canoas que ser-vissem ao comum e fornecessem a terra, lhes obstaram sempre as Reli-gies, no lhes dando ndios para este til ministrio, sem os quais seno pode fazer coisa alguma, por serem os nicos trabalhadores que hnesta terra e no s tendo o ditos padres ndios, por fora fazem aopovo dependente para lhes irem contar de sua mo os peixes salgados esecos, como ainda no dia de ontem sucedeu aos capites de Paru eTapajs, que, devendo recolher-se s suas fortalezas, no tiveram maisremdio que ir comprar Companhia os barris de peixe a 5 e 6 tostes,quando me dizem que no valiam metade.
Desta casta de contrato se no livra Religio alguma, tendoarmazns pblicos nos seus Conselhos, sendo os que mais escandali-zam, os padres capuchos, os trs provinciais que aqui tm residncias,isto , Santo Antnio do Curral, Conceio e Piedade.
Deixando a cal, azeite e outros gneros que fabricam paravender, referirei s um caso entre os infinitos que sucederam no tempodo contgio, e ele bastar para lhe dar uma idia de como imagina estagente destas partes.
A Amaznia na era pombalina 123
Ardia esta cidade e todo este Estado na trabalhosa epidemia84
que o arruinou; no apareciam galinhas, seno muito por acaso; saramalguns padres para os sertes, a busc-las; chegou com efeito uma canoados da Provncia da Piedade com algumas galinhas, e, pondo-se de lar-go, disse do mar que ele as trazia e que quem lhas no pagasse a oitavade ouro, ouro em p, que lhes havia de dar nenhuma, e clamando opovo que remediasse pelo amor de Deus, respondia-lhes de largo, quese lhe no davam o que ele pedia, que se ia por qualquer destes rios aci-ma onde lhes pagariam melhor, porque em toda parte havia a mesmanecessidade, e desta sorte se procedia naquele miservel tempo.
Isto, que certamente pela sua crueldade parece incrvel, e feitopor semelhantes homens, contudo verdadeiro, e so destes fatos teste-munhas quantos moradores tm esta cidade e seus contornos, e no mepodendo eu ainda assim capacitar, me informei com o Bispo, que umprelado de honra e de verdade, e me segurou que passava sem dvida eque era notrio a todos.
Vendo os moradores todas estas desordens nos Regulares, ven-do-os senhores dos ndios, e por conseqncia senhores de tudo, e eles po-bres, miserveis, sem remdio humano e perseguidos das mesmas Religies,estabelecendo-se cada vez mais sobre a sua runa, e sobre os seus bens, sepuseram em dio mortal e irreconcilvel com elas e rompendo depois,como ignorantes e faltos de conhecimento do meio que deveram seguirpara o seu remdio, em mil despropsitos, passando aos sertes a prenderndio, e a vend-los depois, ajudando muitas vezes alguns religiosos, acusan-do-os depois e tomando-lhes os ndios para as aldeias.
No pra s este dio dos seculares para as Religies, maselas mesmas entre si85 se tm o mesmo dio, umas com as outras, poruma coisa natural, filha da forma por que se imaginam.
124 Marcos Carneiro de Mendona
84 Trabalhosa epidemia: a da varola, que arruinou diversas vezes o Estado. Esta foi noano de 1749, portanto antes da era pombalina. Epidemia que deu causa enorme di-minuio de ndios das aldeias da Amaznia. Fato em geral silenciado para ser de pre-ferncia atribuda essa grande diminuio ao cumprimento das leis de liberdade dosndios de 6 e 7 de junho de 1755, e ao disposto no documento conhecido por Dire-trio do ndio, posto em execuo a partir de 17 de agosto de 1758. (M.)
85 dio das Religies entre si. Fato incontestvel, reiteradamente manifestado, sobre-tudo depois das publicaes dos Regimentos da Junta das Misses do Maranho, apartir do ano de 1680. (M.)
Como cada Religio destas aspira a ter o comrcio universaldeste Estado, no tratam de outra coisa mais do que ver o modo porque ho de arruinar umas s outras, valendo-se todas dos meios que aspodem conduzir quele fim.
Como neste Estado86 no rico o que tem muitas terras, se-no aquele que tem maior quantidade de ndios, tanto para a culturacomo para a extrao de drogas dos sertes, entram todos estes padres,com o pretexto das misses, no s a fazerem descimentos, como eleslhes reclamam, no conforme as ordens de S. Maj. mas, a maior partedas vezes, por meios violentos, indignos, e at faltando f que deveramter com os miserveis ndios com quem contratam; porque a maior par-te das vezes sucede trazerem amarrados, no s os Principais, umas atas suas mesmas famlias, com quem esto contratando para os desci-mentos, roubando-se uns aos outros, e vendo o modo por que ho defurtar os ndios de umas aldeias para outras, e at nesta mesma cidade,amarrando pelas ruas os ndios que encontram, com o pretexto de quepertencem s suas doutrinas ou aldeias, cujas violncias vou evitando proporo dos casos que vo sucedendo, e j neste pouco tempo tenhoremediado trs atentados destes.
No se contentando Religio alguma com a quantidade degente de que so senhoras, e parecendo-lhes que todos os que as outrastm lhe pertencem, entra neles todo o esprito da ambio, da inveja, epor conseqncia o da discrdia; no podendo absolutamente caber nelesdissimulao neste particular, rompem muitas vezes em imprudnciasescandalosas, no havendo parte alguma que seja privilegiada para elesdeixarem de fazer estas demonstraes. Onde se juntam se atacam ordi-nariamente, no valendo a ateno e gravidade com que se deve estarem um Tribunal autorizado por S. M., para deixarem de insultar-se unsaos outros com palavras totalmente opostas autoridade do lugar, e aocarter no s de religiosos, mas de Ministros, que esto exercitando.
Por todas estas evidentes razes, no basta todas a extensode terra deste largo pas, nem as preciosidades que nele h, nem as infi-nitas naes de que povoado, e a habilidade de que Deus os dotoupara aprenderem tudo o que lhes quiserem ensinar, nem o zelo dos nos-
A Amaznia na era pombalina 125
86 Como neste Estado: ao que parece ainda hoje quase assim. (M.)
126 Marcos Carneiro de Mendona sos Augustos Monarcas para a sua reduo e converso f catlica,porque apesar de tudo esto os seus Reais Errios extintos e sem espe-rana de remdio; os seus vassalos reduzidos ltima pobreza e misria,e tal que no h um s nesta Capitania que possa pagar de dvida 30 ris,e sobretudo a maior parte dos ndios, sem outra doutrina ou culturamais do que a de saberem tratar mal de fazendas, aprenderem algunsofcios para utilizarem as Religies, e serem insignes em extrair drogasdos sertes, que ao que so com toda a fora obrigados.
Tenho dado a V. Ex
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
2 Carta
I LM, e Exm Sr. meu irmo do meu corao: Esperei s co-municar a V. Exa. que S. Maj. foi servido mandar-me ouvir em um
novo Regimento
87
que se intenta fazer para o Procurador dos ndios.
Eu obedeci como devia, e naqueles papis disse parte do que
me lembrou, mas no tudo o que devera, porque, sem embargo de que
negcio que se trata no Tribunal do Conselho Ultramarino, negcio
pblico s partes nele mais interessadas.
No pode haver dvida que as Religies so as que tm maior
interesse na administrao e servio dos ndios, e de que eles se conser-
vem no estado presente ou ainda em maior aperto para, em conseqn-
cia, ficar a sua administrao mais livre, elas mais poderosas, os ndios
ainda mais tiranizados e o povo acabado de precipitar.
Para defender os miserveis ndios das contnuas violncias e
injustias que toleram, no s de seculares, que certamente so as meno-
res, mas dos Regulares, que so as mais fortes, preciso um Procurador
87 Novo Regimento: procurar em Lisboa esse seu parecer; talvez na Col. Pombalina;
sendo possvel tratar-se do esboo de criao do Diretrio dos ndios, publicado
mais tarde; no o encontrei. (M.)
que no s tenha inteligncia, desinteresse, independncia, mas que seja
homem bom cristo, caritativo e sumamente ativo e desembaraado.
Que o seu ofcio lhe renda com que se possa sustentar limpa e abundan-
temente, para o que preciso fazer-lhe um competente ordenado, e na
informao aponto lhes til terem o Procurador na sua mo e conser-
varem ndios mui pouco gravados, proporo do quanto se avanaro
em liberdade, se o seu Procurador lhes fizer render justia.
No se ignorando no Conselho Ultramarino o grande interes-
se que as Religies tm na administrao dos ndios, e o quanto lhes
til o terem o Procurador na sua mo e conservarem-no na sua depen-
dncia, lhes pareceu a propsito dar vista de todos os papis ao Pe. Ben-
to da Fonseca, Procurador-Geral da Companhia deste Estado, nessa
Corte, depois de a mesma Companhia ter aqui votado o que lhe pare-
ceu, e de o Prior deste Colgio
88
ter dado seu voto por escrito, o qual
Pe. Bento opinou a seu favor, concluindo o seu parecer, dizendo que se
devia fazer o dito Regimento conforme o direito e leis municipais deste
Estado. Isto , conforme o Regimento das Misses, que o que s tem
conta aos Regulares.
Eu no quis contestar na informao esta ltima concluso
do parecer daquele padre, porque tenho toda a moral certeza de que ele
logo havia de ser informado do que eu dissesse sobre este ponto, que
essencialssimo; aqui particularissimamente lhe direi o que me parece,
para V. Ex o fazer presente a S. Maj. naquela hora e tempo que lhe pa-
recer oportuno.
Concordo com o Pe. Bento da Fonseca que preciso, e que
se faa, e logo, um Regimento para o Procurador dos ndios
89
que,
enquanto S. Maj. no for servido mudar o sistema presente, um of-
cio essencialssimo e que deve ter um Regimento por que se governe,
sem ateno ou respeito a pessoa alguma, e que viva e coma do seu
ofcio.
Discordo porm do dito padre no modo que ele aponta de
que se entregue este negcio a um Ministro, por hbil que seja, por-
128 Marcos Carneiro de Mendona
88 O Prior deste Colgio: P. Jlio Pereira.
89 Regimento para o Procurador dos ndios: objetivamente, com este ttulo, no co-
nheo nenhum. (M.)
que um negcio sumamente importante, em que a idia de um s
homem poder no bastar, e em que poder haver o perigo da grande
influncia que a Companhia e mais Religies tm em toda a parte de
se no poder por esta matria em um s voto, que to importante,
como abaixo direi; e para este novo Regimento, me parece que S.
Maj. devia deputar trs ou quatro ministros dos mais hbeis e inde-
pendentes, que com o maior segredo conferissem entre si os princi-
pais e elementares pontos deste Regimento, ideando o modo por que
se h de governar, de sorte que pouco a pouco v obrando em forma
que em poucos anos se civilizem os ndios, e os livre das opresses e
violncias que lhes fazem, no s os seculares mas os Regulares, que
so os mais fortes e que mais prejuzo fazem ao comum do Estado; e
que, finalmente, no dito Regimento se d ao Procurador uma idia do
modo por que se h de haver para que concorra ao fim de que a
quantidade de gente que aqui se perde se reduza a termos de poder
vir a ser uma repblica civil.
Tambm no concordo com o padre enquanto se restringe
a que o novo Regimento se deve formar conforme o direito e leis
municipais deste Estado, porque isto no quer dizer outra coisa do
que se forme o novo Regimento ao das Misses, e sucedendo assim
viremos a ter mais uma confirmao daquele, com mais algumas de-
claraes a favor dos Regulares, e, em conseqncia, no s se no li-
vraro os ndios,
90
pela proteo do seu Procurador, da tirania em
que se acham, mas nem este ser meio condizente para se restabele-
cer o Estado, antes ficar submergido no abismo em que se acha,
sem remdio algum.
Parece-me que esta uma excelente ocasio de se dar um
grande corte, no Regimento para o Procurador dos ndios, na forma das
leis de S. Majestade, dando nele poder ao dito Procurador para averiguar
se se criam os ndios na forma que os possamos dispor a fazer com eles
uma Repblica polida e civil, deixando-se inteiramente o sistema presen-
te, em que so educados como se fossem irracionais, e desterrando nes-
A Amaznia na era pombalina 129
90 Note-se que estamos em novembro de 1751, e as leis pombalinas e regimento
repressivos s apareceram em 1755, 1757 e 1758. (M.)
te Regimento muitos abusos que esto estabelecidos, e muitos deles pre-
textados com o Regimento das Misses.
91
A primeira coisa que no dito Regimento se deve fazer que
os ndios, depois de civilizados, procedendo no servio de S. Maj. com
honra e fidelidade, sejam habilitados para todas as honras civis.
Segunda: que nele se atenda aos Principais, a quem os ndios
todos so sumamente obedientes, e, vendo-se honrados, sem dvida to-
maro o brio que lhes tem feito perder o desprezo com que so tratados
pelos missionrios.
Terceira: que sobre estes Principais, sargentos-mores e capi-
tes das aldeias e seus filhos, ningum tenha jurisdio neles, seno os
governadores, e quando cometerem algum delito, sejam processados
como militares perante a presena do Governador, e se sentenciarem
com o seu voto, na forma dos mais militares.
Quarta: que nenhum missionrio se possa servir destes oficiais
para remeiros, proeiros, ou jacumabas, que o mesmo que timoneiros,
nem os possa mandar exercitar coisas desta natureza para evitar aos Re-
gulares o abominvel uso que tm de darem semelhantes exerccios, no
s aos sargentos-mores e capites, mas at aos mesmos Principais, fazen-
do aos que mais querem distinguir a honra de os fazer seus timoneiros
ou jacumabas.
Que os missionrios, se acaso distinguirem os ditos Principais,
sargentos-mores e capites, ou os filhos destes, dem parte ao Governa-
dor para mandar tomar conhecimento do crime, e no possam nunca
prender aos ditos, seno no caso de haver perigo na demora da priso,
porque ento o podero fazer, mas daro logo parte, tanto do crime
como da razo do perigo que consideraram para proceder priso,
130 Marcos Carneiro de Mendona
91 Aqui est uma primeira investida a favor da mudana no tratamento at ento rece-
bido pelos ndios; sempre tratados e mantidos como escravos e como verdadeiros
irracionais.
J agora de posse da Poltica Indiana de Solrzano Pereira, edio castelhana de
1703, posso encontrar as origens da segura linha de conduta de Mendona Furtado e
de Sebastio Jos, em relao aos nossos silvcolas. Alis, autor mais de uma vez
citado por Vieira, como, por exemplo, na carta CLXXV do vol. III de Lcio de
Azevedo, dirigida ao Superior do Maranho; e na Voz Doutrinal, vol. XV, 152,
quando se refere s Encommiendas. (M.)
porm nela sempre sero os ditos tratados com a decncia que se deve
ao seu cargo.
Que sobre todas estas coisas deve vigiar o Procurador, e se al-
gum missionrio contravier o estabelecido no dito Regimento, se lhe im-
ponha a pena que parecer a S. Maj., eu at chegara a que perdesse a ad-
ministrao da aldeia, e que, provada a contraveno, ficasse logo entre-
gue administrao da aldeia, e que, provada a contraveno, ficasse
logo entregue administrao secular.
Que qualquer ndio que for rigorosamente castigado pelo seu
missionrio tenha a liberdade de poder informar ao seu Procurador; e
constando a este da injustia que se lhe fizer, requerer aos governado-
res mudana para outra aldeia ou para casa de algum secular bem proce-
dido, sem que obste a esta mudana o embarao dos parentes, porque
os mais prximos o podero acompanhar.
Ultimamente, torno a dizer que esta uma boa ocasio de
principiar a arruinar o inimigo comum deste Estado, que o Regimento
das Misses,
92
com o qual se tm precipitado estas duas grandes capita-
nias, que, apesar de terem tantas e to preciosas drogas, esto reduzidas
ltima penria e misria.
Concluo, finalmente, pedindo-lhe que leia o dito Regimento e
medite sobre ele um pouco, e logo ter uma clara idia dos efeitos que
ele poderia produzir; que era impossvel que fossem outros mais do que
a mgoa de o ver perdido [o Estado] e sem, por ora, se lhe poder valer
porque a tudo obsta o tal Regimento das Misses. Guarde Deus a V. Ex
muitos anos. Par, 28 de novembro de 1751.
A Amaznia na era pombalina 131
92 Regimento das Misses: inimigo comum deste Estado. Boa ocasio de principiar
a arruin-lo, O primeiro deles, de 1 de abril de 1680, foi, por bvias razes,
completamente posto fora do mercado de livros e das nossas bibliotecas. (M.)
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
DOC. 48 SENHOR No sei que razo teve o meu Ante-cessor para levar a propina na arrematao dos Dzimos do Piau. Eu,
ainda antes de ver essa ordem de V. Maj. no s no as levei na arrema-
tao que se fez da Dzima da Alfndega, mas, nem tal intentei, ainda
que me pareceu que levando-as no s o capito-mor que ainda existia,
mas o Secretrio deste Estado, no havia maior razo para deixarem de
me pertencer, porm, como no achei ordem expressa de V. Maj. para
as levar, no me chegou ao pensamento o cobr-las. V. Maj. mandar o
que for servido. Par, 28 de novembro de 1751.
Ilm e Exm Sr. Devendo eu dar execuo real ordem de S. Maj. ex-
pressada no 6 da minha Instruo,
93
em que o dito Senhor foi servi-
do declarar que nenhum ndio possa ser escravo, e sejam todos geral-
mente livres, entrei a discorrer a forma por que a executaria, que menos
violenta se fizesse aos povos destas duas capitanias, e no pude achar
meio algum de presentemente se pr em prtica a dita liberdade.
93 6 das Instrues que lhe foram passadas de Lisboa a 31 de maio de 1751. Assi-
nadas pelo Rei e contrassinadas por Diogo de Mendona Corte Real. J antes aqui
transcritas. (M.)
certo que a dita real resoluo justssima e pia, e preciso
que seja executada, porque todos os dias se esto praticando roubos de
liberdade e injustias execrandas contra estes miserveis ndios, aos quais
S. Maj., como pai universal de seus vassalos, e como Rei, deve socorrer e
amparar.
Mas, tambm, certo que este remdio deve ser eficaz, e a
tempo que possa aproveitar, e que se no converta em maior runa, no
s dos ndios, mas do mesmo Estado.
Tambm sem dvida que me persuado a que quem infor-
mou a S. Maj. com verdade das contnuas violncias que se fazem aos
ndios, com estes injustos cativeiros, ignorou, para o acabar de informar,
do estado destes povos, e depois a forma por que eles imaginam, e a
pouca fora que aqui tm os Governadores para poderem obrar contra
o comum dos mesmos povos com violncia.
Este Estado, e principalmente esta Capitania, se acha reduzida
nfima misria; todos os seus moradores esto na ltima consternao.
So poucos os que ainda cultivam alguns gneros; a maior parte conser-
va algum ndio escravo para lhe ir buscar ao rio ou ao mato o miservel
sustento cotidiano com o que passam pobrissimamente metidos em
uma choupana a que eles chamam roas.
Todos esses homens, se de repente se vissem sem os que eles
chamam escravos; as poucas lavouras que h paradas; os outros que no
sabem pescar, nem caar, mortos de fome, sem remdio humano; os n-
dios, em virtude da sua liberdade, espalhados por estes sertes, ou talvez
em mocambos para o que todos tm propenso, e tudo isto de repente;
eu, sem meios de poder juntar os tais ndios para os dar por criados
queles de quem tinham sido escravos, certo que poderiam progredir
aqueles trabalhosos efeitos em que costumam romper muitas vezes as
desesperaes, e a Praa totalmente sem foras para poder conter aos
moradores de passarem a alguma desordem.
Toda esta gente ignorante em nfimo grau, imagina que toda
a sua fortuna lhe h de vir dos sertes, no, extraindo drogas, mas apri-
sionando ndios, com os quais se propem fazer grandes progressos nas
suas fbricas e lavouras; vendo-se agora, de repente, no s com as es-
peranas perdidas de poderem ir buscar ndios, mas, contrariamente,
dos que tinham em sua casa, digo, privados dos que tinham em sua casa;
A Amaznia na era pombalina 133
tenho, por sem dvida, que desamparavam a terra totalmente, indo pelo
mundo mendigar, e passavam para esses largos sertes a fazer algum
desatino que nos desse maior cuidado, ou talvez que rompessem em al-
gum excesso repentino, que eu lhes no poderia com facilidade atalhar,
porque alm de ter poucos e maus soldados, ainda parte deles e todos
os seus oficiais, tm os seus ndios, e como aqui se no conhece muito a
obedincia, estou certo de que lhes havia de lembrar mais depressa a
convenincia que perdiam do que a disciplina militar que deveriam obe-
decer.
Sem que isto fosse novo neste Estado, porque j sucedeu nele
mesmo caso idntico, e nas mesmas circunstncias em que agora nos
achamos.
Mandando o primeiro rei D. Joo o IV, no ano de 1652, divi-
dir este Estado em duas Capitanias-Mores, independentes uma da outra,
nomeou para Capito-Mor da cidade de S. Lus a Baltasar de Sousa Fer-
reira e para a do Par a Incio do Rego Barreto.
Ambos traziam ordens, por um dos capites do seu Regimento,
para pr em liberdade a todos e quaisquer ndios que at aquele tempo
tivessem o nome de escravos.
Logo que Baltasar de Sousa desembarcou no Maranho, sem
tomar maior conhecimento, ou fazer madura reflexo, na forma por que
se devia executar a real ordem que recebera, mandou publicar a liberdade; e
os efeitos que produziu esta acelerao, foi sublevarem-se-lhe os povos
com quem depois lhe foi preciso capitular por meio dos Padres da
Companhia, e foi foroso suspender-se a execuo da ordem, at dar
conta a S. Maj.
O mesmo sucesso teve nesta cidade o Capito-Mor Incio do
Rego, que querendo executar a dita real ordem, no dia 22 de dezembro,
teve o mesmo sucesso que na de S. Lus havia tido o Capito-Mor Baltasar
de Sousa.
A diferena que h, daquele tempo ao presente, que ainda
neste Estado se conservavam muitos homens de cabedais e senhores de
grossos engenhos, que por isso se devia esperar mais deles a obedincia,
pelo risco de perderem a Fazenda, e agora acharem-se to pobres que a
maior parte deles se lhes no dar nada como salvem os corpos; que lhes
confisquem a Fazenda.
134 Marcos Carneiro de Mendona
Havendo ainda outra diferena que no meu sentir no me-
nos importante para se contemplar a execuo da liberdade repentina
dos ndios, e que no ano de 1652, no tinham as Religies cativo al-
gum, e agora so elas as que, se no tm todos, tm certamente a major
parte, por isso, naquele tempo requeriam a favor da liberdade e hoje,
sem dvida, ho de estar pelo cativeiro, naquela grande parte que lhes
disser respeito; e nestas terras uma circunstncia assas atendvel.
Aqui principiou a rever que eu trazia esta ordem, porque o
Padre Gabriel Malagrida disse a vrias pessoas que ela vinha, e que ele o
sabia muito bem, porque a tinha visto, e que S. Maj. lha dera, e bastou
essa notcia para pr a todo o povo em grandssima consternao, e me
mandaram sondar por vrias partes e ainda alguns me perguntaram a
mim mesmo, ao que tenho respondido com palavras gerais, sem confessar
nem negar, e instando-me que o Padre Malagrida a trazia, lhes respondi
que se le a tinha, era razo que a executasse; porm, que me no cons-
tava que o tal Padre trouxesse a ordem que eles diziam.
Vendo-me eu nas circunstncias presentes, me persuadi a que
era mais do servio de S. Maj. informar a V. Ex, para a fazer presente
ao mesmo Senhor, para vista dela tomar a resoluo que for servido.
Enquanto no chega a ltima ordem de S. Maj., vou executando
esta com suavidade e dissimulao, sem que estes povos compreendam que
obro sem mais ordem que aquela que est estatuda pelas leis de S. Maj.
No consinto que haja resgates; fao teno de proceder contra
os que passam ao serto a aprisionar ndios, que era coisa muito fre-
qente destas partes. A todos os que querem proclamar a liberdade, favore-
o quanto cabe na possibilidade, e no pouco tempo que h que governo,
tenho posto livres da escravido perto de trinta pessoas, e em poucos
anos far a brandura o que deveria fazer agora a repentina liberdade:
94
e
quando vier a publicar-se, j creio que exceo das religies, cujos escra-
vos ou rarssima vez ou nunca aparecem em juzo para proclamar a li-
berdade, porque os embaraam de modo ordinrio; sero poucos os
queixosos, e estabelecer-se- a mesma liberdade sem os clamores gerais
de todos.
A Amaznia na era pombalina 135
94 Seria assim a antecipao da norma adotada pelo Visconde do Rio Branco, na lei
de 28 de setembro, para a libertao dos escravos.
Nas conversaes com estes homens, lhes vou dizendo, quan-
do eles se queixam que no tm escravos e que, em conseqncia esto
perdidos, que S. Maj. tem resoluto no mandar fazer resgates aos ser-
tes, e que pela barra adentro lhes h de vir fortuna; que os negros so
melhores trabalhadores do que os ndios e que eu espero v-los por este
modo remidos; ao que me respondem que no tm meios para comprar
negros, que custam muito mais dinheiro; que ainda que lhes dem fia-
dos, que depois no os podero pagar; e como sobre esta matria hei de
informar a V. Ex com mais largura, ento direi o que me parece com os
fundamentos que me ocorrerem.
O referido por V. Ex na real presena de S. Maj. para deter-
minar o que for mais justo. Deus guarde a V. Ex muitos anos. Par, 30
de novembro de 1751.
Sr. Diogo de Mendona Corte-Real.
Doc. n 20 SENHOR Manda-me V. Maj., por esta real ordem infor-
mar se a Alfndega de S. Lus do Maranho, digo da cidade de S. Lus
do Maranho, carece de acrescentamento e se ser conveniente faze-
rem-se casas por cima dela, para a assistncia dos Provedores, como
tambm declarar se acham em stio prprio, tanto para o desembarque
das fazendas como para a cobrana dos direitos de V. Maj.
Nos poucos dias que estive naquela cidade, examinei ocular-
mente o contedo desta real ordem e achei que a Alfndega necessita de
acrescentamento, maiormente com a ocorrncia da cobrana da Dzima
que V. Maj. foi servido impor nas fazendas que vem para este Estado; e
no que respeita ao stio em que se acha, me parece o mais prprio e aco-
modado que tem toda a cidade.
Ordenei ao Provedor daquela Capitania me apresentasse s
ordens que havia de V. Maj. para se fazerem s casas da sua residncia
por cima da dita Alfndega, e juntamente mandasse tirar uma planta da
dita obra, com o clculo do que poder importar, ao que me respondeu
o que consta da cpia que remeto a V. Maj.
Nestes termos, me parece conveniente que V. Maj. mande
acrescentar a dita Alfndega, tanto para livrar descaminhos dos direitos
136 Marcos Carneiro de Mendona
reais como para ficar mais suave aos mercantes a descarga das fazendas
que por ora fazem com grave prejuzo, digo descmodo, cuja obra s
pode fazer com bons fundamentos e de maneira que a todo o tempo
que V. Maj. for servido mandar fazer por cima casas para a assistncia
dos Provedores, se possam efetuar, porque estas no as julgam por ora
to precisas, atendendo pobreza do Almoxarifado.
Porm, Senhor, como nos Oficiais da Fazenda daquela cidade
achei bastante descuido e negligncia, e nas obras de V. Maj, me cons-
tou de excessivos descaminhos que no pude averiguar, me parece jus-
tssimo que esta obra se remate em praa, no s com os ditos Oficiais,
mas tambm com a assistncia do Governador e Ouvidor; encarregan-
do V. Maj. a todos que no s cuidem em informar-se se h algum con-
luio na arrecadao, como tambm que cada um deles tenha toda a vigi-
lncia em fazer efetu-la na forma das condies com que se rematar; e
tudo isto me parece necessrio para se obviarem os desordenados des-
caminhos com que me informaram se tem gravado a Fazenda de V. Maj.
naquela cidade. V. Maj. mandar o que for servido. Par, 2 de dezembro
de 1751.
Doc. n 38 SENHOR Francisco Portilho de Melo acha-se no rio
Negro h muitos anos, e me consta que fazendo ou resgatando os ndios,
contra as ordens de V. Maj.
A amizade que em todo este tempo tem adquirido com os
Gentios, o tem feito poderoso; que me consta ter sujeitado a seu dom-
nio mais de 700 pessoas, por cuja causa, fazendo meu Antecessor dili-
gncia pelo tirar daquele serto o no pde conseguir por meio algum,
nem tambm Joo de Abreu Castelo Branco.
A grande distncia que h desta cidade e aquele serto, e
juntamente a extenso dele, fazem com que as ordens que se passam
para este sujeito ser preso, no tenham o devido efeito; porm, sem
embargo desta grande dificuldade passo ordem ao Capito da Fortaleza
do rio Negro para que a ele aos mais que contm esta real ordem de V.
Maj. busque todos os meios de o remeter a esta cidade; e, juntamente,
A Amaznia na era pombalina 137
procurarei tambm com suavidade e brandura
95
ver se posso conse-
guir; sem embargo que tudo acho dificultoso, pelas razes referidas, e
tambm porque o dito Portilho tem pessoas poderosas que o favorecem e
avisam. V. Maj. mandar o que for servido. Par, 2 de dezembro de 1751.
Doc. N 40 SENHOR Pretende Joo de Almeida da Mata que V. Maj.
lhe faa a merc de o entreter no posto que ultimamente ocupou de Ca-
pito-Mor desta Praa, com 200$ rs de soldo, que metade do que rece-
bia com o dito posto.
Pelos papis que oferece do seu servio, consta ter servido a
V. Maj. muitos anos, e sempre com muito zelo e distino. Em todas as
operaes que lhe foram encarregadas, e nos postos que ocupou desta
Praa de Capito-Mor, Sargento-Mor e Capito de Infantaria, me cons-
ta, pela voz de todos, que sempre se houvera com o mesmo zelo e muita
iseno, de sorte que hoje se v precisado a passar pobrissimamente por
se no poder sustentar sem soldos de S. Maj., valendo-se agora do sol-
dado que sentou na praa, depois que deu baixa de Capito-Mor.
Esta splica que o suplicante faz a V. Maj, sendo de graa, me
parece digna da real piedade e ateno de V. Maj., no s pela distino
com que consta tem servido a V. Maj. tantos anos, mas tambm porque
se v com o embarao de trs filhas e poucos meios para lhes assistir
com a decncia correspondente aos postos que ocupou. V. Maj. manda-
r o que for servido. Par, 2 de dezembro de 1751.
Ilm e Exm Sr. Nos ltimos dias que estive em Lisboa fui atacado da
grande molstia que a V. Ex foi presente, por cuja razo me no foi
possvel ter a honra de ir aos ps de V. Ex tomar-lhe as ltimas ordens;
agora espero a certeza de que V. Ex tem passado nas suas queixas com
tanta melhora que se acha restitudo constante sade que eu sempre
lhe desejo.
138 Marcos Carneiro de Mendona
95 Com suavidade e brandura: veja-se a carta de 24-IV-1753. (M.)
Eu cheguei cidade de S. Lus do Maranho com bom suces-
so, ainda que na viagem padeci bastantes molstias; da dita cidade passei
a esta Capital [Belm do Par] por terra, com bastante incmodo, mas
foi preciso tomar este trabalho, porque alm de que desejava logo ver algu-
ma parte destes sertes, quis obrigar aos Padres do Carmo a que puses-
sem missionrio em uma aldeia na margem do rio Turiau, que havia
quatorze anos que se achava sem proco; e alguns daqueles miserveis
moradores que ainda conservavam alguma idia de religio, se viam pre-
cisados, para batizarem um filho, ouvirem missa ou confessarem-se, a
fazerem uma jornada de trs dias, por cuja razo no s se passavam
anos que no ouviam missa, nem se confessavam, mas nem ainda bati-
zavam a maior parte dos filhos.
Logo que fui informado destes fatos chamei o Prior e lhe es-
tranhei a negligncia que tinha havido em matria to importante, e que
ou mandasse logo Missionrio para a dita aldeia, ou eu lhe poria quem
me parecesse. Prometeu-me que logo o mandava, porm, passaram mais
de quinze dias sem que acabasse de ir, at que eu tomei a resoluo de
lhe dizer que eu fazia a jornada por terra e que dentro em trs dias saa
do Maranho, e que na semana seguinte havia de ouvir missa na aldeia, e
que se no achasse nela o Proco, que eu no deixaria.
Parti com efeito, e quando cheguei aldeia j nela estava o pa-
dre missionrio, que tinha chegado no dia antecedente a p. Fiquei satis-
feito porque o Padre me pareceu muito bem, e homem j maduro, e que
daria conta do rebanho que se lhe entregava.
Continuei a minha jornada por estes largos sertes e com 21
dias de caminho cheguei a esta Cidade em 20 de setembro, e no dia de
Nossa Senhora das Mercs [24] tomei posse do governo.
Pelos seus colegas ser V. Ex informado com individuao,
do estado dele; e s em grosso lhe direi, pelo no cansar, que ele est na
ltima runa, porque os Errios Reais se acham extintos, as Rendas Reais
perdidas, e no bastam serem poucas se no mal administradas.
Aqui no h fortaleza sem runa; os poucos oficiais militares
que h se reduzem a estropiados, velhos e ignorantes. Os soldados sem
disciplina nenhuma; os oficiais mecnicos, no s no h Corporao
nenhuma desta gente, porm, algum que h no de momento ne-
nhum, porque a maior parte do que devia ser, com grande utilidade da
A Amaznia na era pombalina 139
Repblica, corporaes de oficiais mecnicos, est dentro das Religies
(Ordens Religiosas) entregues aos escravos dos padres e aos seus aldea-
nos, sem utilidade alguma ao pblico; finalmente, Senhor Excelentssi-
mo, aqui no acho mais que pobreza, misria e confuso.
Com estes esclarecimentos, bem compreende V. Ex o pouco
progresso que poderia fazer nestas circunstncias, ainda um habilssimo
Governador, e muito menos o poderei eu fazer, porque reconheo o
quanto me falta para encher as obrigaes deste lugar, e muito mais na
conjuntura presente; mas espero em Deus que me conserve o zelo, honra
e a verdade com que desejo servir a S. Maj., porque assim poderei suprir,
em parte, a falta de talento que Deus no foi servido dar-me.
Nesta Frota se recolhe a essa Corte o Bacharel Joo da Cruz
Diniz Pinheiro, depois de haver servido o lugar de Ouvidor do Mara-
nho, mais de quatro anos, com geral aceitao de toda aquela capitania.
Eu me informei mui minuciosamente do seu procedimento, e achei que
fez inteiramente a sua obrigao, administrando justia retissimamente
sem ateno a pessoa alguma. Limpssimo de mos e finalmente um h-
bil Ministro e de boa conscincia. Neste ofcio teve a curiosidade de se
instruir nos interesses e comrcio dele; desejara que V. Ex o ouvisse,
porque creio que no reputaria perdido o tempo que gastasse com ele,
porque leva bastante conhecimento deste pas. Veio sindicaliz-lo um
Bacharel provido em Ouvidor desta Capitania, chamado Manuel Lus
Pereira de Melo, conhecido entre os Ministros por Bacharel do Castelo;
e este se empenhou em arruinar o Sindicado, porm, por mais dilignci-
as que fez, no achou quem concorresse para o seu projeto. No sei se
de si dir alguma coisa na Conta que der, e se assim suceder creia V. Ex
que impostura e fora de paixo e se El-Rei tivesse sempre Ministros
como este neste Estado, no acharia eu na misria em que ele se acha.
Eu no tenho outro empenho a favor deste Bacharel mais do que pura-
mente o zelo do servio de S. Majestade, porque nunca o vi seno no
Maranho, nem ningum me falou nele; mas achando um homem de se-
melhante procedimento, em uma terra totalmente pervertida em costumes,
fiquei olhando para ele com suma venerao.
Aqui achei os Povoadores que devem ir para a nova Povoao
do Macap, no Cabo do Norte; desde que tomei posse at o presente
ainda no pude transportar mais do que .... por falta de canoas e remei-
140 Marcos Carneiro de Mendona
ros. As Religies que deveriam concorrer com as suas, para me ajudar,
mandam-nas aqui vir de noite, com gneros para o negcio, descarre-
gam-nas logo e no mesmo instante desaparecem; e quando amanhece
no h notcias delas; os pobres moradores no tm o que se lhes tome,
porque nenhum tem coisa alguma e ainda assim me tm ajudado mais
do que eu podia esperar deles.
Como V. Ex certamente h de ser informado com miudeza,
particularmente, no devo cans-lo mais, e s pedir-lhe me d repetidas
ocasies de servi-lo, em cujo exerccio me empregarei sempre com a mais
rendida e obsequiosa vontade. Guarde Deus a V. Ex muitos anos. Par, 2
de dezembro de 1751. Ilm e Exm Senhor Pedro da Mota e Silva.
Doc. N 21 SENHOR A fatura do Palcio Episcopal na cidade de
S. Lus do Maranho me parece justa, no s pela indecncia do em que
residem os Bispos daquela Diocese, mas tambm por desonerar a Fazen-
da de V. Maj. do aluguel anual que est pagando.
Para se efetuar esta obra junto da S, mandei a Loureno Bel-
ford que tirasse uma planta suficiente, e sem que excedesse os limites do
preciso; a qual, depois de feita, mandei o mesmo Loureno Belford
presena do mesmo Bispo e ele a aprovou, como consta da cpia da
carta que me escreveu, a qual remeto a V. Maj. junto com a dita planta.
Na informao que dou a V. Maj. sobre a obra da Alfndega
daquela cidade, que vai no nmero ..... exponho o pouco zelo que h
nos Oficiais da Fazenda dela, em cujos termos me parece que para esta
se efetuar, se observe o mesmo que aponto na dita informao, rema-
tando-se a obra na presena do Governador e Ouvidor, evitando todos
eles algum conluio, e procurando cada um que se satisfaam inteiramen-
te as obrigaes da arremetao.
Ouvindo eu o Procurador da Fazenda no que respeita, digo,
pertence ao esplio litigioso este respondeu o que consta da sua infor-
mao, da qual remeto a V. Maj. a cpia, e no que respeita ao oramento
do que poder importar a obra, me disse o dito Loureno Belford, que
seria sete ou oito mil cruzados, porm que, com mais certeza mo reme-
A Amaznia na era pombalina 141
teria a esta cidade, por escrito, o qual at o presente me no chegou. V.
Maj. mandar o que for servido. Par, 3 de dezembro de 1751.
Ilm Exm Sr. Ainda que conheo que as grandes ocupaes de V. Ex
lhe no deixam um instante livre, no posso dispensar-me de lhe tomar
este breve tempo para chegar aos ps de V. Ex, no s para ofere-
cer-lhe a minha rendida obedincia, mas assegurar-lhe o quanto desejo
a certeza de que V. Ex logra uma constante e perfeita sade.
Cheguei a este Estado adonde nem acho soldado nem homem
que o parea. Aqui no se conhece obedincia nem disciplina alguma. O
pequeno Corpo chamado Militar que aqui h, uma pouca de gente
com quem El-Rei faz bastante despesa, entre a qual h uns homens a
que chamam Oficiais, que se reduzem a estropiados, velhos e ignoran-
tes; qualquer palavra que se lhes diga sobre a economia ou disciplina,
lhes faz novidade; finalmente Senhor Excelentssimo no tenho um ho-
mem de que fie uma diligncia, porque ou eu a hei de fazer, ou se perde-
r, sem dvida. Deus queira que V. Maj. me socorra, e a V. Ex rogo que
se me houverem de mandar oficiais que queira concorrer para que ve-
nham alguns que saibam do ofcio e que possam ensinar a esta ignoran-
tssima gente; e todos os que vierem sero poucos para reduzir ordem
a confuso em que se acha o Militar em todo este Estado.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A honra que sempre devi a V. Ex me d a confiana de ofe-
recer-lhe esta amostra do caf desta terra
96
e sempre V. Ex me tem
para servi-lo com aquela obsequiosidade e rendida vontade, igual mi-
nha grande obrigao.
Guarde Deus a V. Ex muitos anos. Par, em 3 de dezembro
de 1751.
Ilm e Exm Sr. Marqus Estribeiro-Mor.
97
142 Marcos Carneiro de Mendona
96 Amostra de caf.
97 Marqus Estribeiro-Mor: Era D. Pedro Jos de Alcntara Antnio Lus Francisco
Xavier Melchior de Meneses Noronha Coutinho, 4 Marqus de Marialva; sendo
seu representante atual o Duque de Lafes, D. Lopo de Bragana. (M.)
Ilm e Exm Sr. A trabalhosa queixa que padeci nos ltimos dias que es-
tive nessa Corte me embaraou o poder ir buscar as ltimas ordens de
V. Ex. Agora vou, no modo que posso, aos seus ps, no s a ofere-
cer-lhe a minha obsequiosa obedincia, mas assegurar-lhe que desejo a
certeza de que V. Ex logra a mais constante sade.
Eu cheguei em bom sucesso a este Estado ainda que na viagem
padeci algumas queixas, e na terra tenho tido alguma repetio delas.
Logo que aqui cheguei fiz diligncia pelo Procurador do Senhor Portei-
ro-Mor
98
aqui me tem falado umas poucas de vezes, porm, enquanto
se no for a Frota, no haver tempo para lhe falar com maior vagar que
preciso, e pode V. Ex estar na certeza de que no s se lhe no h de
fazer sem razo, mas que tudo o que couber no possvel, com que se
no arrisque a justia, a honra e a conscincia, lhe hei de fazer com toda
a boa vontade, porque a todas V. Ex desejo ter a honra de servir.
O que at agora tenho podido averiguar que a Casa do Se-
nhor Porteiro-Mor tem aqui uma larga extenso de pas, mas de muito
pouco rendimento, por serem terras desertas, e apenas se acha com a
pequena Vila do Caet. O que me informaram das suas rendas, consta
da cpia da relao que remeto, que aqui me entregou o Capito-Mor da
dita Vila, que Procurador do Senhor Porteiro-Mor.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Tomo a confiana de oferecer a V. Ex uma amostra do caf
deste pas
99
que me no parece mui diferente do do Levante; e se nesta ter-
ra V. Ex achar que h coisa em que eu possa ter a honra de servi-lo, me
achar sempre para este exerccio com a mais rendida e obsequiosa vontade.
Guarde Deus a V. Ex muitos anos. Par, 3 de dezembro de
1751. Ilm e Exm Sr. Conde de Unho.
100
A Amaznia na era pombalina 143
98 Senhor Porteiro-Mor: Penso ser um descendente de Gaspar de Sousa.
99 Amostra do caf deste pas. F. X. M. F. foi assim o primeiro propagandista do
nosso caf e do cacau do Brasil. (M.)
100 Era o 5 Conde de Unho, D. Joo Xavier Teles de Meneses e Castro, 13 Se-
nhor de Unho. Casou em 27 de agosto de 1741 com D. Maria Jos da Gama,
4 Marquesa de Nisa. Por este casamento irmanaram-se as Casas de Unho e a
de Vasco da Gama (ascendentes dos marqueses de Nisa). (M.)
Meu amo e Sr. Cheguei ao Maranho, adonde desembarquei para dar
posse ao Governador, e voltando para bordo da nau para continuar a
minha viagem para esta cidade, com poucas horas de navegao me vi
em cima de um baixio em que a nau deu trs grandes pancadas, e deitou
o leme fora. Em cima do tal baixo se deu fundo; dali foi preciso tornar
a arribar quele porto, para fazer outro leme com que se continuasse a
viagem.
Entre outras coisas de que tomei conhecimento, naquela
cidade, foi o achar que uma aldeia pertencente aos P.
es
[Padres] do
Carmo havia 14 anos se achava sem Missionrio; chamei ao Prior, e
lhe estranhei a grande omisso que tinha havido em matria to im-
portante e lhe recomendei que logo mandasse um padre para aquela
povoao; assim mo prometeu, porm, passaram-se mais de quinze
dias sem haver execuo na promessa; como receei que se no vies-
se o Pe., enquanto eu ali me achava, que na minha ausncia ficasse o
negcio no mesmo descuido, tomei a resoluo de vir por terra, e
dizer ao Prior que eu na semana seguinte havia de ouvir missa na tal
aldeia, e que se no achasse nela Proco que eu o deixaria; no mes-
mo instante partiu, e quando eu cheguei j na vspera tinha nela en-
trado o Padre Missionrio.
Pelas contas que dou no Conselho ver V. S o estado da
arrecadao da Fazenda naquela Capitania. Entre todas as desor-
dens que achei, nenhuma me escandalizou mais do que foi a de se
entregarem duas Companhias na mo de um contratador para que
em sua casa fossem roubados os soldados, como de fato sucedia, e
a da reduo do pano de algodo a dinheiro, com uma perda to
grande da Fazenda Real, como V. S compreender da conta que
dou no Conselho.
O Contratador que paga aos soldados, tambm no sei com
que razo tesoureiro dEl-Rei, para conservar os seus cabedais na mo
de uns contratos para outros, sem nunca se lhe tomar contas; para ainda
em agosto estar pagando o ano de 1747. No lhe falando ningum em
toda a mais quantia que resta at o ano presente.
Toda mais administrao da Fazenda Real naquela Capita-
nia, da mesma natureza. Informaram-me que as compras se carre-
144 Marcos Carneiro de Mendona
gavam por trs, e quatro vezes mais do que na verdade custavam; as
obras que se faziam era proporo. Estas cousas necessitavam de
mais vagar do que eu tive para as averiguar, porm guardei as notcias
que me deram, e agora em recolhendo o Desembargador Ouvi-
dor-Geral lhe encarrego que acabe o que eu no pude findar, e fio
dele que far a diligncia com a honra, continncia e verdade que
negcio to importante merece.
Pelo que respeita Administrao da Fazenda desta Capita-
nia, tem havido causa com que eu no possa avanar muito no seu co-
nhecimento. Algumas desordens me dizem que tem havido, mas ainda
me no posso contrair a fatos. Aqui achei um Provedor que me tem at
agora parecido homem de verdade, e zelo, porm isto no passa de pri-
meira aparncia em eu entrando em conhecimento pleno, os fatos daro
os procedimentos.
Pelas relaes que remeto da Receita, e Despesa da Fazenda
Real, ver V. S que esta Capitania no pode subsistir muito tempo, e fui
to infeliz, que andando a arruinar-se h tantos anos, me veio a cair ago-
ra cabea.
Ela est reduzida ao miservel estado que nem se faz crvel,
nem possvel o poder-se explicar, seno maior runa; a terem-se in-
vertido at as idias de todas estas gentes, todos se queixam, e nenhum
compreende o mal que comum a todos.
Na Capitania do Maranho, havendo um pouco de cuidado,
ainda se pode remediar com menos trabalho; nesta no impossvel,
mas sumamente dificultoso o remdio.
As Alfndegas foram aceitas sem repugnncia, mas no ficam
estabelecidas porque toda esta gente diz que se deve aqui despachar pela
Pauta do Consulado de l, porque esto sumamente pobres, e que ainda
assim lhes faz uma grande vexao.
Tendo-lhe explicado com a maior clareza, que me tem sido
possvel, que depois de postos os dez por cento na Alfndega, se devem
pagar dos preos por que aqui se vendem os gneros, e no pelos que
so avaliados na sada em Lisboa, e que ao contrrio, sendo perda da
Fazenda Real, no de lucro algum aos moradores, mas somente dos
comissrios que aqui os transportar, que a experincia lhe tem mostra-
do que o povo os paga verdadeiramente, e que El-Rei no os cobra,
A Amaznia na era pombalina 145
porque a todos eles tinha ouvido que as fazendas tinham subido na terra
os tais dez por cento e que os levavam os mercadores quando tinham
pagos os direitos, com o favor da Pauta do Consulado, e que nesta for-
ma vinham eles a no lucrar o favor, e a Fazenda Real a perder a grande
diferena que vai de uma a outra avaliao, sem embargo de todo o tra-
balho. Responderam o que V. S ver do termo que fizeram e remeto ao
Conselho.
As Alfndegas foram aceitas, digo a Dzima daquela Alfnde-
ga se rematou por cinco contos quatrocentos e oitenta mil-ris, e todos
os anos me parece que h de ir a mais, porque nela entram gneros que
se transportam no s para a Moxa,
101
Aldeias Altas, Pastos Bons, e
Parnaba, para todo o serto que est muito povoado, e at para as mi-
nas da Natividade e S. Flix.
102
A desta Alfndega se rematou por nove mil cruzados menos
15$000 rs., e dizem os prticos do pas que todos os anos h de ir a me-
nos, porque as fazendas que nela se despacham no tm extrao algu-
ma para os sertes, porque as fazendas quase todas que nele se consome
nas Aldeias e saem sem pagar nada de despacho, e somente se deve con-
sumir a fazenda que se gasta na terra, e como nela no h quem tenha
dinheiro para comprar, vem somente a ter gasto aquela que se d fiada,
ou a que se permuta por alguns gneros aos poucos lavradores que aqui,
digo, ainda aqui h.
A rematao dos dzimos que o Conselho l me mandou,
para se rematarem por tempo de um ano, negcio que me tem dado
bastante cuidado, porque nele impossvel que deixe de perder muito a
Fazenda Real.
Estes homens que lanam fazem-lhe a conta de que pagam
propinas, e que fazem uma grande despesa para toda a fbrica do Pes-
queiro da Ilha de Joanes, e que tudo isto para o breve termo de um ano,
que lhes pode ser contrrio.
Todas estas despesas certas e perdas imaginadas, fazem a
conta para darem o seu lano com segurana, por cuja razo, man-
146 Marcos Carneiro de Mendona
101 Moxa: depois Pombal; como os demais, no Piau.
102 Minas de ouro da Natividade e So Felix, de Gois, situadas nas proximidades
do rio Tocantins. (M.)
dando eu pr no princpio de outubro a renda a lanos, veio um
Francisco Dourado lanar cinco contos, em cujo lano andou mais
de um Mesrio; mandei falar a alguns homens para ver se podiam ti-
rar do lano, somente se resolveu um Baltasar do Rego Barbosa, diz
ele que por me fazer lisonja, a oferecer mais 50$ rs. Logo que o outro
viu o seu lano coberto se foi, e no tornou a lanar um s real. Nes-
te lano andou at dia de ontem, em que se rematou ao dito Barbosa
por cinco contos e cinqenta mil-ris, e no mandei dilatar mais tem-
po a rematao, porque menos de um ms que fica ao contratador,
no muito para fazer tudo o que preciso para entrar no primeiro
de janeiro na sua administrao.
Quando cheguei a esta terra, havia mais de um ms que ti-
nha chegado o Navio dos Casais. O meu Antecessor lhe tinha dado a
providncia de lhes mandar dar para sua sustentao, meio tosto a
cada homem, e dois vintns a cada mulher; no me pareceu inovar
nada.
Entrei na fadiga de logo os transportar, porm, por mais que
tenho trabalhado, desde o dia em que tomei posse, que foi a 24 de se-
tembro, at hoje, ainda no pude mandar mais do que trs expedies,
em que tm ido 234 pessoas, porque nem tenho achado ndios, nem ca-
noas, nem modo algum de mandar esta gente to depressa como era ra-
zo que fosse.
Em todas as canoas mando alguns soldados, para pouco a
pouco, sem estrpito, por l um corpo de 40 at 50 soldados, para todo
o caso que ocorrer.
J mandei um clrigo, a quem aqueles novos moradores cha-
mam Vigrio, que deixou aqui a sua casa e foi sem ajuda de custo, nem
ordenado, porque eu no tenho jurisdio para lho poder dar.
Tambm agora mando para governar
103
interinamente esta
gente, a um moo que serviu com bom prstimo no Regimento da
Armada, e agora acabou de Capito-Mor do Gurup, e vai com o mes-
mo soldo, e ajuda de custo do clrigo.
A Amaznia na era pombalina 147
103 Mando para governar: Instrues que lhe passou; isto , ao capito-mor Joo
Batista de Oliveira. So do Par, 18-XII-1751.
Faltava-me um cirurgio, e boticrio para ir com eles, e achei
tudo em um volame... Tirei informao, todos me disseram que era ca-
paz (valha a verdade), este porm no foi de to boa avana como os
dois, porque na vspera em que se havia de embarcar me apareceu aqui
com as lgrimas nos olhos, e me mostrou os sapatos todos rotos, e me
disse que ele estava daquela sorte e sua mulher e famlia que os acompa-
nhavam, na ltima misria, e que pelo amor de Deus lhe mandasse dar
alguma ajuda de custo com que se pudesse calar e pagar uma pequena
dvida, porque o queriam prender.
Excedi o poder do meu Regimento mandando-lhe dar 20$000
Rs., de ajuda de custo mas sem ordenado; se os no quiserem abonar, e
nos fizerem pagar, terei pacincia.
Fico continuando em acabar de transportar esta gente que
ainda me h de dar bem que fazer, pela falta de meios, e depois me no
h de dar pouco cuidado o transportar-lhes gados, porque so muitos e
poucas as embarcaes.
Os povoadores que vieram, a maior parte so mulheres, crian-
as e velhos. Homens de trabalho so os menos, por cuja razo era im-
possvel dividi-los.
No me pareceu que nada estava primeiro que povoar do que
o Macap,
104
porque temos por ali maus vizinhos, e com boas terras,
conforme me dizem, e na ocasio presente, sem meios, ou modo de
transportar estas gentes para parte mais longe, ali os vou aquartelando, e
em saindo a Frota, se Deus me der sade, vou logo fundar a nova Povo-
ao de So Jos, se S. Maj. for servido que assim se chame, e depois de-
clarar-me se quer que seja vila ou cidade, ou que fique em lugar; porm
como fica to longe, me parece que no poder deixar de haver ali um
Corpo Civil para governo daquela terra. Eu por ora lhe hei de deixar um
148 Marcos Carneiro de Mendona
104 Os homens de hoje, e mesmo os nossos historiadores, inclusive Rio Branco,
no se aperceberam da importncia desta resoluo de se encaminharem es-
ses aorianos, e quase toda a gente tirada do velho presdio e fortaleza de
Mazago, para a parte norte da embocadura do rio Amazonas, com o fim es-
pecial de garantir o domnio de Portugal sobre aquelas terras, at ento intei-
ramente sujeitas s incurses e s pretenses de franceses e holandeses; me-
dida durssima, seguida da construo da grandiosa fortaleza de Macap; com
o que ficou praticamente assegurado o domnio da Coroa de Portugal sobre
aquelas cobiadas terras. (M.)
Juiz do Julgado, e um Escrivo para fazer algum testamento, e ocorrer
aos mais casos que sucederem; e assim se governar at S. Maj. ordenar
o que quer que se faa. Ainda no tive daquele stio mais do que as pri-
meiras novas, pelas canoas que transportaram os primeiros povoadores,
em que eles mandaram dizer aos companheiros que estavam muito con-
tentes, porque a terra era boa, e que tinham visto uma grande abundn-
cia de peixe e caa. Queira Deus que eles assim continuem, e que faa-
mos ali uma povoao que livre a este Estado da lamentvel misria e
runa em que se acha.
No Maranho desencalhei a expedio do rio Mearim, e
como vi que o Padre Missionrio a ia executar custa da Fazenda
Real, e sem ordem nenhuma do que devia fazer, ou como se devia
governar, fundado na ordem que V. S sabe de S. Maj., em que man-
da civilizar os ndios, fiz ao dito padre a Instruo de que remeto a
cpia ao Conselho. Se executar, creio que aqueles novos vassalos de
S. Maj. ficaro com uma grande diferena a todos os outros que es-
to h tantos anos aldeados, e teremos mais quem livremente culti-
ve as terras, exercite as artes e nos ajude no caso de haver alguma
necessidade.
Agora fico tratando da aldeias novas, que se mandam fazer
pelos Padres da Companhia. Estas so muito mais delicadas, pela vizi-
nhana; verei o que posso fazer a favor do servio dEl-Rei, e se posso
adiantar mais alguma coisa jurisdio secular, nelas.
Ao Conselho remeto o Mapa Militar; por ele ver V. S o
estado destas tropas, nas quais no h um nico soldado, no s que
saiba, mas que nem ainda ouvisse falar em sua vida nas obrigaes do
ofcio que tinham; e ficam no mesmo estado, porque nem eu tenho
tempo para os ensinar, nem oficial a quem encarregue es