A+Modernidade+ +Walter+Benjamin

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  • 7/31/2019 A+Modernidade+ +Walter+Benjamin

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    A MODERNIDADE*

    A imagem do artista de Baudelaire aproxima-se daimagem do heri. Eles se eqivalem mutuamente desde o incio.A fora de vontade, assim se l no Salon de 1845, deve ser umdom realmente precioso e aparentemente nunca se utiliza em vo,pois suficiente para emprestar algo de inconfundvel ... mesmoa obras de segunda categoria... O espectador aprecia o esforo; elebebe o suor". Nos Conseils aux jeunes littrateuts do ano seguinteencontra-se a bela frmula em que aparece a "contemplation opi-nitre de l'oeuvre de demain" como a garantia da inspirao.Baudelaire conhece a "indolence naturelle des inspires". Mussetnunca teria compreendido quanto trabalho necessrio "para criaruma obra de arte de uma fantasia". Baudelaire, pelo contrrio,apresentava-se desde o incio perante o pblico com um cdigoprprio, com regras e tabus prprios. Barrs pretende "reconhecerno mais insignificante vocbulo de Baudelaire o vestgio dosesforos que lhe deram a grandeza". "Baudelaire conserva algo desadio at em suas crises nervosas, escreve Gourmont". Aapreciao mais feliz do simbolista Gustave Kahn quando dizque "o trabalho potico se parecia em Baudelaire com um esforofsico". Encontra-se na obra deste uma prova desta afirmao em uma metfora que merece ser analisada mais de perto.

    Trata-se da metfora do esgrimista. Nesta, Baudelairegostava de apresentar os traos marciais como traos artsticos.Quando descreve Constantin Guys de quem gostava, procura-onum momento em que os outros dormem; "como ele est ali,debruado sobre a mesa, olhando a folha de papel com a mesmavivacidade com que olha, durante o dia, as coisas ao seu redor;como esgrime com o seu lpis, sua pena, seu pincel; como deixaque' a gua respingue do seu copo para o teto e como experimentaa pena em sua camisa; como trabalha depressa e com mpeto,parecendo temer que as imagens lhe fujam. Assim ele marcialembora solitrio, contra-atacando seus prprios golpes".

    * Die Moderne

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    Na estrofe inicial do SoleilBaudelaire retratou-se nessa"luta fantstica" e trata-se do nico trecho nas Flettrs du malque o apresenta em seu trabalho potico. O duelo de que participatodo o artista no qual "solta um grito de terror antes de ser

    vencido" conhecido como um idlio; a violncia do duelo passaa segundo plano aparecendo apenas o seu encanto.

    Le long du vieux faubourg ou pendent aux masures Les

    peraiezmes, abri des secrtes luxures, Quand le soleil cruel

    frappe traits redoubls Sur Ia ville et les champs, sur les toits et

    les bls, Je vais m'exercerseul ma fantasque escrime, Flairantdans tous les coins les hasards de Ia rime, Trbuchant sur les

    mots comme sus les pavs, Heurtant parois des vers dequis

    longtemps revs.Uma das intenes de Baudelaire em Spleen de Paris

    seus poemas em prosa era render justia a estas experinciasprosdicas tambm na prpria prosa. Na dedicatria da sua co-letnea ao redator-chefe da "Presse", Arsne Houssaye, ao ladodesta inteno ele revela tambm os verdadeiros motivos destasexperincias. "Quem de ns no teria sonhado, em dias de ambi-o a obra maravilhosa de uma prosa potica? Deveria ser mu-

    sical sem ritmo e sem rima; deveria ser suficientemente flexvel espera para adaptar-se s emoes lricas da alma, aos movi-mentos ondulados do sonho, aos choques da conscincia. Esteideal, que se pode tornar uma idia fixa, vai apoderar-seespecialmente de quem vive nas cidades gigantes na malha desuas inmeras relaes entrelaadas".

    Se quisermos ter presente este ritmo, seguindo o seu modode trabalhar, veremos que o flaneurde Baudelaire no tanto um

    auto-retrato como se poderia supor. Um trao importante doverdadeiro Baudelaire aquele que se deu sua obra noaparece neste retrato. o estado de devaneio. No ilaneur muitoevidente o prazer de olhar. Este pode concentrar-se na observao daqui resulta o detetive amador; ou pode estagnar no simplescurioso e ento o flaneurse transforma no badaud.

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    caracterstica da concepo do heri em Baudelaire em todas assuas manifestaes.

    A misria que aqui se disfara no apenas material: refe-re-se produo potica. Os esteretipos nas experincias de

    Baudelaire, a falta de comunicao entre suas idias, ainquietao imobilizada nos seus traos, indicam que nodispunha de reservas que abrem ao homem um profundoconhecimento e uma ampla viso histrica. "Como escritorBaudelaire tinha um grande defeito de que ele prprio nodesconfiava: era ignorante. O que sabia, sabia profundamente;mas sabia pouco. Histria, fisiologia, arqueologia, filosofia,permaneceram-lhe estranhas... Pouco se interessava pelo mundo

    exterior; talvez tomasse conhecimento dele, mas de qualquerforma no o estudava". Em face destas crticas e de outrassemelhantes justifica-se chamar a ateno para a necessria e tilinacessibilidade daquele que trabalha; chamar a ateno para asinfluncias idiossincrticas inerentes a qualquer produo; mas osfatos tm tambm um outro aspecto. Levam a que se exijademasiado do produtor em nome de um princpio criador. Aexigncia tanto mais perigosa quanto, lisonjeado o orgulho do

    produtor, ajuda antes de mais nada aos interesses de uma ordemsocial que lhe hostil. A maneira de viver do bomio contribuiupara criar uma superstio quanto fora criadora a que Marx seope com uma observao que diz respeito tanto ao trabalhoespiritual como ao manual. Marx critica a primeira frase doGothaer Programmentwurf"O trabalho a fonte de toda a ri-queza e de toda a cultura": "os burgueses tm boas razes paraatribuir ao trabalho uma fora criadora sobrenatural; porque pre-

    cisamente da natureza do trabalho resulta que o indivduo que nodispe de outra propriedade a no ser sua fora de trabalho, deveem todos os estados sociais e culturais permanecer escravo dosoutros indivduos que se tornaram proprietrios das condiesobjetivas de trabalho". Baudelaire possua poucas condiesobjetivas de trabalho espiritual: fora de uma biblioteca e de umapartamento no existia nada a que no precisasse renunciar nodecorrer de sua vida, sempre instvel tanto dentro como fora de

    Paris. Em 26 de dezembro de 1853, escreve sua me: "Estouacostumado de tal modo a sofrimentos fsicos, sei to bem me ar-

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    rumar com duas camisas debaixo de uma cala rasgada e de umpalet pelo qual penetra o vento, e estou to treinado a emendarsapatos furados com palha ou mesmo com papel, que sinto apenasos sofrimentos morais. No obstante, devo confessar que cheguei

    a um ponto em que no fao movimentos bruscos e nem andomuito com medo de rasgar as minhas coisas ainda mais". Assimeram as experincias menos inequvocas que Baudelaire sublimouna imagem do heri.

    Nesta poca, o despojado aparece ainda em outro lugar soba imagem de heri; mas de forma irnica. o caso de Marx. Elefala das idias do primeiro Napoleo e diz: "O ponto culminantedas 'ides napoloniennes'... a preponderncia do exrcito. O

    exrcito era o point d'honneurdo campons pequeno-proprietrio,ele mesmo transformado em heri". Mas agora, sob o terceiroNapoleo o exrcito j mo mais a flor da juventude camponesa,ele a planta palustre do Lumpen-proletariado campons. Namaior parte constitudo por substitutos... o prprio segundo Bo-naparte um substituto de Napoleo". O olhar que volta destaviso para a imagem do poeta esgrimista, encontra-a por segundosapagada pela do marodeur, do mercenrio que 'esgrime' de modo

    diferente e que erre pelo mundo.Sobretudo ressoam dois versos famosos de Baudelaire,

    com sua sncope discreta, atravs do vcuo social de que falaMarx. Eles terminam a segunda estrofe do terceiro poema dePetites vieilles. Proust acompanha-os com palavras, "il sembeimpossible d'aller au dela".

    Ah! que j'en ai suivi de ces petites vieilles! Une, entre

    autres, 1'heure ou le soleil tombant Ensanglante le ciei de

    blessures vermeilles, Pensive, s'asseyaii 1'car sur un bane,Pour entendre un de ces concerts, riches de cuivre, Dont les

    soldats pariois inondent nos jardins, Et qui, dans ces soirs d'or o

    Von se sent revivre, Versent quelque hroisme ou coeur des

    citadins.

    A banda de instrumentos de metal integrada por filhos decamponeses empobrecidos, que faz soar sua msica para a popu-lao pobre da cidade, reflete o herosmo que esconde

    timidamente na palavra quelque sua incapacidade para convencer;

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    e neste gesto se esconde o nico e autntico herosmo de que estasociedade ainda capaz.

    No peito de seus heris no habita sentimento, que noteria lugar tambm no peito da gente humilde que se agrupa em

    volta de uma banda militar.Os jardins de que se fala no poema como "os nossos" so

    aqueles abertos ao citadino cuja ansiedade vagueia, em vo, emtorno dos grandes parques fechados. O pblico que passeia nelesno exatamente o mesmo que rodeia o flaneur. "Seja qual for opartido a que se pertena", escreveu Baudelaire em 1851, " im-possvel no ficar emocionado com o espetculo desta populaodoentia, que engole a poeira das fbricas, que inala partculas de

    algodo, que deixa penetrar seus tecidos pelo alvaiade, pelomercrio e por todos os venenos necessrios realizao dasobras-primas... Esta populao espera os milagres a que o mundolhe parece dar direito; sente correr sangue purpreo nas veias elana um longo olhar carregado de tristeza luz do sol e ssombras dos grandes parques". Esta populao o pano de fundo,no qual se destaca a silhueta do heri. Para este quadro,Baudelaire escreveu uma legenda a seu modo: a expresso la

    modernit.O heri o verdadeiro tema da modernit. Isto significa

    que para viver a modernidade preciso uma formao herica.Esta era tambm a opinio de Balzac. Assim, Balzac e Baudelairese opem ao romantismo. Sublimam as paixes e as foras dedeciso; o romantismo sublima a renncia e a dedicao. Essanova concepo muito mais complexa e rica no poeta do que noromancista. Duas figuras ilustram o que escrevemos. Ambas apre-

    sentam ao leitor o heri em sua nova verso. Em Balzac, o gladia-dor torna-se commis voyageur. O grande caixeiro viajante Gau-dissart prepara-se para trabalhar na Touraine. Balzac descreveseus preparativos e interrompe-se exclamando: "Que atleta! quearena! e que armas: ele o mundo e sua verborria". Baudelaire porseu lado, reconhece no proletrio o escravo da esgrima; a respeitodas promessas que o vinho concede ao deserdado, diz a quinta es-trofe do poema L'me du vim:

    J'allumerm les yeux de (a femme ravie;

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    sociais que se destacam como fundamento da modernidade. Osprimeiros eslboos da sua teoria datam de 1845. Na mesma pocaenra;zou-se nas massas trabalhadoras a idia do suicdio. "Briga-se pelas reprodues de uma litografia que representa um operrio

    ingls que se suicida pelo desespero de no poder ganhar o po decada dia. Um operrio vai at a casa de Eugne Sue e ali seenforca; na sua mo encontra-se um papel: 'Pensava que a morteseria mais fcil morrendo na casa da pessoa que nos defende eque gosta de ns' ". Adolphe Boyer, um tipgrafo, publicou em1841 o pequeno escrito De l'tat des ouvriera et de sonamlioration par l'organisation du travai!. Trata-se de umaexposio moderada que procurava trazer para a associao dos

    operrios, as corporaes de artesos itinerantes, presos a velhastradies corporativas. No leve xito: o autor suicidou-se e numacarta aberta exortava seus companheiros de infortnio a seguir-lheo exemplo. Baudelaire poderia muito bem compreender o suicdiocomo o nico ato herico, que restava s multitudes maladivesdas cidades, nos tempos da Reao. Talvez visse a morte deRethel, por quem tinha grande admirao, imaginando-o comoum desenhista hbil frente a um cavalete, esboando na tela os

    suicidas. Quanto s cores do quadro, a moda ofereceu sua paleta.A partir da Monarquia de Junho comeou a predominar o

    preto e o cinza na roupa masculina. Baudelaire preocupou-se comesta inovao no Salon de 1845. Na observao final do seu pri-meiro escrito explica: "Entre todos ser chamado o pintor, aqueleque destaca o lado pico da vida presente e que nos ensina emlinhas e cores como somos grandes e poticos em nossos sapatosde verniz e em nossas gravatas. Esperemos que os autnticos pio-

    neiros do ano que vem nos dem o prazer de poder festejar onascimento de algo verdadeiramente novo". No ano seguinte:"Por falar na roupa, o invlucro do heri moderno ... ela nodeveria ter a sua beleza e o seu encanto prprio? No ser esta aroupa de que a nossa poca precisa; pois ela ainda sofre e carregaem seus magros ombros pretos o smbolo de uma tristeza eterna.O terno e a sobrecasaca pretos no tm apenas sua beleza polticacomo expresso de igualdade geral tm igualmente uma beleza

    potica como expresso da situao espiritual pblica

    representada numa imensa procisso de papa-defuntos papa-

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    defuntos polticos, papa-defuntos erticos, papa-defuntos

    particulares. Todos temos sempre um enterro a festejar. A roupado desespero, quase toda igual, prova a igualdade. . . E as pregas

    na fazenda que fazem caretas e que se enroscam como cobras emvolta de carne morta, no tero seu encanto oculto?". Estas idiasresultam da profunda fascinao que exerce sobre o poeta atranseunte vestida de preto de que fala o soneto. O texto de 1846termina: "Os heris da Iliada no chegam aos de vocs, Vautrin,Rastignac, Birotteau e de voc Fontars, que no ousou confessarao pblico o que sofreu debaixo da casaca encolhida que todosusamos; e de voc Honor de Balzac, a figura mais estranha,

    mais romntica e mais potica entre todas as que sua prpriafantasia criou''.Em uma crtica moda masculina, o democrata Friedrich

    Theodor Vischer, da Alemanha do Sul, chega quinze anos maistarde a concluses semelhantes s de Baudelaire. Apenas o seudestaque se modifica; o que em Baudelaire se encontra comonuance nas cores alvoroantes da modernidade, apresenta-se emVischer como argumento ntido na luta poltica. "Definir a sua

    posio", escreve Vischer referindo-se Reao que seestabeleceu desde 1850, " considerado ridculo, ser enrgico julgado pueril; porque ento a roupa no era tambm incolor,frouxa e apertada ao mesmo tempo?". Os extremos se tocam; acrtica poltica de Vischer, em sua expresso metafrica, coincidecom uma imagem da primeira fase de Baudelaire. Num soneto, oAlbatrozescrito durante a viagem ao ultramar, com a qual seesperava corrigir o jovem poeta Baudelaire se reconhece

    naquelas aves. Descreve a falta de jeito delas no convs do navio,onde a tripulao as deixou, da seguinte forma:A peine les ont-ils dposs sur les planches, Que ces roa

    de Pazur, maladroita et honteaux Laissent piteusement leurs

    grandes ailes blanches Comme des avirons trainer cote d'eux.

    Ce voyageur ail, comme il est gache etveule!Acerca das mangas largas, caindo sobre o pulso da casaca

    diz Vischer: "Estas j no so mais braos, mas penas rudimen-tares, cotos de penas de pingim, barbatanas de peixe, emovimento das roupas amorfas, ao andar, parece um tolo e

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    simplrio agitar-se, empurrar, correr, e remar ao mesmo tempo".A mesma concepo da situao a mesma imagem.

    Mais claramente Baudelaire determina assim a face da mo-dernidade sem renegar na sua testa o sinal de Caim: "A maioria

    dos poetas que trataram de assuntos realmente modernos conten-tou-se com temas estereotipados, oficiais estes poetaspreocupa-pam-se com nossas vitrias e nosso herosmo poltico.Mas fazem-no tambm de mau grado, e apenas porque o governoo ordena e lhes paga. Mas existem temas da vida privada muitomais hericos. O espetculo da vida mundana e de milhares deexistncias desordenadas; vivendo nos submundos de uma grandecidade dos criminosos e das prostitutas A 'Gazette des

    Tribunaux' e o iMo-niteur' provam que apenas precisamos abrir osolhos para reconhecer o herosmo que possumos".

    O apache penetra, aqui, na imagem do heri. Nele seencontram os caracteres, que Bounoure assinala na solido deBaudelaire - "um nolime tangere, um isolamento do indivduona sua peculiaridade". O apache renega as virtudes e as leis.Denuncia de uma vez para sempre o contrato social. Assim, pensaestar separado do burgus por um mundo. No reconhece nele os

    traos do cmplice, que logo depois foram apresentados, com togrande efeito, por Hugo nos Chtiments. No entanto, as iluses deBaudelaire foram mais duradouras. Elas fundamentam a poesiacaracterstica do apache. Fazem parte de um gnero que emoitenta anos no foi destrudo. Baudelaire foi o primeiro a tratardeste tema. O heri de Poe no o criminoso, mas o detetive e,Balzac, por seu lado, conhece apenas o grande marginal dasociedade. Vautrin sofre a ascenso e queda; tem uma carreira

    como todos os heris de Balzac. A carreira dos criminosos iguals outras. Tambm Ferragus pensa em algo grande e amplo; dotipo dos carbonari O apache, que depende totalmente dasociedade e da grande cidade, no existia na literatura antes deBaudelaire. O cunho mais expressivo deste tema em Fleurs dumal, o Vin de fassassin, tornou-se ponto de partida de um gneroparisiense. O Chat Noir virou o seu lugar de encontro. O lema dosprimeiros tempos hericos foi "passant, sois moderne".

    Os poetas encontram na rua o lixo da sociedade e a partirdele fazem sua crtica herica. Parece que assim se integra no seu

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    ilustre tipo um tipo semelhante, penetrado pelos traos do trapeiroque tanto preocupava Baudelaire. Um ano ante do Vindeschiffoniers apareceu uma representao prosaica da figura;"Temos aqui um homem ele deve apanhar na capital o lixo do

    dia que passou. Tudo o que a grande cidade deitou fora, tudo oque perdeu, tudo o que despreza, tudo o que destri ele registrae coleciona. Coleciona os anais da desordem, o Cafarnaum dadevassido, seleciona as coisas, escolhe-as com inteligncia; pro-cede como um avarento em relao a um tesouro e agarra o entu-lho que nas maxilas da deusa da indstria tomar a forma de ob-jetos teis ou agradveis". Esta descrio uma nica, longametfora, para o procedimento do poeta segundo o corao de

    Bau-delaire. Trapeiro ou poeta o lixo se refere a ambos; ambosrealizam solitariamente seu trabalho a horas, em que os burguesesdormem; o gesto o mesmo em ambos. Nadar fala do "passaccad"de Baudelaire; o passo do poeta que erra pela cidadeprocurando rimas; tambm deve ser o passo do trapeiro, que atodo instante pra no seu caminho, apanhando o lixo que encon-tra. H fortes indcios de que Baudelaire pretendia veladamentechamar a ateno sobre este parentesco. De qualquer modo, trata-

    se de uma adivinhao. Sessenta anos mais tarde aparece emAppo-linaire, um irmo desse poeta degenerado em trapeiro. Cronia-mantal, o pote assassine primeira vtima do Pgromo,que deve acabar em todo o mundo com a raa dos lricos. Apoesia do apache dbia. O esboo representa o heri da grandecidade ou o heri ser antes o poeta, que constri sua obra comesse material? A teoria da modernidade d margem a ambas asinterpretaes.

    Entretanto, num poema posteriorLes plaintes d'un Icare, oBaudelaire maduro diz que j no sente como os indivduos entreos quais na sua juventude buscava heris.

    Les amants des prostitues Sont heureux, disps et repus;Quant moi, mes br as sont rompus Pour avoir treint des nues.

    O poeta, o substituto do heri da antigidade, como diz ottulo do poema, tinha que ceder ao heri moderno, que tem a vidarelatada pela "Gazette des Tribunaux". Na realidade, no conceito

    do heri moderno j se esboa esta renncia. Ele est pre-destinado derrota e no precisa ressuscitar qualquer dos trgicos

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    para apresentar tal necessidade. Mas a modernidade termina nomomento em que conquista o seu direito. S depois vai passarpela prova. E ento se mostrar se ela prpria tem possibilidadede transformar-se em antigidade. Baudelaire formula

    constantemente essa pergunta. Ele compreendeu a reivindicaode imortalidade como sua prpria reivindicao de ser lido umavez como escritor antigo. Considera como concepo da tarefaartstica em geral "que toda a modernidade deva ter valor para setornar futuramente antigidade". Muito acertadamente GustaveKahn nota em Baudelaire um "refus de occasion tendu par Ianature du pretexte lyrique". O que fez com que se tornasse

    reservado em relao a certas ocasies era a conscincia dessatarefa. Para ele, na poca em que vivia, nada se aproxima tanto da"tarefa" do heri antigo, dos "trabalhos" de um Hrcules, como atarefa de que ele prprio se imps: dar feio modernidade.

    Entre todas as relaes que a modernidade possa ter, arela-o com a antigidade a melhor. Baudelaire encontra estaidia apresentada em Victor Hugo. "O destino o levou,. . . atransformar a ode antiga e a tragdia antiga.. . nos poemas e

    dramas que dele conhecemos". A modernidade caracteriza umapoca; caracteriza simultaneamente a fora que age nesta poca eque faz com que ela seja parecida com a antigidade. Baudelairecon-cede a Hugo esta fora de mau grado e apenas em certoscasos. Wagner, no entanto, era para ele a difuso ilimitada eautntica desta fora. Na escolha de seu tema e no seuprocedimento dramtico, "Wagner se aproxima da antigidade"com to apaixonada fora de expresso que no momento o

    representante mais importante da modernidade. A frase contmembrionariamente a teoria de Baudelaire sobre a arte moderna.Segundo essa teoria, o exemplo modelar da antigidade se limita construo; a substncia e inspirao da obra o objeto damodernit. "Ai daquele que estuda outra coisa na antigidade deque no a arte pura, a lgica, o mtodo geral. Se ele se aprofundardemasiado na antigidade. . . renuncia. . . aos privilgios que aocasio lhe oferece". E nas frases finais do ensaio sobre Guys l-

    se: "Ele buscou em toda a parte a beleza transitria, fugaz danossa vida presente. O leitor nos permitiu cham-la demodernidade". Em resumo, a doutrina se apresenta da seguinte

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    forma: "Na beleza colaboram um elemento eterno, imutvel e umelemento relativo, limitado. Este ltimo. condicionado pelapoca, pela moda, pela moral, pelas paixes. O primeiro elementono seria assimilvel.. . sem este segundo elemento". No se pode

    dizer que isto seja profundo.A teoria da arte moderna o ponto mais fraco na

    concepo de Baudelaire sobre a modernidade; esta apresenta osmotivos modernos; o objeto da teoria seria talvez, uma discussosobre a arte antiga. Baudelaire nunca tentou algo parecido. A suateoria no dominou a renncia, a qual aparece em sua obra comoperda da natureza e perda da ingenuidade. Sua dependncia dePoe, inclusive em suas formulaes, uma expresso da sua

    parcialidade. Sua orientao polmica outra; ela destaca-se dofundo homogneo do historicismo, do alexandrismo acadmicoem voga com Villemain e Cousinin. Nenhuma das suas reflexesestticas apresentou a modernidade em sua simbiose com aantigidade, o que sucede em certos poemas das Fleurs du mal.

    Entre eles prevalece o poema Le cygne. No em vo seucarter alegrico. A cidade, em permanente movimento, cai emtorpor. Torna-se frgil como vidro, mas tambm transparente

    como vidro em relao ao seu significado. ("La forme d'uneville/Change pus vite, hlas! que le coeur d'un mortel,"). Aestrutura de Paris frgil; rodeada por smbolos de fragilidade.Smbolos naturais da criao a negra e o cisne; e smboloshistricos Andrmaca, "a viva de Heitor e a mulher deHeleno". O trao comum neles a tristeza sobre o passado e afalta de esperana no porvir. Em ltima anlise a modernidade seaproxima da antigidade neste esprito caduco. Paris, sempre que

    aparece nas Fleurs du mal, traza sua caracterstica. O"Crpuscule du Matin" o soluar de um adulto, imitado nomaterial de uma cidade; Le soleilmostra esta ao sol, rota comoum velho tecido; o ancio que todos os dias pega, de novo,resignado seus instrumentos de trabalho, porque aspreocupaes no terminaram com a idade a alegoria dacidade; as ancis Les petites vieilles entre seus habitantesso os nicos espiritualizados. Estes poemas devem reserva que

    os caracteriza seu sucesso atravs da dcadas. Trata-se da reservacontra a grande cidade. Ela nos distingue de quase toda a poesia

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    parisiense", o ciclo de poemas de Hugo A l'Arc de Triomphe. Aglorificao deste monumento parte da viso de um panoramacampestre parisiense, de uma "immense campagne", em que per-duram apenas trs monumentos da cidade perecida; a Sainte Cha-

    pelle, a Coluna Vendme e o Arco do Triunfo. A alta importnciaque este ciclo tem na obra de Hugo corresponde posio queocupa na criao de uma imagem da cidade de Paris do sculo 19ndaptada a uma imagem da antigidade. do ano de 1837.

    J sete anos antes anota o historicista Friedrich vonRaumer nas suas cartas Briefe aus Paris und Frankreich im Jahre1830: "Da torre de Notre-Dame vi ontem a gigantesca cidade;quem construiu a primeira casa, quando desmoronar a ltima e o

    cho se assemelhar ao de Tebas e Babilnia". Hugo descreveueste cho como seria quando um dia "esta margem, onde a guase rebenta em arcos sonoros de ponte, for restituda aos juncosmur-murantes que se inclinam".

    Mais non, tout ser mort. Plus rien dans cette plaine

    Qvtun peuple vanoui dont elle est encore plene.Lon Daudet, cem anos aps Raumer, de Sacr-Coeur, em

    outro lugar elevado da cidade, lana um olhar sobre Paris. Na sua

    viso reflete-se a histria da "modernidade" at o momento numacontradio horripilante: Olha-se de cima sobre este ajuntamentode palcios, monumentos, casas e barracos e fica-se com asensao de que so predestinados a uma ou mais catstrofes meteorolgicas ou sociais. Passei horas no alto de Fourvires coma vista sobre Lyon, no alto de Notre-Dame de la Garde com avista sobre Marseille, no alto do Sacr-Coeur com a vista sobreParis.

    O que mais nitidamente se verifica nestes outeiros aameaa. As aglomeraes de pessoas so ameaadoras; o homemprecisa de trabalho, isto est certo, mas tambm tem outrasnecessidades... Entre outras necessidades tem o suicdio, inerentea ele e sociedade que o forma; e mais forte que o seu instintode sobrevivncia. Assim, ficamos admirados olhando do alto deSacr-Coeur, de Fourvires e de Notre-Dame de Ia Garde parabaixo, que Paris, Lyon e Marseille ainda existam". Esta a feio

    que a passion moderne que Baudelaire reconheceu no suicdio, re-cebeu no sculo presente.

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    havia outra soluo". No incio dos anos cinqenta a populao deParis comeou a resignar-se idia de uma inevitvel e grandepurificao da imagem da cidade. de supor que esta purificao,no seu tempo de incubao, poderia ter um efeito to forte, ou

    maior ainda, sobre um instvel esprito fantasista orno o prprioaspecto dos trabalhos urbansticos. De qualquer forma, a obra,cuja relao subterrnea com a grande transformao de Paris nose deve pr em dvida, j estava terminada alguns anos antes datransformao ter sido iniciada. Eram as gravuras de Meryonsobre Paris, Ningum se impressionou mais com elas do queBaudelaire. Para ele o aspecto arqueolgico da catstrofe, talcomo encontrava na base dos sonhos de Hugo, no era o mais

    importante; a antigidade criou-se de uma vez, uma Atenas surgiuda cabea do Zeus ileso, da modernidade ilesa. Meryon acentuoua feio antiga da cidade sem abandonar sequer uma pedra. Eraeste aspecto do tema a que Baudelaire se tinha entregadoconstantemente na idia da modernidade. Admirava Meryonapaixonadamente.

    Ambos tinham afinidades eletivas. O seu ano denascimento fora o mesmo; a sua morte dista poucos meses.

    Ambos morreram solitrios e gravemente perturbados; Meryoncomo demente em Charenton, Baudelaire, sem fala, numa clnicaparticular. A glria de ambos demorou a chegar. Durante a vidade Meryon, Baudelaire era quase o nico a defend-lo 60. Nosseus poemas em prosa pouco se pode comparar com o breve textosobre Meryon. Falando deste, presta homenagem modernidade;mas homenageia a feio antiga desta. Tambm em Meryon seinterpenetram a antigidade e a modernidade; tambm em

    Meryon aparece inconfundivelmente esta forma de

    entrelaamento, a alegoria. Em seus apontamentos a legenda importante. Se a loucura entra no seu texto, sua sombra sublinhaapenas o "significado". Os versos de Meryon vista du Pont Neufso como interpretao, sem prejuzo de sua sutileza, muitoprximos do Squelette laboureur:

    Ci-git du vieux Pont Neuf Uexacte ressemhlance Toutradoub de neu Par recente ordonnance. O savanta mdicins,

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    Habites chirugiens, De nous porquoi ne faire Comme du pont depierre.

    Geffroy descobre o mago da obra de Meryon, e seuparentesco com Baudelaire, mas sobretudo a fidelidade nareproduo da cidade de Paris, que logo estaria cheia de camposde runas; isto quando procura a singeleza destas imagens na idia"que eles, embora reproduzindo diretamente a vida, do aimpresso de vida terminada, que j est morta ou para morrer".O texto de Baudelaire sobre Meryon d a entender acidentalmentea importncia desta anitgidade parisiense. "Raramente vimosrepresentada com mais fora potica a solenidade natural de uma

    grande cidade; a majestade das massas amontoadas de pedras, astorres de igreja, cujo dedo erguido aponta para o cu, os obeliscosda indstria, que oferecem exrcitos de fumaa contra ofirmamento, os andaimes que colocam a sua estrutura bordada acrivo, feito teia de aranha, de forma to paradoxal sobre o blocomacio das construes, o cu mido impregnado de ira e pesadode rancor, e as vistas profundas, cuja poesia habita nos dramas,com que so equipados no esprito no foi esquecido nenhum

    dos elementos complexos, de que composto o cenrio caro eglorioso da civilizao".

    Entre os projetos cujo fracasso pode ser lamentado comouma perda, deve-se contar o do editor Deltre, que queria publicara seqncia de Meryon com textos de Baudelaire. Estes textos noforam escritos por culpa do grfico; este s concebia a tarefa deBaudelaire como um inventrio das casas e ruas reproduzidas porele. Se Baudelaire tivesse realizado esta tarefa, as palavras de

    Proust sobre "o papel das cidades antigas na obra de Baudelaire ea cor escarlate que elas lhe comunicam, s vezes", teriam maissentido do que hoje parece. Entre estas cidades Roma estava paraele em primeiro lugar. Numa carta a Leconte de Lisle confessasua "predileo natural" por esta cidade. Provavelmente chegou aRoma pelas ruas de Piranesi, em que as runas no res-tauradasainda pareciam fazer parte da nova cidade.

    O soneto que figura como trigsimo-nono poema das

    Fleurs du malcomea:

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    Je te donne ces vers aiin que si mon nom Abordeheureusemet aux poques lointaines, Ei iait rever un soir les

    cervelles rumaines, Vaisseau favoris par un grand aquilon, Ta

    mmoire, pereille aux fables incertaines, Fatigue le lecteur ainsi

    qu'on typanon.

    Baudelaire queria ser lido como antigo. A exignciavenceu-o com rapidez surpreendente. Porque o futuro longnquo,as poques lointaines de que fala o soneto chegaram tantasdcadas aps a sua morte quando Baudelaire imaginava quetalvez seriam sculos. verdade que Paris ainda existe; e asgrandes tendncias da evoluo social so ainda as mesmas. Mas

    quanto mais duradouras permaneceram tanto mais caduco comoexperincia, ficou tudo o que era considerado como

    "verdadeiramente novo". A modernidade ficou menos igual a elamesma; e a antigidade, supostamente nela contida, apresenta naverdade o aspecto do caduco. "Reencontramos Herculano debaixodas cinzas; mas alguns anos cobri-am os costumes de umasociedade melhor que toda a poeira dos vulces".

    A antigidade de Baudelaire a romana. S num lugar anntigidade grega penetra no seu mundo. A Grcia forneceu-lhe aimagem da herona que parecia digna e possvel de ser transpostapara a modernidade... Nomes gregos Delfina e Hip-lita tm as figuras das mulheres em um dos maiores e mais famosospoemas das Fleurs du mal. dedicado ao amor lsbico. A lsbica a herona da modernidade. Nela, um motivo ertico deBaudelaire a mulher, que testemunha a dureza e masculi-

    nidade foi penetrado por um motivo histrico o da grandezado mundo antigo. Isto faz com que a posio da mulher ls-bicanas Fleurs du malseja inconfundvel. Assim se explica porqueBaudelaire durante muito tempo lhes dedicou o ttulo Leslesbiennes. De resto, Baudelaire est muito longe de ter desco-berto a lsbica para a arte. J Balzac a conheceu na sua Filie auxyeux d'or, Gautier em Mademoiselle de Maupin; Delatcuche emFragoletta; Baudelaire encontrou-a tambm em Delacroix; um

    tanto veladamente criticando os quadros daquele, fala de uma"manifestao herica da mulher moderna na direo do infernal".

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    sua fora fsica e a forma de inteligncia que lhe prpria, mascoloquei ao lado dele, como equivalente, a beleza fsica da mulhere os dons espirituais que lhe so prprios". Como eco destaconfisso conhece-se uma reflexo crtica de Baudelare, per-

    feitamente inequvoca. Refere-se primeira herona de Flaubert."Madama Bovary era um homem segundo a sua melhor energia esegundo seus objetivos ambiciosos, e tambm nos seus sonhosmais profundos. Esta estranha Andrgina recebeu, como a PalasAlonia que saiu da cabea de Zeus, toda a fora sedutoraprxima de um esprito masculino num encantador corpofeminino".

    E mais, sobre o prprio poeta: "Todas as mulheres

    intelectuais devem agradecer-lhe ter elevado a 'mulherzinha' auma altura... e que participa da natureza dupla que forma ohomem perfeito ser to capaz de raciocinar como de sonhar".Com um s golpe, o que bem sabia fazer, Baudelaire eleva aesposa pequeno-burguesa de Flaubert herona.

    Na poesia de Baudelaire existe uma srie de fatosimportantes e evidentes, que passaram despercebidos. Porexemplo, a orientao contraditria dos dois poemas lsbicos

    situados um aps outro, nos Epaves. Lesbos um hino ao amorlsbico; Delphine et Hippolyte pelo contrrio, uma condenaodesta paixo embora vibrante de pena.

    Que nous veulent les lois du juste et de Vinjuste? Viergesau coeur sublime, honneur de 1'archipel Votre religion comme

    une autre est auguste, Et famour se rira de 1'Enier et du Ciel!

    Assim se l no primeiro destes poemas; no segundo:

    Descendez, descendez, lamentables victimes,

    Descendez le chemin de Venfer ternel!.

    A evidente discrepncia explica-se da seguinte maneira:dado que Baudelaire no via a mulher lsbica como problema nem sob o ponto de vista social nem natural assim tambm nosentia, como homem comum, qualquer relao com ela. Tinhalugar para ela na imagem da modernidade; mas no a reconhecia

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    na realidade. Por esta razo, escreve despreocupadamente: "Co-nhecemos a escritora filantropa, a poetisa republicana, a poetisado futuro, seja adepta de Fourier ou de Saint-Simon nuncaacostumamos o nosso olho a todo este comportamento, sem sen-

    tido e degradante... esta imitao do esprito masculino". Seriaabsurdo supor que Baudelaire com seus poemas pensou defendera mulher lsbica na vida pblica. Isto se prova nas propostas quefez ao seu advogado para o discurso final no processo contra asFleurs du mal. Ele no separa a proscrio burguesa pblica danatureza herica desta paixo. O "descendez, descendez,lamentables victimes" a ltima frase que Baudelaire lana mulher lsbica. Abandona-se aniquilao. Ela no pode salvar-

    se porque a confuso de Baudelaire a seu respeito insolvel.O sculo XIX, sem restrio, comeou a empregar a

    mulher no processo de produo fora de casa. F-lopredominantemente de maneira primitiva; empregou-a nasfbricas. Era bvio que traos masculinos tinham que surgir nelano decorrer do tempo, porque o trabalho na fbrica acondicionava, sobretudo a enfeiava. As formas mais elevadas deproduo, e a luta poltica poderiam favorecer traos masculinos

    de maneira mais nobre. Talvez neste sentido possamos entender omovimento das Vsuviennes.

    Este colocou disposio da Revoluo de Fevereiro umexrcito composto de mulheres. "Ns nos chamamos

    Vsuviennes", l-se nos estatutos, "para exprimir que em toda amulher de nosso grupo age um vulco revolucionrio". Nessa talmodificao de comportamento feminino revelaram-se

    tendncias, que puderam ocupar a fantasia de Baudelaire. Noseria de admirar se sua profunda idiossincrasia contra a gravidezestivesse em relao com isto. A masculinizao da mulhertambm seria um indcio deste fato. Baudelaire apoiava, portanto,este processo. Mas, ao mesmo tempo, preocupava-se em deslig-lo da tutela econmica. Assim terminava por dar a esta evoluoum enfoque puramente sexual. O que no podia desculpar em

    George Sand, era talvez ter profanado os traos de uma lsbicapela sua aventura com Musset.O atrofiamento do elemento "prosaico" que se revela na

    posio de Baudelaire frente mulher lsbica, tambm caracte-

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    rstico dele em outros poemas. Causa estranheza a observadoresatenciosos. Jules Lematre escreve em 1895: "Estamos peranteuma obra cheia de artifcios e contradies intencionais... Nomomento em que ela se compraz na descrio mais crassa dos de-

    talhes mais aflitivos da realidade, permanece num espiritualismoque nos afasta da impresso imediata que as coisas exercem sobrens... Baudelaire considera a mulher como escrava ou como ani-mal, mas presta-lhe as mesmas homenagens que VirgemMaria... Amaldioa o 'progresso', abomina a indstria do sculo,no entanto goza a atmosfera especial que esta indstria trouxepara a nossa vida de hoje... Creio que o especfico de Baudelaireconsiste em unir sempre duas formas opostas de reao... poder-

    se-ia dizer, uma passada, a outra atual. Uma obra-prima davontade: a ltima novidade no campo da vida sentimental". Erainteno de Baudelaire apresentar esta atitude como ato grandiosoda vontade. Mas o reverso dela uma falta de convico, deconhecimento, de constncia. Baudelaire estava exposto a umamudana brusca, de choque, em todas as suas reaes.

    Mais sedutoras eram, para eles, outras formas de viver nosex-tremos, as que se criam nos encantamentos que emanam de

    muitos dos seus versos perfeitos; alguns destes evidenciam taisformas.

    Vois surces canauxDormir cea vaisseaux

    Dont Vhumeur est vagabonde;

    Cest pour assouvir

    Ton moinde dsir

    Quyils viennent du bout du monde.

    Nesta estrofe famosa existe ritmo embalador; o seu movi-mento prende os navios, que se encontram amarrados no canal.Baudelaire desejava ser embalado nos extremos, como privilgio dos navios... A imagem deles surge quando se trata desua idia fundamental, profunda, secreta e paradoxal: o ser levadopor, o ser salvo na grandeza. "Estes belos, grandes navios, como

    so embalados imperceptivelmente na gua tranqila, estes naviosfortes, que tm um aspecto to ansioso e to ocioso ser que

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    no nos perguntam numa linguagem muda: quando embarcamospara a felicidade?". Nos navios une-se o desprendimento com adisposio para o extremo emprego de foras. Isto atribui-lhesuma secreta importncia. H uma frmula especial em que no

    homem tambm se unem a grandeza e o desprendimento. Eladomina a existncia de Baudelaire, que a decifrou chamando-lhe"a modernidade". Quando se perde no espetculo dos navios noancora-douro, para decifrar neles uma parbola. Seu heri toforte, to cheio de sentido, to harmonioso, to bem construdocomo aqueles barcos de vela. Mas o mar alto acena em vo paraele. Porque uma m estrela guia a sua vida. A modernidaderevela-se como sua fatalidade. Nela o heri no est previsto; ela

    no tem emprego para este tipo. Ela amarra-o para sempre noporto seguro; abandona-o a uma eterna ociosidade. Nesta sualtima incorporao o heri aparece como dandy. Ao encontraruma destas figuras, perfeitas em sua fora e serenidade, em todosos gestos, diz-se "aquele que passa talvez rico; mas com todacerteza se esconde neste transeunte um Hrcules para quem noexiste qualquer trabalho". D a impresso de ser carregado pelasua grandeza. Por isto, compreensvel que Baudelaire

    acreditasse a sua flanerie vestida em certas horas com a mesmadignidade que o esforo da sua fora potica.

    O dandy se apresentava a Baudelaire como um sucessor degrandes antepassados. O dandysmo para ele como "o ltimobrilho do herico em tempos da decadncia". Gostou de descobrirem Chateaubriand uma referncia a dandys ndios testemunhodo passado florescimento daquelas tribos. Na verdade, impossvel no compreender que os traos que se encontram reu-

    nidos no dandy ndio tm um sinal histrico muito determinado.O dandy uma caracterstica dos ingleses, ento lderes no co-mrcio mundial. A rede comercial que se estende sobre a terraencontrava-se nas mos dos especuladores da Bolsa de Londres;suas malhas sofreram palpitaes mais variadas, freqentes e sur-preendentes. O comerciante tinha que reagir a elas, mas no trairsuas reaes. Os dandys adotaram esta contradio.

    Aperfeioaram o treino no seu autodomnio. Souberam conjugar atenso com comportamento e mmica descontrados, atindolentes. A mania que foi considerada elegante durante algum

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    tempo, era de certa forma a apresentao desajeitada, subalterna,do problema. Esta frase sintomtica disso: "O rosto de umhomem elegante deve ter sempre... algo de convulsivo e torcido...Estas caretas poderiam atribuir-se a um satanismo natural". Assim

    aparecia a figura do dandy londrino na imaginao de umboulevardierparisiense. Assim ela se reflete fisionomicamenteem Baudelaire. O seu amor para com o dandyismo no foi feliz.No tinha o dom de agradar e na arte de dandy no agradar umelemento importante. Naturalmente j deveramos estranhar neleessa atitude. Porm, como verdadeira mania, ela o levou aprofundo abandono porque com o crescente isolamento aumentouainda sua inacessibilidade. Ao contrrio de Gautier, Baudelaire

    no gostou do seu tempo, mas tambm no pde isolar-se dele,como Leconte de Lisle. No dispunha do idealismo humanitriode um Lamartine ou Hugo, e no lhe era dado, como a Verlaine,refugiar-se na devoo. Assumia sempre novas personagensporque no tinha uma convico prpria. Flaneur, apache, dandy,ttapeiro, eram para ele apenas diferentes papis. Porque o herimoderno no heri o representante do heri. Amodernidade herica revela-se como tragdia em que o papel do

    heri est disponvel. O prprio Baudelaire aludiu a istoveladamente numa observao margem dos seus Sept vieillards.

    Un matin, cepandant que dans Ia triste rue Les maisons,dont Ia brume allongeait Ia bauteur, Simulainet, les deux quais

    d'une rivire accrue, Et que, dcor semblable 1'me de 1'acteur,

    Un brouillard sale et jaune inondait tout 1espace, Je

    suivais, rodissant mes nerfs comme un htos Et discutant avec

    mon me dj lasse, Le aubourg secou par les lourdatombereaux.

    Cenrio, ator e heri reunem-se nestas estrofes de umaforma inequvoca. Os contemporneos no precisariam destaindicao. Courbet, ao retrat-lo queixa-se de que Baudelairemuda diariamente de aspecto. Champfleury diz que ele podemudar sua fisionomia como um condenado em fuga. No seu

    necrolgio maldoso, que revela muita perspiccia, Vallschamou-o de cabotino.

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    Em Baudelaire o poeta guardava o incgnito atrs das ms-caras que usava. To provocador podia parecer no trato, to pru-dente era na sua obra. O incgnito a lei da sua poesia. A suaconstruo de versos comparvel ao plano de uma grande ci-

    dade, em que as pessoas podem movimentar-se despercebidas, es-condidas por blocos de edifcios, portes ou ptios. Neste plano,as palavras tm os seus lugares indicados com preciso, como osconspiradores antes de uma revoluo. Baudelaire conspira com aprpria lngua. Calcula seus efeitos a cada passo. Foram precisa-mente aqueles que melhor o conheciam que se ressentiram do fatode ele sempre ter evitado se descobrir em face do leitor. Gideanotou uma discordncia entre a imagem e a coisa, que era muito

    calculada. Rivire salientou, que Baudelaire parte da palavra rarae aos poucos aproxima-a cautelosamente do tema. Le-maitre falade formas que contm no mpeto da paixo, e Laforque salienta acomparao de Baudelaire que desmente a pessoa lrica que entreno texto como elemento perturbador. "La nuit s'paissait ainsiqu'une cloison" outros exemplos poderiam encontrar-se emquantidade 92, acrescenta Laforque.

    A separao das palavras em palavras que pareciam

    adequadas a um uso elevado e em palavras que deveriam serexcludas desse uso, influenciou toda a produo potica e foivlida tanto para a tragdia como para a poesia lrica. Estaconveno permaneceu incontestada nos primeiros decnios dosculo dezenove. A palavra chambre causava murmriodesfavorvel na representao do "Cid"de Lebrun. "Othello"numa traduo de Alfred de Vigny, fracassou por causa dapalavra mouchoir, cuja meno era insuportvel na tragdia.

    Victor Hugo comeara a aplanar a diferena entre as palavras dalinguagem corrente e as da linguagem elevada. Sainte-Beuveprocedeu de forma semelhante. Em Vie, posie et penses deJoseph Delorme declarou: "Tentei... ser original a meu modo, deum modo modesto, burgus... Chamava as coisas da vida ntimacom o seu nome; mas a cabana estava mais prxima de mim que aalcova". Baudelaire ultrapassou o jacobinismo lingstico deVictor Hugo e as liberdades buclicas de Sainte-Beuve. Suas

    imagens so originais pelo prosasmo dos objetos de comparao.Procura o processo banal para aproxim-lo do potico. Fala dos

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    "vagues terreurs de ces affreuses nuits/Qui compriment le couercomme uri papier qu'on froisse". Este comportamento lingstico,que caracteriza o artista em Baudelaire, torna-se realmenteimportante somente quando o poeta alegrico. Tal

    comportamento torna a sua alegoria desconcertante, o que adistingue das alegorias comuns. Lemercier foi o ltimo aenriquecer com elas o parnasianismo do Imprio; tinha-se chega-do ao ponto mais baixo da poesia classicista. Baudelaire no sepreocupava com isto. Encontra alegorias em quantidade; modificatotalmente o seu carter pelo ambiente lingstico em que asinsere. As Fleurs du mal so o primeiro livro que empregou na

    lrica palavras no s de provenincia prosaica mas tambmurbana. No entanto, de modo algum evitaram caractersticas que,embora livras da ptina potica, mesmo assim chamam a atenopelo seu esteretipo. H palavras como quinquet, wagon, ouomnibus; e at bilan, rverbire, voirie. Assim o vocabulriolrico onde aparece de repente, sem qualquer aviso, uma alegoria.Se o esprito lingstico de Baudelaire pode ser compreendido, nesta coincidncia brusca. A esta, Claudel deu-lhe uma feio

    definitiva. Baudelaire, escreveu uma vez, unia a forma deescrever de Racine com a de um jornalista do Segundo Imprio.Nenhuma palavra do seu vocabulrio est destinada, de antemo,a uma alegoria. Ela recebe essa tarefa conforme o assunto a serabordado e destrinchado. A sua poesia um ato de violncia enisto ele recorre a alegorias. So as nicas que fazem parte dosegredo. Em Ia Mort, ou le Souvenir, le Repentirou le Mal,encontram-se tipos de estratgica potica. Estas palavras

    reconhecveis pelo emprego da maiscula, surgem repentinamenteno meio de um texto, que no recusa nem o vocbulo mais banal,o que revela a interveno de Baudelaire. A sua tcnica bemputschista.

    Poucos anos aps a morte de Baudelaire, Blanqui coroavasua prpria carreira como conspirador com uma memorvel obraprima. Foi aps o assassinato de Victor Noir. Blanqui queria teruma viso geral do estado das suas tropas. De vista, conhecia

    apenas seus chefes subalternos. No se sabe at que pontos todosos da sua companhia o conheciam. Entendeu-se com Granger, seuajudante, que deu as ordens para uma revista dos blanquistas.

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    Geffroy descreveu-a da seguinte maneira: "Blanqui... saiu de casaarmado, disse adeus s irms e ocupou seu posto nos Champs-lyses. Segundo entendimento com Granger, a se devia realizaro desfile das tropas cujo misterioso general era Blanqui. Ele co-

    nhecia os chefes e devia ento ver seus soldados marchar em fila,em passo militar, em formaes regulares.

    Aconteceu como combinado. Blanqui realizou sua revista,sem que ningum desconfiasse algo deste estranho espetculo. Nomeio da multido, que assistia, encontrava-se tambm o velhoBlanqui encostado numa rvore, e viu atentamente aproximar-seem colunas os seus amigos. Eles se aproximaram mudos, debaixode murmrios, constantemente interrompidos por aclamaes". A

    fora que tornou isto possvel, poderia ser transmitida pela poesiade Baudelaire.

    Baudelaire quis reconhecer ocasionalmente a imagem doheri moderno. Tambm no conspirador. "Abaixo as tragdias!" escreveu ele durante os dias de Fevereiro na Salut public."Abaixo a histria da Roma antiga! No somos hoje maiores doque Brutus?". Maior que Brutus era na verdade um exagero. Por-que quando Napoleo III ocupou o poder, Baudelaire no reco-

    nheceu nele o Csar. Nisto Blanqui lhe era superior, porm maisprofundas que suas divergncias eram suas afinidades a teimo-sia, e a impacincia, a fora da indignao e do cio, mas tambma impotncia. Num verso famoso Baudelaire despede-se de ummundo "em que a ao no sinnimo do sonho". Seu sonho noestava to s como lhe parecia, porque a ao de Blanqui foisinnimo do sonho de Baudelaire. Ambos esto entrelaadoscomo as mos entrelaadas numa pedra debaixo da qual Napoleo

    III enterrou as esperanas dos combatentes de Junho.

    Traduo de Heindrun Krieger Mendes da Silva