Amores Do Diabo Jacques Cazote

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Amores Do Diabo Jacques Cazote

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  • Amores do Diabo

    Jacques Cazotte

  • 2

    Sociedade das Cincias Antigas

    Amores do Diabo

    por

    Jacques Cazotte

    Traduo Original feita em 1945 por:

    Camilo Castelo Branco

  • 3Jacques CAZOTTE

    O autor dos "Amores do Diabo" pertence classe de escritores que, imitao de alemes eingleses, so denominados humorsticos e que entraram em nossas formas literrias envernizadosde imitao estrangeira. O esprito so e sensato do leitor francs a custo se presta aos caprichos das

    fantasias desatadas, salvo quando elas atuam entre os limites tradicionais, e j aceitos, de contos defadas e pantomimas teatrais. Apraz-nos, ento, a alegoria, diverte-nos a fbula. Esto repletas as

    nossas livrarias desses brinquedos de esprito, primeiro engenhados para crianas, depois paradamas, e tambm para homens com srias ocupaes.

    Os homens do sculo XVIII vagavam muito traz semelhantes leituras. Nunca, fico e fbulaandaram tanto em voga como ento. Escritores serssimos: Montesquieu, Diderot, Voltaireacalentavam e adormeciam com lindos contos quela sociedade que ia ser destruda pelodoutrinamento deles mesmos. O autor do "Esprito das leis" escreveu o "Templo de Guido";

    fundador da Enciclopdia deliciava o gentio das alfurjas com o Pssaro branco, e As JiasIndiscretas; o autor do Dicionrio Filosfico lardeava a Princesa de Babilnia e Zadig dasmaravilhosas imaginativas do Oriente. Era tudo isso inveno, e espirito, e nada menos que do maisseleto e gracioso.

    Entretanto, poeta e crente de sua fbula, narrador capacitado de sua lenda, fantasista que desse tonssrios ao delrio de sua idia, disso que no havia topar no sculo dezoito, poca em que os padres

    poetas se inspiravam na mitologia, e os poetas leigos fabulavam com os mistrios cristos.

    O pblico daquele tempo espantar-se-ia se soubesse que havia em Frana um narrador - sincero eespirituoso a um tempo - que continuava as Mil e uma Noites - a grande obra incompleta que Mr.Galland fadigosamente traduziria - e isso de modo como se os fabulistas rabes lha ditassem, no

    como quem atamanca obra de imitao grosseira, mas com a gravidade de quem escreve cousaoriginal e importante engenhada por esprito bem identificado s crenas do Oriente. Verdade quegrande parte destes contos ideou-a Cazotte ao p das palmeiras, ao longo das grandes cordilheiras

    de S. Pedro, longe da sia, certo, mas debaixo do seu sol refulgente.

    Entretanto, o mais das obras deste escritor singular vingou desaproveitado para a sua glria, e tosomente dos Amores do Diabo e de alguns poemas e canonetas pende a nomeada que lhe ilustrouas desenvolturas da velhice. Ao fechar-se-lhe a vida, desvendou-se o arcano das idias misteriosasque influram em quase todos os seus escritos, e lhes acrescem singular valia que tentarem aquilatar.

    Vagamente nos entreluzem notcias da primeira idade de Jacques Cazotte. Nascido em Dijon porvolta de 1720, cursou as aulas dos jesutas, como todos os engenhos eminentes desse tempo. Um deseus irmos, vigrio geral de M. de Choiseul, bispo de Chalons, chamou-o a Paris, e empregou-o na

    secretaria da Marinha, onde, em 1767, obteve a graduao de Comissrio. Ento comeou aentender com letras, e nomeadamente com poesia. Nas salas de seu patrcio Rancourt, onde se

    reuniam letrados e artistas, deu-se ele a conhecer, recitando fbulas e canes, primeiros esboos deum engenho que adiante devia ilustrar-se mais com a prosa que por versos.

    Dai em diante, parte da sua vida seria passada na Martinica, onde foi exercer ofcio de verificadorde He-sous-le-vent. Ai viveu obscuramente por espao de anos, mas respeitado e querido; e lcasou-se com Elisabeth Roignan, filha do Supremo Juiz de Martinica. Voltando com licena para

    Paris, publicou algumas poesias. So deste tempo duas canes que lhe deram rpida celebridade,como procedentes do gosto, ento, na voga, de remoar o antigo romance ou balada francesa,

  • 4feio de Sieur de la Monnoye. Estes foram os intritos daquele colorido romntico ou romanescode que a nossa literatura veio a usar e abusar; notvel cousa ver ai, por entre vastas incorrees o

    gnio aventuroso de Cazotte (1).

    Cazotte era apenas ainda o autor modesto de algumas canonetas e fbulas; mas j o sufrgio doacadmico Moneriflhe empenhou a fantasia a tratar o assunto de Olivier na forma de poema em

    prosa, intrometendo, ao sabor italiano, narrativas cavaleirosas de situaes cmicas e aventurasmgicas. Este poema no prima em valor, mas leitura recreativa de estilo terso.

    do mesmo tempo a composio Lord improvisado, novela inglesa escrita no gnero ntimo, einteressantemente urdida.

    No se cuide, porm, que o autor destas fantasias descurasse os seus encargos administrativos.Temos sob mo um trabalho manuscrito que ele dirigiu ao ministro M. de Choiseul, acerca das

    obrigaes do comissrio de Marinha, alvitrando reformas no servio com solicitude que decerto lhefoi apreciada. Cumpre ajuntar que Cazotte, quando os ingleses invadiram a colnia em 1749,portou-se energicamente e revelou cincia militar no guarnecimento da fortaleza de So Pedro. Oataque foi repelido, apesar do desembarque dos ingleses.

    Neste em meio, como o irmo lhe falecesse, Cazotte foi Frana recolher a herana, e logo requereureforma, que lhe foi concedida em honorssimos termos, com ttulo de Comissrio Geral da

    Marinha.

    II

    Levou consigo para Frana a esposa, e foi residir em Pierry, perto dpernay, na casa de seu irmo.Resolvidos a no voltarem Martinica, venderam as que l tinham ao Padre Lavallette, reitor do

    colgio de Jesutas, homem douto com quem ele, enquanto demorou nas colnias, manteve boasrelaes. O Padre pagou-lhe com letras a sacar sobre a Companhia de Jesus em Paris, perfazendo

    cinqenta mil escudos. Teve de protestar as letras. A Companhia alegou que o Padre Lavallette searriscara em indstrias perigosas que ela no confirmava. Cazotte, que envolvera nesse contrato omais dos seus haveres, foi obrigado a demandar os seus antigos mestres. Desse litgio, ingrato ao

    seu corao piedoso e monrquico, engendraram-se outros que dispararam depois sobre aCompanhia de Jesus, e deram com ela em terra.

    Destarte principiaram os reveses daquela vida singular. No h dvidas que, ento, sofressem algumabalo as suas convices religiosas.

    Animado pelo xito do poema de Olivier deu-se escrita, e saiu com os Amores do Diabo.

    Diferentes mritos do celebridade a esta obra. Reala entre as outras de Cazotte pela graa eperfeio das particularidades; mas a todas se avantaja pela originalidade da concepo. EmFrana, e mormente l fora, este livro foi modelo inspirativo de muitas produes anlogas.

    O fenmeno de tal obra literria no destoa do meio social onde foi produzido. O Burro de Ouro deApuleio, livro igualmente entranhado de misticismo e poesia, d-nos o molde de tais inventos nasantigas eras. Apuleio, iniciado no culto de sis, pago iluminado, meio ctico, meio crente,

    esquadrinhando, nos entulhos das teologias desabadas, vestgios das supersties anteriores oupersistentes - j explicando as fbulas com o smbolo, e o prodgio com uma definio vaga das

  • 5foras ocultas da Natureza, j motejando de sua mesma credulidade, ou desfechando, a espaos,flechas de ironia que desatremam o leitor propenso a dar-lhe crdito - o corifeu desta fileira de

    escritores que em Frana inclui gloriosamente o autor de Smarra, viso antiga e potica realizaodos mais surpreendentes fenmenos do pesadelo.

    Houve muito quem tivesse os Amores do Diabo em conta de historinha mgica, parecida com outrasdo mesmo tempo, e digna de ser encadernada com o Gabinete das Fadas.

    Quando muito, p-la-iam de par com os contos alegricos de Voltaire. Tanto montaria comparar aobra mstica de Apuleio s faccias mitolgicas de Luciano. Serviu largo tempo o Burro de Ouro steorias simblicas dos filsofos de Alexandria; propriamente os cristos acataram aquele livro; eSanto Agostinho cita-o respeitosamente como expresso poetizada de um smbolo religioso. Os

    Amores do Diabo livro digno at certo ponto dos mesmos elogios, marca singular melhoria noengenho e ndole do autor.

    Portanto, este homem, primeiramente poeta jocoso da escola de Marot e de La Fontaine, depoisnarrador ingnuo, ora afeioado ao colorido dos velhos fabulrios franceses, ora enamorado das

    cintilaes da fantasia oriental, vulgarizada pela voga das Mil e uma Noites - mirando mais ao gostocontemporneo do que ao pendor de sua prpria condio - ei-lo que resvala ao mximo perigo davida literria, que compenetrar se um homem da seriedade das suas imaginaes desconcertantes. certo que nesse dislate assenta a desgraa e glria de insgnes escritores daquela poca, os quais

    escreviam com sangue e lgrimas, atraioavam impiedosamente, em prol do vulgo, os mistrios deseu corao e esprito; representavam gravemente o seu papel, como os csmicos antigos quepintalgavam o tablado de sangue verdadeiro para regozijo do povo rei. Porm, como esperar,

    naquele sculo sem f e sem clero a pugnar por suas crenas, que houvesse poeta amante demaravilhas puro alegricas a ponto de se deixar ir depois elas, a pouco e pouco, at esbarrar no mais

    sincero e ardente misticismo?

    Livros respectivos cabala e cincias ocultas desbordavam, ento, das bibliotecas. As maisestupendas especulaes da meia idade ressurgiam avantajadas no esprito e ligeiras na forma, de

    jeito a conciliar as idias remoadas aos sufrgios do pblico, meio mpio, meio crente, como tinhasido o outro dos derradeiros tempos de Grcia e Roma. O Padre de Villars, Dom Pernety, o MarqusdArgeans, vulgarizavam os mistrios de Oedipus Aegyptiacus e as doutas devaneaes dos neoplatnicos de Florena: Pico de la Mirandola e Marclio Ficino reviviam repassados do espritoalmiscarado do sculo XVIII, no Conde de Gabalis, nas Cartas Cabalsticas e outros produtos de

    filosofia transcedente ao alcance dos sales. Pelo que, tudo era bacharelar em espritos elementares,simpatias latentes, encantos, possesses, migrao de almas, alquimia, e, sobretudo, magnetismo. Aherona dos Amores do Diabo no mais nem menos que um daqueles duendes estrambticos,pintados nos artigos ncubo e scubo do Mundo encantado de Bekker.

    A figura sinistra que o autor atribuiu galante Biondetta bastantemente argue que ele ainda estavapor iniciar, quele tempo, nos mistrios dos cabalistas ou iluminados, os quais sempreacordadamente distinguiram espritos elementares, silfos, gnomos, ondinas ou salamandras, dos

    agentes negros de Belzebuth. Sem embargo, conta-se que em seguimento publicao dos Amoresdo Diabo, recebeu Cazotte a visita de certo personagem misterioso, de aparncia circunspecta,escavacado por olheiras profundas, e envolto em uma capa escura que lhe emproava a estatura

    respeitvel.

  • 6Solicitou falar-lhe particularmente. E, logo que ficaram a ss, o visitante chegou-se a Cazotte,trejeitando-lhe umas caretas estranhas, dessas com que os iniciados reciprocamente se do a

    conhecer. O pasmado Cazotte perguntou-lhe se era mudo, ou, ento, houvesse por bem de seexplicar mais ao humano. O outro, porm, o que fez foi mudar a mmica, executando outros sinais

    mais enigmticos ainda.

    Cazotte fez um gesto de impacincia:

    - Desculpe - acudiu o visitante - eu julgava-o dos nossos, e no mais alto grau.

    - No o percebo - disse Cazotte.

    - E, a no ser assim, onde achou as idias que dominam os seus Amores do Diabo?

    - No meu esprito, se me d licena!

    - Qual! essas evocaes em runas, os mistrios da cabala, o poder oculto do homem sobre osespritos areos, as mirficas teorias do poder dos nmeros sobre a vontade, sobre as fatalidades da

    existncia, essas cousas imaginou-as o senhor?

    - Li muito, mas sem doutrina, sem mtodo particular.

    - E no franco-maom?

    - Nem isso!

    - Pois bem, senhor meu! Quer fosse penetrao, quer seja casualidade, o senhor devassou segredoss aceitveis aos iniciados de primeira ordem, e talvez, daqui avante, o abster-se de semelhantesrevelaes... seja-lhe til!...

    - Pois que revelei eu? - exclamou Cazotte assustado - Eu que s me empenho em divertir o pblicoe somente avisar que preciso acautelar-se do diabo!

    - E quem lhe diz que a nossa cincia no est relacionada com o esprito das trevas? Pois olhe que aconcluso da sua obra isso. Eu imaginei-o irmo desleal que traia nossos segredos por qualquer

    motivo que eu desejava saber. E pois que profano, ignorante do nosso escopo sublime, eu oinstruirei e farei entrar mais a dentro nos mistrios do mundo dos espritos que nos comprime de

    todos os lados, e que j intuitivamente se lhe revelou.

    Prolongou-se amplamente o dilogo. Discordam os bigrafos quanto ao que disseram; masconcordam todos em assinalar a sbita revelao operada nas idias de Cazotte, adepto inconscientede doutrinas, cujos representantes ele pensava j no existirem. Confessou que no seu Amores doDiabo tentara severamente os cabalistas, de quem ele formava idia muito vaga, e no os supunha

    to condenveis em sua prticas. Acusou-se at de ter algum tanto caluniado os inocentes espritosque povoam e animam a regio mdia do ar, associando-lhes personalidade duvidosa de um

    duende fmea, que d pelo nome de Belzebuth.

    - Note - tornou-lhe o iniciado - que o padre Kircher, o padre Villars e muitos mais casustas, muitoh demonstraram sua perfeita inocncia em matria de cristianismo. Os capitulares de Carlos

  • 7Magno, mencionando os espritos como seres contigentes da hierarquia celeste; Plato, Scrates eos mais sbios gregos, Orgenes, Porfrio e Santo Agostinho, luminares da Igreja, convieram emestremar o poder dos espritos elementares do poder dos filhos do abismo...

    No era preciso tanto para convencer Cazotte que devia mais adiante aplicar tais idias no aoslivros, mas sua vida, mostrando-se convicto delas at os derradeiros momentos.

    Prestou-se Cazotte a reparar a culpa malsinada to depressa quanto era perigoso acarear o dio dosiluminados, muitos, poderosos e repartidos em seitas, sociedades e lojas manicas, em

    correspondncia de uma outra fronteira do reino. Acusado de haver descoberto aos profanos osegredo da iniciao, Cazotte expunha-se sorte do Padre Villars que, no Conde de Gabalis, atirara

    curiosidade pblica, em estilo meio jocoso, a doutrina dos RosaCruz sobre o mundo dosespritos. Este eclesistico foi achado morto, um dia, na estrada de Lyon, e deste assassnio s ossilfos e gnomos poderiam se acusados.

    No se recusou Cazotte aos conselhos do iniciado, por que essas idias lhe estavam no seu natural.A inanio dos estudos feitos, sem mtodo, fatigava-lhe o esprito; era-lhe mister, estranhar-sedoutrina completa. A dos Martinistas, entre os quais foi recebido, havia sido implantada porMartinez de Pasquallys, renovando simplesmente a instituio dos ritos cabalsticos do sculo XI,

    ltimo eco do formulrio dos gnsticos, onde o que quer que seja da metafsica judaica se mescla steorias obscuras dos filsofos alexandrinos.

    A escola de Lyon, na qual Cazotte professara, seguia, consoante Martinez, que inteligncia evontade so as nicas foras ativas da natureza, donde se depreende que, para lhe modificar os

    fenmenos, basta querer e ordenar energicamente. E ensinava mais, que o homem mediante acontemplao de suas prprias idias, e a abstrao de tudo que mundo exterior e corpo, podia

    alar-se ao conhecimento perfeito de essncia universal, e dominao dos espritos, cujo segredose contm na Tripla sujeio do Inferno, conjurao onipotente usada pelos cabalistas da IdadeMdia.

    Martinez que semeara a Frana de Lojas Manicas, fora acabar em So Domingos. A doutrinaabastardou-se abraando idias de Swenderborg e Jacob Boehme, dificilmente consubstanciada nomesmo smbolo. O famigerado Saint Martin, um dos mais moos e ferventes nefitos, aderiu

    particularmente doutrina do segundo. J nesse tempo a escola lionesa se fundira na sociedade dosfilaletes, onde Saint Martin recusou entrar, dizendo que eles se ocupavam mais da cincia das almas

    laia de Swenderborg que da dos espritos, conforme Martinez.

    Depois, mais tarde, este ilustre tesofo, falando da sua convivncia com os iluminados de Lyon,dizia: Na escola onde professei, h vinte e cinco anos, era freqente toda a espcie decomunicaes: eu participei delas com outros muitos. As manifestaes do sinal do Reparador eram

    l visveis: mediante as iniciaes preparei-me para elas, mas o perigo de tais iniciaes entregarse um homem aos espritos violentos; e no assevero que no fossem de emprstimo as formas quecomunicavam.(2)

    O perigo que Saint Martin receava foi rigorosamente o em que se abateu Cazotte, e da talvez lheadvieram as maiores desgraas de sua vida. Por largo tempo ainda nutriu crenas brandas e

    tolerantes, vises lmpidas e risonhas; assim devia ser nos anos em que comps os novos contosrabes que, confundidos com as Mil e uma noites, no granjearam ao autor toda a glria que devia

    disso auferir.

  • 8So os principais: A Dama incgnita, O Cavaleiro, O Ingrato punido, O Poder do destino,Simoustoph, O Califa ladro, que deu a idia do Califa de Bagdad, O Amante das estrelas, e O

    Mgico, ou Maugraby, obra cheia de belezas descritivas e interessantes.

    Graciosidade e espirituosos pormenores o que sobreleva nestas composies; pelo que toca riqueza de inveno no cedem aos contos orientais da mesma forma: isto em parte explica-se como fato de lhe haver um monge rabe, de nome Dom Chavis, comunicado muitos entrechos originais.

    A teoria dos espritos elementares, to cara s imaginaes msticas, aplica-se igualmente, como notrio, s crenas do oriente; os lvidos fantasmas vistos nos nevoeiros do norte, custa dealucinaes e vertigens, parecem, nos livros dele, rajar-se dos fogos e cores de uma atmosfera

    esplndida e natureza encantada. No seu conto do Cavaleiro, verdadeiro poema, Cazotte realizasobretudo o misto da fantasia romanesca e a separao dos espritos bons e maus, habilmente

    renovada dos cabalistas do oriente. Os gnios luminosos sujeitos a Salomo travam rijas pelejascom os da seqela de Ellis; talisms, conjuraes, anis constelados, espelhos mgicos, todo este

    laboratrio dos fatalistas rabes ata-se e desata-se ai, ordenada e claramente. O heri d a lembrar oiniciado egiptano do romance de Sethos, que, ento, andava na berra. O lano, em que ele atravessa,

    por entre mil perigos, a montanha de Caf, palcio perptuo de Salomo, Rei dos gnios, a versoasitica do noviciado de sis; assim pois, a preocupao das mesmas idias ressurte, ainda, nas mais

    diversas formas.

    Isto no dizer que bom nmero de obras de Cazotte no pertena literatura comum. Gozou-se danomeada de fabulista. Na dedicatria que fez do volume de fbulas Academia de Dijon, recordouse de um seu antepassado que, em tempos de Marot e Ronsard, colaborara no progresso da poesiafrancesa. Quando Voltaire publicou o poema Guerra de Genebra, teve Cazotte a chistosa lembranade ajuntar aos cantos do poema incompleto um stimo canto escrito em to semelhante linguagem,

    que o tomaram como de Voltaire.(3)

    Dissemos que a pera-cmica devia a Cazotte o assunto do Califa de Bagdad. Os Amores do Diaboforam, tambm, representados com o ttulo: O Infante de Zamora. Sem dvida foi ao propsito disto

    que um seu cunhado, hspede na quinta de Pierry, reprovou-lhe que no ensaiasse o teatro, e lheencareceu as peras-bufas como obras de grande dificuldade.

    - D-me uma palavra - disse Cazotte - que eu amanh cedo terei escrito uma pea desse gnero, aque no faltar nada!

    O cunhado, vendo entrar um campons de tamancos, disse:

    - Belo! Seja tamancos! faa uma pera com isto.

    Cazotte pediu que o deixassem s; mas um singular sujeito, que estava no rancho, ofereceu-se afazer a msica medida que Cazotte escrevesse a pera. Era Rameau, sobrinho do eminentemsico, de quem Diderot contou a vida fantasiosa num dilogo, obra prima, e nica stira modernacapaz de emparelhar com a de Petrnio.

    A pera concluda na mesma noite, foi mandada a Paris, e representada na Comdia italianadepois de retocada por Marsoliez e Duni, que no desdenharam associar-lhe seus nomes. OraCazotte auferiu da meramente o interesse de a ver de graa, e o sobrinho de Rameau, gnio

  • 9desconhecido, continuou como sempre obscuro. Todavia, era este o msico adequado a Cazotte,que, em certo, deveu quele singularssimo sujeito extravagantes pensamentos...(4)

    As cartas de Cazotte acerca da msica, muitas a responder a J.J. Rousseau, referem-se quela brevedivagao no mundo lrico. annima grande parte dos seus escritos, depois recolhidos como peasdiplomticas da contenda sobre a pera. Umas so autnticas, outras duvidosas. Maravilhar-nos

    amos se no catlogo delas entrasse o Pequeno profeta de Boehmischbroda, fantasia de particularesprito que assinaria a conformidade analgica entre Cazotte e Hoffmann.

    Bela era, ento, a vida de Cazotte. Eis aqui o retrato que nos deu Charles Nodier daquele homemclebre que ainda conheceu:

    Cazotte reunia extremada benevolncia, escrita na gentil e doce fisionomia, ternura de seusolhos azuis expressivamente sedutores, o precioso talento de contar histrias como ningum, a umtempo ingnuas e fantsticas, reais pela exatido das circunstncias, e maravilhosas pela intruso domagismo. Dera-lhe a natureza dom especial de ver as coisas pela face ilusria, e sabido se eu era

    organizado de feitio a deliciar-me nesse gnero de quimeras. Pelo que, logo que um pisarcompassado se ouvia no pavimento do quarto vizinho, e a porta dele se abria metodicamentevagarosa, e deixava lampejar o claro da lanterna, em mo de um criado velho, menos gil que o

    amo, chamado jocosamente por Cazotte o seu patrcio; quando o velho surgia com o seu chaputricorne e o amplo casaco de lila verde, acairelado de galo, sapato de biqueira quadradaapresilhados no peito do p por uma grande fivela de prata, bengala encastoada de ouro, eu corriasempre para ele, doido de alegria, que os seus afagos aumentavam.

    Nodier d-no-lo depois a referir um dos contos misteriosos que folgava de contar na sociedade,avidamente atenta. Tratava-se da velhice de Marlon Delorme, que ele tinha visto nos ltimos dias davida, tendo perto de cento e cinqenta anos de idade, como depois se verificou nas certides debatismo e bito conservadas em Besanon. Nesta controvertida questo da idade de Marlon

    Delorme, Cazotte depunha como tendo vinte e um anos quando a vira. E assim, dizia ele, que podiatransmitir pormenores ignorados a respeito da morte de Henrique IV, da qual Marlon Delorme era

    contempornea.

    Mas era, ento, abundante a safra de narradores maravilhosos. O Conde de Saint Germain eCagliostro enlouqueciam todas as cabeas, e Cazotte no tinha talvez mais do que eles seno as

    qualidades literrias e a reserva de sincera honestidade. Se, portanto, cumpre-nos crer na clebrereferida das Memrias de La Harp, Cazotte exercitou ai o papel fatal de Cassandra, e no deve serargido, como lhe imputaram de estar sempre sobre a trpode.

    III

    Diz La Harpe:

    -Parece-me que foi ontem, e isto passou no princpio de 1788. Estvamos a jantar em casa de umconfrade da Academia, grande senhor e homem de altos dotes de esprito. Era numerosa acompanhia, e de todas as condies: magistrados, palacianos, letrados, acadmicos etc. Havamoscomido tripa forra, como era costume. sobremesa, os vinhos de Malvsia e Constana, davamao jbilo dos bons convivas quela demasia de franqueza que nem sempre se mantinha delicada. Era

    razo de rir sempre, aquele tempo, e tudo era permitido galhofa.

  • 10

    Champfort lera-nos os seus contos mpios e libertinos, ouvidos pelas ilustres damas que norecorreram aos leques. Depois, um chuveiro de remoques religio, com geral aplauso. Ergue-seum comensal de copo em punho, e brada: - Senhores, to certo estou que no h Deus, como estoucerto que Homero um parvo. De feito, to certo estava ele de uma coisa como da outra. E ao

    tratar-se ali de Deus e de Homero, houve pessoas que disseram bem dos dois.

    Prosseguiu a palestra j mais circunspecta. Exaltam a revoluo feita por Voltaire, e concordam seresse o mximo padro da sua glria: Deu o impulso ao seu sculo, e fez-se ler tanto nas salas como

    nos ptios - exclamou um.

    E, ento, algum contou entre frouxos de risos que o seu cabeleireiro lhe havia dito quando oempoava: - Saiba, meu senhor, que eu, apesar de ser um miservel sangrador, no sou mais

    religioso que qualquer outro.

    Disto concluram que a revoluo consumar-se-ia, e que se a superstio e fanatismo iam ceder opasso filosofia. E logo entraram a calcular a poca, e a recensear quais dos circunstantes

    alcanariam o reinado da razo. Os mais idosos deploravam-se por no se poderem gabar dessa; osmais novos rejubilavam na verossmil esperana de l chegar; e todos a um felicitavam a Academiapor haver preparado a grande obra, o centro, o quartel-general, o motor da liberdade de pensamento.

    Um s dos convivas era estranho s alegrias da conversao, e at dirigia alguns inofensivosgracejos ao nosso radioso entusiasmo: era Cazotte, homem amvel e singular, mas desgraadamente

    enfatuado em dislates dos iluminados. Este homem ilustrou-se grandemente depois com a suaheroicidade.

    Falou ele em tom grave:

    - Meus senhores, alegrem-se, que ho de todos ver a grande e sublimada revoluo que desejamardentemente. Sabem que sou um pouquinho profeta. Repito: ho de v-la!

    Responderam-lhe com o estribilho da muda: - Quem tal diz grande bruxo!(5)

    - Pois seja assim - tornou ele - mas talvez preciso ser mais que bruxo para o que tenho de dizerlhes. Sabem o que vir com a tal revoluo para todos os que esto presentes, e qual seja aconseqncia imediata, o bem provado efeito, as resultas bem palpveis?

    - Ora, saiba-se isso! - disse Condorcet com seu ar sombrio - Um filsofo no desgosta de topar umprofeta.

    - O senhor Condorcet morrer prostrado no lajedo de uma masmorra; morrer do veneno que bebeupara se furtar ao carrasco, do veneno que a bem-aventurana desses dias o forar a trazer sempreconsigo.

    Grande espanto! Mas ocorre a idia de ser Cazotte um sonhador acordado, e todos riem.

    - Senhor Cazotte, esse conto menos aprazvel que os seus Amores do Diabo, mas que demnio lheencasquetou nos miolos a masmorra, o veneno e o carrasco? Que h de comum entre isso a

    filosofia, o reinado e a razo?

  • 11

    - isto que lhes digo: em nome da filosofia, da humanidade, da liberdade, e no reinado da razo,isto suceder, e muito quando a razo reinar e tiver templos; - e s ela os ter, ento, na Frana.

    - A f! - bradou Champfort a rir sarcasticamente - fio que o senhor Cazotte no seja um dossacerdotes desses templos!

    - Espero que no, mas o Sr. de Champfort, que h de ser um e dignssimo de o ser, cortar asprprias veia com vinte e dois golpes de navalha de barbear, e ainda assim s h de morrer algunsmeses depois.

    Entreolharam-se e riram.

    - O Sr. Vieq-dAzir no abriria as prprias veias; mas, depois de as mandar abrir seis vezes em umdia, em seguida a um ataque de gota para melhor xito morrer por noite. O Sr. de Nicolai morrerno cadafalso; o Sr. Bailly no cadafalso...

    - Bendito seja deus! - disse Roucher - parece que este senhor s entende com acadmicos. Queexecues ele vai fazendo! mas eu, graas ao cu...

    - O senhor morrer tambm no cadafalso.

    - Jurou de dar cabo de tudo! - gritaram todos.

    - Mas quem que nos vencer? Turcos ou trtaros, ou quem?

    - A filosofia, a razo. Quem assim os h de tratar seno os filsofos, em cujas bocas estarocontinuadamente as mesmas frases que os senhores ai vociferam h uma hora, as suas mximas, osversos do Sr. Diderot e da Donzela de rleans.(6)

    E segredavam-se uns aos outros: Bem sabem que ele doido, enquanto Cazotte se mantinha namaior gravidade. - No vem que o homem graceja? E que h sempre o fantstico nos seus

    gracejos?

    - Convenho - disse Champfort - mas uma brincadeira nada risonha; acho-a patibular demais. Equando h de acontecer tudo isso?

    - Antes de seis anos completos se cumprir tudo que eu disser.

    - O que ai vai de maravilhas! - disse eu - Tambm entro na conta?

    - O Senhor no ser da conta por um milagre no menos extraordinrio: ser, ento, cristo.

    Grande alarido.

    - Ah! - disse Champfort - estou sossegado! Se havemos de morrer quando La Harpe for cristo,somos imortais!

  • 12

    - Pelo que nos toca - disse a duquesa de Grammont - somos felicssimas, por nada valermos emrevolues; quando digo nada no quero dizer que lhe sejamos de todo estranhas; mas est sabido

    que o nosso sexo no tem responsabilidade...

    - O seu sexo, minhas senhoras, desta vez no as defender; e quando mesmo se no se

    entremetessem, seriam tratadas como homens, tal qual.

    - Mas que nos prediz visto isso, Sr. Cazotte? Prega-nos o fim do mundo?

    - Do fim do mundo nada sei; mas, o que sei que a Sra. duquesa ser levada ao cadafalso comoutras muitas damas, na carroa do algoz, e as mos amarradas para as costas.

    - Ai! Ao menos, em tal aperto, espero que me levem em carro de crepes!

    - No, minha senhora; mas altas damas ho de ir tambm na carroa, e com as mos tambmamarradas!

    - Mais altas damas! Quem? As princesas?

    - Mais grandes ainda .

    Aqui se ergueu um grande rumo na companhia, e o aspecto risonho do dono da casa mudou parasombrio. Era gracejar demais!

    A senhora de Grammont, para varrer a nuvem, no insistiu na ltima resposta; mas disse em tom demofa:

    - J vem que nem sequer me deixa um confessor!

    - No, minha senhora, no ter confessor, e ningum o ter. O ltimo supliciado que ter confessorpor obsquio, ser...

    Fez uma breve pausa.

    - Que o ditoso mortal a quem h de ser concedida essa prerrogativa?- E no ter outra: ser o rei da Frana.

    O dono da casa ergueu-se precipitadamente, e todos ns com ele. Dirigiu-se a Cazotte e disse-lhecom rudeza: - Meu caro Sr Cazotte, j enfada essa faccia lgubre; vai longe demais, e expe a

    sociedade em que recebido.

    Cazotte no respondeu, e ia j se retirar, quando a duquesa, sempre gracejando, foi ter com ele.

    - Senhor profeta! - disse a dama - leu-nos a buena-dicha, e nada nos diz da sua?

    Quedou-se ele em silncio com os olhos no cho; e, passado algum espao de tempo, respondeu:

    - Minha senhora, leu em Josefo o cerco de Jerusalm?

  • 13

    - Li, quem no o leu? Mas imagine que no li!...

    - Pois bem, minha senhora... durante o cerco, um homem rodeou sete dias e sete noites a muralha, vista dos sitiados e dos sitiantes, exclamando sempre com voz sinistra e atordoadora: Ai deJerusalm, ai de mim! E, de repente, uma grande pedra, arrojada pelas mquinas inimigas, deu nelee despedaou-o.

    Dito isto, Cazotte cumprimentou a duquesa e saiu.

    Bem que este documento nos merea confiana to somente relativa, - e atida a Charles Nodier quediz no ser difcil naquele tempo antever a revoluo que recensearia suas vtimas na mais distintasociedade, devorando quem a criara - vamos referir uma passagem singular que se nos depara no

    poema de Olivier, publicado trinta anos antes de 93, na qual se nota certa preocupao de cabeascortadas que pode ser, posto que vagamente, uma alucinao proftica:

    Cerca de quatro anos fomos ambos arrastados por encantamentos aos paos da fada Begasse. Estaperigosa feiticeira, vendo com os olhos malvolos o progredir das armas crists na sia, quis tolhlas, armando insdias aos cavaleiros paladinos da f. Edificou daqui perto um palcio soberbo.

    Desgraadamente, pusemos o p nas avenidas do palcio; e para logo, enleados por magia, quandonos cuidvamos fascinados apenas pela beleza do stio, chegamos ao peristilo do edifcio; mas,apenas aqui entramos, o mrmore que pisvamos, slido ao que parecia, greta e abre-se debaixo dens. Uma inopinada queda nos despenha sobre o girar duma roda armada de lminas cortantes, queretalham dum trao todas as partes do nosso corpo; e o mais para espanto era que a morte no nos

    chegava depois de to estranha dissoluo.

    Levadas de seu prprio pendor, as pores dos nossos corpos caram em profunda caverna, e ai se

    amontoaram com um acervo de membros amputados. imitao de bolas, as nossas cabeasrolavam por ali. Atordoado de todo este movimento estupendo, abri os olhos, passado tempo, e viminha cabea enfileirada ao lado de oitocentos de ambos os sexos, de todas as idades e cores,conservando o movimento dos olhos e da lngua, e particularmente um mover de queixos que asfazia continuadamente abri-las como quem se espreguia. E nenhuma palavra ouvi seno estas malarticuladas: (7) Ai! que aborrecimento! que desesperao! E eu, sem poder resistir impresso queme fazia a condio geral, pus-me a bocejar com eles.

    IV

    o j antecipados os sucessosV

    Chegados a dois teros da vida do nosso escritor, entremostramos uma cena dos seus ltimos dias. maneira do prprio iluminado, cruzamos traos do passado com os do futuro.

    Era do nosso plano apreciar Cazotte j como literato, j como filsofo mstico; mas, se na maiorparte dos seus livros, ressoai o sinete de suas preocupaes relativas cincia cabala, cumpre dizerque no vislumbra neles a mnima inteno dogmtica; antes parece que no teve parte nos lavores

    coletivos dos iluminados martinistas, e to-somente lhes aceitou a regra de proceder particular epessoal. Seria mal comparada esta seita com os institutos manicos da poca, bem que se

    assemelhassem nas frmulas externas. Os martinistas admitiam a queda dos anjos, o pecadooriginal, e o Verbo Reparador; em dogmas essenciais no se dispersando da Igreja.

  • 14

    Saint-Martin, o mais insigne, espiritualista cristo pelo molde de Mallebranche.

    Acima dissemos que ele deplorara a interveno de espritos violentos no grmio da seita lionesa.Como quer que esta expresso deva entender-se, certo que a sociedade adotou intuitos polticos

    que afastavam muitos membros. Talvez seja exagerada a influncia dos iluminados em Alemanha eFrana; mas no h de se negar que preponderaram notavelmente na revoluo francesa e noimpulso do seu movimento. As simpatias monrquicas de Cazotte desviaram-no de tal direo, e lhe

    impediram de sustentar com o seu talento doutrinas que destamparam em resultados inversos do quese lhe antolhara.

    Triste coisa ver aquele homem, to prendado como escritor e filsofo, passar os derradeiros anosda vida no dissabor das letras e a pressagiar borrascas polticas que no podia conjurar! Feneceramlhes as grinaldas da imaginao; aquele esprito de to claro e francs torneio, formulando

    peregrinamente as mais esquisitas fantasias, fulge raras vezes na correspondncia poltica que lhefoi causa do processo e da morte. Se certo que algumas almas tm condo de prever sinistros

    casos, fora-nos ter isso mais em conta da faculdade desgraada que em dom celestial, pois que,semelhantes Cassandra antiga, essas almas nem persuadem os outros nem se preservam a si.

    Os anos finais de Cazotte na sua quinta de Pierry, em Champagne, oferecem, no obstante, algunslances de ventura e sossego na vida ntima. Afastado do mundo dos sbios, que apenas freqentava

    nas suas idas Paris, furtando-se ao torvelinho mais vertiginoso nunca das seitas filosficas emsticas, pai de uma filha encantadora, e de dois filhos cheios de corao entusiasta como seu pai, ovirtuoso Cazotte parecia ter agrupado em volta de si todas as condies do porvir tranqilo; mas as

    tradies de pessoas que, ento, trataram-no, pintam-no assombrado das nuvens que pressentia almdo horizonte bonanoso.

    Um gentil-homem, chamado Plas, pediu-lhe a mo de sua filha Elisabeth. Eram namorados que seamavam desde meninos; mas Cazotte delongava a resposta definitiva, consentindo-lhes que

    esperassem.

    Ana-Marie, autor agradvel e atrativo, refere particularidades duma visita a Pierry por Mad.DArgle, amiga desta famlia. Descreve o belo salo ao rs do jardim, flagrante de perfumes de umarbusto da Colnia transplantado por Mad. Cazotte, e que, na vivenda desta excelente senhora,

    recebia um aspecto de especial elegncia e raridade. Uma negra costurava ao p dela. Avesamericanas, curiosidades dispostas sobre os mveis, e bem assim o traje e penteado tudo falava

    saudades daquela dama a levarem-lhe a alma sua primeira ptria. Era perfeitamente bela comsempre fora, bem que j tivesse filhos grandes. Respirava aquela graa descuidosa e a modo de

    espreguiada das crioulas, com um ligeiro sotaque de onde vinham ares infantis e mimosos, comque muito cativava. Num tapete ali ao p estava um cozinho fraldeiro, que se chamava Biondetta,

    como a cadelinha espanhola dos Amores do Diabo.

    Uma senhora de anos avanados alta e majestosa, marquesa de Santa Cruz, viva de um grandefidalgo de Espanha, pertencia famlia onde tinha muita influncia, por motivo de fraternizar em

    convices com Cazotte. Havia muitos anos que a marquesa fora iniciada por Saint-Martin; aforaisto o iluminismo tambm a ligava a Cazotte com vnculos intelectuais que a doutrina consideravaum modo de antecipao da vida futura.

    Este segundo casamento mstico, ressalvado de suspeitas pela idade dos contraentes, era para Mad.Cazotte objeto de menos tristeza do que sobressalto no ponto de vista de uma razo toda humana

  • 15

    que no compartilha da febre daqueles nobres espritos. Ao invs, os trs filhos aquinhoavamsinceramente das idias do pais e da velha amiga.

    Pelo que desta matria, j nos explicamos, todavia, ser bom aceitar sempre as lies do bom sisovulgar que indo pela vida afora sem inquietar-se com os sombrios mistrios do futuro e da morte? Omais prspero destino depender da imprevidncia que se espanta e desfalece quando estala oacontecimento funesto, e s tem prantos e gritos a contrapor ao gldio formidvel da desgraa?

    Era Mad. Cazotte quem ai devia padecer mais; quanto aos outros, a vida era um mero combate deresultados incertos, mas de infalvel recompensa.

    No intil, para inteirar a anlise das teorias que daremos logo nos fragmentos epistolares, base doprocesso de Cazotte, extrair algumas opinies do iluminado, referidas por Ana-Marie.

    Dizia ele: - Todos vivemos entre os espritos de nossos pais; atua-nos de todos os lados o mundoinvisvel... H ai constantemente amigos do nosso pensamento que se aproximam de ns. Minhafilha tem seus anjos tutelares; cada um tem os seus. Cada qual de nossas idias, boa ou m, dmovimento a algum esprito que lhe corresponda, assim como cada movimento do nosso corpo fazdeslocar a coluna de ar que suportamos. Tudo est cheio, tudo vidente no mundo, onde, depois dopecado, os vus obscurecem a natureza... E eu, iniciado sem procurar s-lo, e por isso mesmo melastimo, hei levantado esses vus como o vento desfaz as nvoas. Vejo o bem e o mal, os bons e os

    maus. Algumas vezes a confuso dos seres tamanha aos meus olhos, que j mal posso, ao primeiroaspecto, distinguir os que vivem em sua carne daqueles que a despiram das aparncias grosseiras.

    - Sim! - acrescentava ele - h almas, que to materializadas ficaram, to cara lhes a forma que atpara o outro mundo se voaram opacas. Essas so semelhantes aos que vivem.

    Enfim, que mais vos direi? Quer seja enfermidade de minha vista, quer semelhana real, h aimomentos em que totalmente me iludo. Esta manh, durante a orao, quando estvamos reunidossob os olhos do Onipotente, a casa estava to repleta de vivos e mortos de todas as idades e pases,que eu j no podia discernir entre vida e morte. Era uma estranha desordem, e todavia ummagnfico espetculo.

    Mad. DArgle assistiu partida do jovem Scvola Cazotte a servir na guarda real. Sobranceavam jos tempos calamitosos, e o pai bem sabia que o imolava aos perigos.

    A Marquesa de Santa Cruz ajuntou-se a Cazotte para lhe dar o que eles denominavam seus poderesmsticos, e depois se dir como ele lhes deu conta de tal misso. Aquela mulher entusiasta fez na

    fronte, nos lbios e no corao do moo trs sinais misteriosos acompanhados de uma invocaosecreta, e desta arte consagrou o futuro do que ele chamava Filho de sua inteligncia.

    To extasiado em convices monrquicas como em misticismo, Scvola Cazotte foi um dos que navolta de Varennes vingaram proteger a vida da famlia real contra o furor dos republicanos. Pormomentos, em meio das turbas, o Delfim foi arrebatado a seus pais e Scvola chegou a tom-lo elev-lo rainha, que lhe agradeceu chorando. A seguinte carta, que ele enviou ao seu pai posterior

    ao seu sucesso:

    Meu querido pap. Passou o 14 de julho. O rei entrou no palcio so e salvo. Desempenhei-me omelhor que pude da misso de que o pap me encarregou. L saber talvez se ela produziu o

  • 16

    desejado efeito. Sexta-feira ajoelhei-me sagrada mesa; e, ao sair da Igreja, fui ao altar da ptriaonde, s quatro horas, fiz sobre os quatro lados os sinais necessrios para submeter todo o campo deMarte proteo dos anjos do Senhor.

    Alcancei a carruagem onde estava encostado quando o rei subiu. Madame Elisabeth lanou-me umolhar que transps ao cu todos os meus pensamentos. Protegido por um de meus camaradas,

    acompanhei a carruagem at dentro da linha; e o rei, ento chamou-me e disse-me:

    -Cazotte, sois vs um que encontrei em Epernay e a quem falei? E respondi: -Sim, senhor; aoapear da carruagem estava eu l. E retirei-me quando os vi nos seus aposentos.

    O campo de Marte estava coberto de homens. Se eu fosse digno que seus mandados e oraes seexecutassem, muitos perversos seriam furiosamente desatados dali. Na volta, gritavam todos quandoele passava: -Viva o rei! As guardas nacionais entravam nisto de todo o corao; e a marcha eraum triunfo. Foi belo o dia; e o comendador disse que por ser o ltimo dia em que Deus deixava odiabo, dera-lhe cor de rosa. Adeus. Ajuntem-se s suas oraes para que as minhas sejam eficazes.No descansemos. Abrao mam Zabeth (Elisabeth). Meus respeitos Sra. Marquesa.

    A qualquer opinio que se pertena, comove a dedicao desta famlia, embora se motejem osfracos meios sobre que assentavam to fervorosas convices. So respeitveis as iluses das almas

    cndidas, sob qualquer forma que se mostrem; mas quem ousar taxar de pura iluso o pensar que omundo governado por influncias superiores e misteriosas, sobre as quais a f do homem podeatuar?(8) A filosofia pode zombar da hiptese; mas toda a religio corre o dever de admiti-la, etodas as seitas polticas se tem armado com ela. Isto explica o separar-se Cazotte de seus antigosirmos iluminados. sabido quanto o esprito republicano exercitar o misticismo na revoluo daInglaterra; era idntica a tendncia dos martinistas; porm, arrastados no movimento operado pelosfilsofos, dissimulariam, castamente o lado religioso de sua doutrina, que, quele tempo, no podia

    contar com popularidade.

    Sabem todos que os iluminados foram grande parte nas comoes revolucionrias. Seitasorganizadas secretamente correspondiam-se entre Frana, Alemanha e Itlia, e influam mormentesobre grandes personagens mais ou menos instrudos no fim delas. Joseph II e Frederico Guilherme

    operaram vrias vezes sob a sua inspirao. notrio que o segundo, posto frente da liga dossoberanos, havia penetrado em Frana e j demorava a trinta lguas de Paris, quando os iluminados,

    em uma de suas sesses secretas, evocaram o esprito do grande Frederico, seu tio, que lhe vedoupassar adiante. Em seqncia desta apario (depois explicada de diferentes modos) aquele monarca

    desocupou subitamente o territrio francs, e concluiu mais tarde um tratado de paz com arepblica, que, seja como for, deve o salvar-se ao acordo dos iluminados franceses e alemes.(9)

    V

    A correspondncia de Cazotte mostra-nos a reveses a sua mgoa pela marcha seguida por seusantigos confrades, e o quadro de tentativas a ss consigo contra uma Era poltica em que ele cuidavaentrever o reinado fatal do Anti-Cristo, do mesmo passo que os iluminados saudavam a chegada doReparador invisvel. Os demnios de uns eram para outros, divinos e vingadores espritos. Notadoisto, melhor se entendem certos trechos das cartas de Cazotte, e a singular circunstncia que ao

    depor fez que a sentena lhe fosse lida pela prpria boca de um iluminado martinista.

  • 17

    A correspondncia de que vamos transladar breves fragmentos era dirigida, em 1791, ao seu amigoPonteau, secretrio da lista civil:

    - Se Deus no sugere homem que faa acabar tudo isto maravilhosamente, somos expostos sltimas misrias. Conhece o meu sistema: Bem e mal sobre a terra foram sempre obra de homens, aquem este globo foi abandonado por leis eternas. Pelo que, a ns imputemos o mal que fizermos. Osol dardeja incessante seus raio mais ou menos oblquos sobre a terra: eis a imagem da Providnciaa nosso respeito. s temporadas, acusamos este astro de nos faltar com o calor, quando a nossa

    posio, os vapores condensados ou o efeito das ventanias nos privam de gozar a contnuainfluncia de seus raios. Ora, pois, se algum taumaturgo no nos acode, eis ai o que nos lcitoesperar.

    Desejo que l possa perceber o meu comentrio sobre a magia de Cagliostro. Pode pedir-meesclarecimentos; envi-los-ei o menos obscuramente que se possa.

    A doutrina dos tesofos aparece na passagem sublinhada. Eis aqui outra alusiva a velhas relaescom os iluminados.

    Recebo suas cartas de conhecimentos ntimos, que tive entre os meus confrades martinistas: sodemagogos como Bret; pessoas de nome, bravos at no mais, dominados pelo diabo. Respeito aBret e seu ardor no magnetismo, fiz que ele adoecesse. Os jansenistas filiados nos convulsionriosesto no mesmo caso. Cabe a todos bem a frase: Fora da igreja no h salvao alguma, nem sequera do senso comum.

    Preveni-o j que ramos ao todo oito em Frana, absolutamente desconhecidos uns dos outros, aelevar, sem trguas, como Moiss, olhos, voz e braos ao cu, pela deciso de um combate no qualos prprios elementos entram em campo. Cremos estar chegando a um sucesso figurado noApocalipse a marcar uma grande poca. Sossegue, que no o fim do mundo: este caso vem maisadiante mil anos. cedo ainda para dizer s montanhas: Baqueai sobre ns!; mas aguardando omelhor que pode vir, o grito dos jacobinos; porque h ai culpados de dupla toga.

    O sistema de Cazotte acerca da necessidade da ao humana para estabelecer comunicao entre ocu e a terra claramente dilucidado aqui. Portanto, em sua correspondncia amide apela para acoragem de Lus XVI que lhe parece confiar demasiadamente na Providncia. As suas

    recomendaes neste propsito tm mais vislumbres do sectrio protestantismo que do catlicopuro:

    Faz-se mister que o rei socorra a guarda municipal; que se mostre digna com firmeza: -Quero emando! Seguramente ser obedecido, e no ser tido em conta de poltro qual os democratas oinjuriam, e com isto me fazem sofrer em todas as fibras do corpo.

    Que cavalgue e v rapidamente com vinte e cinco guardas montadas, ao centro da fermentao;tudo se lhe h de prostrar. O mais rude da empresa, est feito, meu amigo; o rei resignou-se e deu-se

    s mos do seu criador; imagine o grau de poder que lhe deu este ato, pois que Achab, podre devcios, por se humilhar perante Deus em um s lance momentneo, obteve vitria dos inimigos.

    Achab tinha corao falso e alma depravada; e o meu rei tem a mais franca alma que sai das mosde Deus. E a augusta, a celestial Elisabeth tem na fronte a gide que pende do brao da verdadeirasabedoria... No tema nada de Lafayatte: est ligado com seus cmplices. Est, como os seus

    conluiados, entregue aos espritos do terror e da confuso; no lhe ocorrer expediente de servir, e

  • 18

    para ele o melhor estar em mos de seus inimigos l posto por uns em quem ele cr poder confiar.No cessemos, entretanto, de erguer as mos aos cus: Lembre-nos a postura do profeta enquanto

    Israel pelejava.

    urgente que homem assim proceda, pois o ponto de ao que lhe compete. Bem e mal s se

    podem ai fazer, mediante ele. Pois que esto fechadas quase todas as igrejas, interditas ouprofanadas, tornem-se oratrios as nossas casas. O momento assaz decisivo para ns: ou Satcontinuar a reinar sobre a terra como at aqui, at que se lhe anteponham homens como David a

    Goliath; ou o reinado de Jesus Cristo, vantajosssimo para ns, e to predito pelos profetas,estabelecer-se-. Nesta crise flutuamos, e dela j devo ter-lhe falado confusamente. Podemos,minguados de f, amor e zelo, deixar resvalar a ocasio; mas temo-la segura. Quanto ao mais, Deusnada faz sem ns, que somos os reis da terra; a ns incumbe apontar o instante proscrito por seusdecretos. No soframos que o inimigo, invlido sem ns continue a tudo conseguir, e por ns.

    Pelo ordinrio, Cazotte no se deixa iludir muito quanto ao vencimento de sua causa.Superabundam nas cartas dele alvitres que bom seria terem sido aceites; mas afinal odescoroamento aniquilou-o vista de covardias tamanhas, e a tal extremo, que entrou a duvidar desi e da sua cincia.

    Apraz-me - escrevia ele - que a minha carta ltima lhe desse algum contentamento. No estiniciado! D-se os emboras por isso. Recorde as palavras: Et scientia perdet eos. Se eu estou

    nalgum risco, eu - a quem a divina graa resguarda de ciladas - imagine o perigo dos outros. Oconhecimento das cousas ocultas mar borrascoso donde no se avistam praias.

    Quereria dizer que abandonara as prticas com que esperava submeter os espritos funestos? certoque ele tinha concebido venc-los unicamente com as suas armas. Em um ponto da correspondncia

    menciona certa profetiza Broussole que, a imitao da famosa Catarina Theot, alcanaracomunicaes das potestades rebeldes em prol dos jacobinos, e presume reagir contra elaproficuamente. Na conta das sacerdotisas da propaganda, tambm cita a marquesa de Urf, adcada da Mdias francesas, cujo salo extravasava de empricos e gentios que trotavam devagaratrs das cincias ocultas... Reprova-lhe particularmente que predispusesse para o mal o ministroDuchtelet.

    de presumir que semelhantes cartas apanhadas nas Tulheries no sangrento dia 10 de agosto,bastassem a condenar o ancio dado a inocentes quimeras msticas, bem que algumas passagens noabrissem suspeitas a conjuraes menos espirituais. Fouquier-Tinville, no libelo, marca certas

    palavras das cartas como indicativas da inteligncia na conjurao chamada dos Cavaleiros doPunhal, malograda nos dias 10 e 12 de agosto; outra carta ainda mais explcita indica o modo de dar

    evasiva ao rei, preso na volta de Varennes, e traava o itinerrio da fuga. Cazotte oferecia comoasilo de passagem a sua prpria casa:

    O rei avanara at a explanada de Ay Daqui a Givet medeiam vinte lguas, e quarenta a Metz.Pode alojar-se em Ay, onde h trinta casas para as suas guardas e trens. Eu antes quisera que ele

    preferisse Pierry, onde acharia, tambm, vinte a trinta casas, em uma das quais h vinte camas, eespao, em minha casa, para aquartelar duzentos homens, estrebarias para trinta a quarenta cavalos,

    e espao para armar um pequeno arraial adentro dos muros. Mas preciso que algum mais hbil edesinteressado calcule as vantagens das duas posies.

  • 19

    urgente que o esprito partidrio impea a apreciao da honrada solicitude de um homemoctogenrio que se julga pouco desinteressado oferecendo ao rei proscrito o sangue de sua famlia, eo seu jardim para campo de batalha! Tais conspiraes no deviam ser atribudas a esprito

    extenuado pelos anos? A carta que ele enviou a seu sogro, M. Roignan, secretrio do conselho daMartinica, convidando-o a organizar resistncia contra seis mil republicanos enviados a apossar-seda Colnia, como a reminiscncia do gentil entusiasmo com que, em rapaz, defendera a ilha

    atacada por ingleses. Indica os expedientes, ou linhas de fortificaes, os recursos que lheaconselhava a sua velha experincia nutica. bem de perceber que tal documento fosseconsiderado altamente criminoso pelo governo revolucionrio; mas para lastimar que no dessempeso a um escrito, datado da mesma poca, e bom para mostrar que - tanto montavam as quimeras

    como os sonhos do infeliz ancio.(10)

    O dia 10 de agosto apagou as iluses dos monrquicos. O povo entrou as Tuilleries, assassinando ossuos e grande nmero de nobres, dedicados ao rei. Entre estes, pelejava um filho de Cazotte, ooutro militava no exrcito emigrado.

    Faiscavam-se a todos os cantos provas da conjurao realista, chamada dos Cavaleiros do Punhal.Nos papis apreendidos Laporte, encontrou-se a correspondncia de Cazotte com o seu amigoPointeau. Sem sentena, foi acusado e preso na sua casa de Pierry.

    Interrogou-o o comissrio da Assemblia Legislativa:

    - Reconhece estas cartas?

    - So minhas.

    - Escrevi-as eu, ditadas por meu pai - disse Elisabeth, ansiosa por ter parte nos perigos e no crcere.

    Foi presa com o pai; e logo conduzidos a Paris, na carruagem de Cazotte, foram encerrados naAbbadye, ai por fim de agosto. Mad. Cazotte implorou debalde que a deixassem acompanhar o

    marido e a filha.

    Os infelizes, aterrorizados nessa priso, gozavam alguma liberdade interior. Era-lhes concedidoreunir-se a certas horas, e por vezes a velha capela, onde os presos se ajuntavam, oferecia oespetculo das brilhantes reunies da sociedade. E, porventura, iludiram-se tambm os presos,

    disparou na imprudncia de discursarem, cantarem, andarem por janelas, de teor que j os rumoresda gentalha acusavam os presos de se alegrarem com as vitrias do exrcito do duque de Brunswick,

    e esperarem dele o resgate. E, lastimando as delongas do tribunal extraordinrio, criado fora pelaAssemblia Legislativa, a impulsos minazes da comuna, j o povo acreditava em conspiraesforjadas nos crceres para arrombar as portas, quando os estrangeiros se avizinhassem e, dispersosna cidade, fizessem a Saint-Barthlemy dos republicanos.

    A notcia da tomada de Longwy, e a prematura atoarda do assalto de Verdun acabaram de exasperara multido. Proclamado o perigo da ptria, reuniram-se as sesses de campo de Marte. E, entretanto,

    bandos furiosos acercavam-se dos crceres, e estabeleciam nas portadas exteriores tribunais desangue, destinados a suprirem o outro.

    Na Abbadye, os presos estavam conglobados na capela, entregues s suas prticas ordinrias,quando os gritos dos chaveiros: - Subam as mulheres. esturgiram inesperadamente. Trs tiros de

  • 20

    pea e o rufar de caixa aumentaram o pavor. Dois padres de entre os presos que ficaram, subiram aoplpito da capela e anunciaram a sorte que os aguardava.

    Fez-se silncio fnebre naquela assemblia espavorida.

    Dez populares, precedidos dos guardas, entraram capela, mandaram enfileirar os presos ao longoda parede, e contaram cinqenta e trs.

    Depois, de quarto em quarto de hora, era chamado um. No gastava mais tempo nos seus juzos otribunal arvorado no ptio da cadeia.

    Alguns foram absolvidos, e entre estes o venerando Abade Sicard. O maior nmero, porm, eraacutilado sada da porta pelos facnoras fanticos, revestidos desta horrenda misso.

    meia-noite, foi chamado Jaques Cazotte.

    Apresentou-se serenamente o ancio perante o sanguinrio tribunal constitudo em uma saletacontgua priso. Presidia o terrvel Maillard. Neste instante alguns demagogos exigiram que se

    apresentassem tambm as mulheres, e com efeito vieram, uma por uma, capela; porm, osmembros do tribunal rejeitaram aquele hediondo voto, por maneira que Maillard, ordenando aocarcereiro Lavaquerie que as tirasse de l, folheou o assento das entradas do crcere e chamou

    Cazotte a grandes brados. A este nome a filha do preso, que j ia saindo com as outras precipitou-seao fundo da escada, e atravessou a multido no momento em que Maillard proferia a palavra

    tremenda: A la Force, que queria dizer: Morte.

    Abriu-se a porta exterior; o ptio cercado de longos claustros, onde os carniceiros iam matando,estava a transbordar de povo cuja vozearia se misturava aos gritos dos agonizantes. A intrpida

    Elisabeth lanou-se entre os dois matadores que j lhe tinham o pai nas garras, e se chamavamMichel e Sauvage, e pediu-lhes, e tambm pediu s turbas, o perdo de seu pai.

    Este inopinado aparecimento, as penetrantes vozes, a idade do condenado, cujo crime no se definianem facilmente provara, o quadro sublime daquelas duas majestosas figuras, o impressivo quadro

    de herosmo filial, moveram os instintos generosos da multido. Conclamavam brados de perdo detodos os lados. Maillard hesitava. Michel encheu um copo de vinho e deu-o a Elisabeth: -Escuta,

    cidad! para provares ao cidado Maillard que no s aristocrata, bebe sade da nao e vitriada repblica!

    E a corajosa menina bebeu sem vacilar. Os marselheses abriram ala e a turba aplaudindo afastou-separa deixar passar pai e filha. E levaram-nos casa.

    No dia seguinte quele em que fora conduzido em triunfo pelo povo, muitos amigos o felicitaram.Um desses, M. de Saint-Charles, disse-lhe: -Hei-te salvo!. - Por pouco tempo - respondeu

    Cazotte, sorrindo amargamente - Momentos antes da tua chegada tive uma viso, e vi umgendarme que me procurava da parte de Ption. Fui obrigado a segu-lo. Apareci na presena domaire de Paris que me mandou para a Conciergerie, e daqui para o tribunal revolucionrio. chegada a minha hora.

    Saint-Charles deixou-o, supondo que a razo de Cazotte se perturbara com os terrveis transes quesofrera. Um advogado, chamado Julien, ofereceu a Cazotte o asilo de sua casa e meios com que

  • 21

    escapar-se s pesquisas; mas o ancio resolvera no lutar contra o destino. Aos onze de setembro,viu entrar-lhe na residncia o homem da viso, com ordem assinada por Ption, Paris e Sergent.Levaram-no maire e de l Concierge, onde os seus amigos no conseguiram entrar. Elisabeth,

    fora de instncias, obteve licena de servir seu pai, e l ficou na priso at o derradeiro dia.Porm, seus esforos para comover os juizes, no puderam tanto como a plebe. Cazotte, sobre

    requisio de Fouquier-Tinville, foi, depois de vinte e sete horas de interrogatrio, condenado morte. Antes de proferida a sentena, foi transferida para o segredo a filha, cujos esforos e

    influncia no auditrio receavam. A defesa do cidado Julien em vo se fez sentir quanto erasagrada aquela vtima ilesa da justia do povo: o tribunal parecia obedecer a convices inflexveis.

    A mais estranha circunstncia deste processo foi o discurso do Presidente Lavau, antigo membro,como Cazotte, da Sociedade dos Iluminados. Frgil ludbrio da velhice! - exclamou ele - tu, cujo

    corao era estreito para abranger o gozo de uma liberdade santa; mas que provaste, com a tuafirmeza no interrogatrio, que sabias sacrificar a prpria vida ao esteio da tua opinio, escuta asderradeiras palavras dos teus juizes! Possam elas verter em tua alma o blsamo precioso da

    consolao! Possam eles, movendo-te a prantear a sorte do que te condenam inspirar-te o estoicismoque deve assistir-te nos instantes supremos e compenetrar-te do respeito a que a lei nos fora! Os

    teus ouviram-te, esses te condenaram; mas o seu juzo foi muito puro como sua conscincia;nenhum interesse pessoal lhes conturbou a deciso. Vai! Reanima-te! Encara sem pavor a morte!

    Rene tuas foras; convence-te que no tens direito a estremecer; um homem como tu no deveaterrar-se com a dor de um momento. Mas, antes de te desatares da vida, encara na atitude

    majestosa da Frana, ao seio da qual no receavas chamar a gritos o inimigo v a tua velha ptriaopor aos ataques de seus vis detratores tanta coragem quanta covardia tu lhe assacas. Se a leiprevisse que tinha de legislar contra um criminoso de tua natureza, em respeito tua proveta idade,nenhuma pena te imporia; mas sossega; se ela severa quando investiga, logo que condena, cai-lhedas mos o gldio e geme sobre a perdio daqueles mesmos que quiseram dilacer-la. Olha como

    ela chora sobre esses cabelos brancos que respeitou at o momento de te condenar; que esseespetculo te insinue arrependimento; que te mova, desgraado velho, a aproveitar o momento quete separa da morte, para delir os ltimos vestgios de tuas conspiraes, com um pesar bem ntimo.Mais uma palavra: Foste homem, cristo, filsofo, iniciado, sabe morrer como homem e como

    cristo. tudo quanto teu pas ainda pode esperar de ti!

    Este discurso, cuja substncia inslita e misteriosa espantou a assemblia, no impressionoulevemente Cazotte, que, no lance em que o presidente recorria persuaso, ergueu os olhos ao cu,

    e fez um gesto de inabalvel f em suas convices. Disse depois aos que o rodeavam que merecia amorte; que a lei era severa; mas justa. (11)

    Quando lhe tosquiaram a cabea, recomendou que no se demorassem muito e encarregou oconfessor de entregar os cabelos filha, ainda presa em um dos segredos do crcere. Antes de ir ao

    suplcio, escreveu algumas palavras esposa e filhos; depois, subindo ao patbulo, exclamou emvoz alta: - Morro como vivi: fiel a Deus e ao meu rei. Foi executado em 21 de setembro, s 7

    horas da noite, na praa do Carroussel.

    Elisabeth Cazotte, esposa prometida ao cavalheiro de Plas, Oficial do regimento de Poitou, esposou,oito anos depois, esse mancebo, que seguiu a sorte dos emigrados. O destino desta herona foi

    depois desgraado como tinha sido. Morreu de parto, dando a luz um menino, e gritando que acortassem em pedaos, se isso era preciso para salvar o filho. A criana sobreviveu momentos.Existem ainda muitas pessoas da famlia Cazotte. Seu filho Scvole, salvo milagrosamente do

  • 22

    morticnio de 10 de agosto, est em Paris e conserva piedosamente a tradio das crenas e virtudesdo pai.

    GERARD DE NERVAL

    AMORES DO DIABO

    I

    Eu era Capito das Guardas do Rei de Npoles, aos vinte e cinco anos. O nosso viver de rapazes eramulherio e jogatina, enquanto havia dinheiro; e, quando ele se acabava, filosofvamos no quartel, mingua de melhor ocupao.

    Uma noite, exauridos os raciocnios de variadas castas a volta de uma garrafa de vinho de Chipre ecastanhas piladas, a palestra descaiu para a cabala e cabalistas.

    Havia um que tinha como cincia verdadeira a cabala, com as suas operaes exatas; enquantoquatro dos mais novos argumentavam que tal cousa era um acervo de absurdidades, um manancialde embustices, prprias a lograr pessoas crdulas e entreter crianas.

    O mais idoso de todos, flamengo de nao, fumava o seu cachimbo distraidamente, e no dizianada. Aquele ar frio e indiferente impressionaram-me em meio da estrondosa altercao que meatordoava e impedia de ser parte em disputa desordenada demais para que me interessasse.

    Estvamos ento no quarto do camarada que fumava. Alta noite, apartamo-nos, ficando sozinhos,naquele quarto, o fumista silencioso e eu.

    E ele continuou a cachimbar fleumaticamente; e eu em frente dele, com os cotovelos sobre a banca,sem dizer nada. Por fim, disse ele:

    - Por que no entraste nessa ruidosa disputa que ai se fez?

    - porque eu prefiro calar-me a falar no que no percebo. Eu nem sequer sei o que vem a ser apalavra cabala!

    - Tem muitas significaes - respondeu ele - mas no delas que se trata, da coisa em si. Crs quepossa haver cincia que ensine a transformar metais e a submeter os espritos nossa vontade?

    - Eu de espritos, sei que os h, comeando pelo meu. Quanto a metais, sei quanto vale um carlin nojogo, na estalagem e no mais, mas no posso afirmar, nem negar a essncia dos metais, nem asmodificaes e impresses que lhes so prprias.

    - Meu rapaz, apraz-me a tua ignorncia, que vale tanto, como a sapincia dos outros. Tu, ao menos,no erras; e, se s ignorante, tens capacidade para ser instrudo. Agradam-me o teu natural, a

    sinceridade do teu carter e retido de esprito. Sei alguma coisa mais que o vulgar dos homens.Jura-me tu o mais inviolvel segredo sobre a tua palavra de honra; promete-me ser prudente, e sersmeu discpulo.

    - O exrdio que fazes me agradabilssimo. A minha mais forte paixo a curiosidade. Confesso-teque sou pouco amartelado do saber o que por ai se sabe ordinariamente; tudo isso se me figura

  • 23

    limitadssimo. Mas agora como que estou adivinhando as altas regies a que tu me queres exalar.Qual porm, a primeira chave da cincia de que me falas? Segundo ouvi aos nossos camaradas,

    so propriamente aos espritos que nos ensinam? H meios de nos identificarmos com eles?

    - isso mesmo, lvaro; por si mesmo que no h ai aprender coisa nenhuma; quanto possibilidade de identificao vou dar-te uma prova irrecusvel.

    Ao dizer estas palavras acabou de fumar, despejou a cinza batendo trs pancadas com o cachimboemborcado sobre a mesa, perto de mim, e exclamou: Caldeiro, vem buscar o meu cachimbo,

    acende-o, e traz-mo.

    Proferida a ordem, o cachimbo sumiu-se; e, ainda antes de refletir no modo como, nem perguntarque era aquele Caldeiro encarregado de tais ordens o cachimbo voltou aceso, e o meu interlocutor

    estava de novo fumando.

    E continuou, no tanto para deliciar-se nas aspiraes da nicotina, como para saborear o espanto emque me via. Por fim, ergueu-se e disse: Assim que for dia, hei de estar de guarda: preciso repousar.Vai tu dormir; s discreto, e falaremos depois.

    Retirei-me inquieto e faminto das idias novas com que eu esperava saciar a minha curiosidadefavorecida por Soberano - que assim se chamava o meu camarada. Vi-o no dia seguinte, e nos

    outros todos; segui-o com a sua sombra; nenhuma outra paixo me avassalava. Fiz-lhe centenas deperguntas; umas deslizava-as arteiramente; a outras respondia com ares sibilinos. Afinal, aperteicom ele sobre o artigo da religio seguida pelos seu sectrios. a religio natural. Respondeu.

    Entramos em particularidades. Os seus dogmas quadravam melhor s minhas propenses que aosmeus princpios; mas para chegar ao meu intento, era prudente no o contradizer.

    - Tu exerces imprio sobre os espritos - lhe disse eu - tambm eu quero estar em inteligncia comeles. Desejo-o ardentissimamente.

    - s ardente demais, camarada! Ainda no cumpriste o tempo de prova; no satisfizesse alguma dascondies que permitem sem receio atingir esta sublime categoria...

    - preciso muito tempo?

    - Dois anos talvez.

    - Ento, desisto. Daqui at l morrerei eu de impacincia! s cruel, Soberano! No imaginas avivacidade de desejo que alvoroaste em mim... uma labareda...

    - Cuidei que eras mais circunspecto, homem! Tremo por ti e por mim... Pois que? Queres expor-te aevocar espritos sem alguma das iniciaes...

    - Que pode acontecer-me?

    - No digo que absolutamente te acontea mal; se eles tem sobre ns poder, a nossa covardia quelhe d; que o domin-los prerrogativa nossa...

  • 24

    - Ah!... eu os dominarei!

    - Sim... que tens um nimo rijo; mas se desvairas, se eles vingam aterrar-te...

    - Se a condio no os temer, eu os provocarei a amedrontar-me....

    - Ol!... e se visses o Diabo?

    - Eu cortaria as orelhas ao prprio diabo maioral do inferno!

    - Bravo! Se contas assim contigo, podes arriscar-te, e te prometo a minha assistncia na prximasexta-feira. Jantars com dois dos nossos, e levaremos a aventura a cabo.

    II

    Estvamos na tera-feira. Nunca entrevistas de gal foi almejada com tamanha impacincia.Chegou enfim a hora. Achei em casa de meu camarada dois sujeitos de catadura sombria. Jantamos.

    A conversao versou sobre coisas vulgares.

    Depois de jantar, deliberou-se um passeio a p s runas de Portici. Metemo-nos ao caminho, echegamos. Aquelas relquias monumentais derrudas, truncadas, esparsas, cobertas de silvedos,

    influram no meu nimo sensaes extraordinrias. Eis aqui - dizia eu - a ao do tempo sobre aobra da soberba e indstria dos homens. Embrenhamo-nos nas runas, e chegamos enfim, quase s

    apalpadelas, atravs desses destroos, a um recesso to enoitecido, que nenhuma luz exterior lpenetrava.

    O meu camarada conduziu-me pelo brao. Depois, paramos. Um dos trs feriu lume e acendeu umavela. A estncia alumiou-se frouxamente, e descobri que estvamos debaixo de uma abbada bemconservada, de vinte e cinco ps quadrados pouco mais ou menos, com quatro sadas.

    Estvamos profundamente silenciosos.

    O meu camarada, com uma bengala a que se encostara no caminho, traou um crculo volta de si

    sobre a areia movedia que cobria o terreno, e depois de escrever alguns caracteres, disse-me: Meu valente, entra neste pantculo e no saias sem bons indcios.

    - Explica-te melhor. Quais indcios me ho de guiar?

    - Quando tudo te obedecer; mas, antes disso se o terror te desatremar, corres imensos perigos.

    Deu-me, em seguimento, uma frmula de evocao curta, com algumas palavras que eu noesquecerei jamais.

    E ajuntou:

    - Recita este esconjuro com firmeza e invoca trs vezes claramente Belzebuth, e sobretudo noesqueas o que prometeste.

    Recordei-me, ento, que prometera cortar-lhe as orelhas.

  • 25

    - No faltarei ao prometido - insisti, no querendo se desmentido.

    - Desejamo-te o melhor xito - voltou ele, e acrescento: - Quando tiveres concludo, avisa-nos. Estsem frente da porta por onde hs de ir ter conosco.

    E retiraram-se.

    Ainda no houve valento que se topasse em crise mais apertada! Estive a ponto de os chamar; masseria enorme vergonha, alm de ir nisso a renunciao de todas as esperanas. Retive-me sobre oposto, e meditei alguns minutos.

    - Quiseram aterrar-me... - dizia eu entre mim - querem ver se eu sou covarde. Estes homens, que meexperimentam, esto perto; e logo que eu faa a invocao, de se esperar que eles faam o que

    quer que seja para me assustar. Coragem. Volte-se a zombaria contra os chacoteadores de maugosto!

    Esta deliberao foi rpida, posto que algum tanto perturbado pelo ramalhar dos mochos e corujasque habitavam os arredores e at o interior da caverna.

    Algum tempo sossegado por aquelas reflexes, aprumei-me, impetiquei-me, firmei o p, e proferi oesconjuro com voz alta, clara e rija, engrossando-a cavamente quando com trs brados, a intervaloscurtos, chamei Belzebuth.

    Corria-me s veias um calafrio, ao passo que os cabelos se me eriavam.

    Mal acabei a evocao, abre-se de par em par uma janela em frente de mim, no alto da abbada. Umgolfo de lumeeira mais esplendente que do sol jorra por aquela abertura; uma cabea de camelo,horrenda no tamanho e no feitio, surge na janela; as orelhas principalmente eram descompassadas!O fantasma hediondo escancara as fauces, e com um ronco prprio de tal monstro, responde-me!

    - Che vuoi? (12)

    As abbadas e subterrneos em volta ecoaram a porfia o horribilssimo che vuoi.

    No sei descrever o meu estado; nem sei como a minha coragem se teve, que eu no cassefulminado pelo espetculo e ainda mais pelo estridor que me ribombava nos ouvidos.

    Senti preciso de me valer de todo o meu brio e foras, quebrantadas por um suor glacial. Esforceime, quanto era possvel.

    Faz-se mister que nossa alma seja dotada de enorme vigor e urgentes recursos! Que multido desentimentos, idias e reflexes me sobressaltam esprito e corao, impressionando-as todassimultaneamente!

    Vem a reao; consigo sopesar o meu terror, e fito rosto a rosto o espectro.

    - Que queres tu de mim, disfarado com esse medonho aspecto?

  • 26

    O fantasma titubeou por uns momentos.

    - Chamaste-me... - respondeu ele com a voz mais alquebrada.

    - O escravo pretende aterrar o senhor? Se vens receber minhas ordens, apresenta-seconvenientemente e em tom de servo.

    - Senhor! - volveu o espectro - em que forma quer que eu me apresente para lhe dar gosto?

    Como a primeira idia que me ocorreu foi um co, respondi-lhe:

    - Vem na forma de co espanhol.

    Proferida esta ordem o espantoso camelo alongou os dezesseis palmos de pescoo, abaixou a cabeaat o meio do pavimento, e vomitou um co branco de felpa sedoso e brilhante, e orelhas querojavam pelo solo.

    Fechou-se a janela, evolou-se a viso, e s eu e o cozinho ficamos debaixo da abbada bastantealumiada.

    O co andava volta do crculo, sacudindo a cauda e dando pichos.

    - Senhor - disse ele - eu queria lamber-te as pontas dos ps; mas o terrvel crculo, que nos separa,impede-me.

    Como a minha confiana orasse j pelo atrevimento, sai do crculo, estendi o p e o co lambeu-o;fiz um gesto de quem lhe queria arrancar as orelhas, e o co voltou-se de pernas ao ar com modos

    suplicantes. Descobri, ento, que era uma femeazinha.

    - Levanta-te! - bradei-lhe - perdo-te. Bem sabes que vim acompanhado. Algumas pessoas nosesperam perto daqui. O passeio fatigou-as: quero dar-lhes um repasto. Querem-se frutas, conservas,gelados, vinhos gregos. Entende-me bem. A sala iluminada e decorada sem pompas, mas comasseio. Findo o repasto, entrars com artista de primeira plana, com a tua harpa. Dar-te-ei um sinalquando houveres de entrar. Olha l como te desempenhas. D-me expresso ao canto, e ao mesmotempo decncia e comedimento nas tuas atitudes.

    - Obedecerei, senhor, mas com qual condio?

    - Com a condio de obedecer como escravo. Obedecer sem rplica, alis...

    - Tu no me conheces senhor; se no de outro modo te haverias comigo... Condio te poria eu umaque te desarmasse e comprazesse.

    Mal o co conclura o seu dito, que, a meia volta que fiz, vi minhas ordens executarem-se mais depronto do que se transforma um cenrio na pera. Os muros da abbada, dantes negros, midos,

    musgosos, vestiram-se de cores suavssimas e agradveis decoraes: era um salo de mrmorejaspeado. A arquitetura mostrava um cimbre assentado sobre colunas. Oito serpentinas de cristal

    contendo cada uma trs velas, iluminavam por todo o mbito com igual claro a improvisada sala.

  • 27

    III

    Instantes depois, mesa e aparador ressaltam cheios de todas as espcies de vveres dos maiscobiados: frutos e confeitos de mais rara qualidade, do melhor paladar e mais regalada aparncia.A porcelana do servio e do aparador era legtimo Japo. A cadelinha saracoteava-se na sala,

    gaifonando em redor de mim, como a dar valor ao servio e a perguntar-me se eu estava contente.

    - Muito bem, Biondetta! - disse-lhe eu - veste uma libr, e vai dizer aos senhores que ai esto foraque eu os espero, e que est posta a mesa.

    Mal desviei os olhos um momento que para logo entrou em pagem com a minha libr, guapamentevestido, com um castial aceso; logo depois voltou conduzindo o meu camarada flamengo e os seus

    dois amigos.

    Predispostos para o que quer que fosse extraordinrio vista da chegada e cumprimento do pagem,certo no previam a mudana feita no local onde me deixaram. Se o meu nimo no estivesse to

    preocupado, muito me divertiria com o espanto deles, que prorromperam num brado, com asfisionomias e posturas conturbadas.

    - Meus senhores - lhes disse eu, ento - por minha causa fizestes grande caminhada; e paravoltarmos Npoles temos que palmilhar muito. Entendi pois que este ligeiro repasto vos no

    desprazeria, e me desculpareis da pouca escolha e deficincia, atendendo prontido.

    A minha placidez assombrou-os mais ainda que a mutao da cena e o espetculo da elegantemerenda para a qual eram convidados. Dei tanto disso, e resolvi acabar depressa uma aventura de

    que eu interiormente nutria ruins suspeitas. Forcejando, pois, em trazer baila toda a alegriacongenial do meu gnio, aproveitei todo o cmico possvel situao.

    Instei-os a sentarem-se, enquanto o pagem chegava as cadeiras com maravilhosa presteza.Estvamos abancados, enchi os copos, servi os frutos, comi e falei, enquanto os outros s tinham

    boca para se abrir de espanto. No obstante, muito rogados por mim, resolveram comer. Fiz umbrinde mais formosa loureira da Npoles: bebeu-se. Falei da pera nova, da improvisada romanachegada recentemente, e cujo talento andava muito soado na corte. Voltei a discutir as artes belas,msica, escultura, e por vir a talho dei-lhes como modelos alguns mrmores que adornavam a sala.Garrafa vazia era logo substituda por outra mais generosa. O pagem multiplicava-se, e o serviono esmorecia um instante. Relanceei-lhe a vista a furto. Imaginem o Amor trajado de pagem. Osmeus companheiros lobrigavam-no com uns ares indicativos de surpresa, prazer e sobressalto.Molestava-me j a monotonia de tal situao: achei que era tempo de quebr-la.

    - Biondetto - disse eu ao pagem - a signora Florentina prometeu-me conceder-me alguns momentos:v l se ela j viria.

    Biondetto saiu.

    Era ainda escasso o tempo para os meus hspedes se maravilharem da extravagncia da mensagem,quando a porta do salo se abriu e Fiorentina entrou com a sua harpa. Vinha trajada com um certodesatavio modesto, chapu de viagem, e um fil transparente no rosto. Pousou a harpa junto de si,cortejou graciosamente, e disse:

  • 28

    - Sr D. lvaro, eu no fui prevenida de estar acompanhado; alis viria vestida com menosdesalinho: estes cavalheiros queiram desculpar uma viajante...

    Sentou-se. Oferecemo-lhe competncia os restos do nosso banquetezinho, que ela aceitou porcondescendncia.

    - Como possvel, senhora, que passando em Npoles a no retivessem l? Perguntei.

    - Sou obrigada por escritura a ir a Veneza, onde fui muito cordialmente acolhida no carnavalpassado. Foraram-me a prometer que voltaria, e j aceitei dinheiro por conta; sem isso no me

    esquivaria s vantagens que me props a corte, e esperana de granjear os sufrgios da fidalguianapolitana, que em gosto se avantaja a toda a Itlia.

    Os dois napolitanos inclinaram-se respondendo ao elogio, to convictos da realidade da cena queesfregavam os olhos. Pedi cantora que nos deixasse entrever um relano de seu gnio. Estava ela

    um tanto constipada e fatigada; receou, com razo desmerecer em nosso conceito. Por fim,determinou executar um recital obrigado e uma ariazinha sentimental que fechava o 3o ato da pera

    em que ela havia de estrear-se.

    Pegou da harpa, preludiou com a mo pequena, comprida, branca e ao mesmo tempo purpurina dacarne lisa que a vestia, com uns dedos que insensivelmente iam afinando nas extremidades, de ondesaiam umas unhas de inconcebvel graa. Estvamos todos arroubados, e crentes de que assistamosao concerto mais aprazvel.

    Cantou. Tanta voz, tamanha alma e tanta expresso no tem ningum. Ningum dizia tanto com tomnimo esforo. Todo e era uma vibrao at o ntimo do seio, e j me nem lembrava que era eu ocriador dos amavios que me arrebatavam.

    A cantarina endereava-me expresses maviosas do seu recitativo e canto. As flechas dos seus olhoscoavam-se pelo vu. Eram de uma doura e penetrao incompreensveis: aqueles olhos no me

    eram desconhecidos. Afinal, combinando os traos que entreluziam atravs do vu, reconheci emFlorentina o velhaca de Biondetto; porm, a elegncia e donaire da formas sobressaam mais louse gentis ao trajar mulheril que na libr de pagem.

    Concludo o cntico, elogiamos devidamente a artista. Empenhei-me para que nos cantasse uma riaalegre que nos ocasionasse admirar-lhe a variedade do talento.

    - No - recusou ela - conforme a disposio em que estou, sair-me-ia mal; demais disso, oscavalheiros decerto notaram o esforo que fiz para lhes obedecer. A minha voz ressente-se da

    viagem; falta-lhe timbre. J sabem que parto esta noite. Vou num carro alugado, e estou s ordensdo boleeiro; peo-lhes pois que me desculpem, e concedam que me retire.

    Dito isto, ergueu-se, e quis transportar a harpa. Tirei-lha das mos; e, depois de ir acompanh-la ata porta por onde entrara, tornei para os companheiros. Parece que eu deveria ter motivado alegria;pelo contrrio, notei tristeza em todos os semblantes. Apelei par o vinho de Chipre, que o havia

    delicioso, e me dera foras e afoiteza de corao. Redobrei a dose. E, como a noite fosse alta, disseao meu pagem, j reposto no seu lugar atrs de minha cadeira, que chamasse minha carruagem.Biondetto saiu logo a cumprir as minhas ordens.

  • 29

    - Tens aqui trem ?! - perguntou Soberano.

    - Tenho: ordenei que me seguisse, prevendo que, depois de longa demora, lhes seria mais cmodono ir a p. Bebamos mais um copo, visto que no h perigo de escorregarmos na estrada.

    Apenas eu disse isto, entrou o pagem com dois cocheiros vestidos com a minha libr.

    - Sr D. lvaro - disse Biondetto - no pude fazer chegar a sua sege: ela est ali fora dos entulhosque atravancam o acesso a este lugar.

    Erguemo-nos. Seguiram-nos o pagem e os criados. A caminho!

    Como no podamos ir todos ao par por entre os fustes das colunas desabadas, Soberano que ia aomeu lado, apertou-me a mo, dizendo:

    - Amigo, deste-me esse timo regalo, mas h de sair-te caro.

    E eu repliquei:

    - Meu amigo, se isto te deu prazer, sou muito feliz; dei-to pelo preo que o tenho.

    - Chegando carruagem; encontramos mais dois sotas, um trintanrio, um postilho, uma sege deviagem, tudo s minhas ordens, com quantos confortos cabiam no desejo. Fiz a honras de

    confidente, e fomos velozmente a caminho de Npoles

    IV

    Nada se disse por algum tempo, at que um dos amigos de Soberano, falou assim:

    - No lhe peo o seu segredo, Sr D. lvaro; mas foroso que as suas convenes praticadas sejamsingulares! Ainda ningum assim foi obedecido. E eu, de mim, trabalhando h quarenta anos, aindano pude lograr a quarta parte das complacncias que se deram com o senhor em uma s noite! J

    no falo da mais celestial viso que se pode imaginar: disso provm aflio para os olhos que se

    iludem com esperadas delcias. Enfim, o senhor l sabe... rapaz... Na sua idade, so to aceleradosos desejos que no do passagem razo... o que se quer levar de assalto os deleites.

    Bernardillo, assim se chamava o sujeito, escutava-se quando falava, e por isso me deu tempo depensar a resposta.

    - No sei - redargi - com que direitos pude obter favores distintos. Agouro que sero curtos, e todoo prazer que me restar hav-los aquinhoado com bons amigos.

    Notaram que eu era pouco expansivo, e da o esfriamento da palestra. No entanto o silncio deu azoa refletir. Recordei-me do que fizera e vira; comparei os dizeres de Soberano e de Bernardillo;conclui que acabava de sair do pior passo a que a v e temerria curiosidade podia expor um homem

    como eu. Eu no era escasso de luzes. At aos treze anos estive sob a inspeo de D. BernardoMaravillas, meu pai, gentil-homem sem ndoa, e de D. Muncia, minha me, a mais respeitvel ereligiosa dama que houve na Estremadura. minha me! - dizia eu - que julgareis de vosso filhose o houvesse visto e o vsseis agora? Mas isto h de durar pouco... Palavra!

  • 30

    Neste nterim, a carruagem chegou a Npoles. Fui levar casa os amigos de Soberano. Este e euvoltamos ao quartel. O brilhantismo da minha equipagem ofuscou os sentinelas diante das quais

    passamos; porm, a formosura de Biondetta, que ia na almofada do carro, deu maior rebate aoespanto dos espectadores.

    O pagem despediu a sege e cocheiros, pegou da lanterna que um trintanrio levava, e atravessou ascasernas para me conduzir aos meus aposentos. O meu escudeiro, mais pasmado que os outros,queria pedir-me novas da nova equipagem que eu ostentara.

    - Basta de perguntas, Carlos - disse-lhe eu recolhendo-me ao meu quarto - podes ir, que no s cpreciso. Vai deitar-te, amanh falaremos.

    Estamos ss na mesma cmara. Biondetta fechou a porta. A minha situao era menos embaraosaentre os sujeitos que deixara, e nos lances tumultuosos que percorrera.

    Querendo por termo aventura, recolhi-me um instante. Relano a vista ao pagem, e vejo-lhe osolhos cravados no assoalho. Purpureia-se-lhe o rosto; denuncia nas posturas grande acanhamento e

    comoo. Afinal, delibero falar-lhe.

    - Biondetta, serviste-me primorosamente; realaste os servios que me fizeste com muitssimagalanteria; mas, como entendo que j de antemo havias sido pago, creio que esto saldas as nossascontas.

    - D. lvaro muito nobre para se julgar quite com to pouco.

    - Pois se fizeste mais do que devias, e eu te devo, d-me a tua conta; mas no prometo pagar-te depronto. O soldo deste ms est devorado. Devo na tavolagem, no hotel, no alfaiate...

    - Isso gracejar fora de tempo.

    - Se foroso abster-se de gracejos, pedir-te-ei que te retires, porque tarde, e quero dormir.

    - E manda-me a tal hora e to descortesmente embora? Eu no esperava tal indelicadeza de umfidalgo espanhol! Os seus amigos sabem que eu vim para aqui; os seus soldados e criados viram eadivinharam o meu sexo. Se eu fosse uma vil rameira, pode ser que D. lvaro me tivesse em

    alguma considerao; mas esse proceder infamante, ignominioso! No h ai mulher que se noconsiderasse humilhada com tal feito!

    - Ento, pelos modos, apraz-te ser agora mulher para conciliar respeitos! Pois v l! Para teresguardar ao escndalo da sada, toma a teu cargo escapulir-te pelo buraco da fechadura da porta.

    - Pois deveras? Sem saber que sou...

    - Pois no sei?

    - No sabe, digo-lhe eu D. lvaro s escuta os seus preconceitos... Mas quem sou eu, eis-me a seusps com as lgrimas nos olhos. Suplico-lhe como quem invoca um defensor. Uma imprudncia

    maior do que a sua, talvez perdovel, porque D. lvaro a causou, fez-me hoje arrojar a tudo para

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    obedecer-lhe, ser sua e segu-lo. Conjurei contra mim as mais cruas e implacveis paixes. Proteono tenho alguma seno a sua; asilo tenho s o da sua alcova. Fecha-me, lvaro? Dir-se-h que umcavaleiro espanhol tratou com tal rigor e severidade algum que lhe sacrificou uma alma sensvel,

    um ente frgil, desvalido de todo amparo que no seja o seu? Em uma palavra, eu... uma mulher!? -Recuei tanto quanto pude para me esquivar; ela porm, abraava-me os joelhos, e seguia-me quase arojo. Enfim, recostei-me parede:

    - Ergue-te! - bradei - Sem o pensares, foras-me por um juramento que fiz. Quando minha me medeu a primeira espada, fez-me jurar sobre o punho que toda a vida seria desopressor de mulheres, e

    a nenhuma recusaria meu brao. Quando mesmo seja o que penso que hoje ...

    - Pois ento, cruel, seja o que for, permita-me que eu fique no seu quarto.

    - Concedo pela raridade de sucesso, e por coroar a extravagncia da minha aventura. Trata de teagasalhares de modo que eu te no veja nem oua. primeira voz, ou movimento que me inquiete,eu engrossarei o som da minha voz para a meu turno te perguntar: Che vuoi?

    Voltei-lhe as costas, e acerquei-me do leito para me despir.

    - Quer que eu o ajude? - perguntou.

    - No, sou militar, e c me sirvo.

    Deitei-me.

    V

    Atravs do cortinado do meu leito, vi o suposto pagem arranjar ao canto do meu quarto uma alcatifavelha que encontrou no guarda-roupa. Amezendou-se em cima, despiu-se completamente, envolveuse em um capote meu que achou no espaldar de uma cadeira, apagou a luz, e a cena por entofindou desta sorte; mas da a pouco, recomeou no meu leito onde eu no podia adormecer.

    Dir-se-ia que o retrato do pagem estava suspendido no baldaquino do catre e nas quatro colunas: euno via outra coisa. Debalde forcejei por associar quela imagem encantadora a idia do pavorosofantasma que eu tinha visto: a primeira viso realava as belezas da segunda.

    Aquele melodioso cantar que eu ouvira na caverna, a toada daquela voz deleitosa, aquelas vozes quesovam como vibraes apaixonadas do corao, ressoavam ainda em minhalma com excitaes de

    singular estremecimento.

    - Ah! Biondetta! Dizia eu comigo mesmo - Se tu no fosses um ser fantstico, se tu no fossesaquele horrendo dromedrio...

    Mas que ratos se apossaram de mim? Se venci o terror, atrevo-me a entrar no mago dum maisperigoso sentimento. Que delcias me podem advir da? No sero elas sempre empeonhadas desua origem?

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    O fogo daquele to penetrante olhar, to doce, veneno atroz. Aquela to formosa boca, tonacarina e fresca, e de to inocente aparncia, uma fonte de imposturas. Aquele corao, se queali h corao, s traies poderiam inflam-lo.

    Enquanto eu me desvairava em pensamentos sugeridos pelos vrios movimentos que me agitavam,a lua, apontando no alto do hemisfrio em cu puro, dardejava seus raios no meu quarto atravs detrs grandes janelas.

    Eu me remexia freneticamente em minha cama. Eis que, em razo do leito ser usado, a madeira dde si, e as trs pranchas, que amparavam o enxergo, caem com grande estalido.

    Ergue-se Biondetta, e corre para mim com ares de assustada, exclamando:

    - Que desgraa lhe sucedeu, D. lvaro?

    Apesar deste incidente, eu no tirava os olhos dela. Vi-a levantar-se e correr. Vestia uma camisa depagem; e a luz da lua tocando-lhe nas pernas parecia ter-se alindado no reflexo.

    Incomodado pelo mau arranjo da minha cama, que ficara de modo a me deixar pior do que estava,pior me achei ainda apertado nos braos de Biondetta.

    - No me sucedeu mal nenhum - disse-lhe eu - retira-te. Andas em palmilhas pelo assoalho... v lse te constipas... Vai-te embora...

    - Mas o senhor assim no est bem...

    - Mal me sinto eu contigo aqui... Retira-te.... E, se queres estar deitada comigo ou minha beira,mando-te que vs dormir naquela teia de aranha que est naquele canto.

    No quis ouvir o fim da ameaa: foi deitar-se na esteira, soluando baixinho.

    Vinha apontando a aurora, quando eu, vencido pelo cansao, dormi algum tempo. Acordei j diaalto. fcil supor que direo dei aos meus olhos. Procurei os do pagem. Estava