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AMéRICA LATINA 48 ALMANAQUE BRASIL SOCIOAMBIENTAL AMBIENTES AMéRICA LATINA ANTONIO CARLOS ROBERT MORAES* A América Latina é o resultado da colonização européia no Novo Mundo e foi assentada na subordinação de populações locais, na apropriação de espaços e exploração de recursos naturais, gerando degradação ambiental e um dos maiores índices de concentração de renda do Planeta *Geógrafo e sociólogo, professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Na expansão marítima iniciada no século XV, os agentes das monarquias ibéricas encontram terras desconhecidas à leste do Oceano Atlântico. Cristóvão Colombo, no final do citado século, acredita haver chegado à Ásia, identificando as Antilhas com o Japão (a Cipango, descrita por Marco Pólo). Outros crêem tratar-se da “quarta parte do mundo”, mencio- nada na Síntese Geográfica de Ptolomeu e não localizada no ecúmeno europeu da época. Alguns falam das “ilhas afortu- nadas”, figuras do imaginário geográfico medieval. Américo Vespúcio, em correspondência a Lorenzo de Médici, afirma ser um Novo Mundo, alcunha que a cartografia seiscentista divulga até consolidar o nome do autor da missiva. A apropriação européia das novas terras cria a América, na dominação dos espaços antes desconhecidos. A busca de riquezas anima tal processo e a descoberta dos tesouros asteca e inca aceleram os empreendimentos coloniais. Nos quais também se lançam outras Coroas européias, além das de Portugal e Espanha. Tem-se, portanto, uma relação entre sociedades que se expandem (movidas pelo incremento de seus próprios circuitos comerciais), e os espaços onde ocorrem tais expansões (em si bastante diferenciados, como se verá em seguida). A esse processo, denomina-se colonização. Uma adição de terras e recursos ao patrimônio dos colonizadores, agora tornados metrópoles. A América atual é um resultado da colonização européia do Novo Mundo, possuindo assim uma formação colonial, isto é, assentada na expansão territorial, na invasão que traz de berço o signo da conquista. Esta manifesta-se como subordinação de populações, apropriação de espaços e ex- ploração de recursos. Um padrão ao mesmo tempo extensivo Muro inca mostra a técnica apurada de construção e o encaixe das pedras. Cuzco, Peru, 2007. © ANDRÉ RICARDO

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américa latina Antonio cArloS roBert morAeS*

A América Latina é o resultado da colonização européia no Novo Mundo e foi assentada nasubordinação de populações locais, na apropriação de espaços e exploração de recursos naturais,gerando degradação ambiental e um dos maiores índices de concentração de renda do Planeta

*Geógrafo e sociólogo, professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

na expansão marítima iniciada no século XV, os agentes das monarquias ibéricas encontram terras desconhecidas à leste do Oceano Atlântico. Cristóvão Colombo, no final do citado século, acredita haver chegado à Ásia, identificando as Antilhas com o japão (a Cipango, descrita por Marco Pólo). Outros crêem tratar-se da “quarta parte do mundo”, mencio-nada na Síntese Geográfica de Ptolomeu e não localizada no ecúmeno europeu da época. Alguns falam das “ilhas afortu-nadas”, figuras do imaginário geográfico medieval. Américo Vespúcio, em correspondência a Lorenzo de Médici, afirma ser um novo Mundo, alcunha que a cartografia seiscentista divulga até consolidar o nome do autor da missiva.

A apropriação européia das novas terras cria a América, na dominação dos espaços antes desconhecidos. A busca de riquezas anima tal processo e a descoberta dos tesouros asteca e inca aceleram os empreendimentos coloniais. nos

quais também se lançam outras Coroas européias, além das de Portugal e Espanha. Tem-se, portanto, uma relação entre sociedades que se expandem (movidas pelo incremento de seus próprios circuitos comerciais), e os espaços onde ocorrem tais expansões (em si bastante diferenciados, como se verá em seguida). A esse processo, denomina-se colonização. Uma adição de terras e recursos ao patrimônio dos colonizadores, agora tornados metrópoles.

A América atual é um resultado da colonização européia do novo Mundo, possuindo assim uma formação colonial, isto é, assentada na expansão territorial, na invasão que traz de berço o signo da conquista. Esta manifesta-se como subordinação de populações, apropriação de espaços e ex-ploração de recursos. Um padrão ao mesmo tempo extensivo

Muro inca mostra a técnica apurada de construção e o encaixe das pedras. Cuzco, Peru, 2007.

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não confunda as américas

M A maior porção da superfície terrestre é recoberta por mares e oceanos. As grandes massas de terras emersas recebem a denominação de continentes. Para Carl Ritter, um dos pais da geografia moderna, os continentes representam as grandes individualidades terrestres. A América é um continente que possui grande individualidade, pois não se relaciona por terra com nenhum dos demais continentes.M O continente americano pode ser subdividido em porções diferenciadas por distintos critérios. Em termos de posição geográfica, podemos falar da América do norte, América Central e América do Sul.M Em termos da colonização, podemos falar em América Saxônica (de colonização inglesa) e em América Latina (de colonização predominantemente ibérica).M O Caribe é um conjunto de ilhas próximas ao continente americano (na direção da América Central) que conheceram ondas colonizadoras diferenciadas (espanhola, francesa e inglesa).

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os blocos regionais da américa latina

Conheça alguns dos blocos regionais em vigor ou em negociação envolvendo países da América Latina:M Mercosul – Criado em 1991, com o Tratado de Assunção, o Mercosul é um projeto de integração econômica entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, cujo objetivo é chegar a criação de um Mercado Comum entre estes países. Em 2006, a Venezuela protocolou um pedido de adesão do país ao bloco. no entanto, até julho de 2007, a solicitação ainda não tinha sido aceita. M Alca – Idealizada pelos Estados Unidos, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) prevê a isenção de tarifas alfandegárias entre 34 países das Américas do Sul, Central e do norte (apenas Cuba ficaria de fora). Com negociações difíceis, a Alca ainda não tem previsão de entrar em vigor.M Alba – A Alternativa Bolivariana para a América Latina e Caribe (Alba) é uma proposta de integração entre países latino-americanos e caribenhos cuja ênfase é a luta contra a pobreza e a exclusão social. Articulada pela Venezuela, a Alba se propõe a ser uma alternativa à Alca.M Tratado de Livre Comércio (TLC) – Paralelamente à Alca, os Estados Unidos vêm negociando tratados de livre comércio com diversos países da América do Sul e Central, isoladamente. Peru, Colômbia e Panamá já assinaram os acordos e até julho de 2007 ainda aguardavam aprovação final do Congresso norte-americano. Esses Tratados de Livre Comércio incluem interesses como patentes, direitos de autoria, bancos, seguros, telecomunicações, franquias, serviços de educação e saúde, entre outros.M Comunidade Andina – Foi estabelecida em 1996 como sucessora do Grupo Andino, que por sua vez nasceu no Acordo de Cartagena, de 1969, também conhecido como Pacto Andino. Hoje, Bolívia, Colômbia, Equador e Peru fazem parte da Comunidade, cujo objetivo é fortalecer a integração regional entre esses países, por meio da cooperação econômica e social. O Chile foi um dos membros fundadores do Pacto Andino, mas se retirou do grupo em 1976.M Tratado de Cooperação Amazônica – Firmado em 1978, o Tratado de Cooperação Amazônica é um instrumento multilateral para promover a cooperação entre os países amazônicos – Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela – em favor do desenvolvimento sustentável na região.

(em termos de espaço) e intensivo (no que toca aos recursos) marca o movimento de conformação dos territórios coloniais americanos. O trabalho compulsório emerge como um traço em comum dos diversos estabelecimentos europeus na América, aproximando as orientações das várias geopolíticas metropolitanas.

acumulação e lucratividadeOs espaços defrontados pelo colonizador são muito

diferenciados entre si, quer nas condições dos meios na-turais, quer no potencial de riqueza imediata apropriável, quer nos quadros demográficos existentes. Em certas áreas, os europeus se defrontam com sociedades organizadas em

complexos sistemas produtivos, com densidades demo-gráficas similares às zonas mais populosas da Europa. Em outras, os efetivos populacionais são exíguos e repartidos em pequenas comunidades nômades dispersas em espaços de grande originalidade natural. Em toda parte, o vetor da conquista colonial embasa-se na lucratividade do empre-endimento. O horizonte de acumulação supera qualquer obstáculo defrontado, como bem demonstra a mineração em grandes altitudes na cordilheira andina.

A apropriação dos recursos americanos comanda o processo colonizador, num contexto no qual as próprias po-pulações autóctones são quantificadas como riqueza natural. Onde a população indígena é escassa, a migração forçada

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A América Latina constitui parte da periferia da economia do mundo capitalista, que conforme as alterações ocorridas no centro do sistema (Europa e depois EUA) muda suas funções na acumulação global. Assim, pode-se identificar diferentes papéis para os países periféricos ao longo da história, sendo que às novas funções agregam-se as antigas, sem eliminá-las por completo, a saber:M Fornecimento de produtos tropicais, inexistentes nos países centrais, ou de alto valor (como os metais preciosos), retirados por métodos extrativos simples (no passado) ou de alta complexidade técnica (como a atual mineração);M Mercado para produtos europeus (ou de outras partes do centro, posteriormente), função que se alarga após a Revolução industrial no fim do século XVIII, que implica na adoção de escalas de produção muito maiores;

M Mercado para capitais produtivos excedentes no centro, notadamente máquinas industriais que são distribuídas pelo mundo no processo de industrialização tardia das periferias. Trata-se da expansão mundializada das empresas chamadas transnacionais que se instalam em lugares eleitos da periferia, com maior velocidade à partir da Segunda Guerra Mundial;M Mercado para objetos técnicos de alto valor agregado, num quadro onde a instalação de ferrovias e outras infra-estruturas aparecem como os produtos de referência. Função associada à chamada Segunda Revolução Industrial do final do século XIX;M Mercado para capitais financeiros que encontram nos países periféricos taxas de rentabilidade muito maiores que as existentes no centro. Tal processo de globalização financeira tem por mecanismo básico a dívida externa.

Todas estas funções periféricas são realizadas até a atualidade pelos vários países da América Latina, sendo o patrimônio natural contido em seus territórios uma grande reserva de valor (agora revalorizada enquanto bancos biogenéticos). A independência desses países, ao longo do século XIX, não quebrou portanto as relações de subordinação que marcam o subconti-nente desde o início da colonização européia. E, até hoje, vive-se uma posição estrutural de dependência externa e de contínua expropriação de riquezas, obje-tivada por mecanismos de “troca” bastante desiguais. A dependência financeira contemporânea reflete a condição periférica.

centro e periferia

de africanos vem preencher com outros braços escravos a demanda dos aparatos produtivos. O trabalho é, assim, um fator central nos assentamentos coloniais, pois representa a mediação entre o colonizador e os recursos. Seu controle constitui o elemento estruturador das sociedades criadas na colonização européia do novo Mundo: uma das periferias geradas na formação da economia do mundo capitalista.

Além dos metais preciosos (um poderoso vetor de ocupação do espaço), atraem a iniciativa colonizadora as condições naturais e os produtos da natureza não encontráveis com facilidade em solo europeu ou em suas imediações. nesse sentido, a colonização manifesta-se como sinônimo de produção de artigos tropicais, seja por meio do extrativismo (intensamente praticado), seja

La Paz, Bolívia, 2007.

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através da atividade agrícola: o açúcar, o tabaco, o algodão, o cacau, entre outros. E a forma produtiva mais rentável é aquela realizada em grandes propriedades com o uso do trabalho compulsório (escravo ou servil). Tal forma expressa o padrão de ocupação do espaço predominante nos territórios coloniais (notadamente nas áreas tropicais da América).

O crescimento dessas estruturas econômicas se faz de modo extensivo, com a incorporação ininterrupta de

novas terras, seja para ampliar a produção, seja para repor os recursos explorados de modo intenso até a exaustão. Tal processo se reproduz em várias partes do continente americano ao longo de três séculos de colonização, que criam grandes anexos territoriais ultramarinos para as economias dos Estados europeus ocidentais. O grosso das riquezas aí produzidas é drenado para a Europa, incorporan-do-se ao cabedal financeiro dos países centrais do sistema capitalista. Lucros das plantations, do tráfico de escravos e

você sabia?

M Os 34 países latino-americanos (todos os países do México para baixo, com as ilhas do Caribe incluídas) somam mais de 550 milhões de pessoas (em torno de 9% da população do globo), concentram dois terços das florestas tropicais do mundo, a maior reserva de água doce do Planeta e a maior biodiversidade. Porém, o crescimento urbano desordenado é uma ameaça a esse patrimônio natural (ver Urbanização, pág. 380).M A pobreza e a desigualdade na América Latina apresentam importantes características relacionadas ao preconceito racial e étnico de origem histórica. As raízes desse processo vêm desde os períodos coloniais, quando a demanda de mão-de-obra dos colonizadores europeus foi atendida por meio da opressão aos indígenas americanos ou pela “importação” em larga escala de milhões de escravos africanos. Dados escla-recem o tratamento, por exemplo, impingido aos povos americanos que estavam aqui quando os europeus chegaram: em 1570, as Américas eram povoadas quase em sua totalidade por indígenas, mas em 1825, quase 300 anos depois, 98% dos EUA e Canadá foram considerados não-índios. no Brasil, os índios somavam mais de mil povos e alguns milhões de pessoas quando os portugueses aqui chegaram. Hoje, a população de origem nativa e com identidades específicas soma 480 mil indivíduos – 0,2% da população brasileira (ver Povos Indígenas, pág.226).M O programa América Latina e Caribe sem Fome 2025, lançado pela FAO em outubro de 2006, tem como principal meta o fortalecimento da agricultura familiar. Os pequenos representam a maior parte dos pro-dutores agrícolas do mundo, mas enfrentam muitos obstáculos fora de seu controle, como falta de crédito, posse insegura de terra, sistema de transporte precário e relações pouco desenvolvidas com o mercado (ver Agricultura Sustentável, pág. 414).M A América do Sul e o Caribe tiveram avanços significativos no combate à fome. O número de pessoas passando fome na região caiu de 59 milhões no começo da década de 1990 para 52 milhões no período entre 2001 e 2003. na América Central, a evolução do problema não foi tão positiva, tanto no número de vítimas da fome ou da desnutrição quanto na proporção dessas vítimas com a população. Acesso insuficiente à terra e à água, pouco crédito disponível para a população rural e o impacto das mudanças climáticas na agricultura também estão afetando a capacidade de nações mais pobres no combate à fome, de acordo com a FAO.M O relatório de 2007 da ONU sobre as Metas do Milênio (ver pág. 36) indica que, se os países da América Latina e Caribe mantiverem a tendência atual, vão cumprir 11 das 18 diretrizes analisadas, como a redução pela metade, entre 1990 e 2015, da proporção de pessoas que passa fome, da proporção de pessoas sem acesso a água potável e da proporção de pessoas sem acesso a saneamento básico.

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cocAnAtAliA hernández*

Coca é o nome dado a duas espécies da família das Eritroxiláceas e cuja característica peculiar é possuir o alcalóide cocaína. Várias investigações científicas lhe atribuem um valor nutricional que supera as 52 espécies vegetais mais utilizadas como alimento na América Latina. A ingestão de 100 gramas de folhas de coca supera a dieta diária de cálcio, ferro, fósforo, vitamina A, vitamina B2 e vitamina E recomendada pela OMS para uma pessoa.

A folha de coca é utilizada pelas civilizações indí-genas da América do Sul há cerca de 5 mil anos. Seu centro de origem é a zona oriental dos Andes, abaixo dos 2 mil metros de altitude, que hoje faz parte do Peru e do Equador. Graças a relações culturais, políticas ou econômicas, seu uso se estendeu até o norte da Argentina e do Chile, ao sul, até a América Central, ao norte, incluindo a região amazônica.

O principal uso da coca pelas sociedades indí-genas sul-americanas é a mastigação de suas folhas mescladas com um componente alcalino. na região andina, se mascam as folhas inteiras e tostadas, às quais se agrega, na boca, o cal, obtido de pedras que contêm cálcio ou de conchas marinhas. na Amazônia, se consomem as folhas tostadas e pulverizadas, mes-cladas com cinzas de folhas de embaúba e mapati. Essa prática é conhecida por diferentes nomes, como picchar ou acullicar na Bolívia, chacchar no Peru e mambear na Colômbia.

Para os índios, a coca é uma planta de origem sagrada, que foi e continua sendo um elemento de coesão social e de transmissão de conhecimento tradicional de geração em geração. Sua mastigação é uma prática masculina, geralmente não permitida a mulheres em idade fértil, e associada a um conjunto de normas relacionadas ao respeito e cuidado consigo mesmo, com as plantas, os animais, com a família e a comunidade.

A mastigação da folha de coca é realizada atual-mente por aproximadamente 120 grupos indígenas em rituais cotidianos e, recentemente, políticos.

Sua importância ritual se deve ao fato de que, para os povos indígenas, o território é um sistema que depende da energia vital distribuída entre todos os seres de maneira equi-librada. Quando os seres humanos utilizam os recursos naturais ou afetam os locais sa-grados de maneira descontrolada, desequilibram o fluxo normal dessa energia, acumulando-a em si mesmos e causando enfermidades, conflitos, acidentes ou até a morte. A coca permite aos xamãs, guardiões do equilíbrio energético do território, ne-gociar com os demais guardiões durante cada época do ano o aproveitamento dos recursos naturais através de danças, cantos, curas e rezas.

no cotidiano, o mambeo (preparação da coca) facilita a transmissão do conhecimento tradicional do mestre ao aprendiz, sua aplicação nos papéis tradicionais masculinos (caça, pesca, corte e queima) e o cumprimento das restrições alimentares indicadas pelos xamãs. no âmbito político, o mambeadero ganhou importância durante os últimos 15 anos na organização interna e para o estabelecimento de relações com os não-índios.

A coca na América Latina é um elemento vital para a sobrevivência e reprodução da diversidade cultural dos povos indígenas, para a transmissão e aplicação de seu conhecimento tradicional, para a conservação e manejo adequado dos recursos naturais.

*Bióloga da Fundação Gaia Amazonas

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fernAnDo soriA A. La Cultura Uru-chipaya

Sus raíces están en los Urus, una de las culturas más antiguas en el continente americano. Originalmente eran cazadores y pescadores, durante la vigencia del Imperio de Tiwanacu fueron desalojados de su territorio original y condenados a sobrevivir en la región occidental del actual departamento de Oruro (Bolivia). Esta opresión milenaria no ha sido suficiente y los Uru Chipaya han logrado mantener su identidad y hacen esfuerzos continuos para conservar su patrimonio cultural.

Fernando Soria, nasceu em Cochabamba (1946), des de 1986 é fotógrafo profissional. Publicou vários livros de fotografia, entre os quais Bolivia: de las raíces al futuro (1999) e La Paz: una aventura alucinante (2002). Atualmente prepara um livro sobre a Amazônia.

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do comércio trans-oceânico, tornam-se capital nos centros metropolitanos, animando suas economias. Gestam a Revolução Industrial.

estados americanosA ruptura política destas sociedades coloniais com

suas metrópoles européias, a partir de fins do século XVIII, começa a diferenciar internamente, com maior ênfase, o continente americano. Tal diferenciação exercita-se sobre uma variedade anterior dada diretamente pelo predomínio de um tipo de população em cada região colonial. nesse sen-tido, pode-se identificar numa simplificação esquemática: a Indo-América, a Afro-América e a Euro-América, tendo claro a convivência dos diferentes tipos de povoadores em todas as áreas de colonização.

Vale lembrar que toda a obra colonizadora se auto-legitima como um movimento de redenção para os povos e lugares coloniais. no início, a evangelização, alargando o espaço da Cristandade, aparece como móvel da expansão da Europa. Em seguida, a idéia de civilização emerge, impondo às mais longínquas paragens um modelo de sociedade “civi-lizada”. É a essa missão civilizatória que se remetem as elites coloniais que comandam a quase totalidade dos processos de emancipação política na América. Os artífices dos proces-sos de independência se definem como representantes da Ilustração em suas pátrias. As quais podem autonomamente construir as novas nacionalidades americanas.

Contudo, os novos Estados mantêm em muito as estruturas socioeconômicas herdadas do período colonial. Economias de exportação de produtos tropicais, assenta-

américa latina em desenvolvimento

(dA redAção)

A América Latina e o Caribe atravessam atual-mente uma conjuntura de elevado desenvolvimento. A região cresceu 5,6% em 2006, e espera-se que cresça em torno de 5% em 2007 e 4,6% em 2008, de acordo com estudo da Comissão Econômica para América Lati-na e Caribe (Cepal/ONU). Se a previsão de crescimento para 2008 se confirmar, a região finalizará seis anos de crescimento consecutivo com um aumento do PIB per capita regional (ou seja, toda a riqueza produzida por esses países divida pelo número total de habitantes da região) de 20,6%.

O panorama positivo na atividade econômica permitiu uma melhora no mercado de trabalho. A taxa de desemprego regional caiu de 9,1% em 2005 para 8,6% em 2006. A qualidade dos postos de trabalho melhorou e aumentou o trabalho formal. A taxa de inflação regional também recuou: de 6,1% em 2005, caiu para 5% em 2006. O Brasil foi o país com a maior queda nesse índice (de 5,7% para 3%).

Outro aspecto destacado no estudo da Cepal é a diminuição da vulnerabilidade econômica dos países da região, devido principalmente à redução do peso da

dívida externa tanto em relação ao PIB (de 26% a 22%) como nas exportações regionais (de 101% a 84%) e um aumento de suas reservas de moeda estrangeira.

no entanto, nem todos os países encontram-se em situação tão favorável. Em comparação com as nações da América do Sul, os países da América Central e grande parte do Caribe (exceto Trinidad e Tobago e Suriname) tiveram uma evolução menos positiva que o restante, enfrentando alguns desequilíbrios fiscais e maior vulnerabilidade externa. De acordo com a Cepal, é possível manter-se otimista sobre o futuro da região, mas são necessárias mais políticas públicas e fiscais para garantir que esse crescimento em médio e longo prazos continue de forma sustentável.

saiba mais Estudo Econômico da América Latina e Caribe 2006-2007 (www.eclac.cl).

VeJa tambÉm Crescimento Econômico (pág. 433); Desenvolvimento Humano (pág. 435); De-senvolvimento Sustentável (pág. 439); Economia Ecológica (pág. 441).

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das em grandes latifúndios e implementadas por formas compulsórias de trabalho (em alguns casos, como o do Brasil, mantendo inclusive o escravismo). Também o padrão expansionista é mantido, visto que todos estes novos países possuem vastos fundos territoriais ainda não explorados ao longo do século XIX. E os projetos civilizatórios, agora internalizados, voltam-se para estes sertões, repondo as determinações da conquista colonial como eixo estruturador das sociedades “nacionais”.

A construção das nacionalidades, como fundamento de legitimação dos Estados nacionais na América, acentua diferenciações entre países. Como bem aponta Darcy Ribeiro, em alguns casos, o passado pré-colonial é invocado para justificar soberanias (povos testemunhos); em outros casos, busca-se legitimação por meio de tradições de origem dos habitantes (povos transplantados); e há ainda situações onde a própria mescla dos povoadores é erigida como fundamento da legitimidade (povos novos). Em meio a tais processos identitários, a raiz metropolitana vem à cena: emerge a América Latina, em oposição aos discursos “hispâ-nicos” (de Bolívar) e “pan-americanistas” (de Monroe).

Trata-se de uma denominação francesa, voltada para a identificação da América de colonização ibérica (basica-mente). Um conjunto que tem por contraponto imediato os Estados Unidos e a colonização anglo-saxônica. Contudo, para além de seu uso ideológico original, tal agrupamento adquire substância por paralelismos históricos e similarida-des socioeconômicas e culturais desenvolvidas ao longo dos dois últimos séculos. A condição periférica, a modernidade política incompleta e a industrialização tardia, entre outras

saiba mais Adital – notícias da América La-tina e Caribe (www.adital.com.br); Sader, Emir; jinkings, Ivana; Martins, Carlos Eduardo; nobile, Rodrigo (Orgs.). Latinoamericana – Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo e Laboratório de Políticas Públicas da UERj, 2006.

VeJa tambÉm Brasil (pág. 61); Fronteiras (pág. 327).

La Paz, Bolívia, 2007.

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A América Latina e o Caribe estão diante de riscos cada vez maiores de serem atingidos por desastres naturais, segundo o relatório “Up in Smoke? Latin America and the Caribbean – A ameaça da mudança climática para o meio ambiente e desenvolvimento humano”, divulgado por uma coalizão de 20 entidades internacionais, entre elas Tearfund, Greenpeace e WWF. O estudo destaca que o clima latino-americano e caribenho “está se tornando cada vez mais imprevisível e muito extremo” e que a região está “mais vulnerável”, pois os ecossistemas destruídos não conseguem se adaptar a mudanças drásticas. O relatório destacou que, em conseqüência disso, os esforços para acabar com a pobreza e manter o sustento agrícola de milhões de pessoas podem estar ameaçados.

Segundo a pesquisa, a temporada de furacões durante 2005 registrou 27 tormentas tropicais, 15 das quais se transformaram em furacões. O mais devastador deles foi o Katrina, que provocou a morte de pelo menos mil pessoas ao atingir o litoral sul dos Estados Unidos. Para 2006, as autoridades prognosticaram pelo menos 16 tormentas tropicais, quatro das quais poderiam tornar-se “perigosos furacões”.

O relatório advertiu também para a escassez de água potável, principalmente porque o descongelamento das geleiras andinas está afetando o fluxo dos rios e ameaça a possibilidade de conseguir água potável no futuro. Além disso, o desmatamento ilegal de grandes extensões de terra aumenta as emissões de dióxido de carbono na atmosfera, deixando que essas áreas se inundem com mais facilidade.

Três áreas fundamentais devem ser melhoradas, segundo o documento: “reverter e deter mais alterações nas mudanças climáticas; analisar estratégias sobre como viver em um mundo onde as mudanças climáticas não podem ser detidas; e a necessidade, por parte dos países, de criar um marco de desenvolvimento harmônico com o meio ambiente, que seja igualitário na repartição de recursos naturais”.

saiba mais “Up in Smoke? América Latina e Caribe: a ameaça da mudança climática para o meio ambien-te e desenvolvimento humano” (www.panda.org/about_wwf/what_we_do/climate_change).

VeJa tambÉm Mudança Climática Global (pág. 358); O Brasil e a Mudança Climática (pág. 365); O IPCC e a Mudança Climática (pág. 360); O Desafio do Século (pág. 373).

m u d a n ç a c l i m á t i c a

características, aproximam os países latino-americanos num patamar comum, onde sobressaem na atualidade as desigualdades sociais, a concentração de renda e as dívidas externas.

A presença em seus territórios de fundos territoriais significativos é outro elemento caracterizador dos países da América Latina. Fundos cuja incorporação recoloca em prática estruturas herdadas da colonização, como a destruição veloz dos meios naturais e das populações tradicionais. novamente, a conquista de espaços, animada durante todo o século XX pelo rótulo “modernização”, a nova palavra que evoca a missão civilizatória. Implantar a homogeneização produtiva e excludente é a meta de

instalação da economia periférica “moderna”, requerida – e sempre ajustada – pelos padrões de acumulação na escala internacional.

no mundo contemporâneo globalizado, novos interes-ses se associam às velhas funções da periferia. E a América Latina, fracionada nas últimas décadas pela criação de blocos regionais no continente, tende a se diluir em novas identidades geopolíticas, entre estas a Alca (Área de Livre Co-mércio das Américas), que busca repor a unidade continental americana sob hegemonia dos Estados Unidos. Todavia, no plano da estrutura das sociedades, a homogeneidade latino-americana se mantém exatamente na condição periférica e na desigualdade social imperantes.