Ana Cristina Goncalves Mateus -Ocultismo e Esoterism Na Obra de W. Shakespeare

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Ana Cristina Gonalves Mateus

OCULTISMO E ESOTERISMO NA OBRA DE WILLIAM SHAKESPEARE

Anlise das peas Hamlet, The Tempest e The Winters Tale

Dissertao de Mestrado em Estudos Ingleses Orientao: Prof. Doutora Maria de Jesus Crespo Candeias V. Relvas

Universidade Aberta, Lisboa 2006

ERRATA

Pgina

Linha

Onde se l

Deve ler-se

62 81 88 98 131

1 10 14 21 9

a Igreja comeou s sentir (III. i. 601-602) (IV. iv) Ferdinand Tome-se

a Igreja comeou a sentir (II. ii. 601-602) (IV.v) Miranda Tome-se

OCULTISMO E ESOTERISMO NA OBRA DE WILLIAM SHAKESPEARE:Hamlet, The Tempest e The Winters Tale

Dissertao de Mestrado em Estudos Ingleses

Orientao: Prof. Doutora Maria de Jesus Crespo Candeias V. Relvas

NDICE

Agradecimentos Nota Prvia INTRODUO

iii iv vi

CAPTULO I. O Renascimento Ingls 1. A Era Isabelina 1.1. O Drama Isabelino 1.2. A Cosmoviso Isabelina 1.3. O Sobrenatural 1 11 12 17

CAPTULO II. As Cincias Ocultas no Dealbar de Uma Nova Era 2.1. O Neoplatonismo 2.2. O Ocultismo 2.3. O Esoterismo 2.4. O Hermetismo 2.5. A Astrologia 2.5.1. O Horscopo 2.5.2. Os Elementos 2.5.3. Os Planetas 2.5.3.1 Simbologia e Regncias dos Planetas 2.5.4. Aspectos 2.5.5. Casas Astrolgicas 2.5.6. O Ascendente 2.6. A Cabala 2.7. A Alquimia 2.7.1. A Simbologia Alqumica 20 21 21 22 23 25 27 29 29 31 32 33 33 48 55

2.8. A Magia 2.8.1. A Magia Celta 2.9. A Numerologia

58 62 65

CAPTULO III. William Shakespeare: Um Homem do Seu Tempo 3.1. Breve Apontamento Biogrfico 3.2. As Fontes de Shakespeare 70 72

CAPTULO IV. Elementos Ocultistas e Esotricos na Obra de Shakespeare: 4.1. Hamlet 4.2. The Tempest 4.3. The Winters Tale 74 93 112

CONCLUSO

126

BIBLIOGRAFIA E WEBGRAFIA

133

ANEXOS

RESUMO

A dissertao Aspectos Ocultistas e Esotricos na Obra de William Shakespeare Anlise das peas Hamlet, The Tempest e The Winters Tale pretende constatar a existncia de contedos e teorias ligados s cincias ocultas na obra deste autor. Hoje a humanidade vive um novo ciclo, ao entrar na Era de Aqurio (perodo de paz, harmonia, amor e tranquilidade), em que a procura de novas vias de desenvolvimento pessoal se torna basilar, assim como o interesse generalizado pelas mais diversas doutrinas, filosofias e religies, das mais simples s mais complexas e misteriosas. Cincias e Pseudo-cincias como a Astrologia, a Cabala ou a Alquimia, tornam-se importantes meios de acesso ao almejado aperfeioamento pessoal. A verdadeira revoluo de pensamentos, costumes e posturas iniciada com o Quattrocento italiano e difundida por toda a Europa do sculo XVI, bem como a proliferao de estudos e descobertas e invenes cientficas desta poca, alteraram toda uma mundividncia herdada da viso maniquesta medieval, em que a eterna luta entre o Bem e o Mal que condiciona os comportamentos, posto que o homem no passa de um ttere cujas aces so dominadas por este combate nota dominante. nesta sociedade em ebulio que William Shakespeare se move e produz a sua obra. O estudo da temtica ocultista e esotrica na obra de William Shakespeare, um dos maiores autores do cnone literrio ingls, ainda no foi objecto de tratamento muito desenvolvido a nvel mundial, o que determinou a escolha do tema.

PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare/Drama/Ocultismo/Alquimia/Astrologia/Cabala.

ABSTRACT

The

dissertation

Occult and Esoteric Aspects in Shakespeares

Plays Study of Hamlet, The Tempest and The Winters Tale aims to verify the existence of contents and theories linked to the occult sciences in the works of this author. Nowadays, on the verge of the Age of Aquarius (a period of peace, harmony, love and tranquillity), mankind lives in a new cycle in which the quest for new ways of personal development becomes a keystone, as well as the general interest in diverse doctrines and religions that ranges from the simplest to the most complex and mysterious ones. Sciences and Pseudo-Sciences such as Astrology, the Kebbalah or Alchemy, become important means to get the desired inner development. The revolution in thought, habits and posture begun with the Italian Quattrocento and spread through Europe in the sixteenth century, as well as the proliferation of studies and scientific discoveries and inventions of this period, changed the whole vision of the world, which had been inherited from the one of the Middle Ages, in which the everlasting fight between Good and Evil that conditions behaviours, for Man is but a puppet whose actions are commanded by this fight encompasses everything. It is in this type of society that Shakespeare lives and produces his works. The study of the occult and esoteric themes in Shakespeares works, being this writer one of the greatest in the British literary canon, has not yet been greatly developed worldwide, what was determinant for the choice of this subject.

KEYWORDS: Shakespeare/Drama/Occult/Alchemy/Astrology/Kebbalah

RSUM

La dissertation Aspects Occultistes et Esotriques dans luvre de William Shakespeare tude de Hamlet, The Tempest et The Winters Tale a le bout de vrifier lexistence de contenu et thories lis aux sciences occultes dans luvre de cet auteur. Aujourdhui lhumanit vit un nouveau cycle, au dbut de lAge de Aquarium (priode de paix, harmonie, amour et tranquillit) dans la recherche de nouvelles faons pour le dveloppement personnel devient fondamentale, bien aussi lintrt gnralis pour des diffrentes doctrines, philosophies et religions, venant des plus simples jusqu'aux plus complexes et mystrieuses. Sciences et Pseudo-sciences comme lAstrologie, la Kabbale ou lAlchimie, deviennent moyens importants pour laccs au dsir perfectionnement intrieur. La vraie rvolution de penses, costumes et attitudes initie avec le Quattrocento italien et diffuse par toute lEurope au sicle XV, aussi que la prolifration dtudes et dcouvertes et inventions scientifiques de cette poque, ont chang la mondovision hrite de la vision manichiste mdivale, o lternelle lute parmi le Bien et le Mal que conditionne les comportements, car lhomme nest quun objet dont ses attitudes sont commandes par cette lute est note dominante. Il est dans cette socit que William Shakespeare circule et produit ses uvres. Ltude de la thmatique occultiste et sotrique dans luvre de William Shakespeare, un des plus grands auteurs du panorama littraire anglais, na pas encore t objet dune approche trs dveloppe, ce qui a dtermin le choix du sujet de ce travail.

MOTS CLEFS: Shakespeare/Drama/Occultisme /Alchimie/Astrologie/Kabbale

iii

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer toda a colaborao do meu grupo disciplinar, principalmente a das colegas que se prontificaram a assumir tarefas da minha responsabilidade; sem esse apoio, talvez no tivesse conseguido elaborar esta dissertao. Agradeo tambm a todas as colegas que me/se entusiasmaram com os meus xitos, me apoiaram nos momentos menos bons e desdobraram para me facultar toda e qualquer informao que pudesse ser-me til. Alexandra e Isabel, o meu muito obrigada por fazerem o favor de ser minhas amigas. Ana Caeiro, agradeo toda a ateno e carinho com que, desde a primeira hora me tratou e peo perdo pelo trabalho que, constantemente, lhe dei. Aos meus alunos quero deixar uma palavra de apreo por todo o interesse e solidariedade que manifestaram, mormente em momentos de maior fragilidade da minha parte. Os valores que os norteiam fazem com que me sinta honrada por poder form-los e ser, por eles, formada. Quero, finalmente, fazer um agradecimento especial Professora Doutora Maria de Jesus Relvas, pela disponibilidade que sempre manifestou; pela pacincia de, incessantemente, ler, reler e melhorar os vrios esboos que fui elaborando e, finalmente, pelos puxes de orelhas que, embora doessem, serviram de estmulo para que me concentrasse no que era essencial dizer e fazer para ter xito na tarefa a que eu me propusera.

iv

NOTA PRVIA

Parece-me pertinente proceder a alguns esclarecimentos que considero necessrios para clarificar alguns pontos desta dissertao. A obra Alquimia e Ocultismo, de Victor Zalbidea, consiste numa compilao de tradues de textos de alquimistas conhecidos, como Flamel, Baslio Valentin e Hermes Trismegisto, entre outros. Na traduo de Poimander de Trismegisto, que consultei, o nome do autor indicado como Trimegisto, motivo pelo qual referi, na citao da pgina 22 e na Bibliografia, exactamente como figura na obra. No Captulo IV, aquando da anlise das peas e junto das citaes, os textos sero indicados abreviadamente da seguinte forma: Ham. (Hamlet); Tpt. (The Tempest) e WT. (The Winters Tale). Aps os anexos mencionados na dissertao, coloquei uma seco que intitulei Diversos Curiosidades e que se destina a tornar mais claras algumas teorias e afirmaes tericas. Passarei agora a indicar as fontes a que recorri para obter as gravuras da capa e anexos deste trabalho. Assim: a gravura da capa intitula-se Ressurection e foi obtida no site < http://www.samaelgnosis.net/revista/ser20/index.htm > as gravuras de Londres, dos teatros e do First Folio encontram-se no site as gravuras com as fotos de Shakespeare foram retiradas do mesmo site as gravuras do Caduceu, da Tbua de Esmeralda, da rvore da Vida de Baslio Valentin, de Maria, a Judia e de Hermes Trismegisto foram retiradas do site

v

a gravura do ADN aparece em a gravura de Iris de The Tempest foi retirada de a gravura do macrocosmo e microcosmo aparece em a gravura do horscopo elaborado por Kepler est patente em < http://www.ucolick.org/graphics/kepler1.jpg> uma das gravuras de Ouroboros foi retirada de a outra gravura est patente em a gravura do eclipse solar foi retirada de as gravuras da rvore da Vida e do Tarot aparecem em a gravura com os desenhos de Flamel foi retirada de a gravura acerca de Bear baiting aparece em a gravura do horscopo com forma de mandala foi retirada de as gravuras com as tabelas de converso numrica foram retiradas do site as gravuras do processo alqumico foram retiradas da obra Alquimia e Misticismo todas as outras gravuras tm a fonte indicada

vi

INTRODUO

Foram vrias as razes que nortearam a escolha da problemtica do Ocultismo e Esoterismo na obra de William Shakespeare mormente em Hamlet, The Tempest e The Winters Tale como tema desta dissertao de mestrado. Iniciei o estudo de Shakespeare aquando da licenciatura e, ento, pareceu-me que ficava sempre algo por dizer, por explicar, por definir. As obras podiam, na minha ptica, ser analisadas de diferentes formas e ser observadas sob vrios prismas. Deste modo, aparentemente, deveria haver um significado mais literal e objectivo (que assentava na tradio dramtica das Morality e Miracle Plays, entre muitas outras tradies, em voga na poca de Shakespeare), paralelamente a outro sentido, mais obscuro, mstico, qui mesmo oculto (Ocultista), que apenas de posse de conhecimentos especficos e aps anlises aturadas poderia emergir. O desejo de aprofundar o conhecimento acerca da vivncia nica do Renascimento, em que todo um mundo de novas ideias e saberes coexistia com uma imensido de tradies e costumes arreigados nos diferentes povos e culturas da Europa, e, particularmente, da era isabelina, foi tambm uma razo de peso na escolha que fiz. Como Maria de Jesus Relvas afirma:

Qualquer poca marcada por factores e acontecimentos que contestam e, por vezes, estilhaam valores, crenas e modos de vida da era (ou eras) precedente(s) (...). Na histria e na cultura inglesas, o Renascimento e o Vitorianismo revestem-se de caractersticas de tal forma singulares que constituem exemplos paradigmticos de inovao e continuidade. 1

A verdadeira revoluo de pensamentos, costumes e posturas iniciada com o Quattrocento italiano e difundida por toda a Europa do sculo XVI, bem como a profuso de estudos e descobertas cientficas deste perodo,Universidade Aberta, Cursos de Mestrado em Estudos Ingleses, Prof Doutora Maria de Jesus Relvas, , 2005-10-01.1

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nomeadamente a nvel da estrutura e leis do universo e do cosmos, alteraram a mundividncia herdada da viso maniquesta medieval da eterna luta entre o Bem e o Mal, em que o homem no passa de um ttere, cujas aces so dominadas por este combate. Contudo, muitas tradies e crenas mantiveram-se activas e continuaram a influenciar aspectos da Cultura, da Literatura e mesmo da Sociedade renascentistas. Por outro lado, foi extremamente importante a estabilidade poltica do reinado de Isabel I e do seu Settlement que lhe permitiu desenvolver o reino e criar uma corte deslumbrante, pomposa e culta mas que no enjeitava uma tradio de respeito e crena no sobrenatural, oculto e hermtico, assim como aceitava o saber alqumico e a cincia cabalstica em que o Drama desempenhou um papel de relevo, e autores geniais como William Shakespeare, Christopher Marlowe e Ben Jonson foram apoiados e patrocinados, quer pela corte, quer pelos cortesos mais eruditos e influentes. Finalmente, a constatao, na passagem do terceiro milnio, da ansiedade pela designada Era de Aqurio, um perodo de paz, harmonia e tranquilidade, que tem vindo a conduzir a uma incessante busca de novos caminhos para o ser humano, bem como generalizao do interesse pelas mais misteriosas doutrinas e religies, foi um dos principais motivos que me levaram a optar por este tema. Assim, seguindo o ponto de vista de Victor Zalbidea: Na alquimia, tudo, mesmo o que parece mais simples e claro, pode esconder um smbolo ou uma chave, 2 optei por formular como questes de fundo as seguintes:

existe ou no Ocultismo na obra de William Shakespeare? se existe, de que natureza se reveste? teria Shakespeare conhecimento da Arte de Hermes (Alquimia) e transmitido, na sua obra, esse conhecimento, ignorando,

deliberadamente, o cdigo de silncio imposto aos adeptos? A fim de tentar responder a tais questes, defini o seguinte conjunto de objectivos:

2

Victor Zalbidea et al., Alquimia e Ocultismo (Lisboa: Edies 70, 1972) 16.

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objectivos gerais referir toda a envolvncia cultural, religiosa e social do perodo isabelino, assim como a posio ocupada pelas cincias ocultas da poca;

objectivos especficos integrar as obras em apreo no contexto social em que foram produzidas e tentar desvendar o Ocultismo por detrs do vu renascentista, moralista 3 e isabelino das peas a analisar.

A escolha das peas prendeu-se com o facto de, aps releitura de toda a obra shakespeareana, me parecer serem estas as mais passveis de responder com segurana s questes acima formuladas. Hamlet poder constituir fonte profcua de elementos esotricos, uma vez que, por detrs da evidente sede de vingana de Hamlet, parece existir um sentido mais profundo e oculto, um desejo de restabelecer a ordem natural das coisas, para que deixe de existir na Dinamarca, e segundo este: something rotten. (Ham. III.i.67). The Tempest foi a primeira escolha e a mais bvia: toda a pea gira volta da magia de Prspero, pelo que poder representar um verdadeiro manancial de Esoterismo. Em The Winters Tale, segundo Andr Nataf, a Alquimia tem lugar de destaque. 4 A dissertao centrar-se- em quatro grandes captulos. No primeiro, intitulado O Renascimento Ingls, procederei a uma breve contextualizao histrica, social e filosfica do denominado perodo isabelino, perspectivando a cosmoviso, as supersties e crenas da poca e aflorando tambm o chamado drama isabelino; no Captulo II, com o ttulo As Cincias Ocultas no Dealbar de uma Nova Era, referir-me-ei s vrias doutrinas ocultistas a Alquimia, a Astrologia, a Cabala, o Esoterismo, o Hermetismo, o Ocultismo, a Magia e a Numerologia, que podero ter influenciado a obra de Shakespeare; de igual modo, apresentarei uma pequena perspectiva sobre o Neoplatonismo, doutrina de3

O termo moralista usado para significar toda uma tradio maniquesta medieval, que no se perdera ainda, em que existe sempre a vitria do Bem sobre o Mal. Esta perspectiva abordada nas Morality Plays. 4 Andr Nataf, The Wordsworth Dictionary of the Occult (Hertfordshire: Wordsworth Editions, 1991) 220.

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extrema importncia no Renascimento ingls, principalmente no que respeita Literatura. O subcaptulo Astrologia ser dividido em oito partes, abarcando a Astrologia (consistindo numa breve introduo ao tema e numa perspectiva histrica desta cincia), o Horscopo, os elementos, os planetas, a simbologia e as regncias dos planetas, os aspectos, as casas astrolgicas e o ascendente. Esta to vasta explanao pareceu-me pertinente, posto que, sendo a Astrologia um domnio quase desconhecido nos dias de hoje, torna-se importante e, a meu ver, necessrio compartimentar o mais possvel a informao. O mesmo acontece com o subcaptulo Alquimia, que ser dividido em Alquimia e Simbologia Alqumica. No Captulo III, denominado William Shakespeare: um Homem do seu Tempo, procederei a uma breve abordagem da vida e obra de Shakespeare, dando tambm, sob a forma de subcaptulo, nfase s fontes a que o autor recorreu. Finalmente, no Captulo IV, intitulado Os elementos Ocultistas e Esotricos na Obra de Shakespeare, tentarei encontrar essas componentes na obra do autor, mormente nas peas Hamlet, The Tempest e The Winters Tale. Comearei por indicar alguma informao, necessariamente breve, acerca das peas, das datas de impresso e possveis questes particulares acerca do assunto, sobretudo as que se prendem com o First Folio e as impresses paralelas dos textos de Shakespeare. Haver, sem dvida, subcaptulos mais extensos e outros mais breves, mas no ser possvel, na minha opinio, evitar o alongamento, nomeadamente da definio das teorias e doutrinas esotricas e ocultistas, de molde a, por um lado, facultar informao essencial acerca das mesmas e, por outro lado, poder depois tentar encontrar algumas dessas teorias e doutrinas nas peas em anlise. Na bibliografia consultada, organizada em primria e secundria, gostaria de destacar trs obras fundamentais para a execuo desta dissertao: The Elizabethan World Picture, de E.M.W. Tillyard, Le Grand Livre des Sciences Occultes, de Laura Tuan, e A Cabala Explicada, da autoria de Janet Berenson-Perkins. A primeira destas obras revelou-se de suma importncia para a compreenso da envolvncia renascentista e da mundividncia do sculo XVI, ao

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mesmo tempo que constituiu uma mais-valia para o entendimento de algumas problemticas da obra shakespeareana. Ciente de que, actualmente, muitos autores tm menosprezado e/ou considerado a obra de Tillyard ultrapassada, ela constituiu, porm, um elemento fulcral para o entendimento da cosmoviso isabelina e para o tpico aqui tratado. Os outros dois textos foram preciosos aliados para o cabal entendimento das cincias ocultas. Deles retirei material precioso que me permitir, seguramente, ler Shakespeare luz de novos pressupostos, ideias e teorias. Clef pour Shakespeare, de Paul Arnold, revelou-se outra obra de crucial importncia e elemento insubstituvel na anlise que me proponho realizar, uma vez que aborda essencialmente o plano esotrico dos textos de Shakespeare.

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I

O RENASCIMENTO INGLS

1. A Era Isabelina

Isabel I, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, foi a ltima monarca da dinastia Tudor que seu av, Henrique VII, iniciara. Historiadores como David McDowall consideraram ser a era Tudor: ... a most glorious period in English history. 1 Isabel era uma mulher de frgil aparncia, mas de uma vontade frrea, com um notvel talento diplomtico e superior inteligncia que a levaram a derrotar a Invencvel Armada espanhola com uma frota naval incipiente e a opor-se ferozmente a todos os que tentavam persuadi-la a contrair matrimnio. Apesar de constantemente instada a casar, a fim de garantir a sucesso, Isabel optou pelo celibato, ganhando assim o ttulo de Virgin Queen, uma vez que um casamento com um soberano estrangeiro poderia colocar o problema da independncia do pas, ao passo que o casamento com um nobre ingls (Isabel amava Robert Dudley, Duque de Leicester, e mais tarde apaixonou-se por Robert Devereux, Duque de Essex) poderia no ser politicamente bem aceite. Isabel I foi, durante anos, considerada bastarda; o seu nascimento e resultante casamento de Henrique VIII com Ana Bolena constituram elemento preponderante em complicado processo, protagonizado pelo monarca, que acabou por renegar a f catlica e a igreja de Roma, criando a Church of England. Henrique VIII era um homem de aguado intelecto e carcter forte e dominador, tendo uma parte considervel do seu reinado sido marcada pelo desejo de ter um filho varo que lhe sucedesse no trono. Devido impossibilidade de Catarina de Arago dar ao reino um herdeiro e porque se apaixonara por Ana Bolena, o rei

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David McDowall, An Illustrated History of Britain (Harlow: Longman, 2000) 67.

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entrou em conflito com a Igreja de Roma, abjurou o Catolicismo, declarou invlido o seu casamento com Catarina tornando ilegtima a princesa Maria e desposou Ana, que lhe deu outra filha, para seu grande desgosto. Em 1536, Henrique VIII, que entretanto estava apaixonado por Jane Seymour, acusou Ana Bolena de adultrio e traio, mandando decapit-la e tornando tambm ilegtima a princesa Isabel. Porm, alguns anos antes de morrer, Henrique VIII, em testamento, legitimou ambas as filhas e deixou claro que, caso o herdeiro nascido do seu casamento com Jane Seymour morresse sem deixar descendncia, seria sucedido por Maria, sua filha mais velha, ou por Isabel, se Maria tivesse entretanto morrido, sem deixar descendncia. Como referi anteriormente, o nascimento da princesa Isabel tinha sido uma desiluso para seu pai, que esperava ansiosamente um herdeiro varo. Isabel revelou-se, porm, uma mulher experiente, inteligente e astuta que j demonstrara diplomacia e coragem durante o reinado de sua irm Maria, em que correra perigo de vida, principalmente devido ao facto de ter evitado pronunciar-se acerca da aceitao ou no da religio catlica imposta pela irm. A educao de Isabel esteve a cargo dos protestantes William Grindal e Roger Ascham, os quais incutiram na pupila os fundamentos da nova religio. Com o objectivo de consolidar a Igreja Anglicana, Isabel procedeu a um conjunto de reformas de compromisso, conhecidas como Elizabethan Settlement. Foi no seu reinado que se publicaram o Book of Common Prayer (1552) e os Trinta e Nove Artigos de F (1563). Os aspectos essenciais do Settlement compreendem a natureza divina do Prncipe, a noo de Puritanismo e o conceito de um Deus providencial. O reinado de Isabel I foi marcado por um refinamento da figura do corteso e por um forte cerimonial em torno da rainha: o protocolo mandava que a sua cabea estivesse sempre acima das de todos os que a cercavam e ningum podia virar-lhe as costas, o que implicava que, para abandonar um aposento em que a soberana se encontrasse, havia que faz-lo andando de recuas. Era suposto

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que o corteso fosse gracioso nos modos e no discurso; culto; conhecedor de Literatura Clssica, Histria, Geografia, Matemtica, de lnguas antigas e vernculas; que fosse atltico, engenhoso, generoso e witty. A corte de Isabel I excedeu todas as precedentes em matria de esplendor: a cultura da rainha e das pessoas que a rodeavam, bem como o perodo ureo, a nvel das ideias, que se vivia na poca (Humanismo Renascentista) possibilitaram uma forte expanso e proteco das artes e a vulgarizao do mecenato, tanto na corte, como nas diferentes casas senhoriais, de entre as quais sobressai a de Mary Sidney, Condessa de Pembroke, que, com os seus irmos Sir Robert Sidney e Sir Philip Sidney, constituiu um dos mais ilustres e aclamados crculos sociais e culturais da poca renascentista. Ao contrrio de seu pai, Isabel no construiu palcios, at porque j possua muitos (Henrique VIII tinha mandado construir vrios, entre os quais Nonsuch que foi sempre o favorito de Isabel I), mas incentivou os grandes senhores e os cortesos a construir sumptuosas manses onde poderia ficar alojada quando viajava. Deste modo, os cortesos demonstravam a sua lealdade soberana e ela brilhava durante essas viagens (que se designavam progresses). A Rainha esperava que os seus cortesos mostrassem um certo esplendor no vesturio e afectao nos modos, e que a cortejassem na tradio do amor corts: era o objecto de amor inalcanvel que eles tentavam conquistar e adular atravs da msica, da dana ou da palavra (Poesia) mas sem que essa adulao passasse do plano corts para o pessoal. Os cortesos, por seu turno, consideravam as atitudes para com a Rainha quase como um jogo, e tanto os casados como os solteiros disputavam os seus favores. Se dos cortesos Isabel I esperava lisonja, ostentao e alguma futilidade, o mesmo no acontecia em relao aos seus conselheiros: destes, exigia sobriedade, lealdade e trabalho. Isabel I era uma excelente avaliadora de personalidades e essa foi uma das vantagens do seu reinado. A soberana sabia no ser fcil para uma mulher reinar numa poca em que os homens dominavam e em que s mulheres era atribudo o papel de donas-de-casa e mes; porm, soube

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manter um poder fortssimo, atravs da sagacidade e do culto da tradio corts, bem como da implacabilidade com que punia os que a afrontavam. Era capaz de demonstrar um refinado sentido de humor para, logo a seguir, mandar prender e/ou decapitar os seus favoritos por traio. Mas a corte de Isabel I no era apenas composta por cortesos, polticos, membros do clero e servos; abrigava espies que algumas potncias estrangeiras colocavam no crculo real, e, por sua vez, a rainha colocava tambm espies noutras naes. Nos reinados de Henrique VII e Henrique VIII, as grandes potncias europeias eram Portugal e Espanha, cuja grandeza e importncia se centravam nos Descobrimentos. O reino de Inglaterra era pequeno, pouco importante, pobre e com a desvantagem da insularidade. A economia do pas era essencialmente agrcola, mas a quebra acentuada nos preos do trigo e o aumento do preo da l levaram os grandes senhores a vedar os campos que possuam e arrendavam aos pequenos agricultores para neles colocarem ovinos: estava criado o sistema de enclosure que provocou o alargamento do fosso entre ricos e pobres. Sir Thomas More refere, na sua obra Utopia, que este sistema de explorao agrcola provocou muita misria e que, por sua vez, esta conduziu ao roubo, mendicidade e vagabundagem alguns dos grandes males da poca:For they leave no land free for the plough: they enclose every acre for pasture The tenants are dismissed they sell for a pittance all their household goods.When that little money is gone what remains for them but steal or to wander and beg? 2

No entanto, no reinado de Isabel I, Inglaterra conheceu um dos perodos de maior esplendor. A estabilidade religiosa, poltica e governativa proporcionaram as condies ideais para o crescimento econmico e transformaram o reino numa potncia mundial. A soberana promulgou leis destinadas a estabilizar as condies

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Thomas More, Utopia, ed. George M. Logan and Robert M. Adams (Cambridge: Cambridge UP, 1993) 19.

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laborais e encorajar a agricultura, o comrcio e a indstria; promoveu reformas monetrias; emitiu as Poor Laws. 3 Um dos mais celebrados feitos de Isabel I a derrota da fortssima Armada Espanhola a Invencvel Armada com um pequeno conjunto de embarcaes. Este episdio da histria inglesa , a meu ver, admiravelmente descrito por William Shakespeare na primeira cena do primeiro acto da sua pea The Tempest, em que o mago Prospero qui uma referncia a John Dee provoca uma violenta tempestade e faz naufragar o navio em que viajavam o rei de Npoles, o filho deste e o irmo de Prospero, Antonio, que havia usurpado o Ducado de Milo. A animosidade espanhola em relao a Inglaterra, nesta poca, teve a sua origem no facto de Isabel recusar a proposta de casamento de Filipe II. Alm disso, Isabel favorecia secretamente os rebeldes holandeses que contestavam o domnio de Espanha sobre o seu pas. Em 1585, decidiu enviar tropas para a Holanda, sob o comando do Duque de Leicester, Robert Dudley, e patrocinou os saques feitos por Francis Drake e John Hawkins aos galees espanhis que retornavam das Amricas, embora nunca tivesse oficialmente reconhecido tais saques. Em 1586, Filipe comeou a construir a sua Armada e em 1588 aportou a Calais para combater a rainha hertica. Porm, a frota foi derrotada pelas embarcaes inglesas e forada a regressar a Espanha debaixo de ventos fortes e grandes tempestades que destruram cerca de metade da esquadra, enquanto doenas provocadas por m nutrio mataram uma enorme percentagem dos tripulantes. A vitria de Isabel I sobre a poderosa nao ibrica marcou o fim do domnio espanhol na Europa e o incio da ascenso de Inglaterra como potncia. A soberana e o povo interpretaram a derrota espanhola como um sinal divino de

D-se o nome de Poor Laws ao conjunto de leis de natureza eminentemente social emitidas entre o sculo XVI e o incio do sistema de segurana social designado por Welfare State (iniciado no sculo XX). A primeira Poor Law foi publicada em 1536. As leis de 1536, 1572, 1576 e 1597 incumbiam as parquias da ajuda aos pobres; a lei de 1572 criou um imposto destinado ao auxlio na pobreza e a de 1576 estabeleceu que os pobres deveriam encontrar trabalho, de modo a prevenir a indolncia. Em 1601 foi publicada uma Poor Law que condensava todas as anteriores e definia o mbito nacional do auxlio aos pobres.

3

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aprovao da Causa Protestante, e ondas de patriotismo e devoo rainha varreram o pas. Na Inglaterra dos Tudor, a maior parte da populao vivia no campo, suportando duras condies de vida: as pessoas trabalhavam de sol a sol e mal conseguiam adquirir as coisas mais bsicas, como roupas e comida. De um modo geral, as mulheres ocupavam-se das lides de casa e cuidavam dos animais domsticos (porcos, eventualmente uma vaca e galinhas), fiavam, teciam e costuravam as roupas da famlia, enquanto os homens trabalhavam nos campos. Contudo, na poca das colheitas, todos os elementos da famlia (homens, mulheres e crianas) ajudavam nas tarefas do campo. Os membros da comunidade organizavam-se em pequenas colectividades, de modo a produzir comida suficiente para as suas necessidades e, em caso de excesso de produo, vender os produtos nos mercados. O sistema de open field foi, como j mencionei, dando gradualmente lugar ao de enclosure, quando o preo do trigo decresceu e o da l aumentou. Os pequenos agricultores, que tinham uma lavoura de subsistncia e trabalhavam a terra para o seu sustento e o das suas famlias, comearam a ser coagidos a vender os reduzidos pedaos de cho que possuam por preos consideravelmente inferiores ao real valor das terras. Este processo, que se arrastou at poca da Revoluo Industrial, foi o principal responsvel pelo xodo de largas massas para as cidades, bem como pela misria dos camponeses. A prosperidade do comrcio da l deu origem a um novo grupo social que emergira das cinzas das Guerras das Rosas: os comerciantes ou mercadores. Este estrato comeou a ocupar um lugar cada vez mais importante na sociedade da poca. Os mercadores tinham dinheiro suficiente para poderem comprar terras que depois vedavam e nas quais criavam ovinos para extrair a l; possuam tambm capital que lhes permitia construir tecelagens, onde a l era trabalhada at gerar o produto final (roupa, vesturio) que depois era vendido com enorme lucro. Como consequncia do crescente empobrecimento dos camponeses, sucederam-se as

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ondas de migrao para as cidades, o que agravou os problemas que nelas j se viviam. Por volta do ano de 1500, Londres (Anexo I) era a maior cidade de Inglaterra, seguida de Edimburgo, na Esccia, Norwich, Newcastle, Bristol e Coventry. A maioria das cidades tinha um aspecto escuro e sujo: no havia iluminao nas ruas, no existia sistema de esgotos e a gua provinha de poos. Sem as mnimas condies sanitrias (o cheiro nas ruas era seguramente nauseabundo, porque se lanava para l todo o tipo de dejectos), as doenas proliferavam e as taxas de mortalidade, principalmente a de mortalidade infantil, eram elevadas, tal como na Idade Mdia. As ruas eram estreitas e insalubres; as casas, normalmente pequenas e com telhados de colmo, amontoavam-se desordenadamente e havia inmeros becos escusos, onde ladres, assassinos e prostitutas se acoitavam. Nas ruas das cidades, havia por vezes um barulho ensurdecedor de preges, lutas ou embriaguez: a embriaguez era, alis, uma constante, pois como ningum consumia gua, porque era imprpria, a cerveja era a bebida habitual que a substitua. Na qualidade de um dos centros comerciais mais importantes da poca, a capital atraa todo o tipo de pessoas, das mais respeitveis s mais execrveis, constituindo, consequentemente, o lugar ideal para a proliferao de criminosos. Londres era ao mesmo tempo imunda mas fascinante, dinmica mas perigosa, e a sua zona porturia abrigava a escria que se dedicava a toda a espcie de crimes. A era Tudor foi um perodo de efervescncia social, poltica, de ideias que propiciou um aumento das desigualdades que sempre tinham existido. A relativa estabilidade poltica e a ausncia de guerras, assim como a extino dos exrcitos privados dos grandes senhores, conduziram ao empobrecimento de um grupo social outrora prspero, o dos soldados. Por outro lado, a dissoluo dos mosteiros, levada a cabo por Henrique VIII na sequncia do seu corte de relaes com Roma, teve vrias consequncias graves. Uma delas, a mais grave em minha opinio, foi o aumento do nmero de indigentes, posto que o encerramento das instituies religiosas significou o fim

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das aces de caridade da Igreja, tais como a alimentao e o tratamento de pobres e enfermos. Alguns dos edifcios religiosos foram convertidos em asilos e mesmo em hospitais, mas a grande maioria foi entregue nobreza ou simplesmente destruda. A mudana dos sistemas agrcolas tambm provocou indigncia generalizada nos campos, como j vimos, agravada, em certa medida, pelo fim sbito da produo dos prprios mosteiros. Na mesma proporo em que a maioria da populao empobrecia, os nobres iam enriquecendo, quer com a especulao dos terrenos, quer com o trfico de escravos. As desigualdades sociais provocaram um aumento dos nveis de criminalidade e um desagrado generalizado que, mais tarde, conduziriam a conflitos graves a nvel poltico-social que culminariam nas Guerras Civis, ocorridas em trs perodos diferentes: 1642-45, 1648-49 e 1649-51. 4 Com vista a minorar as condies de pobreza em que vivia uma parte substancial da populao, o Parlamento emitiu em 1561 uma Poor Law, segundo a qual cada parquia era obrigada a olhar pelos seus indigentes. Os trabalhadores tinham de pagar um imposto que se destinava a ajudar os velhos, doentes, por seu turno, os pobres que estivessem em condies de trabalhar, os chamados sturdy beggars, no poderiam recusar trabalho. Depois, em 1572, foram emitidas leis de combate vagabundagem e, em 1590, o governo, apreendendo toda a magnitude do tema da pobreza, promulgou um vasto conjunto de leis (Poor Laws) que se destinavam a minorar esse problema em todo o pas, como atrs foi brevemente referido. No entanto, a falta de policiamento nas cidades continuava a criar dificuldades, uma vez que os pedintes, vagabundos, batoteiros, prostitutas e ladres continuavam a proliferar. Em 1603, Isabel I, ento com 70 anos, morreu, no sem antes designar seu sucessor o filho de Maria Stuart, Jaime VI da Esccia (que viria a tornar-se I de Inglaterra) como seu herdeiro. Terminava assim um dos mais longos reinados e um dos perodos ureos da histria de Inglaterra. Contudo, no poderemos afirmar

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Wikipedia 2005.10.11

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que findava a denominada Era Isabelina, uma vez que, enquanto espao ideolgico, prosseguiu no reinado de Jaime I. Jaime no teve um reinado pacfico, nem uma corte deslumbrante como a de Isabel I; pelo contrrio, viu-se frequentemente confrontado com conspiraes e boatos que punham em causa as suas convices religiosas e o seu carcter. Contudo, devem-se a este monarca passos importantes que ainda hoje fazem parte do quotidiano dos Britnicos, como a denominada verso autorizada da Bblia, e a criao da bandeira do Reino Unido Union Jack que todos conhecemos. Jaime nasceu em 1566 no castelo de Edimburgo e era filho de Maria Stuart, Queen of Scots, e de Lord Henry Darnley. Pouco antes de completar um ano de idade, o pai foi assassinado e a me ascendeu ao trono escocs, mas, no mesmo ano, a rainha, que era catlica, foi forada a abdicar em favor de seu filho que assim subiu ao trono com apenas um ano de idade. Jaime foi criado e educado por tutores, de entre os quais se destaca George Buchanan que tornou o jovem prncipe num dos homens mais cultos do seu tempo. Em 1589, Jaime desposou Ana da Dinamarca que lhe deu sete filhos, tendo apenas sobrevivido dois: Carlos, que lhe viria a suceder no trono, e Isabel. Quando Jaime ascendeu ao trono ingls, em 1603, os reinos de Inglaterra e da Esccia foram unificados, algo que o monarca sempre ambicionara. No incio do seu reinado, criou condies para fazer a paz com Espanha, acto visto com algum optimismo, mas o facto de o rei ser protestante, embora tendo ascendncia catlica, bem como a circunstncia de ter desposado uma princesa catlica, levou a que, tanto o povo como a nobreza, desconfiassem da sua devoo Igreja Anglicana. Contudo, o rei desprezava os Catlicos, principalmente devido ao facto de os Papistas terem condenado Sir William Tyndale fogueira, o que motivou uma das vrias tentativas de assassinato de que foi alvo e que ficou conhecida como Gunpowder Plot: em 5 de Novembro de 1605, um grupo de conspiradores catlicos, entre os quais se encontrava Guy Fawkes, decidiu fazer explodir o Parlamento num dia em que o rei deveria presidir sesso; os culpados foram descobertos e executados, e o rei encetou uma forte perseguio aos

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Catlicos. Jaime I tambm no tolerava os Puritanos, devido s muitas presses que estes exerciam sobre si para ganhar poder poltico e parlamentar. Este desagrado do rei levou a que um grande nmero de Puritanos tivesse de emigrar para as colnias, nomeadamente para a Amrica do Norte. A nvel poltico existem alguns episdios dignos de registo no reinado de Jaime I. Por exemplo, deve-se a ele a criao do Reino Unido e tambm a fundao de colnias como Virgnia e Nova Esccia, nas Amricas. Tal como os seus antecessores, o monarca acreditava no Direito Divino do Rei e considerava que a figura real possua, na Terra, o mesmo poder que Deus possui no Cu, no tendo de prestar contas a no ser ao Criador; alis, Jaime I acreditava que o soberano estava acima da lei. Na sua divisa podia ler-se a deo rex, a rege lex (o rei provm de Deus e do rei provm a lei). Como consequncia deste modo de pensar, a sua relao com o Parlamento foi-se degradando progressivamente, devido aos imensos gastos, inflao e a actos falhados de poltica externa, nomeadamente as negociaes com Espanha, levadas a cabo pelo Duque de Buckingham, que tiveram como resultado a execuo de Sir Walter Raleigh a pedido do rei espanhol. Jaime I era um homem profundamente culto e amante das artes. A leitura, a escrita e o ensino desenvolveram-se amplamente no seu reinado. A literatura era uma das paixes do monarca que foi, ele prprio, autor de vrios livros, de entre os quais se destacam Basilicon Doron e Daemonologie. As representaes

dramticas, particularmente o masque, tambm eram apreciadas pelo rei que foi patrono de Ben Jonson e da companhia de William Shakespeare, conhecida como Kings Men. Macbeth, a tragdia escocesa, ter sido propositadamente escrita para o monarca, tambm patrono de John Donne e do arquitecto Inigo Jones, o qual concebeu os grandiosos cenrios para as representaes que acima mencionei. A predileco de Jaime pelas questes culturais e do ensino levaram a que um dos seus primeiros actos, enquanto rei de Inglaterra, fosse o de convocar uma conferncia destinada a tratar de assuntos da Igreja. Nessa assembleia, John

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Reynolds, um Puritano, convenceu-o da necessidade de uma nova verso da Bblia, posto que, na sua opinio, a Bblia de Henrique VIII e Eduardo VI no estava conforme o original. O rei decidiu ento autorizar uma nova traduo, a partir do original, reunindo para isso um grupo dos mais distintos estudiosos e fillogos da poca, os quais demoraram cerca de sete anos a completar o seu trabalho, sempre com o acompanhamento e superviso do prprio rei. A verso final, King James Bible ou The Authorised Version, foi publicada em 1611.

1.1. O Drama Isabelino

Tanto Isabel I como Jaime I foram, como j vimos, grandes apoiantes e patronos das artes, em particular da Poesia e do Drama. Durante ambos os reinados, os actores e dramaturgos receberam favor real e actuaram na corte; tambm neste perodo proliferou a construo de teatros pblicos, de entre os quais se destacam The Theatre, The Swan, The Rose e, o mais famoso de todos, The Globe. Estes teatros, construdos na periferia das cidades, eram frequentados por gente de todas as camadas sociais, sendo que as representaes dramticas, a par das lutas de animais, eram um dos passatempos mais populares da poca (Anexos II e III). Autores como Ben Jonson, Christopher Marlowe e William Shakespeare eram, na sua maioria, tambm actores, estando, consequentemente, familiarizados com os temas e tcnicas de representao. O intitulado drama isabelino, que surgiu no sculo XVI em Inglaterra, correspondeu a uma manifestao original do teatro renascentista. As peas eram grandemente influenciadas pela literatura clssica e por autores como Sneca ou Plauto, mas as Mistery ou Miracle plays (peas teatrais baseadas em cenas bblicas e/ou vidas de santos), as Morality plays (representaes alegricas da luta entre o Bem e o Mal) ou os Interludes (pequenos sketches, geralmente de natureza poltica, destinados a ser representados nos intervalos de peas longas e entre os diferente pratos que compunham os banquetes da corte) tinham igual preponderncia.

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A tragdia isabelina baseava-se em temas hericos, centrando-se numa personagem grandiosa que se deixava dominar e destruir pela ambio (como Macbeth), pelo cime (como Othello) ou mesmo pelo desejo de vingana (como Hamlet). A comdia, por seu turno, baseava-se mais em cenas do quotidiano, satirizando os costumes das classes abastadas e as ambies da burguesia de ascender ao mais alto degrau da escada social. Apareceu tambm nesta altura, provavelmente devido ao orgulho nacional proveniente da vitria sobre a Armada espanhola, a chamada History play, ou Chronicle-History play, que consistia na dramatizao dos mais relevantes episdios da vida de alguns monarcas ingleses (Henry V e Richard III de Shakespeare so disso exemplos).

1.2. A Cosmoviso Isabelina

Aps vrios perodos de instabilidade, decorrentes das Guerras das Rosas, da Reforma Henriquina e da sucesso de Henrique VIII, o povo ansiava por uma segurana que sentira vrias vezes ameaada; de igual modo, existia nesta poca uma preocupao permanente com a problemtica do pecado e da redeno do Homem, que fora herdada do perodo medieval. A doutrina geocntrica ptolemaica, que colocava a Terra no centro do universo, comeava a ser abalada pelas observaes e teorias heliocntricas de pensadores como Galileu, Giordano Bruno, Coprnico, Kepler ou Pico Della Mirandola, e constitua um motivo adicional de insegurana e apreenso. Para um isabelino, o conceito de ordem csmica era, a par da preocupao com a natureza, primordial. A ideia de ordem dominava todos os aspectos da sociedade e cultura isabelinas. Na literatura, ela exercia, igualmente, uma forte influncia. O drama isabelino mais no faz do que, atravs de uma aparente desordem, repor toda a ordem necessria ao adequado funcionamento do universo. E. M. W. Tillyard afirma que esta concepo de ordem era vista sob trs

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aspectos: ... a chain, a set of correspondences, and a dance,5 pelo que abordarei cada um destes aspectos de per se. A cadeia a que Tillyard alude, era, como j afirmei, basilar para os isabelinos. A denominada Great Chain of Being (scala naturae) consistia na concepo de um universo perfeito, fortemente hierarquizado e determinado por Deus. The Chain of Being tinha uma configurao piramidal: no topo

encontrava-se Deus, seguindo-se os anjos, o homem, os animais, os vegetais e, no final, os minerais. Dentro destas grandes categorias, havia subcategorias, tambm elas hierarquizadas (por exemplo, no grupo dos animais, os mais nobres eram o leo ou o elefante, a guia e a baleia ou o golfinho; no dos astros, o mais elevado era o Sol e no dos minerais destacava-se o ouro). O lugar a que cada ser ou objecto pertencia dependia da quantidade de matria e de esprito que o mesmo continha. Considerava-se que Deus se situava fora das limitaes do tempo e era externo criao; apenas Ele possua os dons da omnipotncia, omnipresena e omniscincia. Os anjos eram seres de esprito puro, no possuindo corpo fsico prprio; pensava-se que, semelhana de Deus, no estavam submetidos a limites temporais. O homem ocupava um lugar especial nesta corrente, posto que se encontrava entre a divindade e os animais: possua qualidades divinas como a razo, o amor e a imaginao, mas tinha tambm caractersticas inerentes aos animais, como a dor, o prazer ou a fome, por exemplo. Os animais dispunham de inteligncia limitada, no albergando alma, nem dominando a capacidade de falar. As plantas tinham somente capacidade para se reproduzir e crescer, mas eram-lhes atribudas propriedades medicinais e/ou curativas.

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E. M. W. Tillyard, The Elizabethan World Picture (1943, Harmondsworth: Penguin, 1990) 7.

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J os minerais tinham apenas como caracterstica a sua solidez, podendo ser imputados, particularmente s pedras preciosas, poderes mgicos. A nvel poltico, a crena em The Chain of Being implicava que, de modo a preservar a ordem csmica, no houvesse levantamentos, nem revoltas contra a monarquia, pois, sendo o rei escolhido por Deus, qualquer tentativa para o depor seria motivo para provocar o caos, algo que, segundo Tillyard, era terrvel para os isabelinos:

They were obsessed by the fear of chaos. () To us chaos means hardly more than confusion on a large scale; to an Elizabethan it meant the cosmic anarchy before creation and a wholesale dissolution that would result if the pressure of Providence relaxed and allowed the law of nature to cease functioning. 6

Intimamente ligada ideia de ordem estava a das correspondncias (set of correspondences), que apenas divergia da primeira na sua estrutura horizontal. Tudo o que acontecia nos planos superiores da cadeia csmica tinha reflexo imediato nos planos inferiores e vice-versa. Hermes Trismegisto estabelece com preciso esta noo no axioma assim como em cima, em baixo, e Cristo, ao ensinar aos Apstolos o Pai Nosso, sugere igualmente tal correspondncia, ao afirmar assim na Terra como no Cu. Os princpios da magia, da alquimia e da metafsica assentam precisamente nesta ideia. Tillyard organiza os planos e respectivas correspondncias mais importantes nos pares: a) Poderes Celestiais e Outras Criaes; b) Macrocosmo e Body Politic; c) Macrocosmo e Microcosmo (Anexo IV); d) Body Politic e Microcosmo. Vejamos, muito brevemente, estas correspondncias.

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Tillyard 24.

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a) Poderes Celestiais e Outras Criaes

Tillyard alega no ser esta uma correspondncia muito usada, visto que Deus, como referi acima, era externo criao. Ele queda-se, normalmente, usando as palavras de Tillyard, in the background sustaining the whole order of creation. 7 Por vezes, instituia-se uma correspondncia entre Deus e o Sol (rei dos planetas), explicando-se, com esta analogia, o mistrio da Santssima Trindade. Os anjos, por sua vez, correspondem a outras partes da criao, e John Donne, por exemplo, compara-os alma. b) Macrocosmo e Body Politic Os isabelinos admitiam que existia uma correspondncia directa, uma duplicao, entre a ordem do Estado e a do macrocosmo, e que a desordens no macrocosmo correspondiam convulses civis e desordem no Estado. Esta crena foi bastante cultivada pelas dinastias Tudor e Stuart, de modo a estabelecer o seu absolutismo. c) Macrocosmo e Microcosmo Esta era, segundo Tillyard, a correspondncia mais relevante most famous and (...) most exciting. 8 No era, semelhana de todas as teorias que referi at aqui, uma criao do Renascimento, remontando a Plato na sua obra Repblica. A prpria constituio fsica e psquica do Homem transporta em si tal correspondncia: a cabea parte mais brilhante do ser humano situa-se no topo do corpo, do mesmo modo que o corao, que lhe confere vigor (como o Sol fornece luz aos planetas entre os quais est colocado), se encontra entre os seus membros. A nvel de sentimentos tambm se estabelecem analogias: assim, ao7 8

Tillyard 95. Tillyard 99.

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amor verdadeiro dos homens corresponde a luz eterna das estrelas, com particular realce para o Sol, ao passo que as tempestades e convulses da natureza se comparam com as mais tormentosas paixes humanas. De modo a cumprir com xito e dignidade esta correspondncia, o ser humano no deve nunca permitir que as suas paixes e actos srdidos provoquem perturbaes no macrocosmo, bem como no deve permitir o desequilbrio dos humores, para no adoecer. Os quatro humores esto associados a The Chain of Being e ao carcter dos homens: consoante o maior ascendente de um dos humores, assim o carcter ser melanclico, fleumtico, bilioso ou sanguneo. d) Body Politic e Microcosmo Esta correspondncia remontava tambm ao tempo de Plato. De uma maneira geral, fazia-se equivaler a unidade e categorias do estado s diferentes partes do organismo humano. Para que tudo funcionasse de modo perfeito e existisse harmonia, havia que manter e respeitar as hierarquias e

interdependncias entre as diferentes partes. Obviamente, o objectivo de tal correspondncia era o de preservar a estabilidade poltica e social assente, como j referi, no poder absoluto do rei. Atravs da teoria das correspondncias, os isabelinos podiam incluir as constantes mudanas e os novos dados com que, quase diariamente, se viam confrontados, dentro do esquema rgido e fixo de The Chain of Being, o que lhes possibilitava levar uma vida sem sobressaltos ou conflitos poltico-sociais. O terceiro aspecto da ordem csmica mencionado por Tillyard (dance) era, do mesmo modo, conhecido desde a Antiguidade Clssica. Para os Gregos, toda a criao era um acto musical, e o universo vivia uma dana perptua. A ideia da criao como dana implica, ela tambm, uma hierarquizao, embora tal hierarquizao esteja em constante movimento. Os Gregos acreditavam que o Sol, a Lua e os outros planetas giravam volta da Terra nas suas prprias esferas da

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o termo dana das esferas. As propores existentes nos corpos celestes formavam uma msica caracterstica que no correspondia a algo audvel, mas a um conceito matemtico. Pitgoras , frequentemente, reconhecido como o pai desta teoria da msica das esferas que, sendo uma concepo matemtica, est associada numerologia. Por seu turno, Kepler tentou encontrar uma afinidade entre os intervalos musicais e as relaes planetrias, e acreditou ter encontrado a referida afinidade nas velocidades angulares das rbitas planetrias. Durante a era isabelina, imaginava-se que a natureza estava em consonncia com a dana das esferas, pois a prpria natureza continha, em si, uma profunda harmonia. O acto de danar , portanto, um reflexo da dana csmica no microcosmo, do mesmo modo que as danas de corte de Isabel I reproduziam a correspondncia entre o macrocosmo e o Body Politic, segundo Tillyard.

1.3. O Sobrenatural

O Renascimento constituiu uma poca de firme crena no sobrenatural, crena essa herdada da Idade Mdia, perodo extremamente frtil em supersties. Os isabelinos encontravam-se, alis, profundamente espartilhados e

condicionados por um sem-nmero de supersties. Embora a Revoluo Cientfica se tivesse ento iniciado, a fronteira entre cincia e magia era muito tnue, e numerosos cientistas investigavam e acreditavam no sobrenatural. O sobrenatural e a superstio explicavam os factos que escapavam ao entendimento do homem da poca e tambm tudo o que fugia ao cnone da ordem csmica. Muitas crenas e supersties deste perodo, principalmente as que se prendem com fadas, gnomos e duendes, tm origem nos cultos pagos e na Mitologia Celta. As crianas eram os grandes alvos de algumas prticas supersticiosas, nomeadamente o uso de amuletos, talvez devido s elevadas taxas de mortalidade infantil da poca. Acreditava-se em aparies fantasmagricas, demonacas e mgicas (fadas ou duendes, por exemplo) e que os espritos errantes visitavam o mundo dos vivos para pedir vingana e fazer revelaes; pensava-se que Satans

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vigiava o leito dos moribundos, na esperana de lhes roubar as almas. Bruxas e feiticeiras tambm faziam parte do quotidiano isabelino e o povo temia-as, mas, simultaneamente, consultava-as com frequncia. Existiam duas espcies de feiticeiras: as de magia branca, que se dedicavam preparao de filtros de amor, liam a sina e praticavam curas com plantas e ervas mgicas, e as de magia negra, temidas por todos, mesmo pela Igreja, devido ao poder de matar ou provocar doenas em pessoas e animais. Nos sculos XV, XVI e XVII, a caa s bruxas era considerada uma meritria tarefa moral que tinha por base a ideia de ordem csmica acima tratada. Centenas de bruxas foram queimadas como resultado dessa cruzada contra o demnio e o Mal, embora no reinado de Isabel I tivesse havido poucas execues. Jaime I, no entanto, interessava-se bastante pelo tema da feitiaria, a ponto de ter publicado a obra Daemonologie, onde aborda a temtica. O rei tomou ainda parte em diversos julgamentos de mulheres acusadas de feitiaria. O homem do Renascimento acreditava que as bruxas podiam destruir colheitas, provocar esterilidade em mulheres e animais e incendiar casas e haveres, entre outros poderes; acreditava ainda que as bruxas mantinham uma relao ntima com o demnio, o qual lhes aparecia sob a forma de gato, mocho ou rato, com elas copulando. Em contrapartida, a figura do Mago Magus no era to vilipendiada quanto a da feiticeira; pelo contrrio, John Dee, astrlogo, matemtico, gegrafo e mago, foi um dos homens mais influentes da era isabelina e astrlogo de Isabel I, sendo tambm Marsilio Ficino e Giovanni Pico Della Mirandola figuras importantes. J Giordano Bruno, cujas obras parecem verdadeiros tratados iniciticos, foi condenado fogueira por heresia, semelhana do que acontecia com as feiticeiras. A magia, diferente da bruxaria porque intelectualizada, estava intimamente ligada filosofia neoplatnica. Esta filosofia, misto de platonismo e misticismo, visava ensinar ao Homem uma maneira de se unir ao divino. Os pensadores neoplatnicos sustentavam a existncia de trs realidades distintas: o mundo sensvel, da matria ou dos corpos, o mundo inteligvel, das formas imateriais, e,

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acima desses dois mundos, uma realidade suprema, separada de todo o resto, inalcanvel pelo intelecto humano, luz pura e esplendor imaterial o Uno ou o Bem. Por ser uma luz, o Uno irradia; as suas irradiaes (emanaes) formaram o mundo inteligvel, onde esto o Ser, a Inteligncia e a Alma do Mundo.

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II

AS CINCIAS OCULTAS NO DEALBAR DE UMA NOVA ERA

2.1. O Neoplatonismo

A escola neoplatnica continua a ser hoje bastante actual, principalmente devido sua perspectiva transpessoal e holstica do Universo. A figura mais importante desta filosofia foi Plotino que fundou, em 244 da era crist, uma escola filosfica que no tinha qualquer semelhana com as anteriores. Plotino rejeitou a ideia gnstica que reclama que o ser humano nasce num mundo hostil concebido por um malvolo criador demiurgo; o filsofo opunha-se tambm invocao de deuses through sacred incantations, 1 embora aceitasse que as estrelas eram divinas e possuam um sentido simblico e esotrico. A corrente neoplatnica foi a ltima das grandes escolas da filosofia grega e representa uma sntese das grandes doutrinas que a precederam: platnica, aristotlica, epicurista e pitagrica. O Neoplatonismo fornece uma interpretao esotrica do paganismo clssico e engloba a filosofia, o misticismo, a filosofia gnstica, a teosofia e o ocultismo mais elevado. Mesmo muitos sculos depois de Plotino ter morrido, a sua filosofia continuou a ser seguida e transmutada. A corrente neoplatnica defende que a suprema realidade espiritual um estado de unidade diferenciada o Uno sendo o mundo uma emanao desse Uno, e que h uma marcada oposio entre a matria (a carne) e o esprito (o Uno); para alcanar o estado mximo de perfeio, o homem tem de abdicar da parte fsica (que domina), e trabalhar a espiritual (atravs, por exemplo, do

1

Nevill Drury, Magic and Witchcraft (London: Thames and Hudson, 2003) 53.

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ascetismo). Plotino aconselhava assim os seus seguidores: fechar os olhos e acordar para um outro modo de ver. 2 Os humanistas da Renascena, como Marsilio Ficino ou Giordano Bruno, colocaram de parte a filosofia mais materialista de Aristteles e defenderam fortemente uma doutrina mais espiritual, como a platnica e a neoplatnica. 2.2. O Ocultismo O termo Ocultismo liga-se aos mundos natural e sobrenatural e baseia-se na assuno de que existem foras e prticas escondidas (ocultas), com o objectivo de revelar ou ligar esses mundos. Originalmente, aplicava-se s propriedades da natureza que no eram imediatamente perceptveis, estendendo-se ulteriormente a todo o conhecimento enigmtico que est na base da magia. O Ocultismo completamente independente da crena religiosa, pelo que, quer estejamos a falar de astrologia, numerologia ou mesmo alquimia, as artes assumem formas semelhantes, seja o praticante crente ou no. H uma forte tendncia para confundir Ocultismo com Esoterismo, mas poderemos clarificar a diferena entre um e outro, afirmando que, enquanto o Ocultismo tem por objectivo o simblico e o sobrenatural, o Esoterismo orienta-se para o fenomenal e o espiritual. Um dos nomes essenciais ligados ao Ocultismo o de Cornelius Agrippa que, na sua obra De Occulta Philosophia, institui as bases fundamentais desta doutrina. 2.3. O Esoterismo O Esoterismo, directamente relacionado com o lado mstico e com a presena divina, prende-se com as mais representativas religies mundiais.

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Drury 54.

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Andr Nataf define Esoterismo da seguinte forma: [a] doctrine according to which knowledge cannot or must not be vulgarised, but only communicated to a few disciples. 3 Os tericos do Esoterismo consideram que existem dois mundos: um deles o exotrico fsico, material, exterior e o outro o esotrico interior, subjectivo, de alma. Os filsofos e pensadores da Antiguidade Clssica adoptavam estes critrios, consoante as suas obras se destinavam a um pblico mais vasto ou a uns poucos discpulos.

2.4. O Hermetismo

O Hermetismo coloca-se, desde os seus primrdios, sob a tutela de Hermes, divindade grega, mensageiro dos deuses e mediador entre o mundo dos vivos e o dos mortos, cujo correspondente romano Mercrio (curiosamente, Hermes tambm o patrono dos ladres). A filosofia hermtica radica-se num revivalismo da filosofia gnstica. Durante o Renascimento, Florena foi o corao da tradio hermtica sob o alto patrocnio dos Medici. Em 1462 Cosimo de Medici pediu a Marsilio Ficino que traduzisse um manuscrito grego que lhe tinha sido oferecido por Leonardo da Pistoia. Esse manuscrito, Corpus Hermeticum, havia supostamente sido escrito por Hermes Trismegisto Trs vezes Grande, Hermes-Tot e compila muita da tradio hermtica helenstica. O texto mais importante e conhecido do Corpus designa-se Poimander e nele se descreve a criao sob a forma de um sonho: estando um dia envolto por reflexes acerca dos seres enquanto a minha mente pairava nas alturas e tinha os sentidos corporais inertes, como acontece com todo aquele que surpreendido por um sono pesado. 4

3 4

Nataf Dictionary 28. Hermes Trimegisto, Corpus Hermeticum (Lisboa: Hugin Editores: 2002) 19.

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Um dos temas essenciais dos textos hermticos o de que Hermes Trismegisto personifica a sabedoria (ele era o maior rei, o maior sacerdote e o maior filsofo), pois entende a Unidade essencial do universo.

2.5. A Astrologia Andr Nataf refere: there is a lot of fantasy in astrological practice, but there is also an enigmatic truth. 5 A Astrologia, palavra composta por astro (corpo) e logos (vibrao), a cincia que estuda os astros e as suas vibraes. Originalmente, a Astrologia e a Astronomia que se dedica a estudar o nmero e a forma dos astros conviviam pacificamente, mas, medida que os anos avanavam, a Astrologia foi perdendo o estatuto de cincia, passando a pertencer ao domnio do Ocultismo, chegando mesmo a ser considerada como algo demonaco, principalmente durante o perodo da Inquisio. Poder-se- dizer que a Astrologia o aspecto mais subtil da Astronomia: enquanto esta representa o cariz fsico dos corpos planetrios, aquela expressa o aspecto electromagntico. A Astrologia consiste numa linguagem simblica, baseada no princpio defendido por Hermes Trismegisto assim como em cima, em baixo. Esta linguagem tem como objectivo primeiro o estudo da relao do indivduo com o Todo, do individual com o Universal, ou, em ltima anlise e reportando-nos mundividncia renascentista, do Microcosmo com o Macrocosmo. Os astrlogos consideram a Terra como o ponto central das suas operaes, isto , analisam todos os factores sob uma perspectiva geocntrica, o que significa que a investigao se faz segundo as posies dos planetas (o que est em cima) vistas da Terra (o que est em baixo); os astrnomos, por seu turno, seguem o sistema heliocntrico nas observaes a que procedem. Desde a sua gnese, a Astrologia tem sido objecto de reaces extremas que vo da aceitao cega e quase fundamentalista rejeio e condenao totais; uma das mais antigas formas de conhecimento (segundo Nataf: ...the Venus of5

Nataf Dictionary 13.

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Luassel is holding a lunar crescent and it is 25 000 years old), 6 cujos primrdios se prendem com a ligao ntima entre o homem e a natureza: este observava atentamente os ciclos naturais, a fim de organizar a sua actividade. Os primeiros astrlogos/astrnomos foram os sacerdotes mesopotmicos que, em 4000 a.C., se dedicavam ao estudo e previso de acontecimentos colectivos, muitas vezes por ordem dos monarcas. Posteriormente, o conhecimento astrolgico transitou para o Egipto, e, cerca de 700 a.C., com a expanso das rotas comerciais, comeou a difundir-se, suscitando o interesse dos Gregos que, posteriormente, deram um impulso enorme a esta cincia. Grandes pensadores como Pitgoras, Plato e Aristteles criaram teorias e modelos fsicos e metafsicos e estabeleceram bases filosficas que estimularam o crescimento da Astronomia e da Astrologia, transformando-as num estudo organizado. Inicialmente, a Astrologia detinha um carcter fatalista e determinista que foi, progressivamente, dando lugar a uma viso mais cientfica. Nos primeiros tempos da era crist, pensadores como Ptolomeu, criador de uma teoria de organizao do universo que iria vigorar at poca renascentista, esto na gnese do carcter mais escolstico atribudo Astrologia. Aps a queda do Imprio Romano e devido expanso do Cristianismo, a Astrologia perdeu um pouco do seu poder, passando a ser mais tolerada no mundo rabe, mas voltou a reaparecer em fora na Idade Mdia e no perodo renascentista, em que os astrlogos eram, por vezes, os conselheiros principais dos reis e figuras importantes da sociedade (recordemos John Dee); no perodo renascentista, o interesse pela Astrologia aumentou de modo considervel, nomeadamente nos sculos XV e XVI. Nesta poca, existia um tremendo interesse pelos mapas natais, sendo que os mesmos no tinham o formato de mandala 7 dos nossos dias, antes consistindo num quadrado dentro de outro quadrado, atravessados por doze tringulos,

6 7

Nataf Dictionary 13. O mapa natal dos nossos dias tem um aspecto circular. Em snscrito, a palavra mandala significa crculo. Mandala refere-se a um tipo de diagrama simblico. Geralmente, as mandalas so representadas tridimensionalmente (Anexo V).

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simbolizando os signos do zodaco; esses tringulos eram preenchidos com os planetas e constelaes presentes no cu no momento do nascimento. O determinismo que caracterizava os primrdios da Astrologia no esmoreceu com a constatao de que era a Terra que girava em volta do Sol e no o contrrio. Mesmo estudiosos de vanguarda como Giordano Bruno incluam o determinismo astrolgico nos seus escritos e pensamentos e Tycho Brahe tinha especial apetncia pelo estudo das conjunes de Jpiter (planeta da expanso e da F) e Saturno (planeta do Karma). Mediante as suas observaes, Brahe pde concluir que uma conjuno destes planetas no signo de Leo em 1488 coincidiu com uma epidemia de peste; o prprio Kepler possua um livro de Astrologia, apesar de reconhecer que se deve descartar toda a superstio a ela ligada. Brahe e Kepler consideravam que a Astrologia parecia ter influncia no mundo natural. Este papel preponderante da Astrologia seria contudo posto em causa pela Inquisio, o Iluminismo e a Revoluo Cientfica. No sculo XIX, com Alan Kardec e Helena Blavatsky, produziu-se um revivalismo do Esoterismo e, por arrastamento, da Astrologia, e sociedades como a Golden Dawn, de que William Butler Yates fazia parte, surgiram um pouco por todo o lado, em parte tambm por reaco mecanizao, industrializao e ao materialismo exacerbado.

2.5.1. O Horscopo Como j referi, a Astrologia estabelece uma relao prxima e ntima entre o homem e a natureza, bem como possui um carcter eminentemente fatalista. Em termos esotricos, a Astrologia, que se divide, entre outras, em natural (relativa natureza), mundana (referente ao homem) e krmica (relacionada com a lei de aco/reaco e com as teorias de reencarnao), presta particular ateno aos planetas lentos, isto , aos que demoram mais tempo a percorrer a rbita terrestre, como Urano, Neptuno e, principalmente, Pluto, que considerado o Senhor do Karma, o Velho Ego, ou seja, o planeta que projecta no novo ser tudo o que este ter de ultrapassar, a fim de poder continuar a evoluir at perfeio. A

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Astrologia baseia-se em leis universais, como a lei das analogias (o que est em cima igual ao que est em baixo); do equilbrio (conhece a lei e s livre); dos espelhos e do karma (cada aco acarreta consigo uma reaco). As doze revolues sucessivas que a Terra executa volta do Sol produzem nela, e nos seres que a habitam, determinadas vibraes que carregam certas orientaes, segundo a influncia que neles predomina. Para o estudo sistematizado dessas influncias, os sbios viram-se obrigados a defini-las como caracteres de ndole distinta e diversa natureza, equiparando-as a diferentes animais e seres mitolgicos e dando-lhes os nomes de constelaes que podiam ser observadas nos cus. Assim nasceu a simbologia dos signos zodiacais que caracteriza aquelas influncias representadas em certos animais, os quais do a ideia perfeitamente definida da potncia csmica criadora, segundo a posio do nosso planeta num determinado momento. Estes signos so a representao figurada das constelaes, tal como elas caracterizam a onda da vida, segundo as suas tendncias, os seus fluidos e a sua maior ou menor impulsividade. O signo o smbolo da constelao, e a constelao uma zona de estrelas na cintura zodiacal que tem as mesmas condies electromagnticas. Foram os Caldeus que primeiro dividiram o zodaco em 12 partes iguais, fazendo corresponder a cada uma delas um signo. O crculo ( ), o semicrculo ( ) e a cruz ( ) so a base dos smbolos de todos os planetas e representam a trindade. Em qualquer religio existe uma manifestao trina, e em ns ela tambm existe na Personalidade, na Alma e no Esprito. O crculo simboliza o Universo, o Cosmo (por oposio aos Caos criador), o Divino, a Mnada, o ESPRITO; o semicrculo expressa o crescente, as ideias, a conscincia, a manifestao da centelha divina que cresce com as experincias da personalidade, a ALMA; a cruz personifica o homem, a encarnao, a matria, a PERSONALIDADE. A base de construo do horscopo consiste em duas linhas imaginrias que se cruzam. O mapa natal uma mandala que representa um processo

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inicitico; o ascendente e o descendente simbolizam o mundo exterior, a objectividade; a cruz representa o conflito entre um eixo e o outro, duas foras a optimizar; o meio do cu e o fundo do cu simbolizam o mundo interior, a subjectividade. Se os planetas se concentram mais na metade inferior do mapa, isso significa que a nossa abordagem vida mais introvertida, subjectiva; se, pelo contrrio, estiverem posicionados na parte superior, isso indica que a abordagem mais objectiva e extrovertida. Esquematicamente, poderemos representar a carta natal do seguinte modo:

Meio do Cu (Znite)

Ascendente

Descendente

Fundo do Cu (Nadir) 2.5.2. Os Elementos Os quatro elementos Fogo, Ar, gua e Terra transportam, para os signos que regem, as energias que lhes so inerentes, como o mpeto (Fogo), o sentimento (gua), a volatilidade e/ou mudana (Ar) e a fixidez (Terra), de acordo com a teoria da relatividade de Einstein, cujo princpio se pode resumir da seguinte maneira: toda a energia contm matria e toda a matria passvel de se transformar em energia. Porm, estes elementos no so os que conhecemos com os nossos cinco sentidos. Quando o astrlogo esotrico diz Fogo, refere-se luz criadora e no ao fogo comum, que necessita de comburentes para se manter aceso; quando fala em Ar, refere-se ao movimento da vida; por gua entende o dissolvente universal das substncias csmicas e, em caso nenhum, o lquido

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que serve para nos matar a sede; finalmente, quando pronuncia Terra, refere-se mescla qumica dos elementos e no ao planeta que habitamos, ainda que este seja um composto desses elementos. Podemos ento dizer que ao Fogo corresponde uma energia de vitalidade, criatividade e identidade; ao Ar, uma energia de mobilidade, comunicao, mente e relacionamento; gua, sensibilidade, sentimentos e emoes; e Terra corresponde uma energia de estabilidade, segurana e matria. A cada um dos elementos correspondem trs signos do zodaco que vibram de modos diferentes. Os signos de fogo so Carneiro (fogo primordial, impulso para comear, entusiasmo, energia de espontaneidade, pioneirismo), Leo (fogo ardente, revelador de autoridade, potncia, fogo irradiante, criativo, frontal) e Sagitrio (fogo de Outono, que arde calmo mas aquece, dominado, controlado, fogo de ideais, relacionado com o conhecimento e a f); os signos de Ar so Gmeos (ar leve, do fim da Primavera, mvel, imbudo de curiosidade, comunicao, versatilidade, informao pela informao, de energia mais evoluda que j procura ensinar), Balana (ar de Outono, comunicao, dilogo e partilha sentimental, sentido de justia, sociabilidade, conscincia tica) e Aqurio (ar de Inverno, partilha universal, idealismo, progresso, humanitarismo, energia de independncia, de originalidade, percepo, amizade); os signos de gua so Caranguejo (gua de Vero, das fontes, emoes ntimas, imaginao, intimismo, proteco, ternura, capacidade de tudo memorizar, ligado infncia e me), Escorpio (gua de Outono, dos pntanos, desejos intensos, sentimentos fortes, transmutao, transformao, mistrio, recriao) e Peixes (gua de Inverno, dos oceanos, energia da alma, de fuso com o colectivo, com o todo, super-sensitivo, mstico, compaixo); os signos de Terra so Touro (terra de Primavera, para semear, ligao natureza, enraizamento, os bens, os valores, materialidade, valorizao da posse, do material, do belo), Virgem (terra de Vero, j fertilizada, valoriza o trabalho, o ser til, o perfeccionismo, a organizao) e Capricrnio (terra de Inverno, projeco no colectivo, dirigido para a carreira, valoriza a ptria, a famlia e a honra).

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2.5.3. Os Planetas Em Astrologia, os planetas reflectem modos de

comportamento contrariamente ao que acontece em Astronomia, em que constituem massas e dividem-se em planetas pessoais (os que possuem perodos de revoluo mais rpidos), sociais e transpessoais (tambm designados por geracionais, lentos ou universais). Planetas pessoais: Sol , Lua , Mercrio , Vnus

e Marte .

Planetas sociais: Jpiter

e Saturno

Planetas Transpessoais:

Urano,

Neptuno

e Pluto

Certos estudiosos defendem que o Sol (que em termos astrolgicos considerado um planeta e no uma estrela) e a Lua escondem, pelo menos, um planeta Vulcano. Se, num mapa natal, um planeta se encontra retrgrado (em movimento contrrio sua trajectria), isso significa que em vidas anteriores a pessoa no assimilou experincias e necessita de repeti-las nesta vida, de modo a poder evoluir. 2.5.3.1. Simbologia e Regncias dos Planetas Planetas Pessoais

Sol Identidade, vitalidade. Representa o processo de transformao energtico, evolutivo, a auto-expresso criativa, a conscincia. Rege o signo de Leo.

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Lua Inconsciente, alma, est ligada a sentimentos, emoes e passado. Rege Caranguejo. A Lua, como mxima condensao da matria csmica, est considerada como a me das formas; ela no um astro, mas um satlite da Terra. Mercrio Relaciona-se com o intelecto, a comunicao. No tem polaridades, faz a ponte entre os outros planetas (no esquecer que Mercrio, na mitologia grega, era o mensageiro dos deuses). Rege Gmeos e Virgem. Vnus Simboliza o amor humano, o senso do belo, da tica e da esttica. Rege os signos de Touro e Balana. Marte a polaridade de Vnus. tambm o senhor da guerra na mitologia clssica. Representa a afirmao do ser, a energia fsica, o desejo, o impulso para a vida, para a aco, a coragem, o atrito, a agressividade. Rege Carneiro. Planetas Sociais Jpiter Representa a capacidade de elevao, a f, a expanso. Rege Sagitrio e Peixes. Saturno conhecido como o senhor do tempo e do karma. Corresponde experincia de vida (sobretudo em termos psquicos). Simboliza a contraco, o dever, a responsabilidade. Rege Capricrnio. Planetas Transpessoais Urano Como demora sete anos num signo, influencia todas as pessoas que nascem nesse espao temporal. Simboliza a mente universal, holstica, que tende unificao. Representa a mente teleptica e a sua linguagem simblica. Rege o signo de Aqurio. Neptuno o planeta do amor universal, da fuso com o Todo, amor altrusta, imaginao, mediunidade, compaixo, misticismo. Est num signo por um perodo de doze anos, influenciando as pessoas nascidas durante esse tempo. Rege Peixes.

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Pluto o planeta mais misterioso do sistema solar, e os ocultistas no o consideram como fazendo parte do sistema. Demora cerca de 25 anos num signo, influenciando todas as pessoas nascidas nesse espao de tempo. Representa a fora universal, no controlada pelo homem, a morte e a regenerao (tambm ligada ao mito da fnix), o poder oculto (de todos os tipos, mesmo a magia negra), o velho ego (que trazemos de vidas anteriores), transformao, cura. Rege o signo de Escorpio.

2.5.4. Aspectos

Aspectos so os ngulos que os planetas fazem entre si no mapa natal. Existem vrios tipos de relaes angulares: de fuso (a conjuno); de conflito (a oposio e a quadratura); de harmonia (o trgono e o sxtil); de ajuste (o semi-sxtil e o quincncio). Conjuno A conjuno ocorre quando os planetas esto num ngulo de cerca de 0, e tanto pode representar uma relao conflituante, como uma relao harmoniosa, dependendo dos planetas envolvidos. Oposio Tem lugar quando os planetas esto num ngulo de 180 e indica um conflito de relacionamento. Quadratura Relaciona planetas a 90 de distncia e reporta-se a uma tenso, um conflito interior, exteriorizando-se por esforo, conquista e transformao.

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Trgono ou Trino Estabelece uma relao angular de 120 e indica uma relao fluida entre duas ou mais qualidades psicolgicas. Apesar de ser um aspecto harmonioso, o trgono um aspecto pouco dinmico.

Sxtil Ocorre quando os planetas se encontram num ngulo de 60. um aspecto mais dinmico que o trgono e expressa-se como capacidade de adaptao e funcionalidade. Semi-sxtil Relaciona planetas num ngulo de 30 e representa um incmodo, um desajuste, na expresso dos factores psicolgicos representados pelos planetas envolvidos. Quincncio Este aspecto surge por complementaridade ao semi-sxtil e indica igualmente um ajuste, s que de natureza interna, algo que sentimos dentro de ns prprios e que nos leva a decidir agir de determinado modo. 2.5.5. Casas Astrolgicas As casas astrolgicas so doze divises do crculo que representa o mapa natal e simbolizam as qualidades, a experincia que trazemos de outras vidas e vimos projectar nesta. As casas tm sempre analogias com os signos a que esto ligadas. Assim, a Casa I corresponde ao signo de Carneiro e a casa do ascendente, do EU; a Casa II a de Touro e dos bens, dos valores materiais; a Casa III corresponde a Gmeos e a casa do intelecto; a Casa IV corresponde a Caranguejo, ao lar, famlia e ao passado; a V a casa de Leo e da criatividade; a VI a de Virgem, do trabalho e da sade; a Casa VII a de Balana e das unies, do casamento; a Casa VIII a casa de Escorpio, da morte (simblica) e

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regenerao; a IX a de Sagitrio e da busca do Ideal; a X a de Capricrnio e da carreira/vocao; a Casa XI a de Aqurio e dos amigos e, finalmente, a Casa XII a casa de Peixes e da alma.

2.5.6. O Ascendente Trata-se do grau do signo que ascende no horizonte no momento do nascimento. Simboliza a personalidade, a mscara que colocamos, indica o modo como nos projectamos sobre os outros e, portanto, como os outros nos vem.

2.6. A Cabala

Janet Berenson-Perkins define assim a Cabala:

... o nome dado ao movimento mstico e esotrico dentro do Judasmo, os seus conhecimentos e as suas prticas. Provm da palavra de raiz hebraica k-b-l e significa aquilo que recebido. A Cabala a sabedoria recebida e a tradio do conhecimento mstico, que se acredita provir de Deus.8

Daniel Beresniak, por seu turno, defende o seguinte:

Cabala um substantivo formado pela raiz hebraica triltera: Kof, Beth, Lamed. Esta raiz exprime a ideia de receber. Assim, Cabala pode traduzir-se pela palavra recepo. (...) Habitualmente, as obras sobre a Cabala traduzem este vocbulo por tradio. No falso. A tradio uma herana e recambia, deste modo, para a ideia de receber.

8

Janet Berenson-Perkins, A Cabala Explicada, trad. Marta Jacinto (Lisboa: Livros & Livros, 2002) 6.

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No obstante, a palavra recepo mais precisa, porque exprime o acto ou meio pelo qual algum aceita uma ddiva.9

E, nas palavras de Nataf: [Cabala is] first and foremost a quest for the secrets of the faith, according to the Zohar, its most famous book. 10 Berenson-Perkins manifesta que os preceitos da doutrina tero sido transmitidos por Deus aos Anjos, e estes, por sua vez, comunicaram-nos a homens escolhidos para os receber. De entre estes eleitos, que conhecemos sob a designao de patriarcas e/ou santos, avultam, por exemplo, Abrao, No e Moiss. Os patriarcas tero depois transmitido os ensinamentos aos ancios da Grande Assembleia. Simo, o Justo, um dos membros da referida Assembleia, explicou que o mundo se apoia em trs pilares: a Torah, o servio (ou orao) e os actos de amor e bondade. Segundo uma lenda judaica, Abrao ter registado os ensinamentos que recebeu num livro, o Sefer Yetzirah (Livro da Criao). Outras obras esotricas importantes da Cabala so o Sefer Bahir (Livro da Luz) e o Zohar (Livro do Esplendor). Uma das pedras basilares da doutrina judaica , como j mencionei, a Torah (Lei). Composta pelos cinco primeiros Livros do Antigo Testamento, a Torah narra a histria da Criao do mundo bem como a do povo judeu, desde as suas razes at fundao da nao judaica. Esta obra contm 613 mandamentos, de entre os quais 365 so proibies e 248 so prescries. Vrios autores consideram que existe correspondncia entre estes mandamentos e os dias do ano, bem como o nmero de ossos do corpo humano (embora actualmente se saiba que tem 206). Por outro lado: A gematria da palavra Torah 611, quase equivalente ao nmero de mandamentos. Uma concluso que podemos retirar que viver a vida de acordo com a Torah leva essncia dos ensinamentos divinos. 119

Daniel Beresniak, A Cabala Viva, trad. Ana Vasconcellos (Lisboa: Ed. Estampa, 1998) 15. Nataf Dictionary 20. 11 Berenson-Perkins 97.10

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O postulado primordial dos ensinamentos cabalsticos consiste, portanto, em acreditar que a realidade comandada pela palavra, como refere Laura Tuan: La kabbale (= tradition) est la philosophie de la puissance infinie du mot, du son quil evoque et quil invente. Dieu cra lhomme son image et construisit le monde en appelant chaque chose par son nom. 12 Esta importncia atribuda palavra e ao som capital para os cabalistas; alis a questo dos nomes de Deus um dos maiores temas desta doutrina. Johannes Reuchelin, estudioso cristo, aliou os diferentes nomes de Deus a trs perodos da histria do homem: o natural, o da Torah e o da graa. Na primeira destas pocas, Deus Shaddai revelou-se aos patriarcas; na segunda, YHVH o Tetragrama comunicou com Moiss; na terceira, a letra shin (Logos) foi acrescentada ao Tetragrama para formar YHVShH (Yehoshua) Jesus. Reuchelin faz referncia, na sua obra De Verbo Mirifico, s concluses cabalsticas de Pico della Mirandola, que foi considerado o pai da Cabala Crist. Mas outros filsofos e estudiosos houve que se destacaram tambm nesta doutrina: nomes como Marsilio Ficino, Francesco Giorgi, 13 Johanes Reuchelin, John Dee ou Giordano Bruno so referncias a ter em conta. A chamada Cabala Crist provm, tanto da converso dos Judeus entre os sculos XIII e XV, como da fundao da Academia Platnica de Florena por Giovanni Pico della Mirandola. importante tambm no esquecer o papel desempenhado por Ramon Lull que, na poca medieval, criou um esquema de atribuio de qualidades s letras (lullismo) em tudo semelhante gematria da Cabala judaica, o qual Giordano Bruno muito admirou e utilizou. Pico, em conjunto com Ficino, fundou e ajudou a propagar o Neoplatonismo Renascentista movimento que, na opinio de Frances Yates, constitua uma ampla amlgama de ensinamentos genuinamente platnicos comLaura Tuan, Le Grand Livre des Sciences Occultes (Paris : Editions De Vecchi, 2004) 108. Refiro, a ttulo de curiosidade, que, embora sendo monge e italiano, Giorgi se colocou ao lado de Henrique VIII aquando do seu pedido de reconhecimento da nulidade do casamento com Catarina de Arago. Talvez por isso Giorgi tenha sido extremamente importante no perodo isabelino, nomeadamente atravs da sua obra De Harmonia Mundi.13 12

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Neoplatonismo e outras filosofias antigas.14 Esta apetncia pelo Ocultismo operou alguns desvios em relao tradio judaica, levando a que estudiosos alquimistas, como Cornelius Agrippa e Robert Fludd, se aliassem intimamente parte ocultista da Cabala; a obra de Agrippa De Occulta Philosophia levou mesmo a uma conexo com a Numerologia, a Alquimia e a Feitiaria. Como em todas as doutrinas e religies, o fundamentalismo conduz a excessos e, no caso do Cristianismo, a perseguio aos cabalistas e alquimistas acarretou caas s bruxas que provocaram milhares de mortes em todo o mundo cristo. Pico della Mirandola acreditava que as obras e ensinamentos judaicos poderiam conduzir a um melhor entendimento do Cristianismo e, atravs da manipulao de letras e nomes hebraicos, considerou ser possvel reconhecer Jesus como o Messias. Pico inscreveu o seu interesse pela Cabala em setenta e duas Concluses Cabalsticas, nas quais o autor expressa as suas ideias, no apenas acerca da Cabala, mas tambm da magia e do hermetismo. Pico defendia a existncia de quatro nveis de interpretao das Escrituras: literal (a leitura letra), moral (a distino entre Bem e Mal), alegrica (as palavras e as imagens so smbolos) e analgica (explorao da gematria). Francesco Giorgi explora as perspectivas iniciadas por Pico, amplia a correlao entre os sistemas anglicos judaico e cristo, bem como a ligao entre as hierarquias dos arcanjos e as esferas planetrias, aborda a questo da geometria sagrada baseada na numerologia e de Deus, como o Grande Arquitecto da Humanidade, desenvolvendo ainda o tema das trinta e duas vias de sabedoria, contemplado no Sefer Yetzirah. Giorgi fala acerca da unidade (o Uno o Ein-Sof), da qual todas as coisas derivam, mediante quatro mtodos: aritmtico, geomtrico, musical e harmnico, e, tal como Yates nos informa, refere-se aos mtodos cabalistas: Combination, Notericum, Gematria. 15 Reuchelin considera que a Cabala foi transmitida por Deus a Ado, o homem primevo, cuja contrapartida cabalstica Ado Kadmon ou Qadmon, e debrua-se sobre a14 15

Yates 17. Yates 33.

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mstica do Tetragrama e do Pentagrama, associados aos nomes de Deus e de Jesus. Giordano Bruno, por seu turno, um entusiasta das descobertas cientficas do seu tempo: as teorias de Coprnico acerca do universo justificam, na sua opinio, os diversos cultos do Sol. Bruno identifica ainda Hermes com a religio e a magia egpcias e baseia o seu universalismo nas teorias neoplatnicas popularizadas na Europa por Marsilio Ficino e Pico della Mirandola. Acerca de John Dee, Frances Yates refere:

To view Dee as a Christian Cabalist explains, I believe (...) how the same man could be a brilliant mathematician and ardent propagator of scientific studies, and a conjuror of angels, whilst fervently believing himself to be an ardent reformed Christian. 16

Frances Yates afirma ainda: Christian Cabala is really a key-stone in the edifice of Renaissance thought on its occult side through which it has most important connections with the history of religion in the period. 17 A autora indica mesmo que a Cabala Crist foi um elemento essencial para o chamado New Learning da poca renascentista. A Cabala divide o universo em quatro mundos que, embora separados, se interrelacionam. So eles: Atziluth (emanao ou proximidade), Beriah (criao), Yetzirah (formao) e Assiyyah (concretizao). Cada um destes mundos encontra-se unido a um dos quatro elementos e a facetas da energia divina. Atziluth liga-se ao elemento fogo e ao esprito, luz de Deus e ao Ein Sof, o vazio primordial, que existia antes da Criao. Atziluth , na opinio de Berenson-Perkins, o reino da glria de Deus, que penetra nos outros trs mundos e oferece a possibilidade de nos aproximarmos da bondade e luz perfeitas, ou seja,16 17

Yates 76. Yates 19.

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o Divino Criador. 18 Beriah associa-se ao ar e ao intelecto. Beriah permite ao homem ter ideias e transform-las em realidade, mas, ao mesmo tempo, produz o mal, pois o homem usa o seu livre-arbtrio de forma desequilibrada e nem sempre domina a sua vontade. Yetzirah alia-se gua e s emoes. o reino dos anjos e descreve um processo contnuo de mudana. Assiyyah une-se terra, aco e ao conceito de concretizao. Os antigos sbios e estudiosos hebreus defendiam que a aco no mundo de Assiyyah constitua a via para a unificao com Deus. Os cabalistas acreditam que Deus criou o mundo atravs de emanaes de Si prprio e dos Seus atributos. A doutrina das emanaes tem origem na filosofia gnstica que se desenvolveu em Alexandria nos primrdios da era crist e postula que existem vrios mundos, entre os quais h correspondncias estruturadas em princpios essenciais que, por seu turno, representam aspectos do divino. A Cabala explica a realidade atravs de um mapa designado por rvore da Vida (AnexoVI), composta por esferas de atributos divinos, as sefiroth (plural de sefirah). As almas trazem consigo as sefiroth e devem operar um processo de purificao atravs de sucessivas reencarnaes, de modo a atingir a perfeio. Os cabalistas defendem ainda que os mistrios do caminho at perfeio se encontram consignados na Bblia, sendo, por isso, necessrio aprender a decifr-la atravs das vinte e duas letras do alfabeto hebraico (que so, simultaneamente, nmeros). Ao longo dos sculos existiram vrias verses da rvore da Vida, mas a mais conhecida e importante a que foi traada por Isaac Luria, rabino judeu conhecido como o Leo de Safed. Luria viveu no sculo XVI, na cidade palestina de Safed, centro do misticismo judaico, e defendia que o processo atravs do qual a luz divina se contraiu para criar o mundo levou quebra dos vasos que continham a energia de Deus. Essa quebra provocou a disperso de centelhas sagradas para tudo o que ia sendo criado: os cacos dos vasos e os fragmentos dos seus invlucros ou Klippoth tornaram-se no material do nosso

18

Berenson-Perkins 17.

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mundo, permitindo que o mal emergisse e preenchesse os espaos.19 A teoria da ruptura dos vasos est directamente relacionada com os conceitos de pecado original e redeno. Quando Ado comete o pecado, desobedecendo a Deus, provoca desequilbrios e desordem csmicos que necessrio reparar, de modo a que o equilbrio seja reposto. Esta regenerao/reparao designa-se por tikun, e so oferecidos ao homem vrios momentos que o possibilitam: assim foi, por exemplo, a revelao da Tora a Moiss, no Monte Sinai. 20 Segundo Luria, o homem [manifestao primeira do] primeiro raio de luz e que penetra no espao primordial, 21 possui uma centelha individual que se divide em trs partes: nefesh (alma), ruakh ( esprito) e nechama (alma superior). O corpo e a alma estruturam-se de acordo com o nmero 613, correspondente a funes que tornam a vida possvel, pelo que, de modo a realizar o seu tikun, o homem deve praticar a meditao e a introspeco: A rvore da Vida luriana era vista como uma aplicao prtica do conhecimento mstico na luta contra o mal e ao servio da vontade divina. 22 As sefiroth que constituem a rvore da Vida so dez e denominam-se: Kether (Coroa); Hokhma (Sabedoria); Binah (Inteligncia); Hesed (Misericrdia); Gevurah (Julgamento ou Poder); Tifereth (Beleza); Netzakh (Resistncia); Hod (Glria);