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1 ALPHAVILLE/ TAMBORÉ E BARRA DA TIJUCA: A IMPLANTAÇÃO DOS MODELOS E SUAS RELAÇÕES COM A ESTRUTURA SÓCIO - ECONÔMICA BRASILEIRA. CAMPOS, Ana Cecília de Arruda (1) (1) Arquiteta, Mestranda da área de concentração Paisagem e Ambiente na FAUUSP. End: Al. Gabriel Monteiro da Silva, 2666 – CEP 01442-002 – São Paulo – SP E-mail: [email protected] Abstract: The present article has the purpose to briefly clarify the relation between the Brazilian social economic structure and the urban models settled since the early 70´s generally known by private condominiums. The studied cases are Alphaville/Tamboré, SP and Barra da Tijuca, RJ. In the last decade Alphaville/ Tamboré has been the most widely established model in other Brazilian cities. Key-words: Alphaville, Barra da Tijuca, urban models. Da obra de Paulo Lins 1 , extremamente tocante pela vida urbana e brasileira que descreve, este trecho nos coloca frente à nossa realidade e a exprime de forma crua e sucinta. Falhamos, sim, mas ao longo de um processo histórico português-brasileiro de construção de nossa sociedade atingindo hoje níveis nunca vistos de exclusão social. Ao periodizar os momentos de organização do território brasileiro, nosso desenvolvimento acontece em torno de um eixo de dominação e dependência estrutural: a dominação colonial, a dominação capitalista-comercial e por fim imperialista industrial e financeira que aconteceram não de forma estanque e sucessiva, mas com sobreposições ao longo do tempo 2 . Do Brasil colônia, com exploração intensiva dos recursos e administração direta portuguesa, ao Brasil independente do século XIX, com a abertura aos novos mercados através do comércio internacional e domínio inglês, temos a partir da segunda metade do século uma aceleração da acumulação de capital que não é revertida na formação de um sistema econômico nacional, mas que é consumida na importação de bens finais de consumo. A industrialização crescente a partir da década de 30 do século XX, e que se intensifica no pós-guerra, é estruturada nas exportações, nas tecnologias importadas, nos baixos salários, na não formação de um mercado interno, com uma maior penetração de capitais estrangeiros. É a internacionalização dos processos de produção. 1 LINS, 2002, p.21. 2 CASTELLS, 2000, p.82. POESIA, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. Dito por bocas sem dentes, nos conchavos de becos, nas decisões de morte. A areia move-se nos fundos dos mares. A ausência de sol escurece mesmo as matas. O líquido-morango do sorvete mela as mãos. A palavra nasce no pensamento, desprende-se dos lábios adquirindo alma nos ouvidos, e às vezes essa magia sonora não salta à boca porque é engolida a seco. Massacrada no estômago com arroz e feijão a quase-palavra é defecada ao invés de falada. Falha a palavra, fala a bala.

Anacecilia- Condominios Barra e Barueri

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Arquitetura

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    ALPHAVILLE/ TAMBOR E BARRA DA TIJUCA: A IMPLANTAO DOS MODELOS E SUAS RELAES COM A ESTRUTURA SCIO -

    ECONMICA BRASILEIRA.

    CAMPOS, Ana Ceclia de Arruda (1)

    (1) Arquiteta, Mestranda da rea de concentrao Paisagem e Ambiente na FAUUSP. End: Al. Gabriel Monteiro da Silva, 2666 CEP 01442-002 So Paulo SP E-mail: [email protected] Abstract: The present article has the purpose to briefly clarify the relation between the Brazilian social economic structure and the urban models settled since the early 70s generally known by private condominiums. The studied cases are Alphaville/Tambor, SP and Barra da Tijuca, RJ. In the last decade Alphaville/ Tambor has been the most widely established model in other Brazilian cities. Key-words: Alphaville, Barra da Tijuca, urban models.

    Da obra de Paulo Lins1, extremamente tocante pela vida urbana e brasileira que descreve, este trecho nos coloca frente nossa realidade e a exprime de forma crua e sucinta. Falhamos, sim, mas ao longo de um processo histrico portugus-brasileiro de construo de nossa sociedade atingindo hoje nveis nunca vistos de excluso social. Ao periodizar os momentos de organizao do territrio brasileiro, nosso desenvolvimento acontece em torno de um eixo de dominao e dependncia estrutural: a dominao colonial, a dominao capitalista-comercial e por fim imperialista industrial e financeira que aconteceram no de forma estanque e sucessiva, mas com sobreposies ao longo do tempo2. Do Brasil colnia, com explorao intensiva dos recursos e administrao direta portuguesa, ao Brasil independente do sculo XIX, com a abertura aos novos mercados atravs do comrcio internacional e domnio ingls, temos a partir da segunda metade do sculo uma acelerao da acumulao de capital que no revertida na formao de um sistema econmico nacional, mas que consumida na importao de bens finais de consumo. A industrializao crescente a partir da dcada de 30 do sculo XX, e que se intensifica no ps-guerra, estruturada nas exportaes, nas tecnologias importadas, nos baixos salrios, na no formao de um mercado interno, com uma maior penetrao de capitais estrangeiros. a internacionalizao dos processos de produo.

    1 LINS, 2002, p.21. 2 CASTELLS, 2000, p.82.

    POESIA, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. o verbo, aquele que maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. Dito por bocas sem dentes, nos conchavos de becos, nas decises de morte. A areia move-se nos fundos dos mares. A ausncia de sol escurece mesmo as matas. O lquido-morango do sorvete mela as mos. A palavra nasce no pensamento, desprende-se dos lbios adquirindo alma nos ouvidos, e s vezes essa magia sonora no salta boca porque engolida a seco. Massacrada no estmago com arroz e feijo a quase-palavra defecada ao invs de falada. Falha a palavra, fala a bala.

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    Acabamos por adotar os padres de consumo americanos, e para isto foram fundamentais a unificao do territrio e principalmente a homogeneizao do mercado a partir dos anos 50. Estes padres no so possveis de serem reproduzidos para toda a populao em termos econmicos, requerendo permanente concentrao de renda, e at mesmo em termos de recursos fsicos disponveis. Esta estrutura favorece a persistncia da pobreza, o no atendimento das necessidades bsicas da maioria da populao, a concentrao dos meios de produo e consequente diferenciao regional. O crescimento urbano acelerado das cidades brasileiras ocorreu menos em funo da oferta de emprego e dinamismo da industrializao, mas da persistncia da estrutura agrria baseada no latifndio, pouco produtiva e que no absorveu o excedente populacional. Na dcada de 70, o pas ainda largamente agrcola tinha mais da metade dos pobres concentrados na rea rural. Atualmente, 82% dos pobres brasileiros encontram-se nas reas urbanas, ou 47,4 milhes de habitantes em 20013. Industrializao dependente, urbanizao dependente.

    No adiantam as atuais crticas e cobranas por solues aos problemas analisados de forma isolada: a violncia, a misria, as sucessivas crises econmicas. Tendemos a contornar as contradies ao invs de resolv-las. Modernidade? A realidade brasileira demonstrou a persistncia secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, repetio, em fase progressiva, da experincia capitalista. Adotou do capitalismo a tcnica, as mquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar4. Atingimos a racionalizao dos processos produtivos mas sem alterar por completo a cadeia produtiva, sem formar um mercado interno abrindo margem de poupana para as camadas mais baixas. A produo em massa pressupe o consumo em massa sociedade democrtica, racionalizada, modernista, populista. O regime de acumulao fordista-keynesiano nunca foi pleno no Brasil, nunca atingimos um Estado de bem-estar social de fato5. A manuteno desta estrutura social implica em confrontos e tenses, e concesses so feitas visando sua continuidade, mas sem alterar suas relaes internas. So os mecanismos de integrao-represso da organizao institucional do espao colocados por Castells6. As relaes de Estado e nao se distanciam: no atingimos o governo da soberania popular, mas uma autocracia com tcnicas democrticas. Nas metrpoles de So Paulo e Rio de Janeiro, a modernizao superficial: a construo dos edifcios que as fazem parecerem modernas no supera as desigualdades, no vence as dificuldades. Estes mesmos edifcios acabam por expressar a opresso social os equipamentos no so para ser acessveis por todos. Somos um povo em permanente processo de modernizao. Em seu livro O Brasil: territrio e sociedade no incio do sculo XXI, Milton Santos destaca a regulamentao poltica e mercadolgica do territrio brasileiro, onde o peso do mercado externo na vida econmica do pas orienta os recursos coletivos para a criao de infra-estruturas, servios e formas de organizao do trabalho voltadas para o comrcio exterior. Se entendermos a formao territorial como a estrutura social e econmica sob a organizao de um Estado, podemos dizer que o territrio um direito da sociedade, embora nem sempre reconhecido. Sua apropriao se d atravs das redes de comunicao (idias) e transportes, e o Estado deveria garantir tal aparelhamento. Uma vez que o Estado brasileiro no garante a todos a fluidez do territrio, nem o acesso aos bens e servios necessrios capazes de manter o componente cultural, a cidadania s acontece por segmentos. O nosso modelo econmico se alimenta da excluso: a imperfeio na distribuio necessria para a manuteno do sistema. Uma vez que o Estado controla o territrio, desestruturando a cidadania, podemos dizer que ele no mnimo, mas mximo por perpetuar tal situao.

    3 SALOMON, 2003. 4 FAORO, 2001, p.822. 5 HARVEY, 2002, p. 119 e 121. 6 CASTELLS, 2000, p.294.

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    Sendo a metrpole ponto de convergncia econmico e cultural, sede de todas as formas de comunicao, geradora dos fluxos de trabalho produtivo, concentrao dos malefcios e benefcios, congrega a pobreza tambm. Esta se instala nos espaos da deseconomia, nos objetos obsoletos. Formam-se os enclaves, tanto de baixa como de alta renda, com suas relaes condominiais prprias, onde os acessos so controlados. Somos impedidos de percorrer os espaos pblicos. Esta segregao o fator que nos separa, explodindo as relaes sociais. neste contexto estrutural que se erguem os empreendimentos de Alphaville e Tambor, em Barueri/ Santana de Parnaba, e da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro, enclaves urbanos destinados s camadas de alta renda. preciso definir os elementos da estrutura urbana e suas relaes antes de analisar a composio e a diferenciao das formas espaciais7.

    Segundo M. Angela Pereira Leite, podemos definir paisagem como o processo histrico de representao das relaes sociais, cujas prticas e ideologias se tornam realidades materiais pela transformao de seus significados em objetos sobre o territrio. , portanto, uma construo social, algo que se transmite. Discutir a paisagem implica em discutir os processos sociais.

    A paisagem , ento, derivada do territrio. Entretanto, a formao territorial mais dinmica: sua estrutura se altera e s depois que a paisagem vai refletir isto j que suas formas so mais duradouras. Embora as formas da paisagem sejam frequentemente tomadas como ato final ou concluso de processos, elas correspondem na verdade a uma idia de transformao, so formas de identidade e memria.

    Analisar o momento atual e procurar identificar as formas de associao entre estrutura social, paisagem e projeto bastante interessante porm difcil por estar o processo em fase de solidificao, com toda a vitalidade de suas transformaes. As metrpoles de So Paulo e Rio de Janeiro so exemplos de um Estado desenvolvimentista onde a produo econmica tem um maior peso que a reproduo da fora de trabalho, que conota o urbano. A grande preocupao atrair para a cidade capital internacional, que dificilmente reverter em melhores condies para a populao em geral, principalmente de baixa renda. o que podemos ver na recente controvrsia do Museu Guggenheim carioca, a exemplo de Bilbao, ou da disputa entre So Paulo e Rio de Janeiro ao se candidatarem sede dos Jogos Olmpicos de 2012. As cidades no Brasil de hoje no garantem a reproduo simples da fora de trabalho (moradia e equipamento material mnimo como esgoto e manuteno de ruas) nem sua reproduo ampliada atravs dos sistemas institucional e ideolgico (espaos verdes, qualidade ambiente, equipamento escolar, equipamento scio-cultural) como exemplifica Castells. A prpria naturalidade com que se encara o deslocamento de milhes de trabalhadores brasileiros para as novas frentes de trabalho como a Amaznia, gerando o desenraizamento scio-cultural, sinal disto. Se formas sociais estveis no so criadas, no possvel qualificar os espaos. Quando os condomnios e loteamentos da Barra da Tijuca e de Alphaville/ Tambor incorporam ao programa de seus projetos a infra-estrutura bsica de comrcio, servios e educao, garantindo a facilidade de acesso aos escritrios e servios de grande porte, isolando-se das camadas de mais baixa renda, acentuam-se as contradies sociais e a excluso. Os equipamentos no so de uso comum. A preservao de determinado modo de vida e das instituies que representam em detrimento do restante da sociedade ainda mais segregador que o engradamento ou muros destes mesmos loteamentos e condomnios. Apesar da estrutura social na qual as metrpoles esto inseridas ser a mesma, as relaes internas de cada uma so distintas, o que se reflete na composio dos empreendimentos. Mesmo que os projetos

    7 CASTELLS, 2000, p.191.

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    possuam elementos comuns como o controle de acesso, equipamentos de apoio, composio social pouco heterognea, guardam entre si diferenas significativas em razo da prpria origem dos planos: as atuaes distintas dos poderes locais modificaram seus rumos, assumindo conexes e papis metropolitanos diversos. O Plano Piloto de Lucio Costa para a baixada de Jacarepagu e Barra da Tijuca (1969) caracterizava a regio como uma nova fronteira para a expanso urbana da cidade do Rio de Janeiro: as praias e dunas parecem no ter fim; e aquela sensao inusitada de se estar num mundo intocado, primevo. Assim o primeiro impulso, instintivo, h de ser sempre o de impedir que se faa l seja o que for. Mas por outro lado, parece evidente que um espao de tais propores e to acessvel no poderia continuar indefinidamente imune, teria mesmo de ser, mais cedo ou mais tarde, urbanizado. A sua intensa ocupao , j agora, irreversvel8.

    Como coloca Villaa em seu livro Espao Intra-urbano no Brasil, sendo a proximidade dos grupos dominantes no espao urbano uma tendncia, a rea j nascia destinada s camadas de alta renda, como uma extenso dos bairros da zona sul como Botafogo, Flamengo, Copacabana, Ipanema e Leblon. No era, entretanto, o que previa o Plano Piloto. Assim como Braslia, o plano contemplava camadas sociais distintas. Procurava-se criar uma nova estrutura social a partir do projeto arquitetnico. Tampouco seria um projeto fechado como a capital federal - estrutura simblica - mas seria constantemente rediscutido com os empreendedores e a populao, sendo Lucio Costa um consultor permanente. Do entendimento caracterstico da arquitetura moderna, a estruturao do espao dependeria basicamente das questes organizacionais, mais do que econmicas e poltico-administrativas9. A rea seria uma anttese ao modelo de ocupao de Copacabana, garantindo uma nova forma de viver. Estavam abolidas as quadras-bloco, a aerao insuficiente, o bloqueio das visuais, o traado quadricular tradicional da malha urbana. Predominavam ento a volumetria variada das edificaes em funo do uso e/ou camada social, tipologias diversas em um mesmo empreendimento imobilirio como torres residenciais ao lado de unidades unifamiliares, distncia entre edificaes de modo a permitir aerao, insolao e garantir as visuais. Assim como Braslia, o projeto setorizava as atividades como servios, hotelaria, comrcio e protegia a moradia do fluxo de passagem atravs da hierarquizao das vias e manuteno de extensas reas verdes.

    Dois fatores importantes que caracterizam a Barra da Tijuca a distinguem de Braslia: a incorporao da paisagem natural existente como dado de projeto e a posse da terra, no caso privada, que acabou por modificar o conceito da superquadra. O plano de Lucio Costa previa duas escalas de interveno: urbanizao-preservao do local (paisagem, dunas, lagoas), e a criao de um novo centro metropolitano que reintegraria as pores norte e sul da cidade do Rio de Janeiro. Apesar da no criao deste centro metropolitano e das alteraes ao plano feitas posteriormente por presses dos investidores imobilirios para que fosse permitido um maior adensamento da regio, a rea se origina a partir de pesados investimentos por parte do Estado e se integra metrpole.

    via livre de acesso por um sistema conjugado de tneis e viadutos (Jo) somou-se a construo da Linha Amarela que propicia o acesso dos moradores da Zona Norte regio. Mesmo que na prtica isto no acontea de forma plena, a praia e os parques existentes, de uso pblico, podem servir como espao de integrao para desmonte dos enclaves surgidos a importncia do cotidiano no como fora reguladora e normativa mas ao contrrio, criativa e espontnea forma de se construir uma identidade. Como coloca Certeau, ao percorrer a cidade, esta j no parece to fragmentada. devido a estes espaos que a Barra da Tijuca causa um menor estranhamento do que Alphaville e Tambor.

    8 COSTA, 1995, p. 348. 9 HABERMAS, 1987, p.122.

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    A implantao do plano para a Barra espelha o momento poltico e econmico brasileiro na dcada de 70: a facilidade de recursos, o endividamento do Estado, a posio ambgua do BNH financiando maciamente habitao para camadas mais altas ao mesmo tempo em que tentava prover as camadas mais baixas da populao, o favorecimento s grandes empresas e o que se altera quando os recursos financeiros se tornam escassos. A participao popular e o espao destinado na mdia para discusso dos rumos a serem tomados nos destinos da Barra, mesmo que na prtica tenham tido alcance limitado, demonstram a sua integrao com a metrpole. Seja nos seminrios realizados em 1980 para mudana do parcelamento do solo e em 1986 (Seminrio Barra 86/ Avaliao e perspectivas), seja no plebiscito de 1988 para criao de um municpio independente, os diferentes setores da sociedade puderam expressar os interesses distintos na rea. Cobrou-se a incluso de novas camadas sociais e a execuo por parte do poder pblico da infra-estrutura no realizada como saneamento e transportes; discutiu-se como o programa estabelecido no plano privilegiava as grandes empresas, excluindo do processo os pequenos e mdios empresrios; foi abordada a especulao imobiliria exercida pelos nicos quatro grandes proprietrios de terras. Ao traar um paralelo entre os empreendimentos da Barra e de Alphaville/ Tambor, notamos o quanto suas diferenas esto relacionadas com as metrpoles onde esto inseridos. O Rio de Janeiro se caracteriza pela implantao de uma srie de projetos urbansticos executados com a parceria do setor privado, centrados nos espaos pblicos e que alteraram a paisagem urbana: Plano Pereira Passos (Avenida Central), Plano Agache, Avenida Presidente Vargas, Aterro do Flamengo, Avenida Atlntica. Os diferentes modelos urbansticos adotados estavam de acordo com o papel de centro poltico e cultural que a cidade representava. Apoiada inicialmente pela sua funo poltica, mesmo com a transferncia da capital federal para Braslia, estabeleceu-se como metrpole econmica (indstria de bens intermedirios e bens de capital). Continuou-se a investir em projetos de reas pblicas como o Rio Cidade, na administrao Csar Maia (1993-1996). J So Paulo estabeleceu-se como uma metrpole diferenciada do Rio de Janeiro baseada em um parque industrial diversificado.Com maior concentrao de capital, importantes alteraes da paisagem urbana foram executadas apenas pela iniciativa privada em projetos voltados para as camadas de alta renda, estabelecendo padres de ocupao adotados posteriormente pelas legislaes urbansticas. Ainda no sculo XIX: Campos Elseos e Higienpolis; j no sculo XX: Avenida Paulista, Pacaembu, Jardim Amrica, Alto de Pinheiros. Define-se o vetor oeste como expanso das camadas de alta renda e consolida-se a casa isolada no lote como ideal e padro de conforto. Ao contrrio do Rio, os espaos pblicos vo cedendo lugar em importncia aos espaos privados. O ltimo grande projeto de rea pblica foi a reurbanizao do Vale do Anhangaba elaborado na dcada de 80. Alphaville, assim como a Barra, tambm espelha os acontecimentos da dcada de 70. Com a escassez de recursos pblicos, a empresa responsvel Albuquerque Takaoka, empreiteira de obras do governo, concentra-se nos empreendimentos residenciais. Com investimentos bancados pela iniciativa privada, estabeleceu-se em Barueri pela posio estratgica que o municpio ocupava, reforando o vetor oeste de expanso. Inicialmente pensado como loteamento industrial em funo da sada das plantas de So Paulo, adequou-se ao uso residencial na forma de loteamentos. Com controle de acesso e limites murados, foram denominados erroneamente de condomnios fechados. Inaugurado em 1975, o primeiro residencial surge em 1979 quando indstrias e escritrios de empresas j estavam instalados. Nunca houve um projeto que pensasse o empreendimento como um todo: este se desenvolve por agregao. Tendo sido adotados como base os padres normativos da Cia City, os residenciais foram sofrendo variaes como as dimenses de lotes para poder atender a um pblico mais diversificado. Entretanto diferentes tipos de lote no aconteciam no mesmo residencial, preservando a homogeneidade de seus ocupantes. Aos poucos foram sendo criados os centros comerciais e reforou-se a ida de empresas pela prtica de iseno fiscal. Hoje em Alphaville, h 1700 empresas instaladas, uma populao flutuante de 170.000 pessoas e acesso de 78.000 veculos ao dia segundo o prprio site. No representa a disperso urbana de So Paulo, nem seu abandono ou negao. Est como nunca inserida em seus processos produtivos.

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    Tambor surge no final da dcada de 70 como empreendimento espelho, adotando a mesma estrutura de Alphaville. Atualmente implanta projetos para camadas de classe mdia como casas geminadas ou apartamentos mais populares, mas sempre isolados, sem propiciar a convivncia de diferentes segmentos. Como aconteceu na Barra, a implantao dos empreendimentos atraiu camadas mais baixas que primeiramente foram para trabalhar nas obras civis, se fixaram e hoje buscam empregos como prestadores de servio. Ocuparam as reas menos privilegiadas ao redor. Mais de 60% dos domiclios de Alphaville e Tambor possuem renda do chefe acima de 15 salrios mnimos (classe A segundo IBGE) com renda mdia de 38,34 salrios mnimos enquanto que no municpio de Barueri este nmero cai para 7,3% e em Santana do Parnaba de 22,1%. A mdia nacional 5,9%. Na Barra, em 70% dos domiclios os chefes recebem acima de 15 salrios mnimos, com renda mdia de 32,83 salrios mnimos. No municpio do Rio de Janeiro, esta mdia de 14%. Diferentemente de Alphaville/Tambor, a populao de mais baixa renda tambm gravita entorno da Barra e dela se alimenta, mas no s em funo de trabalho, mas tambm em funo dos crimes como roubos e trfico de drogas10. No caso de Alphaville e Tambor, ao contrrio do plano da Barra, h uma indesejabilidade do meio ao redor, da destruir o relevo e a vegetao existentes e recriar esta mesma paisagem. Nega-se e bloqueia-se o convvio com as diferentes camadas sociais. produzido um cenrio. Cabe aqui destacar o papel do Estado que em razo dos recursos financeiros que receberia acabou por dar total liberdade aos empreendedores que montaram o projeto em funo de seus prprios interesses. Espelhando a maior concentrao de capital da metrpole de So Paulo, basicamente duas nicas empresas definem e estipulam a forma de viver de cerca de 40.000 habitantes at o momento, ao contrrio da Barra da Tijuca onde diversos investidores acabaram por atuar na estruturao do lugar. Um caso extremo seria o do Palace II, que reuniu o descaso de seus empreendedores com o consumidor final, a busca pelo lucro mximo, a impunidade e a influncia do cargo pblico anulando o poder do sistema judicirio. Pblico e privado se confundindo. Alphaville e Tambor enfrentam hoje dificuldades para expanso fsica de seus empreendimentos, limitados pelos morros que os cercam e esbarrando nas questes ambientais. A prpria Rodovia Castello Branco, nico acesso, mostrou no ser compatvel com o movimento de veculos gerado, mesmo aps a construo da marginal. Se a inaugurao do trecho do Rodoanel veio trazer mais uma alternativa de deslocamento, o acesso via depende ainda da Castello. O Plano Integrado de Transportes Urbanos para 2020 (PITU 2020) prev a integrao da rea com a rede de transporte pblico via metro. A facilidade de acesso dos empreendimentos com a rea central da cidade de So Paulo, base do projeto, demonstrou ser ao longo dos anos uma falsa premissa. Ao compararmos com a Barra da Tijuca, mesmo que a rea tambm tenha sido estruturada sobre o transporte individual, oferece mais alternativas de integrao com a metrpole. E passvel de expanso, seja em direo a Sepetiba (com restries quanto preservao), seja pela ocupao dos vazios ainda existentes. E os empreendedores na Barra souberam fazer da preservao fator de diferenciao para comercializao de seus projetos. Um exemplo a Gleba E que por anos enfrentou o embargo e resolvidas as questes ambientais, usam o projeto paisagstico executado e a reputao de Fernando Chacel como valor agregado aos projetos arquitetnicos, estes em si to convencionais quanto o restante executado ao redor.

    Assim como a Barra da Tijuca, Alphaville e Tambor enfrentaram em 1993 processo de emancipao que acabou no sendo votado. Na Barra, o grupo a favor, liderado pelos proprietrios de terras que queriam maior adensamento, usava como argumento a ineficincia do poder pblico em instalar a infra-estrutura e propunham criar a Barra S.A. baseada na pretensa superioridade da administrao privada. Em Barueri o argumento era similar: que os prprios moradores teriam mais capacidade administrativa que a prefeitura local. Como na Barra, buscavam concentrar ainda mais a renda, retendo no futuro

    10 Dados referentes ao ano de 2002. Fonte - ION Information Network.

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    municpio os impostos gerados. Na poca, 75% dos impostos de Barueri eram gerados por Alphaville/ Tambor segundo artigo publicado na Folha de So Paulo (08/05/93). Mais que o enclave existente, a emancipao seria a configurao do prprio feudo, da cidade murada. O morador que liderava o grupo contrrio emancipao Henrique Marin Munhoz - alertava para a misria que gerariam e que tornaria insustentvel a permanncia dos moradores. Prevaleceu o seu argumento. Toda a discusso passou ao largo de um aprofundamento das questes sobre a nossa estrutura social. Os assuntos foram tratados de forma isolada: a violncia, a misria, os impostos, a ineficincia estatal. E na dcada de 90, os empreendimentos de Alphaville e Tambor tiveram um crescimento populacional de 90,03% passando de 20.109 habitantes em 1991 para 38.215 em 200211. Um sucesso empresarial. A empresa Alphaville Urbanismo S.A., formada aps o desmembramento da Albuquerque Takaoka, detm a marca Alphaville e passou a exportar o modelo implantado na metrpole paulistana para outras 11 cidades brasileiras e 2 em Portugal, totalizando 20 empreendimentos implantados ou em desenvolvimento at 200212. Entretanto, estes novos empreendimentos j incorporam valores da preservao ambiental, seja em funo de um pblico mais sensvel questo, seja pela presso dos poderes pblicos locais atravs de legislao especfica. Por que ento o modelo paulista e no o carioca que encontra respaldo nos diferentes centros urbanos, cada um com diferentes formas de viver e que se adaptam a esta frmula? O mote da violncia urbana? As elites brasileiras, com exceo da carioca, sempre tenderam ao isolamento. O ideal da casa isolada no lote: o palacete ou a casa senhorial presente em nossa cultura? No justificaria por si s a opo pelos loteamentos fechados e condomnios privados. Garantir as relaes sociais que o poder pblico no responde? Talvez mas no por incapacitao deste. de interesse dos grupos dominantes a fragmentao das estruturas sociais como forma de manuteno do regime de acumulao. At mesmo as instncias de deciso servem a este propsito: no so reconhecidas as reas metropolitanas como unidades administrativas (mecanismo de dominao-regulao). Sendo a paisagem o processo histrico de representao das relaes sociais, cujas prticas e ideologias se tornam realidades materiais, podemos dizer que a implantao dos condomnios fechados, bancados pela iniciativa privada e configurando suas prprias regras est refletindo a supremacia do capitalismo internacional do qual a metrpole de So Paulo o maior smbolo. a acumulao flexvel e sua nfase na informao, servios, imagem corporativa, sistema financeiro global, numa maior preocupao com os lucros do que com a produo real. A miniaturizao da cidade na forma dos loteamentos e condomnios se difunde como mostra de modernidade mas que no fundo atesta a incapacidade de resolvermos nossas contradies. So Paulo possuiu centralidade dobrada: metrpole e o centro de deciso econmica nacional, impulsionando e definindo nossa estrutura social. Maior concentrao de capital, est comprometida ao mximo com as relaes internacionais financeiras. a cidade brasileira com menor possibilidade de reinventar sua histria, seu papel. Constantemente se destri e reconstri, buscando uma modernidade que no sua, mas importada. No qualifica seus espaos, rompeu-se o processo de construo social da paisagem formada agora pela soma de objetos sem relao entre si que so facilmente substitudos. O tempo do mundo se faz presente mas no corresponde ao tempo do lugar. Mesmo que o Plano Piloto para Jacarepagu e Barra da Tijuca tenha sofrido alteraes pressionado pela especulao imobiliria, carrega em si os ideais da arquitetura moderna brasileira, baseada na busca de solues prprias. Mesmo trazendo em si as contradies modernistas, um exemplo de grande importncia, no s culturalmente, mas devido escala colocada e interao do planejamento e desenho urbano, hoje distanciados.

    11 Fonte dados - ION Information Network. 12 Brasil: Campinas, Ribeiro Preto, Goinia, Belo Horizonte, Curitiba, Londrina, Maring, Porto Alegre, Gramado, Salvador, Fortaleza; Portugal: Sintra e Lisboa.

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    Ilustraes

    Figura 1. Plano Piloto da Baixada de Jacarepagu e Barra da Tijuca.

    Fonte: COSTA, 1995, p.344-345 (Plano Piloto Jacarepagu e Barra da Tijuca).

    Figura 2. Foto area Baixada de Jacarepagu e Barra da Tijuca, 1999.

    Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos.

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    Figura 3. Perspectiva, Ncleo Residencial Nova Ipanema, Barra da Tijuca. Pioneiro

    na implantao de novos padres urbansticos. Fonte: Edison Musa Arquitetura e Construo Ltda.

    Figura 4. Situao geral, Ncleo Residencial Nova Ipanema, Barra da Tijuca.

    Fonte: Edison Musa Arquitetura e Construo Ltda.

    Figura 5. Condomnio Barra Bali, Barra da Tijuca. O edifcio isolado no lote, a perda

    da idia de conjunto em empreendimentos mais recentes. Fonte: foto da autora, 2004.

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    Figura 6. Loteamento Alphaville Residencial 9, inaugurado em 1987, Santana do Parnaba.

    Fonte: Baseaerofoto, 2001. Figura 7. Planta do loteamento Alphaville Salvador. Nascentes e vegetao existentes inseridas no projeto.

    Fonte: Material promocional de venda, 2002.

    Figura 8. Loteamento Residencial Tambor 2.

    Os moradores contratam projeto paisagstico para garantir melhor qualidade aos espaos livres, no tratados adequadamente pelo empreendedor.

    Fonte: foto da autora, 2003.

    Figura 9. Os novos Residenciais Tambor, condomnios e no loteamentos, com a arquitetura j definida.

    Fonte: foto da autora, 2003.

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    Referncias bibliogrficas

    Geral.

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