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ANAIS DO ORGANIZAÇÃO Lenise dos Santos Santiago | Samuel Anderson de Oliveira Lima

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ANAIS DO

ORGANIZAÇÃO

Lenise dos Santos Santiago | Samuel Anderson de Oliveira Lima

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 1

O VI COLÓQUIO DE ESTUDOS BARROCOS E O I SEMINÁRIO

INTERNACIONAL DE ARTE E LITERATURA BARROCA realizado na UFRN,

pelo Grupo de Pesquisa Ponte Literária Hispano-Brasileira, oportunizou o encontro de

vários e múltiplos discursos estabelecendo pontes de mútuo acesso que vão além de uma

expressão estética, com o objetivo de criar espaços de reflexão multidisciplinar entre

pesquisadores, professores e alunos de Artes, de Literatura e áreas afins.

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 2

SUMÁRIO

Sessão − A EXPRESSÃO HISPANICA DO BARROCO Coordenadores: Prof. Dr. Francisco Ivan da Silva Profa. Paula Pires Ferreira

1. SÓROR TERESA JULIANA DE SANTO DOMINGO, OU MELHOR, TSHIKABA: PRESENÇA AFRICANA NO BARROCO HISPÂNICO (Amarino Oliveira de Queiroz)

5

2. O CARANGUEJO BARRO (OCO) (Orlando Brandão) 16

3. A MÚSICA DAS PEDRAS OU O DEVANEIO DAS OSTRAS: EM FRANCIS PONGE, JOÃO CABRAL E MARCELO D2(Tânia-Lima)

26

4. CERVANTES NA CULTURA BRASILEIRA (João da Mata Costa) 43

Sessão − AS ARTES VISUAIS BARROCAS (pintura, arquitetura, escultura e demais expressões de artes)

Coordenadores: Prof. Dr. Everardo Araújo Ramos Prof. Dr. Francisco Zaragoza Zaldívar

1. O POEMA COMO ESPAÇO CRÍTICO DA ARTE O BARROCO PRODUZIDO POR“JOSEPHA AYALA FIGUEIRA”NA POESIA DE “FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO” (José Antônio Rodrigues Júnior)

63

2. ASPECTOS DA CULTURA ARTÍSTICA DO BARROCO NA PARAÍBA COLONIAL (Michael Douglas dos Santos Nóbrega / Orientadora: Dra. Carla Mary S. Oliveira)

82

3. QUESTÕES SOCIAIS E ESTÉTICAS NA ESCULTURA DE ALEIJADINHO (André Pinheiro)

94

4. DISTORSIONES ESPACIALES Y TEMPORALES EN EL ARTE DEL CARIBE INSULAR (Helga Montalván Dias)

106

Sessão − BARROCO E MODERNIDADE

Coordenadores: Prof. Dr. Antonio Fernandes de Medeiros Júnior Profa. Dra. Regina Simon da Silva

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1. DIÁLOGOS ENTRE O BOTELHO BARROCO E O MODERNO CABRAL (Éverton Barbosa Correia)

116

2. PAISAGENS DO CAPIBARIBE: ESPESSURA DA VIDA NA POÉTICA DE JCMN (Lenise dos Santos Santiago)

135

3. O TEATRO DA MORTE E DA VIDA: A ESCRITA BARROCA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO (Francisco Israel de Carvalho)

146

4. APONTAMENTOS SOBRE A POESIA DE MURILO MENDES: OBRA ABERTA E NEOBARROCO (Ana Carolina Moura Mendonça /Andrey Pereira de Oliveira)

169

5. A ASA ESQUERDA DO ANJO PELO VIÉS DO DISCURSO MELANCÓLICO (Adriana Sena)

181

6. CANTO PARALELO - O JOGO PARÓDICO NA OBRA TUTAMÉIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA (Arlene Isabel Venâncio de Souza)

193

7. LUTO E ALEGORIA EM “A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” (Paulo Henrique da Silva Gregório)

201

8. ENTRE AS FRATURAS DO SUJEITO BAR/ROSIANO EM TUTAMÉIA E NO LIVRO SOBRE NADA (Robeilza de Oliveira Lima)

215

9. A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO: ENTRE O CAMPO E A CIDADE (ARAÚJO, Roberta. D. de. / PAIVA, Kalina. A. R. de.)

230

10. MINHA VIDA DE MENINA: DIÁRIO DE HELENA MORLEY (BOEIRA, Eloísa Elena Prates /ARAÚJO, Roberta Duarte de)

245

11. AS RUÍNAS BARROCAS D’O ATENEU, OU DA ESTÉTICA DO ROMANCE (Francisco Magno de Araújo)

253

12. A CARNAVALIZAÇÃO LITERÁRIA EM SARAMAGO: ENTRE O RISO E AS RUÍNAS (PAIVA, K. A. R. de /ARAÚJO, R. D. de.)

278

13. DOM QUIXOTE - ENTRE O BARROCO E A MODERNIDADE (Jóis Alberto da Silva)

295

14. O NEOBARROCO EM “CONTO BARROCO OU UNIDADE TRIPARTITA”, DE OSMAN LINS (Maria Luíza Assunção Chacon /Andrey Pereira de Oliveira)

306

15. UMA LEITURA ALEGÓRICA DO CONTO “ELES”, DA OBRA O OVO APUNHALADO, DE CAIO FERNANDO ABREU (Antonio Peterson Nogueira do Vale)

316

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 4

16. O BARROQUISMO NA SIMBOLOGIA DOS ELEMENTOS DA NATUREZA: AR, FOGO, ÁGUA E TERRA, EM LOS PERROS DEL PARAÍSO, DE ABEL POSSE (Regina Simon da Silva)

327

17. ROMANCE HISPANO-AMERICANO E ALEGORIA: Afinidades entre Onetti, Puig e Bolaño (Reno Nícolas de Araújo Torquato)

349

18. O PRESENTE BARROCO: A MÁQUINA DO TEMPO TEÓRICO-LITERÁRIA DE AGUALUSA (LisaneMariádne Melo de Paiva / Julianny Katarine Aguiar de Oliveira)

372

19. ENSAIO DE UMA SOCIOLOGIA BARROCA (Luciano Albino) 384

Sessão − INTERFACES BARROCAS

Coordenadores: Profª Ms. Reny Gomes Maldonado Prof. Ms. Samuel Anderson de Oliveira Lima

1. LOS JESUITAS Y SUS RESONANCIAS EN EL BARROCO BRASILEÑO (Gleba Coelli Luna da Silveira / Márcia dos Santos do Nascimento)

396

2. EL AMOR EN LA POESÍA DE LOPE DE VEGA (Reny Gomes Maldonado / Paula Pires Ferreira)

405

3. A PÉROLA IMPERFEITA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIEDADE COLONIAL BAIANA COM BASE NA POESIA BARROCA DE GREGÓRIO DE MATOS GUERRA (Keidy Narelly Costa Matias)

418

4. O LUGAR DE GREGÓRIO DE MATOS NA LITERATURA BRASILEIRA (Samuel Anderson de Oliveira Lima)

436

5. NOS FIOS DO TEMPO: REFLEXÕES ACERCA DA NOÇÃO DE “SISTEMA LITERÁRIO” DE ANTONIO CANDIDO NA FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA (Moisés Ferreira do Nascimento)

450

6. BÍBLIA E A LITERATURA BRASILEIRA: PRESENÇA DO DIABO NA POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS (Ciro Soares dos Santos)

462

7. METAFÍSICOS OU BARROCOS? (Sandra S.F. Erickson) 496

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Sessão de Comunicação: A EXPRESSÃO HISPANICA DO BARROCO

Coordenadores: Prof. Dr. Francisco Ivan da Silva

Profa. Paula Pires Ferreira

1. SÓROR TERESA JULIANA DE SANTO DOMINGO, OU MELHOR,

TSHIKABA: PRESENÇA AFRICANA NO BARROCO HISPÂNICO

Amarino Oliveira de Queiroz

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

O período correspondente ao Barroco literário castelhano apresenta singular

expressão na mexicana Juana Inés de Asbaje y Ramírez de Santillana, ou Juana de Asbaje,

mais conhecida pelo nome de Juana Inés de la Cruz, monja católica a quem autores como

Octavio Paz e Carlos Fuentes dedicaram prestigiados estudos. Praticamente desconhecido

e ignorado em nosso meio acadêmico, entretanto, outro exemplo da escrita de autoria

feminina surgido durante o Barroco hispânico encontra lugar na figura de Tskikaba,

Chicaba, ou, ainda, sóror Teresa Juliana de Santo Domingo, de quem se diz ter sido uma

princesa africana raptada por marinheiros espanhóis na costa da Guiné e tornada escrava

aos nove anos de idade. Trasladada inicialmente para o arquipélago de São Tomé e

Príncipe, depois para Sevilha e, a seguir, para Salamanca, na Espanha, mais tarde seria

ordenada freira dominicana, dando início a uma trajetória marcada por penitências, visões

místicas, virtudes e curas milagrosas, mas também pela criação poética em língua

espanhola. Antecipando em alguns séculos a inauguração da escrita literária africana em

línguas européias, este último episódio conferiria à trajetória de Tshikaba uma particular

aura de pioneirismo, ancorada, como veremos, num discurso afirmativo e rompedor.

Sabe-se que, dentre os idiomas europeus que se apresentam ao mesmo tempo como

línguas oficiais e de literatura no contexto africano atual, o castelhano é seguramente o mais

invisibilizado de todos. Seja no que diz respeito à sua efetiva oficialidade lingüística, ou

mesmo através do trabalho desenvolvido pelos organismos internacionais que atuam no

continente, seja no que tange à sua circulação como língua de comunicação, de ensino e de

literatura nos vários países que adotaram as antigas línguas implantadas na experiência

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colonial e as destituíram, na prática oral e escrita, de sua vertical condição de ―língua do

colonizador‖. Reiterando, pois, a precariedade da situação em que se encontra a presença

lingüística do castellhano na África, o poeta guinéu-equatoriano Ciriaco Bokesa nos lembra

que

el carácter vinculante del idioma y cultura está más que estudiado desde el

ángulo del inglés, del francés, y, en menos grado, del portugués. Pero, lo

español, en tierras africanas y de plumas estrictamente africanas, queda en la

memoria de una cita apenas esbozada. (BOKESA,1996, p.104).

pelo que resulta oportuna uma abordagem acerca de expressões literárias africanas

desenvolvidas nos países de colonização ibérica e, mais especificamente ainda, como se

tentará produzir neste nosso recorte, por aquelas manifestadas em língua castelhana. Vimos

que a circulação da língua espanhola na África está envolvida em diferenciados contextos

culturais, onde por sua vez se alinham registros literários igualmente diversos. Nesse

aspecto em particular encontramos, a título de exemplo, o território constituído pelos

enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla e pelo arquipélago das Canárias, passando pelas áreas

historicamente vinculadas ao universo arábico e berbere, como o Marrocos e o Saara

Ocidental até chegar à expressão escrita de autores francófonos em castelhano, não

esquecendo, contudo, a isolada e bastante peculiar experiência da Guiné Equatorial, com

sua denominada literatura hispano-africana, ou hispano-negro-africana.

Foi nessa região localizada ao redor do golfo da Guiné, na África Ocidental, que

nasceu Tshikaba, referida como a primeira mulher africana a fazer uso literário de uma

língua européia moderna, situação que se assemelha à da afro-brasileira Rosa Egipcíaca,

contemporânea de Tshikaba e considerada por sua vez a primeira escritora negra em língua

portuguesa. O feito paralelo nos parece bastante significativo, sobretudo se considerarmos

historicamente a rara aparição de mulheres no desenvolvimento das letras equato-guineanas

e, mais particularmente ainda, a presença de escritoras negras na literatura brasileira. No

que tange à Guiné Equatorial, embora encontre destaque nas obras inaugurais de Raquel

Ilonbé e María Nsue em diferentes gêneros como o romance, o conto e a poesia a partir da

segunda metade do século XX, em termos genéricos o protagonismo autoral feminino se

configura como tardio na história literária do país, não obstante o relativamente recente

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 7

aparecimento de nomes como Mercedes Jora, María Caridad Riloha, Trinidad Morgades

Besari, Ana Lourdes Sohora, Remei Sipi, Guillermina Mekuy ou Paloma Loribo.

Raquel Ilonbé foi o pseudônimo utilizado por Raquel del Pozo Epita, nascida na

cidade de Corisco, em 1939, e falecida em Madri no ano de 1992. Poeta, prosadora, cantora

e pintora, Ilonbé manteve durante toda a sua trajetória uma grande atividade cultural onde

se destacaram os recitais de música e de poesia, além de exposições de sua obra pictórica.

Filha de pai espanhol e mãe guinéu-equatoriana, Raquel Ilonbé foi levada para a Espanha

com apenas um ano de idade, tendo desenvolvido ali toda a sua formação escolar. Mesmo

não sofrendo diretamente as agruras do exílio, condição determinante para muitos de seus

pares, a escritora pôde desenvolver uma obra permeada pelos elementos dessa origem

híbrida, estabelecendo a partir de sucessivas visitas ao país natal uma temática caracterizada

por influências culturais ibéricas e bantas. O silêncio internacional em torno de sua obra

reflete a reprodução, em termos locais, da situação de marginalidade a que estão relegados

determinados setores da sociedade, nos quais as mulheres em geral, e as escritoras africanas

em particular ocupam, desde Tshikaba, e também frente ao mercado editorial, uma posição

ainda menos confortável do que aquela alcançada pelos colegas do sexo masculino.

Tal como aconteceu com Raquel Ilonbé, inaugurando individualmente não apenas a

primeira edição feminina de poesia guinéu-equatoriana escrita em língua espanhola (Ceiba,

de 1978) como também o primeiro livro de ficção curta dedicado ao público infanto-juvenil

africano hispano (Leyendas Guineanas, de 1981), aparece, ainda na segunda metade do século

XX, María Nsue, a primeira mulher a publicar um romance em seu país, (Ekomo, de 1985).

De forma assemelhada ao que sucedera séculos antes com Tshikaba, deixando para trás,

involuntariamente, a costa da Guiné, outra coincidência aproxima a vida e a obra de Raquel

Ilonbé e María Nsue: nascida em 1945 no seio de uma família pertencente à etnia fang,

ainda na adolescência Nsue emigrou para a Espanha com seus familiares, ali completando

sua formação escolar, embora tenha realizado na Somália os seus estudos superiores. Poeta,

contadora de histórias, contista, romancista, cantora e compositora, María Nsue vivenciaria

desta forma uma experiência pessoal marcada pela divisão entre dois diferentes mundos, o

banto e o hispânico, duas distintas realidades culturais que se foram tornando igualmente

suas, fazendo com que a opressão à mulher e o contexto pós-colonial africano se

tornassem temas recorrentes em sua obra, o que de certa forma a relaciona, em termos

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político-ideológicos, guardadas as devidas especificidades e proporções, com a realidade

que enfrentou Tshikaba em seu tempo.

Ostentando uma biografia controvertida e uma trajetória de vida marcada por

episódios inusitados e fenômenos paranormais, tramita atualmente na Espanha um

processo formal com vistas à beatificação e canonização de Tshikaba. Diversos estudos

publicados se debruçam sobre este tema, alguns deles assinados por madres católicas que

tratam de realçar, na perspectiva hierárquica dos valores cristãos, o perfil espiritual da

escritora africana. Alguns desses estudos, investindo abertamente num discurso que

dicotomiza categorias como branco e negro, alvo e moreno, descrevem passagens de uma

hipotética infância na África, já às vésperas da captura e escravização, quando a Tshikaba é

revelada a profissão de fé que, frente à visão da Virgem Maria, lhe teria sido predestinada:

Tshikaba gostava de caminhar pelo campo entregando-se às suas

meditações. Em um dos seus passeios, sentou-se para descansar um pouco,

perto da nascente de um rio. Ao contemplá-la, perguntava-se: "Quem será

esse Ser desconhecido que colocou aqui esta fonte?". De repente, a menina

levantou os olhos e viu, extasiada, ao lado do manancial, uma Senhora de

pele alva como a neve, carregando nos braços um belíssimo Menino que,

sorrindo, acariciava a cabeça da princesa moreninha. Ali, por fim, o

Divino Infante - o verdadeiro Deus tão almejado - lhe revelou Seus segredos

e Sua Mãe Santíssima lhe falou a respeito de Sua vida. Ali, por fim, o Divino

Infante - o verdadeiro Deus tão almejado - lhe revelou Seus segredos e Sua

Mãe Santíssima lhe falou a respeito de Sua vida. Que terão dito? Tshikaba

preferiu manter silêncio, mas a partir desse encontro sua vida mudou

completamente. Mais tarde, seu irmão Juachipiter lhe disse terem decidido

seus pais que seria ela quem os sucederia no governo, ao que a pequena

respondeu: "Saiba que não irei me casar com ninguém deste mundo. Eu só

quero saber de um Menino branco que conheci! Tshikaba tinha apenas

nove anos de idade. (CEBOLLA, 2008, p. 30) 1

1 Grifos nossos.

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Estereótipos como estes se reproduzem ao longo de toda a narrativa desenvolvida

por Lucía Ordóñez Cebolla, culminando com a descrição da morte de uma Tshikaba

virginal e virtuosa, ainda que vitimada por moléstia incurável, em 6 de dezembro de 1748:

Contam testemunhas de sua morte que, no momento de partir para a

eternidade, sua pele ficou por alguns momentos alva como a neve. Ao

mesmo tempo, seu corpo exalava um excepcional perfume. Assim, a

princesa africana - conhecida por todos com o carinhoso nome de La

Negrita -, após ter escalado na terra os altos cumes da virtude, era elevada

aos píncaros da perfeita união com Deus. (CEBOLLA, 2008, p. 32) 2

Implicações de ordem moral, político-ideológica e étnica são reavaliadas, porém, em

trabalhos publicados por outras investigadoras religiosas. Em estudo biográfico intitulado

Sor Teresa Chikaba: princesa, esclava y monja, de 2004, ao comentar o relato do biógrafo Juan

Carlos Manuel de Paniagua sobre o mesmo episódio envolvendo o falecimento da escritora

africana, María Eugenia Maeso desenvolve comentários que pretendem pautar-se por uma

isenção maior de juízos valorativos e falácias de raciocínio, muito embora revele também, à

força de sua crença e opção religiosa, um resultado que permanece ideologicamente

comprometido:

Dice el biógrafo que al tiempo de fallecer Teresa y después de fallecida,

se observaron algunos prodígios, o hechos misteriosos. Y lo primero que

narra es que, en el momento de expirar y aún después de muerta, su

rostro se puso blanco y permaneció así durante bastante tiempo. Esta

novedad la advirtieron algunas religiosas y el cirujano que había asistido a

la enferma, El cual lo refirió muy asombrado. Pero es tan comedido

Paniagua que, según dice, no ignora lo que ―algunos entendidos‖ han

escrito sobre la mutación de colores en los cadáveres. La observación

le muestra, como siempre, muy prudente, pues no se pueden achacar, sin

más, a causas sobrenaturales los fenómenos que puedan tener uma

explicación natural. Pero el hecho fue percibido como una señal que el

cielo daba de la pureza y santidad de aquella que durante su vida

fue despreciada por el color de su piel. Para Dios no existen blancos

2 Idem.

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ni negros porque Él ve el corazón. Y este mensaje es muy importante,

por eso sin duda lo recoge el biógrafo. (MAESO, 2004, p. 135) 3

No que concerne aos primeiros registros conhecidos da Tshikaba escritora, sabe-se

que tiveram lugar em 1752 na cidade de Salamanca, com a publicação de uma biografia

baseada em manuscritos originais da própria monja: Compendio de la vida ejemplar de la

Venerable Madre Sor Teresa Juliana de Santo Domingo, de autoria do sacerdote Carlos Manuel de

Paniagua. Segundo o professor Baltasar Fra Molinero (1999), este livro era uma hagiografia

a respeito da freira a quem atribuíam milagres e visões místicas, que levitava, curava os

doentes, que conseguira deter as bombas dos inimigos portugueses na Guerra de Sucessão

de príncipios daquele século e a quem a população local apelidara de La Negrita de la

Penitencia, numa referência explícita, em primeiro lugar, à coloração de sua pele, e, em

segundo, ao convento dominicano onde viveu e morreu. Tshikaba, prossegue Fra

Molinero, foi apresentada ao rei Carlos II como um exotismo a mais

porque venía diciendo que era hija de reyes, y traía joyas y otros ornamentos

que la distinguían de los demás. El Rey se la regaló al Marqués de Mancera,

antiguo virrey de México y protector de Sor Juana Inés de la Cruz. A los

veinticuatro años, y tras rechazar planes de matrimonio absolutamente

novelescos, anunció su voluntad de ser monja, lo que logró finalmente en

1704, no sin grandes dificultades debidas al color de su piel. Esta mujer fue

poeta dentro de la tradición literaria conventual. También fue profeta,

mística, obradora de milagrosas curas, luchadora por su libertad e

independencia como mujer, lo que en su caso significó que se las tuvo que

ingeniar para ganar espacios de libertad relativa dentro de una sociedad que

se los negaba todos. Para Chicaba, o Sor Teresa, la vida conventual en un

monasterio de la Orden Tercera de las Dominicas fue la mejor manera de

labrarse una identidad y una ciudadanía. Se aprovechó de dos pilares

ideológicos de la España de finales del siglo XVII: la admiración por la vida

conventual mística, y la veneración cuasi religiosa de las personas de sangre

real. Porque desde que fue arrancada a sus padres y esclavizada, Chicaba

siempre mantuvo ser de sangre real, hija de un rey de la región entonces

llamada "La Mina Baja del Oro" (FRA MOLINERO, 1999, pp. 97-125).

3 Idem.

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 11

Ainda de acordo com as observações de Baltasar Fra Molinero no referido estudo, o

testemunho mais intenso da relação entre Tshikaba e seu Deus se manifesta num poema

que Paniagua incluiu no Compendio sem maiores referências de data e edição. Reproduzido

integralmente no supracitado artigo desse autor, trataremos de transcrevê-lo parcialmente

aqui, em versão castelhana moderna:

Ay, Jesús, dónde te has ido,

que un instante no puedo

verme sin tigo.

Ay Jesús de mi alma,

dónde te has ido,

que parece que no vienes

y te has perdido.

Ay Jesús, qué diré yo,

si os vais con otras,

qué haré yo:

Clamaré, lloraré

hasta ver a Dios,

y si no, y si no,

morir de amor.

Y ya lo digo,

pues estoy tán sola,

que no has venido.

Y si estás con otra,

ya yo lo he visto;

a Marta y María

las has querido.

Ay, Jesús, donde te hallaré yo,

pues tán tonta me tiene

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 12

cuando te tengo:

A Dios, a Dios amor,

A Dios Señor,

A Dios corazón,

no más, no más,

no más.4

Além de seu caráter inaugural, uma vez que, convém recordar, o texto em questão é

dado como o primeiro a ser escrito numa língua européia por uma autora africana em

pleno século XVII, outro dado marcaria especialmente esta composição: através de seus

versos é possível testemunhar não apenas o tom queixoso e enciumado de uma esposa

mística em relação ao marido eleito:

Ay, Jesús,

dónde te has ido,

que un instante no puedo

verme sin tigo (…)

Y si estás con otra,

ya yo lo he visto;

a Marta y María

las has querido. (…)

como também o uso alternado das formas de tratamento que mesclam a informalidade, ou

a intimidade, da segunda pessoal do singular tú:

donde te has ido

que no puedo verme sin tigo (...)

com a formalidade, ou o distanciamento, da segunda pessoa do plural vosotros:

si os vais con otras,

4 Ai, Jesus, para onde foste? que um só instante não posso/ ver-me sem tigo?// Ah Jesus de minha alma, /

para onde foste, / que parece que não vens/ e te perdeste?// Ai, Jesus, que direi eu/ se fordes com outras/ o

que farei eu?// Clamarei, chorarei, até avistar Deus/ e se não, e se não/ morrer de amor.//

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 13

qué haré yo (…),

culminando com o belo jogo final das palavras A Dios / Adiós:

A Dios, a Dios amor

onde o tom de prece que marca o discurso de despedida é realçado por um tom híbrido de

lamentação e êxtase:

A Dios Señor

A Dios corazón,

no más, no más,

no más.

A expressão lírica sob a perspectiva do feminino em Tshikaba nos remete,

inevitavelmente, à poesia de sóror Juana Inés de la Cruz (1648-1695). Conforme assinala a

pesquisadora Beatriz Farrús Antón (2009), durante os séculos XVI e XVII o espaço do

convento passaria a constituir para a mulher algo como um recinto intelectual de tal forma

que, na altura, tanto na Espanha como na América latina, escritura conventual e escritura

feminina se converteriam em sinônimos:

La escritura conventual fue una escritura poderosamente física, pues las

monjas que escribían sus vidas lo hacían como mujeres ―depositarias del

cuerpo‖, como hijas de Eva, imitadoras de Cristo y de María y obligadas

vírgenes. No obstante, ese cuerpo que atraviesa las vidas de monjas se

interroga sobre, sexo, género, deseo…, pero jamás se preocupa por el

vínculo entre etnia y mujer, cuando la jerarquía basada en la piel atravesaba

las relaciones de ―todas‖ las mujeres que habitan el claustro. [...]

Sin embargo, sólo las mujeres blancas podían profesar y obtener los

privilegios de educación y saber de los que gozaban las monjas, pues aunque

en el mundo conventual vivieron indias y negras su función fue la de

esclavas y sirvientas. (ANTÓN, 1009, p. 46).

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Neste sentindo, de acordo com o raciocínio formulado por Beatriz Farrús Antón, a

inventiva de Sóror Teresa Juliana de Santo Domingo, ou La Negrita de la Penitencia, não

sinalizaria tão somente para a condição feminina naquele tempo e espaço, mas avançaria no

sentido de problematizar ainda, enquanto sujeito social, especificidades dessa condição

feminina, sendo ela própria mulher e negra, formulando assim uma mais ampla qualificação

identitária. Ou seja:

a diferencia de sus otras hermanas de convento su escritura no aborda sólo

el problema de ser mujer, sino de ser mujer y además negra, anticipando el

vínculo entre feminismo y postcolonialismo. Además, Chicaba, raptada en

África a los nueve años, no sólo analiza las marcas de subordinación que

supone ser mujer y negra, sino también extranjera, obligada a despojarse de

sus recuerdos y su cultura. (ANTÓN, 2009, p. 46)

Tal como sucedeu com sóror Juana Inés de la Cruz, Tshikaba teve uma trajetória

pessoal, religiosa e literária marcada por muitas dificuldades e rompimentos. Ainda que

ignorada e invisibilizada dentro do universo da criação literária ao longo de tantos anos, sua

escrita de tradição conventual, desenvolvida precisamente durante o período Barroco

espanhol, reproduz o fervor de uma liberdade sublimada no recolhimento. Ao optar pela

clausura religiosa, teria ela encontrado na servidão ao seu Deus e no exercício da escritura o

refúgio contra a própria condição de cativa que lhe fora impingida, transcendendo, desta

forma, os estigmas que lhe acompanhariam por toda a existência na condição de mulher,

negra, africana, estrangeira e escravizada.

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conventual‖. Resumo. In: El cuerpo: objeto y sujeto de las ciencias humanas y sociales.

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2. O CARANGUEJO BARRO (OCO)

Orlando Brandão

(UFRN)

. . . S i l ê n c i o . . .

Como reproduzir em palavras o gosto?

O gosto é uno e as palavras são muitas.

Quanto à música, depois de tocada para

onde ela vai? Música só tem de

concreto o instrumento. Bem atrás do

pensamento tenho um fundo musical.

Mas ainda mais atrás há o coração

batendo. Assim o mais profundo

pensamento é um coração batendo.

(LISPECTOR, Clarice. 1986)

Play:

Faixa 1: Quadro sonoro

―Modernizar o passado é uma evolução musical/ Cadê as notas que estavam aqui?/ Não preciso

delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos‖. Abrem-se as cortinas da cena Mangue beat, na

década de 90 em Recife, tendo como mentor Chico Science, acompanhado do grupo

Nação Zumbi. Aqui o clássico e o popular conectam-se. Rios e mares de estilos musicais

num entre-lugar, no estuário Mangue beat, cujo significado é batida, é mangue. Seguindo a

primeira linha melódica retirada da primeira faixa do CD Da lama ao caos, apresentamos um

prelúdio da estética scienciana que constitui, de modo geral, as intenções que balizam a

ideia da cena ou movimento Mangue beat. Nesse estuário sonoro, as vibrações do mangue

constituem terreno fértil de libertação, de contestação e de afirmação da cena musical

marginalizada, não só recifense, como também norte rio-grandense e brasileira.

Faixa 2: “Tamo aí mandando brasa!”

Da lama de Recife ao caos brasileiro. Nascido da lama tal qual o próprio Recife, o

Manguebeat toma dimensões nacionais. A sua estética, caracterizada pela miscigenação de

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sons, afirma-se em todo Brasil e influencia trabalhos como o do paulista Marcelo D2, que

tenta miscigenar alguns estilos musicais, principalmente o rap e o samba; no mesmo

caldeirão sonoro da cena pós-mangue, tem-se também o exemplo da banda pernambucana

Mombojó; no âmbito norte rio-grandense, a representação fica a cargo do grupo potiguar

Rosa de Pedra, que traz o sincretismo sonoro com batidas do côco de roda, com samba

incorporando o pop ao rock. Em sintonia com essa batida, há ainda bandas que também

bebem na estética ―Mangue‖, tais como Cordel do Fogo Encantado e O Rappa.

Faixa 3: “Modernizar o passado”

Neste trabalho pretendemos utilizar duas perspectivas de música: a barroca e a

scienciana. Para que a digestão de nossas palavras e intenções seja bem sucedida,

buscaremos uma visão mais orgânica dessas artes, visto que esse trabalho tenta dialogar não

apenas com apanhado teórico entre as partes, mas vivenciar a musicalidade, a

―performance‖, o palco, os tambores, as batidas de alfaias, o maracatu, o rock, o popular e

a oralidade em comunhão com o legado do rítmico africano.

Em meio a essa miscelânea cultural, o movimento mangue traz em seu bojo

diálogos primordiais com a estética ―neobarroca‖5, pois tem como característica

fundamental a tensão geralmente provocada pelo jogo de oposição – mudança de tons no

compasso da música nordestina e brasileira que são, dentre muitos aspectos, o contraponto

sonoro, a libertação espacial, o resgate da polifonia de estilos.

Em relação à estética scienciana, o quadro sonoro reflete um estilo musical

afrociberdélico, que nasce na lama e vinga em mangue. Nessa perspectiva, a música

scienciana não constitui algo delimitado, regular; pelo contrário: ela é formada por uma

rede de elementos sincréticos culturais que estabelece uma unidade plural e orgânica. Dizia

Marcelo D2 que Chico Science é um arquiteto da música brasileira. Um exemplo disso

5 Entendemos que Neobarroco é uma transfiguração daquilo que se recolhe da estética musical Barroca.

Sabemos que, no início do século XVII, o estilo barroco foi consequência de mudanças filosóficas e

políticas que conduziram o pensamento renascentista, de base antropocêntrica, e o medievalista, de base

teocêntrica. O barroco vem como uma espécie de mistura entre essas duas bases teocêntrica e

antropocêntrica, provocada pela reforma da Igreja Católica. É na arquitetura que o Barroco toma mais

força, buscando maior liberdade espacial proveniente do excesso de ornamentos. Tendo também bastante

destaque, mas não tanto quanto a arquitetura, a pintura barroca explora a iluminação, o movimento, a

geometria das formas. No Brasil, esse estilo acaba por ser explorado, por volta do século XVII e XVIII,

na literatura por Gregório de Matos e Padre Antônio Vieira; na escultura, pelo Aleijadinho. Além de

demorar a surgir as marcas do barroco no Brasil, nesse período essa estética não ganha muita força, por

questões políticas e econômicas.

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pode ser observado na música Rios, Pontes e Overdrives, do CD Da lama ao caos, em que

observamos batidas de alfaias afro-brasileiras em tom de música sampleada, mistura de

batidas de tambor e pandeiros numa levada da música pop seguindo o ritmo do rap.

Enfim, uma ―impressionante escultura de lama‖ formada pela (de)composição de

uma série de elementos que valorizam a miscigenação de cores sonoras, trazendo uma

carga de ondas multiculturais. Dessa forma, para que essa cena seja constituída, Chico

Science anuncia seu trabalho ao som de um batuque híbrido, levando uma mensagem que

se projeta pela sugestão de uma ―brincadeira levada a sério‖. Há também na mensagem

sonora do Science uma espécie de ecocrítica, que contesta por meio da preservação da

diversidade ambiental. A música do mangue é quase um grito ecológico, em que pode

somar as culturas mais tradicionais com a contemporaneidade globalizada.

Faixa 4: A teor(g)ia musical

Basicamente, a música pode ser segmentada em três partes: melodia, harmonia e ritmo.

Na melodia, realizam-se notas em sequências isoladas, ou seja, nota por nota –

assim como é a fala, palavra por palavra. Uma pessoa não emite duas palavras ao mesmo

tempo. As notas, assim como as palavras, são lidas seguindo uma sequência específica, da

esquerda para a direita, e uma ordem pré-estabelecida, uma por uma. Ou seja, uma linha

melódico-textual é formada com a linguagem verbal, seja ela oral ou escrita.

Assim como se decifram as palavras em uma sequência da esquerda para direita, a

leitura das notas musicais em uma partitura também segue a mesma composição, como se

pode observar no exemplo abaixo citado. Como instrumentos melódicos, têm-se o

berimbau, a flauta. A voz humana pode servir também de exemplo.

No caso da harmonia, as notas são executadas simultaneamente, ou seja, em

acordes. Exemplos de instrumentos harmônicos são: korá, piano, violão, acordeom, etc. Na

partitura, as notas tocadas ao mesmo tempo são representadas da seguinte forma:

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Compondo a última parte, o ritmo, de maneira geral, é o tempo que cada figura

possui. Em cada uma delas há uma espécie de duração do tempo da nota e da pausa.

Temos como exemplo de instrumentos que não executam notas a percussão, que por sua

vez se destacam mais pela variedade de timbres.

O ritmo pode ser também marcado por meio de palavras, como em poemas,

emboladas, rap‘s, etc. A partitura, de modo geral, pode ser expressa como nos exemplos

acima, já que ela tende a se moldar um pouco nas peculiaridades de cada instrumento.

Assim, vão se acrescentando a essas formas iniciais eventuais caracteres que a composição

possa necessitar.

Na linha da composição, língua e música fazem parte da linguagem. Há, porém,

uma distinção entre elas na medida em que a música não produz um significado

―concreto‖. Esse foi um dos grandes motivos que fez compositores românticos, como

Beethoven, explorarem a tênue ‗fronteira‘ entre música e poesia – ainda que se considere

não haver fronteiras entre as artes e, sim, perspectivas da ‗realidade‘.

Faixa 5: Palavras, Sons, Silêncio e Bachelard

A relação entre a palavra e o som é secreta. Guarda um quarto do homem nela; o

resto é compartilhado pelas não-palavras. Talvez por isso seja um prazer, para quem tenta

desvendá-la, encontrar no quarto, seja o que for o objeto encontrado: uma cama ou a

própria fração de si. A palavra é também silêncio, o que torna difícil, às vezes, escutá-la.

Imagine-se diante de uma orquestra em que cada palavra é um instrumento e cada

instrumento tem sua acústica interna, bem como toda palavra tem sua acústica de

semântica. Logo, um texto é toda uma orquestra semântica, cuja linha melódica são as

frases lidas. Ler um parágrafo é tocá-lo. Contudo, às vezes, o que há de mais importante

são as pausas da melodia; são as entre-linhas; são as coisas que não são ditas/tocadas.

Assim é também a voz humana: quando se canta, o corpo se comporta tal qual uma caixa

acústica. Dar palavra a voz é corporificar a nós.

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Faixa 6: Música Barroca

Para contextualizar melhor o período da música barroca, apresentaremos nessa

faixa-capítulo uma breve retrospectiva desse período musical. Nessa faixa, evitaremos o

excesso de informação sobre esse período da música, apresentando somente alguns pontos,

que servirão para ilustrar, como já dito, ou que serão retomados e mesclados nesse artigo.

A música barroca foi legitimada durante o século XVII e permaneceu até metade

do século XVIII, tendo como marco de seu fim a morte de J. S. Bach. É nesse período da

música que surge a formação orquestral se contraponto à do Renascimento, a qual era

constituída por músicos dispostos quase que aleatoriamente, às vezes indo de acordo com

os instrumentos disponíveis. O violino ganha mais espaço e são mais aperfeiçoados. São

consolidadas as formas de composição: Ópera, suítes, aberturas, fugas, concerto grosso,

concerto solo etc.

A forma barroca de composição se caracteriza pelos contrapontos, utilizados

excessivamente. O contraponto diz respeito à entradas na melodia em tempos distintos;

após a primeira, a segunda entra no tempo mais fraco, ou seja, com atraso,

proporcionando, assim, uma espécie de eco de vozes. As composições barrocas são

bastante salteadas. Os saltos são consequências da alternância de intervalos6 distantes.

O sentimento musical encobre o sentido das palavras ao chegar a determinados

momentos da música vocal de forma incompreensiva. Um exemplo dessa incompreensão

está na Bachiana brasileira nº 5, que o compositor Villa-Lobos fez para homenagear o

compositor barroco J.S. Bach, com letra póstuma de Manuel Bandeira.

A relação entre música vocal e instrumental é igualada no que diz respeito a

preocupação do compositor, já que no Renascimento a música instrumental foi tratada

mais como um elemento secundário da música vocal. Isso pode ser observado com a maior

ornamentação tanto na música instrumental como vocal, exigindo mais técnica do músico

executante.

Faixa 7: Hibridismo musical

A estética scienciana é (de)composta a partir da miscigenação de estilos musicais e

culturais, constituindo um quadro sonoro multicolorido, em que predomina essa libertação

6 Intervalo é a distância entre uma nota e outra, tendo como base a escala de dó maior (dó, re, mi, fá, sol,

lá, si, dó). Exemplo: A distância da nota dó até a nota sol é caracterizada por um intervalo de quinta justa

(5ªJ).

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de perspectivas, prezando pelo hibridismo musical e cultural. Nessa estética não há espaço

para unidade; o que se observa é uma rede rizomática conecta. O objeto artístico, nessa

perspectiva estética, adota um caráter ambíguo pela oposição simples/complexo. A palavra,

na cena do Mangue beat, é movência, é lama, é caranguejo. E o grafite sobre essa lama,

sobre esse caranguejo tem um pouco de parede. Poesia do mangue é música que liberta o

oprimido da opressão.

Arquitetos da música brasileira, Chico Science & Nação Zumbi, constroem a

―impressionante escultura de lama‖. Mangue beat, mangue bit, batida elétrica, tambor

eletrônico, hip hop da lama. Poema do devir, da miscigenação de cores e de sons. Estética

dos trovões, estética híbrida do devir. Um exemplo desse devir está no CD Afrociberdelia,

onde temos três versões diferentes para a música Maracatu Atômico: a Atomic version, a Ragga

mix e a Trip hop.

Sem negar ou supervaloriza o passado, o presente ou o futuro, o hibridismo sonoro

da estética mangue deriva da incorporação de várias culturas afro-descendente, atingido o

legado da antropofagia que vai além do nível sonoro. Esse hibridismo chega a níveis

culturais, sociais, políticos, antropológicos, econômicos, onde as relações rizomática

estabelecidas ganham o cunho da canção movida a partir do olhar das minorias. A estética

scienciana combina com uma perspectiva de mundo mais holística voltada, por sua vez,

para uma teia ampla de relações homem/ sociedade/ meio ambiente.

A relação rizomática pertencente a essa estética engloba outros valores, pois pode

ser comparada ao hiperlink das páginas da internet, cuja função é a conexão de uma palavra

com outro site, geralmente conectado com o significado do hiperlink que direcionou outra

palavra conectada a outro texto e assim por diante. Seguindo numa relação interminável em

cadeia, sem se prender a um assunto específico. Dessa forma, a relação de um hiperlink

estabelece uma rede de conexões em que não se sabe onde começa e terminam essas

relações. O rizoma, nesse sentido, é a forma como os constituintes dessa estética se

relacionam; espécie de miscigenação entre culturas distintas, sem enaltecimentos ou

desprezar outros valores. Pensando assim, a base da estética scienciana tem como uma das

características principais a diversidade, multiculturalismo, o hibridismo.

Faixa 8: Algumas canções (“Você samba de que lado/ de que lado você samba”)

A música caminha de lado aos nossos ouvidos e segue o samba do homem-

caranguejo Chico Science: Você samba de que lado? Clássico ou popular? Rio ou mar?

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Caranguejo ou camarão? Aqui no terreno do Mangue beat os opostos se (de)compõem

para formar um todo híbrido. Nossas palavras são caranguejinhos andando de lado ao

movimento do olhar do leitor. Relembramos as palavras de Josué de Castro:

A lama misturada com urina, escremento e outros resíduos que a maré traz,

quando ainda não é caranguejo vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela,

cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fabricando com a

lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras

pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe

as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um

copo e com sua carne feita de filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos

mil cidadãos feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta

como detrito para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez.

(CASTRO, Josué de. 1967; p. 28-29)

Caranguejos são palafitas enfiadas na lama; seus habitantes, os homens-caranguejos,

moram dentro desse oco, fundido entre lama-homem-caranguejo. Podemos nos referir,

dessa forma, a uma espécie de antropofagia scienciana incorporando ritmos de culturas

diversas a estética mangue.

Seguindo essa linha melódico-textual do samba do lado, assimilamos em nossa

perspectiva do Mangue beat algumas características em um víeis ideológico. A seguir

apresentaremos de modo didático algumas das canções do CSNZ numa perspectiva

neobarroca.

Levando-se em conta o pensar de Reginaldo Braga, O ―samba de que lado‖ ganha

uma leitura voltada para ―as diferentes matrizes culturais africanas‖ encontradas no Brasil,

ou seja, leituras amparadas na mitologia dos cultos afro-brasileiros. Como exemplo de que

―lados‖ você samba, temos o Jêje, do atual Benin, o Oió, dos povos Iorubá e a Cabinda e o

Moçambique, do Bantos, esses são alguns dos exemplos de ―lados‖ presentes no Brasil

(BRAGA, 1998, p. 40).

Retomando a música referida no início desse artigo, Monólogo ao pé do ouvido,

observa-se que a linha melódica e rítmica dessa música é quase inexistente, lembrando os

recitativos dos griots em que tínhamos uma rítmica que quase chega ao nível da fala. No

caso da música scienciana, podemos perceber que os dois tipos de recitativos são

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incorporados, de maneira que se pode reparar em alguns casos específicos, como no final

da música Corpo de lama, onde percebemos apenas a música eletrônica acompanhando

enquanto a letra a seguir vai sendo recitada:

Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para

acontecer/ deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente/ deixar

que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes/ como móveis

inofensivos/ para lhe servir quando for preciso/ e nunca lhe causar danos

morais, físicos ou psicológicos.

Na música Rios, pontes e overdrives: Porque no rio tem pato comendo lama? [3x]/ Rios, pontos

e overdrives – impressionantes esculturas de lama/ mangue [5x] [...] a entrada ―orquestral‖ se dá

numa espécie de eco de contraponto, que começa após uma entrada de música sampleada,

em seguida entra um som que lembra um pato e/ou uma sirene. Esse efeito de eco

provocado pelo contraponto pode ser observado na música Coco Dub, do CD Da lama ao

caos, em que foi utilizado um pedal que muda o som da guitarra, o daley, causando também

um efeito de lentidão sonora e de eco.

Não esqueçamos de que essas pequenas comparações foram apresentadas a título

de ilustração. Não queremos aqui fazer uma comparação forçada, visto que o mangue beat,

como movimento e como estética, se contrapõe a uma visão (neo)barroca. Essas

abordagens, a barroca contemporânea ou neobarroca e a scienciana, distingue-se uma da

outro no que diz respeito ao foco. A estética mangue difere da neobarroca, pelo fato

daquela estar voltada para o olhar do menor homem do mundo, nas relações entre o

discurso dos poderes estabelecidos sobre as minorias, prezando pela diversidade cultural.

Faixa última 9: Caranguejo samba de que lado?

O Mangue beat constitui um terreno de ―caos criativo‖ (LIRA, Paula de

Vasconcelos; 2000, p.14), onde a rede de ligações entre os aparentes opostos rio/ mar;

clássico/ popular; cidade/ mangue/ homem, são (de)compostas como rizoma. Observar

uma parte sem antes ter compreensão do todo é a mesma coisa que buscar saber de que

lado samba o caranguejo, quando ele não sabe sambar. Logo, buscar determinar um ―lado‖

para a última faixa sonora do Mangue beat resta perguntar ao público que aqui está: de que

lado você samba, você samba de que lado?

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Como podemos dilatar a consciência para compreensão mais politizada do mundo

é assim que funciona o mundo pensando o social, o cultural, o econômico, o eco-lógico.

Uma parte do sistema não funciona isoladamente, sem que seja criado outro sistema

autônomo e crítico. Observar e analisar um objeto sem antes a compreensão previa do

todo, constitui-se numa análise infértil. Uma planta não pode ser estudada observando-a

longe de seu meio e das suas relações com ele.

Dessa forma, a escolha dessa linha-melódico-textual entre estética barroca e

Mangue beat, tem como intenção trazer aos possíveis leitores/ouvintes uma relação

politizada de mundo, aliada a uma visão sócio-ambiental de pensar as artes e,

consequentemente, as relações com a diversidade social e não com uma unidade cada vez

mais específica. ―Somos todos juntos uma miscigenação, não podemos fugir de nossa

etnia‖.

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Acessado: 10/10/2010, às 9:50.

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BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque jêje-ijexá em Porto Alegre – A Música no Culto aos Orixás.

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3. A MÚSICA DAS PEDRAS OU O DEVANEIO DAS OSTRAS: EM

FRANCIS PONGE, JOÃO CABRAL E MARCELO D2

Tânia-Lima

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN)1

RESUMO

A Travessia da palavra em Francis Ponge, João Cabral e Marcelo D 2 exige vinte palavras,

quase nenhum ranhura, alguns silêncios desprovidos de nomes. Todo verso é ―rizoma‖ de

outros verbos. Cada sílaba vem no ritmo das conchas. Se há poema tem voz. Toda música

é um experimento de linguagem / instrumento. Um poema de Francis Ponge decanta a

menor das frases para falar da musicalidade de um simples moluscos. Se olharmos bem: o

mínimo ganha a amplitude da exatidão geométrica em João Cabral. Em Marcelo D 2, a

música é semicolcheia, fenda de uma elipse em movimento onde a clave de sol toca em

tom eclipse. A primeira impressão que fica ao se atravessar esses 3 poetas é encontrar

―arranjos para assobios‖ frente a uma orquestra chamada invenção. Falar de João Cabral é

compor a ―fala‖ pela movência de um idioma lama que escuta as vozes do rio para dedilhar

o repente. Transfigurador de novas intenções para o poema, Francis Ponge requisita o

ordinário e o inútil como material imprescindível de uma poesia que se movimenta pelo

dom das coisas mínimas e neobarrocas. Em Marcelo D2, a partitura do rap alcança formas

rítmicas híbridas das performances experimentais. Entre o ludo e o lodo, esses poetas

jogam com o verbo até encontrar nos desvios semânticos os erros maduros de uma estética

absurda. O que interessa para os artistas inventores não é tanto a saúde da frase, mas a

doença dela. O erro ―agramático‖ é pérola no mundo da arte barroca. E se o artista é o

que nomeia sentido para a existência de um verso, a música dodecafônica de um poema

viaja no ―entre-espaço‖ do lúdico e do lúcido. Para se ―entranhar‖ melhor esses achados

poéticos, degustaremos a obra teórica de Maurice Blanchot e Albert Camus, E. Glissant,

Gaston Bachelard.

Palavras-chave: música, conchas, barroco, imaginário, Marcelo D2.

1 Gosta de ―con-versar com prosa‖.

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Aquele rio

era como um cão sem plumas.

Não sabia da chuva azul,

da fonte cor-de-rosa,

da água do copo de água,

da água de cântaro,

dos peixes de água

da brisa na água

Sabia dos caranguejos

de lodo e ferrugem.

Sabia da lama

como de uma mucosa.

Devia saber dos polvos.

Sabia seguramente

da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio

jamais se abre aos peixes,

ao brilho,

à inquietação de faca

que há nos peixes.

Jamais se abre em peixes.

[MELO NETO, 1994:105-106].

A imagem cabralina é contra tudo o que se instaura como grandiosamente

espetacular. Em sua figuração, existe uma superação da própria sensibilidade ―na torta

visão de uma alma/ no pleno estertor de criar‖ [MELO NETO, 1994, p. 411]. A

comunicação defendida por esse poeta não retira da palavra o poder de sacudir o leitor

adormecido. Vejamos que João Cabral diz muito com um mínimo de palavra possível. A

economia de léxico, sem abusar da tapeação, faz o leitor reconhecer: ―não a forma

encontrada/ como uma concha, perdida/ nos frouxos areais/ como cabelos‖ [MELO

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NETO, 1994, p. 95], mas também os recortes de um molusco a acenar para o poema em

seu cotidiano irreparável.

Símbolo de silêncio e retiro, o molusco é um ser - quase uma - qualidade, pegando aqui

o bivalve de Francis de Ponge [2000, p. 83]: ―dotado de uma energia possante para se

fechar‖. É chave para fechar portas, mas também é morada do imaginário do mangue.

Verdadeiro santuário do mangue, o molusco habita a tranqüilidade da lama. Para quem

aprecia o refúgio, a prisão, a solidão, o ensimesmar-se na sabedoria, eis a representação fiel

de um monastério: torna-se concha. A ostra sozinha vive encurralando-se: ―Dia de sol/

sem sobra de dúvida/ só o caracol‖, como destaca um verso de Alice Ruiz [2001, p. 88].

Ao viver embrulhado em linha espiralada, o caracol vem pintado de sal. Parece

independente do restante do mundo. Camuflado em pedras, lembra pequeninas estátuas

marinhas. Mas vendo-a atentamente, a fragilidade toma conta de um mundo em grau de

abandono aparente. Cada forma de concha carrega uma geometria específica. O tempo

eterniza-se na sólida lentidão como um leve fragmento espiralado. ―Caramujos sempre

chegam depois. / Representa que estão chegando / da eternidade‖ [BARROS, 2001, p.53].

Os moluscos, de forma fenomenal, constroem suas conchas seguindo as lições de

uma vida transcendente. ―Aliás, para uma concha viva, quantas conchas mortas! Para uma

concha habitada, quantas conchas vazias‖ [BACHELARD, 1974, p.425]. A humanidade

inteira dorme ao descanso de uma concha iluminada pelo sono profundo. Uma só concha

simboliza introspecção e mutação: ―O padre jesuíta Kircher afirma que, nas costas da

Sicília, as conchas de peixe, que se reduziram a pó, renascem e se reproduzem se regarmos

com água salgada esse pó‖ [BACHELARD, 1974, p.430]. O pó conhece a ressurreição a

partir do mar íntimo, a concha se deixa reduzir ao calcário de sal. No úmido salitre das

encostas do mangue, a lesma retorna à forma espiralada de viver num caracol. As conchas

resguardam-se como uma caixinha de segredos. ―Tudo é dialética no ser que sai de uma

concha‖ [BACHELARD 1974, p.426]. Na arqueologia do imaginário, o caracol causa certa

surpresa, pois nunca sabemos se irão sair ou não lá de dentro. Na maioria das vezes,

quando saem do casulo, não aparecem por inteiro, contradizem o que fica guardado na

crosta de calcário. As ostras são peixes que guardam as pedras. As conchas são pedras que

andam. ―Enxuta, a concha guarda o mar/ No seu estojo‖ [HOLANDA, 2000]. O que vem

é metade corpo, metade pedra, o rosto híbrido fica preservado no manguezal. ―De fato, o

ser que sai de suas conchas nos sugere devaneios do ser misto. Não é somente o ser ‗meio

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carne, meio peixe‘. É o ser meio morto, meio vivo e, nos grandes excessos, meio pedra,

meio homem‖ [ibidem].

Vejamos então este poema de Ponge [2000, p.83]:

‗O Molusco‘

O molusco é um ser – quase uma – qualidade. Ele não necessita de vigamento,

mas de um anteparo apenas; algo como a cor no tubo.

Aqui a natureza renuncia à apresentação do plasma em toda a sua forma.

Mostra apenas que lhe está apegada, abrigando-o cuidadosamente num

escrínio cuja face interior é a mais bela.

Não é, pois, um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas.

O molusco é dotado de uma energia possante para se fechar. A bem dizer,

não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta.

A mola tendo secretado a porta. Duas portas ligeiramente côncavas

constituem toda a sua morada.

Primeira e última morada. Reside ali até depois de sua morte.

Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo.

A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à

palavra, - e reciprocamente.

Mas, às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e

nela se fixar no lugar do construtor defunto.

É o caso do paguro.

O que encontramos dessas imagens rústicas é um jogo de analogias estranhas,

obscuras de sentidos. Imagens avessas, desconhecidas, desfiguradas, mas muito próxima da

humanidade: ―A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à

palavra, - e reciprocamente‖. Poderíamos dizer que, interiormente, o ser humano é um ser

acumulável de conchas. Clarice Lispector [1998, p. 29; grifo nosso], no livro ‗Água viva‘, ao

descrever o instante-já, indaga: ―Como é que a ostra nua respira?‖.

João Cabral [1994:77] indaga algo parecido: ―Como um ser vivo/ pode brotar de um

chão mineral?‖ A ostra respira por pequenos filamentos que recebem a água e o oxigênio.

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Em Água viva, a ostra respira pela metamorfose da frase. Uma simples frase respira várias

histórias sobre ostras.7 Numa série de causos populares ora referenciando, ora sugerindo,

os moluscos retiram o véu de pedra e mostram seus corpos misteriosos. Na moral da

história, a natureza se diverte em desdizer a façanha da fábula. A história sobre moluscos se

recria a partir da exceção, dos devaneios, dos desvios, do imaginário. E se acrescentarmos

novos olhares sobre alguns costumes antigos vê-se que o lado noturno do mangue

confunde-se à substância líquida e endurecida das ostras. ―Um biólogo escreve: o caracol se

retrai dissimuladamente em seu quiosque como uma menina contrariada vai chorar no seu

quarto‖ [BACHELARD, 1974, p.434]. Quanto mais se observa o bivalve mais se percebe

que ―foi rolando sobre si mesmo que o caracol fabricou sua própria escada?‖ [ibidem].

Quantas marisqueiras distraem-se fazendo cócegas em um caramujo a fim de levá-lo a

deixar o esconderijo.

Se a ―natureza renuncia à apresentação do plasma em toda sua forma‖, como diz

Francis Ponge, sabemos que, como fósseis, as ostras são testemunhas da natureza, pois

oferecem diferentes formas para simbolizar as partes do corpo da mulher. A garça que

pousa para o mangue simboliza o quanto a lama é delicada. ―Que sendo vista por quem/

conhece o mangue, o confunda/ com as garças que o mangue tem‖ [ACCIOLY, 1983,

p.5]. A nudez da garça é consentida pela alvura. Contudo a cor branca das garças dentro da

lama de pele negra é de uma brancura ostensiva. O branco da garça é calcário; o ‗branco‘

das ostras é um labirinto com esconderijo indiscreto. A nudez das garças remete às

pequenas bacias recheadas de conchas. O mangue é sensual. No poema ‗O mercado a que

os rios‘, descreve a morna cama ou ―até a outra, a empantanada, / do mangue, sensual e

mestiça, / que corrompe o rio na morna/ cama de mulheres-da-vida‖ [MELO NETO,

1994, p.453; grifo nosso].

As formas das conchas se fazem geometricamente inacabadas para forjar o restante

das imagens anfíbias. ―Robinet faz uma descrição da concha Bivalve de Vênus que

representa a vulva de uma mulher‖ [BACHELARD, 1974, p.430]. Na história da

7 Leonardo Da Vinci, na fábula ‗A Ostra e o Caranguejo‘, descreve: ―Uma ostra estava apaixonada pela

Lua. Sempre que a Lua cheia brilhava no céu, ela passava horas olhando-a boquiaberta. Um caranguejo

viu, de seu posto de observação, que durante a Lua-cheia a ostra ficava completamente aberta, e decidiu

comê-la. Na noite seguinte, quando a ostra se abriu, o caranguejo colocou um Pedregulho dentro da

concha. A ostra, imediatamente, tentou fechar-se, porém o pedregulho impediu-a. Isso acontece a

qualquer pessoa que abra a boca para contar seus segredos. Há sempre um que se põe à mercê do ouvinte

indiscreto‖ [http: //www. Institutohypnos.org.br/artigos/ostra.html].

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humanidade, as ostras simbolizam espaços de sensualidade, eroticidades. ―A própria ostra é

identificada como um dos mais poderosos estimulantes do desejo sexual‖

[CAVALCANTE, 2004, p.97]. Mas como copula uma cocha se mora tão sozinha? A pedra

é a parceira do molusco. Na teia voluta, a fêmea devora o macho depois que copula.

Devora a si mesmo. As ostras são as protagonistas de todos os jantares eróticos registrados

na literatura ou no cinema, pegando aqui uma imagem de Isabela Allende.

O ostracismo de um molusco engravida a si mesmo? As conchas têm a forma de

um coração. Como gerar o anonimato de um mundo dentro do muro de pedra, se ―brejos

amanhecem/ amarrados/ de conchas‖ [BARROS, 2001, p.52]. Na pintura renascentista,

com linhas ondulantes, Botticelli [1444-1510] retrata uma concha no quadro ‗Nascimento

de Vênus‘. Talvez a própria ―Afrodite saia de uma concha redonda‖ [BACHELARD, 1974,

p.426]. É possível que os homens dos mangues tenham construído suas moradas imitando

o interior dos moluscos. A geometria das conchas enclausura o corpo para purificar a

morada pétrea. ―Dentro dos caramujos/ há silêncios/ remontados‖, pegando aqui

novamente a fala de Manoel de Barros [2001, p.57].

As formas dos moluscos são tão numerosas que a partir do exame do universo das

conchas, a imaginação é vencida pela imensidão ou pela realidade. As conchas são curvas e

elípticas como as silhuetas espiraladas das mulheres dos mangues. Retêm as conchas uma

infinidade de volutas, dobras, cores e sabores. A concha cauri, também conhecida como

cauril ou caurim, predominante no oceano Índico e Pacífico foi no passado bastante utilizada

como moeda na África e na Ásia.

No ferrolho das conchas, os moluscos estão sempre em casa de mangue seja qual for

os lugares para onde o mar carregue. A casa da concha é extensão da morada do corpo.

―Em outras palavras, a concha do caracol, a casa que cresce na mesma medida de seu

hóspede, é maravilha do universo‖ [BACHELARD, 1974, p. 432]. A casa dos homens é

abrigo para a morada do universo. Ambas as casas fazem parte do corpo do mundo. A

solidão da concha é metáfora da solidão do homem.

Geralmente, os moluscos lançam os corpos babosos para frente, levando o endereço

postal sobre si mesmos. Mas nos rendemos ao lado eremita de Francis Ponge: ―Ele não

necessita de vigamento, mas de um anteparo apenas; algo como a cor no tubo‖. É certo

que alguns moluscos relembram um cone de pedregulhos. Na linha de um poema

pongeano: ―Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo‖. Na pintura que o mar faz do

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mangue há ―um conjunto de oito conchas que parecem um ramo de tulipa‖

[BACHELARD, p. 433].

Das raízes, sobram dos mangues as ostras que constroem seus monturos de pedra

nas sobras de limbo e sal: ―a concha que é resto / de dia de seu dia: / exato, passará pelo

relógio/ como de uma faca a fio‖ [MELO NETO, 1994, p. 89]. O tamanho dos moluscos

é medido pelo relógio do dia. O resto do ser vivo habita a lâmina de pedra que é a caixa das

conchas. A imagem da beleza de uma concha remodela a fôrma geométrica e se imiscui à

da forma elíptica ―de uma faca a fio‖.

No dia aberto, o branco das conchas guarda o sol e os fios de sal que se soltam do

mar. A concha guarda o tempo da eternidade. O trigo vira corpo de pedra. A flor vira petra.

Como bem observa João Cabral [1994, p.95] a concha é: ―a forma atingida/ como a ponta

do novelo/ que a atenção, lenta, / desenrola‖ [MELO NETO, 1994, p.95]. A união do

corpo mole com a crosta dura faz da casa de ostras um cofre, uma janela aberta ou como

diz Ponge: ―A bem dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta. A

mola tendo secretado a porta. Duas portas ligeiramente côncavas constituem toda a sua

morada‖.

Mas em Cabral [1994, p.88] a concha não se desembrulha: ―Ali é uma terra branca/ e

ávida/ como a cal‖. A concha, no mangue, é a casa do sal. ―Sua mudez está assegurada/ se

a flauta seca/ será de mudo cimento/ não será búzio‖ [MELO NETO, 1994,p.89]. ‗A

pedra do sono‘ de porta entreaberta lembra ―uma panela de bruxa‖, como destaca

Bachelard. Muitas conchas são usadas de forma mística. Na ampliação da imagem: uma

concha sugere as grandes pias de batismo; misticamente, resgata o devaneio espiritual nos

jogos de búzios, tarôs e cartomantes. Uma concha emborcada ou convexa é um elemento

carregado de mistério. Há toda uma simbologia para quem joga o poder dos búzios em

sintonia com os astros. Somente na solidão de uma concha atingimos o ensimesmamento.

A palavra ensimesmar, segundo Ortega y Gasset, representa, a princípio, o grau de

sabedoria através da clausura. Um ser ensimesmado leva, na geografia dos povos antigos, a

sabedoria do autoconhecer. A forma de sair de dentro é um desafio de mínimos cuidados

para um sábio molusco. Sair exige o enfrentar o perigo. O mesmo tartarus que envolve o

casco da tartaruga é o que protege as conchas dos raios furiosos. A penumbra da concha é

uma forma de acampar a solidão de um ser em condição de exílio. Até a sombra de uma

concha ou de uma árvore é símbolo de habitação. O lado penumbra das ostras traz ao

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mangue um estado de ostracismo e comunhão. O movimento é sempre em direção ao que

sai de sua carapaça em direção de outros mundos. O ser que habita uma concha muda seu

mundo para acolher o que está dentro. O que está do lado de fora não é mundo, mas

abismo.

A concha curva, geométrica, é casa arquitetada, caverna assombrada. Um mundo

complexo de imagens que retrata o universo estranho dos manguezais. Sem abusar das

metáforas científicas, Ponge não se intimida, estende-se e renova estranhamentos ―Não é

pois um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas‖. Quando o molusco

fenece, o paguro [caranguejo do mar] costuma se fixar na concha moribunda. Francis

Ponge descreve: ―às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e

nela se fixar no lugar do construtor defunto‖. A concha morta torna-se casa vazia habitada

pelo abandono. ―Primeira e última morada. Reside ali depois de sua morte‖. A imagem de

uma concha desocupada religa-se ao ―bernardo-eremita que deixa entrever sua pinça

monstruosa na embocadura do búzio soberbo que o alberga‖ [PONGE, 2000, p.127] no

livro ‗Le parti pris des choses‘.8 Em ‗Notes pour un coquillage’ 9 [anotações para uma

concha], Ponge [2000, p.125] pincela com nitidez: ―Uma concha é uma coisa pequena; mas

posso desmesurá-la, recolocando-a onde a encontro, pousada na vastidão da areia‖.

O bernado-eremita de que fala Ponge é um molusco que não faz sua concha; habita

as conchas abandonadas. Costuma trocar de concha quando sente vontade. O eremita-

bernardo é um divertido amante da brincadeira de esconde-esconde. Nômade pula de

concha em concha até viajar pelo mangue inteiro. O escritor Manoel de Barros, que é

contemporâneo de Francis Ponge e João Cabral, faz do eremita um sábio. No poema ‗O

Livro de Bernardo‘, do livro ‗Tratado geral das grandezas do ínfimo‘, o poeta encontra o

inexplicável: ―Dentro de mim/ eu me eremito/ como os padres do ermo// Meus

caminhos/ a garça / redime‖ [BARROS, 2001, p.51].

Bachelard [1974, p.437] compara bernado-eremita com as aves de arribação, as

espécies de ‗pássaro cuco‘ que, por não saber construir ninhos, põe seus ovos no ninho dos

outros. ―O cuco, dizem, quebra um ovinho no ninho aonde vai pôr o seu, depois de ver

fugir o passarinho que estava chocando. Se põem dois, quebram dois‖. O cuco não

8 ―Quand le seigneur sort de sa demeure il fait certes moins d‘impression que lorsque le bernard-l‘hermite

laisse apercevoir sa monstrueuse pince à l‘embouchure du superbe cornet qui l‘héberge‖. 9 ―Un coquillage est une petite chose, mais je peux la démesurer en la replaçant où je la trouve, posée sur

l‘étendue du sable.‖

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conhece a arte de fazer ninho.

Tudo isso nos traz uma reflexão do próprio Bachelard [1974, p.434]: ―Todas essas

imagens e reflexões correspondem a uma admiração pueril, superficial e dispersa; mas que

uma psicologia da imaginação deve anotar tudo. Os menores interesses preparam os

grandes‖. Com uma simples imagem, marisqueiras recriam suas ostras presas nas marés dos

mangues. Ao redor de uma simples paisagem, o poeta recria e abre caminhos. Marisqueiras

e poetas têm maneiras simples de nos surpreender: carregam suas conchas, vêem a natureza

como uma imensa rede de sonhos.

Bacherlard [1974, p. 424], em ‗A poética do espaço‘, analisa que as conchas são símbolos

tão precisos que os poetas que não sabem desenhar ficam, no ato de escrever, desprovidos

de imagens. Inquieto para registrar a sensualidade da mulher ―febril que habita as ostras‖,

João Cabral, ao falar sobre as ostras, aparece como se estivesse, em sua solidão de

indivíduo, reivindicando o corpo sensual da concha feminina. Na variedade das formas que

todo corpo em ostracismo retém, a natureza anuncia a mulher febril que habita as ostras

em uma gota de erotismo. O poeta mostra a concha pelo que ela tem febril na sensualidade

de uma espiral barroca.

Sabia dos caranguejos

de lodo e ferrugem.

Sabia da lama

como de uma mucosa.

Devia saber dos polvos.

Sabia seguramente

da mulher febril que habita as ostras.

O imaginário neobarroco cabralino está sempre em processo de movência com

outras culturas. Um bom exemplo é a precisão do traço neobarroco. ―A arte do contador

de histórias crioulo é feita de derivas e ao mesmo tempo de acumulações, com a presença

desse lado barroco da frase e do período, essas distorções do discurso onde o que é

inserido funciona como uma respiração natural, essa circularidade da narrativa e essa

incansável repetição do tema‖ [GLISSANT, 1994, p.53].

Quer dançar? quer dançar? então prepara

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A maldição bateu sambou nunca mais pára

E tá na cara a raiz tá cravada no chão

Do tronco ao fruto com a nave mãe fazendo a conexão

(MARCELO D 2)

Em ―Maldição do Samba‖, Marcelo D 2, dá vez à ruptura, quebra da estrutura pelo

que se absurda, pelo que amplia a ponte entre o oral e o escrito. Manifesta-se no discurso

os pequenos sobressaltos, em verdadeiro assalto estético. Troca-se o mangue pelo sangue.

Um tecido musical neobarroco desmedido não pelo sentir, mas pelo pensar que medita e

calcula o ritmo do poema canção. Essa desmedida da lírica vem na contramão da ambição

clássica que segundo Glissant [2005, p.111], é uma desmedida da medida metrificada. O

barroco é a arte do traço sincrético: ―Quando o barroco atravessou os oceanos e chegou à

América Latina, os anjos e as virgens tornaram-se negros, Jesus Cristo tornou-se um índio e

tudo isso rompeu o processo de legitimidade‖ [GLISSANT, 2005, p. 62]. Se a intenção

clássica é o legado da harmonia do corpo em sintonia com o recado trágico sobre a

complexa profundidade da natureza do ser humano, as artes barrocas são formas da

―extensão, da proliferação, da redundância e da repetição‖ [GLISSANT, 2005, p.112].

O grave racha o muro e o agudo quebra a vidraça

Na vida tudo passa não a nada que se faça

Mas rima após rima não é de graça

Show time agora sabe como é que é samba no pé

Samba samba no pé

A percussão é eletrônica a favela na internet

O coco é enlatado e a banana é com chiclete

A maldição do samba

( MARCELO D2)

Em D2, a luta não é pela ―contra-reforma‖; a crítica é pela reforma. Na transgressão

musical, o eixo da razão é o sujeito. No poema, o eixo da ação se dá sobre o objeto. A arte

do rap evoca a metamorfose do sujeito em sujeito e não em objeto. O poeta quer descobrir

as relações secretas entre os homens e as coisas. Se a intenção é o desequilíbrio da linha

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reta, a metáfora se volta para as linhas tortuosas, rechonchudas. Com uma estética irregular

e transgressora de normas, o poema vive das encruzilhadas, está na condição de entre das

vozes sincréticas.

Sobre o poder da criação força nenhuma no mundo interfere

E fabricado em série é o coringa do baralho

Resitência cultural casa do caralho

E passo a passo foi tomando conta de mim

É coisa fina dj com tamborim

(MARCELO D2).

A maldição da palavra é símbolo mais representativo da luta social. Seu baralho vem

de um mundo barroco, um contexto misto cujas denúncias ganham a coringa de um

baralho grotesco em movimento. No livro Boca do inferno, a escritora Miranda [2006, p.

33] descreve: ―Ser poeta é uma maldição de nossa língua‖.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reconhecido por muitos como um texto difícil e hermético, o poeta neobarroco

requer uma disposição aberta do leitor para superar o estranho e entender ao texto. Não

buscar a escrita fácil serviu de refúgio para poetas como Góngora a Quevedo. Em nossos

dias, o neobarroco traz labirintos derrapantes nas dobras da contemporaneidade de

Lezama, Osman Lins, Vallejo, Cortázar, Astúrias. No livro ‗O século das luzes‘ [1985]

Carpentier aponta na forma espiral de seus textos personagens um tanto neobarrocos. O

cubano Estevão, a exemplo, observa meticulosamente a forma espiralada de um caracol:

―Contemplando um caracol – um só - Estevão pensava na presença da Espiral durante

milênios e milênios [...] Olha um caracol. Um só. Te deum‖.

No mosaico de linhas tortas, o céu neobarro expõe-se ao mundo através da aparência

das coisas em cores mestiças com figuras inesperadamente reais e fictícias como

observamos no búzio desigual, retorcido, de ―encrespadas Conchas mil se arreia‖ nas

Prosopopéias de Teixeira [1984, p. 84]. Também na tela-mundo feita de trapos imundos e de

santidades sujas em Caravaggio que, preferindo os personagens marginais, afirmava que as

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ruelas e os becos de gente desprezível são as fontes verdadeiras da arte.

Nas quadras João Cabral, o rio é um personagem pintado com cores das artes

plásticas. O menor detalhe faz diferença para tela crítica. Perder um verso é perder a tela

inteira. Não está à toa a presença de outros pintores na obra de João Cabral, como:

Joaquim Rego Monteiro, Ademir Menezes, Picasso. Algumas imagens são tão inconciliáveis

que a impressão que temos é que a poesia precisa mais de tintas que propriamente de

palavras: ―E que porém de um Mondrians/ num ponto se diferencia: / em que nela essa

vibração, / que era de longe impercebida, / pode abrir mão da cor acessa/ sem que um

Mondrians não vibra, / e vibrar com a textura em branco/ da pele ou da tela, sadia‖

[MELO NETO, 1994, p.295]. O poeta nos lembra um pintor neobarroco a fundir os ideais

medievos com os valores renascentistas. Um poeta que acredita acima tudo na visualidade

do poema. Nesse autor, os olhos não podem faltar para verdadeiramente enxergar; por

outro lado, necessita dos desenganos do ouvido para receber a tintura mestiça do mundo.

Se ―a elipse é barrocamente uma concha‖, como bem observa Affonso Romano de

Sant‘Anna [2000, p, 22-23], a concha, com sua arquitetura irregular, defeituosa, grotesca,

curvilínea, está na origem da palavra Barroca.10 Um tanto conceitual, Francis Ponge traz a

marca neobarroca, ao tratar dos objetos pela dobra, pela fenda, pela falta. Ponge utiliza

processos singularmente racionalizados. É uma arte que necessita das criações técnicas

geometricamente calculadas para alcançar a realidade humana e social sobre o qual enuncia

e denuncia. O poema pongeano sugere-nos uma elipse, carrega no traço uma ausência, uma

falta nos olhos. A elipse é solar e lembra-nos também a astronomia barroca de Kepler que

defendia o sistema solar em uma forma elíptica. Já em João Cabral, uma curva elíptica

acompanha a lama, o mangue, o rio sem plumas. No traço curvilíneo, há curvas elípticas

nas paginas do livro Paisagens com figuras [1955]: ―Podeis decifrar as vilas/ constelação

matemática, / que o sol vai acendendo/ por sobre o verde de mapa‖ [MELO NETO,

1994, p.154].

Curiosamente, a modernidade de Marcelo D2 é um exemplar de uma canção híbrida,

escrita pelo tom da miscelânea neobarroca. ―O Barroco retira o máximo partido,

10

Na época das grandes navegações, portugueses em comércio pela região da Índia

encontram uma cidade próxima aos manguezais chamada de BROAKTI onde se cultivava

um tipo de pérola deformada, feia, irregular. Os portugueses passaram a chamar a cidade

Baroquia. Com o passar do tempo, a cidade virou Barroca, reconhecida pelas suas pérolas

defeituosas. O barroco vem, portanto, dos mangues tortos.

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misturando o mitológico ao descritivo, o alegórico ao realista, o narrativo ao psicológico, o

guerreiro ao pastoral, o solene ao burlesco, o patético ao satírico, o ao idílico ao dramático,

sem falar da mestiçagem da linguagem‖ [COUTINHO, 1976, p. 80]. O tear D2 é montado

pelas quadras de uma fala oral-mestiça, popular-erudita. Como diz Zumthor [2005, p. 80]:

―a poesia oral é trazida pela voz, a voz exerce no meio humano uma função forte, mas não

idêntica em diferentes grupos sociais‖.

A voz do poema é sugestão concreta em uma série de quadras que seguem o

alinhamento das estrofes. Filosofando sobre a representação de um quadrado, os

platônicos pensavam sobre a ―materialização da idéia‖. Nessa forma de pensar: ―as figuras

geométricas são o que a filosofia chama de autênticas metáforas epistemológicas‖

[SANT‘ANNA, 2000, p. 25].

O quadrado representa os elementos concretos e materiais enquanto o círculo

representa mais a essência, o espírito. O quadrado é renascentista enquanto o círculo é

barroco. A figura em círculo é quieta, harmônica, mas o desenho ‗oval‘ é inquieto, tortuoso.

A natureza do poema cabralino nesse sentido é geometria, parece plana, mas é curva e

elíptica, prolixas como as xilogravuras do universo barroco.

O barroco prolixo

com todo os seus tiques,

e o reto, tão correto,

direto ao que insiste,

/são linguagens que rara

mente coexistem

Só as vi na Capela

Dourada do Recife.

[MELO NETO, 1994:394; grifo nosso]

Entre a quadra e a curva, o poema de forma lacunar segue também em círculo, com

repetições diferentes, num fluxo contínuo de imagens esféricas, como se observa no livro

‗Paisagens com figuras‘: ―Aqui o mar é uma montanha/ regular redonda e azul, / mais alta

que os arrecifes/ e os mangues rasos ao sul‖ [MELO NETO, 1994, p.147; grifo nosso].

Essa artimanha, de forma simples, serve mais para sugerir ou enfatizar a vida e suas aspirais

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em situação de queda, mas também em situação de revolta. Na antilírica moderna: ―A

geometria é subvertida e a curva sobressai ostensivamente, serpenteando, engolindo a

linha‖ [SANT‘ANNA, 2000, p.48]. A linguagem é exteriorizada pelo que falta ao redor da

vida re-tirana e o poeta busca incansavelmente subornar as curvas dos manguezais à

disciplina da quadra, das estrofes de quatro versos regulares.

Dentro da quadra da contradição, o poeta repensa valores arraigados. Para Édouard

Glissant [2005, p.62] toda vez que se fala em valores particulares como valores universais

ao mundo é porque se acredita ter alcançado uma profundidade. No barroco, não há

valores universais, porque ―todo e qualquer valor é um valor particular que será colocado

em relação com um outro valor particular e que, conseqüentemente, não existe a

possibilidade de que qualquer valor particular possa legitimamente se considerar ou se

apresentar e se impor como universal‖. Na escrita neobarroca, há uma espécie de extensão,

que renuncia à condição alienante do mundo. O resíduo neobarroco no poema cabralino

resgata a relação com a totalidade-mundo, traz uma crítica profunda às relações de

opressão e desertificação no mangue-urbano; uma extensão que se volta para o humano e o

que há nele de efêmero e aparente.

Registra-se no poema cabralino uma crítica profunda ao lirismo chorão, em seu

individualismo vazio sem saída. Nele, os olhos secaram, as lágrimas emudeceram os olhos

mudos dos poemas. Em sua engenharia barroca, lágrimas não há, saudosismo muito

menos. Hölderlin, ao iniciar sua revolta contra a expressão subjetiva da lírica tradicional,

prevê a ruptura com o eu-lírico do poema. Na modernidade de Cabral, a lírica entra em

crise de existência, faltam caminhos. O poeta precisa abrir como um cego o sentido dos

descaminhos. Em João Cabral, a antilírica entra em questão, a palavra torna-se imprevisível.

E dessa vez quem está em crise é a linguagem. O mundo se torna híbrido. A palavra perde

as certezas. Desconfiamos delas, então: ―Barroco alegre, de cal e ocre/ sem jogos fúnebres

de morte. / Plena luz de um sol-de-cima, / nem diz da morte, que é sua sina/ É como um

altar ao ar livre/ barroco, sem seus jogos tristes‖ [MELO NETO, 1994, p. 665; grifo

nosso].

A poesia sem recado, enfeitada de cor local, com formas gordas, alegóricas, grotescas

em expressão, não interessa muito ao discurso lírico do poema cabralino. Sem esquecermos

que a marca do gênero lírico é a subjetividade, longe do verso de teor transcendental,

Cabral abre as portas de sua antilira para dialogar de forma mista, imparcial, objetiva. Meio

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a tantas vozes, carrega a elipse barroca e suas dobras à maneira dos traços retos de Bernini

e elípticos de Borromini são extensões de rizoma: ―A arquitetura como construir portas,

/de abrir; ou como construir o aberto; / construir, não como ilhar e prender, / nem

construir como fechar secretos; / construir portas abertas, em portas‖ [MELO NETO,

1994, p.345]. Com uma versificação cortada e dicção quebrada como uma onda: ―antes de

ir ao mar/ onde minha fala se perde‖ [MELO NETO, 1994, p.140].

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4. CERVANTES NA CULTURA BRASILEIRA

Prof. Dr. João da Mata Costa

[email protected]

Em 2005, o mundo inteiro comemorou os 400 anos da 1ª ed. do Dom Quixote de la

Mancha, escrito pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes. Livro fundador do romance

moderno, e um rico manancial de cultura popular e das novelas de cavalaria da idade

média. A literatura de cordel está, inicialmente, ligada a Romances e Novelas Cavalaria. Das

novelas citadas por Cervantes, o Bernardo del Carpio fez muito sucesso no Brasil e vinha

como capítulo final do livro Carlos Magno e os 12 pares de França (Cascudo). Devido à

grande influencia que Cervantes tem na cultura popular brasileira, é importante que o Dom

Quixote seja amplamente lido e divulgado em todos os níveis de escolaridade. O Objetivo

desse trabalho é mostrar esse rico manancial de cultura popular e divulgar um dos livros

mais importantes da literatura mundial. Livro que também é um verdadeiro tratado de

provérbios, adágios, anexins, etc.

Palavras- Chaves: Dom Quixote, Cultura Popular, Literatura.

A Espanha do Século de Ouro

No séc. XVI a Espanha vivia o seu apogeu literário, político e cultural. A Espanha

era um país rico e poderoso. Para lá iam todo o ouro e a prata retirada das civilizações

indígenas americanas recém dominadas, e sob o comando de Felipe II (1527-1598) o

império estendia-se pelo Caribe, pelas Américas, e outras partes do continente. Em 1580,

quando Portugal é anexado à Espanha, esse império ainda vive seu apogeu. O primeiro

livro de Cervantes - ―La Galatea‖-, é uma novela pastoril e foi publicado em 1585. Antes,

em 1571, Cervantes participa da memorável batalha de Lepanto contra os Turcos, vencida

pelos Espanhóis em 7 de outubro. Nessa batalha, Cervantes perde o uso da mão esquerda

para ―a glória de la diestra‖. A invencível armada é derrotada pelos ingleses em 1588, e a

Espanha começa o seu ocaso. Cervantes foi preso, junto com o seu irmão Rodrigo, por

piratas berberescos, que os levaram para uma prisão em Argel, onde ficou cativo entre

1575-77. Miguel de Cervantes Saavedra (1547- 1616) tentou fugir várias vezes, e,

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provavelmente, começou a escrever o Quixote durante esse período. A 1ª ed. da primeira

parte do "Dom Quixote" foi publicada em 1605, com o título de ―El Ingenioso Hidalgo

Don Quijote de la Mancha‖, e a segunda parte saiu em 1615, com o título ―El Ingenioso

Caballero Don Quijote de la Mancha‖. Desde então o livro não parou de ser editado e foi

traduzido em todas as línguas do planeta. No ano do IV centenário do famoso livro já

foram publicadas dezenas de edições de luxo, populares, recontadas, em quadrinhos, cordel

e com novas ilustrações. O objetivo deste trabalho é dar uma visão geral da importância do

Quixote para a história da literatura mundial, e da cultura popular em particular.

Consultamos e estudamos em torno de quinhentos livros de /e sobre Quixote e

comentamos alguns aspectos no que diz respeito às ilustrações, edições e recepção do

Quixote no Brasil messes quatro séculos de andanças e encantamentos. Inicialmente

fazemos uma rápida explanação da Espanha do Século de Ouro, onde havia outros grandes

escritores além de Miguel de Cervantes. Grandes cientistas e universidades. Depois

fazemos um levantamento de algumas das principais edições ilustradas do Quixote no

mundo. Comentamos a grande influencia do escritor Miguel de Cervantes em vários

escritores brasileiros e o grande manancial de cultura popular que é o Quixote. Um

caleidoscópio de gêneros literários, paremiologia, contos, fábulas, histórias sem fim, títeres,

contos de ―exemplum‖, etc. Tudo isso, contado com muito humor, estilo e graça sem fim.

Comentamos, também, o Livro Legenda Dourada do século XIII com um belo

―exemplum‖, aproveitado por Cervantes no Dom Quixote.

As Personagens

Numa pequena aldeia da Mancha, província Espanhola, vivia um fidalgo. Homem

de costumes rigorosos e decadente fortuna. Don Quijada, Quesada ou Quejano, nisto

discordam alguns autores que escreveram sobre o caso. Só mais ao final da novela ficamos

sabendo que trata -se de Alonso Quijano. Vivia da exploração de suas propriedades, que

mal lhe rendiam para manter uma simples aparência de abastança. Morava com uma

sobrinha com menos de 20 anos, uma criada quarentona e um criado que cuidava do seu

cavalo e fazia os serviços do campo. Aos 50 anos, magro, alto, de gestos imponentes e uma

certa altivez estudada, era mais conhecido por sua enorme biblioteca, onde empenhava

toda a moeda conseguida nas colheitas ou pela venda sucessiva de suas terras. De tanto ler

foi se distanciando da vida cotidiana e entrando naquele mundo fantástico de

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encantamentos, batalhas com gigantes e amparo a donzelas. Eram seus amigos o padre da

aldeia, o barbeiro e Sansão Carrasco. Para nossa sorte, Quixote sai três vezes de casa. A

primeira, sozinho, e duas outras, acompanhado do bom Sancho Pança. Todo cavaleiro

precisa ter um fiel escudeiro, e os dois:- Dom Quixote e Sancho Pança-, formam um dos

pares mais famosos de toda a literatura. À força de tanto ler-imaginar, foi-se distanciando

da realidade a ponto de já não poder distinguir em que dimensão vivia. Varando noites e

noites à luz de candeeiro, lia e relia e reconstruía, á sua maneira, o desenrolar dos famosos

livros de cavalaria.

Dom Quixote - Um incorrigível apaixonado

O Dom Quixote é um personagem de ficção que se transforma num mito. Um

personagem que encarna alguns dos bens mais preciosos de ser humano: a luta por justiça,

a generosidade e a ética. Apesar de todo o sofrimento e loucura do herói, a saga do

personagem é mostrada por Cervantes com muito humor.Sigmund Freud aprendeu o

espanhol para ler o livro e diz que o leu com muito gozo, explica: Dom Quixote é uma

figura que não possui humor por si mesma, mas produz com toda obstinação um prazer

que podemos qualificar de humorístico, muito embora seu engenho (grifo nosso) esteja

longe do humor. (Freud, obras completas tomo I). Tudo é artifício e traça, diz D. Quixote.

O que é verdade?- Pergunta D. Q. a Sancho Pança, na célebre discussão sobre o

Elmo de Mambrino e ele mesmo responde;

– A mim parece assim, ou assado, e a outro de outra maneira. Uma bacia de

barbeiro vale tanto um Elmo de Mambrino se cumpre a função, se permite a mesma ilusão.

O poeta Heine, num famoso prefácio a uma edição alemã de 1837, ilustrada por

Tony Johannot, lembra os doces momentos da infância passados na companhia do grande

livro e diz que chorou quando leu a obra. ―Na minha sinceridade de criança, levava tudo

muito a sério; quanto mais grotescamente o destino tratasse o pobre herói, mas eu achava

que era preciso ser assim, que o destino de ser ridicularizado fazia parte do heroísmo‖

Alguns estudiosos e leitores do livro identificaram-se mais com um ou outro personagem.

Miguel de Unamuno escreve a ―Vida de Don Quijote y Sancho‖. Franz Kafka, na Muralha

da China, diz que Sancho Pança ler um grande número de livros de Cavalaria e aventuras,

visando afastar o seu demônio, que chamará posteriormente de D. Quixote. Borges, em

diálogos com Osvaldo Ferrari, fala da sua identificação com Alonso Quijano, e escreve um

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belo poema em sua homenagem (Sonha Alonso Quijano in A rosa profunda 1975) J. L.

Borges comenta: ―Alonso Quijano tomou a decisão de ser D. Q., e saiu da sua biblioteca.

Em compensação, eu sou um tímido Alonso Quijano que não saiu da sua biblioteca - ―ou

livraria‖-, como se dizia então‖. E Voltaire, outro apaixonado pelo personagem, dizia: ― Eu,

como o Quixote, invento paixões para exercitar-me‖.

A Livraria do Quixote

O Quixote também é prática da crítica literária. No escrutínio na biblioteca do

protagonista feito pelo cura e o barbeiro (Parte I, 6), Cervantes comenta a bibliografia de

sua obra: as literaturas de Cavalaria, pastoril e épica, em que se formou como leitor e

escritor. Através de seus personagens segue exercendo crítica aos livros de cavalaria (I, 32,

47). O Quixote é uma antologia dos gêneros literários do renascimento e da idade média.

No Quixote estão presentes a novela pastoril (a Diana Enamorada, a Galatéia), a novela

psicológica Italiana, os contos folclóricos, e autobiografia de um soldado (Capitão Cativo,

muito autobiográfico) e a novela picaresca. Alguns livros são salvos da fogueira: Tirant lo

Blanc (―em verdade vos digo em questão de estilo não existe livro melhor‖), Diana

Enamorada (―o melhor entre os semelhantes, que não merecem serem queimados porque

são livros de entendimento sem prejuízo de terceiros‖), Amadis de Gaula (um dos mais

famosos heróis de cavalaria a quem Dom Quixote sempre faz referencia e procura imitar),

El Cid (1140, relato fabuloso da vida de um guerreiro cristão), e outros que acabaram por

―deixar mole os miolos do engenhoso fidalgo‖.

O Engenhoso Fidalgo nas artes e na literatura

A figura do grande cavaleiro inspirou muitos romances, peças de teatro, balés,

óperas, filmes, canções e musicais. O Homem de la Mancha foi eleito o melhor musical dos

Estados Unidos em 1966. A versão brasileira desse musical teve Bibi Ferreira como

Dulcinéia e Paulo Autran como o Quixote. Massenet (1910), compôs a ópera D. Quixote

baseado em um libreto inspirado livremente no grande personagem. Desde o séc. XVII,

com o Purcell, até os dias atuais, muitas composições musicais foram inspiradas no

―Cavaleiro da Triste Figura‖. Manuel de Falla, inspirado no cap. XXVI, 2a parte, compôs o

―El Retablo de Maese Pedro‖. Nas artes plásticas, o Dom Quixote e seus personagens

foram registrados, a seu estilo, em todos os movimentos artísticos. A primeira edição de

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luxo ilustrada do D. Quixote apareceu em Londres, em 1738, com 67 gravuras de

Vanderbank e uma biografia de Cervantes pelo valenciano Gregório Mayans y Siscar. As

370 ilustrações românticas de Gustave Doré (1833- 1883), foram publicadas inicialmente

numa bela edição francesa da L. Hachette (1863). Esses desenhos são copiados na maioria

das edições modernas, muitas vezes em péssimas impressões e reproduções, Ainda no

Romantismo, foi publicada uma ed. em Madrid com 48 litografias coloridas do litógrafo

francês Celestino Nanteuil (1813- 1873). O pintor e aquarelista Honoré Daumier (1808-

1879), dedicou parte da sua obra a ilustrar de forma sublime cenas do Quixote. O pintor,

músico, poeta e jardineiro catalão Apeles Mestres, ilustrou a edição monumental

Barcelonesa de 1879. Em seguida, sairam as belas ilustrações de José Moreno Carbonero

(1898), Daniel Urrabieta Vierge (1901-02), Gus Bofa (1926-27), Salvador Dali (1946),

Picasso (1955), Portinari (21 desenhos a lápis-de-cor - 1956), Vasco Prado (RS), Newton

Navarro, Dorian Gray, Marcelus Bob, Serrâo e muitos outros no Rio Grande do Norte e

no mundo que também concorreram para eternizar o Engenhoso Fidalgo e seu par

inesquecível.

Mesmo quem não conhece a história tem idéia da personagem que povoa a

imaginação coletiva da humanidade. Em um livro recente - ―Don Quijote en Arte y

Pensamiento de occidente‖ dos autores Allen, J. J. e Finch P. Madrid, Cátedra 2004-,

aparece uma ilustração do Quixote, como de autor não identificado. É simplesmente uma

ilustração do Candido Portinari que faz parte da série de 21 desenhos que o pintor realizou

e foi publicado com glosas de Drummond (RJ 1972/73). É incrível que o nosso maior

pintor esteja como autor não identificado num livro de circulação mundial, onde constam

grandes pintores, ilustradores e outros nem tanto. Até quando o Brasil vai ser

desconhecido, e os nossos grandes pintores não vão constar dos catálogos de ilustradores

do célebre personagem?

Dom Quixote Imitado, parodiado e criticado

Desde a sua publicação, há quatro séculos, nunca faltaram imitadores, estudiosos,

analistas e podadores do belo texto castelhano. O romance é mesmo um caleidoscópio que

dá margem a muitas interpretações e leituras. O livro foi adaptado e traduzido nos mais

diferentes idiomas: existe o Quixote para crianças, da família, historia de antigamente e da

carochinha. Não existe um mesmo leitor para cada leitura do livro. Há quem veja no

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Quixote a figura do Cristo, piedoso e bom, ou um El Cid, generoso e nobre, sempre a

socorrer quem precisa e libertar os oprimidos, nunca esquecendo as regras da cavalaria

andante. Para outros, observa Agrippino Grieco em D. Quixote: Madraço e parasita: Na

sátira aos cavaleiros andantes, o autor mostrar-se-ia, antes de Flaubert, atacado pelo mal do

bovarysmo, combatendo aquilo que mais amava interiormente, praticando aquele grande

erro do ―eu‖ sobre si mesmo, que é a essência da filosofia de Jules Gautier. Para Erich

Auerbach, ele não tinha rival na representação da realidade comum como uma festa

contínua. Cervantes continua sendo até hoje o grande mágico do riso e das lágrimas e, o D.

Q., não é louco nem idiota, mas alguém que joga de cavaleiro andante, e jogar é uma

atividade voluntária, ao contrário da loucura e da idiotice, diz Huizinga em Homo Ludens

(1944). Outro grande leitor de Cervantes é Miguel de Unamuno, um dos leitores mais

referidos e comentados. O cavaleiro da triste figura de Unamuno é um homem que busca a

sobrevivência, e cuja loucura é uma cruzada contra a morte. ―Grandiosa era a loucura de D.

Q. , e grandiosa porque grandiosa era a raiz de onde brotava o inextinguível anseio de

sobreviver, fonte das mais extravagantes loucuras, e também dos mais heróicos atos‖. ―La

libertad Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieram los

cielos‖(Dom Quixote II, 58). Não há em toda literatura personagem mais livre.

Concordamos com Dostoievski em diário de um escritor, não existe nada mais profundo e

poderoso que este livro.

Cervantes na Cultura Popular

Do Romanceiro ibérico, a literatura de Cordel do NE recebeu forte influência. A

literatura de cordel esta, inicialmente, ligada a Romances ou novelas de Cavalaria, histórias

de amor, narrativas de guerras, etc. Posteriormente foram incorporados fatos recentes e

acontecimentos Sociais. Na Espanha a literatura de Cordel era chamada de ―Pliegos

Sueltos‖ (Folhas volantes). Na França, literatura de Colportage. Das novelas citadas por

Cervantes, o Bernardo del Carpio fez muito sucesso no Brasil e vinha como capítulo final

do Carlos Magno e os 12 pares de França (Flaviense RJ s/d ). Tenho uma edição em tres

pliegos do séc. XIX, da História Verdadera Del Valiente Bernardo Del Carpio (Madrid

1879). Ainda no séc. XIX eram editados em Pliegos Sueltos, o Orlando Furioso, Los siete

Dabios de Roma, Bastardo de Castilla, Historia de Oliveros de Castilla, El Cid

Campeados,etc). O que mostra a vitalidade e perenidade do gênero de cavalaria na

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Espanha. No séc. XX foram impressos no Brasil muitos folhetos de cordel com as historias

de cavalaria, principalmente O Carlos Magno cuja história alimentava o imaginário das

crianças e estimularia futuros escritores, como aconteceu com José Lins do Rego que com

Carlos Magno aprendeu a temer mais a Deus do que com o catecismo. Que grande coisa

era ser cristão, filho legítimo de Deus, e brigar com os mouros, turcos, os infiéis.(Rego em

Doidinho, 1976). Dom Quixote cita a princesa Megalona na história de Pierres y la Linda

Megalona. No entremez Pedro Urdemallas, esse personagem corresponde ao nosso Pedro

Malazarte. O Retábulo das Maravilhas é inspirada num conto folclórico antigo. Um

enganador profissional que exibia para diversas pessoas uma pintura capaz de identificar os

que fossem bastardos. A propriedade desta pintura era ser invisível apenas para os

bastardos. Os personagens simulam o tempo todo dizendo ver o que não vêem. No ano do

quarto centenário do Quixote (2005), saíram dezenas de edições novas, inclusive em cordel.

O renomado escritor e ilustrador J. Borges (1935) escreveu uma versão do Quixote, com

ilustrações do também pernambucano Jô Oliveira. Começa assim o Quixote de Borges:

Existia uma grande aldeia /igual a outras que havia / e lá tinha um fidalgo / magro,

mas sempre comia /carnes, fritos e lentilhas / ovos e tudo que existia.

...

Lia tanto que ficava / delirando a vida inteira / e via em sua frente /bruxos,

dragão, feiticeira / combates e desafios / que terminavam em asneira.

Dom Quixote luta com os cangaceiros do nordeste e Dulcinéia (sua amada

imaginada) vira Maria Bonita

Lutou com os cangaceiros / perdeu na luta maldita / pensou ser a Dulcinéia /que

seu coração palpita / mas quando levantou / era Maria bonita.

Dom Quixote pede para que lhe passasse p ungüento de Ferrabrás, pois tava todo

ferido da luta com os cangaceiros. Depois D. Quixote luta com o cavaleiro da Branca Lua,

em campina Grande. Nesse episodio, um dos mais comoventes do Quixote, D. Quixote

perde a batalha. O cavaleiro da Branca Lua era o seu amigo Sansão Carrasco, que lutou

para que o Quixote vencido voltasse para casa, como havia sido o trato que é cumprido

rigorosamente pela cavalaria andante. D. Quixote volta para casa e passa ser novamente

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Alonso Quijano. Logo morre, pois sua vida era o pelejar e lutar contra as injustiças do

mundo.

Outra versão cordelizada adaptada do Quixote foi feita pelo Cearense Antônio

Klévisson Viana, poeta popular, cartunista e tesoureiro da Academia Brasileira de Cordel.

As aventuras de D. Quixote em versos de cordel,

Espanha belo pais / foi lá que viveu Miguel / De Cervantes, que escreveu / Com nanquim, pena e

papel / A história de Dom Quixote / Que eu refiz em cordel.

O Autor pergunta quem foi D. Quixote, para concluir que:- Quem ler o livro / tira algumas

boas lições.

Quem foi esse Dom Quixote? / Foi um louco, um sonhador? / visionário ou lunático /em

um mundo enganador? / ou foi alguém que buscava /Pra vida um real valor?

História sem FIM.

Era uma vez um Cabreiro,

Dizia meu pai quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto. Sancho (I,

20) conta uma História sem fim ao D. Q. Trezentas cabras precisam atravessar um rio.

Chamava-se o cabreiro Lopo Ruiz, que se deixou embeiçar por uma pastora Torralva, Só

encontrou uma canoa que cabia uma única cabra. O pescador veio e passou uma cabra,

volveu dali a pouco e passou a Segunda, tornou a vir, tornou a passar. Vossa mercê vá

contando com todo cuidado as cabras que o cabreiro passa, porque se erra não há forma de

reatar a história e acabou-se a história....

- Homem parte do princípio que já passou todas, interrompeu D. Q. com

impaciência.

- Quantas é que passaram até agora?

- Com o diabo querias tu que as contasse?

[...]

Não contou, assim eu não posso passar adiante. Bendito e louvado, estar meu

conto acabado.

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Cascudo (1972), registra uma variante dessa história em Deixe os patos passar.

Chove muito e se formou um rio muito largo. A 1a fila entrou na água, mas havia

correnteza e os bichos custavam e custavam e custavam a vencer, andando.

Em Portugal, Teófilo Braga em Contos Tradicionais de Portugal, registrou uma

versão parecida. Era uma vez um pastor, e andava no mato com duzentos carneiros, veio

uma trovoada, e ele quis recolher o rebanho para o curral, chamou o carneiro e pôs - se a

caminho. Chegou ao pé de um rio muito fundo, onde havia uma ponte, e de cada vez só

podia passar um carneiro.

Dom Quixote no Brasil

No Brasil, a 1a referência explicita ao livro de Cervantes, se encontra em Gregório de

Matos, quando ele descreve num poema ―as festas a cavalo que se fizeram no terreyro em

louvor das onze mil virgens.

[...]

Uma aguilhada por lança

trabalhava a meio trote,

qual o moço de Dom Quixote,

a quem chamam Sancho Pança:

[...]

Num outro poema, Gregório fala: ―nas manhas que ele tem de D. Q.‖.

Em 1705, Antonio José da Silva, o Judeu, escreveu a peça ―A vida do Grande D. Q.

de la Mancha e do gordo Sancho Pança‖. Peça de teatro, ou ópera jocosa que estreou em

1733 no teatro do Bairro alto, em Lisboa, pela companhia do cômico Espanhol Antonio

Rodriguez. [...] Antonio José ver a novela de Cervantes como uma peça cômica, sem

maiores significações filosóficas. Em 1794, sai a 1a tradução do D. Q. para o Português.

Tradução anônima em 6v. Em 1876- 1878 é publicada a vulgata das edições do Quixote em

língua portuguesa: A edição monumental com tradução dos Viscondes de Castilho e de

Azevedo, e prefácio de Pinheiros Chagas que também colaborou na tradução da 2a parte..

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Muitos escritores brasileiros referiram, fizeram citações e poemas em homenagem

ao D. Q. e seus personagens. Machado de Assis faz referencia inúmeras vezes ao livro

D.Q. em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em sua biblioteca particular tinha uma

edição do Quixote em Francês. Num poema da juventude, Machado de Assis, escreve:

[...]

―Cognac! - inspirador de ledos sonhos,

Excitante licor de amor ardente,

Uma tua garrafa e o Dom Quixote,

É passatempo amável!‖

Dom Quixote comparece ao sítio do pica pau amarelo, no D. Q. das crianças de Monteiro

Lobato. O próprio Cervantes aparece nas Minas de Prata de José de Alencar, e o Capitão

Vitorino - um dos personagens de Fogo Morto-, de José Lins do Rego, anda nos campos

com seu cavalo debilitado (tipo o Rocinante do Quixote), sempre a defender seus

princípios, mesmo que com isso tenha que se haver com encrencas. Encontramos a dupla

Quixote-Sancho nas artes e literatura, bem como na vida. Um complementa o outro. No

romance ―O Missionário‖ (1891), de Inglês de Sousa, a dupla formada por Antonio Morais

- Macário (padre e sacristão) tem correspondência nos protagonistas da imortal novela

Cervantina. Quanto ao ensaio Brasileiro, pode-se destacar os trabalhos de Brito Broca,

Josué Montello, Tiago Dantas, Agrippino Grieco, Viana Moog, João Alexandre Barbosa,

Edgar Barbosa, João da Mata e Maria Augusta da Costa Vieira, todos referidos na

bibliografia..

Usos e Costumes

- Pouco Sal na moleira - pouco juízo

- Hojas de Romero (folhas de alecrim). Mastigadas e com um pouco de sal, posto na orelha

sangrenta. Esse ungüento semelhava ao de Ferrabraz que a tudo curava.

- Estava apaixonado até os fígados. O fígado era para o povo a víscera essencial. (Horácio

– Odes)

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- Alho: Não comer alho para que não tomem por odor a vilania.

Na Espanha de Cervantes, o alho era um alimento de pessoas humildes e do campo. No

livro ―O Folklore nos Autos Camoneanos‖ (1950), Cascudo encontra nos Autos de

Camões, a expressão: ―No Alho a Mis Male Culpa‖, comenta: ―O Alho possui uma

literatura universal e vasta. Seu olor afastava os feitiços e também as amorosas o

detestavam‖ Por seu odor forte os namorados evitam.Continua Cascudo, evitava

tempestades e seres sobrenaturais.

Dom Quixote toma a decisão de se fazer pastor. Depois de desencantado com a

vida de cavaleiro errante e ter perdido a batalha com o cavaleiro da Branca Lua, Dom

Quixote resolve ser pastor.

A minha filha Sanchica nos levará comida no aprisco. Mas, esperem lá, a pequena

não é nenhuma peste e há pastores que são mais manhosos do que parecem, e não queria

que fosse buscar lã e voltasse tosquiada, porque tanto no campo como nas cidades andam

amores de companhia com os maus desejos; e nas choças dos pegureiros (guardador de

gados) acontece o mesmo que no palácio dos reis; e, tirada a causa tira- se o efeito, e olhos

que não vêem coração que não suspira, e mais vale salteador que sai a estrada, que

namorado que ajoelha.

- Basta de rifões, Sancho - acudiu D. Q.; um só dos que disseste é suficiente pra nos fazer o

teu pensamento; e muitas vezes te tenho aconselhado que não sejas tão pródigo de

provérbios; mas parece-me que é pregar no deserto. Minha mãe a castigar-me e eu com o

pião às voltas.

- Parece-me, respondeu Sancho, que vossa mercê é como o outro que diz:

Disse a sertã à caldeira, tira-te pra lá que me enfarruscas (Sancho II, 67)

- Está-me a repreender e a aconselhar que não diga rifões e enfia-nos aos pares.

- nota, Sancho - disse D. Quixote.

- que eu trago os rifões a propósito e ajeitam-se ao que digo, como os anéis aos dedos; mas

tu, tanto os puxa pelos cabelos que os arrastas, em vez de os guiar; e, se bem me lembro, já

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de outra vez te disse que os rifões são sentenças breves, tiradas da experiência e das

especulações dos nossos sábios, e os rifões que não vem de molde é mais disparate que

sentença.

Paramiologia

O Dom Quixote é um tratado de paramiologia, onde abundam os rifões, provérbios, frases

proverbiais, anexins e outros tipos de parêmias.

1-As sentenças ou máximas contém uma sabedoria popular

Mas vale bom nome que muita riqueza (Sancho II, 33) Eclesiastes VII, 2

2-Provérbio

Sempre ouvi dizer: Quem canta seus males espanta (I, 22)

Virgílio - Geórgica I, 293 (Cascudo 1952)

3- Adágio

[...] cumprindo-se o adágio de que às vezes paga o justo pelo pecador (I, 7.)

Una golondrina sola não hace verano (I, 13),

Uma andorinha só não faz verão

Uma andorinha só não faz primavera

Parece-me, Sancho, que não há rifão que não seja verdadeiro, porque todos eles contêm

sentenças consagradas pela experiência, mãe de todo o saber, teoriza, diz Dom Quixote. . A

valorização da experiência é uma prática comum no renascimento.

Conselhos de Dom Quixote a Sancho Pança, antes que seu escudeiro fosse governar a ilha

baratária.

-Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm

presunção de ter grandeza.

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-Anda devagar, fala pausadamente, mas não de forma que pareça que te escutas a ti mesmo,

porque toda afetação é má.

A Legenda Áurea, Dom Quixote e o Exemplum

Lenda (de ―legenda‖, do verbo latino ―légere‖= ler)era o nome dado antigamente a

uma narrativa sobre a vida dos santos e mártires. Da Legenda áurea derivam o nome de

todas as outras lendas.

Após um período de mais de 700 anos é lançado no Brasil pela Companhia das

Letras, um dos livros mais importantes do medievo: ―Legenda Áurea‖. Legenda áurea,

legenda dourada, legendæ sanctorum, é obra fundamental da cultura ocidental e seus 178

capítulos constituem a suma hagiográfica latina da idade média. O Brasil caricia de uma

tradução desta obra magna da cultura cristã. A bela edição brasileira foi traduzida do Latim

e comentada por Hilário Franco Júnior, e lançada pela Companhia das Letras. O livro,

escrito no século XIII pelo frei Dominicano Jacopo de Varazze, latinizado para ―Jacobus

de Voragine‖, conta a vida e história dos santos mais conhecidos: São Jorge, São Nicolau,

Santo Antônio, São Francisco, São João Batista e São Sebastião. A edição brasileira traz um

rico material iconográfico e reproduções de belas iluminuras, seguindo outras milhares de

edições. Esse livro, escrito numa linguagem acessível ao grande público, fez muito sucesso

e influenciou definitivamente a arte cristã. É impossível imaginar um quadro de Fra

Angélico, Andrea de Castagno, Pierro della Francesca ou um afresco de Giotto sem a forte

influência desse livro de inspiração divina. Até mesmo as grandes catedrais e seus belos

vitrais têm inspiração no ―Legenda Áurea‖. A morte dos santos pode ser trágica, mas o

demônio, em geral, sai vencido como nas lendas populares do demônio logrado. Na

apresentação à edição Brasileira foi escolhido um belo ―exemplum‖ que está na vida de São

Nicolau: ―De Sancto Nicholao‖ - Nicholaus dicitur a nichos, inde Nicholaus quasi uictoria

populi-, Nicolau vem de nikos, que significa ―vitória‖ e de laos, ‖povo‖, i.e., vitória do

povo.

Um Homem havia tomado de um judeu certa soma de dinheiro, em falta de outra

garantia jurara sobre o altar de São Nicolau que a devolveria assim que pudesse. Muito

tempo depois o judeu reclamou o dinheiro, mas o devedor alegou que já havia pagado

dívida. O Judeu levou-o a juízo e exigiu que afirmasse sob juramento que havia devolvido o

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dinheiro. Como precisasse de apoio para andar, o homem ali compareceu com uma

bengala, que era oca e que ele havia enchido de moedas de ouro. Quando foi prestar

juramento, pediu que o judeu a segurasse e jurou ter restituído mais do que havia recebido.

Após o juramento, reclamou a bengala de volta e o judeu, que não suspeitava da artimanha,

devolveu-a. No caminho de volta para casa, o culpado sentiu um sono repentino,

adormeceu num cruzamento e uma carroça que vinha com velocidade matou-o, quebrou a

bengala, e o ouro que a enchia espalhou-se pelo chão. Avisado, o judeu acorreu ao local e

entendeu a artimanha de que havia sido vítima. Tendo alguém sugerido que pegasse seu

ouro, recusou taxativamente, a não ser que o morto voltasse à vida pelos méritos do bem

aventurado. Nicolau, acrescentando que se tal acontecesse ele receberia o batismo e se

tornaria cristão. incontinenti, o morto ressuscitou e o judeu foi batizado em nome de cristo.

[cap. III]

O ―exemplum‖ medieval é uma historieta edificante, na maioria das vezes para uso

dos pregadores, que gostam de introduzir exempla nos seus discursos para que os ouvintes

assimilem melhor uma lição salutar (Jacques le Goff). O século XIII foi o grande século

dos ―exemplum‖, mas a fórmula continuaria sendo empregada nas narrativas romanescas e

historietas populares. Mais de três séculos após o lançamento do livro Legenda Áurea,

Miguel de Cervantes Saavedra lança, em 1605 - 1615, o ―Dom Quixote de la Mancha. No

Dom Quixote, o ―exemplum‖ de São Nicolau é recontado por Cervantes:

Perante o governador da ilha Baratária, Sancho Pança, apresentam - se dois anciões,

um dos quais trazia uma cana por báculo, e o sem bordão disse:

-

lhe prazer e fazer boa obra, com a condição de os devolvesse quando lhos pedisse.

Passaram-se muitos dias sem que eu reclamasse, pra o não colocar em maior necessidade,

por mos devolver, mais do que a que ele tinha quando eu lhos emprestei. Pareceu-me,

porém, que se descuidava na paga e reclamei- os uma e muitas vezes. Nega-se, contudo, a

pagar-me e diz que nunca lhe emprestei tais dez escudos e, se os emprestei, já os devolveu.

Não tenho testemunhas, nem do pagamento, porque não me pagou. Quereria que vosmecê

o fizesse prestar juramento; se jurar que me pagou, perdôo- lho a divida, perante os

homens e perante Deus.

− Que dizeis a isso, bom velho do báculo? − perguntou Sancho. A isso respondeu o velho:

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− Eu, senhor, confesso que ele mos emprestou. Baixe vosmecê essa vara, pois, como ele

confia em meu juramento, jurarei como os devolvi e paguei, real e verdadeiramente.

Baixou o governador a vara e, entretanto, o velho do báculo entregou a cana a outro velho,

para que a segurasse enquanto jurava, pois o embaraçava muito. Em seguida pôs a mão

sobre a cruz da vara, dizendo ser verdade haverem-lhe emprestado aqueles dez escudos que

lhe reclamavam; ele os havia devolvido, de mão para mão, e era por não se lembrar disso

que de vez em quando voltava o credor a pedi-los. Vendo isso, o grande governador

perguntou ao credor que respondia ao afirmado por seu oponente. Disse ele que, sem

dúvida alguma, seu devedor estava dizendo a verdade, pois o considerava homem de bem e

bom cristão; ele, por certo se esquecera de como e quando os havia recebido. Tornou o

devedor a tomar seu báculo e, baixando a cabeça, saiu. [...].

Sancho esteve pensativo por algum momento. Em seguida, mandou chamarem o

velho do bordão, que já se fora.

− Daí- me, bom homem, esse báculo, pois preciso dele.

− De muita boa - vontade − respondeu o velho. − Eí-lo aqui, senhor..

E colocou a cana na mão. Apanhou-a Sancho e, dando-a ao outro velho, falou:

Ide com Deus que já estás pago.

− Eu, senhor? − redargüiu o velho − Pois esta cana vale dez escudos de ouro?

− Sim − disse o governador. − E se não valer sou o maior asno do mundo. E agora

se verá se tenho ou não miolos para governar todo um reino.

E mandou que, ali, diante de todos se quebrasse e abrisse a cana. Assim se fez, e

dentro dela foram achados dez escudos de ouro. Ficaram todos admirados e tiveram seu

governador por um novo Salomão. (II, XLV).

Os contos e histórias de ―exemplum‖ são milenares. Na idade média, os religiosos e

professores faziam grande uso de contos morais e/ou de exemplos, quando desejavam

transmitir uma mensagem edificante, de astúcia ou agudeza de caráter. Multiplicavam-se as

coleções dos Las Vitæ Patrum, el Valério Máximo, La Gesta Romanorum e Las Disciplinas

Clericales, do judeu convertido Pedro Afonso (séc. XIII). Na divisão e seleção de contos

perpetuada por Cascudo, os contos de exemplos aparecem na sua divisão, onde estão

incluídos os célebres Joãozinho e Maria, o Pequeno Polegar e as Aventuras de Pedro

Malazarte. Todos os povos possuem os seus contos de exemplos, e é interessante observar

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como esses contos são transplantados de região para região, de país para país, mantendo as

suas matrizes originais que remontam à origem homem imaginando e sonhando. São

variações sem fim de um mesmo tema, sempre com o mesmo objetivo: o EXEMPLUM.

Conclusões

Nos seus quatros séculos de existência, o livro Dom Quixote de la Mancha do

escrito espanhol Miguel de Cervantes continua atualíssimo e sendo editado nos quatro

cantos do mundo. No ano do seu 4º centenário foram editadas dezenas de edições nas mais

diferentes formas. Edições de Luxo, populares e em cordel. O Dom Quixote está muito

presente na cultura brasileira e é uma fonte inesgotável de gêneros literários, ditos

populares, romances de cavalaria, novelas e contos populares que remontam à idade média,

e estão muito presentes na cultura popular o oral do nordeste brasileiro. Câmara Cascudo

fez a ponte entre o medievo e a cultura popular brasileira, através do Quixote. A

vulgarização desse livro-fundador é o que pretende esse trabalho que vem sendo feito

acompanhado de palestras, exposições, comemorações do dia mundial do livro em

homenagem a Cervantes e o seu livro eterno. A leitura desse livro delicioso é fundamental

para criar o gosto pela leitura, aguçar a imaginação e despertar na juventude a busca por

justiça, solidariedade e um mundo mais ético e amigo. É isso que mostra o Quixote e era

isso que pretendíamos nesse trabalho que é para toda vida, Continuamos estudando o

Quixote, uma fonte inesgotável de prazer, exemplos e encantamentos.

Bibliografia

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Sessão de Comunicação: AS ARTES VISUAIS BARROCAS (pintura, arquitetura,

escultura e demais expressões de artes)

Coordenadores: Prof. Dr. Everardo Araújo Ramos

Prof. Dr. Francisco Zaragoza Zaldívar

1. O POEMA COMO ESPAÇO CRÍTICO DA ARTE O BARROCO

PRODUZIDO POR“JOSEPHA AYALA FIGUEIRA”NA POESIA DE “FIAMA

HASSE PAIS BRANDÃO”11

José Antônio Rodrigues Júnior

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

RESUMO

A metalinguagem se apresenta como um dos principais aspectos característicos da arte

contemporânea. A poesia, na qualidade de objeto artístico não poderia ausentar-se de

pensar-se enquantoArte. Arte que tematizando Arte reflete acerca de si, passando a

engendrar novas possibilidades estéticas, abrindo margens para a crítica de arte no espaço

literário propriamente dito. Nosso trabalho se pauta em apresentar uma leitura da pintura

de Josepha de Óbidos (Sevilha, Fevereiro de 1630 — Óbidos, 22 de Julho de 1684), a partir

do poema ―Óbidos (Josepha)‖ (1971) de FiamaHasse Pais Brandão (Lisboa, 1938 -2007).

PALAVRAS-CHAVE

Metalinguagem. Poesia. Artes. Fiama. Josepha.

1. Metalinguagem, Arte e Literatura

―A excelência de um crítico se medenão por sua argumentação, mas

pela qualidade de sua escolha‖

(Ezra Pound)

11Trabalho produzido sob orientação do prof. Márcio de Lima Dantas. Área de estudos em literatura

portuguesa (UFRN).

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―um poema não é mera expressão de emoções e experiências

individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando,

exatamente em virtude da especificação de seu tomar-forma estético,

adquirem participação no universal‖

(T. Adorno)

Sempre é uma tarefa difícil discorrer acerca da arte. Desde Platão há uma busca do

Ocidente que visa encontrar uma natureza ou essência da Arte. Há séculos existe uma

obsessão por parte dos que se debruçam sobre as artes visando definir as semelhançasdos

objetos artísticos entre si, autentificando uma natureza da obra de arte.

Nesse sentido, para os Antigos ―o belo‖, o bom e o verdadeiro formavam uma

unidade com a obra de arte, caracterizando sua ―virtuosis‖ artistica. A essência do belo

seria alcançada identificando-a com o bom, tendo em conta os valores morais. Na Idade

Média surgiu a intenção de estudar a estética independente de outros ramos filosóficos.

Mas é em Hegel, após Kant, que temos a grande mudança nas concepções da

―morte da arte‖ enquanto Arte que se relaciona com a natureza ou que respeitava algum

equilíbrio entre razão e religiosidade.

O que acontece é que, para o filósofo, essa concepção da arte do belo iniciada por

Platão perde seu valor para o homem moderno. Consequentemente, a arte que nasce é uma

arte reflexiva em si, passando a, nela e por-si, engendrar ideias sobre ―si‖ com mais

recorrência, no retorno do espírito em sua autoconsciência.

Sendo assim, a filosofia de Hegel se apresenta como um sistema que se constitui na

―história‖. O espírito percorre a trajetória onde ele se revela nas suas diferentesformas,

desde as mais elementares e ordinárias até as mais complexase sofisticadas. A razão se lança

no mundo e se reconhece nas coisas quelhe pertencem; depois, retorna a si e se põe diante

da sua necessidade e liberdade.

O espírito é algo que é inexoravelmente diferente e oposto aosfenômenos sensíveis,

e só por astúcia é que vai até eles. Nesse sentido, aarte é um momento de alteridade da

―Idéia‖, quando ela tem de ser reconhecidanas obras estéticas.

No trabalho de regresso do espírito a si mesmo é que se coloca a arte: ela é o

primeiro momento do retorno e por issotambém se situa numa posição ―inferior‖ à religião

e à filosofia.

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 65

Note-se que, na estética de Hegel,o ―EspíritoAbsoluto‖ deve necessariamente

percorrer todo o caminho até a suaautoconsciência, então, a arte deve ainda ser superada. É

nesta acepção quepodemos dizer que a arte morre, embora o espírito devesse passar

irremediavelmentepor ela.

A arte é superada em Hegel, porque há no seu sistema uma ―teleologia‖ histórica

que aponta para a reconciliação dos contrários na Idéia. O Espíritoretorna a si e no

seuvoltar-se a arte, aparece como um momento histórico necessário. A arte ainda é a

expressão do corte, da cisão espírito-natureza,liberdade-necessidade, conteúdo-forma,

sujeito-predicado, consciênciarealidade.

A reconciliação é a unidade do espírito consigo mesmo, na suaeternidade, infinitude

e universalidade, independente de qualquer elementosensível e, na medida em que a arte se

encontra constitutivamente presa àsensibilidade, ela não pode realizar a conciliação.

Em outras palavras: as obras de arte, enquanto algo finito e transitório não podem

encerrar oinfinito e o eterno; enquanto algo natural e mundano, não podem deixar

transparecer na sua plenitudeo plano do divino e do sagrado. A arte constitui aindaum

momento negativo do espírito, aquilo que precisa ser superado.

Evidentemente, as diversas maneiras de se conceber as obras de arte, passaram, ao

longo do tempo, a possuir características tão contrárias entre si que, ao final das contas, a

posição platônica de definir a arte associada a beleza tornou-se obsoleta. Temos exemplos

disso, desde a modernidade, com o Barroco arte de Goya (1746-1828), as descidas aos

infernos de Blake (1757-1827), colimando nos traços deBacom(1909-1992) e todas as

vanguardas de ―ismos‖ no início do século XX.

Portanto, surgiram, juntamente com o caminhar do Chronosmomentos outros em

que a relação de reprodução do real em consonância à beleza do mundonão poderiam mais

ter o mesmo valor estético que na antiguidade. Descobriu-se a natureza medonha, ou

grotesca, do humano. Machado de Assis exemplifica bem quando diz que ―era grotesca tal

máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma

vez o cruel‖ (ASSIS: 1998, pg 102)

Bem como o retorno do espirito artístico na arte quando esta fala de si.

A epígrafe no início do texto foi a melhor maneira que encontrei para iniciar esse

texto que foi modestamente construído como objetivo de tratar de uma das temáticas que

acompanharam a história do homem ocidental há bastante tempo: a arte que tematiza arte.

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Vestígios históricos.

Como sabemos a literatura não poderia ter ficado de fora dessas transformações do

modus operandi da apresentação artística através da escrita. Com efeito, no percurso do

tempo de vida da literatura Ocidental, cujos registros primordiais de que se tem noticia são

encontrados nas obras homéricas.

Hoje em dia, nem de perto, os escritores produzem textos literários à maneira

homérica; mas cabe ressaltar que sua relevância para o estado da arte atual é inconteste.

O texto metalinguístico passa a revelar o processo de produção daobra. Nessa

medida, o expediente metalinguístico irá propiciar um perfil mais ativo de leitor,

contrapondo-se ao atocontemplativo da obra de arte, em que o público, passivo, dela não

―participava‖. Portanto, a arte quando metalinguística se volta para seu objeto concebendo-

o na qualidade de uma realdade designos, constiuindo-se em ―linguagem objeto‖.

Vejamos o que diz Fiama em seu prefácio do livro que retiramos para a apreciação

de livro a poeta sugere:

―[...] uma obra tão opaca que rejeite leituras.

11. ou seja que sendo a crítica um privilégio que coloque a crítica ao seu serviço,

12. sendo a crítica um privilégio e não uma missão pública, sequer universitária [...]

levando a crítica a desistir de proclamar a abertura da obra [...]

49. nada deve, pois, impedir que se conheça a implícitra coesão hermética que nelas existe

pela síntese pessoal do pensamento e das práticas do autor.‖ (BRANDÂO: 1976,

pg.11).

De fato ―Homenagemàliteratura‖ (1976), por se tratar de um livro explicitamente

metalinguístico, a poeta sugere para a poética do hermetismo não a abertura, mas um

fechamento, a crítica pela crítica, ela deixa claro seu objetivo. Eis o ato incitador e

instigador para a romper definitivamente com o posicionamento do leitor passivo. Mas,

isso não é nehuma novidade. Ao longo da história da literatura Ocidental temos as

propostas poéticas de poetas para uma poética ideal da arte da escritura.

A lírica de Sapho (612 a. C.) não poderia dizer de forma mais antiga (nunca

antiquada) e atual esse desejo que a arte tem em se mostrar refletindo-se no seguinte

fragmento da ―Ode à Afrodite:―[...] é maleável a mente.Eros faz nosso pensamento revirar-

se‖o que conduz a Peter Green com relação a ―filha imortal de Afrodite‖ afirmar:

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―El sacramento de lapoesía, ladulceago- hainia de lacreación. Palabras aladas,

lashabíallamado Homero, y hasta ahorala frase no había significado nada para

mi‖(GREEN: 1971, pg. 107).

Horácio completaem sua ―Ode à Baco‖

―Crede-me, ó pósteros: eu vi Baco, que, sôbre, uma rocha

distante, ensinava canções; e as Ninfas e os Sátiros, com os

seus pés de cabra, de ouvidos atentos, aprendiam‖ (HORÁCIO: 1962, pg. 16).

Ora são relações da poesia ainda incitada pelos deuses, musas etc. Note-se que

mesmo no renascimento, momento histórico posterior que, no entanto, procura ver

renascida essa cultura, temoso seguinte nas palavras de Camões (1524-1580):

―E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando,

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.‖ (CAMÕES: 1986, pg 7)

Reine Maria Rilke (1875-1926) com o ―Torso arcaico de Apolo‖ discute as

possibilidades do entendimento artístico por meio dos vestígios residuais do que nos legara

a cultura helênica. Segue o soneto traduzido por Manuel Bandeira:

―Não sabemos como era a cabeça, que falta,

de pupilas amadurecidas. Porém

o torso arde ainda como um candelabro e tem,

só que meio apagada, a luz do olhar, que salta e brilha. Se não fosse assim, a

curva rara

do peito não deslumbraria, nem achar

caminho poderia um sorriso e baixar

da anca suave ao centro onde o sexo se alteara. Não fosse assim, seria essa estátua

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uma mera

pedra, um desfigurado mármore, e nem já

resplandecera mais como pele de fera. Seus limites não transporia desmedida como

uma estrela; pois ali ponto não há

que não te mire. Força é mudares de vida.‖12

―Críticamente‖ inundado de ―meta-poiesis‖, temos em Fernando Pessoa uma das mais

―belas‖ definições do fazer poético em ―Autopsicografia‖:

―O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.‖(PESSOA: 1986, pg. 211)

Já Carlos Drummond de Andrade no trecho de―Segredo‖ (2002) nos comunica que

―A poesia é incomunicável/ Fique torto no seu canto..‖, mais ainda, quando encontra-se à ―Procura

da Poesia‖ (2002):

―Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica‖ (ANDRADE:

2002, pg. 341).

Com isso intentamos, mais precisamente, chamar atenção para o fato de que houve,

sobretudo, a partir do século XX. Ou seja, o esvaziamento das temáticas tradicionais que

procuravam discorrer acerca dos sentimentos, ações e vivências meterias do humano.

12

―Archaischer Torso Apollos‖ (Rainer Maria Rilke) .Tradução de Manuel Bandeira: 1979.

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Assim sendo, a metalinguagem foi um dos fenômenos de produção artística que se tornou

mais recorrente na esfera artística, pois, de outra parte,uma outra linha de força da poesia

moderna é silenciar-se. Emily Dickinson (1830-1886) em um poema conhecido por ―1681‖

revela que

―A palavra é um sintoma do afeto

E o silêncio é

A comunicação mais perfeita

Que ninguém pode ouvir.‖(2006, pg. 19)

Esta poeta, já no século retrasado,vislumbrava o valor do silêncio como palavra

poética perfeita e inalcançável.

Mas o nosso escopo é voltar-se para a metalinguagem.

Nesse momento, a metalinguagem na arte, aponta para o que Walter Benjamin

(1892-1940) denominou de ―a perda da aura!‖ do artista, uma vezque põe em cheque o

mito da criação, o chamado dom especial que o artista teria recebido de uma

entidadesobrenatural para conceber o objeto estético, igualmente Fiama como vimos

anteriormente.

De maneira geral, apoeta portuguesa Fiama Hasse Pais Brandão (1938 – 2007)

porta na totalidade de sua obra uma ritualística tributária para/com a arte, fazendo da

tradição literária seu pretexto e pre-texto para a autenticidade artística, tornando o ―Poema

como espaço crítico da arte‖ característica essencial em toda sua poética.

O poema que apreciaremos (―Óbidos (Josepha)‖)está contido no livro

―HOMENAGEMÀLITERATURA‖ (1976), títulos que por si só exemplificam, para um

bom observador tudo o que foi dito anteriormente.

2. Fiama, o poema “Óbidos (Josepha)” e Josepha Ayala

Fiama Hasse Pais Brandão nasceu e morreu em Lisboa (15.08.1938 –

19.01.2007)(en)talhou sua escritura através da literatura, dramaturgia, ensaios e traduções.

Estudou Filologia germânica na faculdade de Letras da Universiade de Lisboa.

Estreou com o livro ―Em cada pedra um vôo imóvel‖ (1957). Sua consciência

literária era tão clara que, esse seu livro de estréia foi retirado de sua antologia poética

―Obra Breve‖ (1991). A poeta escolhe despertar na litertura igualmente como os serves

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vivos, com a predominâcia do elemento água. ―Morfísmo‖ (1961) é o primeiro livro da

antologia ―Obra Breve‖ (1991). Sintamos então o teor de sua poesia então nascida em

germe aquático ―Grafia 1‖:

―Água significa ave

se

a sílaba é uma pedra álgida

sobre o equilibrio dos olhos

se

as palavras são densas de sangue

e despem objetos

se

o tamanho deste vento é um triângulo na água

o tamanho da ave é um rio demorado

onde

as mãos derrubam arestas

a palavra principia‖ (BRANDÃO: 1991, pg. 9)

Com a plaquete ―Morfismo‖ (1961), sequencia de poemas que tratam

ostensivamente de uma evolção da ―palavra d‘agua‖, ou mesmo se mostra como autilização

da metáfora da água em confluência com a profundidade e plurissignificação que a

linguagem verbal pode conter em seus aspectos mais propícios ao nascimento da palavra.

A poesia de Fiama Hasse se carateriza porse mostrar com uma crítica poética para

poetas, visto que ao considerarmos o hermetismo de seus escritos que dificilmente não

causaria em uma leitura à primeira vista algum estranhamento no leitor.

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Este precisa ter no seu repertório de leituras grandes vínculos com a tradição

literária para uma compreesão mais susbstancial de sua poesia.A poesia de Fiama se

caracteriza pela forte presença de um labutar apolíneo, assim sendo, se aproxima mais de

uma ideia de ―arquitextura‖literária.

Com a arquitetura constroe-se a materialização de uma ideia. À luz, ou clareza na

escolha dos conteúdos, bem como, das formas, a poeta se afasta da ingênuidade da

criação―ao sol seco‖ sob a luz de Apolo, (como em Óbidos).

Vejamos com suas próprias palavras extraídas de um poema sem título

do―HOMENAGEMÀLITERATURA‖ (1976)

―[...]O texto não é mais eterno

do que o contexto.

Uma álea de cimento, uma figura nova

entre as áleas de terra.

(BRANDÃO: 1976, pg. 14)

Religa.

Em sua homenagem a literatura a poeta, autora de ―Barcas Novas‖ (1967), fixa-se

na tradição (enquanto conteúdo) para fugir desta na forma. Encimentandono nível

narrativo-discursivo o alicerce reflexivo de sua poética. Atentaremos para o poema

―Obidos (Josepha)‖ que se inicia com um ―eu-lirico‖ que descreve uma postura em relação

so ver/sentir-se frente a um quadro de Josefa de Óbidos:

―Estou sobre o saibro como uma múlher mínima na curva do capitel. A meu lado vejo o

fundo negro das figuras da Adoração suspendidas sobre si. O que conheço da liturgia e

dos temas naturais com que identifiquei a pintura, os grandes tufos de lírios, dálias sem a

luz da variação, apenas com o vinco e o contorno negro da morte como arte condigna para

os seres vivos.‖ (BRANDÂO: 1976, pg. 55)

A autora começa com a descrição do cenário exterior e interior; torre e sino;

abismo a frente, e atrás: ―árvores tridentes da ramagem simples‖ em que é iluminada ―ao

sol seco‖; abaixo argila com mistura de areia e pebras como ―mulher mínima na curva do

capitel‖. Ao lado ―fundo negro das figuras da Adoração suspendidas sobre si‖Note-se que

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não exitou ao som do sino porque exitaria perante o ―Abismo‖. Esse ―Abismo‖ é a

distancia entre a obra literária e o processo de assimilação do leitor como veremos dizer

com seus versos próprios.

Neste quarto dístico (o poema é quase todo composto em dísticos) ―da variação,

apenas com o vinco e o contorno negro / da morte como arte condigna para os seres vivos.‖ são os versos

de ligação, o limiar entre a descrição e a reflexão da obra de arte de Obidos-Josefa com

relação a ao grande paradoxo-motivo de diversas obras barrocas: morte vs vida. vejamos o

que se segue:

―[...] Assim é magnifico todo aquele que seguir a descrição do retrato fictício das suas

faces. O abismo é todo o espaço que mediar entre que não vacila e o modelo de imagens

constantemente

perdidas no passado‖ (op. cit. pg. 56).

Após essa elucidação do ―ver-sentir‖ a obra de arte a autora segue um desfecho reflexivo:

―[...]Pensar que o penasmento de josepha e a severidade para com a beleza

dos frutos, das flores e das figuras humanas é o domínio da vida sobre a ideia da morte. O

sulco do pincel escurona mão de rosa diante da paisagem clara com as faixas de fumo que

coincide com a minha descrição da vida matinal.‖(Idem)

O poema o tempo todo está se relacionando com os paradoxos barrocos,

sobretudo nas semanticidades das palavras ―morte‖ e ―vida‖ que se apresentam contrárias

entre si, ―O sulco do pincel escuro sobre a mão da rosa. Ora, a poeta contrasta sua obra de

acordo com a pitura de Josepha a medida em que no apresentando-a. (para visualização dos

quadros de Josepha consultar Anexo 2, o poema na integra se encontra no anexo 1).

Cabegrafar aqui também que a cidade de Óbidos ainda é uma das mais medievais,

pois preservou muito dessa arquitetura, porém, os interiores das casas assumem o que há

de mais sofisticado. Isto é, Óbidos é uma cidade em que se conserva muito da tradição do

medievo no que cerca arquitetura e arte, mas que não deixa de apresetar facetas da

modernidade principalmente na decoração de interiores.

Essa cidade é uma vilaportuguesa no distrito de Leiria, região Centro e sub-região

do Oeste fazendo parte da Região de Turismo do Oeste, com cerca de 3 100 habitantes.

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É sede de um município que subdividido em 9 freguesias. O município é limitado a

nordeste e leste pelo município das Caldas da Rainha, a sul pelo Bombarral, a sudoeste pela

Lourinhã, a oeste por Peniche e a noroeste tem costa no oceano Atlântico.

Ao contrário do que se possa pensar, o nome Óbidos não deriva da parónimaóbitos, mas

sim do termo latino oppidum, significando «cidadela», «cidade fortificada». É famosa pelaimensa

muralha.

A cidade de Óbidos foi tomada dos Mouros em 1148, e recebido a primeira carta

de foral em 1195, sob o reinado de D. Sancho I. Óbidos fez parte do dote de inúmeras

rainhas de Portugal, designadamente Urraca de Castela (esposa de D. Afonso II), Rainha

Santa Isabel (esposa de D. Dinis), Filipa de Lencastre (esposa de D. João I), Leonor de

Aragão (esposa de D. Duarte), Leonor de Portugal (esposa de D. João II), entre outras. Em

1527, viviam 161 habitantes na vila, o que corresponderia a cerca de 1/10 da população do

município.

A área amuralhada era já nessa época idêntica à actual, ou seja, 14,5 ha. Foi de

Óbidos que nasceu o concelho das Caldas da Rainha, anteriormente chamado de Caldasde

Óbidos (a mudança do determinativo ficou a dever-se às temporadas que aí passou a rainha

D. Leonor). A 16 de Fevereiro de 2007, o castelo da cidade recebeu o diploma de candidata

como uma das sete maravilhas de Portugal

Josefa de Ayala Figueira (Sevilha, Fevereiro de 1630 — Óbidos, 22 de Julho de

1684), foi uma pintora nascida na Espanha que viveu e produziu em Portugal. Seu ái era,

também pintor Baltazar Gomes Figueira (????), natural de Óbidos, com obra em Évora,

que fora trabalhar em Sevilha, onde veio a ter por esposa a andaluziciensse D. Catarina de

Ayala Camacho Cabrera Romero.

Quando tinha apenas quatro anos de idade (ano de1634,), os pais de Josefa

regressam a Portugal, onde vieram a se estabelecer na ―Quinta da Chapeleira‖, em Óbidos.

A Josefa menina se erradica, manifestando desde cedo, vocação para a pintura e para a

gravura em metal, lâminas de cobre e prata, em uma técnica denoinadapontinho.Foi

especialista na pintura de flores, frutas e objectos inanimados.

A influência exercida pelo barrocotornou-na uma artista com interesses

diversificados, tendo se dedicado, além da pintura, à estampa, à gravura, à modelagem do

barro, ao desenho de figurinos de tecidos, de acessórios vários e a arranjos florais.Por volta

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de1653, gravou a edição dos Estatutos de Coimbra. Trabalhou em seguida como pintora da

Igreja católica.

Na Capela do Noviciado do Convento de Varatojo havia uma ―Nossa Senhora das

Dores‖ e, no coro, um ―Menino Jesus‖, quadros que lhe são atribuídos. Outrossim, havia

quadros seus no Mosteiro de Alcobaça, no Mosteiro da Batalha, em Vale Bem-Feito no

Mosteiro de São Jerónimo, em Évora, onde existe um Cordeiro engrinaldado de flores, que

passa por ser um dos seus melhores trabalhos (ver anexo 2).

Como retratista da Família Real Portuguesa, destacam-se os seus retratos da rainha

D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, esposa de D. Pedro II, e de sua filha, a princesa D.

Isabel, que foi noiva de Vítor Amadeu, duque de Sabóia, a quem esse retrato foi enviado.

A Academia de Belas Artes também possui um quadro de Josefa de Óbidos.Tendo

vivido quase sempre na Quinta da Capeleira, a sua reputação que granjeou de tal ordem que

muitos dos que iam tomar banhos às ―Caldas da Rainha‖, se desviavam de seu caminho,

para irem a Óbidos cumprimentá-la. Josefa de Obdos, assim ficou conhecida a distinta

pintora que viveu no século XVII, e se chamava Josefa Ayala Figueira, visto que Josefa de

Óbidos é um nome refúgio, nem toda a sua pintura é de Ayala... É do ritual diário do

claustro conventual que nasce a arte de Josefa.

As gravuras em metal que fazia, segundo constava, e que diziam ser excelentes,

estavam em casa de José Gomes de Avelar, parente ainda de Josefa de Óbidos. A ilustre

artista viveu quase sempre na quinta da Capeleira, mas havia alcançado tanta reputação que

muitas das pessoas que iam tornar banhos às Caldas da Rainha, se afastavam do seu

caminho, para irem a Óbidos cumprimentá-la. Josefa de Óbidos faleceu a 22 de Julho de

1684.

3. Considerações finais

É notável a incursão feminina no mundo das artes antes do século XX. Através de

FiamaHassea pintora de Óbidos volta a tomar cor. Acredito que não por acaso. Existe uma

―coincidência‖ que é praticamente impossível de passar despercebida.

Como foi dito a poucas linhas, a pintora classificada no Barroco português, bem

como nossa poeta da segunda metade do século XX, escolheram passar o resto da vida em

uma quinta. Fiama em Carcavelos e Josefa em Capeleira. Ambas são possuidoras de uma

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dicção particular, nota-se claramente em suas obras o labor limer e uma a liturgia da

expressão artística, ou seja, a vida ritualizada e vivenciada na linguagem.

A pintura de Josefa é essencialmente uma arte devocional e para a entendermos é

necessário conhecer desde Zurbarán até á gravura Holandesa (um católico, a outra, até

protestante) e claro, a pintura de seu pai, Baltazar Gomes Figueira, esse excelente mas

ignoto pintor português.

Não é simples, nem muito ortodoxa, porém contém sentido profundo e extenso.

As imagens da Natureza, o seu melhor, são vistas através de pontos simbólicos do ritmo

natural e sensual das estações do ano, são janelas sobre o seu significado transcendente é ―é

o domínio da vida sobre a ideia da morte. O sulco dopincel escuro/na mão de rosa‖.Suas pinturas são

revelações do divino na natureza e no labor do homem, são sacrifícios litúrgicos, oblações,

em sentido lato e no sentido restrito, Bíblico. Josefa não distingue, entre a pintura religiosa

e a natureza morta, esta é, sempre, pintura religiosa.

Os elementos da sua pintura fazem parte dessa cadeia áurea que se eleva do simples

barro, a matéria, passando pelas plantas e flores, aos animais, ao homem, aos anjos, até ao

puro espírito. Assim, os objetos pintados, profanos ou naturais, são de facto místicos -

―morte como arte condigna para os seres vivos.

FiamaHasse utiliza-se do espaço em branco para através da mancha tipográfica

fazer metalinguagem usando o ―Poema como espaço crítico da arte‖, e incurtindonovoas

discursos po(éticos) de utilização desse espaço do poema-crítica-objeto-artisticos.A poeta

atinge um nível de consciência literária que o concede o espaço de ser uma das mais fortes

vozes da literatura portuguesa contemporânea.

4. Referências

ALCÉE – SAPHO. Trad.Reinach, T. etPuech, A. Paris: Les Belles Letres, 1935.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa: volume único: Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 2002.

ARISTOTELES; HORÁCIO; LONGINO. Poética Clássica. Trad. Jaime Bruna. São

Paulo: Cultrix, 1992.

BRANDÃO, FiamaHasse Pais. HOMENÁGEMÀLITERATURA. Porto:Limiar,1976.

_________. Obra Breve. Editorial teorema: Lisboa, 1991.

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 76

CAMÕES, Luis de. Os Lusiadas. 2 ed. Porto: Porto Ed, 1986.

GREEN, P. Sapho de Lesbos. Guadalajara: Fondo de cultura econômica, 1971.

HEGEL, G. W. F. Estética. A Idéia e o Ideal. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os

Pensadores, 1974.

LIRA, José. Emily Dickinson: e a poética da estrangeirização. Recife: Programa de

Pós-Graduação em Letras da UFPE, 2006.

MOISES, Massaud. A literatura portuguesa. 36 ed. São Paulo: Cultrix, 2009.

PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

RILKE, Rainer Maria. Torso arcaico de Apolo in: BANDEIRA, Manuel. Poema só para

Jaime Ovalle. Edição de Pedro Moacir Maia. [Salvador]; Santiago [Chile]: Dinamene, 1979.

SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Coimbra: Liv Almedina, 1997.

Catálogo da Exposição Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa: Instituto

Português do Património Cultural, 1991

SOBRAL (2004), Luís de Moura, Catálogo da Exposição A Pintura Portuguesa no

século XVII. Lisboa: Instituto Português de Museus, Museu Nacional de Arte Antiga,

2004.

Catálogo da Exposição A Natureza Morta nas colecções Alentejanas. Évora:

Instituto Português de Museus, Museu de Évora, 1999.

catalogue coordinators: Maria de LurdesSimõesCarvalho, Jordana Pomeroy; texts,

VitorSerrão et al.MC/National Museum of Women in The Arts, Washington,1997

Crowning Glory: Images of the Virgin in the Arts of Portugal.

Mesa redonda: Josefad'Óbidos of Portugal: Love, Mysticism and the Art of Memory", by

Prof. Barbara von Barghahn of George Washington University, Washington DC 1999.

5. ANEXO 1: POEMA

Óbidos (Josepha)

Se não hesitei quando pela torre ecoou o sino

porque vou hesitar perante o abismo

entre espaldares de árvores tridentes da ramagem simples

ao sol seco.

Estou sobre o saibro como uma múlher mínima na curva do capitel.

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A meu lado

vejo o fundo negro das figuras da Adoração suspendidas

sobre si. O que conheço da liturgia

e dos temas naturais com que identifiquei a pintura,

os grandes tufos de lírios, dálias sem a luz

da variação, apenascom o vinco e o contorno negro

da morte como arte condigna para os seres vivos.

Assim é magnifico todo aquele que seguir a descrição do retrato fictício

das suas faces. O abismo é todo o espaço que mediar

entre que não vacila e o modelo de imagens constantemente

perdidas no passado. Pensar que o penasmento de josepha e a severidade

para com a beleza dos frutos, das flores e das figuras humanas

é o domínio da vida sobre a ideia da morte. O sulco do pincel escuro

na mão de rosa

diante da paisagem clara com as faixas de fumo

que coincide com a minha descrição da vida matinal.

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6. ANEXO 2: IMAGENS

FIGURA 1

(Santa Maria Madalena, 1650, óleo sobre cobre, 22,8x18,4, Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra)

FIGURA 2

(Transverberação de Santa Teresa, c.1672, óleo sobre tela, 180x140 cm, Igreja Matriz de Cascais)

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FIGURA 3

(Visão de S. João da Cruz, 1673, óleo sobre tela, 16,5x131,5, Santa Casa da Misericórdia de Figueiró dos

Vinhos)

FIGURA 4

(Cordeiro Pascal, c.1660-1670, óleo sobre tela, 88x116 cm, Museu Regional de Évora)

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FIGURA 5

(O Mês de Março, 1668)

FIGURA 6

(Natureza morta com doces e barros, 1676, óleo sobre tela, 80x60, Biblioteca Municipal Braancamp Freire,

Santarém)

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FIGURA 7

(Anunciação, 1676, óleo sobre tela, 107x88, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa)

FIGURA 8

(Calvário, 1679, óleo sobre madeira, 160x174, Santa Casa da Misericórdia de Peniche)

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2. ASPECTOS DA CULTURA ARTÍSTICA DO BARROCO NA PARAÍBA

COLONIAL

Michael Douglas dos Santos Nóbrega13

Orientadora: Dra. Carla Mary S. Oliveira14

RESUMO: O Barroco é caracterizado por suas diversas peculiaridades. Ele foi um estilo

que marcou a cultura européia entre fins do século XVI e começos do século XVIII. Sua

formação esteve ligada diretamente às mudanças ocorridas na conjuntura da Europa da

Contra Reforma e ao imaginário daí decorrente, que influenciou inclusive as mentalidades

de artesãos, artífices e artistas. É possível afirmar que, numa interpretação mais ampliada, o

Barroco foi um dos elementos fulcrais no que se refere à produção e caracterização da

cultura brasileira a partir do século XVII, devendo ele ser compreendido não apenas como

um estilo artístico e literário, mas sim como uma cultura da época. Nosso trabalho tem por

objetivo perceber, através da leitura dos principais teóricos que se aprofundaram sobre o

estilo, tanto na Europa como no Brasil, e no levantamento e análise de algumas imagens de

igrejas presentes na Paraíba, como se deu a construção do estilo nestes espaços da América

portuguesa, ressaltando as características e especificidades próprias desse processo,

comparando-os brevemente com o de outras regiões do Brasil.

PALAVRAS CHAVE: Barroco, História da Arte, Brasil Colônia, Paraíba.

A arte colonial brasileira é marcada pela relevante influência da arte européia. E essa

arte é caracterizada pelo seu poder político, religioso e social. O Barroco é o estilo

predominante nesse período e seu estudo é bastante importante, pois através de sua análise,

poderemos compreender os ramos da colonização luso no Brasil, além de entender a

sociedade colonial brasileira.

O Barroco é um estilo que surge na Europa, mais precisamente na Itália, em um

13 Graduando em História pela UFPB, pesquisador UFPB/PIBIC/CNPq 14 Professora do DH/UFPB.

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período de constantes mudanças. Diversos fatores que ocorreram paulatinamente nos

séculos XVI e XVII modificaram a sociedade européia com o surgimento de novos

modelos políticos, econômicos, sociais e religiosos. A sociedade que estava em processo

transitório e com a formação do regime capitalista passou a possuir novas características e

novos padrões sociais. As ciências e as artes acompanharam essa transição e sua

experimentação mostra claramente essa ligação. É nesse contexto de mudança e transição

que surge o Barroco.

O termo ―Barroco‖, em si, é uma categoria equívoca. Sua compreensão de forma

positiva foi iniciada por Heinrich Wölfflin somente em 1888. Wölfflin foi um importante

historiador da arte e seus estudos foram importantíssimos para a valorização do estilo

barroco. Ele age com uma concepção inovadora do barroco, delimitando categorias e

analisando especificidades do estilo. Os estudos de Wölfflin são até hoje referência básica

para se entender o barroco. Ele trouxe uma comparação do barroco se opondo ao

Renascimento. Para a história da arte nada há de mais natural do que traçar paralelos entre

movimentos culturais e períodos estilísticos. O Barroco, opondo-se ao Renascimento, vem

oferecer o agitado, o mutável (WÖLFFLIN, 1989): assim, a relação do indivíduo com o

mundo modificou-se.

Segundo Wölfflin, o ponto de vista que deve explicar o novo sentimento de forma

barroco é o psicológico, que considera o estilo arquitetônico como expressão da época. O

que constitui a época é tido como base (essência) para a imaginação formal do artista. A

arquitetura participa nessa animação de modo inconsciente da matéria porque ela é a

expressão de uma época. Um estilo só pode nascer onde existe uma intensa necessidade de

determinada forma de existência corporal. A técnica jamais cria um estilo. As formas

produzidas não podem ser opostas ao sentido formal, só podendo sobrepor quando se

submetem ao gosto formal preexistente. Deve se observar a expressão viva do sentimento

popular nas artes decorativas. Nas imagens decorativas o sentimento da forma se satisfaz

imediatamente e sem empecilhos, é ao nível da decoração que sempre aparecem os novos

estilos.

Os escritos de Heinrich Wölfflin são vistos como um apanhado de ideais

norteadores da história do barroco. Ele mostra todas as leis arquitetônicas e sociais para

expressar como se deu o surgimento do barroco, suas características principais, suas

definições e particularidades. Vinte e sete anos após o lançamento de Renascença e Barroco,

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Wölfflin lança Conceitos Fundamentais de História da Arte (1915), onde desenvolve de forma

mais profunda as ideias presentes na primeira obra.

Através de cinco pares de conceitos, ele traz uma análise das características barrocas: linear

X pictórico; plano X profundidade; forma fechada X forma aberta; pluralidade X unidade e clareza X

obscuridade (WÖLFFLIN, 2006, p. 15-16). As definições de Wölfflin ajudam a compreender,

em geral, apenas as manifestações externas das obras artísticas, o que se constitui numa

lacuna da sua obra.

Outra característica essencial do barroco é sua maleabilidade. Ele é um estilo que se

fundi a sociedade local produzindo uma identidade. Essa construção de identidade se da

através do processo formador de uma consciência estética, esse processo se dá lentamente

a partir de criações e mudanças no imaginário de determinada população. As primeiras

mudanças ocorrem em manifestações orais ou visuais. (THEODORO, 1997). Por isso

muitas vezes o patrimônio da nossa identidade está embutido numa serie de manifestações

visuais e orais. O conceito de barroco envolve toda essa capacidade de dissimulação, de

dissolução dos limites entre real e imaginário e também de trânsito entre a idéia de sujeito e

coletividade.

O Barroco europeu chega ao Brasil com suas características essências e se funde

com elementos locais formando o barroco no Brasil. No período colonial do século XVII,

vão começar a surgir novas percepções que irão constituir a nossa gênese. O processo

formador de uma consciência estética surge paulatinamente a parir de criações e inovações

no imaginário de determinada população. O Barroco possibilita uma análise do processo de

formação estilística. As primeiras mudanças ocorrem em manifestações orais ou visuais. Os

autores desse processo devem ser analisados com um olhar próprio da época. Visto que,

eles estavam preocupados com o presente e não passavam por crises de identidade, pois

estavam próximos de um ideal de percepção coletivista. (THEODORO, 1997).

O esforço que o barroco caracteriza é sempre o de construção. O barroco é um

fenômeno histórico determinado tanto no tempo, como no espaço. Ele tinha por objetivo

fundar a sua identidade, daí as suas diferenças locais, visto que, em várias localidades esse

processo de construção de identidade foi diferenciado, pois o homem barroco construía as

suas raízes com o material disponível, apropriando-se do que fosse necessário para sua

constituição.

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O barroco representa um esforço no sentido de criar. O surgimento do novo é

impulsionado pelo que restou dos significados ancestrais. No barroco há uma alteração dos

princípios formais e institui-se uma nova ordem de significações importantes para todos os

envolvidos. Daí então no período colonial do século XVII vai começar a surgir percepções

novas que irão se constituir na nossa gênese. O barroco possibilita uma observação do

processo de formação estilística. O homem barroco construía as suas raízes com o material

disponível, apropriando-se do que fosse necessário para sua constituição.

As manifestações do barroco, no Brasil, tiveram objetivos distintos em sua maioria,

conforme se pode observar no discurso de Oliveira (1999):

Desse modo, entendemos que as igrejas barrocas do Centro-Sul do país,

mesmo aquelas de menor fausto, são monumentos não para a catequese,

mas sim para a glorificação da Fé, para a celebração dos ritos católicos por

uma população já católica, fosse ela abastada ou miserável. No Nordeste,

ao contrário, ao apelo visual do Barroco deveria se agregar o elemento

catequizador, com o objetivo primordial de evangelizar os silvícolas infiéis

pelo olhar, pelos símbolos visuais do cristianismo e, em última instância,

pela agregação de elementos locais como estratégia de aproximação e

assimilação simbólica. (Oliveira, 1999, p. 121-122).

No Nordeste o barroco se ligou à consolidação da ocupação territorial. O Barroco

existente na Paraíba é um referencial para se entender como se deu o processo de conquista

e colonização do litoral nordestino. O Barroco além de ser uma categoria estética também

representa as características específicas de uma identidade local. O aparecimento das

formas barrocas dá-se em épocas diferentes em cada país (LINDINGER, 1978, p. 3).

O Barroco na Paraíba possui especificidades que poderemos tratar como

particulares. Vale ressaltar que os estudos sobre o barroco paraibano só são possíveis

graças ao trabalho de Carla Mary Oliveira que toma o barroco paraibano como objeto de

estudo e contribui grandemente para sua análise. O Barroco paraibano nos leva a busca das

sutilezas, que nos proporcionam a conhecer aspectos do imaginário colonial presente no

estado. As fontes e o poderio

Barroco na Paraíba podem ser vistos como uma forte demonstração política da

época. Um fato interessante é que a maioria dos artífices paraibanos é anônima. Não havia

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uma preocupação com a identificação do artífice. Essa total ausência dos registros das

construções nos instiga.

O fato é que, caso saibamos os nomes dos artesãos, artífices e artistas que

então aqui atuaram, pouco vai modificar a situação de suas obras dentro

do universo Barroco, visto que, ao contrário de seus congêneres europeus,

tais homens não tinham uma posição social influente ou próxima às cortes.

Pode-se dizer que seu status era semelhante ao desfrutado pelos artesãos da

Idade Média: o que importava era o objetivo da obra e não aquele que a

fazia, e por isso mesmo, o registro de seu nome não era considerado

importante. (Oliveira, 1999, p. 71)

Desde os primórdios a Igreja Católica tinha nas obras de arte, através de símbolos e

alegorias, um modo de doutrinação dos fiéis, visto que muitos eram leigos. A obra de arte

pode expressar diversas situações do imaginário social de determinada localidade. A

interpretação da obra de arte é usada como método para a compreensão desse imaginário.

Nesses diferentes processos do uso do barroco as mais diversas características identitárias

foram construídas e expressadas. Conforme podemos observar nos estudos de Erwin

Panofsky (1955):

Nem sempre a obra de arte é criada com o propósito exclusivo de ser

apreciada, ou, para usar uma expressão mais acadêmica, de ser

experimentada esteticamente. (PANOFSKY, 2009, p. 30).

É nesse sentido que fundamentamos nossa análise acerca da cultura artística do

Barroco na Paraíba. Sendo essa a tarefa de um historiador da arte. O Barroco só se tornou

possível graças ao caráter migratório e globalizador, que se constitui de elementos fundidos.

Essa caracterização do barroco, além de sua grande cultura artística, constitui na época um

elemento alegórico, que tem por objetivo expressar algo além daquilo que se pode ver.

Com isso, podemos deduzir que as obras do barroco possuem signos e caracteres que

expressam, de certo modo, situações que são frutos da realidade social na qual o artífice e o

comprador da obra estão inseridos.

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Os signos e estruturas do homem são registros porque, ou antes na

medida em que, expressam idéias separadas dos, no entanto, realizadas

pelos, processos de assinalamento e construção. Estes registros têm

portanto a qualidade de emergir da corrente do tempo, e é precisamente

neste sentido que são estudados pelo humanista. Este é,

fundamentalmente, um historiador. (PANOFSKY, 2009, p. 24).

Diversos símbolos alegóricos são encontrados presentes na arquitetura religiosa da

Paraíba. Inicialmente temos símbolos que revelam o poder lusitano (figura 1) que se fazia

presente nas terras paraibanas (OLIVEIRA, 1999).

Fig. 115 - Cruz de Malta no portal central da

galilé, Igreja de São Francisco

(João Pessoa - PB)

A imagem acima, da cruz de malta, pode deixar claro a presença política ligada à

religião através da arte era uma realidade. Desse modo, podemos reafirmar a questão acerca

da produção intencional da obra de arte, que é feita para causar do que se pode ver. É

preciso atenção para um identificação acerca da idéia central da obra de arte, e um dos

mecanismos que facilita essa identificação é o método de Erwin Panofsky, que constitui

numa análise iconográfica e iconológica da obra. Segundo Omar Calabrese (1987) ―a

iconologia vai desde á identificação do tema a uma leitura da obra, que liga à complexidade

da cultura e das atitudes mentais da época‖.

15 Todas as figuras apresentadas nesse artigo foram retiradas da Dissertação O barroco na Paraíba: arte,

religião e conquista, de Carla Mary S. Oliveira.

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A história da arte passa a ser vista como a história dos fatos estilísticos, concebidos

como símbolos que exprimem os mais diversos processos de abstração da mente humana.

Um historiador de arte, portanto, é um humanista cujo ―material primário‖

consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte.

(PANOFSKY, 2009, p. 30).

A iconologia é bastante importante para a compreensão das obras de arte e para sua

inteira assimilação. Ate porque a história da arte faz um discurso imagético. Desse modo, a

obra de arte em si não se limita a sua exibição, e sim à uma análise dos seus símbolos em

justaposição de sua análise interpretativa. Sendo assim podemos compreender a

complexidade da obra e sua importância, visto que, nela estarão inseridas diversas emoções

e singularidades (até mesmo generalizadas) dos artífices e de sua época contemporânea.

Entende-se por essa singularidade questões sociais, econômicas, políticas, afetivas e etc.

O Santuário de Nossa Senhora da Guia (figura 2) na cidade de Lucena/PB é um

referencial para exemplificar o poder simbólico do Barroco litorâneo.

Fig. 2 - Igreja de Nossa Senhora da Guia (Lucena - PB).

Primeiramente podemos observar a localização do Santuário (figura 3), que é visto

num ponto estratégico.

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Fig. 3 - Vista aérea da barra do rio Paraíba.

LEGENDA:

1 - Fortaleza de Cabedelo.

2 - Igreja de N. Sra. da Guia.

3 - Ilha da Restinga.

4 - Ponta de Lucena.

A localização do templo nos mostra uma característica essencial da conquista, que é

a preocupação militar. A segurança da Capitania estava assegurada através de pontos

estratégicos. Além disso, pode-se observar que a Igreja de Nossa Senhora da Guia

localizava-se próximo a um aldeamento indígena. O que atesta a idéia de uma obra voltada

para a catequese e evangelização dos silvícolas.

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Fig. 4 - Ornamentação central da fachada. Igreja de Nossa Senhora da Guia (Lucena - PB).

A fachada (figura 4) do templo da irmandade carmelita é bastante exuberante e é

tipicamente uma obra de forma aberta, que possibilita a verdadeira intenção, que é a de

interação da obra com o espectador. Segundo Oliveira (1999) sua fachada é uma obra

claramente incompleta, mas que pode denotar claramente sua suntuosidade e sua idéia

central. No seu contexto é claro a presença de elementos da fauna e da flora locais, como

por exemplo, frutas típicas do litoral paraibano. O que nos instiga a cerca da influência que

essa obra causava na mentalidade do índio, ao se defrontar com esse tipo de arte.

No que diz respeito às características arquitetônicas do templo, salta aos

olhos a exuberância de sua fachada, mesmo sem ela ter sido concluída. O

tradicional brasão da ordem carmelita se ergue sobre os portais que dão

acesso à galilé, sustentado por dois anjos de vestes fartas e drapeadas.

Sobre esse conjunto abre-se um nicho que devia abrigar, anteriormente,

uma imagem de Nossa Senhora. O pitoresco, nesse baixo-relevo, é o fato

de ele estar emoldurado por folhagens, cajus, abacaxis, bananas, frutos de

cacau, pinhas, guirlandas de flores e volutas. São representações em que se

destaca a tentativa de alcançar um refinamento que, no entanto, escapa aos

artífices. Mais ainda, podemos interpretá-lo como uma tentativa de

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aproximação com o universo indígena, facilitando, assim, a pregação dos

carmelitas. (OLIVEIRA, 1999, p. 90-91).

A predominância do Grand style presente na arquitetura paraibana é bastante ampla

e mostra claramente o poderio da Igreja Católica, ligada à Coroa portuguesa na colônia.

Sendo a arquitetura barroca um meio para a transmissão desse pensamento de poder da

Coroa dominante em relação à Colônia.

Fig. 5 - Fachada da Igreja de São Bento.

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Fig. 6 - Fachada da Igreja de São Francisco (João Pessoa - PB).

Dessa forma, continuando nossa análise sobre o Barroco paraibano, iremos nos

voltar para traçar paralelos entre as mais diversas fontes sobre o tema. A análise de

documentos presentes no Arquivo Eclesiástico da Paraíba e no Acervo do Arquivo

Histórico Ultramarino de Lisboa e justaposição com a análise iconológica dos monumentos

paraibanos, a fim de construir uma possível teoria do Barroco paraibano.

Referências Bibliográficas

CALABRESE, Omar. A linguagem da arte. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1987.

OLIVEIRA, Carla Mary S. O barroco na Paraíba: arte, religião e conquista. João Pessoa: Ed.

Universitária/ UFPB; IESP, 2003.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

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TAPIÉ, Victor‐ Lucien. O barroco. Trad. de Armando Ribeira Pinto. São Paulo: Cultrix,

Edusp, 1983 [1961].

THEODORO, Janice. O barroco como conceito. Revista do IFAC, Ouro Preto, Instituto

de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto, n. 4, dez. 1997, p. 21-

29.

WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e barroco. Trad. de Mary Amazonas Leite de Barros e

Antonio Steffen. São Paulo: Perspectiva, 1989 [1888].

_________. Conceitos fundamentais da história da arte. 4. ed. Trad. de João Azenha Jr. São

Paulo: Martins Fontes, 2006 [1915].

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3. QUESTÕES SOCIAIS E ESTÉTICAS NA ESCULTURA DE

ALEIJADINHO

André Pinheiro

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

Hoje em dia, deve-se reconhecer que o Aleijadinho não era apenas o artista mais

representativo da era colonial, mas também um dos grandes responsáveis pelo processo

formativo da arte brasileira. Para que se ateste a importância de sua presença na história

artística do país, basta mencionar que muitas obras do movimento Modernista foram

criadas a partir de fundamentos que caracterizavam o trabalho do escultor mineiro – como

a explosão das cores, a composição conflitante das cenas, o movimento sedutor dos

personagens e a apreciação de temas locais. Evidentemente, se os modernistas voltaram

cerca de 200 anos atrás para resgatar a obra de um brasileiro, então é preciso admitir que

ela cumpre importante papel para o projeto de afirmação da arte nacional; com efeito, a

partir do reconhecimento da soberania estética de Aleijadinho, o modelo da arte européia

cai em desuso e, conseqüentemente, já não figura como principal parâmetro para a criação

de novas obras no Brasil. Dessa forma, o escultor acabou se transformando na base

fundadora que resultaria na construção de um sistema artístico brasileiro devidamente

solidificado.

Não há dúvida de que os modernistas foram atraídos pela modulação tropical que

assinala boa parte dos trabalhos de Aleijadinho; uma investigação mais detalhada revela

que, de fato, alguns sedimentos da realidade local estavam densamente representados na

estrutura de sua obra. Claro, o modo como o artista integrou a sociedade da época muito

contribui para que suas esculturas adquirissem essa tonalidade regional. Primeiro, sabe-se

que o Aleijadinho era filho de uma escrava negra com um colono português, de modo que

essa ambigüidade cultural o marcou em demasia; não seria exagero, portanto, afirmar que o

artista trazia na própria pela a natureza miscigenada daquela sociedade. Por outro lado, não

se pode esquecer que a formação cultural e humana do Aleijadinho teve como pano de

fundo a conflitante situação colonial. Dessa forma, os aspectos biográficos e a realidade

histórica contribuíram mutuamente para que o escultor extraísse da terra pátria as suas

matérias de maior expressão.

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Como o Aleijadinho era parte constituinte de uma sociedade e a sua obra escultórica,

como toda linguagem, só adquire significado inteligível na medida em que se relaciona com

certas práticas sociais, então parece lícito fazer uma análise que proponha examinar as

relações entre a arte e a sociedade. Evidentemente, não se pretende recorrer ao contexto

social para justificar as escolhas temático-formais do artista; bem pelo contrário, a realidade

externa não aparece no exame crítico como um dado determinista, mas sim como um

elemento relacional. Por isso mesmo, o conceito de redução estrutural ou formalização,

proposto por Antonio Candido para analisar as relações entre arte e sociedade, parece ser o

mais adequado, haja vista a sua natureza extremamente dialógica. Na introdução de um de

seus livros, Antonio Candido define as bases dessa teoria:

Os ensaios da primeira parte deste livro tentam analisar alguns casos do que

chamei redução estrutural, isto é, o processo por cujo intermédio a realidade do

mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma

estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma, como

algo autônomo (CANDIDO, 2004: 28).

Embora Candido tenha formulado essa linha de estudo para o exame do texto

literário, não resta dúvida de que o processo de formalização endossa a composição de

qualquer modalidade de arte. Mais do que um método de análise, a redução estrutural é um

procedimento inerente à própria obra, tornando-se um de seus elementos efetivos. Através

desse processo, o artista transfere dados da realidade exterior para o arranjo estrutural dos

seus trabalhos, como se a matéria social ganhasse uma forma. Se o caminho for trilhado em

sentido inverso, o analista logo conclui que a forma de uma obra de arte denuncia

importantes aspectos da sociedade na qual ela fora gerada.

Um dos aspectos que, de certo modo, diferencia a escultura de Aleijadinho daquelas

produzidas pelo barroco europeu é a prática de esculpir obras que atendam a uma espécie

de montagem cênica; com efeito, grande parte de seus trabalhos retrata episódios coletivos

ocorridos em um cenário bem definido. Tomando o conjunto A última ceia (Fig. 1) como

exemplo, percebe-se que Aleijadinho compôs uma série de objetos, como mesa e janelas,

para delinear com precisão o ambiente no qual os personagens estavam inseridos; do ponto

de vista estético, esse recurso alarga o campo de observação do espectador e o integra ao

próprio espaço representado, tornando mais intensa e vibrante a sua experiência com a

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obra de arte. O gosto pela representação de cenas com muitos personagens era bastante

comum na pintura da época; a atividade escultórica, no entanto, ainda estava centrada na

concepção de uma única figura ou de um pequeno grupo, geralmente encomendado para

túmulos ou para praças públicas. O acervo de Bernini, por exemplo, tem um número

considerável de obras que evita reproduzir o perfil solitário das esculturas renascentistas,

mas nenhuma delas atinge um nível de agrupamento tão intenso, como aquele que

caracteriza a série ―Passos da via-sacra‖, composta por Aleijadinho entre os anos de 1795 e

1799.

Figura 1 - A última ceia

Evidentemente, a preferência por uma espécie de modelo aglomerado traz

conseqüências imediatas para a apreciação da obra, já que o sentido de uma escultura

também se define pelos vazios do espaço que a torneiam. Em seu estudo sobre a percepção

visual na obra de arte, Rudolf Arnheim destaca exatamente esse aspecto dialógico

estabelecido entre a forma da matéria e a forma da não-matéria:

(...) a escultura supera os limites de seu corpo material. O espaço

circundante, ao invés de permitir passivamente ser deslocado pela estátua,

assume um papel ativo. Invade o corpo e se apodera das superfícies do

contorno das unidades côncavas. Esta descrição indica que, exatamente

como observamos nas relações figura-fundo bidimensionais, espaço e

escultura interagem aqui de uma maneira eminentemente dinâmica

(ARNHEIM, 2006: 232).

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Ao compor um conjunto com um número acentuado de personagens, o Aleijadinho

estava preenchendo com uma escultura o espaço vazio de outra escultura; por isso mesmo,

o artista acabou imprimindo um efeito de unidade muito forte em sua obra, tanto que se

torna difícil discernir os limites de cada peça. Mas o que importa mesmo nesse processo de

criação é o fato de que o Aleijadinho teve a sabedoria para reconhecer que, em escultura, o

espaço funciona como um elemento operacional.

Se, por um lado, a organização cênica operada pelo escultor mineiro corresponde a

uma tendência estética em voga na época (uma vez que a arte barroca tinha certa inclinação

para o descomedimento), por outro, pode-se dizer que essa prática também está

diretamente ligada a um dado de ordem social. Durante o período colonial brasileiro,

grande parte da população era analfabeta e a igreja precisava, a todo custo, conquistar e

preservar a fé dos cristãos, que era facilmente abalada pela própria condição assistemática

da vida na colônia. Encomendadas pela igreja católica, as esculturas eram usadas com o

intuito de narrar as histórias bíblicas para as pessoas que não sabiam ler – um modo prático

e eficaz de prender a atenção dos fiéis. Daí porque era importante compor um conjunto

que desse ao espectador a sensação de estar inserido na cena narrada e, por conseguinte,

fizesse-o crer que estava na companhia do próprio deus. Apesar do efeito catequizador, a

obra de Aleijadinho traz marcas sociais que a desvincula da mera matéria religiosa; de fato,

o tema retratado pode até ter um caráter místico, mas a composição inquietante da forma é

o reflexo da caótica ordem social vigorante no país. Evidentemente, essa relação com a

sociedade adquire importância na medida em que se apresenta como uma alternativa capaz

de superar a ideologia cristã e de deixar florescer a soberania do gênio criador.

O uso de acessórios na concepção das obras (como cordas, alguns metais e objetos

esculpidos para ornamento) parece ser outro aspecto que aproxima os trabalhos de

Aleijadinho do seu condicionamento social. A princípio, pode-se pensar que o escultor

mineiro é responsável pelo estabelecimento de uma nova concepção de arte, que já se

mostrava descomprometida com as regras impostas pelo modelo clássico; com efeito,

aquela unidade indestrutível do bloco de mármore fora substituída por um arranjo

vertiginoso dos objetos e das matérias-prima. É preciso reconhecer, entretanto, que esses

trabalhos não oferecem um plano de superação estética, até porque não havia no Brasil um

modelo sistemático para ser superado. Dessa forma, a prática inusitada de utilizar diferentes

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materiais na criação das estátuas está ligada, antes de qualquer coisa, a um dado de ordem

objetiva; ou seja, o artista esculpia as peças de acordo com os objetos que tinha a sua

disposição. Acontece que, ao proceder dessa forma, Aleijadinho estava inserindo elementos

de caráter social na própria estrutura de sua obra, uma vez que a madeira, a pedra, o ferro e

a corda tinham um sentido muito bem definido para a sociedade da época; ligados a idéia

de opressão e de atraso, esses artefatos constituem uma espécie de materialização da

situação na colônia.

Para início de conversa, a presença abundante de esculturas em madeira já pode ser

encarada como uma fonte de documentação sobre a situação econômica do Brasil na

época. A madeira foi a primeira grande forma de riqueza da colônia e nada mais natural que

ela fosse utilizada para os mais variados fins, inclusive para a criação de obras de arte. É

certo que a ausência do mármore em terras tropicais foi um dos fatores contribuintes para

que Aleijadinho não o tivesse utilizado em suas criações (a idéia de importar da Europa

esse material parecia descabida); no entanto, ao esculpir com um elemento importante para

a economia colonial, o artista estava firmando uma relação entre a sua arte e a realidade

local. Mas se a escultura de Aleijadinho era feita com uma das melhores matérias-prima que

a região podia oferecer, também é preciso admitir que essa matéria não comportava altos

padrões de nobreza. Dessa forma, a própria madeira estava marcada por uma relação

dicotômica estabelecida entre a representação de uma riqueza (já que refletia o poderio

econômico da colônia) e a imagem da pobreza (já que essa economia se mostrava

insuficiente, se comparada com o alto requinte da metrópole). Os demais materiais

utilizados por Aleijadinho também trazem um sentido simbólico muito ligado à realidade

colonial. A pedra e o ferro, por exemplo, são culturalmente marcados pela idéia de impasse,

sofrimento e dificuldade. Ora, são exatamente esses termos que assinalam a natureza do

trabalho escravo praticado no Brasil; também não se pode esquecer que o ferro foi o

elemento mais empregado para aprisionar e para castigar os escravos. Depois, muitas obras

civis de grande porte (como barragens e fortalezas) foram construídas em pedra, de modo

que esse elemento acabou se transformando em uma espécie de símbolo do trabalho árduo

e do suplício. Já as cordas comportam um sentido simbólico ligado à idéia de

aprisionamento, uma vez que elas eram comumente utilizadas para atar partes de uma

construção, animais bravios e até mesmo escravos; não é de se estranhar, portanto, que no

conjunto A flagelação (Fig. 2) o Aleijadinho tenha usado uma corda para representar o Cristo

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aprisionado, esculpido em pose muito semelhante a de um escravo arredio. Desse modo,

pode-se dizer que, mais do que compor um ato de sofrimento, o artista estava criando uma

obra com o próprio sofrimento materializado. Cabe observar, por fim, que o emprego de

técnicas e materiais diferentes (ocorrido por conta desse diálogo com a realidade social) vai

criar um efeito estético diverso daquele encontrado na Europa –o que permite considerar

os trabalhos de Aleijadinho como a primeira manifestação escultórica de caráter tropical.

Figura 2 – A flagelação

Há uma explicação de cunho social até mesmo para o excesso de objetos

ornamentais; com efeito, eles foram elaborados com o intuito de facilitar a leitura das cenas

e, conseqüentemente, auxiliar no processo de educação religiosa dos colonos leigos. O

modelo escultórico europeu se limitava a representar o elemento essencial de um episódio,

cabendo ao espectador compor um enquadramento condizente com o que estava sendo

delineado. O Davi de Bernini, por exemplo, mostra o exato momento em que o heróico rei

iria atacar o gigante Golias; foi absolutamente desnecessário representar o rival e o espaço

onde ocorrera o evento, já que a grande expressividade dessa obra está antes na tensão que

dominava o personagem e no denso movimento do seu corpo do que no duelo

propriamente dito. Acontece que essa unidade não é tão simples de ser alcançada quando

uma obra precisa cumprir uma tarefa didática. Com efeito, o caráter missionário da

escultura de Aleijadinho é, em parte, responsável pelo estabelecimento de um modelo

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rigoroso e preciso de representação; parece que o escultor fora guiado pela idéia de que o

objeto artístico não poderia gerar qualquer dubiedade quanto ao conteúdo apresentado,

pois as lacunas certamente prejudicariam o entendimento dos episódios bíblicos. É por esse

motivo que o Aleijadinho persistiu em manter a técnica de esculpir detalhes tão

minuciosos, como o pão sobre a mesa em A última ceia (Fig. 1), as pedras sobre as quais se

deitam os apóstolos João e Pedro em Cristo no Jardim das Oliveiras e a presença de uma

criança em O salvador carregando o madeiro. Evidentemente, é um tanto falaciosa essa

pretensão de dar às esculturas uma definição exclusiva, pois a obra de arte (sobretudo a

barroca) tem uma forma naturalmente aberta, no sentido de que o seu significado não se

restringe apenas àquilo que está sendo representado; independente dos detalhes utilizados

na concepção de um conjunto escultórico, haverá sempre uma explicação cultural e

simbólica que extrapola os limites formais do objeto. Diferenças a parte, há de se convir

que, se Bernini seduz pela força expressiva de seus personagens, Aleijadinho encanta

exatamente pela densa organização de seus episódios.

Apesar de não ter sido realizada na época de Aleijadinho, a pintura das esculturas

também auxilia na tarefa de capturar a atenção dos fiéis, já que as cores exercem um

fascínio muito grande sobre os espectadores. Além de transmitir a idéia de um quadro vivo,

a pintura deixa as esculturas parecidas com aquelas estátuas fabricadas em série – tão

comuns em altares da igreja católica e em retábulos de casas particulares; dessa forma,

decorridos anos da morte do artista, o clero manteve vivo o caráter missionário de sua

obra, estreitando ainda mais a sua relação com o gosto popular. O crítico de arte Rudolf

Wittkower, em seu livro Escultura, destaca exatamente esse estreito diálogo estabelecido

entre as esculturas policromadas e o gosto popular; de acordo com Wittkower, ao longo da

história da arte, as obras executadas em mármore branco eram comumente destinadas ao

público culto ao passo que a madeira pintada se voltava para o espectador leigo:

As obras de alto nível, criadas para um público conhecedor, para os grandes

e cultos, imitavam os mármores romanos, destituídos de cores, enquanto a

policromia era reservada às obras populares, realizadas com materiais

inferiores e de menor preço (WITTKOWER, 2001: 192).

Mas é preciso admitir que a pintura também corresponde ao jeito alegre e festivo da

vida na colônia, cuja condição urbana lembrava, em alguns aspectos, o caráter folclórico e

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popular da era medieval; naturalmente, uma escultura monocromática parece contradizer a

índole de um lugar colorido, quente, de natureza exuberante e marcado por uma etnia

diversificada. Todas essas inovações no suporte, portanto, só vêem a ratificar a posição

vanguardista dos trabalhos de Aleijadinho, que pareciam ter negado com mais intensidade

o equilíbrio renascentista do que fizeram os próprios escultores europeus.

No entanto, o aspecto mais rigorosamente localista da arte de Aleijadinho talvez seja

a mistura de técnicas e arquétipos populares com os procedimentos característicos de uma

formação erudita; de fato, uma rápida sondagem nos trabalhos do escultor já é suficiente

para que neles se reconheçam vestígios de uma escola de mestres entalhadores e resquícios

de um aprendizado proveniente da vivência com o povo. É por esse motivo que, mesmo se

ocupando em retratar temas universais, a modelagem das peças apresenta um perfil

condizente com a realidade social da região. Dessa forma, pode-se dizer que a própria

estrutura da arte de Aleijadinho já se configura como um delineamento da tensão instituída

em torno da realidade européia (que aparece como tema) e da realidade brasileira (que

aparece como forma) – um conflito que atingiu seu ponto mais crítico depois que a colônia

manifestara o desejo de se desligar da metrópole. No conjunto A flagelação (Fig. 2) esse

movimento dialético em torno dos componentes locais e universais está bem explícito,

pois, embora o Cristo tenha os traços que a arte européia lhe atribuiu, a maneira como a

cena foi concebida logo remete ao sofrimento dos escravos espancados no pelourinho.

Depois, apesar da alinhada vestimenta, o rosto de alguns soldados romanos foge

completamente ao fenótipo europeu, lembrando antes aqueles bonecos de ventríloquos

esculpidos em madeira bruta. Há de notar também que, diferentemente do que se espera de

um membro da milícia romana, o soldado posicionado à direita do Cristo tem uma linha

dorsal circunflexa e desajeitada, aspecto que lhe furta todo o clima de autoridade e

imponência.

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Figura 3 - A prisão de Cristo

Em um ensaio de fundamentação socialista, o historiador de arte Alberto Manguel

também destaca a presença de elementos regionais na composição dos trabalhos

escultóricos, arquitetônicos e decorativos de Aleijadinho. Manguel detectou traços da

cultura africana em uma parte significativa da obra do escultor mineiro, sobretudo nos

artefatos ornamentais da Igreja de São Francisco:

Ali as imagens religiosas, embora cristãs, também se prestavam a uma leitura

segundo a tradição africana, a ser feita pela população negra que afluía como

rebanho à igreja. (...) Em São Francisco, as imagens podem ser européias,

mas a articulação, as correntes ocultas de significado pertencem

definitivamente às tradições negras da África, o inverso do branqueamento.

(MANGUEL, 2006: 239)

De acordo com Manguel, ao compor imagens religiosas que combinavam

características da liturgia cristã com elementos das religiões africanas, Aleijadinho estava

lutando para que o efeito missionário de sua arte atingisse toda a etnia colonial. Cumpre

observar, entretanto, que a matiz africana é a base estruturadora da obra – aspecto que

pode ser entendido, segundo o crítico, como um ato de resistência contra a tese do

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branqueamento16. De qualquer forma, está claro que a arte do Aleijadinho é um desenho

preciso da variedade étnica da população colonial, pois nela encontram-se facilmente traços

do povo europeu, dos colonos e dos negros escravizados. Nesse sentido, não é exagero

afirmar que a própria matéria sacra apresenta ressonâncias sociais; além das semelhanças do

Cristo com um escravo em A flagelação (Fig. 2), conforme já fora anunciado, os soldados

romanos também comportam traços do povo português. Depois, o trabalho executado por

alguns integrantes da milícia antes lembra a ação dos impávidos desbravadores do sertão

brasileiro do que um ato de tortura propriamente dito; a atitude eufórica dos soldados que

integram o conjunto A prisão de Cristo (Fig. 3), por exemplo, parece ser demasiado áspera

para quem pretende prender um líder pacificador que não oferecera qualquer tipo de

resistência física.

Por fim, voltando-se mais restritamente para o aspecto formal, é preciso destacar que

a composição dos corpos parece ser uma espécie de correlato objetivo para a situação do

Brasil na época, uma vez que a idéia de indefinição e imperfeição é facilmente reconhecida

nas esculturas do artista. Primeiramente, cabe observar que o Aleijadinho utilizou diversas

medidas para a concepção de um

cânon, de modo que nem todas as

partes do corpo humano têm uma

relação justa entre si; mesmo assim,

é flagrante o desejo de combinar

variações de um modelo natural

(proveniente da observação imediata

do ser humano) com variações de

um modelo ideal artístico (resultante

de um estudo estético). A

distribuição dos módulos operada em A prisão de Cristo (Fig. 3), por exemplo, revela que o

protagonista tem uma estatura muito mais elevada do que aquela utilizada para retratá-lo

nos demais conjuntos; evidentemente, tais escolhas formais têm um significado estético

ligado à idéia de conflito e inquietação, mas nem por isso elas deixam de ser reflexo de um

sistema social igualmente tenso e inquieto. Ainda nesse conjunto, as mãos do Cristo

16 Acreditava-se na época que o escravo passava por um processo natural de branqueamento espiritual

depois que ele se tornava independente e ascendia socialmente; rejeitando a idéia preconceituosa que

endossa esse ponto de vista, o escultor prezou por expor as piores facetas de sua brancura.

Figura 4 – A coroação de espinhos

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chamam a atenção pela sua curvatura exorbitante, como se estivessem deslocadas do eixo

natural do corpo. Levando-se em consideração que a imagem da mão está associada tanto à

ardileza do trabalho quanto à afabilidade do companheirismo, então ela acaba por

representar uma dupla deficiência na vida da colônia; desse modo, a organização estrutural

da obra de Aleijadinho denuncia a presença de um lugar marcado pela distribuição irregular

do trabalho e pelo individualismo resultante da ambição de se tornar rico. Alguns

personagens desse conjunto também têm um movimento duro e esquematizado, como se

eles tivessem dificuldade de se locomover pelo ambiente no qual estão inseridos; a rigidez

da forma acaba por destacar os indivíduos do cenário montado, transmitindo a idéia de que

os problemas sociais foram responsáveis por essa cisão.

Mas o modo como o Aleijadinho compôs mãos e braços é, de fato, um aspecto de

grande relevância para se averiguar o substrato social presente na obra do escultor; em A

coroação de espinhos (Fig. 4), a figura do Cristo apresenta um braço forte, de onde saltam veias

grossas e ardentes – aspecto que, de certa forma, contradiz aquela imagem serena e frágil

divulgada pela tradição religiosa. Com efeito, os membros superiores desse Cristo são

típicos dos homens que trabalham na lavoura ou em qualquer outra atividade braçal –

seguramente, a fonte de renda mais freqüente da colônia na época; trata-se, portanto, de

um personagem cuja atividade tem caráter mais físico do que intelectual. Por isso mesmo, é

inevitável que se associe as mãos atadas e os seus gestos duros com a prática escravocrata

exercida no Brasil. Se, por um efeito de teste, fosse possível deslocar os membros do

restante do corpo, o expectador perceberia que eles não têm muita consonância com o

tema religioso, sobretudo com a imagem de Jesus. É por meio dessas agregações de

elementos díspares, portanto, que o Aleijadinho projeta a substância social na estrutura de

sua obra, resultando na criação de um quadro onde a realidade colonial invade o mito

religioso. Mas é preciso ter um olhar vigilante e investigativo para entender o modo como

se estabelece esse processo, pois é através de pequenos detalhes formais e estruturais que o

artista promove o incurso da sociedade no tema de suas esculturas.

Referências

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2006.

BAZIN, Germain. O Aleijadinho. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 1971.

CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. 3ª ed. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2004.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

JORGE, Fernando. O Aleijadinho: sua vida, sua obra, sua época, seu gênio. 7ª ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2006.

MANGUEL, Alberto. ―Aleijadinho: a imagem como subversão‖. In.: Lendo imagens. São

Paulo: Companhia das Letras, 2006.

WITTKOWER, Rudolf. Escultura. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4ª ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2006.

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4. DISTORSIONES ESPACIALES Y TEMPORALES EN EL ARTE DEL

CARIBE INSULAR

Helga Montalván Dias – Consejo Provincial de Artes Plásticas – Cuba

El Caribe abarca una extensa área que enlaza a las porciones sur, centro y norte de

América Latina. Sus aguas configuran el litoral de varios países del continente y envuelven

un abanico de islas que asciende desde Trinidad y Tobago hasta el archipiélago cubano. Se

considera como Caribe Insular el Arco de las Antillas Menores y Mayores, donde aparecen

los siguientes países: Antigua y Barbuda, Barbados, Cuba, Dominica, Granada, Haití,

Jamaica, Santa Lucía, Saint Kitts y Nevis, San Vicente y las Granadinas y Trinidad y

Tobago, incluyendo los territorios dependientes: Aruba y Antillas Holandesas; Guyana

Francesa, Guadalupe y Martinica, departamentos franceses de ultramar; Anguila,

Montserrat, Islas Vírgenes Británicas, Islas Caimán e Islas Turcas y Caicos, pertenecientes

al Reino Unido; y Puerto Rico y las Islas Vírgenes Estadounidenses. Estos serán

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estudiados a partir de la concreción de tres grupos en función del habla: los hispanos, los

anglófonos y los francófonos, y en menor medida los de habla holandesa.

Con este trabajo, propongo enunciar posibles redefiniciones para el barroco en el

Caribe, a partir de las producciones artísticas recientes de la región, ejemplificando en los

tres grupos definidos, con las expuestas en la 10 Bienal de La Habana, realizada del 27 de

marzo al 30 de abril del 2009.

Primero, habría que definir una contraparte basada en las estructuras racionales,

lineales, coherentes con una visión apolínea de la historia y legitimada en la cultura

Occidental. A partir de esta, estaríamos configurando una diferencia como contrario, que

en definiciones actuales vendría a estar aparejado a la idea del fragmento y de los sistemas

no lineales.

En esta idea, el área geográfica y cultural que analizaremos estaría enraizada en

función de un sistema radial de múltiples fluctuaciones y arraigada a la definición dada por

Yolanda Wood17 respecto a las temporalidades simultáneas de la región, que más

sintéticamente fue definido por Alejo Carpentier como lo real maravilloso en las décadas del

30 y el 40 del pasado siglo; y que según José Luis Méndez: ―ha podido mostrar más

crudamente su rostro barroco‖18

Según Omar Calabrese en La Era Neobarroca19, por Barroco entenderemos las

categorizaciones que ―excitan‖ fuertemente el orden del sistema y lo desestabilizan por

alguna parte, lo someten a turbulencias y fluctuación, y lo suspenden en cuanto a la

capacidad de decisión de valores, procediendo para esto a través de la comparación con el

evento históricamente definido.

Por cuanto, nos es necesario referir algunos elementos ya presentes en la crítica y la

investigación de las artes plásticas en la región del Caribe, concebidas forzosamente como

procesos secuenciales y continuos a partir de determinados eventos que señalan el origen

de la conciencia del ser caribeño. Esto, en la primera valoración de sus producciones

artísticas explicitadas por Adelaida de Juan20.

17 Yolanda Wood: ―Proceso histórico-artístico en el Caribe‖, Compilación de textos .Bienal de La Habana

para leer. Ediciones Universidad de Valencia, 2009, p73.

Ediciones Arte Cubano y Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam. 18 José Luis Méndez: ―Problemas de la Cultura Caribeña‖, Casa de Las Américas, Ciudad de la Habana,

no. 114, mayo-junio de 1979, p.40. 19 Omar Calabrese: ―La era Neobarroca‖, Ediciones Cátedra. Signo e imagen, Madrid, 1989. 20 Adelaida de Juan: ―En la Galería Latinoamericana‖, Ediciones Casa de las Américas. Serie Galería,

Ciudad de la Habana, 1979, p.115.

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Según los estudios, el Caribe se distingue por lo afroamericano, elemento que tiene

en su base los primeros eventos reconocibles por la cultura occidental en las décadas del

30‘ y el 40‘ del siglo anterior:

- La obra pictórica de Wifredo Lam en Cuba, surgida en medio de los primeros

estudios afrocubanos y la obra de Fernando Ortiz, Lidia Cabrera, entre otros

intelectuales, y que fue legitimada por André Bretón dentro del movimiento

Surrealista (de origen europeo).

- La Escuela de Hyppolite de pintores naif en Haití.

- Los pintores móviles doctrinarios de la religión Rasta en Jamaica, de grandes

repercusiones sociales y culturales.

Todos ellos como parte de una toma de conciencia de lo nacional y lo caribeño,

valorizando elementos que afianzan los altos porcentajes de africanidad en la región.

Tomando el elemento de la negritud, entendemos este signo como denominador o

eje central de las significaciones de las producciones caribeñas en el proceso histórico. Esto

asociado a la estética del cimarronaje y la resistencia cultural, devenida como una doble

apariencia y una doble significación que los pueblos del Caribe confieren a los iconos

impuestos por la cultura colonial.

La evolución histórica del Caribe ha sido análoga en procesos religiosos y sociales, y

ha convivido con una temporalidad simultánea comprendida como una dinámica de la

memoria (el pasado, el origen), la intuición (la realidad diaria) y la incertidumbre (o el

tiempo de la espera entendido como futuro), pues si en un primer momento histórico, la

región del Caribe fue zona de encuentros y paso, de conexión de viajes y a veces destino,

aún hoy los insulares sostienen una sensibilidad de tránsito. Su estatus como países colonias

y el mar como constante han sido también elementos constitutivos que no podemos

desdeñar, a pesar que no solo estos caracteres medulares han conformado su cultura. Los

comportamientos han sido distintivos según la colonia, conformando sus procesos

artísticos de formas diferentes.

En el caso de los países hispanohablantes (Cuba, Puerto Rico, República

Dominicana) poseen una cultura moldeada según el estilo occidental, con Academias según

los estilos europeos, Museos, Galerías, y una clase alta, dominante, que respalda un sistema

de distribución y consumo de la obra de arte en los propios circuitos que ella misma

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genera, creando no solo el espacio, sino el mercado y las condiciones del consumo de sus

producciones artísticas y el análisis de sus procesos.

Los países de habla anglófona (Trinidad Tobago, Barbados, Jamaica), francófona

(Haití, Martinica, Guadalupe) y holandesa (Aruba, Curazao) comprenden otras condiciones,

pues no son respaldados por una estructura sólida. Sus producciones están más enraizadas

a procesos populares, por motivos religiosos e ideológicos, los cuales responden entonces

en mayor medida a los ritos afrocaribeños. De ahí que en Haití la escuela de Hyppolite va a

contener un fuerte elemento del vudú, y Jamaica por su parte, va a emprender un camino

donde el arte va a estar destinado a la formación de una conciencia nacional, religiosa y

política, a partir de la fuerte resistencia del movimiento rastafari.

Las producciones artísticas del Caribe Insular, a pesar de tener un denominador

común en el elemento de la negritud y en la condición de lo insular, las condiciones de su

surgimiento y desarrollo varían tanto en métodos como en fines. No obstante, ha sido

sometido a una lectura secuencial de sus eventos:

- Década del 40‘.Conformación de un sentido de identidad visto por los occidentales

como fantástica.

- Década del 60‘. Relevancia de las artes gráficas y la abstracción que viene de la

década anterior. (Cuba y Puerto Rico)

- Década del 70‘. Desvalorización del objeto artístico por la significación que

alcanzan en este momento los movimientos sociales y de minorías, y la propia

actitud ante la producción artística.

Este último elemento, es desarrollado por Juan Acha21 en la impronta de los

movimientos sociales y el destino de estas obras a una minoría élite, que va a ser más

consolidada en países de mayores niveles demográficos.

En este sentido, ya tenemos configurada una plataforma base de punto de partida

para la trayectoria de las artes visuales de la región, señalada por una particular sensibilidad

resultado de distintivas psicologías sociales, que cala en la sensorialidad y la experiencia del

ser caribeño.

21 Juan Acha: ―Reafirmación Caribeña y sus requerimientos estéticos y artísticos‖, Compilación de textos

.Bienal de La Habana para leer. Ediciones Universidad de Valencia, 2009, p.61.

Ediciones Arte Cubano y Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam.

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Valorizada por porcentajes diferenciados de la connotación del elemento de lo

negro, resulta en la sumatoria una afrolatinidad imperante en Jamaica y Haití, y en una

iberolatinidad predominante en países como Cuba, Puerto Rico y República Dominicana.

Podemos entonces esbozar la dinámica del sistema cultural del Caribe insular a

partir de la reformulación del concepto de la negritud desde la obra de arte e intentar

definir los principios por los cuales se pueden considerar variables los elementos no

pertenecientes al sistema mismo, a través de los posibles rompimientos y estrategias

valorados en el choque intercultural implícito en las relaciones artísticas actuales, basadas en

un sistema de producción, distribución y consumo en las direcciones que impone la cultura

global de hoy y la posición hegemónica y dominante de la mainstrem occidental.

Para profundizar en este análisis, hemos seleccionado la 10 Bienal de la Habana

como momento de confrontación de las propuestas artísticas y el público en general, a

partir de una valoración de la participación de artistas del Caribe insular en las principales

Bienales del mundo. (Véase Anexos. Tablas 1.1-1.5)

El Caribe insular señala su presencia en un 20% en la 10 Bienal de la Habana y

mantiene una presencia activa en todas las ediciones de la muestra, siendo la participación

de los países de habla anglófona la más mayoritaria después de la hispanohablante. En esta

dirección, damos por sentado la presencia de discursos artísticos afines al elemento de lo

negro en la cultura del Caribe, la temporalidad sensorial y la condición de la insularidad

como ejes susceptibles de variación o mutabilidad.

Ahora bien, volviendo al aspecto espacial del sistema de la cultura de Calabrese, nos

parece oportuno enunciar la idea de confin.

Según el autor, el confin22 de un sistema es un conjunto de puntos que pertenecen de

manera simultánea, al espacio interno de una configuración, y al externo. Determinamos

entonces que no forma parte del sistema pero lo delimita desde lo interno, siendo parte de

lo externo.

Esta definición se asocia a la genealogías de la diferencias de Bhabha23, donde

argumenta que las culturas a menudo se reconstituyen y rearticulan en los bordes, en el

hogar de las poblaciones migratorias. En base a esto, podemos analogar el confín como

puntos de choque intercultural, momento de tensión en el que la cultura dominante se

22 Omar Calabrese: ―La era Neobarroca‖, Ediciones Cátedra. Signo e imagen, Madrid, 1989, p. 64. 23 Homi K. Bhabha: ― El lugar de la cultura‖, 1a ed. Manantial, Buenos Aires., 2002, p.320

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impone, provocando una resistencia que confirma las matrices propias de significación de

la cultura dominada, como oposición activa, creando fuerzas centrífugas que negocian su

sobrevivencia y se adaptan a nuevas condiciones, apropiando en este choque, desde lo

popular, las imágenes occidentales, con lo que estas culturas subalternas se dinamizan en

continua solución de conflictos simbólicos.24

Teniendo en cuenta la propia producción de la obra de arte como momento de

plasmación del choque intercultural, el confin queda configurado en la zona de creación,

generando un sistema descentrado, pues su núcleo no radica reiteradamente en el centro,

sino que se desplaza indistintamente a las márgenes que estructura este confin, cambiante,

mutable, no estático. (Véase Anexos. Esquema 1.1)

Basándonos en la multiculturalidad caribeña insular, tenemos tres ejes

fundamentales que dialogan históricamente ya sea pasivo o conflictivo, con sus ejes

dominantes.

Los artistas de los países de habla hispana (Cuba, Dominicana, Puerto Rico) por lo

general mantienen su producción en los países nativos, aunque sobre todo en el caso de

Puerto Rico, los artistas desarrollan su trabajo fuera de la zona geográfica, resultado de un

proceso histórico y cultural que resulta en un dialogo no con el centro que supone la

colonia, sino con los nuevos dominadores del paradigma estético y artístico.

En tanto, podríamos presuponer un diálogo en el que se posee más de un centro o núcleo

de choque. (Véase Anexos. Mapa 1.3)

Los artistas de países anglófonos, específicamente Jamaica, Barbados, Trinidad

Tobago, realizan sus producciones dentro y fuera de la zona geopolítica caribeña,

configurando también núcleos móviles.

En el caso de los artistas francófonos (Haití, Martinica) suceden los mismos

eventos.

Siguiendo estas determinantes, podemos configurar un mapa de más de un centro

de choque intercultural, puntos de confin que emplazan el área de acción de la producción

caribeña, y esto, en una dinámica inestable y mutable.

Podemos concluir que el confin y el sistema que configura, conllevan a otras

tensiones causadas por la propulsión de fuerzas expansivas de los núcleos-centros de

choque intercultural, y por tanto, según el aspecto espacial para la cultura, en modelos

24

Ticio Escobar: ―Identidades en tránsito‖, http://www.pacc.ufrj.br/artelatina/ticio.html

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espaciales el área de producción artística del Caribe insular tiene un espacio de sistemas

descentrados y fluctuantes. (Véase Anexos. Mapa 1.3. Espacio de estructurado por el confin)

De esto se deslinda también la presencia de una perspectiva quebrada o

inusualmente infinita, no asociada al concepto de profundidad canónico pues no sigue un

ordenamiento lineal o lógico, pero en este ámbito, nos referiremos más hondamente al

elemento de lo temporal.

La obra de Annalie Davis, de Barbados, es una obra que suscita este tipo de

referencias. Trans/plant" (2009), una video instalación de casi dos horas es un proyecto

entre dos muros que refuerza la definición del espacio histórico como movimiento en los

bordes en una incertidumbre agónica.

El sujeto del video sale al mar a ir de viaje, a la inmigración, y vuelve a encontrarse

en la mínima porción de arena que le lleva de nuevo al mar. La idea de los seres en eterno

transito, en eterna incertidumbre, toma lugar mediante una poética cruda y aplastante, que

valoriza la sensorialidad caribeña y socaba en alguna medida el ideal del turismo caribeño.

Es un tiempo de espera y de reiteración, una exacerbación dolida y cínica de la significación

histórica del viaje y el fin para el ser caribeño.

Varios autores han hecho hincapié en el sentido sensorial de la experiencia caribeña,

y esto ha tenido sus porqués en el sentido ritual de los objetos de evocativos de la tradición,

y en este sentido, esta se emparenta con los modos de percibir la experiencia e incluso, de

concebir la perspectiva.

Tirzo Martha, de Curazao, perteneciente al grupo de habla holandesa, confirma una

manera distintiva de concebir las relaciones enriquecedoras y dinámicas de los elementos

distintivos de lo caribeño. En su instalación El espíritu del Caribe, a la que le ha realizado

varias versiones desde el 2006, se invalida la manera ortodoxa de entender la lógica lineal, la

profundidad, esbozando un espacio caribeño, significándolo, que retoma la configuración

del altar afro para dotar de este tempo a los objetos de uso diario del sujeto social y

familiar. Son altares-casas, en vertical, donde se van estructurando unos sobre otros los

objetos según la categoría y la importancia que avala su propia experiencia. Resulta de esto

una suerte de suspensión, un rompimiento de la lógica lineal, y de la percepción del tiempo

y el espacio vivencial, a la vez que configura una mirada a lo social y los problemas más

urgentes de la cotidianidad y comprende a su vez una mirada hacia la memoria histórica y el

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problema de lo racial. (Véase Anexos. Imagen 1 Tirzo Martha, Curazao. Instalación. Bienal

de la Habana, 2006.)

Otra obra que rompe con los preceptos de la perspectiva y se conforma como un

juego de tensiones fragmentadas es la obra de Inti Hernández, cubano, perteneciente al

grupo de los hispanohablantes. (Véase Anexos. Imagen 2. Inti Hernández, Cuba. Punto de

Encuentro. Instalación, Bienal de la Habana, 2009)

Punto de encuentro, instalación presentada en la 10 Bienal de la Habana, es una obra

que retoma el juego de los espejos para crear distorsiones ópticas que aquí, fragmentan y

emplazan al sujeto en una colectividad ficticia y en la búsqueda de un deseo previamente

socavado. La idea del deseo, de la seducción, de la falsedad y las apariencias toman espacio

también como momento de interrelación vacía, donde la incertidumbre y el deseo también

fluctúan.

Por su parte, el dominicano Polibio Díaz presenta su video instalación La Isla del

tesoro, también a la 10 Bienal, maqueta de ampliación del malecón de Santo Domingo, como

emplazamiento también suspendido en el mar, como la propia isla, a la vez que constituye

una propuesta para la cotidianidad y el desarrollo social. Tanto aquí como en sus fotos, a

Polibio le interesa los espacios vivenciales, la dinámica visual y estética del entorno

cotidiano. (Véase Anexos. Imagen 3. Polibio Díaz. República Dominicana. Fotografía,

2006)

Hace presente también una distorsión de órdenes y sentidos más evidente en la

fotografía, a partir del deseo, de la incertidumbre de lo aparentemente inalcanzable.

Alex Burke, artista Martiniqueño presenta su instalación La biblioteca, de profundas

significaciones afrolatinas, donde el saber y la memoria asumen su presencia a partir del

fragmento y el ordenamiento aparentemente lógico, pero que tensiona significaciones

también religiosas. (Véase Anexos. Imagen 4. Alex Burke. Martinica. La Biblioteca.

Instalación. Bienal de la Habana, 2009)

Otro artista que hace presencia es Roberto Stephenson, con una fotografía llena de

diálogos y fragmentos de una cotidianidad caótica, que casi grita desde si soporte. La

superposición de escenas-realidades, el movimiento de la sociedad actual plena de anuncios

trasnacionales en una arquitectura vernácula, es una contraposición que tampoco escapa de

sentido. El fragmento, la turbulencia dinámica de este y su puesta en escena a través del

diálogo caótico con lo cotidiano, son elementos que también hablan de un Caribe disperso,

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activo y mutante. (Véase Anexos. Imagen 5. Roberto Stephenson. Fotografía. Sin título.

Bienal de la Habana, 2009)

Por demás, en estas obras hay un exceso de representación y de contenido (las

figuras negras de Burke, el reflejo de las múltiples personas en los espejos de Inti), que

suscita la convivencia de múltiples fragmentos y significaciones, los cuales apuntan hacia la

desmesura y excedencia que también refiere Calabrese.

Las obras analizadas exponen una temporalidad más sensorial que histórica, pues el

presente, lo intuitivo, sigue constituyendo constante en el arte caribeño actual.

La turbulencia de sentidos fluctuantes y activos, sea esta expresa en la acumulación

de elementos o el juego óptico, nacen de una afirmación de la incertidumbre de quien se

siente en constante paso, sin una perspectiva profunda que no llegue más que a la línea del

horizonte incierto que deja el mar, volviendo al Caribe como paso y expectativa, en una

temporalidad suspendida que convulsa los puntos de contacto del confin, descentrando la

mirada apolínea del occidental.

Crea paradojas perceptivas en la zona delimitada por sus acciones de inclusión y

diálogo conflictivo, ejerciendo en su espacio una relativa autonomía marcadamente

atemporal y elástica, emparentada a ciertas nociones de virtualidad que hacen a los disímiles

y distintivos centros –disímiles islas- interactuar con la certidumbre desde una posición que

actualiza la historia en un presente expandido.

Volviendo a la idea de confín para establecer físicamente una zona temporalmente

autónoma para el Caribe insular, definimos como:

- los espacios de creación del artista caribeño en el espacio-marco de pertenencia

señalado como constante.

- El espacio de la cultura occidental (dominante) en el interior del espacio- marco

pero sin pertenecer a él por lo que no lo determina.

Dentro del marco de acción que define el confín como zona de creación del Caribe,

este Caribe es autónomo, pues es una zona mutable y cerrada en si misma.

Es el sujeto creador quien domina esta autonomía temporal, pues los

desplazamientos de la línea del confín son variables en extensión y tiempo. Domina desde

sus posesionamientos causales y sus posturas en el marco cultural, los que hacen la

diversidad de centros de tensión-excitación que emplazan el confín.

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El Neobarroco habita en el Caribe porque no está sometido a reglas ni patrones de

comportamiento. La racionalidad queda descentrada en la conversión de casa en altar y de

altar a biblioteca de saberes vivos; en el juego de percepciones. En la aparente algarabía que

esconde el silencio del que intenta llegar a lo sólido sabiendo que siempre estará de paso

porque después de llegar hay más mar… En los colores y la estética dulcemente agresiva de

la vida de pequeños espacios copados de familia, del fragmento puesto una y otra vez

llamando al palimpsesto, a las significaciones múltiples.

La negritud aflora una y otra vez pero como un saber, no con una vocación de

imitación o representación de los afro. Vive como concepto de espacio, como orden no

racional.

El tiempo se expande y contrae en el espacio del Caribe que fluctúa en los puntos

de encuentro, aún lejos de la isla nativa, en la llamada diáspora donde se reconstruye con

fragmentos individuales la vida en la ciudad desarrollada, en el circuito más élite del arte

mismo, que queda igual desvalido de métodos y entendimiento para llegar a entender el

ritmo constante de la fluctuación sensorial del sujeto caribeño.

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Sessão de Comunicação: BARROCO E MODERNIDADE

Coordenadores: Prof. Dr. Antonio Fernandes de Medeiro Júnior

Profa. Dra. Regina Simon da Silva

1. DIÁLOGOS ENTRE O BOTELHO BARROCO E O MODERNO

CABRAL

Éverton Barbosa Correia

(Universidade Federal do Mato Grosso do Sul/ Três Lagoas)

Assim como há uma sucessão de eventos que lastreia a historiografia desencadeada a

partir de Pernambuco e que remonta à colonização brasileira – quer nos refiramos à

expulsão dos holandeses ou à guerra dos mascates -, de igual modo há uma tradição

literária correspondente que se arrasta desde a Prosopopéia de Bento Teixeira, passando pelo

Valeroso Lucideno de frei Manuel Calado ou até mesmo um livro como Cultura e opulência do

Brasil de André João Antonil, que é animada pela mesma matéria histórica, para citar alguns

exemplos. Por incrível que pareça, todos esses livros atingem em maior ou menor grau a

parentela de João Cabral de Melo Neto em sua dimensão encomiástica, uma vez que o

poeta se reputava descendente de Jerônimo de Albuquerque (cunhado de Duarte Coelho),

que guiou durante muito tempo um projeto não realizado pelo autor de escrever a história

do Brasil através da memória deste seu antepassado, reconhecido por muitos como o

―Adão pernambucano‖. O livro se chamaria Memórias prévias de Jerônimo de Albuquerque e

narraria a história do Brasil a partir das visões daquele sujeito como lampejos históricos a

serem gravados em poesia.

Ainda que o projeto não tenha sido efetivado, oferece em perspectiva a compreensão

de João Cabral sobre os artefatos históricos, que nunca se restringe à articulação, por si só,

de alguns elementos a ladrilhar uma diacronia. Mais do que isso, a historiografia destacada

dispõe de eventos marcantes que atravessam a afetividade do poeta, devido ao fato de que

sua genealogia esteja implicada em toda a sucessão de eventos que caracterizam a história

brasileira. Historiografia brasileira – entendamos bem – que se desencadeia a partir de

Pernambuco, donde advém sua resistência em narrar episódios ocorridos no Rio de

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Janeiro, dado que sua ancestralidade tenha sido um dos focos de resistência da instalação

da dinastia bragantina no Brasil. Não estranha, a partir disso, que o poeta nunca tenha

devotado um poema sequer ao Rio de Janeiro, embora o tivesse feito com Tegucigalpa e

Quito, onde residiu em virtude do ofício de diplomata, durante um tempo bem menor do

que sua estadia no Rio de Janeiro, onde morou de 1943 a 1948 e depois de sua

aposentadoria (1990) até seu falecimento (1999), totalizando algo em torno de quinze anos.

Parte do silêncio devotado ao Rio de Janeiro se deve à hipótese de que falando da história

fluminense, não deixaria de afirmar a expansão do Império português na América, que teve

a cidade maravilhosa como sua sede, depois de Salvador. Sob tal perspectiva, ao falar da

história fluminense ou baiana, afirmar-se-ia a colonização portuguesa sem o rescaldo do

nativismo pernambucano. Por outro lado, realçar a particularidade pernambucana viria a

ser, pois, um modo de ressoar outras vias de sociabilidade, sufocadas em nosso devir

histórico.

Com isso, destaca-se a visão do autor sobre poesia, cujo desempenho ultrapassa em

muito o acesso a suas reminiscências e vinca-se na utilização de suporte material, para

objetivar sua produção literária. O raciocínio tanto se aplica à redação de O rio – feito na

Espanha, junto ao mapa de Pernambuco – com sua pletora de referências geográficas

muito particulares, como também ao Auto do frade, produzido a partir do artigo de Mário

Melo ―Suplício de Frei Caneca‖ (MELO, 1924: 335-342), publicado na Revista do Instituto

Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Seja pelo recorte geográfico ou

histórico, o comentário serve de índice para demonstrar qual a compreensão de poesia

anima o autor. Compreensão presente desde seus primeiros livros e que se verticaliza na

sua produção de maturidade, notadamente o que escreve depois de A educação pela pedra

(1966), quando se processa uma significativa transformação naquela expressão poética que

passa a ser pautada vigorosamente pela sua memória, entremeada de lembranças e de

arquivos, simbolizando toda uma época sob a dicção vigorosa do escritor.

Aliás, essa preocupação com a historiografia faz com que ela seja repensada e, em

última instância, refeita através da utilização de referentes marginais ou provincianos, sob o

tratamento literário, que repõe obrigatoriamente o sentido do registro e do valor históricos,

sem escamotear o interesse que tem para o poeta. E embora todo discurso seja movido por

interesses – inclusive subjetivos – cada qual ganha maior legitimidade quanto mais se fizer

ou simular-se objetivo. No caso de João Cabral, a objetividade do seu discurso está

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assegurada de antemão pelo seu desempenho estilístico que se afasta de qualquer

impregnação romântica, só que a inscrição social daquele sujeito e sua transfiguração em

objeto de poesia conferem ao seu texto uma tonalidade que não reproduz o discurso e nem

o procedimento histórico em voga, antes redimensiona ambos. Por isso, é como

constituinte expressivo que devemos entender seus temas, porque se pautam pela

exploração do referente tratado, cujo valor e sentido se desdobram quando impostados na

dicção de João Cabral de Melo Neto. Daí podemos depreender que tanto a historiografia

quanto a literatura colonial que permeiam o universo do poeta ganham uma tonalidade

particular, para a qual a história e a geografia se entrecruzam para dar corpo à sua

expressão.

Havendo, pois, uma substância que enlaça a literatura à história, podemos então

considerar que aquela matéria a que se convencionou chamar de Barroco interessou a João

Cabral quer fosse considerada como tema ou como forma, já que a possibilidade de separar

os domínios não contribui para o entendimento da poesia em geral – que já é por si mesma

matéria histórica – e menos ainda a obra cabralina em particular, regida que é pelo

entrelaçamento estreito e rigoroso de ambos os domínios. Embora não tenha incorporado

a terminologia correspondente ao Barroco à sua escritura, as referências àquela época

abundam na sua obra em sua dimensão histórica e também literária. Tampouco João Cabral

se investiu do propósito de revisitar ou recuperar o Barroco, muito embora tenha sido

costumeiro leitor de Luiz de Góngora e Francisco de Quevedo, a quem devotou um

poema, o que é bastante se considerarmos a economia do autor em fazer citações.

Quando o fez com Quevedo, estava decerto movido menos pelo interesse de uma

produção atrelada ao Barroco transferível de qualquer tempo para qualquer espaço, do que

pelo resíduo histórico que se depreende da obra de autores recuados no tempo, o que

também é extensivo a suas conquistas formais. Daí haver a possibilidade de aproximação

entre autores como João Cabral e Botelho de Oliveira, quando considerados não só pelo

acabamento formal que as respectivas obras suportam, mas também pela matéria que as

anima e que pode ser considerada em função de sua dimensão histórica ou propriamente

literária. De um modo ou de outro, não podemos ignorar o chão que serviu de base para

ambas as elaborações e que guardam diferenças entre si. Num caso, o recôncavo baiano e,

no outro, o litoral pernambucano, que, distanciados no tempo, só reforçam as respectivas

particularidades, embora pareça o contrário, dado que a caracterização do Nordeste como

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região autônoma é uma construção do século XX. Então, quando Botelho de Oliveira

escrevia, não apenas o Brasil tinha outra conformação geográfica – separada do Estado do

Maranhão e do Grão-Pará -, como o que chamamos hoje de Nordeste simplesmente não

havia. Naquela época, baiano era uma coisa e pernambucano, outra. Aliás, quase um século

depois de Botelho de Oliveira houve o episódio reconhecido como Inconfidência Mineira,

e não brasileira. Se depois do acontecido, aquele mesmo movimento em sua dimensão

política e literária veio a ser tomado como índice de emancipação, é mais por um desejo de

constituição de nacionalidade do que uma preocupação presente nos autores da ocasião, o

que só é reforçado quanto mais nos distanciarmos no tempo. Isso também pode ser

observado através da leitura de Botelho de Oliveira, como se segue:

a crítica leu o famoso poemeto ―À Ilha de Maré‖ como exceção

nativista ou prenúncio do nativismo brasileiro, desconsiderando que o

elogio da parte se impunha como artifício para produzir a apologia do

todo do Império Português. Ao compor, nesse poema, uma paisagem

ideal para produzir o efeito de cópia das formas de sua terra, o poeta

imita antes modelos europeus, entre os quais se conta a ilha

paradisíaca de Camões. De fato não há antecipação nativista em

Botelho de Oliveira (TEIXEIRA, 2005, p. 17)

Diante disso, a vinculação da obra cabralina com o chão pernambucano toma outra

significação se considerarmos que ali sua família está enraizada desde a posse de Duarte

Coelho e foi ali que sua experiência visual foi forjada, às margens do Capibaribe. Por isso,

antes de batizar o rio segundo preceitos extemporâneos, convém assinalar que no ―dialeto‖

da família era chamado de ―A maré‖, conforme o enunciado do poema que leremos

adiante. Sendo filho das famílias tradicionais pernambucanas, que outra – não aquela – seria

a Maré? Também por isso, a ―Maré do Capibaribe‖ se aproxima pelo vocativo de ―À Ilha

de Maré‖ de Ilhéus - cantada por Botelho -, porquanto se trata de um nome que designa a

matéria nativa e, por outro lado, se distancia porque a matéria nativa do Recife difere da de

Ilhéus, ainda mais se considerarmos a rivalidade existente entre Pernambuco e Bahia que

disputavam as benesses e graças da Metrópole. Sendo assim, é muito plausível que

houvesse uma antipatia congênita entre baianos e pernambucanos ligados às famílias

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tradicionais, o que João Cabral não deixa escapar na sua adjetivação ―abaianada‖ ou na

consideração retórica pelo estado vizinho, tal como está explícito no poema ―Um piolho de

Rui Barbosa‖.

A partir disso, não estranha que haja alguma razão no universo familiar oriundo de

Pernambuco para incorporar conflituosamente as referências deitadas no solo baiano. E

será sempre como releitura crítica que se dará a retomada de algum referente colonial, tal

como o que se desencadeia no célebre poema de Botelho de Oliveira ―À Ilha de Maré‖,

que é revertido pelo pouco conhecido ―Prosas da Maré da Jaqueira‖ de João Cabral. Note-

se que já no título o poeta pernambucano faz questão de situar a maré de que fala através

da locução adjetiva ―da Jaqueira‖, onde estava a casa de seu avô materno, local de seu

nascimento, referido no poema ―Autobiografia de um só dia‖. Para distinguir sua maré da

anterior, circunstancia um lugar que ganha sentido pelo eco da referência a Botelho.

Cavalgando no sentido de Maré, cria uma desestabilização para a locução adjetiva pelo

termo antecedente: ―prosas‖. Ora, para um poema cujo título traz a prosa como anúncio,

dá para se desconfiar de seu conteúdo. Ocorre que o desempenho poético do autor se dá a

contento, remetendo o termo contíguo à maré de seu título para a maré remota de seu

antecessor mais facilmente associado ao termo, que, em vez de poesia – segundo princípios

cabralinos – se ajusta à prosa no seu sentido mais pejorativo: de conversa fiada. Seja porque

não se estrutura devidamente ou porque é de Ilhéus e não do Recife, do Capibaribe, da

Jaqueira.

Em sua similitude na obra dos dois poetas, o termo ―Maré‖ designa uma confluência

de códigos e de interesses que simula a configuração de uma tradição existente, quando, na

verdade, a coincidência aponta para uma ruptura, já que não há retomada ou paródia do

termo anterior, e sim uma sobreposição que não a considera como referência legítima.

Sendo histórica a ruptura, fratura todo o entendimento do que venha a ser ―Maré‖, que

num caso remete à matéria nativa, arcaica e agrária e, no outro, à ambiência familiar, urbana

e moderna. Em vez de cavar uma identidade, a operação de João Cabral desmonta-a. Não

só como superação de uma época passada, o que interessa ao poeta moderno; não só pela

consistência conceitual presente na poesia cabralina e que adquire critério de validação

poética, mas porque João Cabral rejeita a construção do outro, a despeito de ser histórica e

formalizada segundo os critérios da época.

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Como se vê ―Maré‖ constitui, segundo a visão esboçada, o termo de associação

primeira entre os poetas, porquanto se oferece como figura do Barroco na medida em que

pretende observar nas respectivas obras o laço existente entre o referente e a linguagem,

entre uma imagem e a correspondente elaboração poética, entre a literatura e a história.

Aproximando os poemas distanciados no tempo, algumas semelhanças aparecem:

composições longas de forte caráter narrativo – o que já está expresso no título de João

Cabral de Melo Neto – e que descrevem a paisagem que adquire significado conforme as

circunstâncias, dado que as respectivas ―Marés‖ são distintas. A composição de Botelho de

Oliveira é três vezes maior do que a de João Cabral e mesmo este poeta, regido por

princípios de exigüidade e contenção, compõe o seu ―Prosas da Maré da Jaqueira‖ com 96

(noventa e seis) versos.

―À Ilha de Maré‖ descreve de modo alegórico a paisagem baiana na qual seu autor

identifica dádivas da natureza brasileira, que, invariavelmente, se apresenta mais florida,

mais viçosa e mais doce, através de seu Ar, de seu Ananás, de seu Açúcar – e todos os

demais AA. Trata-se, por conseguinte, de uma distinção que se faz em oposição à

Metrópole, à qual se dirigia num misto de divulgação da colônia, promoção do interesse

pessoal e representação literária do mundo que se lhe apresentava. Ora, sendo filho da

açucarocracia pernambucana pelos quatro costados, João Cabral não poderia se sentir à

vontade diante da divulgação e promoção de outra Maré senão a do Capibaribe, ainda mais

partindo da Bahia, que algumas vezes se promoveu às custas do sangue pernambucano –

tal como o fez vice-rei Conde dos Arcos por ocasião da retaliação à revolução de 1817 -,

cuja pretensão emancipatória esbarrou reiteradas vezes no jugo metropolitano,

circunstancialmente radicado na Bahia. Se quisermos aplicar o raciocínio à obra de Botelho

de Oliveira, dispomos da seguinte observação crítica.

A inserção plena de Manuel Botelho de Oliveira na vida econômica,

política e administrativa da Cidade de Salvador e do recôncavo baiano

– capital da América portuguesa e encruzilhada entre o Oriente,

África e Europa – esclarece o caráter panegírico de mais uma dezena

de composições de Música do Parnasso, pertencente aos coros dos

vários assuntos não amorosos, em todas as quatro línguas do livro.

(MUHANA, 2005, p. XXX)

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Também é verdade que a composição de João Cabral se guia pela experiência

subjetiva do autor que encontra no Capibaribe um veio que articula o espaço familiar

espalhado pela cidade que simboliza com a resistência do povo vincado naquele chão.

Assim sendo, ao descrever a Maré do Capibaribe, não é somente o espaço familiar que está

sendo celebrado – embora também o seja -, mas é o espaço familiar na medida em que

entretece a experiência subjetiva do autor e também um legado histórico que se incrusta ali

e passa, por isso, a ter um valor afetivo para o poeta. Daí a insistência de João Cabral na

revelação da história, porque se trata de uma matriz discursiva que tem valor sentimental

para sua família e, conseqüentemente, também para ele, na medida em que não esconde o

lugar social de onde fala nem se exime das possíveis implicações dali oriundas, como se vê.

Prosas da maré na Jaqueira25

1

Maré do Capibaribe

em frente de quem nasci,

a cem metros do combate

da foz do parnamirim26.

Na história, lia de um rio

onde muito em Pernambuco,

sem saber que o rio em frente

era o próprio-quase-tudo.

Como o mar chega à Jaqueira,

chega mais longe, até,

no dialeto da família

te chamava ―a maré‖.

25 Sítio pertencente a Virgínio Marques Carneiro-Leão, avô materno de João Cabral. Então, estava

localizado onde hoje há um bairro, já que o sítio não existe mais. 26 Remissão a uma das primeiras batalhas vencidas contra os holandeses.

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2

Maré do Capibaribe,

já tens de maré o estilo;

já não saltas, cabra agreste,

andas plano e comedido.

Não mais o fiapo de rio

que a seca corta e evapora:

na Jaqueira és maré,

cadeiruda e a qualquer hora.

Teu rio, quase barbante,

a areia não o bebe mais:

é a maré que o bebe agora

(não é muito o que lhe dás)

3

Maré do Capibaribe,

minha leitura e cinema:

não fica vazio muito

teu filme, sem nada, apenas.

Muita coisa discorria(s),

coisas de nada ou pobreza,

pelo celulóide opaco

que em sessão contínua levas.

Mais que a dos filmes de então,

Carrego tuas imagens:

mais que as nos rios, depois,

mais que todas as viagens.

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4

Maré do Capibaribe,

afinal o que ensinaste

ao aluno em cujo bolso

tu pesas como uma chave?

Não sei se foi para sim

Ou para não teu colégio:

o discurso de tua água

sem estrelas, rio cego.

de tua água sem azuis,

água de lama e indigente,

o pisar de elefantíase

que ao vir ao Recife aprendes.

5

Maré do Capibaribe,

mestre monótono e mudo,

que ensinaste ao antipoeta

(além de à música ser surdo)?

Nada de métrica larga,

gilbertiana27, de teu ritmo;

nem lhe ensinaste a dicção

do verso Cardozo28 e liso,

as teias de Carlos Pena29,

o viés de Matheos de Lima30.

27 Referência à prosa de Gilberto Freyre. 28 O poeta Joaquim Cardozo é o maior interlocutor de João Cabral, cujas menções aparecem pontual e

regularmente ao longo da obra cabralina. 29 Poeta pernambucano, a quem João Cabral devotou um poema, além da menção supracitada.

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(para poeta do Recife

Achaste faltar-lhe a língua).

6

Maré do Capibaribe

entre a Jaqueira e Santana31:

do cais, como tempo e espaço,

vão de um a outro, se apanha.

O tempo se vai freando

(lago que a brisa arrepie)

o rolo de água maciça

que enche e esvazia o Recife,

até frear, todo espaço

(lago sem brisa no rosto),

Frear de todo, água morta,

Paralítica, de poço.

7

Maré do Capibaribe,

estaria a lição nisso:

em se mostrar como em circo

nos quadros em equilíbrio?

Em se mostrar como espaço

ou mostrar que o espaço tem

o tempo dentro de si,

que eles são dois e ninguém?

30 Poeta muito estimado por João Cabral e irmão de Jorge de Lima. 31 Sítio contíguo ao da Jaqueira.

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Ou com tua aula de tísica

querias mostrar que o tempo

não é um fio inteiriço

mas se desfia em fragmentos?

8

Maré do Capibaribe

na Jaqueira, onde menino,

cresci vendo-te arrastar

o passo doente bovino.

Rio com quem convivi

sem saber que tal convívio,

quase uma droga, me dava

o mais ambíguo dos vícios:

dos quandos no cais em ruína

seguia teu passar denso,

veio-me o vício de ouvir

e sentir passar-me o tempo.

Antes de proceder a comparação através da transcrição dos poemas, conviria lembrar

que Botelho de Oliveira era um homem ligado à administração colonial – como, de resto,

Vieira, Antonil e (até certa altura) Gregório, - bem como produzia versos em paralelo a seu

ofício e assumia, portanto, sua literatura a meio caminho da distração. Distração não

destituída de elaboração rigorosa e sem descurar da divulgação e celebração do seu meio

circundante, como já foi observado.

Como Gregório, Botelho nasce em Salvador, de família abastada, e é

encaminhado para os estudos jurídicos em Coimbra. Seu retorno,

todavia, não é a fuga da Europa do seu inquieto conterrâneo, mas a

repatriação prevista e esperada do compassado ‗fidalgo do rei‘,

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daquele que, embora dedicando-se à agiotagem, sempre se acobertará

sob a capa da respeitabilidade advocatícia. (STEGAGNO-PICCHIO,

2004, p.103)

Por seu turno, João Cabral a exemplo de boa parte dos escritores de sua época era

funcionário público, com o adendo de servir ao Itamaraty, tendo chegado ao fim da

carreira na condição de Embaixador. O comentário interessa na medida em que radica

ambas as produções no plano da representação, mediado pelas funções sociais que os

autores exerceram a seu tempo, correspondendo a cada poeta um desempenho em função

de seu lugar social: ao primeiro, na condição de representante da expansão portuguesa na

América; ao segundo, na condição de rebento tardio e deslocado da açucarocracia

pernambucana, onde a afetividade com o torrão natal figura o vínculo com o seu chão.

Claro está, que o propósito aqui não é o de diminuir o valor das respectivas produções, mas

tão só atribuir-lhes o significado decorrente do local de pronunciamento do autor e seu

respectivo público, inscrevendo-as em momentos específicos e não destituídos de valor

simbólico, apesar da distância temporal. Senão, vejamos uma breve ilustração com alguns

dos trechos mais conhecidos da obra de Botelho de Oliveira.

As laranjas da terra

Poucas azedas são, antes se encerra

Tal doce nestes pomos,

Que o tem clarificado nos seus gomos;

Mas as de Portugal entre alamedas

São primas dos limões, todas azedas. [...]

As uvas moscatéis são tão gostosas,

Tão raras, tão mimosas,

Que se Lisboa as vira, imaginara

Que alguém dos seus pomares as furtara;

Delas a produção por copiosa

Parece milagrosa,

Porque dando em um ano duas vezes,

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Geram dois partos, sempre, em doze meses. [...]

As melancias com igual bondade

São de tal qualidade

Que quando docemente nos recreia,

É cada melancia uma colméia,

E as de Portugal lhe dão de rosto

Por insulsas abóboras no gosto. [...]

As romãs rubincudas quando abertas

À vista agrados são, à língua ofertas,

São tesouros das fruitas entre afagos,

Pois são rubis suaves os seus bagos.

As fruitas quase todas nomeadas

São ao Brasil de Europa trasladadas,

Porque tenha o Brasil por mais façanhas

Além das próprias fruitas, as entranhas. [...]

Vereis os Ananases,

Que para o rei das fruitas são capazes;

Vestem-se de escarlata

Com majestade grata,

Que para ter do Império a gravidade

Logram da c‘roa verde a majestade;

Mas quando têm a c‘roa levantada

De picantes espinhos adornada,

Nos mostram que entre Reis, entre Rainhas

Não há c‘roa no Mundo sem espinhas.

Este pomo celebra toda a gente,

É muito mais que o pêssego excelente,

Pois lhe leva avantagem gracioso

Por maior, por mais doce, e mais cheiroso. [...]

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A obsessão pela flora brasileira sugere, de imediato, o confronto com o poema

―Jogos frutais‖ do poeta pernambucano, que esmiúça tão criteriosamente quanto este as

propriedades das frutas nativas do Brasil, embora todo o seu discurso esteja voltado

conceitualmente para a materialidade do fruto e não para sua repercussão ou aceitação em

terras lusitanas, ao contrário do que acontece com Botelho de Oliveira que a todo o tempo

nomeia o reino português na composição, seja referindo-se à coroa, a Portugal ou a Lisboa

– variações da mesma reverência. Como a sucessão de estrofes evidencia que o público de

Botelho de Oliveira – como, aliás, todo autor colonial – estava radicado em Portugal,

cumpre designar os possíveis sentidos a serem depreendidos do seu discurso que se

radicaliza numa forma cifrada, como vemos no entrecho seguinte.

Tenho explicado as fruitas, e legumes

Que dão a Portugal muitos ciúmes;

Tenho recopilado

O que o Brasil contém para invejado,

E para preferir a toda a terra,

Em si perfeitos quatro AA encerra.

Tem o primeiro A, nos arvoredos

Sempre verdes aos olhos, sempre ledos;

Tem o segundo A, nos ares puros

Na tempérie agradáveis, e seguros;

Tem o terceiro A, nas águas frias,

Que refrescam o peito, e são sadias;

O quarto A, no açúcar deleitoso,

Que é do Mundo o regalo mais mimoso.

São pois os quatro AA por singulares

Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares.

Neste Ilha está mui ledo, e mui vistoso

Um Engenho famoso,

Que quando quis o fado antiguamente

Era Rei dos engenhos preminente,

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E quando Holanda pérfida, e nociva

O queimou, renasceu qual Fênix viva. [...]

Esta Ilha de Maré, ou de alegria

Que é termo da Bahia,

Tem quase tudo quanto o Brasil todo,

Que de todo o Brasil é breve apodo;

E se algum tempo Citeréia a achara,

Por esta sua Chipre desprezara,

Porém tem com Maria verdadeira

Outra Vênus melhor por padroeira.

A seleção desses trechos decorre da inconveniência de transcrever o poema em toda

sua extensão, o que foi remediado pela eleição dos trechos que melhor ilustram a relação

com a metrópole, junto a um desempenho estilístico descomunal. Aliás, a este respeito

Adma Muhana já havia chamado a atenção para o fato de que a escolha do ananás para

representar o Brasil seria uma maneira de buscar um meio de associação entre a flora

brasileira e a majestade lusitana, ilustrada pela coroa do fruto que funcionaria como símile

da monarquia portuguesa, a que devia servir e melhor servir quanto maior fosse o grau de

proximidade com os colonos ou com a coroa propriamente.

Subjaz ao encômio a exaltação da natureza brasileira como artifício retórico para

convencer a realeza portuguesa das conveniências de trasladar o reino para a colônia.

Projeto que só veio a cabo no século XIX, já existia desde o Seiscentos luso, fosse sob o

epíteto de ―Quinto Império‖ ou devido a complicadas sucessões dinásticas que

comprometeriam a soberania de Portugal. Por uma razão ou por outra, haverá sempre uma

parcela da corte e da diplomacia lusitanas a reivindicar o traslado do governo português

para o Brasil, como a crítica já anotara.

Entendendo-se Portugal como um corpo vasto com membros

separados, porém coordenados a partir da metrópole, tendo como

partes principais Brasil, Angola e Ìndia, desde a segunda metade do

século XVII, com as constantes ameaças de espanhóis, holandeses e

ingleses, a parte constituída pelo território do Brasil surge como a

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mais apta a sediar a cabeça do gigante colonial. [...] finalmente posta

em prática em 1808, com a vinda da família real para o Rio de Janeiro.

(MUHANA, 2005, p. XXVII)

Por isso, salta aos olhos no poema de Botelho de Oliveira a sedução provocada não

só pela doçura de suas frutas, a abundância de suas águas e a pureza de seu ar, mas também

pelo açúcar que era o principal símbolo de vantagem financeira. Dos quatro AA, era o

quarto A que interessava efetivamente a coroa portuguesa, mais do que árvores, água ou ar.

Sendo João Cabral obsessivo pelo número quatro - que veio inclusive dar título a um de

seus poemas, ―O número quatro‖ - decerto não lhe passou despercebido o enquadramento

retórico de Botelho de Oliveira. Tanto que, como o açúcar podia ser administrado na

metrópole, os outros objetos de consumo não se converteram em argumentos válidos para

a transposição governamental. Interessa, todavia, que o poema apresente a Bahia como

centro produtor de açúcar e do Brasil. Ora, se havia por parte das demais províncias a

resistência à Bahia pela maior proximidade com a metrópole, muito mais intensa vai ficar a

reação se a Bahia se apresentar como o legítimo produtor de açúcar e como o rincão mais

brasileiro, tal como está expresso no poema. Não vem ao caso se era de fato, e sim como

isso atravessa a afetividade dos poetas, em especial, a do pernambucano.

Ou seja, enquanto Botelho de Oliveira lançava mão da Maré de Ilhéus para

sedimentar uma imagem que viesse convencer o reino da viabilidade de investir no Brasil, o

poema de João Cabral utiliza a Maré da Jaqueira, para expressar toda a sua vida. Se

entendermos como vitais aquilo que João Cabral herda dos antepassados, o que orienta sua

experiência sensível e o que ele elege como modelo de representação. Em qualquer um

desses casos, veremos no rio Capibaribe uma instância de representação, assim como a

cana-de-açucar, porque laureiam no plano simbólico algo que passa a ser constitutivo do

universo eleito pelo poeta moderno. Daí a reincidência daquele rio na sua escritura, bem

como de palavras cujo radical ou núcleo semântico se desdobra da ―cana‖. Há, portanto,

uma diferença significativa na utilização que um e outro autor faz da Maré. No primeiro

caso, a Maré é transformada em condição instrumental do lugar que vem a representar. No

segundo, a Maré é a representação mesma de toda uma conjunção de fatores que

atravessam a afetividade do poeta, que ele vê objetivada. Isso acontece, por exemplo,

quando indica, descreve e nomeia a Maré como sendo própria da sua família, haja vista a

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predicação ―da Jaqueira‖, onde estava encravada a experiência ancestral, mas também o

evento de seu nascimento, circunstanciado no poema já mencionado ―Autobiografia de um

só dia‖. Por conta de tudo isso, os quatro AA de Botelho nunca poderiam ser cifrados do

mesmo modo por João Cabral. Neste sentido, também a experiência histórica reforça o

argumento, uma vez que o registro dos fonemas vem a ser símile da realidade, o que

também já foi assinalado a propósito da obra de Botelho de Oliveira.

A representação das letras como signos de realidades essenciais é um

lugar comum e cabalístico, que recupera em outro lugar noções já

vistas da potência sonora como semelhança conceitual. Isso ocorre

inclusive nos primeiros cronistas do Brasil que repetem com

insistência a máxima de que as diversas línguas dos índios do Brasil

não têm, nenhuma delas, nem F, nem L, nem R – por nenhum deles

terem Fé, Lei ou Rei. Aqui o poeta usa o mesmo procedimento de

tomar a letra A como signo dos conceitos elegidos, porém não para

vituperar, e sim para fazer uma súmula do elogio à ilha, que em si

perfeitos quatro AA encerra. (MUHANA, 2005, p. LXXXVII)

Quanto ao valor representativo inerente ao fruto da terra brasileira, um dado a

considerar é que o primo de João Cabral, Gilberto Freyre, esboçou uma narrativa

consoante a qual o desenvolvimento do Brasil estaria condicionado à produção do açúcar e

seria Pernambuco o seu centro produtor, chegando mesmo a escrever um livro de receitas

que ilustra o modo como o objeto de consumo representa nossa sociedade, sob o título de

Açúcar. João Cabral quando escreveu o poema ―Prosas da Maré da Jaqueira‖, que veio a ser

publicado em 1980, já tinha se desfeito de todos os seus preconceitos ideológicos e

houvera se transformado em leitor voraz daquele seu primo (MELO NETO, 1981: 102)

como relatou em várias entrevistas e registrou em vários poemas, inclusive no que ora é

objeto de análise.

Além disso, João Cabral havia experimentado a sociabilidade canavieira por ter

vivido nos engenhos de cana-de-açucar herdado ou arrendados por seu pai, o que também

registrou no poema ―Menino de três engenhos‖. Como se não bastasse, toda a sua

parentela era composta de proprietários de terra e de engenhos, que circundavam o

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Capibaribe. De modo que falar do rio – ou de sua Maré -, para o pernambucano funciona

ao mesmo tempo como uma maneira de acionar uma matriz historiográfica enraizada no

seu seio familiar e também como evocação de um tipo de sociabilidade inscrita naquele

espaço, contíguo ao rio, cuja propriedade passou à sua família de geração a geração durante

séculos. Com isso, o poeta promove a rememoração de sua experiência infantil e juvenil,

que se constituía junto ao rio que descreve no poema como ―o próprio-quase-tudo‖, fosse

em decorrência de sua vivência ali, do que ouvira de seus antepassados ou do que elegera

como objeto de representação literária.

Daí se depreende uma compreensão de literatura que é vincada num espaço social,

que é mediado pela experiência familiar, com a qual se confunde. Nesta medida, a

representação social da obra cabralina sofre forte interferência do olhar de sua família, que

inscreve num lugar determinado sua própria história e a transfere como modalidade

expressiva da representação do Brasil. Por outra via, aí podemos identificar algo parecido

com o que ocorria com Botelho de Oliveira, ainda que sob o véu de outros interesses e

determinações. Por uma ou por outra razão, no confronto entre os poetas, fica-nos como

saldo um balanço bastante modesto, porque só realça os conflitos sociais envoltos nos

conflitos lingüísticos que atravessaram o Atlântico de Portugal ao Brasil, onde já havia uma

disputa acirrada desde o século XVII também no plano lingüístico. Ao menos, em sua

porção literária que é onde talvez a representação social seja mais eficazmente identificável.

Referências bibliográficas

FREYRE, Gilberto. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997

MELO, Mário. ―Suplicio de Frei Caneca‖ in: Revista do Insituto arqueológico, histórico e geográfico

pernambucano. Recife: oficinas gráficas da repartição da república oficial,1924. V. XXVI pp.

335-342.

MELO NETO, João Cabral. ―João Cabral de Melo Neto‖ in: STEEN, Edla Van. Viver e

escrever. Porto Alegre: L&PM,1981. p. 99-109

___________________. Obra completa. Organização Marly de Oliveira. Rio de Janeiro:

Nova Aguilar, 1994.

_____________________. Poesia completa e prosa. Organização Antonio Carlos Secchin. 2ª

ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

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MUHANA, Adma Fadul. ―Introdução‖ in: OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Poesia completa.

São Paulo: Martins Fontes, 2005.

STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 2004.

TEIXEIRA, Ivan. ―A poesia aguda do engenhoso fidalgo Manuel Botelho de Oliveira‖ in:

OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnaso. Cotia: Ateliê, 2005.

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2. PAISAGENS DO CAPIBARIBE: ESPESSURA DA VIDA NA POÉTICA

DE JCMN

Lenise dos Santos Santiago

(UFRN)

A poesia de João Cabral de Melo Neto se apresenta como um laboratório de

linguagem e no trabalho de construção e reconstrução o poeta constrói um rigoroso jogo

de imagens cinematográficas, como se fosse uma provocação ao leitor para que este possa

deglutir a palavra, a linguagem e, daí, surgindo o efeito sinestésico. Dessa forma, o

trabalho consciente de ordenação das palavras faz surgir uma exaltação do silêncio

configurado através dos elementos: deserto, secura, rio e pedra. O poeta anuncia o deserto

como o espaço geográfico escolhido para instaurar a metáfora do silêncio que também se

apresenta como metáfora da infertilidade e da negatividade, tais elementos articulam-se em

busca do significado e significação do fazer poético e nada mais próprio que a aridez do

deserto para provocar a exploração dos sentidos e, é, no silêncio do deserto, que a visão,

um dos sentidos da notória predileção de João Cabral, é aguçada.

A obsessão pela visualidade também se explica pelo desejo de negar a herança oral

da poesia brasileira, ou seja, a aversão ao verso retórico (heptassílabo ou decassílabo), como

também, à insistência ao uso da rima com cesura interna. Sua restrição ao senso comum da

musicalidade na poesia, que julgava de efeito sonífero, explica sua forte aproximação com

as artes plásticas. Tomando de empréstimo aspectos visuais da pintura – embora sem

competir com ela, pois os usa em um sentido estritamente verbal -, Cabral enriquece o

fazer poético e a própria linguagem, que, na dinâmica de produção de imagens,

tradicionalmente, não pode prescindir da intermediação da imaginação. A visualidade é

mais uma idéia no repertório cabralino como a insistência de uma luz solar incidindo

ortogonalmente sobre o solo de sua poesia. Assim sendo, podendo-se dizer que é um

exemplo de poesia sensitiva, em que a linguagem, pelo processo de desdobramento, se

revela num veículo de construção da imagem.

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Conforme postula Octavio Paz (1982, p. 46) vem nos lembrar que na poesia ―Os

estados passivos não são nada mais que experiências do silêncio, e o vazio nada mais é que

momentos positivos e plenos: do núcleo do ser jorra uma profusão de imagens‖. Este

conceito parece estar bem crivado na poesia de João Cabral, pois os elementos o silêncio e

o vazio não representam um estado de alienação, mas uma metáfora que relaciona a

consciência da participação da poesia na mediação entre a sociedade e o produto dela, sem,

porém, criar ideologias, porque, através da poesia o poeta e o leitor, ou melhor,

especificando, o homem se depara com os fundamentos do seu ser, ou seja, com uma real

identidade, refletida pela palavra.

Tomando como referência Sarduy (1989, p. 54), em seu estudo sobre o barroco,

encontramos reflexos de retórica na obra cabralina, ao referirmos sobre o vazio que os

personagens rio/homem configuram.

A prática do barroco é uma retórica: a linguagem, funcionamento de um

código autônomo e tautológico, não admite na sua rede densa, carregada,

a possibilidade de um eu gerador, de um emissor individual, central, que

se exprima - o barroco funciona no vazio -, que oriente ou contenha o

transbordar dos signos.

A luta entre a voz e o silêncio, ou melhor, a confrontação do poeta com o limite de

sua voz é notória em Psicologia da Composição (1947), obra em que se evidencia a

epígrafe Riguroso horizonte 32 de Jorge Guillén. Como também em Morte e vida severina

(1956), através da peregrinação silenciosa do personagem Severino, o poeta retoma o

processo de ―desemplumação‖ da linguagem. Marcada pelo prosaico, a linguagem se

configura como uma tentativa de superação do vazio, tentativa que se revela impotente

para o estabelecimento do contato e descoberta do novo mundo. Severino, em todos os

contatos mantidos durante sua trajetória, só consegue fazer uma descoberta: é Severino

igual a todos os outros. Essa homogeneidade parece caracterizar a imagem do homem

barroco/moderno que traz consigo o pessimismo do drama do barroco e resistindo

penosamente ao mundo é subserviente à moral estóica. O personagem Severino como

personificação de tantos outros severinos, empreende todos os questionamentos e

32 Primeiro verso do poema El horizonte, de Jorge Guillén.

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angústias vivenciais, dentre eles, o limite da linguagem em face à existência precária que o

persegue, se questiona e se confronta com o limite das respostas e do silêncio:

[...]

- Severino, retirante,

pois não sei o que lhe conte;

sempre que cruzo este rio

costumo tomar a ponte;

quanto ao vazio do estômago,

se cruza quando se come.

- Seu José, mestre carpina,

e quando ponte não há?

quando os vazios da fome

não se tem com que cruzar?

quando esses rios sem água

são grandes braços de mar?

[...]

Seu José, mestre carpina,

e quando é fundo o perau?

quando a força que morreu

nem tem onde se enterrar,

por que ao puxão das águas

não é melhor se entregar?

- Severino, retirante,

o mar de nossa conversa

precisa ser combatido,

sempre, de qualquer maneira,

porque senão ele alaga

e devasta a terra inteira.

(MELO NETO, 1994, p. 193, 194) (grifo nosso)

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A linguagem como um signo imanente ao homem e às suas relações, reflete a

condição de existência social. Compreende, ainda, à relação comum que ele mantém com o

signo e seus significantes, por isso, Seu José, mestre carpina, percebendo a angústia de

Severino, atenta para o perigo que o mar da linguagem não bem arquitetada pode lhe

causar. O mar de uma entrega, que deve ser freado pelo mar do silêncio, precisa ser

enfrentado para acabar com o risco de não ser domado. Do mesmo modo o rio na cheia,

com seu discurso descontrolado, precisa ser evitado. Por estar passivo às suas limitações, o

confronto do homem com suas experiências e angústias leva-o ao vazio e ao drama da não

resposta. Experiência esta que poderia ser apontada como um fato negativo, no entanto,

poderíamos ver como veículo que o conduz a um estado de retorno a si e, ainda, como

uma tentativa de compreensão da própria linguagem. Dessa forma, a experiência do

silêncio deve ser vista como um vetor de reconciliação do homem consigo e com o mundo.

Através do exercício da poesia, a experiência do silêncio rompe com as barreiras de tempo

e espaço unindo o poeta às suas fontes de compreensão.

Como o rio Capibaribe, Severino se define por sua natureza desvalida – ambos

estão sujeitos a um destino de penúria, motivados pela seca. É a marca da carência que os

aproxima e os une numa poética de travessia. Sempre se mirando, um sendo o eco do

outro, rio e homem mal podem ser distinguidos. Sente-se que o rio identifica-se com o

viver nordestino, ou mesmo que o rio e a vida compartilham da mesma sina ―severina‖. A

relação isomórfica entre rio e homem torna-se, na poética de João Cabral, metáfora de

realidades amplas e, ao mesmo tempo, projeção simbólica de procedimentos de uma

cultura regional que se projeta diante da precariedade da sobrevivência. Com isso, percebe-

se a semelhança de enredo social entre os poemas narrativos O rio e Morte e vida

severina, ambos nascem da mesma razão sociológica como também do uso do prosaico,

do polirrítmico, aderente às flutuações da linguagem coloquial. A absorção da oralidade é

muito bem expressa no poema O rio. O Capibaribe é uma espécie de narrador etnográfico

subjetivo que, conforme Benedito Nunes (1974, p. 79), ―de tudo que vê, dá correta notícia

oral ao poeta, mencionado no texto como senhor da freguesia de Tapacura‖. Assim, o

poema como forma de documentário é o registro poético de um percurso de viagem que,

por diversos níveis: o geográfico, o humano e o social, anunciam e denunciam a penúria do

meio regional.

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Através da linguagem catalisadora de metamorfoses, transmutam rio em homem e

homem em rio, tornando esses elementos temáticos em seu relacionamento recíproco,

imagens poéticas confluentes. Nisso, a travessia d`O rio do Capibaribe pela cidade do

Recife confunde-se com a travessia de Severino do Agreste pela Zona da Mata

pernambucana ao Recife, levando consigo os tantos rios que tantos severinos buscam. Nos

poemas O rio e Morte e vida severina, apresentam-se duas histórias – Severino, retirante

e o Capibaribe, rio cujo leito leva ao Recife, ambos buscam o mesmo espaço, conscientes

do mesmo destino.

As realidades do rio e do homem não estão isoladas. As contradições e as oposições

estão caracterizadas através do ―discurso‖ do rio, traduzindo-se a realidade porque passam

e daí entram num processo de transmutação: N´O rio realiza-se a transmutação

rio/homem.

Os rios que eu encontro

vão seguindo comigo.

Rios são de água pouca,

em que a água sempre está por um fio.

(MELO NETO, 2000, p. 14)

Em Morte e vida severina acontece a transmutação homem/rio, em que, através

de determinado processo, o conceito da realidade severina favorece à construção de um

outro eu:

Ao entrar no Recife,

não pensem que entro só.

Entra comigo a gente

que comigo baixou

por essa velha estrada

que vem do interior;

entram comigo rios

a quem o mar chamou;

entram comigo gente

que com o mar sonhou,

(Ibid., p. 30)

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Entre os elementos metafóricos, o rio e o homem, originam um sistema de

equivalência em que o rio humanizado e o homem fluvializado confundem suas naturezas,

em face de um estado de precariedade por ambos compartilhados. O rio que se transmuta

em homem carrega consigo todas as mazelas dos migrantes severinos que abandonam o

sertão rumo ao litoral, encontrando em sua longa viagem apenas a morte. É o que segue

em O Rio:

Tudo o que encontrei

na minha longa descida,

montanhas, povoados,

caieiras, viveiros, olarias,

mesmos esses pés de cana

que tão iguais me pareciam,

tudo levava um nome

com que poder ser conhecido.

A não ser esta gente

que pelos mangues habita:

eles são gente apenas

sem nenhum nome que os distinga;

que os distinga na morte

que aqui é anônima e seguida.

São como ondas de mar,

uma só onda, e sucessiva.

(Ibid., 38, 39 e 46) (grifo nosso)

[...]

Somos muitos severinos

Iguais em tudo na vida:

Na mesma cabeça grande

Que a custo se equilibra,

No mesmo ventre crescido

Sobre as mesmas pernas finas,

E iguais também porque o sangue

Que usamos tem pouca tinta.

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E se somos severinos

Iguais em tudo na vida,

Morremos de morte igual,

Mesma morte severina:

[...]

(Ibid., 38, 39 e 46 - grifo nosso)

Compondo uma escritura fortemente voltada para a captação da realidade social e

humana, os poemas recriam paisagens dessublimadas, dão a ver um espaço depurado de

imagens idealizadas, resultando o texto poético numa mescla de esferas que abarca o

regional e o universal. E, essa universalidade vem configurar no texto cabralino, nuances do

barroco. As inquietações, esperanças e desesperanças dos severinos-rios ressoam os

questionamentos próprios do ser humano, em qualquer parte e em todos os tempos.

Podemos perceber, então, que o que alimenta e embasa os textos em estudo não é

somente a ligação temática da escritura com o povo, com o cotidiano, com a experiência,

com a natureza, mas, também, a opção estilística direcionada para o reaproveitamento de

expedientes com que a gente do nordeste constrói suas narrativas, imprimindo sentido ao

seu existir. Daí um trabalho com a linguagem que, adotando mecanismos intertextuais,

remete às tradições folclóricas, ao estilo dos cantadores e ao romanceiro popular, fonte de

que provém grande parte do material poético. Isso é bem observado por Alfredo Bosi

(1994, p. 471) quando aponta: ―O convívio com a meseta castelhana dos homens de pão

escasso e com a poesia ibérica medieval, há um tempo severa e picaresca, acentuou em

Cabral a tendência de apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da

vivência nordestina‖. Observação esta percebível em toda a obra cabralina, sobretudo em

Morte e vida severina.

Na trajetória retirante, tanto de Severino quanto do poema, aparece uma articulação

de construção da peça às avessas. Pois, nada mais é que uma antítese, a presença da morte

que paradoxalmente busca a vida é, por excelência, o eixo da narrativa. Assim, contrariando

a lei natural da vida, temos, portanto, uma despoetização da existência. Dado este

percebido pelo próprio retirante ao declarar:

– Desde que estou retirando

só a morte vejo ativa,

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só a morte deparei

e às vezes até festiva;

só a morte tem encontrado

quem pensava encontrar vida,

e o pouco que não foi morte

foi de vida severina

(aquela que é menos

vivida que defendida,

e é ainda mais severina

para o homem que retira).

(MELO NETO, 1994, p. 177 - 178)

Luiz Costa Lima, em Lira e antilira (1995, p. 270), observa que todo o poema é

construído a partir de um desdobramento ―mais que a história de Severino retirante, o

poema é um desdobramento por dentro do que signifique a imagem da morte e vida

severina‖. Considerando que acontece um desdobramento do personagem naquilo que

vem retratar o caminho que Severino e o rio se propõem a fazer, se observa que o nome do

herói dramático ―Severino‖ passa de substantivo próprio a, também, substantivo comum,

pois na sua caminhada encontra diversos ―severinos‖, é qualquer um, ou seja, todos. É,

também, substantivo abstrato pela própria condição que nomeia sua vida severina e é

concreto porque os dois termos que articulam o poema ―morte e vida‖ são tão concretos

quanto o próprio personagem – Severino. Essa característica do desdobramento é

detectada não somente em Morte e vida severina, mas, também, nas co-relações temáticas

do conjunto literário cabralino. As obras O cão sem plumas, O rio e Morte e vida

severina apresentam uma maior evidência por acomodar uma tensão temática coletiva,

pois os elementos poéticos cão, rio, homem são construídos a partir de um molde

descritivo através do poema narrativo, os quais mantêm uma relação de traspassamento,

em que todos eles sincronicamente compõem uma extensão de suas imagens, descritas

como opacas, espessas, estagnadas. É o que apresenta os versos a seguir de O cão sem

plumas:

§ Como o rio

aqueles homens

são como cães sem plumas

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(um cão sem plumas

é mais

que um cão saqueado;

é mais

que um cão assassinado.

§ Um cão sem plumas

é quando uma árvore sem voz.

[...]

§ O rio sabia

daqueles homens sem plumas.

[...]

(MELO NETO, 1994, p. 105 – 108)

Em, O rio:

[...]

Eu não sei o que os rios

têm de homem do mar;

sei que sente o mesmo

e exigente chamar.

[...]

Vou andando lado a lado

de gente que vai retirando;

vou levando comigo

os rios que vou encontrando.

[...]

Vou na mesma paisagem

reduzida à sua pedra.

A vida veste ainda

sua mais dura pele.

Só que aqui há mais homens

para vencer tanta pedra,

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[...]

Há aqui homens mais homens

que em sua luta contra a pedra

sabem como se armar

com as qualidades da pedra.

(Ibid., p. 119, 121 e 124)

Em Morte e vida severina, revela-se a voz do rio. O discurso do Capibaribe é

personificado através do personagem Severino, fazendo, então, acontecer o desdobramento

do discurso que se amplia passando por diversos níveis descritíveis – o geográfico, o

humano e o social, os quais se integram entre si, dentro de uma mesma realidade. Severino

insiste, tentando fazer-se ouvir:

[...]

Como então dizer quem fala

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias

(Ibid., p. 171 ) (grifo nosso)

O herói nordestino, de forma cerimoniosa, usando o pronome de tratamento na

segunda pessoa do plural (vossas senhorias), dirige-se ao público que não se empolga com

sua apresentação, tendo em vista que ele ―Severino‖ é simplesmente mais um dentre tantos

outros. Configurando, mais uma vez, o desdobramento do perfil do personagem, afirma:

―Mas isso ainda diz pouco: [...] se ao menos mais cinco havia [...] com nome de Severino

[...] filhos de tantas Marias‖. Demonstrando a responsabilidade com o objeto poético em

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relação à composição e à tessitura, o poeta constrói um desdobramento interno da imagem

que se transpõe para o nome do personagem, seu prosaísmo voluntário da linguagem

configura o romanceiro popular do nordeste expresso através da uniformidade dos versos

em redondilha. A responsabilidade do poeta não somente quanto artista, mas, sobretudo

ética, leva o leitor à construção de uma leitura também ética, visto que o texto não é

simplesmente o lamento do personagem que se mostra pobre e impotente e sim uma

chamada à consciência, de forma elegante e intelectualizada, ao comprometimento

humano, social, cultural e artístico.

REFERÊNCIAS

LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

__________. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, n. 1. Março, 1996.

NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto: Poetas modernos do Brasil. 2.ed.

Petrópolis: Vozes, 1974.

PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SARDUY, Severo. Barroco. Trad. Maria de Lurdes Júdice e José Manuel de Vasconcelos.

Lisboa: Vega, 1989.

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3. O TEATRO DA MORTE E DA VIDA: A ESCRITA BARROCA DE JOÃO

CABRAL DE MELO NETO

Francisco Israel de Carvalho (UFRN)

A obra objeto deste trabalho é o poema/peça Morte e vida severina – O Auto de Natal

pernambucano, quando procuramos identificar marcas, rastros, confluências do Barroco

como expressão da modernidade, na obra cabralina. O Barroco em que todos os poetas de

vanguarda se inspiraram, por ser um estilo de elaboração da linguagem como expressão

poética, tradição que chega aos poetas contemporâneos como Severo Sarduy, Eugênio

D´Ors, Haroldo de Campos, Lezama Lima, críticos e teóricos do século XX.

Assim, em Morte e vida severina, João Cabral trata temas clássicos do Barroco, como

morte e vida, no mesmo plano da importância, construindo o seu poema entre esses dois

paradoxos da existência humana, fazendo uma releitura desse Barroco que rompe as

fronteiras do Século XVII. Em Morte e vida severina, o personagem vive toda a via crucis da

vida do sertanejo, sempre às voltas com as constantes estiagens e o êxodo rural

permanente. Vê a morte de perto, carrega todas as dores da alma nordestina na busca pela

sobrevivência: morte e vida, dor e alegria, seca e abundância, desilusão e esperança.

A escrita de João Cabral de Melo Neto transporta para o século XX essa

contemporaneidade do Barroco, em um rigoroso trabalho de construção da linguagem,

onde a métrica e as palavras são minuciosamente trabalhadas. Nesses termos, encontramos

uma relação Barroco versus Modernidade em Morte e vida severina, no que afirma Irlemar

Chiampi:

A relação Barroco x Modernidade quer situar-se, pois, após o debate

acadêmico gerado com a oposição entre um conceito do Barroco como

estrutura histórica (um estilo, uma prática discursiva do Século XVII),

fortemente ligado à Contra-Reforma, às monarquias e à classe aristocrática –

logo, reacionário e antimoderno – e o conceito de barroco eterno, atemporal,

uma forma que ressurge, não importa quando nem onde.

(CHIAMPI, 2000, p. XVII)

Além do Barroco que permeia toda a obra Morte e vida severina é de importância destacar

também os aspectos formais e estruturais da composição, além de toda temática voltada para as

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questões de ordem social que afligem o Nordeste e os nordestinos, tais quais: a constante

estiagem e o domínio do latifúndio que exclui do setor produtivo grande parte da população

nordestina. Neste contexto, a poesia cabralina surge como uma voz que denuncia as situações,

mas não anima as controvérsias, revela os desequilíbrios como estratégia, mas não aponta

soluções, porque não é esse o papel da poesia. Apenas mostra, expõe a ferida.

No discurso de Severino há um nivelamento dos muitos outros sertanejos severinos.

Justificando essa constante diáspora do homem sertanejo na morte e na vida cabralina, Antonio

Carlos Secchin assim escreve:

Em Cabral, o Sertão nasce para anunciar a morte: sertão, serthânatos.

Natureza desfalcada, palco de atores-bichos, homens, rios – em perpétua

retirada, ele também não deixa de ser, por contraste, o emulador de uma

afirmação vital: viver nele, apesar dele. É nesse jogo entre devastação e

resistência que a poesia da morte e vida cabralina vai tentar traduzir o

Sertão. Traduzi-lo num viés etimológico: atravessá-lo, levá-lo além, de um

ponto a outro: do verso do poeta ao reverso do deserto (ou desertão) onde a

vida severina pede passagem. Traduzir o deserto solar do Sertão no deserto

polar da página branca, pois ―o sol de palavra/é natureza fria‖ (MELO

NETO, 1994: p.414).

(SECCHIN, apud CAMPOS [org], 1995: p.12-15)

Nesse sentido é que lançamos um outro olhar sobre Morte e vida severina, obra que levou

João Cabral a tratar de um tema clássico do Barroco: a morte. Focalizaremos essa tendência

barroca de trabalhar os opostos no mesmo plano de valor: morte e vida, vida e morte, alegria e

dor, seca e abundância, fome e fartura, herói e anti-herói, o um e o múltiplo, o jogo da parte

pelo todo, o bem e o mal. Essa peleja entre a morte severina e a vida severina é tratado por João

Cabral em todo o percurso de seu personagem principal, que tem uma existência esgueirando-se

entre a morte e a vida, morte física e social, individual e coletiva.

Vemos no personagem central do poema, o Severino retirante, características do

homem barroco vivendo situações diferentes, em mundos diferentes, entretanto, trazendo no

corpo e na alma, a mesma angústia, o medo, a incerteza, a perplexidade diante do novo. A

incerteza da existência, o subdesenvolvimento das regiões pobres esmagadas pelas sociedades

mais ricas e industrializadas, aproximam esses homens tão longe e tão perto, a um só tempo.

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Vejamos as palavras de Ávila (2000: p. 26) sobre essa ligação entre o homem de hoje e o

homem barroco:

O homem barroco e o do Século XX são um único e mesmo homem

agônico, perplexo, dilemático, dilacerado, entre a consciência de um mundo

novo – ontem revelado pelas grandes navegações e as ideias do humanismo,

hoje pela conquista do espaço e os avanços da técnica – e as penas de uma

estrutura anacrônica que o aliena das novas evidências da realidade – ontem a

contra-reforma, a inquisição, o absolutismo, hoje o risco da guerra nuclear, o

subdesenvolvimento das nações pobres, o sistema cruel das sociedades

altamente industrializadas.

Nesta afirmação, Ávila tanto coloca o personagem Severino no mesmo patamar de crise

do homem barroco, como o próprio artista moderno, que assume, absorve, na sua arte, o

mesmo ―status–quo‖ dos seus personagens, criando versos/formas agônicas, perplexas,

dilemáticas, retratando o mundo atual. fazendo da viagem do retirante, uma empreitada da

própria existência, procurando respostas, caminhos, alternativas, saídas...para entender a

realidade de um mundo tão cruel. Como afirma Ávila (2000: p. 35):

Um João Cabral de Melo Neto, ao trabalhar num remordimento formal

barroco seus poemas que têm como pretexto o Nordeste açucareiro, faz

incidir a sua visão crítica e criadora sobre a mesma realidade, a mesma

estrutura econômica monocultura, a mesma sociedade de raízes patriarcais,

feudais, que suscitaram no Século XVII a veemência satírica de Gregório de

Matos.

A presença de um Barroco, ou de um Neobarroco – como nomeia Omar Calabrese – ,

que não tem registro de nascimento, não é vinculado à Igreja como uma arma mortal da

Contra-Reforma. Um passado que é recuperado por João Cabral com gosto de presente, de

atualidade, buscando no Barroco, algo que podemos chamar de modernidade, extraindo o

poético do histórico, o eterno do transitório. Conforme Ávila (idem: p.34)

Há sem dúvida uma insinuação de formas barroquizantes em toda aquela

vertente literária que entre nós se caracteriza pela propensão inventiva, pela

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criatividade da linguagem, pela ascendência da informação estética sobre a

semântica.

E é o que faz João Cabral. Com uma escrita inventiva e bem elaborada, ele tanto lança

mão das técnicas da poesia popular do Nordeste, quanto do cancioneiro popular/erudito da

tradição ibérica, quando utiliza o heptassílabo e a assonância. Há ―um método‖, um modo na

escrita cabralina, assim como existia no Barroco, no qual aparentemente se instalava a

desordem, o desperdício, o inacabado, a instabilidade, a insegurança, o imprevisível, a não-

ordem, havia uma harmonia interna fazendo a ligação do pormenor ao todo e relações nas quais

os elementos contraditórios se explicavam.

Na escrita cabralina, o Barroco tem um gosto do nosso tempo, aparentemente confuso,

fragmentado, em ruínas e indecifrável, assim como no Seiscentos. Fugindo da etiqueta de uma

escola de arte específica, não representa também um ―retorno‖ ao Barroco, mas um Barroco

que começa a ter um significado de ―constante‖. Para Calabrese (2000: p.10):

O ―Neobarroco‖ é simplesmente um ―ar do tempo‖ que alastra a muitos

fenômenos culturais de hoje, em todos os campos do saber, tornando-os

parentes uns dos outros, e que, ao mesmo tempo, os faz diferir de todos os

outros fenômenos de cultura de um passado mais ou menos recente.

João Cabral instaura, em Morte e vida severina, todo esse estado de coisas que o aproxima

do Neobarroco quando denuncia, por meio do seu personagem central – o Severino retirante e

o outros personagens flutuantes da história –, uma situação de miséria e abandono do homem

do Nordeste a qual se arrasta há séculos. Essa mesma situação que ele próprio testemunhou,

quando criança, e que o acompanhou durante a vida em outros países. O enredo de Morte e vida

severina, engendrado por Cabral, confirma o ―ser barroco‖ nos tempos modernos, como define

Sarduy (1989: p.96):

Arrisco-me a defender o contrário. Ser barroco hoje significa ameaçar, julgar

e parodiar a economia burguesa, baseada numa administração avarenta dos

bens: ameaçá-la, julgá-la e parodiá-la no seu próprio centro e fundamento. O

Barroco moderno, o Neobarroco, reflete estruturalmente uma discordância: a

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ruptura da homogeneidade, a ausência de um logos absoluto, a carência em

vez do fundamento como episteme.

Tomando como suporte as palavras de Severo Sarduy e Omar Calabrese, identificamos

na escrita de Morte e vida severina rastros desse Barroco regional, caracterizado por uma escrita

inventiva, estruturada minuciosamente e elaborada sem a ―inspiração‖ comum aos poetas.

Entretanto, essa escrita é trabalhada mentalmente, através de um rigoroso trabalho de

linguagem e construção – a dura poesia cabralina feita de ―pedra bruta‖ e lapidada como a

―pérola irregular‖ do Barroco.

Em Morte e vida severina, o personagem principal, a começar pelo próprio nome, já nos

leva a uma discussão dos significados possíveis nele contidos – Severino, que de nome próprio,

um ser individual, passa a representar o coletivo: todos os que sofrem, mesmo que em

situações diferentes. É ele que articula os dois sintagmas: morte e vida, vida e morte presentes

em todo o percurso do retirante. João Cabral, para contar a história do Severino, utiliza a forma

dramática do teatro, como a dizer: Morte e vida severina é um poema não apenas para ser lido em

voz baixa, mas, para ser visto, representando, teatralizado, como recomenda a estética barroca.

Nesse sentido, Morte e vida severina se inscreve como uma obra do teatro barroco, o

teatro da morte e da vida, não sendo possível distinguir o que é palco e o que é realidade.

Nessa perspectiva, conforme Sant‘Anna (2000: p. 165):

No Barroco, portanto, o espetáculo transcende as paredes do teatro, exorbita

nos rituais religiosos, faz seu jogo de cena nos palácios e estende-se pelas

ruas e campos de batalha. A própria vida não passa de um ato dentro de um

drama que dirigindo-se para a morte espira ambiguamente do trágico e ao

sublime.

A viagem de Severino nada mais é que a representação da vida severina dos homens do

sertão, mas também uma representação que diz da própria realidade. O personagem central, os

cenários, os personagens secundários são obra de ficção e são reais. O simulacro do que é real e

do que é fantástico, mítico. Eles existem na imaginação do poeta e na vida real e são facilmente

identificados. O que em Morte e Vida é palco e o que é realidade? O palco funciona como um

espelho da realidade, sendo o espaço cênico reinventado com a história ―verdadeira‖ do

personagem, que tem como característica a inconstância de um ser que é uno, individual e

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coletivo ao mesmo tempo. É um e muitos. E esse é um dos traços principais do Barroco. Assim

é em Leibniz o conceito das mônadas: a mônada é um ser uno, assim como a mente, mas só é

distante da outra pela sua atividade interna. Contudo, cada mônada espelha o universo inteiro,

mesmo sendo essa unidade. Para Leibniz, ―só o indivíduo existe, e ao mesmo tempo, existe em

virtude da potência do conceito: mônada ou alma‖ (DELEUZE, 1991, p.101).

Podemos fazer relações desse conceito das mônadas com as primeiras cenas de abertura

de Morte e vida severina quando nos trinta primeiros versos, Severino tenta apresentar-se ao

público/leitor, mas depara-se com uma dificuldade: a falta de individualidade, pois mesmo

sendo um único indivíduo, representa cada retirante despersonalizado, sem passado ou futuro,

sem esperanças e ao mesmo tempo, há uma identidade coletiva contida em si mesmo e,

representada por ele próprio: ―E se somos muitos Severinos /iguais em tudo na vida,

/morremos de morte igual, /mesma morte severina: (MELO NETO, 1994: p. 172)

Esse Severino representa outros Severinos ―iguais em tudo na vida‖, iguais até na mesma

morte ―severina‖, desdobra-se em outros, aumenta, cresce, multiplica-se em outros. A desdobra

não seria o contrário da dobra, mas segue a dobra até outra dobra. (DELEUZE, 1991, p.18).

Seria uma transformação ou a extensão do outro. Nesse sentido, há em Severino essa

característica barroca de ser multifacetado, que traz consigo a mesma dor, a mesma sina, a

mesma igualdade, a mesma morte, os mesmos desejos de outros iguais a ele.

Como diz Nunes (1974: p. 82-83), contraditoriamente, Severino dá nome ao que é

anônimo, ao que é vinculado pela igualdade do anonimato, tanto na vida como na morte –

morte e vida formando um todo em que a primeira envolve e determina a segunda. Ele, como

figura, é o avesso do belo. É o oposto, o grotesco. João Cabral rompe a ideia de só se retratar o

belo e o sublime na poesia. Ele assimila, assim, na construção do seu personagem, o feio que foi

representado sistematicamente pelo Barroco. O feio e o belo se misturam. Por ser grotesco, o

Severino está mais próximo do belo, ou seja, sua beleza está em ser grotesco.

O Severino é lançado numa caminhada que representa ―um labirinto‖, pois os

descaminhos levam somente à morte. Um labirinto como um enigma, um mistério representado

naqueles personagens que cruzam a todo instante, nas mortes de outros ―severinos‖, como ele,

que não conseguiram encontrar a saída do labirinto da fome, da miséria, do latifúndio, da morte,

mesmo que no final encontre a vida, é uma ―vida severina‖, uma vida que é morte e uma morte

que é vida. Tudo no mesmo patamar de igualdade.

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O percurso que faz o Severino podia ser representado pelo ―labirinto cúbico‖ tão

comum no Barroco, quando a reta e a curva se encontram. O poema representando a imagem

da serpente que morde o próprio rabo. O círculo que se fecha: o Severino que nasceu na Serra

da Costela e migrou nessa caminhada incerta, caótica, labiríntica, retornando ao ponto de

partida, ao advento de outra ―vida severina‖. Sobre esse labirinto tão presente no Barroco,

assim descreve Sant‘Anna (2000: p. 61-66):

O labirinto tem consonância com a vontade frustrada de se chegar a alguma

parte...No entanto, para se entender mais estruturalmente o sentido, da

imagem do labirinto no Barroco, é indispensável vinculá-la à temática do

―peregrino‖, tão reincidente nessa época.

Essa afirmativa nomeia o Severino como um personagem barroco, mergulhado num

labirinto representado por um itinerário pontilhado de obstáculos, de mortes, de vidas. O

labirinto que existe porque há outro personagem que o percorre, representado por esse

peregrino Severino, um ser que parece perdido, sem rumo ou direção, personagem presente

também na poética de Cláudio Manoel da Costa, Gôngora e Padre Alexandre de Gusmão.

Como podemos perceber, as viagens já eram comuns na literatura, mas foi no Barroco

que tomou essa conotação de uma empreitada angustiosa e mítica de peregrinar nos labirintos

do mundo. No Barroco, a imagem do peregrino está imbricada a outras imagens barrocas que

remetem a peripécia, movimento, trânsito, instabilidade. Transportando essa imagem para o

hoje, onde o sentido mítico e mágico dá lugar ao sentido social, o peregrino perde-se no

labirinto social, onde não tem lugar definido. É um deslocado, um excluído, conforme a retórica

social dos tempos atuais.

Um ―faz tudo‖ em todos os ofícios, mas não tem uma profissão definida, uma peça que

não se encaixa na engrenagem social e econômica dos nossos dias, Severino ―peregrino‖ não

consegue um ofício na sua caminhada ‖pois sempre foi lavrador, lavrador de terra má‖ (MELO

NETO, 1994: p.179). Segue como um excluído até chegar à parada final e João Cabral não dá

conta se ele continua lá ou volta para sua terra, pois tudo é interrompido pelo presépio que é

representando, quando ele pretendia ―saltar fora da ponte e da vida‖. Permanece um indivíduo

perplexo diante da incerteza da vida, esgueirando-se no caos cotidiano. O Barroco é uma

representação de tal perplexidade e os sinais dessa incerteza e desse caos é uma configuração

barroca.

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O personagem de João Cabral é um herói atípico: magro, esquálido, pernas finas, cabeça

grande, mas que não se dá por vencido. Um herói às avessas que, diferentemente do herói

clássico, não tem que enfrentar o Minotauro; um herói moderno que enfrenta a fome, a seca, a

morte, o latifúndio, a industrialização, mesmo que desamparado no labirinto do mundo. Se os

heróis clássicos tinham deuses e senhas que os conduziam pelos labirintos e tempestades, os

heróis modernos sentem-se perdidos em seus labirintos pessoais e nos labirintos do mundo,

não encontrando saídas dignas para seus passos. Seria o ―herói problemático‖ como afirma

Sant´Anna (2000: p. 69):

... O herói moderno, menos divino que seus arquétipos, sente-se mais

desamparado diante dos labirintos. Mas em seu sentido original, o labirinto

tem uma conotação iniciática. Conduz a um centro e quem o percorre realiza

uma ―viagem‖ ou ―prova‖ que o leva (como no caso de Teseu ao enfrentar o

Minotauro) a um certo poder. Mas, na modernidade a questão do poder do

herói também foi arguida desde que a partir do Romantismo, foi se tornando

frequente a presença do ―herói problemático‖, oposto ao herói divino e

monolítico do mundo clássico.

E Severino realiza essa ―viagem‖ que é uma ―prova‖ da própria existência. Uma imagem

que tem o Rio como guia, mas, por conta da aridez, o rio seca e a viagem torna-se um labirinto

a ser decifrado, vencido. Vencido este, João Cabral faz o seu personagem chegar ao fim da

caminhada e deparar-se com o labirinto da cidade. No passado não havia futuro, no presente

também não há expectativas de melhorias.

Um presente que é lido através do passado, apontando diferenças e semelhanças. O

drama barroco é pessimista. Os homens resistem penosamente ao mundo. Em João Cabral, o

Severino revive esse drama. Como no Seiscentos, o herói moderno enfrenta uma época de

instabilidade social, as pessoas migrando do campo para a cidade, guerras eclodindo por todos

os lados. Assim como no Barroco, há uma sensação de desamparo pessoal e coletivo. O

Severino sobrevive a esse caos social e pessoal. Chega ao fim da jornada testemunhando ―o

espetáculo da vida‖(MELO NETO, 1994: p. 202).

Essa similaridade entre o herói clássico e o herói barroco, também impregnada no

personagem de João Cabral, é confirmada também nas palavras de Sant´Anna (2000: p. 222):

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Se o herói clássico era aquele que se igualava aos deuses exercendo

fisicamente todas as suas potencialidades humanas e sobre-humanas, no

Barroco será o mártir, execrando seu cadavérico corpo, num conluio com os

vermes, interessando-se pela epopéia celestial da alma peregrinando, extático,

em busca da ressurreição.

O percurso da jornada do Severino é, na verdade, um percurso-jogo, no qual em cada

parada ele se depara com numerosos obstáculos – a morte, o principal deles – e trampolins a

vencer.

Severino é esse herói que chegará ao fim desse labirinto, não só encontrando saídas

justas, – a maior delas a desistência da morte antecipada –, mas superando situações difíceis,

individualizando seus próprios passos com uma velocidade sempre crescente até o destino final.

Calabrese (1987: p. 149-150) define esse percurso numa comparação clara com a ―dobra

barroca‖ que vai até ao infinito, confirmando assim marcas barrocas na escrita cabralina:

―Aparentemente, o percurso move-se até ao infinito. Na realidade, os diversos quadros estão

ligados entre si, e haverá sempre um final que se relega ao primeiro‖.

Morte e vida severina também trata de outros temas recorrentes no Barroco, como a

passagem do tempo e da existência. O tempo é um dos temas mais constantes no universo

barroco, isso reforçado pelo estado de crise presente no homem barroco, eternamente

dilacerado e angustiado diante da alteração dos valores, com o advento do protestantismo e da

brigada da Contra-Reforma, empreendida pela Igreja.

Senna (1980: p. 69) faz um estudo sobre o tempo na poética cabralina e em Morte e vida

severina, quando afirma que há uma aceleração do tempo provocada ―pela própria condição

Severina da vida no Agreste‖, que faz o Severino migrar, para defender, estender o tempo da

vida que é tão curta no sertão: ―O que me fez retirar / não foi grande cobiça; / o que apenas

busquei / foi defender minha vida / da tal velhice que chega / antes de se inteirar trinta;‖

(MELO NETO, 1994: p.186)

No nosso dia-a-dia é comum passarmos de um território para outro. É uma

desterritorialização (DELEUZE e GUATTARI, 1995: p.17) cotidiana, nela se abandona, mas

não se destrói o território abandonado. Podemos tomar a história de Severino como um caso

concreto de desterritorialização e reterritorialização. O sertanejo enfrenta esses dois processos.

Severino migra rumo à cidade grande, por ser época de seca. Como outros ―Severinos‖, termina

por habitar as periferias urbanas, sendo envolvido num imenso conjunto de enunciação

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totalmente diferente dos agenciamentos que teria enquanto trabalhador da lavoura. Os

territórios são outros, mas essa dinâmica de transitar por vários territórios é semelhante. Existe

o seu território de morador com seus códigos territoriais e as relações de poder da comunidade.

Existe o território do trabalho, que é mais difícil de delimitar, pois ele passa por vários ofícios.

Depois, acontece o movimento inverso. É comum na época da colheita, esse Severino se

desterritorializar, abre os agenciamentos e vai se reterritorializar novamente no trabalho do

campo de onde veio ou, em outro lugar. João Cabral não dá conta disso, dessa

reterritorialização do Severino na sua volta para a Serra da Costela, mas na sua peregrinação ele

passa por vários novos territórios e pensa em ficar. Mas, Severino termina no mangue, na beira

do Rio Capibaribe, onde encontra uma comunidade e onde é testemunha do nascimento de um

menino, metaforicamente uma alusão ao nascimento de Cristo, que representa a esperança de

uma vida nova, mesmo que essa vida seja ―a explosão de uma vida severina‖.

A história termina assim e não se sabe se haverá um processo de reterritorialização do

Severino naquele lugar ou se ele retorna às suas origens, protagonizando um processo que se

repete a cada estiagem. Na canção popular se prega que quando o verde se espalha pela

plantação é hora de voltar (Asa Branca – Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira). O que Marta Senna

destaca, em relação ao tratamento do tempo, é ditado pelas ciganas, o que reputa como de mais

original em toda obra cabralina:

Mas, o que Morte e vida severina traz de original quanto ao tratamento do

tempo no conjunto da obra de João Cabral de Melo Neto é a tentativa,

traduzida pelas ciganas, de conquistar o futuro, de subjugar o tempo.

(SENNA, 1980: p.70)

Para essa autora, dos três poemas que formam a trilogia do rio (O cão sem plumas, O Rio e

Morte e vida severina), ―este é o que quase ignora o problema do tempo, já que as condições de

vida são tão adversas‖ (SENNA, 1980: p.20). Há uma passagem rápida do tempo, Severino quer

chegar logo ao seu destino final, esperando uma vida melhor do que a vivida até então. É um

tempo rotineiro, o tempo da ladainha e do rosário. Sempre o mesmo; igual e repetitivo, não

fosse a diferença das mortes e das vilas, onde a vida é transformada a cada instante: ―Sim, o

melhor é apressar / o fim dessa ladainha, / fim do rosário e nomes / que a linha do rio enfia; /

é chegar logo ao Recife, / derradeira ave-maria (MELO NETO, 1994: p.187).

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Na verdade, a viagem não finda. É o recomeço da mesma ―vida severina‖. João Cabral

coloca o seu personagem no mundo real e exterior. O tempo também é real. O tempo da

pressa, porque Severino não pode esperar mais. Quer outra forma de vida, ―longe das pás e

enxadas, foices de corte e capina‖. Mas, o passado caminhou com ele até o presente. É o tempo

da memória do poeta, que, mesmo sem perceber, integra sua vida, a sua obra, somando

sensações, tanto do presente, quanto do passado, do menino dos engenhos de cana e do adulto

peregrino, como o alicerce da sua poética.

João Cabral utiliza, na construção da sua obra, não uma história distante ou alheia à

realidade social, que ele presenciou desde a infância. Na sua poesia, o passado é sempre

presente, porque é igual. O tempo é o fio condutor pelo qual o poeta conversa com a tradição e

define trajetórias para o seu personagem, num movimento que é cíclico: o da migração. Através

da seca e por conta dela, o poeta reproduz essa memória histórica, sendo ela o que determina

todo o enredo, todo a trama e o desenrolar da história.

Enfim, através da escrita, que assume o lugar da voz, ele recupera um tempo passado

que começa rapidamente a se perder, desintegra-se frente às novas facetas da vida moderna, que

rejeita a tradição e defende o novo como a grande novidade, mesmo sabendo que ele é

impregnado do passado.

As cenas do presépio são uma mistura do texto bíblico com os textos extraídos do

folclore pernambucano, inspirados nos pastoris e nas tradições ibéricas, tudo utilizado

textualmente em Morte e vida severina. João Cabral faz uma alegoria do nascimento de Cristo

criando personagens profanas para o texto, tudo remetendo ao significado do sagrado trazendo

para sua obra essas alegorias, assim como fazia o artista barroco. A inclusão de outros textos no

presépio dá-se por conta das duas ciganas que prevêem o futuro da criança. No texto bíblico

não faz alusão a esses personagens e suas previsões, mas estão em Pereira da Costa (COSTA,

1974: p.484). Na escrita cabralina tudo leva ao visual, o texto como uma tela de pintura. E como

afirma Walter Benjamin, ―na alegoria a palavra escrita tende a expressão visual‖ (1994: p.197-

198).

Em Morte e vida severina, todo o texto configura-se como uma alegoria político-étnico-

cultural de uma alteridade funcionalmente barroca, como uma representação também do

movimento da contra-conquista que gerou tantos Severinos, sem rumo, sem trabalho, sem terra,

sem esperança. Semelhante à alegoria de Walter Benjamin (1984: 38-39) também estruturada

por meio da ruína, da dor e da morte. A alegoria barroca cabralina também se fundamenta na

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dor, na morte, na ruína que se justifica por meio da pobreza, da fome, da miséria, da escassez,

do latifúndio, das balas perdidas, das emboscadas, da industrialização, dando conta de um

estado de coisas cujo devir vai remoer nossa realidade político-econômica e histórico-cultural,

para digeri-la como angústia de crises, de tensões nitidamente barrocas.

João Cabral promove essa dessacralização dos elementos sagrados, quando tira deles o

caráter divino e os submete aos festejos e tradições populares. Ao mesmo tempo em que

dessacraliza o ritual sagrado do nascimento do menino-Deus, ele promove uma sacralização às

avessas da ordem social, como afirma Benedito Nunes:33

Neste caso, o pastoril, como ato de comemoração religiosa, é também um

gesto de consagração da sociedade; festejando o advento da redenção

sobrenatural do gênero humano, na apoteose dramática de seu estilo álacre, o

pastoril transfigura a situação social dos indivíduos. O auto sacramental

produziria assim um efeito obliquo, sacralizando a ordem social existente e a

posição que os indivíduos ocupam dentro dela.

Aqui temos a grande questão relacionada ao Barroco moderno ou à modernidade

barroca de João Cabral: trabalho e ornamento de linguagem, abrigando-se ao lado do teor

social, o que era quase que impraticável no Barroco histórico (pelo tom da Contra-Reforma).

Então, João Cabral infiltra, mescla outros textos, como o ―auto dentro do auto‖ para

conseguir a dramaticidade da trama. Utilizando a ambiência local, com todos os problemas

sociais de pobreza e penúria, Morte e vida severina se contrapõe ao discurso da beleza do lugar,

mostrando todas as mazelas que a corrói e evoca a teatralização da vida. A vida como o palco

real onde se repete, de outra forma, o nascimento do filho de Deus, opondo-se a toda

diversidade que o lugar propicia. O trajeto de Severino é dividido entre morte e vida. O sagrado

que é profano. O profano que é sagrado. Dessacralização e sacralização social. E para Severo

Sarduy isto é o Neobarroco, quando afirma: ―Neobarroco: reflexo necessariamente pulverizado

de um saber que sabe que já está ―docemente‖ fechado sobre si mesmo. Arte da dessacralização

e da discussão‖. (SARDUY: 1979, p.78).

Também identificamos um certo erotismo nas entrelinhas do poema, quando a morte

pode até assumir contornos suaves, eróticos, resgatados nos versos do enterro imaginado por

Severino, nas águas do Rio Capibaribe.

33. NUNES, Benedito. op. cit. p.86-87.

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João Cabral coloca em destaque essa morte que é exuberante, sensual, líquida e

estabelece aí, um paradoxo perturbador com a vida áspera e dura do sertanejo, fazendo com

que Severino faça a absurda constatação de que, nos muitos enterros que presenciou, na sua

caminhada até o Recife, nada mais era do que seu próprio funeral, que por ironia, ele teria se

antecipado.

Além de líquida, macia, sensual, a morte que Severino evoca, quando pede que apresse,

também aparece como uma mulher carinhosa, opulenta, que acolhe com generosidade o

trabalhador do eito em sua morte: ―– Se abre o chão e te fecha / dando-te agora cama e

coberta./ – Se abre o chão e te envolve, / como mulher com quem se dorme.‖ (MELO

NETO: 1974: p. 186).

Neste verso, quando o trabalhador é depositado na terra, podemos divisar nessa

entrega à morte a simulação do ato sexual, o entrelaçar-se dos corpos dos amantes no ato

amoroso. João Cabral, um poeta avesso as facilidades da linguagem, a poesia derramada,

constrói, vê na reação defunto/chão uma relação amorosa, a terra envolvendo o corpo que

chega, não com aspereza, mas o acolhendo com sensualidade, com delicadeza, ―como uma

mulher com quem se dorme‖. O erotismo presente na escrita cabralina é um erotismo onde há

evidência do ato sexual, quando o chão se abre para envolver o trabalhador do eito, o que

também é uma alegoria da relação amorosa humana.

Podemos dizer que nesta cena há traços marcantes do Barroco, pois toda a produção

artística do período barroco estava impregnada de forte erotismo, apesar de que, entre os

instrumentos utilizados pela Igreja para recuperar as ovelhas desviadas que sucumbiram aos

apelos da Reforma Protestante, estava o Barroco, que foi eficaz, pois mesmo evocando a

sublimidade das coisas celestiais, adotava também e seguia uma espécie de santíssima trindade

reunindo: corpo – alma – espírito. O Barroco como uma arte simultaneamente popular e

aristocrática, sensual e mística, festiva e melancólica. Para alguns autores contemporâneos, ―o

Barroco funda a sua razão estética na ampla vertente luto/melancolia e luxo/prazer‖

(CHIAMPI, 1998: p.6). O artista barroco queria agradar a Deus, mas era tentado pelo desejo da

vida cotidiana, mundana. Uma dualidade que inquietava o espírito do homem barroco e a Igreja,

recém sacudida pela Reforma Protestante.

A arte barroca cristalizava o fluxo do eterno devir, fluxo esse que se infiltrava nas coisas

do mundo, através da alegoria, que nada mais era que a dissimulação da diferença –

característica fundamental da sociedade européia na Idade Moderna – através de representações

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tendentes à semelhança, O Barroco como uma experiência de contrastes – um dizer antitético

da experiência humana e artística: o simulacro.

E se é verdade que o desejo no indivíduo é sempre coletivo, ou seja, não nasce nele, mas

no campo social, os indivíduos em grupo, enquanto grupos-sujeito e não grupos sujeitados,

podem escapar através de linhas de fuga e fazer a afirmação do desejo, das máquinas desejantes.

Para Deleuze e Guattari, há sempre um agenciamento coletivo de enunciação, já que não existe

esse sujeito sozinho, sendo máquinas de guerra nômades que enfrentam o Estado, sendo corpos

sem órgãos.

Nesse sentido, esse ―desejo‖ também é o desejo do próprio artista: desejo de representar

o devir, de transcender, desejo de salvação. Detecta-se um conflito constante entre a carne e o

espírito, já que a satisfação de um representa, por extensão, a negação do outro. Esse duelo

alma/espírito x carne/corpo, paradoxalmente é que possibilita a transcendência. Gilles Deleuze,

ao resgatar a obra de Leibniz, explica essa aparente contradição:

No Barroco, a alma tem com o corpo uma relação complexa: sempre

inseparável do corpo, ela encontra nele uma animalidade que a atordoa, que a

trava nas redobras da matéria, mas nele encontra também uma humanidade

orgânica ou cerebral (o grau de desenvolvimento) que lhe permite elevar-se e

que fará ascender a dobras totalmente distintas.

(DELEUZE, 1991: p. 26).

Mais ainda, segundo Deleuze, cada intervalo na obra barroca é um espaço aberto ao

surgimento de uma nova dobra, uma redobra. O dobrar e o redobrar, dois movimentos de

contenção, não se opõem diretamente ao desdobrar, que por essência é uma expansão de algo

anteriormente escondido na dobra. Podemos dizer que esses movimentos são complementares

e representam o afastar-se e o aproximar-se da essência divina através de uma continua

―tangência‖ que coloca a obra em constante estado de ―suspensão‖ no espaço, visto que não

consegue superar o conflito divindade x vida profana.

E o que move essa vida profana, senão o desejo? É o desejo que vai moldar a criação

das dobras e redobras, como forma de dissimular sua própria essência frente ao número de

dogmas e exemplos catequizantes que vieram a povoar as artes no período barroco. João

Cabral consegue em meio ao caos que se transforma a viagem de Severino, fazer com que esse

erotismo aflore, mesmo quando a realidade é de morte, vislumbrando nas águas do Capibaribe,

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uma mortalha líquida de lama que envolve o corpo cansado da jornada e o chão que acolhe

como ―uma mulher com quem se dorme‖.

A carnavalização também é presente no poema/peça Morte e vida severina, quando João

Cabral reinventa o nascimento do menino, como um tênue símbolo de esperança, no final da

grande jornada do Severino. Há uma mistura do sagrado e do profano na alegoria do

nascimento de Cristo e do menino do mangue. A carnavalização se dá nas cenas do nascimento

do menino ―guenzo‖, um outro Severino, aproximando o auto dos modelos pastoris às peças

medievais. O sagrado e o profano se confundem. O presépio cabralino é metaforicamente uma

paródia do nascimento de Jesus, em meio a pobreza do mangue. O subtítulo do poema se

explica agora: Auto de Natal pernambucano. Se todo percurso do Severino tem uma relação

estreita com a morte, as cenas do Auto, que são leves e alegres, retratam a vida. Vejamos o que

diz Nunes:

Aqui o Auto dentro do Auto retoma os tradicionais quadros e personagens

do pastoril ou pastoral. Podemos, até mesmo, estabelecer, quase que de cena

a cena, os traços analógicos desse parentesco formal, que as mudanças de

figuras e situações apenas conseguem disfarçar: uma mulher do povo

substitui o anjo da Anunciação; os vizinhos, com os seus elogios, tomam o

lugar dos anjos que guardam e adoram o Menino, com os seus presentes, o

dos Reis Magos; o mocambo é o presépio do Menino-Deus, e seu José, são

José. 34

A alusão ao nascimento de Jesus, onde os personagens históricos são substituídos por

pessoas comuns, representa a negação da morte, quando um outro Severino salta ―para dentro

da vida‖, modificando a forma tradicional, o que para Severo Sarduy já representa a

carnavalização, quando promove essa mistura dos gêneros sagrado e profano.

A carnavalização implica a paródia na medida em que equivale a confusão e

afrontamento, a interação de diferentes estratos, de diferentes texturas

lingüísticas, a intertextualidade. Textos que na obra estabelecem um diálogo,

um espetáculo teatral cujos portadores de textos (...) são outros textos. 35

34 . NUNES, Benedito. op. cit., p.86 35 . SARDUY. Severo. op. cit., p.69

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E isso acontece em Morte e vida severina, quando João Cabral reúne todos esses elementos,

propositalmente ou não, quando mistura esses estratos, revelando a presença do (Neo)Barroco

na sua obra, quando insere os vizinhos que chegam com suas oferendas, alegoricamente, um

alusão aos três Reis Magos ofertando ouro, incenso e mirra, e esses personagens são

multiplicados, vêm em grande número e presenteiam com aquilo que podem. Nesta cena, João

Cabral incorpora, recria em sua obra, o banquete barroco/literário de que fala Lezama Lima em

seu livro A Expressão Americana, na qual enfatiza a característica de despertar os sentidos

humanos com a finalidade de encaminhamento místico ao aludir metaforicamente ao ―banquete

literário‖ quando faz uma referência aos seus estudos da literatura de origem barroca: Nessa

festa vários poetas barrocos contribuem com seus versos para a montagem de um grande

banquete, entre eles Lope de Vega, Dominguez Camargo, Don Luis de Gôngora, Sor Juana

Inês de la Cruz, Afonso Reyes... entre outros. Transcrevemos parte do texto referente ao

banquete como no livro A Expressão Americana e em Morte e vida severina para que possamos fazer

comparações pela intertextualidade:

...E para que as ramagens da naturalidade se encostem nas grutas do artifício,

a alegre saúde de Lope de Vega trará a couve e a berinjela, Um pouco de

alegre vegetação em meio às viandas que o fogo doura e transmuta:

Matize essas hortas logo

a berinjela amorada

a verde couve amigada

como pergaminho ao fogo. 36

...O cordobês Don Luis trará outra sutileza, a azeitona, que acrescenta à

natureza irrompendo nos mantéis, uma invenção, meio artifício e meio

naturalidade:

e ao verde, jovem, florescente plano

brancas ovelhas suas tornem, cano,

em breves horas caducar a erva;

ouro lhe extraem líquido a Minerva,

36 Nota da tradutora: Em vão rebusquei esses versos nos três volumes das Obras selectas, da Ed.Aguilar,

além de diversas antologias (líricas e dramáticas) de Lope de Vega .

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e – os olmos casando com as vides –

quando coroam pâmpanos a Alcides. 37

(...)

faróis sacros de perene chama

que extingue, se não infama,

em licor claro a matéria crassa

consumindo, que a árvore de Minerva

de seu fruto, de prensas agravado,

compungido suou e rendeu forçado.38

...vem frei Plácido de Aguillar oferece-nos um primeiro prato, uma toronja

bem refrigerada:

a amarela toronja em quem Pomona

da velhice retrata os pesares

em pálidas verrugas ou lunares. 39

...volta agora Lope de Vega, com os caranguejos vestidos, resistentes à doma

do fogo da sua alva ternura e perfeição:

Não os mariscos ao penhasco cosidos

cujos salgados côncavos deságua,

retrógrados caranguejos parecidos

ao signo que do sol por signo é frágua. 40

(...)

Já é hora de introduzir o vinho, que vem demonstrar a onda longa da

assimilação do Barroco, com um robusto e delicado vinho francês, trazido

37 Luis de Gôngora. ―Soledad primeira‖. 38 . Sor Juana Inês de la Cruz. El sueño (Primero sueño). 39 .Frei Plácido de Aguillar. Fábula de Siringa y Pan. 40 Idem, nota 8.

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por Alfonso Reyes, elixir de muitos corpúsculos sutis, numa de suas variadas

excursões pelas quais guardamos tão perene reconhecimento:

Fui general de penacho e jarreteira

Tição de amores e trovão de alarmes

Lancei, estentôreo pela carreiteira

Ante Chateau Lafite:

Apresentam ...Armas.41

(...)

(LIMA, 1988: p. 90 a 94)

E complementando esse banquete barroco, o café à turca, não mais regado a poesia,

―mas com a forma adquirida pelos mistérios numa cantata de João Sebastião Bach, em seus

nobres e graciosos compassos para acompanhar o café, num lento recontar...‖ (LIMA, 1988: p.

94).

Em Cabral, o banquete barroco se faz nas oferendas da gente simples do mangue, que

ele transforma também em versos: as coisas da terra, dadas de coração, dentro das

possibilidades de cada um, considerando ainda a pobreza reinante entre os habitantes dos

mocambos:

– Trago abacaxi de Goiana

e de todo o Estado rolete de cana.

– Eis ostras chegadas agora,

apanhadas no cais da Aurora.

– Eis tamarindos da Jaqueira

e jaca da Tamarineira.

– Mangabas do Cajueiro

e cajus da Mangabeira.

– Peixe pescado no Passarinho,

carne de boi dos Peixinhos.

– Siris apanhados do lamaçal

que há no avesso da rua Imperial.

41 Alfonso Reyes. Poema ―Vino tinto‖.

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– Mangas compradas nos quintais ricos

do Espinheiro e dos Aflitos.

– Goiamuns dados pela gente pobre

da Avenida Sul e da Avenida Norte.

(MELO NETO, 1994: p.198)

Mesmo presentes pobres, sem nenhum valor material, mas que trazem a cor do lugar

com oferendas que formam um grande banquete, com os alimentos, frutas e objetos

característicos da região: a arte popular, o artesanato, a água da bica da chuva escassa, frutas

variadas dos lugares pobres e lugares ricos do Recife, oferecendo esse contraste, esse jogo, essa

variedade, esse colorido e fartura que impressiona aos olhos, recursos tão bem utilizados no

Barroco.

Neste sentido, comparando os textos de Lezama Lima e o de Cabral encontramos

singularidades e similaridades do banquete literário barroco com o banquete cabralino. Há em

Cabral a mesma intenção da apoteose barroca, do artifício, da festa. O banquete oferecido pelos

vizinhos ao recém-nascido é a celebração ao espetáculo que essa ―nova vida explodida‖

proporciona, fazendo funcionar ―a fábrica que ela mesma teimosamente se fabrica‖ ( op.cit. p.

202). Quando tudo é negação, a vida dá uma resposta. Tudo se recicla, se dobra, desdobra, o

recomeço, a máquina humana dando as respostas que mesmo em situações tão adversas

continua a funcionar, a gerar novas vidas. O palco e a realidade se confundem. O palco é o

mocambo, as vielas cheias de lama, mas de onde ecoam as vozes das mulheres cantando a boa

nova. O teatro da vida e da morte. Vida que se anuncia depois da morte, no final. A

representação e a realidade que se confundem.

Deleuze em A Dobra também trata da incompossibilidade ou a divergência de séries, dos

mundos possíveis e incompossíveis. Em Leibniz ―o mundo é uma infinidade de séries

convergentes, prolongáveis uma nas outras.‖ (DELEUZE, 1919, p.94). Podemos dizer que na

perspectiva de Leibniz, Severino é supostamente incompossível com os novos mundos que ele

percorre em busca de dias melhores. Os novos mundos são mundos possíveis, mas não para o

nosso caminhante. Haverá de ter todo um processo para que esses novos mundos se tornem

compossíveis para o personagem Severino

João Cabral trabalha exatamente o jogo do mundo barroco, tal qual o descreve Deleuze.

Esse jogo que emite singularidades; estende séries infinitas que vão de uma singularidade a

outra; dita regras de convergências e divergências de acordo com as quais essas séries de

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possíveis organizam-se em conjuntos infinitos. O Barroco é isso. Nessa nossa época marcada

pela perspectiva de enormes avanços científicos, tecnológicos, culturais e sociais, volta à tona a

discussão sobre a estética barroca, mas sob novo enfoque. A multiplicidade de nosso mundo,

com tudo se partindo em inúmeros fragmentos, plenos de significados, mas, apesar disso,

carregados de uma instabilidade e de uma mutabilidade que lhe é inerente, tem levado muitos

teóricos a reconhecer em nossos dias algumas características do Barroco sob nova roupagem e,

por isso mesmo, transmutadas no conceito do Neobarroco.

Parece inquietante, mas nos remete a um encadeamento de questões interessantes: o

fato de estarmos todos os momentos nos dividindo em um extenso rol de fragmentos, dentro

dos quais quase sempre utilizamos diferentes máscaras, aumentando cada vez mais a

multiplicidade que essa fragmentação acarreta não seria uma característica intrínseca ao

Barroco? Mais ainda: essa busca constante pelo devir que todos vivenciam diuturnamente,

carregada de tensões entre carne e espírito, desejo e quietude, não é também um aspecto que

estava presente no Barroco? As mônadas de Leibniz, sempre se dobrando e redobrando sobre

si mesmas, junto à constatação científica de que a estrutura micro-física e até mesmo atômica

dos elementos, como os fractais42, não nos remetem à estética barroca? Por fim, a falta de

certezas absolutas, característica maior de nossa época, não seria o principal elemento a nos

aproximar do mundo barroco?

Em João Cabral e Deleuze esse Barroco é detectado como um momento de crise,

caótico, produzindo um desmoronamento do mundo, que vem a ser reconstruído sobre as

ruínas deste mesmo mundo, mas sobre uma cena nova e relacionada a novos princípios, para

deles extrair a potência e a glória.

Na escrita cabralina, o Barroco representa uma tentativa de salvar a razão teológica e o

homem. Ele atesta a crise do mundo moderno, com uma escritura reflexiva e crítica, trazendo o

Barroco fora do seu suporte histórico para ser uma resposta ao tempo de hoje, num mundo

caótico, da máquina e da técnica, porém com problemas sociais como a fome, a guerra, a

mortalidade infantil e as epidemias que continuam a infligir a dor, sendo essa uma reação

inevitável, questionando a ideia do progresso em sua essência ideológica e em suas

representações.

42 Fractal – entende-se qualquer coisa cuja forma seja extremamente irregular, extremamente

interrompida ou descontínua, seja qual for a escala em que examinamos. A presença dos fractais na nossa

época contemporânea permite-nos definir com ―neobarroca‖ também esse tipo de produção

substancialmente cultural. (CALABRESE, Omar. op. cit., p. 135-139).

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O que nos propusemos abordar neste trabalho, através das diversas leituras que

empreendemos, foi estabelecer uma relação entre a obra Morte e vida severina - Auto de Natal

Pernambucano e o Barroco ou Neobarroco, como nomeia Haroldo de Campos, em seu artigo ―A

obra de arte aberta‖(1955) e Severo Sarduy (1972), buscando confluências que nos levaram a

identificar e afirmar que há marcas, pegadas, imagens da poesia de tradição barroca na poética

cabralina. No decorrer da nossa pesquisa, percebemos a frágil fronteira criada pelos

historicistas, que separam as diversas escolas literárias e delimitam o período da sua sobrevida,

em relação aos séculos futuros.

O Barroco rompe essas fronteiras chegando aos Séculos XX e XXI com fôlego de

novidade, deixando de ser a estética de uma determinada época, para ser uma forma transitória

que ressurge em momentos caóticos, de crise, de confusão, de desordem... como uma arte

atemporal, que se atualiza numa época que é um terreno fértil para essa arte do caos, da crise, da

conturbação.

Em Morte e vida severina detectamos o Barroco – que surge no século XVII, época da

Contra-Reforma, do Absolutismo, do sujeito em constante crise diante das coisas do espírito e

dos desejos da carne, atualizados no personagem título ―Severino retirante‖ , que vive esse

homem barroco moderno, que é nômade, em constante conflito entre a morte e a busca de

sobrevivência.

Assim como o homem barroco, o sujeito moderno está fragmentado, fluido, num

redemoinho de várias identidades contraditórias e mal-resolvidas. Essa angústia marcada por

uma sensação de sobrevivência e de tentar viver entre a identidade e a diferença, o passado e o

presente, o interior e o exterior, alternando-se rumo à pluralidade dos sentidos que existe nos

excessos.

No olhar que lançamos sobre o nosso foco de estudo procuramos enumerar o maior

número de confluências barrocas que identificamos em Morte e vida severina. Assim, o duelo entre

morte e vida, o corpo e a alma, a relação tempo e espaço, o herói, o labirinto, o sagrado e o

profano, o trágico e o cômico, o erotismo, a carnavalização, o banquete barroco, a

territorialização e desterritorialização segundo Deleuze, o perecível das coisas, todas essas

marcas tão recorrentes na arte barroca, alinhavam o texto deste poema/peça escrito na sombra

dos autos da tradição ibérica e do cancioneiro popular nordestino.

Morte e vida severina traduz de forma concreta a poesia cabralina, que é imagem, que é

mítica, poética, sempre flertando com a realidade, como um palco à espera do drama humano.

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O poema não se fecha no indivíduo, não se passa no seu interior, mas numa grande arena

pública onde o homem, ―os severinos‖ enfrentam com engenho e coragem o seu maior inimigo

e desafio: a morte.

Sem concessões, João Cabral quebra a tradição brasileira de uma poesia discursiva,

romântica, parnasiana e rompe com os paradigmas formais poéticos em voga, lugar ideal para

confessionismos, sentimentalismos e testemunhos vãos. Sua poesia é um exercício de formas,

significados, um trabalho de ―engenharia‖, de uma matéria em construção. Explica a sua

afinidade com a arquitetura e as artes plásticas. Justifica-se sua afinidade com os pintores

surrealistas e cubistas, a Espanha que em muitos aspectos, o fazia rever/reviver seu Nordeste,

reacender sua pernambucanidade.

João Cabral traz uma proposta agreste que se torna mais ácida pela questão da terra, do

latifúndio, da exploração humana, que ela no seu estilo indireto e contido, mas certeiro,

denuncia. Também paradoxalmente surrealista e barroca a um só tempo. Surrealista pela

ousadia de suas metáforas desconcertantes e barroca pelo seu discurso circular, labiríntico e

retorcido. O Barroco é mesmo esta conjunção de estilos e influências, mistura de estratos,

como, de resto, toda a cultura ibero-americana.

Dessa maneira, o nosso estudo destacou esses aspectos barrocos na obra cabralina e

acreditamos ter contribuído para reforçar os estudos já apresentados sobre o tema,

enriquecendo e ampliando a sua fortuna crítica, para uma melhor compreensão de Morte e Vida

severina, inserida no universo do Barroco ao abordarmos várias cenas do poema pintadas com as

tintas do Barroco, quando João Cabral retrata essas imagens sublimes de um Nordeste mítico e

real, que é cenário de seca, fome, violência e desolação, num registro solene de um realismo

que transita do regional ao universal, do local ao global privilegiado por uma força poética

vigorosa ao mostrar uma realidade histórico-social que permanece miserável, devastada pelas

intempéries da natureza e pela ineficácia dos homens.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Perspectiva, 1994.b

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad., apresentação e notas: Sergio Paulo

Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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Morais (a partir da p.131). Lisboa: Ed. Edições 70, 1987.

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Wisnik. Revisão: Haroldo de Campos e Jacó Guinburg. São Paulo: Perspectiva, 1979.

SENNA, Marta de. João Cabral: tempo e memória. Rio de Janeiro. Edições Antares; Brasília: INL,

1980.

FRANCISCO ISRAEL DE CARVALHO é bacharel em Letras – Língua Francesa pela UFRN;

mestre em Literatura Comparada pela UFRN; pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa Ponte

Literária Hispano-Brasileira da UFRN com trabalhos publicados sobre as confluências barrocas na obra

de João Cabral de Melo Neto.

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4. APONTAMENTOS SOBRE A POESIA DE MURILO MENDES: OBRA

ABERTA E NEOBARROCO

Ana Carolina Moura Mendonça (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)43

Andrey Pereira de Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)44

1. Introdução

Vários críticos de arte, principalmente a partir da metade do século XX,

desenvolveram importantes estudos aproximando as manifestações das artes

contemporâneas, ditas pós-modernas, à arte do período barroco. Surge nesse contexto de

reflexão teórico-crítica o conceito de ―neobarroco‖. Muitos destes pensadores consideram

o Barroco como um prenúncio à modernidade e aproximam o homem barroco ao homem

moderno, como faz Affonso Ávila, Walter Benjamin, Arnold Hauser, Omar Calabrese,

entre outros. O objetivo deste trabalho é tratar dos conceitos de ―neobarroco‖, proposto

por Omar Calabrese, e de ―obra aberta‖, proposto por Umberto Eco, tomando-os como

ponto de partida para o estudo dos textos ―Poema barroco‖ e ―A forma e a fôrma‖, do

poeta brasileiro Murilo Mendes. Em particular, este trabalho procura destacar alguns

aspectos estéticos presentes nestes poemas contemporâneos que, são, segundo os teóricos

acima citados, provenientes da estética barroca do século XVII, a saber, a fragmentação, o

excesso, o limite, a desordem e outros.

Estes poemas apresentam-se como obras esteticamente inovadoras, proporcionando

fundamentalmente uma ambigüidade estrutural típica das obras contemporâneas, o que nos

induz a crer que são obras abertas. Neste sentido é preciso considerar que o que é aqui

denominado por obras neobarrocas são, antes de tudo, produções da contemporaneidade

e, assim, obras que apresentam um propósito de abertura típico das poéticas modernas. É

claro que, como afirma Umberto Eco (2008, p.45), ―seria leviano ver na poética barroca

uma teorização consciente da obra ‗aberta‘‖, mas, como dito, o objeto de interesse dessa

investigação são, a rigor, as obras modernas que apresentam traços em comum com as

43 Graduanda do Curso de Licenciatura em Letras. Bolsista de Iniciação Científica REUNI/UFRN,

vinculada ao Projeto ―Umberto Eco: percursos teóricos‖, sob a orientação do Prof. Dr. Andrey Pereira de

Oliveira. 44 Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem

(PPGeL).

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poéticas barrocas ou simplesmente, ou, dito de modo mais simples, as poéticas

neobarrocas.

Murilo Mendes (1901-1975) utiliza-se de características barrocas, a exemplo da

fragmentação e do caos, dois importantes traços que serão bem observados na análise

posterior. Outro importante elemento próprio ao estilo de suas poesias diz respeito ao

hermetismo. Seus poemas apresentam-se aos leitores como objetos de difícil interpretação,

devido tanto a sua organização estrófica, quanto a suas metáforas imprevisíveis, a sua

ousadia sintática e a sua associação muitas vezes esdrúxula de termos lexicais, que

contribuem para o que Antonio Candido denomina de ―estéticas do exagero, que rompem

as associações normais e criam nexos inesperados‖ (2004, p. 83). Por sua ousadia formal e

semântica, Murilo Mendes é considerado por muitos como um poeta surrealista.

As análises abaixo desenvolvidas não pretendem estabelecer leituras exaustivas dos

poemas, revelando o que há por trás de cada metáfora, mas mostrar como esses poemas

podem ser denominados obras ―abertas‖ e obras ―neobarrocas‖, a partir de seus traços

dominantes e do estranhamento causado no leitor, em suas diversas leituras possíveis.

2. Conceitos teóricos

Entre os numerosos teóricos da arte que ao longo do século XX refletiram acerca das

manifestações artísticas contemporâneas como obras que dialogam com procedimentos

barrocos, elegemos as reflexões de Umberto Eco e Omar Calabrese como as bases teóricas

deste trabalho. O conceito de ―obra aberta‖ proposto por Eco mostra-se relevante pela sua

tentativa de apreender as manifestações artísticas das poéticas contemporâneas como obras

propensas a uma multiplicidade de interpretações, traço primariamente presente nas obras

do século XVII, o que possibilita a aproximação de algumas propostas estéticas

contemporâneas a certo conjunto de obras setecentistas. Já por meio do conceito de

―neobarroco‖, Omar Calabrese defende que os principais traços estéticos das obras

artísticas contemporâneas são recorrências e derivações de procedimentos próprios do

período barroco, e, por essa razão, caracteriza a arte contemporânea, também chamada de

pós-moderna, como neobarrocas.

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2.1. Obra aberta

No famoso volume de ensaios Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas

contemporâneas, publicado em 1962, Umberto Eco descreve a obra de arte como um objeto

que se oferece ao receptor como um algo aberto a vários efeitos e possibilidades

interpretativas. Eco trata da relação fruição/obra de arte, conceituando obra aberta como

uma obra inacabada, que permite ao fruidor seguir caminhos interpretativos diversos a cada

leitura, re-elaborando continuamente sua compreensão da obra.

Inicialmente, Eco chega a este conceito ao se debruçar sobre as obras de vanguarda,

porém, ao observar com maior atenção as obras anteriores a esse período moderno, ele

percebe que obras como as barrocas também apresentam uma abertura para a fruição.

Entretanto, como ele bem observa, essa abertura barroca é diferente da abertura das

poéticas contemporâneas pelo fato de aquela não se estruturar como um campo de

possibilidades realmente proposital, assim, ―seria leviano ver na poética barroca uma

teorização consciente da obra ‗aberta‘‖ (ECO, 2008, p. 45). De todo modo, a obra barroca

deu-nos novas visões acerca da arte, pois trouxe, comparada com o acerco artístico que lhe

antecede, percebemos mudanças na concepção e nas realizações as manifestações artísticas

bastante significativas.

Quando comparado ao período clássico renascentista, o Barroco histórico – aqui

entendido como o conjunto das manifestações artísticas do século XVII – apresenta como

novidade uma concepção de ―abertura‖ no momento em que a obra afasta-se de um ponto

interpretativo estável baseado numa mensagem aparentemente unívoca e passa a valorizar a

polissemia de interpretações. Nesse sentido, a arte barroca reflete o momento histórico em

que o homem se subtrai ao hábito do canônico e se depara com um mundo em

movimento, o que, de certa maneira, pode ser visto como prenúncios do que ocorrerá de

forma bem mais enfática ao longo do século XX.

Nas poéticas do século XVII, a mensagem estética ganha um aspecto dinâmico e

excessivo que não existia anteriormente. No Renascimento, por exemplo, há uma tentativa

de imitação do real, isto é, as obras tinham o objetivo de se aproximarem cada vez mais do

mundo real e para isso se serviam de técnicas matemáticas, linhas simétricas e uma precisão

delimitada. A estética barroca, na época e ainda hoje, foi e é extremamente inovadora, já

que quebrou com essa maneira de ver a arte. Eco afirma que o Barroco trouxe uma

―indeterminação de efeito e sugere uma progressiva dilatação do espaço‖ (ECO, 2008, p.

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44). Isso mostra a forma não-determinada e não-definida, resultando em uma espécie de

mutação da obra, que a arte barroca aplica e que ainda hoje, nas manifestações

contemporâneas, mostra-se cada vez mais fortalecida.

Os efeitos de multiplicidade simbólica das obras barrocas foram retomados pelas

obras contemporâneas de modo ainda mais acentuado, revelando, assim, um campo ainda

maior de possibilidades, em um processo indefinido de interpretações. A distinção entre a

abertura das obras barrocas e as obras contemporâneas resulta da consciência bem mais

nítida que os artistas recentes têm da abertura inerente a qualquer manifestação artística.

Partindo do princípio que a obra de arte é um objeto sempre dependente da

circunstancialidade da recepção, o artista moderno busca estruturar sua produção como

uma obra que se caracteriza justamente, e mais que tudo, como um objeto inesgotável,

sempre propenso a possibilitar mais uma trilha interpretativa, elevando ao máximo as

possibilidades cedidas à recepção pelas já abertas obras barrocas. Nesse sentido, as obras de

vanguarda comportam-se como obras que apresentam uma abertura de segundo grau.

As obras modernas apresentam o traço da inovação da poética barroca. Isto que

dizer que, se as produções do século XVII caminham para um exagero ou um excesso, as

obras das vanguardas contemporâneas buscam excedem o exagero, isto é, apresentam

características barrocas de modo moderno, com um exagero intencional, um novo barroco.

O próprio homem barroco tem essa característica do novo, é um homem que a partir de

sua relação com a espiritualidade, pela primeira vez ―se defronta, na arte como na ciência,

com um mundo em movimento que exige dele atos de invenção‖. (ECO, 2008, p. 44-45).

E nessa mudança de atitude, o homem passa a ser tão excessivo, duvidoso e inovador

quanto suas artes:

As poéticas do pasmo, do gênio, da metáfora, visam, no fundo, além

de suas aparências bizantinas, a estabelecer essa tarefa inventiva do

homem novo, que vê na obra de arte, não um objeto baseado em

relações evidentes, a ser desfrutado como belo, mas um mistério a

investigar, uma missão a cumprir, um estímulo à vivacidade da

imaginação. (ECO, 2008, p. 45)

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Desse modo, o Barroco transcende a idéia de arte como contemplação passiva, ligada

restritamente à religiosidade. Essas poéticas – barroca e contemporâneas – levam-nos a

pensar em uma contemplação relacionada com o ―modo de fazer‖ da arte, isto é, o

receptor não mais ficará preso a uma contemplação do belo que há na manifestação

artística, mas pensará muito mais em seus elementos construtivos, seu efeito inovador, suas

metáforas e simbologias.

A contemplação das obras barrocas permanece, então, no estranhamento que é

causado no fruidor, em que tal inquietação se desenvolve no ―campo de possibilidades‖

que essa obra revela. E quando se estuda a obra aberta contemporânea, essa visão de

contemplação é ainda mais modificada, isto porque o campo de possibilidades

interpretativas cresce exponencialmente, apresentando, a priori, uma desordem estrutural,

induzindo, conseqüentemente, o aumento da inquietação no receptor.

Portanto, o conceito de obra ―aberta‖, tanto nas produções do século XVII quanto

nas produções de vanguarda, em que alguns traços daquela são utilizados também nesta,

sugere um novo Barroco, em que tais características tornam-se notavelmente mais

acentuadas e conscientes.

2.2 Neobarroco

Numa perspectiva que se aproxima à de Umberto Eco, Omar Calabrese, no livro A

idade neobarroca, de 1987, também aproxima a arte do século XX do Barroco. Todavia, ele

propõe uma aproximação muito mais efetiva, a ponto de cunhar o termo neobarroco para

referir-se à arte pós-moderna. Segundo o crítico, o neobarroco caracteriza-se como ―um ar

do tempo que alastra a muitos fenômenos culturais de hoje‖ (CALABRESE, 1987, p. 10).

Afirma ainda que se pode perceber nas poéticas contemporâneas uma série de aspectos,

principalmente o excesso, típico de um passado barroco, e, desse modo, o neobarroco

define-se como um conjunto de realizações estéticas da arte moderna que apresentam

traços estéticos do Barroco, em uma transformação poética.

A tese proposta por Calabrese defende que ―muitos importantes fenômenos

culturais do nosso tempo são marcas de uma ‗forma‘ interna específica do que pode trazer

à mente o barroco‖ (1987, p. 27). Neste sentido, o Barroco seria muito mais que um

período da cultura, na verdade seria uma ―atitude e uma qualidade formal dos objetos que o

exprimem‖ (CALABRESE, 1987, p. 27). Se for assim, Gillo Dorfles corroboraria esta tese.

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De fato, segundo Calabrese (1987, p. 28) Dorfles ―identifica o abandono (ou queda) de

todas as características de ordem e simetria, e vislumbra o advento do desarmônico e do

assimétrico‖, uma idéia semelhante à noção acerca das artes contemporâneas e seu excesso

excedido.

O Barroco estabelece um pensamento contraditório ao clássico no que diz respeito

ao ―fazer artístico‖. As oposições nos estilos trouxeram um sentimento do inesperado,

deixando para trás a idéia de arte relacionada ao belo e sublime, a arte meramente da

contemplação. No século XVII o sentimento de estranhamento e do original da obra

sobressaiu-se e até hoje predomina. Luciano Anceschi, a exemplo de outros pensadores,

―propunha que se considerasse o barroco como sistema cultural‖ (CALABRESE, 1987, p.

33) e, portanto, um sistema contínuo, não exclusivo de uma determinada época.

Algumas dualidades principais que advém do Barroco histórico são fundamentais

para a definição e a concepção do neobarroca, entre as quais destacamos: o limite e o

excesso; o pormenor e o fragmento; a desordem e o caos; a complexidade e a dissipação.

Para refletirmos sobre o princípio de limite e excesso é preciso considerar a

existência de obras que apresentam sistemas fechados e abertos. Dentre as obras que

seguem um sistema fechado, em que a manifestação artística segue uma simetria e obedece

a um centro, temos o Renascimento como já foi anteriormente citado. As obras barrocas,

ao contrário, seguem uma assimetria, não obedecendo, assim, essa noção de centralidade.

Por isso, tais obras são consideradas sistemas abertos.

Para fugir dessa centralidade, a dualidade limite e excesso são imprescindíveis, já

que, de ante-mão ultrapassa um significado. Segundo Calabrese (1987, p. 63), ―o excesso

manifesta a ultrapassagem de um limite visto como caminho de saída de um sistema

fechado‖. Dessa forma, o que era um sistema fechado transforma-se em um sistema

aberto, porque dificulta uma leitura unívoca. Em uma oposição temos a definição de limite

como um ―trabalho de levar às extremas conseqüências a elasticidade do contorno, mas

sem destruir‖ (CALABRESE, 1987, p. 65). O Barroco, e de modo mais intenso o

Neobarroco, procuram não o limite, mas o excesso da obra, o excesso do pensamento, a

hipérbole desse excesso.

Calabrese fala de certo prazer das obras neobarrocas ao quebrar esse sistema

fechado com a utilização desse tipo de dualidade e apresenta três formas de excesso: ―o

excesso representado como conteúdo, há um excesso enquanto estrutura de representação,

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e há um excesso enquanto fruição de uma representação‖ (1987, p. 73). Esses excessos

ocorrem tanto nas manifestações artísticas como também advêm do próprio leitor.

As obras contemporâneas também utilizam fortemente da dualidade pormenor e

fragmento. Essa dualidade insere a dialética entre a parte e o todo. Esse pormenor é

sinônimo de detalhe. As obras neobarrocas valem-se de um excesso de detalhamentos que

tornam a obra mais complexa, mais complicada e até mesmo fragmentada, o que a faz

resultar numa manifestação inacabada. O leitor ao ler uma obra fragmentada cria situações

diversas para completá-la, solucioná-la. No uso extremo de pormenores, o receptor recebe

variados detalhes excedidos que podem confundi-lo na elaboração de imagens artísticas

acerca daquela obra. Desse modo, é importante ressaltar a intenção da abertura e do

estranhamento da obra sobre o receptor. Neste sentido, Calabrese afirma o exagero dessa

dualidade nas obras modernas, seguindo uma determinada lei de integridade entre o inteiro

e a parte, o global e o local:

Teremos uma dialética sistema/elemento se tornamos pertinentes o

nosso par segundo a idéia da con-sistência, isto é, de funcionamento

simultâneo do todo e das suas partes. Ou então teremos a do

inteiro/fracção se, pelo contrário, tornamos pertinente o mesmo par

segundo a idéia de integridade, isto é, de comportamento do todo e

da parte em conseqüência de uma operação de exagero sobre o

inteiro. (CALABRESE, 1987, p. 84)

Outro aspecto pertinente na elaboração das obras de arte barroca e neobarrocas é a

dialética entre desordem e caos. Essas obras apresentam uma irregularidade, imperfeição e

insuficiência nas informações da forma artística, como veremos ao analisarmos os dois

poemas de Murilo Mendes. A manifestação de arte promove uma ordem não-habitual,

diferente daquela regra inicial que as obras clássicas seguiam. Isso é o que Calabrese

denomina como uma ―teoria unificada da desordem‖ (1987, p. 132). Nesse caminho,

chegamos a uma complexidade ou hermetismo da obra. Assim, as obras barrocas e

conseqüentemente, as neobarrocas trazem o ideal do inefável ou do indizível, em que a

explicação e a significação da obra levam-nos ao ―campo de possibilidades‖ que definimos

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na obra ―aberta‖, ou seja, a um excesso de fruições. O jogo de possibilidades que revela

uma matemática infinita é típico da modernidade da abertura proposital extremista.

A função caótica da arte tem a intenção de dificultar a recepção ou de exceder as

fruições de modo que se cria no leitor a inquietação do ―não-saber‖. Nessa perspectiva, o

Neobarroco força o receptor perceber na obra uma contínua formação de imagens

caóticas, fora dos esquadros de organização. Foi essa genialidade, sem intenção, que fez das

obras produzidas no século XVII muito mais que um período qualquer, mas uma linha de

pensamento que revela ainda a continuidade dual da noção barroca histórica.

Por fim, resta-nos comentar acerca da dualidade complexidade/dissipação que

envolve o conceito de entropia. A entropia envolve um equilíbrio e uma evolução. As obras

contemporâneas estabelecem um equilíbrio de desordem que leva à certa complexidade

máxima. As metáforas que permeiam a arte de vanguarda são carregadas semanticamente e

expressivamente, atingindo uma alta entropia ou uma evolução excessiva da expressão. As

metáforas atingem o ápice da inovação, gerando uma inquietação e um estranhamento

contínuos, além da complexidade da compreensão, levando-nos a criar um sentimento não

de leituras diversas, mas de re-criações.

Dessa forma, o fenômeno estético que as manifestações artísticas dessa época atual

estabelecem parte desse princípio de dualidades barrocas, o que nos permite considerar a

obra contemporânea um Barroco moderno, um novo Barroco, ou, como quer Calabrese,

um Neobarroco.

3. Análises dos poemas de Murilo Mendes

De um modo geral, o ato de leitura de um texto significa a procura de um significado

que nos faça compreendê-lo. Diante das obras de Murilo Mendes, em virtude de sua alta

complexidade de ordem semântico-estética, perceberemos que essa busca por uma

mensagem unívoca e uma interpretação estática é sempre fadada ao fracasso. São obras que

em vez de possibilitar ao leitor uma contemplação passiva, cobra dele um percurso

interpretativo bastante ativo, bastante questionador e criativo.

Tanto ―Poema Barroco‖, publicado em Mundo enigma (1942), quanto ―A forma e a

fôrma‖, encontrado em Poesia Liberdade (1943-1945), são textos que trazem um campo de

possibilidades de fruições diversas que complicam a busca por um significado único.

Ambos são estruturados com a finalidade de causar uma inquietação no receptor, que,

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impossibilitado de esgotar o universo de significação do poema em uma única leitura, acaba

enredando-se, a cada nova fruição, na abertura das obras, ou seja, em suas inesgotáveis e

inesperadas possibilidades semânticas.

Vejamos o primeiro poema:

POEMA BARROCO

Os cavalos da aurora derrubando pianos

avançam furiosamente pelas portas da noite.

dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos,

dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.

O poeta calça nuvens ornadas de cabeças gregas

e ajoelha-se ante a imagem de Nossa Senhora das Vitórias

enquanto os primeiros ruídos de carrocinhas de leiteiros

atravessam o céu de açucenas e bronze.

Preciso conhecer o meu sistema de artérias

e saber até que ponto me sinto limitado

pelos sonhos a galope, pelas últimas notícias de massacres,

pelo caminhar das constelações, pela coreografia dos pássaros,

pelo labirinto da esperança, pela respiração das plantas,

e pelos vagidos da criança recém-parida na maternidade.

Preciso conhecer os porões da minha miséria,

tocar fogo nas ervas que crescem pelo corpo acima,

ameaçando tapar meus olhos, meus ouvidos,

e amordaçar a indefesa e nua castidade.

É então que viro a bela imagem azul-vermelha:

apresentando-me o outro lado coberto de punhais,

Nossa Senhora das Derrotas, coroada de goivos,

aponta seu coração e também pede auxílio.

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O título do poema remete-nos diretamente à estética barroca. Percebemos a

simplicidade do título que, a priori, não apresenta uma ambigüidade. Mas, em outras

leituras, observamos que esta simplicidade abre margem para diversas expectativas na

construção de um pensamento sobre o poema. Podemos pensar que o texto traz os

exageros da arte barroca, ou a transformação do homem, a dualidade e assim por diante.

Esperaríamos o poema trazer todas as características barrocas para ele poder ser chamado

―Poema Barroco‖.

Retomando o início e o fim do poema, observamos um jogo de oposição ao

estabelecer uma nomenclatura própria de ―Nossa senhora‖. No começo o Eu-lírico fala de

uma ―Nossa Senhora das Vitórias‖ em contraponto com a ―Nossa senhora das derrotas‖

no fim do texto. Esse jogo de oposição e a religiosidade são características principais da

arte barroca e é importante ressaltar a menção dessas unidades vocabulares no texto.

No corpo do poema, fica nítida a presença da linguagem poética rica no uso

exacerbado de metáforas, em um aspecto surreal. Isso caracteriza a complexidade máxima

dessas metáforas que apresentam um excesso de expressão e carga semântica,

caracterizando uma ambigüidade fundamental da obra. São essas imagens caóticas que

levam à inquietação e estranhamento do receptor e que faz da obra uma fonte inesgotável

de interpretações, a exemplo do quinto verso da ultima estrofe ―É então que viro a bela

imagem azul-vermelha‖.

O aspecto de desordem no texto não advém apenas do jogo de metáforas, mas

também da fragmentação entre as estrofes e em alguns versos. São essas partes que

dificulta uma leitura do todo. Não há uma correspondência aparente entre estrofes, uma

continuidade. O texto, assim, torna-se caótico como a compreensão do fruidor.

Não há como desenvolver uma fruição contínua que relacione as estrofes. Não há

como pensar em um texto completo quando as estrofes são completamente abertas e livres

para interpretações à parte, isto é, cada estrofe parece um poema a mais, um poema aberto.

E mais aberto ainda esse poema se torna, quando junta-se as partes sem uma relação entre

elas. No quarto verso da primeira estrofe percebemos bem essa fragmentação caótica

quando o eu-lírico diz ―dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de

atrizes‖, em que não há uma relação, a priori, entre os relógios, cristais e esqueletos.

Além do mais, os excessos e exageros poéticos criam aparentemente uma desordem

estrutural, mas com um pouco de atenção percebemos uma ordem não habitual seguida

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pelo Eu-lírico. Dessa forma, essa desordem seria apenas a fuga da regra ou de uma ordem

imposta na poética da contemplação do belo e sublime.

Os excessos de fragmentação, caoticidade e metáfora não permeiam apenas este

poema de modo particular, mas vamos perceber também em outros poemas de Murilo Mendes

como ―A forma e a fôrma‖ publicado no livro Poesia liberdade (1943-1945):

A FORMA E A FÔRMA

Minha ala tem a forma do meu corpo:

Mas como é afinal meu corpo?

Eu nunca exato o vi.

Às vezes será uma esfera,

Outras vezes pirâmide.

Quantas coisas aparentes vi...

Vi famílias dependuradas dum cabide

Que dialogavam fuzis.

Vi uma dançarina erguendo na ponta dos pés

Um teatro com mil colunas,

Vi o sol negro.

Vi, vejo, tantas coisas vi...

Vi se movendo meu corpo,

Mas não, até hoje, sua forma.

Neste poema percebemos também a fragmentação dos versos e das estrofes, em

consonância com a complexidade das metáforas e antíteses, o que dar ao poema um caráter

de abertura poética, como acontece também no poema anterior. Ainda observamos certa

inquietude do ser e sua dualidade corpo/forma. Essa inquietação do Eu-lírico é passada

para o receptor nas características citadas anteriormente como a fragmentação, as

metáforas excessivas e sua caoticidade. São os detalhes e as metáforas imprevisíveis que

fazem do poema algo caótico e desordenado.

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Talvez seja impossível ver no poema uma mimese perfeita da realidade ou uma

busca por essa imitação. Pelo contrário, a terceira estrofe cria imagens aparentemente sem-

nexo e que apenas com algumas outras leituras fica claro um dos aparentes significados da

parte no todo. É importante ressaltar a criação dessas imagens poéticas em uma relação

com a repetição do verbo ―ver‖ e seu vínculo na arte Barroca. No Barroco prevaleceu um

jogo de imagens excessivas, que tinham a pretensão de chamar a atenção para elas mesmas,

de forma muitas vezes independente umas das outras. Daí o excesso de detalhes e

metáforas para se criar uma obra que alimente a visão e que compense o não ver a própria

forma.

Nessa perspectiva, ambos os poemas apresentam traços que remetem a um período

Barroco como a fragmentação, a desordem, a dualidade, a complexidade, o caos e outros.

Tendo em vista a noção de neobarroco como obras modernas que apresentam algumas

particularidades do pensamento barroco, poderíamos afirmar que estes poemas são

considerados neobarrocos. Além do mais, apresentam uma ambigüidade estrutural, na qual

esses traços Barrocos se sobrepõem de modo acentuado, causando no receptor, como bem

foi esclarecido, uma inquietude sobre o modo de fazer da arte e chamando a atenção para a

criação de um jogo de possibilidades de fruição, característica típica uma abertura das obras

modernas.

BIBLIOGRAFIA

CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, s.d.

CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. São Paulo: Ática, 2004.

ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São

Paulo: Perspectiva, 2008.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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5. A ASA ESQUERDA DO ANJO PELO VIÉS DO DISCURSO

MELANCÓLICO

Profª. Ms. Adriana Sena (UFRN)

O presente trabalho origina-se, na verdade, do título da dissertação, à nível de

mestrado, A melancolia em A Asa Esquerda do Anjo.

A Asa Esquerda do Anjo, de autoria de Lya Luft, é uma obra que, desde os

tempos da graduação, foi refletida e estudada. Já, na pós, acreditou-se ser relevante

trabalhar com ela sob um novo viés – o viés da melancolia. E, assim, achou-se, por ocasião,

estender as reflexões subsequentes à defesa em congressos, encontros para uma melhor

contribuição nas discussões e análises da obra em questão.

Melancolia, sema escorregadio, de formação histórica irregular e assustador,

apresenta, no entanto, o lado reflexivo, o lado mágico da linguagem, remetendo também ao

seu lado sígnico, semiótico:

Nos fenômenos, sejam eles quais forem – uma nesga de luz ou um

teorema matemático, um lamento de dor ou uma idéia abstrata da ciência -

, a Semiótica busca divisar e deslindar seu ser de linguagem, isto é, sua

ação de signo. Tão-só e apenas. E isso já é muito (SANTAELLA, 1983,

p. 14).

Perpassada pelo viés do discurso melancólico, a narrativa de Asa Esquerda do

Anjo nos conduz ao labirinto da linguagem melancólica (peculiaridade barroca e moderna)

na voz da protagonista – Gisela.

Gisela constrói sua fala por intermédio de lembranças vividas na infância:

Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana passo nesta rua

para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a

ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem

organizado na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha

avó. Só eu me sinto fora de ritmo, com o corpo miúdo, as orelhas grandes

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teimando em aparecer por entre o cabelo que me obrigam a usar bem

curto, ―assim fica mais forte‖ (LUFT, p.11).

Menina canhota, de lado esquerdo, de família tradicional alemã, porém nascida no

Brasil, de pai sulista e mãe nordestina, busca se autoafirmar diante de seu núcleo familiar.

Sua linguagem deriva em fragmentos, tecida de frangalhos vocabulares:

Eu queria que Anemarie me visse, me amasse. Ao menos ela, que a música

transportava para fora dessa família composta de gente que, eu

adivinhava, não conhecia nenhum amor. As pessoas deviam se amar, mas

aquela gente, a minha gente, realmente se queria bem? Às vezes eu corria

para minha avó e indagava:

- Vovó, você gosta da minha mãe?

Sem hesitar mas sem dar muita importância, ela respondia:

- Claro, Guísela. Ela não é a mulher de meu filho?

Depois eu fazia a pergunta inversa a minha mãe, dessa vez em português,

e ela retrucava:

- Mas claro, Gisela, ela não é a mãe de meu marido?

Uma vez, descobrindo minha manobra, as duas riram de mim: Não é que

eu tinha idéias engraçadas?

Guísela para uma, Gisela para outra. À noite, fantasmas, de dia, dúvidas.

E eu? (p. 41-42).

Representante de uma dualidade inscrita em seu próprio nome, Gisela fica indecisa

com relação ao seu vocativo: a qual deles atender? E nesta ambivalência clara, aberta,

emerge uma linguagem transitória, fragmentária, compondo um quadro, feito por emaranhado de

linhas de dispersão e pontos de concentração (LOPES, 1999, p. 12). Pode-se, assim, dizer que na

voz de Gisela há uma representativa barroca moderna. Barroca, pois Gisela fica indecisa

entre o nome alemão e o nome brasileiro. Há também a presença da melancolia, que, na

nossa modernidade, tem-se por depressão. Moderna, pois sua linguagem é fragmentária,

inconsistente, ela não se sente enquadrada em um modelo. Questionando este, Gisela

apresenta características modernas em seu modo de vida. Mostra, pois, o quanto é instável

e melancólica.

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A protagonista vive uma crise subjetiva desde criança. À medida que a narrativa se

descortina, este momento crítico interior ganha amplitude, revelando o impacto de seu

discurso melancólico:

À noite, insone por causa da solidão e de tantas recordações escutando

os rumores da casa, eu meditava sobre a minha vida.

Vida sem graça: já estava envelhecendo. Tormentos e exílios na infância.

Orelhas grandes. Alemão ou português? Qual a mão certa? Onde o meu

lugar? Minha avó me ama ou me despreza? E eu, o que sinto por ela? (p.

96).

A melancolia não é apenas um discurso que abre porta para uma leitura perceptiva

de uma profunda tristeza, mas também, como coloca Lopes (1999, p. 18), a escritura

fragmentária se torna, portanto, um instrumento capaz de encenar uma história de dispersões que incorpora

os acidentes, os desvios, na análise, no texto, na vida.

A fala melancólica e a plurissignificação de seus signos nos remetem a idéia de

palimpsesto, em que um texto é lido através de outro texto, uma imagem lida através de

outra imagem, numa memória intertextual e visual. Seu sentido não apenas está prenhe de

auto-repreensão; auto-punição, mas também de um empobrecimento de seu ego em grande

escala, como bem nos coloca Freud (1980) em seu texto Luto e Melancolia:

Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo

profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a

perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e

uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar

expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa

expectativa delirante de punição.

Freud, estudioso das análises clínicas, faz um contraponto entre o afeto normal do

luto e a melancolia para melhor entender o efeito simultâneo de sedução e ojeriza que a

melancolia exerce sobre o individuo. Enquadra, assim, o discurso melancólico, ou a própria

melancolia, no quadro das neuroses de angústia. Lança este olhar na tentativa de apreender

o significado do tecido constitutivo do ego humano.

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Por motivos de ordem moral, a insatisfação do sujeito melancólico com o ego

constitui a característica mais marcante de sua personalidade cambiante, móvel. E nesta

mobilidade, o sujeito, junto com o seu discurso, fragmenta-se. Esfacela-se. Ou seja, perde

consistência e estabilidade (peculiaridades de uma modernidade líquida). Ao adquirir tal

movimento, descobre-se que não é o todo, nem o caminho para o todo, nem se define

positiva ou negativamente face ao todo:

Nenhum deles exceto talvez minha mãe suspeitava da extensão da minha

dor, e do meu medo de jamais vir a pertencer a nada ou a ninguém.

Nem nome certo eu tinha. E as coisas, as que pensava e sentia, em que

palavras expressá-las: em alemão ou português?

Recordar é uma particularidade intrínseca ao sujeito melancólico. Através do

rememorar, ele busca localizar, no espaço, o tempo como fonte de recordações. Este

relembrar-localizar o remete não ao todo, ou a leituras lineares, horizontais, ou, ainda, a

uma reconstrução de um passado tal qual ele supostamente foi, porém, acima de tudo,

remete a um reencontro, no conflito de tempos e com outras imagens, de si com o próprio

Eu, revelando, assim, que a fala melancólica indica uma possibilidade de apreender a dor

como uma outra face do pensar, de um pensar.

Neste caminhar reflexivo, pelo viés do discurso melancólico, a construção histórica

de mundo, de lugares se dá de forma diferenciada, e não nos leva a espaços seguros ou

definitivos. É um risco de material misterioso. Como diz Walter Benjamin:

A melancolia é a disposição do espírito na qual o sentimento dá uma vida

nova, como uma máscara, ao mundo esvaziado, a fim de usufruir a sua

maneira de um prazer misterioso.

Já de início em sua fala, a protagonista revela sua perturbação subjetiva. Ela tem

consciência de algo errado em sua vida, porém, pela dificuldade de identificar, de encontrar

um signo correlato, não consegue emitir a nomeação. Se não há um significante expressivo,

então, também não existi possibilidade de desvelar significações, de tornar em substância

esse algo. Isto é a própria modernidade circunscrita no corpo mirrado de Gisela.

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Para Freud, a melancolia é sinônimo de uma perda desconhecida. Isto é, de um

produto não dado ao conhecimento. O paciente sabe quem ele perdeu, seu conteúdo, no

entanto, não pode, por alguma razão que o próprio Freud desconhece, ser visualizado:

Isso, realmente, talvez ocorra dessa forma, mesmo que o paciente esteja

cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido

de que ele sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso

sugeriria que a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda

objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada

existe de inconsciente a respeito da perda (FREUD, 1980, p.251).

As imagens não se encontram no sim ou no não. Não obstante, num limiar. Não

entre o sono e a vigília, entre o mito e o despertar, mas imagens crepusculares,

evanescentes no momento anterior à morte do sol, à noite escura. Sua significação está no

entre-mundos, no intervalo.

E é mediante este intervalo, esse espaço trans, de caráter intervalar e polissêmico da

imagem de si mesma e de seu fio existencial, que Gisela reconstrói seu falar.

Ao buscar um lugar, Gisela percebe que não é uma tarefa simples. Ela rompe com a

idéia de que tudo está perfeito, de praias lisas e calmas. Percebe que não é fácil reconstruir

o fio da meada e que este, devido à corrente temporal, vai se transformando e se perdendo

na constituição de sua incompletude permanente, mergulhando, cada vez mais, no limiar

inominável de si mesma:

Chegava junto de minha mãe, que estava ocupada atendendo a todos.

Logo alguém me pegava pelo braço, sempre aqueles apertos decididos,

pondo-me no meu lugar – mas onde era mesmo o meu lugar? Jogar bola

com as primas, pular corda, brincar? (p. 26)

Sensível ao toque da vida e sua constante mobilidade, Gisela refaz seu contexto

pelo viés do discurso melancólico. Revela-nos, pois, sua fragilidade em meio à dor da morte

de entes queridos:

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Anemarie toca violoncelo num circulo de luz. Amei Anemarie, um amor

inocente, mas ela morreu. O câncer começara no útero dissera a

enfermeira. A morte roendo a raiz da vida (p. 97).

Pela lente da sensibilidade, Gisela rever as mortes no/do seu passado. Pondera-nos

seus medos, angústias, principalmente, com relação à infância, da qual se sente prisioneira,

arraigada. Sua fala permeia-se pelo viés singular da melancolia. Deste solo imagético,

emergem diferentes momentos históricos vividos pela personagem em foco: barroco e

modernidade. Mas isto não significa que ela busca criar um conceito, uma noção unívoca,

como a base das teorias behavioristas, E→R (estímulo → resposta):

A sensibilidade é uma categoria trans, para um mundo de identidades

frágeis, fugazes, multiplamente simultâneas, mesmo aparentemente

incongruentes, ou de fato contraditórias, desprezadas como ecletismo ou

pura heterogeneização decorrente do consumo (LOPES, 1999, p. 40).

As interfaces da fala melancólica se conjugam e, na soma de suas partes, encontra-

se o sujeito. O sujeito é o eixo em torno do qual giram a esfera da alegria e da dor,

oscilando entre a exaltação e a depressão, sem nunca estar totalmente em nenhuma das

duas. Ou seja, só se pode discutir melancolia pelo viés do sujeito. Quando assim

explicitamos, queremos dizer que a melancolia talvez seja sobretudo um olhar, um olhar de

lado, que não se fixa precisamente sobre nada, porém que vê o que existe entre os mundos,

na vibração das esferas. Um olhar barroco, um olhar instável, inconsistente e, por isso,

também moderno.

Desde a tenra infância, Gisela abriga, dentro de seu ventre, um ser inominável,

ausente de toda e qualquer significação, alguém que ela não consegue emitir, nem

simbolicamente, os atributos necessários à nomeação:

Preciso concentrar-me neste ritual: ficarei aliviada e limpa depois do

horrendo parto. Deitar-me nesta cama branca e deixar que meu corpo

expulse seu violador. Por muito tempo esteve esquecido. Hibernava?

Pensei que morrera, ou não passava de um daqueles medos que me

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atormentavam antigamente, eu era a criança mais esquisita da família Wolf

(p. 09).

Gisela, durante todo o desenvolvimento da narrativa, está em busca de um saber,

do qual já participa. Porém, ela ainda não detém o poder da verdade total. Sua mão é

falhada, é canhota, sua fala prima pelo saber irredutível. Em seu consciente, não está apta a

adentrar no núcleo dos Wolf. Considera-se um ser marginalizado e como tal se comporta.

Engolida na falha da identificação, a protagonista erra à margem de seus familiares ou ao

tentar agarrar-se a sinais de reconhecimento que elegeu como referente para si:

Estou feliz, Gisela, escreveu ela, tão feliz. Você não pode imaginar, mas

um dia vai me entender, tenho certeza. Só tenho pena de minha mãe,

cuide bem dela por mim.

Não me disse se tinha um filho. Então a tocadora de violoncelo, meu anjo

de lábios macios, dormia com um homem e era feliz. Quem sabe eu

também conseguiria.

Gisela é portadora de muitos medos. Um deles é se casar. Mais: viver naturalmente

uma vida a dois. Esse é um dos seus maiores temores. Sua fase infantil é permeada por

medos. Medo de perder a mãe (a figura que mais admira), de não agradar a exigente Frau

Wolf (sua avó), de não alcançar a beleza e o encanto naturais de Anemarie (sua prima),

medo da morte, etc. Assim, sua linha vital vai sendo construída. Culpa, sempre culpa. E

esta permeia a história da protagonista de forma bem esclarecida. Isto é, não resta dúvida

quanto ao discurso melancólico de Gisela:

Talvez meu irmãozinho fosse um aluno exemplar, eu pensava, se não

tivesse morrido bebê. Anemarie era exemplar. Eu, um desastre. Eu saía da

sala sabendo que em casa o sermão se repetiria, pois meu pai era avisado

por telefone. Sentia-me vagamente injustiçada mas aceitava a culpa pela

falta de atenção, de interesse, de habilidade. Eu sempre aceitava as culpas

(LUFT, 2005, p. 18).

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Constantes medos e culpas tornarão a existência de Gisela mais pesada, pois o

futuro virá. E, com ele, as incertezas do passado se somarão às do presente. Sob o signo do

recalcamento, ocorrido devido às interdições infantis e reforçada pelo temor de perder o

amor dos seres mais indispensáveis à sua sobrevivência (sua mãe, Anemarie, Leo, sua avó),

Gisela precipita-se para o jogo do insolúvel, no qual o ideal de perfeição se transformou

num juiz cada vez mais exigente. Esta demanda exigente demais anulará a sua existência

enquanto sujeito.

Mais do que um modo subjetivo de apreensão e conceitualização, a melancolia se

sobrepõe como discurso de linhas diversas. Para entendê-la como forma de debate

contemporâneo, é preciso, antes de tudo, partir do e para o sujeito. Na confluência de sua

temporalidade, quando se falar em nosso passado, nosso presente, pode-se entender quem

é o sujeito da fala, de que passado e presente se trata, pois não só presente é plural, mas os

passados transitam e emergem quando e onde menos se espera. O presente só pode se

fazer tal qual, ou seja, na exata medida, quando se revelar o seu passado.

Gisela, narradora-personagem, menina inconstante, moderna, que, ao final da

narrativa, ganha uns fios anelados, descobre, na conjugação reflexiva-temporal de sua vida,

que a criatura, o quase-saber, o ser inominável, existe realmente de fato:

Crio coragem. Acho que agora nada mais me põe medo. Corpo dolorido

do esforço que acabo de fazer, soergo-me na cama, apoiada nos cotovelos,

viro-me um pouco, para pela primeira vez contemplar o que saiu de mim.

Ali está. Sorve com esse ruído o resto de leite no cinzeiro. A pele esticada

reluz à claridade amarela do abajur. É enorme. Enrodilhado, tem duas

pontas iguais, a que deve ser a cabeça está metida no liquido que serviu de

chamariz.

Bebe calmamente o leite.

Não posso acreditar que esteja ali. Até o fim achei que era pesadelo,

alucinação, exagero de minha fantasia. Agora, está ali (LUFT, 2005, p.

108-109).

De atitudes e fala errante, A Asa Esquerda do Anjo se projeta para o meio

literário como uma obra moderna, de respaldo, enviesada pelo viés do discurso

melancólico, por um olhar barroco. Gisela, indivíduo de olhar subjetivo e melancólico,

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descobre-se grávida de um inquilino sem identidade, sem feições, sem olhos, sem nariz

como a própria Gisela. Único lugar participante dela mesma é a soleira da porta, o limbo, o

quase-saber, o quase-conhecer. Além da revelação da dor, a melancolia se presta à narrativa

como parte integrante da constituição discursiva de Gisela. Assim, dá uma vida nova –

como uma máscara – ao mundo caótico interior da personagem em questão, contribuindo

para entendermos que o melancólico não dita o discurso da verdade e muito menos se

enquadra em dicotomias generalizantes e consensuais. Mas, acima de tudo, o discurso

melancólico refaz o estado de contínua e total rebelião contra o real e toda a idéia absoluta

que gira em torno do cálculo efeito-realidade.

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Alemanha/Perdas e Ganhos. (no prelo, Ulstein)

Catalúnia/ Perdas e Ganhos (_______, grup 62).

Coréia/ Perdas e Ganhos. (Grup 62, Book21).

Espanha/ Perdas e Ganhos. (_____, El Pair/ Aguilar).

França/ Perdas e Ganhos. (_______, Editions Metailie).

Holanda / Perdas e Ganhos. (_____, De Boekerij).

Itália/ Perdas e Ganhos. (_____, RCS Libri/ Bompiani).

Portugal/ Perdas e Ganhos. (2004, Editorial Presença).

______/ Pensar é Transgredir. (no prelo, Ed. Presença).

OBS.: Alguns dados concernentes à referência foram encontrados com a ajuda da internet.

Principalmente, os de edição estrangeira. O site de busca é http://capitu.uol.com.br /

http://www.bmsr.com.br/autores/lya%20luft/texto.htm/

http://imprimis.arteblog.com.br/4502/MELANCOLIA-I-de-DURER/

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6. CANTO PARALELO - O JOGO PARÓDICO NA OBRA TUTAMÉIA DE

JOÃO GUIMARÃES ROSA

Arlene Isabel Venâncio de Souza (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

Ânsia voraz de me fazer em muitos,

Fome angustiosa da fusão de tudo.

Guimarães Rosa

Ao escolhermos como objeto de estudo a obra Tutaméia de Guimarães Rosa

percebemos a necessidade da ―tradução‖ da obra que mesmo escrita em Português é

recheada de palavras novas e antigas e de palavras amalgamadas fazendo com que se

consolide a sua advertência inicial no índice de leitura da obra em forma de epígrafe, trata-

se de uma citação de Schopenhauer ―Daí, pois, como já se disse, exigir da primeira leitura

paciência, fundada na certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob

luz, inicialmente outra‖(Rosa, 1985, p.5) e segundo Jeane Spera

Quanto à sua constituição formal, os vocábulos neológicos apontam para a

familiaridade de João Guimarães Rosa com o esquema de possibilidades de

estruturação vocabular previsíveis na língua portuguesa. De fato, as ousadias

no plano da criação vocabular, detectadas em Tutaméia, se fazem sempre

dentro das coordenadas abertas pelo sistema da nossa língua. Nesse sentido,

o leitor do texto, ao deparar-se com os desvios léxicos, necessariamente

ativará todo seu conhecimento sobre as diferentes formas de constituição

vocabular, a fim de decodificar o vocábulo criado. Essa cumplicidade do

leitor está, de resto, implícita e requerida na epígrafe da obra. (Spera, 1995,

p.19)

Guimarães é esse alquimista da palavra que a faz, refaz, desfaz trazendo sempre o

novo de novo. A formação do livro é bem peculiar sendo composta de dois índices – um

de leitura e outro de releitura – o primeiro em ordem alfabética invertendo apenas dois

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contos para formar as suas iniciais J.G.R. (João Guimarães Rosa) e o segundo índice

chamado de índice de releitura que o autor separa os quarenta contos dos quatro prefácios

e mais uma vez coloca como epígrafe outra citação de Schopenhauer ― Já a construção,

orgânica e não emendada, do conjunto, terá feito necessário por vezes ler-se duas vezes a

mesma passagem‖. Nessas duas citações o autor dá pistas para a compreensão da obra

assim como ao longo de seus prefácios e narrativas aparecem frases sínteses do

pensamento do autor e é em busca dessas frases que na maioria das vezes são inversões de

frases já conhecidas que delineamos nosso trabalho.

Inicialmente citaremos o tão estudado e discutido crítico russo Mikail Bakhtin que

no quarto capítulo de seu livro Problemas da Poética de Dostoievski, traduzido para o

português pelo professor Paulo Bezerra, que nos fornece um conceito de paródia utilizado

como ponto de partida para a nossa análise: ―parodiar é a criação do duplo destronante, do

mesmo ―mundo às avessas‖. Por isso a paródia é ambivalente‖ (Bakhtin, 1997, p.127).

Partindo dessa afirmativa do ―mundo às avessas‖ e da ambivalência da paródia que

observamos a criação e desconstrução de frases ao longo do livro Tutaméia, seja nos

contos ou nos prefácios. Guimarães Rosa usou e abusou desse recurso desde inversões de

provérbios populares ―o pior cego é o que quer ver...‖ (Rosa, 1985, p. 20) até um parecer

crítico a uma obra consagrada do Romantismo brasileiro como é o caso de Cassimiro de

Abreu que em seu famoso poema ―Meus Oito Anos‖ inicia com o clichê romântico ―Oh!

que saudade que eu tenho da aurora da minha vida ...‖ e Rosa nega-o com a seguinte frase

―Ah, que saudades que eu não tenha!‖ (Rosa, 1985, p. 197). No poema Saudade que está no

livro Magma, Rosa diz o seguinte ―Saudade triste do passado,/ Saudade gloriosa do

futuro,/ saudade de todos os presentes vividos fora de mim!...‖ (Rosa, 1997, p. 132). Nesse

poema o autor mostra sua saudade do futuro e não do passado como é o tema do poema

Romântico.

Ao longo de sua obra observamos que a utilização desse recurso de modificação de

clichês, de provérbios consagrados é uma forma de o autor enriquecer sua linguagem, de

recriar novas formas de retraduzir o seu código, a utilização de estrangeirismos, de palavras

amalgamadas, de frases novas utilizando o mesmo sentido é um recurso fundamental na

escritura rosiana. Ela está repleta de reinterpretações da realidade mostrando a paródia

como um duplo destronante que sempre acrescenta, uma forma de crítica do que já foi dito

e o apresenta com uma roupagem nova. Como diz o crítico Francisco Ivan ―Fazendo um

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percurso textual sobre o texto de Guimarães Rosa, descobrindo um traço/rastro barroco,

Barroco moderno, cor constante na Literatura Brasileira‖(Silva, 1994, p. 74).

Quando Rosa diz ―todo mundo tem onde cair morto‖ (Rosa, 1985, p. 128) ele nos

leva para a frase de origem que é inversa e causa o efeito jocoso e ao mesmo tempo

reflexivo assim como quando diz ―aquele caminho não ia dar a Roma nenhuma‖ (Rosa,

1985, p. 168) ou ainda ―Haja a barriga sem o rei‖ (Rosa, 1985, p. 16) ou ―A bonança nada

tem a ver com a tempestade‖ (Rosa, 1985, p. 48), nesses exemplos ele está novamente

contrariando os provérbios. Existem também frases que retomam a mesma temática do

provérbio, mas utiliza outra forma como ―foram infelizes e felizes, misturadamente‖ (Rosa,

1985, p. 29); ―Vá-se a camisa, que não o dela dentro‖ (Rosa, 1985, p. 48); ―o roto só pode

mesmo rir é do esfarrapado‖ (Rosa, 1985, p. 19) e como ápice desse processo de

carnavalização do já dito e estabelecido temos o trecho do último prefácio intitulado ―sobre

a escova e a dúvida‖ que diz o seguinte:

Senhor, já fiz tudo – as batatas estando plantadas, os macacos penteados, já

fui saindo, vi que o senhor não está na esquina, banhei-me caixa de fósforos,

o boi se amolou, o outro também, os porcos idem, foi lambido o sabão; e a

Lherda e a Nherda fui, cá estou, Senhor ?....(Rosa, 1985, p.172).

Nesse exemplo, temos de forma inteligente ―respondido‖ todos os clichês

utilizados para mandar alguém embora e a forma como o autor os colocou unidos é a

prova de sua engenhosidade artística.

Em toda a obra podemos observar essa paródia constante, esse canto paralelo que

permeia todas as citações e que nos chama atenção para o processo criador que aparece

como uma cilada, uma armadilha para seduzir e encantar a todos. Rosa não repete apenas

os clichês, ele os recria, pois se fizesse simplesmente repeti-los não nos intrigaria tanto, ao

criar essa linguagem criptográfica deseja que só tenha acesso os que não se contentam com

a primeira leitura.

A revista Tempo Brasileiro especial sobre paródia (n. 62) de Julho/setembro de

1980, analisa essa questão através de dez especialistas que refletem a paródia sob vários

aspectos tendo sempre como ponto de partida o conceito já demonstrado de BAKHTIN, a

referida revista foi organizada pela professora Selma Calazans Rodrigues com supervisão

do professor Emir Rodrigues Monegal, eles definem a paródia como: Canto Paralelo,

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diálogo intertextual, escritura especular ou simples retomada de um texto pré-existente

afirmando ao negar-se, a paródia está de novo no centro das investigações literárias

contemporâneas. Nessa definição é feita uma retomada dos textos dispostos e esses

serviram de fundamentação para o nosso trabalho.

Outro texto que trabalha a paródia entendendo essa como uma intertextualidade é

o artigo do cubano Severo Sarduy sobre ―O Barroco e o Neobarroco‖ que foi publicado

no livro A América em sua literatura, 1979 (Sarduy, 1997, p. 161). Neste texto o autor ver a

paródia como mais um elemento barroco da linguagem, mas sua fundamentação também

passa pelo conceito de BAKHTIN.

Refletindo agora sobre esse conceito podemos dizer que vendo a paródia como um

duplo destronante que desconstrói o anterior e traz sempre o elemento novo, tentamos

analisar como isso se dá na obra de Rosa Tutaméia que ao longo dos seus quarenta contos e

quatro prefácios nos brinda com textos de outros fazendo inversão / invenção. Como

primeiros exemplos têm na epígrafe do conto ―A Vela ao Diabo‖ a seguinte frase: ―E se as

unhas roessem os meninos?‖ (Rosa, 185, p.26) vemos aí uma inversão do estabelecido um

―mundo às avessas‖ que ele desconstrói, reconstruindo. Para subsidiarmos essa discussão

utilizamos novamente o ensaio do professor Francisco Ivan ―A Expressão Barroca na

Literatura Brasileira‖ em que nos diz que ―O Barroco é um discurso sobre a arte/escritura,

e que, aqui chamaremos de metalinguagem ou paródia‖ (Silva, 1994, p.74).

Percebemos nessa abordagem que a questão da paródia está diretamente relacionada

ao fazer poético, ao criar observando suas estruturas e vendo ainda que é na análise dos

elementos internos e externos do discurso que teremos a radiografia do texto. No caso da

análise paródica que está dentro do conceito de polifonia como mais uma voz que aparece

relacionada a outras que estão no texto formando assim a polifonia – termo esse vindo da

música e trabalhado pelo teórico russo. Percebemos que o seu estudo é essencial para

observarmos o que ocorre nas construções e desconstruções feitas nos textos de Tutaméia.

O processo criador de Rosa é o grande personagem de sua obra e é através dele que

se tenta decifrar o seu código, código de poesia que está sempre com saudades do futuro

como Oswald de Andrade e tantos outros. Nesse livro, existem duas frases que sintetizam

o seu processo de criação, a primeira está no final do seu primeiro prefácio ―Aletria e

Hermenêutica‖ que é ―O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber‖ (Rosa,

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1985, p.17) e a outra no seu último prefácio ―Sobre a escova e a dúvida‖ que diz: ―Às

vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente‖. (Rosa,1985, p.178).

O uso da paródia ao longo da literatura tem esse sentido de revitalização do mesmo

destronamento e criando novos paradigmas. E ela se dá no momento em que o artista se

distancia do objeto para poder vê-lo melhor percebe-se aí novas possibilidades de

realização. Em vez de criar uma obra dentro dos cânones estabelecidos pela tradição, o

parodista burla, ou seja, carnavaliza a própria linguagem, satirizando procedimentos

correntes para atingir novos objetivos. A paródia é um signo vivo, vivificando o que estava

morto e esquecido. É a contaminação dos gêneros que ocorre por isso ela é ambígua,

denunciando o fracasso do poder constituído. Quando ROSA critica os românticos ele está

desconstruindo um discurso vigente em que diz que eles eram o modelo. JOYCE no seu

Ulysses faz isso com a Odisséia a carnavalizando e criando um novo paradigma para aquele

épico, e um estudo sério hoje sobre ela não pode ser feito sem o olhar para o de JOYCE, e

é assim que a língua cresce. Por que esse poder constituído é estranho numa sociedade

cheia de contrastes. Vimos que a questão do destronamento e da ambivalência da paródia é

sempre retomada e quando no primeiro prefácio de Tutaméia ―Aletria e Hermenêutica‖

ROSA aproxima CERVANTES de CHAPLIN ele está mostrando esse destronamento da

linearidade. No texto ele diz o seguinte:

E que, na prática de arte, comicidade e humanismo atuem como

catalizadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e não-prosaico, é

verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em

Chaplin e em Cervantes. Não é chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque

escancha os planos da lógica, propondo-nos realidades superiores e

dimensões para mágicos novos sistemas de pensamentos. (Rosa, 1985, p. 7).

Com isso, ele nos mostra a paródia fazendo com que a contaminação dos gêneros

ocorra não podendo mais haver diferenças. Um conto ou prefácio de ROSA não é mais um

conto instituído como tal, ele tem elementos críticos, poéticos, filosóficos tendo que

determinar a sua contaminação. O humor como sendo um recurso paródico é um humor

desconfiado por que não se mostra completamente, ele não se desvincula do sério, como

no ―mundo às avessas‖. A paródia pode ser considerada, de alguma maneira, um tipo de

visão especular que a imagem original se apresenta invertida, reduzida e ampliada e de

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acordo com a lente utilizada. Essa lente é o repertório, ou melhor, é a técnica para ver o

que está sendo parodiado, é o jogo do espelho ou a câmara de ecos que Severo Sarduy nos

apresenta no seu estudo sobre o Barroco. Outra coisa que ainda pode-se observar no texto

paródico é a sua autonomia, já que ele coloca em movimento o novo modelo passa a viver

a sua própria vida independente do que foi parodiado. Ao falar do velho para falar do novo

de novo, recua-se no tempo para esse avançar.

Para sintetizar e como mais um exemplo de conceituação da paródia, sendo esse o

último, mostraremos o que o professor Flávio R. Kothe no seu texto ―Paródia & Cia‖ na

referida revista diz sobre a paródia: ―Paródia, segundo o étimo significa ―Canto Paralelo‖: é

um texto que contém outro texto em si do qual ela é uma negação, uma rejeição e uma

alternativa. Ela geralmente diz o que o outro texto deixou de dizer e ela insiste no fato de

não ter sido dito. A paródia é um texto duplo, pois contém o texto parodiado e, ao mesmo

tempo, a negação dele. Ela é, portanto, a síntese de uma contradição, dando prioridade para

a antítese, em detrimento de tese proposta pelo texto anterior parodiado.

A paródia procura rebaixar um texto, um estilo, uma escola; a estilização, que,

como a paródia, também tem alguma outra obra ou tendência anterior como referência

diferencia-se por que procura criar uma obra que seja de nível mais elevado e que não viva

mais apenas para negar algo anterior e apenas como negação de algo anterior.

A paródia ―vive‖ num estado de tensão, pois indica o ―seu‖ ódio e o ―seu‖ desprezo

para com o texto parodiado (de fato, porém, ela indica o ódio e o desprezo de seu autor e

da tendência artística e ideologia a que ele pertence) e, ao mesmo tempo, ela denota o seu

parentesco para com o texto parodiado. Quanto mais a paródia apresenta ser semelhante

ao texto parodiado, tanto mais ela procura mostrar através da aparência de identidade a

diferença radical de enfoque: isso ocorre, porém numa fase em que aquilo que o texto

parodiado representa ainda tem muita força sobre quem o parodia.

―A paródia é um gesto de fechamento para o passado e de abertura para o futuro

ou, mais exatamente, fechamento para certo tipo de produção do passado e de abertura

para algum novo tipo de produção futura.‖ (Kothe, 1980, p. 97).

Finalizando o ensaio e nunca querendo esgotar o assunto pretendo dizer que nosso

objetivo foi tentar esboçar uma reflexão sobre a paródia através desses textos e chegar a

pelo menos uma conclusão que a paródia se constrói e se relaciona com todo tipo de

discurso literário e que faz da sua própria produção o objeto da indagação da realidade

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estabelecida. E que essa questão da paródia ou metalinguagem por um lado aponta para a

citação, reminiscência – intertextualidade e por outro para a intratextualidade que é a

relação do texto com ele mesmo, com sua estrutura interna seja ela fonética, morfológica

ou sintática. Para exemplicarmos como isso se dá observemos esses dois exemplos de

ROSA no conto ―Lá, nas Campinas‖ – ORFANDANTE junção de orfão + andante e

UTOPIEDADE junção de utopia + piedade mexendo na estrutura da língua a

resignificando-a.

A utilização da paródia hoje apesar de acenar sempre para o conceito de

BAKHTIN, aponta também para a questão estrutural da língua mostrando sua significação,

resignificação e principalmente reconstrução do código até chegar ao seu saturamento e é

isso que estamos chamando de procedimento barroco. E é isso que Guimarães Rosa faz

com a língua, a processa através de um ritual antropofágico de devoração da palavra,

absorvendo-a e a devolvendo metamorfizada, ou melhor, relapidada com as facetas

retrabalhados sob ângulos diferentes daqueles anteriormente apresentados. ROSA fez o

que os grandes ícones da linguagem, como Dante, Rabelais, Shakeapeare e Joyce, fizeram

com as suas línguas a modificaram para enriquecê-las.

Rosa é esse autor-crítico-poeta consciente do seu papel e que nos apresenta sempre

o novo de novo. A sua literatura é vida e está em toda parte. Guimarães Rosa vivia em

estado de literatura e sua obra-testamento Tutaméia representa uma síntese do seu

pensamento e de suas leituras, ela mostra sua busca pela tradição que vai de Cervantes a

Chaplin, de Homero a Joyce. Como ele mesmo diz sobre a obra em questão através do seu

amigo Paulo Rónai no artigo que está no como apêndice:

Ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em seu

espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos

necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes havia inter-relações

as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no

seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em

todo o livro sem desequilibrar o conjunto.‖ (Rosa, 1985, p. 216).

BIBLIOGRAFIA

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7. LUTO E ALEGORIA EM “A HORA E A VEZ DE AUGUSTO

MATRAGA”

Paulo Henrique da Silva Gregório

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

Em suas obras, Guimarães Rosa se utiliza do elemento regional, o sertão, para tratar

de temas de caráter universal, nos quais o homem aparece como centro, e nesse sentido, as

questões inerentes à existência humana adquirem relevância em meio à produção ficcional

do autor. Não se pode deixar de ressaltar, no entanto, o trabalho que ele empreende com a

linguagem, apresentando ao leitor um linguajar tipicamente sertanejo, carregado de

regionalismos, marcas da oralidade e neologismos. É por meio desse linguajar que ele

elabora os conflitos, as dúvidas, vivenciados por Riobaldo, em Grande Sertão: veredas; o

confronto entre Primo Argemiro e Primo Ribeiro por causa do amor a uma mulher, em

―Sarapalha‖; a relação entre loucura e abandono em ―A terceira margem do rio‖, dentre

inúmeros outros exemplos que se poderiam mencionar.

A produção ficcional rosiana compreende romances e coletâneas de contos, dentre

as quais pode ser destacada Sagarana, na qual estão incluídas os dois últimos contos

supracitados. Além destes, o volume é formado por outros sete, podendo-se considerar

como mais importante ―A hora e a vez de Augusto Matraga‖, em que se centrará a

abordagem do presente artigo. Para Candido (1991, p. 247), essa é a ―obra-prima do livro‖,

tendo em vista que Rosa, ―deixando de certo modo a objetividade da arte-pela-arte, entra

em região quase épica de humanidade e cria um dos grandes tipos de nossa literatura‖.

Nessa obra, o autor traz à tona a história de Nhô Augusto Esteves, um homem

que, pela posse de bens e por seu comportamento imperativo e violento, passou a ser

respeitado e até mesmo temido pelos habitantes do povoado do Murici. Era casado com

Dinória e possuía uma filha, Mimita, mas não tinha o menor respeito e a mínima

consideração pelas duas, uma vez que lhes dava pouca atenção e vivia se envolvendo com

outras mulheres. Certa vez, foi surpreendido com a notícia de que elas o tinham

abandonado, fugindo com um outro homem, Ovídio, que nutria um forte sentimento por

Dinória. Decidido a matar os dois, convocou os seus capangas, mas eles não viriam:

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estavam trabalhando para o Major Consilva, seu rival. Furioso, dirigiu-se à chácara do

Major para fazer o acerto de contas, acabando por ser espancado e quase morto pelos ex-

capangas, marcado com ferro em brasa, atirando-se, por fim, em um barranco.

Foi encontrado por um preto, que, juntamente com sua esposa, cuidou dele até a

recuperação parcial, depois da qual, orientado por um padre, decidiu mudar de vida e partir

em busca da sua ―hora e sua vez‖. Mudou-se para o povoado do Tombador, onde passou a

viver como um bom cristão, fazendo orações e ajudando aos outros, mas depois de

passado algum tempo resolveu partir, alegando que precisava buscar pela sua ―vez‖ em

outros lugares. Assim, guiado por um jumento, acabou chegando em um povoado próximo

ao do Murici, onde morre, depois de um confronto com Joãozinho Bem-Bem, que também

acaba morrendo. O povo passa a considerá-lo um santo, e ele é aclamado pela coragem de

ter enfrentado Bem-Bem, temido em toda aquela região.

A trajetória da personagem pode ser dividida em três fases: na primeira, é posto em

relevo o seu comportamento libertino e desenfreado; na segunda, observa-se a mudança de

postura e o desejo de buscar a salvação para a alma; por fim, no estágio em que parte em

busca de sua ―hora‖ e ―vez‖, a personagem é impulsionada a agir em função de dois

impulsos, relacionados às outras duas fases, os quais passam a se manifestar de modo

equilibrado. É a partir dessa divisão que se pretende analisar o referido conto, de modo a

inseri-lo na problemática referente ao Barroco, buscando-se perceber o modo como o luto

se instala na narrativa, bem como a relação entre este e as questões relacionadas ao

alegórico e à melancolia. A análise está ancorada, principalmente, nos estudos de Walter

Benjamin acerca do drama barroco alemão, nos quais ele traz à tona concepções acerca de

alegoria, luto e melancolia, que fornecerão subsídios para que se compreenda como esses

elementos se apresentam na obra rosiana em questão. Pretende-se, também, observar

certos aspectos por meio dos quais se pode afirmar que existem pontos de contato entre tal

obra e o drama barroco.

Augusto Esteves e o plano da matéria

O que aqui se denomina primeira fase da personagem vai do início da narrativa até

o ponto em que é espancada e marcada com ferro em brasa pelos capangas do Major

Consilva, atirando-se, logo em seguida, em um penhasco. Já em sua primeira aparição no

conto, Augusto Esteves é apresentado pelo narrador como um homem de índole

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imperativa, que impunha a sua superioridade aos habitantes do povoado do Murici. O

respeito e até certo temor que estes lhe destinavam eram devidos não só à posição de

destaque da qual gozava em decorrência da posse de muitos bens, como fazendas e terras,

mas também ao modo violento com que costumava agir quando eram impostos

empecilhos aos seus objetivos. Vejamos o fragmento abaixo, em que ele aparece

determinado a arrematar uma prostituta exposta em um leilão.

E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto,

alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com braço em

tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a

Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou

para o leiloeiro Tião:

– Cinqüenta mil-réis!... (ROSA, 2001, p. 364).

Ele se desloca em meio ao povo tal qual um animal disposto a agarrar sua presa. O

modo como age diante da Sariema, que parece indicar a supremacia do predador diante da

fragilidade da presa, bem como o berro que solta para o leiloeiro revelam instintos

primitivos, animalescos, da individualidade da personagem. Suas atitudes, nessa primeira

fase, não entram em consonância com regras morais, leis, tampouco preceitos religiosos,

pois o que importa para Nhô Augusto Esteves é a manutenção do seu desejo de potência,

de superioridade, no contexto em que estava inserido. Como um típico homem profano,

encontrava o verdadeiro prazer na vida de libertinagem junto aos capangas e às prostitutas,

ou quando ia ―em busca de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombro de

homens, para entrar no meio ou desapartar‖ (ROSA, 2001, p. 368), esbanjando sua

valentia. Tal conduta pode ser compreendida como um ―berro‖ contra qualquer tipo de

repressão ao seu desejo de experimentar sensações. No fragmento que segue, o narrador

aponta os principais traços característicos da individualidade da personagem:

E ela [Dinória] conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido

e sem detença, como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre

fechado em si. Nem com a menina se importava. Dela, Dinória, gostava, às

vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas,

com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda – no

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Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul – ele tinha

outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. (ROSA,

2001, p. 368-369).

Outro traço marcante que revela o modo de ser mundano e desregrado da

personagem é o seu impulso para matar. ―Para isso, sim, ele prestava muito‖ (ROSA, 2001,

p. 369), conforme assinala o narrador. Geralmente agindo por vingança, Nhô Augusto não

hesita levar à morte alguém que, por exemplo, tenha ameaçado a sua honra, ou então

contrariado seus desígnios, como foi o caso do abandono por parte da mulher e dos

capangas, deixando-o furioso e decidido a fazer o acerto de conta com todos eles, assim

como fica evidenciado no trecho abaixo:

Nele, mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma idéia resolveu por si: antes de ir

à Mombuca, para matar o Ovídio e a Dinória, precisava de cair com o Major

Consilva e os capangas. Se não, se deixasse o resto por acertar, perdia a

força. E foi. (ROSA, 2001, p. 373).

É sempre a obsessão de manter a força, de não se sentir em desvantagem, que o leva

a agir de forma vil, principalmente quando se trata de eliminar seus adversários, aqueles que

haviam se apropriado daquilo que lhe pertencia. O Quim Recadeiro, diante da resolução

tomada pelo seu senhor, faz questão de alertá-lo acerca dos perigos aos quais estava

exposto, tendo em vista os comentários que andavam sendo feitos a respeito dele: ―[...]

estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais

que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação...‖ (ROSA, 2001, p.

373). Assim, percebe-se a maldade como aspecto também marcante nessa primeira fase da

personagem, maldade essa que, somada à vontade de vingança, faz com que não hesite

avançar sobre seus inimigos, mesmo na iminência de ser aniquilado pelo ―Major Consilva

mais outros grandes‖ (ROSA, 2001, p. 372), tal qual assinala o narrador neste fragmento:

[...] quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles dois

contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas

rodadas sem jogar, fazendo umas férias na vida: viagem, mudança, ou

qualquer coisa ensossa, para esperar o cumprimento do ditado: ―Cada um

tem seus seis meses...‖

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Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em

tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. (ROSA, 2001, p.

373).

Nem mesmo no momento em que está sendo brutalmente espancado pelos seus ex-

capangas ele demonstra passividade, visto que ―urrava e berrava, e estrebuchava tanto, que

a roupa se estraçalhava, e o corpo parecia querer partir-se em dois, pela metade da barriga.‖

(ROSA, 2001, p. 374-375). Esse processo de fragmentação por que passa o corpo de Nhô

Augusto são os primeiros indícios de uma nova fase que se inicia para ele, na qual,

destituído de sua força, depois de ser ferido mortalmente e marcado com ferro em brasa,

precisa assumir uma nova postura diante da vida. O próprio ato de se atirar do alto de um

penhasco parece representar não só a queda física, mas também a moral, e, nesse sentido, o

fundo do penhasco seria como um mundo desconhecido no qual ele estava imergindo.

Nhô Augusto: confronto entre alma e matéria

Depois de ser encontrado por um preto, Nhô Augusto passa a ficar sob os cuidados

dele e de sua esposa, os quais moravam na boca do brejo. Depois que toma consciência do

estado em que seu corpo se encontra, e vendo-se impossibilitado de nutrir qualquer desejo

de vingança, torna-se triste, melancólico, chegando, inclusive, a recorrer a Deus, o que não

era acostumado a fazer até então. Sentindo-se pecador, revela o desejo de receber a

absolvição dos pecados, o qual é atendido por meio do intermédio dos pretos, que

providenciam um encontro entre ele e um padre. Este recomendou-lhe que esquecesse a

mulher, renunciasse à vingança, fizesse penitência, trabalhasse em prol dos outros, e

acrescentou: ―[...] Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que

você é mais mandante do que ele...‖ (ROSA, 2001, p. 380). Por fim, o reverendo proferiu

as últimas palavras, as quais ficaram incrustadas na mente de Nhô Augusto:

– Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com

sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você

ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a

sua vez: você há de ter a sua.‖ (ROSA, 2001, p. 380).

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Assim, em busca de sua ―hora‖ e ―vez‖, a personagem adota uma nova forma de

vida, mudando-se para um lugar isolado, o povoado do Tombador, ―onde, às vezes, pouco

às vezes e somente quando transviados de boa rota, passavam uns bruaqueiros tangendo

tropa, ou uns baianos corajosos migrando rumo sul‖. (ROSA 2001, p. 382). Esse

isolamento da personagem se configura como um declínio sofrido por ela, pois não

dispunha mais do status de que gozava outrora. O seu corpo estava destruído e, portanto,

não tinha força para se insurgir contra aqueles que foram responsáveis pela sua ruína. Tal

situação parece entrar em consonância com a questão da alegoria segundo Benjamin (1984,

p. 188), para o qual o cerne da visão alegórica consiste na ―exposição barroca, mundana, da

história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do

declínio.‖ Nesse sentido, a destruição física do corpo de Nhô Augusto pode ser

interpretada como uma alegoria do próprio fragmento a que ele foi reduzido depois da sua

queda, precisando renunciar a toda aquela posição de supremacia para se apegar apenas a

um ideal de libertação. Assim, ele

não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das mulheres,

não falava junto em discussão. Só o que ele não podia era se lembrar de sua

vergonha; mas, ali, naquela biboca perdida, fim-de-mundo, cada dia que

descia ajudava a esquecer. (ROSA, 2001, p. 383).

Era inútil trazer de volta à memória a ―vergonha‖ oriunda do declínio sofrido,

principalmente porque isso só faria com que a personagem pensasse em vingança, o que

poderia desviá-la do desejo de buscar pela ―hora‖. Assim, lembrar-se de certos eventos

dificultaria ainda mais o processo de mudança ao qual estava se submetendo, processo esse

cujo principal fator era justamente domar o ―mau gênio‖, tal qual aconselhara o padre. Mas

esse mal parecia estar na iminência de, a qualquer momento, apoderar-se completamente de

Nhô Augusto e, por esse motivo, ele o combatia, sendo esse o único meio de garantir a

própria existência, tendo em vista que, para ele, ―a vida já se acabara, e só esperava era a

salvação da sua alma e a misericórdia de Deus Nosso Senhor. Nunca mais seria gente!‖

(ROSA 2001, p. 380). Essa situação da personagem entra em consonância com a

concepção de dobra barroca, principalmente no que diz respeito ao confronto entre alma e

matéria. De acordo com Deleuze (1991, p. 23) ―dobrar é diminuir, reduzir, ‗entrar no

afundamento de um mundo‘.‖ O autor assinala ainda que o traço do barroco ―é a dobra

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que vai ao infinito. Primeiramente, ele diferencia as dobras segundo duas direções, segundo

dois infinitos, como se o infinito tivesse dois andares: as redobras da matéria e as dobras na

alma.‖ (DELEUZE, 1991, p. 13). Nesse sentido, pode-se afirmar que a individualidade da

personagem estava fragmentada em dois planos principais: o do passado, relacionado à

matéria; e o do presente, relacionado à alma, ao desejo de buscar pela ―hora‖ e ―vez‖.

Mas para que o plano da matéria não triunfasse, era preciso dobrá-lo, diminuí-lo,

reduzi-lo, já que parecia impossível a sua extinção por completo, visto ser algo impregnado

na essência do ser de Nhô Augusto. Essa matéria representava para ele a queda, o declínio

e, portanto, corresponder aos desejos dela seria permanecer na mesma situação. Conforme

assinala Deleuze (1991, p. 57), o mundo barroco ―organiza-se de acordo com dois vetores,

o afundamento em baixo e o impulso para o alto.‖ Em consonância com essas ideias,

Benjamin (1984, p. 47) afirma que a ―alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero

e o eterno coexistem mais intimamente‖, ou seja, a fonte da inspiração alegoria reside no

―choque entre o desejo de eternidade e a consciência aguda da precariedade do mundo‖

(GAGNEBIN, 2004, p. 37).

A questão do fragmento se torna mais evidente quando Nhô Augusto passa a

transitar entre os planos do bem e do mal, referentes ao efêmero e ao eterno,

respectivamente. O marco inicial desse transe é a ocorrência de alguns eventos ocorridos

depois que ele já está aparentemente acostumado com a vida de servilismo e isolamento,

como a visita de Tião e a chegada do bando de Joãozinho Bem-Bem no povoado do

Tombador. O primeiro trouxe notícias sobre Dinória, Mimita, o Major Consilva e até o

Quim, as quais não agradaram em nada o outro. Dinória ainda estava vivendo com Ovídio,

pensando até em casar; a filha havia se tornado prostituta; o Major se apropriara de

algumas de suas terras; e o Quim morrera baleado por tentar vingar a ―morte‖ do patrão.

Este, abalado depois dessas notícias, parecia tomado por uma força que o levaria a

abandonar toda aquela espera pela hora da libertação, tanto que precisou se apegar à

jaculatória do coração manso e humilde, bem como se ajoelhar e rejurar: ―– P‘ra o céu eu

vou, nem que seja a porrete!...‖ (ROSA, 2001, p. 385). Mas, mesmo assim,

daí em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a tristeza. E, com

a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas mal-feitas, uma vontade sem

calor no corpo, só pensada: como que, se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem

trabalhar nem rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto

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de outro tempo, junto com a pressa das coisas, como os outros sabiam

viver. (ROSA 2001, p. 385).

Parecia difícil para Nhô Augusto se desprender completamente de seu passado para

ter de viver ―escondido, encostado, que nem como se tivesse virado mulher‖...‖ (ROSA,

2001, p. 386). Só num outro plano, que não o terreno, é que teria de volta a sua ―força de

homem‖, e, segundo os preceitos cristãos pregados pelo padre, apenas por meio da

renúncia às práticas do passado é que esse outro plano poderia ser atingido. Em uma

conversa com a preta Quitéria, ele diz: ―– Tem horas que eu fico pensando que, ao menos

por honrar o Quim, que morreu por minha causa, eu tinha ordem de fazer alguma

vantagem...Mas eu tenho medo... Já sei como é que o inferno é, mãe Quitéria...‖ (ROSA,

2001, p. 387). O inferno, nesse caso, pode ser interpretado como aquela condição à qual

estava submetido, fazendo com que se sentisse um desgraçado. Esse sentimento pareceu

tomar uma proporção ainda maior depois da chegada do bando de Joãozinho Bem-Bem,

pois Nhô Augusto enxergava nesses homens, principalmente no chefe, um retrato de si

próprio, de sua valentia de outrora, e, comparando-se com eles, chegou à conclusão de que

Aqueles, sim, que estavam no bom, porque não tinham de pensar em coisa

nenhuma de salvação de alma, e podiam andar no mundo, de cabeça em

pé... Só ele, Nhô Augusto, era quem estava todo desonrado, porque, mesmo

lá, na sua terra, se alguém se lembrava ainda do seu nome, havia de ser para

arrastá-lo pela rua da amargura... (ROSA, 2001, p. 397).

Como se vê, Nhô Augusto se considera um desgraçado sempre a partir de uma

comparação com o passado, no qual ele era honrado, respeitado, e até mesmo temido. Essa

relação entre presente e passado nos direciona para uma análise acerca da ideia da perda,

tão presente nessa fase em que a personagem esteve no povoado do Tombador, e também

na sua terceira e última fase, quando, finalmente, atinge a sua ―hora‖ e ―vez‖.

Luto e alegoria na redenção de Augusto Matraga

O luto, segundo a concepção benjaminiana, ―é o estado de espírito em que o

sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter da visão desse

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mundo uma satisfação enigmática‖. (BENJAMIN, 1984, p. 162). Nessa mesma perspectiva,

Gagnebin (2004, p. 39) afirma que a

linguagem alegórica extrai sua profusão de duas fontes que se juntam num

mesmo rio de imagens: da tristeza, do luto provocado pela ausência de um

referente último; da liberdade lúdica, do jogo que tal ausência acarreta para

quem ousa inventar novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros.

No caso de Nhô Augusto, a perda da sua força de homem, da família, dos capangas,

das terras, e da própria honra fez com que ele se apegasse ao ideal de libertação. Mas a

ausência desses elementos o tornaram triste, e, tendo em vista a relação desse sentimento

com a questão da perda, pode-se afirmar que a personagem entra em estado de luto. Este

passa a se manifestar de modo mais acentuado após o recebimento das notícias

transmitidas por Tião, quando Nhô Augusto passa a se mostrar triste, como podemos

perceber neste fragmento, no qual ele expressa o seu sentimento a mãe Quitéria: ―Já fiz

penitência esses anos todos, e não posso ter prejuízo deles! Se eu quisesse esperdiçar essa

penitência feita, ficava sem uma coisa nem outra... Sou um desgraçado, mãe Quitéria, mas o

meu dia há-de-chegar!...‖ (ROSA, 2001, p. 387).

Conforme assinala Pereira (2007, p. 47), o sentimento de luto aponta para a

―nostalgia de uma ordem histórico-temporal, simbólica, quantitativamente distinta da que

se apresenta ao homem lingüístico, profano, como única possível – todavia não satisfatória

– do mundo das coisas.‖ Nesse sentido, envolto no luto oriundo das perdas que sofreu,

Nhô Augusto passa a esperar pela sua ―hora‖ e ―vez‖, que pode ser associada a um resgate

de certos elementos com a honra, cuja ausência era motivo de lamentação para ele. Essa

falta se configura como um sinal de luto, ao qual está atrelada a melancolia, oriunda da

tristeza da personagem quando se deparava com elementos daquela primeira fase. Assim,

tendo em vista o confronto que passou a vivenciar entre alma e matéria, era primordial o

triunfo da primeira, pois sendo a outra sinal da queda, do declínio, só pelo viés do plano

espiritual poderia ser alcançada uma nova ascensão.

Ascender pelo viés do espírito representava, para Nhô Augusto, a incorporação dos

preceitos cristãos recomendados pelo padre. Mas ele, enquanto matéria, era impulsionado a

renegar esses preceitos e corresponder aos desejos da carne, dentre os quais a vontade de

vingança era o principal. Percebemos, aí, um paradoxo: a personagem é a única responsável

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pela sua transcendência, mas, enquanto simples criatura, era destituída dessa

transcendência. Assim, a sua consciência dessa fragilidade pode ser compreendida como

mais um fator para a manifestação do estado de luto e melancolia.

Benjamin (1984, p. 165), a partir da ideia de que o ―príncipe é o paradigma do

melancólico‖, considera Hamlet uma obra que, por excelência, incorpora os traços próprios

do drama barroco. Nesse sentido, tendo em vista as considerações que estão sendo tecidas

acerca de luto e melancolia no conto rosiano, parece pertinente traçarmos um paralelo

entre Nhô Augusto e o personagem homônimo da supracitada obra shakespeariana. De

acordo com Benjamin (1984, p. 180), no ―drama barroco, somente Hamlet é espectador

das graças de Deus; mas o que elas representam para ele não lhe basta, pois apenas seu

próprio destino lhe interessa.‖ Do mesmo modo, podemos afirmar que Nhô Augusto, ao

dobrar seus instintos maléficos e assumir uma vida de servilismo, tem como principal

interesse menos ajudar ao próximo do que buscar a própria libertação. Quanto a Hamlet,

passa a transitar entre o ser e o não ser, depois que é designado pelo fantasma do próprio

pai para vingar a morte dele: ―Se você algum dia amou seu pai... [...] Vinga esse

desnaturado, infame assassinato‖. (SHAKESPEARE, 2006, p. 31). O príncipe, por sua vez,

aceita esse desígnio, cujo cumprimento corresponde ao destino da personagem, como

podemos perceber neste fragmento:

[...] vou apagar da lousa da minha memória

Todas as anotações frívolas ou pretensiosas,

Todas as idéias dos livros, todas as imagens,

Todas as impressões passadas,

Copiadas pela minha juventude e observação.

No livro e no capítulo do meu cérebro

Viverá apenas o teu mandamento,

Sem mistura com qualquer matéria vil. (SHAKESPEARE, 2006, p.

33).

Para Hamlet, conforme assinala Nemer (2002), matar ―ou morrer não faz a menor

diferença. O que está em jogo é a honra. Vingar-se, essa é a questão.‖ O luto de que essa

personagem se reveste está associado à perda do pai, e, nesse caso, a vingança surgiria

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como uma compensação para essa perda, como se por meio da morte do assassino do Rei

Hamlet fosse ocorrer um resgate dos tempos em que este último governava. Mas,

contrariamente, a realização do plano de vingança representa a aniquilação do próprio

Hamlet. ―Sua vida, objeto do seu luto, aponta, antes de extinguir-se, para a Providência

cristã, em cujo regaço suas tristes imagens passam a viver uma existência bem-aventurada‖,

conforme assinala Benjamin (1984, p. 180).

Do mesmo modo, a morte, para a personagem rosiana, representa, ao mesmo tempo,

aniquilamento e redenção. Quando combate com Joãozinho Bem-Bem em defesa de um

homem do qual este queria se vingar, Nhô Augusto corresponde a impulsos referentes à

alma e à matéria: ao matar Bem-Bem com um golpe de faca revela a sua essência de

homem violento, valente; ao fazê-lo em nome de alguém que lhe havia pedido socorro em

nome de Jesus Cristo e da Virgem Maria, traz à tona traços como a misericórdia e a

compaixão, próprios do espírito que busca a salvação eterna, segundo os preceitos cristãos.

Esse jogo entre alma e matéria, sagrado e profano, fica evidente neste fragmento, em que a

personagem anuncia o início do confronto com o chefe dos jagunços: ―– Epa!

Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou a minha

vez!...‖ (ROSA, 2001, p. 410).

Após o confronto, quando ambos os homens estão mortalmente feridos, perdoam-se

mutuamente, atitude que reforça a ideia do jogo entre alma e matéria vivenciado pela

personagem. Nos últimos instantes de vida, fez questão de proclamar, com o rosto

radiante: ―– Perguntem quem é aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto

Esteves, das Pindaíbas!‖ (ROSA, 2001, p. 412). Parecia que a grande recompensa seria a

aclamação por parte das pessoas, o reconhecimento do seu ato, como se por meio disso

sentisse a restituição completa de sua ―homência‖ (ROSA, 2001, p. 385), tal qual um

retorno àquela posição primordial. O próprio lugar onde ocorre o desfecho da narrativa, no

povoado próximo ao Murici, onde ela havia se iniciado, pode remeter a essa ideia do

retorno. Foi no Murici que Nhô Augusto perdeu sua potência, e foi lá que ele recuperou-a,

daí a questão da circularidade na trajetória dessa personagem. Conforme assinala Pereira

(2007, p. 5),

o uso recorrente da palavra redenção, assim como outros termos correlatos

de mesmo teor semântico, tais como restauração, recuperação, reabilitação e

a própria rememoração, indicam, cada um à sua maneira e de antemão, uma

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perda fundadora que condiciona o objeto e sua representação. Isso remete

para o sentimento que funda um pensamento que se dirige insistentemente

para o resgate dessa ordem primeira que se perdeu.

Quanto à morte, configura-se como ―a grande fantasmagoria barroca, seu tema

principal, ela representa a danação de todas as coisas, a depreciação gradativa do corpóreo

em relação ao incorpóreo.‖ (PEREIRA, 2007, p. 6). Essa depreciação era, para Nhô

Augusto, motivo de gozo, principalmente porque, ainda em vida, pôde ver a sua figura

associada à de um santo, pelo homem em nome do qual ele entrara em confronto com

Joãozinho Bem-Bem: ―– Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés

dele!... Não deixem esse santo morrer assim...‖ (ROSA, 2007, p. 412). A personagem torna-

se, assim, Augusto Matraga, que é o sinal da degradação do corpóreo, o qual se reduz ao

nada, conforme aponta o narrador no início do conto: ―Matraga não é Matraga, não é nada.

Matraga é Esteves. Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do

Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto – o homem‖ (ROSA, 2001, p. 363).

Essa primeira apresentação da personagem entra em consonância com a concepção

do alegórico, principalmente no que diz respeito ao par ser e não ser, dizer uma coisa para

significar outra, aspectos esses próprios da alegoria. A ―hora‖ e ―vez‖ representam o

momento em que ela alcançaria uma nova ascensão, mas pelo viés do espírito, visto o

estado de degradação de seu corpo. Assim, renegando a sua essência profana, Nhô

Augusto parte em busca do que seria a salvação de acordo com a visão cristã, mas, na

verdade, a força para permanecer nessa busca não provém dos céus, mas do desejo de

restabelecer – ao menos no plano da honra, da moral – um passado perdido, daí a ideia do

luto. Isso fica evidente em um sonho tido por ele, ―no qual havia um Deus valentão, o mais

solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o

mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força‖ (ROSA, 2001, p. 398). Esse Deus

assume uma feição completamente distinta da que é veiculada pelo cristianismo, podendo

ser essa imagem considerada, portanto, mais um retrato do conflito entre alma e matéria

vivenciado pela personagem.

É a partir da observação de aspectos como o luto e a alegoria que se pode afirmar

que ―A hora e a vez de Augusto Matraga‖ apresenta pontos de contato com o drama

barroco alemão, tal qual o apresenta Walter Benjamin. No prefácio de A origem do drama

barroco alemão, Rouanet (1984, p. 18) aponta que esse gênero ―designa a tristeza de um

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homem privado da transcendência (pois com ela a vida não seria absurda), numa natureza

desprovida da Graça‖, e esses traços se fazem presentes na trajetória da personagem

rosiana, conforme pudemos perceber ao longo da análise. Além disso, a relação que

estabelecemos entre o conto e o Hamlet shakespeariano – obra exponencial do drama

barroco, segundo Benjamin – parece corroborar a pertinência de se buscar estabelecer

relações entre a obra rosiana em questão e aquele gênero.

Nesse conto, Guimarães Rosa, ao trazer à tona esse jogo entre alma e matéria, acaba

por representar algo inerente ao ser humano, o eterno conflito de forças com que

normalmente se depara, precisando escolher entre certo ou errado, bem ou mal, orientado

por forças que se opõem. Muitas vezes, dada a impossibilidade de escolha, vê-se obrigado a

se apegar à única opção restante, embora precise dobrar a sua essência e se fragmentar sob

o véu da aparência. Assim, muito mais do que contar uma história, Rosa, nesse conto,

representa algo inerente ao homem, fazendo com que a experiência de leitura possa

funcionar como um verdadeiro convite ao leitor a refletir sobre a própria existência.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Sagarana. In: COUTINHO, F. Eduardo (Org.). Guimarães Rosa.

2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 243-247.

BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo

Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi.

Campinas: Papirus, 1991.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Alegoria, Morte, Modernidade. In: ______. História e

narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 31-53.

NEMER, Sylvia R. B. Hamlet e a melancolia: uma tentativa de interpretação a partir da

teoria de Walter Benjamin. Semiosfera, ano 2, n. 1, 2002. Disponível em: <

http://www.semiosfera.eco.ufrj.br/anteriores/semiosfera02/perfil/mat5/frmat5.htm>.

Acesso em: 15 out. 2010.

PEREIRA, Marcelo de Andrade. Barroco, Símbolo e Alegoria em Walter Benjamin.

Revista Analecta, Guarapuava, v. 8, n. 2, p. 47-54, 2007.

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 214

ROSA, João Guimarães. A hora e a vez de Augusto Matraga. In: ______. Sagarana. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROUANET, Sergio Paulo. Prefácio. In: BENJAMIN, Walter. A origem do drama

barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM,

2006.

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8. ENTRE AS FRATURAS DO SUJEITO BAR/ROSIANO EM TUTAMÉIA E

NO LIVRO SOBRE NADA

Robeilza de Oliveira Lima

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Instituto Federal de Ciência e Tecnologia

do Rio Grande do Norte)

Guimarães Rosa, num curto intervalo de cerca de dez anos, publicou várias obras,

entre as quais está Tutaméia, que é conhecida por seu caráter fragmentário, embora seja

capaz de formar um todo concatenado e repleto de significado. Essa obra rosiana, por sua

natureza fragmentária, nos remete à escritura de Manoel de Barros, a qual chega a ser, por

vezes, aforística. Uma das obras em que isso se manifesta de forma mais evidente é o Livro

sobre nada.

O estilhaçamento presente nas duas obras referidas acima afeta também a

construção das personagens. Em contos como ―Desenredo‖ e ―Reminisção‖, os quais

integram Tutaméia, observamos que circulam personagens amantes e amadas, vivendo de

forma intensa a magia do amor ―e seu milhão de significados‖ (ROSA, 2001, p. 169). Essas

personagens são ambíguas, múltiplas como o sentimento que as envolve. Em ―Desenredo‖,

exemplifica isso o caso da personagem Livíria que, além desse nome, recebe três outros

nomes diferentes (Rivília, Irlívia e Vilíria), conforme observamos no fragmento abaixo:

Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó

Joaquim apareceu. [...] Apanhara o marido a mulher: com outro, um

terceiro [...] Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos [...] Jó

Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o

verdadeiro e melhor de sua útil vida (ROSA, 2001, p. 72-75).

Essa ―plurinomeação‖ tem uma estreita relação com o caráter multifacetado da

personagem. Os três primeiros nomes remetem à situação nada estável e transparente, em

que ela possui um marido e dois amantes. Assim, Livíria é Rivília não deixando de ser

também Irlívia. Mesmo sendo denominada de Vilíria apenas num momento posterior (após

a volta para Jó Joaquim, ex-amante e atual marido), pela simples troca na posição das letras,

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a personagem pode assumir a última identidade facilmente. Em suma, ela é todas de uma

só vez, reversivelmente.

Uma outra forma de compreender essa variação de nomes é através da simbologia de

cada um deles. Em um estudo sobre o conto ―Desenredo‖, Vera Novis (1989) explicita

muito bem a ambivalência da personagem Livíria, a partir de uma relação com a

personagem Anna Livia Plurabelle de James Joyce, da obra Finnegans Wake. Novis

(1989) justifica a relação, afirmando que a variação de nomes em Rosa se assemelha àquela

que se faz presente em Joyce no que tange à simbologia. Segundo Novis (1989, p. 131-132):

Livíria remete a Lívia e retoma a imagem de lírio, símbolo da pureza

do feminino. Rivília traz à lembrança a imagem de rio,

simultaneamente curso d‘água e curso do tempo, e também de ilha.

Irlívia remete a Irlanda, evidentemente não como espaço geográfico

real, mas como referência ao espaço mito-poético no qual Joyce fez

circular sua mulher-rio [...] o processo utilizado por Rosa na

nomeação de sua personagem é bastante semelhante ao de Joyce:

fazer variar a posição das letras ou das sílabas de uma palavra, criando

novos conjuntos sonoros (outras palavras) que permitam novas

associações semânticas sem anular as anteriores. A Lívia de Joyce é

simultaneamente lírio (Lily, lilybit), rio (liffey, liffy, Missisliffi) e

também Irlanda ou Dublin (Irish, doublin).

A partir das palavras de Novis (1989), podemos dizer que a Livíria de Rosa encarna

todos os símbolos abstraídos da Lívia joyciana e apresenta o mesmo princípio de

construção. A mulher-lírio é também mulher-rio e ainda aquela que está ambientada num

espaço mito-poético, onde a imaginação atua como força motriz.

Mas, não é somente em ―Desenredo‖ que encontramos, de maneira prodigiosa, esse

traço de multiplicidade, ele também se sobressai em ―Reminisção‖ com: ―Nhemaria, mais

propriamente a Drá, dita também a Pintaxa‖ (ROSA, 2001, p. 126). Nesse conto, os nomes

apontam para metamorfoses expressas na mudança de comportamento e de aspecto físico

por que vai passando a personagem:

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Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada,

feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeva; [...] Medonha e má; não

enganava pela cara [...] Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem

lazer; ralhava a brados surdos [...] Todo o tempo o atanazava, demais

de cenhosa, caveirosa, dele, aquela, mulher mandibular. [...] De por aí,

embora, seresma ela se aquietou, em desleixo e relaxo [...] Vivia e

gemia – paralelamente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo. [...]

Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a

luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria

(ROSA, 2001, p. 126-129).

Drá se metamorfoseia em Pintaxa e num momento posterior em Nhemaria. Drá é

descrita como alguém ―feia feito fritura queimada‖, ―medonha e má‖, ―cenhosa, caveirosa‖,

uma ―mulher mandibular‖, conforme vimos acima. Pensando na feiúra e maldade dessa

personagem, podemos entender o nome Drá como uma redução da palavra dragão, a qual

pode remeter a um monstro fabuloso muito conhecido no horizonte ficcional, como

também a uma pessoa de má índole. Na Bíblia, por exemplo, esse é um dos nomes usados

para fazer referência ao próprio Satanás, o qual é apresentado como inimigo de Deus e de

todo o bem.

Entretanto, Drá, num instante, não mais que num instante de lampejo, torna-se uma

manifestação de luminosidade e beleza, a ponto de receber posteriormente o nome de

Nhemaria, o qual se subtraído do prefixo Nhe nos faz ter uma visão da virgem Maria, cujos

atributos conferidos pela tradição cristã, especificamente o catolicismo, a eleva a uma

condição de pureza e santidade que a torna uma mediadora entre Deus e os homens. O

próprio nome Maria, por significar nobre, senhora, já aponta para uma elevação. Assim,

Nhemaria representa a ascensão do mundo profano de Drá. Tal ascensão já era

prenunciada pelo próprio espaço em que a Drá vivia: ―Cunhãberá, destinado lugar, onde o

mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem‖ (ROSA, 2001, p. 126).

Drá, no entanto, antes que viesse a assumir a aparência de Nhemaria,

metamorfoseou-se em Pintaxa. O narrador diz que Romão (marido dela) a chamou de

Pintaxa, quer dizer, ―o bufo do povo‖. Um dos significados do vocábulo bufo é coruja,

que, por ser uma ave noturna, pode ser associada ao saber, à meditação. A palavra bufo

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também pode ser entendida como sinônimo de misantropia. Dessa forma, Pintaxa pode ser

considerado um estágio intermediário, de recolhimento para dentro de si, estágio de

meditação. É interessante notar que o ser Pintaxa não faz Drá perder sua aparência feia e

repugnante. A palavra seresma, usada pelo narrador para se referir à fase Pintaxa, indica

muito bem isso. Mas algo parece se processar no interior da Drá, pois ela que antes

atanazava a toda hora o Romão, agora se aquieta e chega a gemer, provavelmente

remoendo suas culpas.

Mas a ascensão da personagem Drá pode ser enganosa. Na visão de Paulo Rónai

(2001, p. 25), Romão, ―ao morrer, transmite por um instante aos demais a enganosa

imagem que dela formara‖. As metamorfoses descritas acima não passariam então de uma

criação de Romão, ―amante obstinado de uma megera‖ (RÓNAI, 2001, p. 25). A

imaginação e o amor dessa personagem seriam assim o fator decisivo para que as

transfigurações ocorressem. Essa possibilidade de interpretação só vem a reforçar o caráter

ambíguo da Drá, cuja imagem luminosa pode se quebrar facilmente com a morte do

amante inveterado.

Tal interpretação também opera uma transfiguração de Romão diante dos olhos do

leitor, pois ele deixa de ser o mero ―Romão, meão, condicionado, normalote‖ (ROSA,

2001, p. 127) para se desvelar como sujeito de grande densidade que tem ―em si uma certa

matemática [...] [e cogita] súbitos, encobertos acontecimentos‖ (ROSA, 2001, p. 127) em

seu íntimo. Ele, que vivia ―a tragar borras‖ com a enxerente Drá, a qual ―não o deixava[...]

trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos[...] todo o tempo o atanazava‖ (ROSA, 2001,

p. 127), ―com pelejos de poeta, [...] troca pesares por prazeres‖ (ROSA, 2001, p. 128) e

transfigura a Drá em outra que é o inverso: Nhemaria.

À semelhança do que ocorre com Drá, Livíria, quer dizer Rivília, ou melhor Irlívia,

em fim, Vilíria também experimenta uma dúbia ascensão, na qual tem grande importância a

personagem Jó Joaquim. Para compreendermos isso, lembremos do personagem bíblico Jó,

apresentado como um ―homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal‖

(Bíblia Sagrada, 1993, p. 537). Segundo a Bíblia, ele orou e três de seus amigos foram

inocentados, tendo seus pecados perdoados por Deus45.

45 [...] o Senhor disse também a Elifaz, o temanita: a minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois

amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Tomai, pois, sete novilhos e

sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei holocaustos por vós. O meu servo Jó orará por vós;

porque dele aceitarei a intercessão, para que eu não vos trate segundo a vossa loucura; porque vós não

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De acordo ainda com o relato bíblico, Elifaz, Bildade e Zofar, os três amigos do

patriarca Jó, durante o período em que ele foi acometido de lepra, falaram de Deus de uma

forma errônea. Isso está explícito no intrigante diálogo de Jó com seus três amigos que

perpassa quase todo o livro atribuído pela tradição cristã a Moisés. Num diálogo do próprio

Deus com um dos três amigos, Elifaz, fica evidente o desagrado do Senhor pelos amigos

do patriarca e a recomendação do próprio Deus de que ofereçam sacrifícios por si e ainda

peçam a Jó para que interceda por eles, através da oração. No final da conversa, é dito que

o ―Senhor aceitou a oração de Jó‖. A razão para a aceitação também é apresentada: Jó é

―íntegro e reto, temente a Deus‖, ou seja, é justo e obediente.

A descrição de Jó Joaquim remete ao personagem bíblico Jó: ―[...] era quieto,

respeitado, bom como o cheiro de cerveja.‖ (ROSA, 2001, p. 72). O que ele fez em prol de

Livíria também. É Jó Joaquim quem vai levar a cabo a tarefa de inocentá-la perante o

vilarejo em que morava: ―Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. [...] Sem malícia,

com paciência, sem insistência, principalmente‖ (ROSA, 2001, p. 74). A razão que motiva o

Jó rosiano é o amor que devota à sua amada: ―Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e

averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta‖

(ROSA, 2001, p. 75). E assim, ele consegue ―inocentá-la‖: ―Soube-se nua e pura. Veio sem

culpa‖ (ROSA, 2001, p. 75). Ele faz tal proeza por sua devoção em dizer para todos,

inclusive para si mesmo: ―Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia

isso Jó Joaquim‖ (ROSA, 2001, p. 74).

Impulsionado por suas ―defeituosas emoções‖, as quais emergiram quando ele ficou

―derrubadamente surpreso‖ de saber que a mulher amada estava com ―o pé em três

estribos‖ (a saber, tinha, além do marido, dois amantes, dos quais ele era um), Jó Joaquim

resolve se afastar fisicamente de Irlívia. Esse distanciamento o faz imaginá-la ―sempre ou

ao máximo mais formosa‖ (ROSA, 2001, p. 73). Morto o marido, Jó se casa com Livíria,

mas a alegria dele não dura muito, pois logo ele a flagra com outro. Esse ―abominoso‖

momento o faz expulsá-la, ―apostrofando-se como inédito poeta e homem‖ (ROSA, 2001,

p. 74). Desde então, diz o narrador, o nosso Jó, ―que desejava a felicidade - idéia inata‖

(ROSA, 2001, p. 74), de tanto ―sofrer e amar‖, dedicou-se a ―redimir a mulher‖. Mas nesse

dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Então, foram Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta,

e Zofar, o naamatita, e fizeram como o Senhor lhes ordenara; e o Senhor aceitou a oração de Jó. (Bíblia

Sagrada, 1993, p. 566).

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gesto, Jó Joaquim usa não só a devoção, mas também a imaginação, ―o inebriado engano‖,

o engenho do poeta:

Nunca tivera ela amantes! [...] Demonstrando-o, amatemático, contrário

ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. [...] O

ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia

miúda, conversinhas escudadas, remendados testemhnhos. Jó Joaquim,

genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava,

transformada realidade, mais alta. Mais certa? (ROSA, 2001, p. 74)

Pensando na associação feita por Vera Novis (1989) de Irlívia com a Irlanda poética

de Joyce, podemos dizer que Jó Joaquim se distancia de Livíria, de Rivília, mas se aproxima

de Irlívia via poesia, o que culmina com a transfiguração da amada. Assim, o Jó rosiano

remete ao Jó bíblico, todavia, ao mesmo tempo se distancia, pois não maneja mais a fé

deste, mas a imaginação. Ele é outro Jó, é o que se banha nas águas da poesia e consegue

dar o vôo da liberdade criativa que é cara ao próprio autor.

As ascensões experimentadas por Livíria e Drá podem ser associadas à doutrina

alegórica da redenção do objeto no campo da significação, pelo que tanto uma quanto a

outra, ao passarem por essa ascese aceitam a salvação que o alegorista Rosa lhes oferece, a

qual só ocorre em termos semânticos. Elas precisam também ser apreendidas em termos

ambíguos, pois o nome Vilíria, como bem disse Novis (1989), remete à vileza e à pureza a

um só tempo. Nhemaria pode ser não mais do que fruto da imaginação de Romão,

conforme nos alerta Rónai (2001).

Nesse movimento, em que ―o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e

desvalorizado‖ (Benjamin, 1984, p. 197), existe uma dialética que é elementar na expressão

alegórica, a qual implica em dizer que ―cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar

qualquer outra.‖ (Benjamin, 1984, p. 197). Tal dialética, segundo Walter Benjamin (1984, p.

199), se manifesta porque ―a ambiguidade, a multiplicidade de sentidos é o traço

fundamental da alegoria. A alegoria, o Barroco, se orgulham da riqueza das significações.

Mas essa ambiguidade é a riqueza do desperdício‖ (BENJAMIN, 1984, p. 199).

Tudo isso nos motiva a dizer que Livíria, Drá, bem como Jó Joaquim e Romão são

personagens alegóricas, barrocas por excelência. Sua ambiguidade denuncia que elas são

seres fraturados, cujas variações e metamorfoses revelam sua natureza descontínua.

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Somente seres fraturados podem adquirir a ambivalência que essas personagens adquirem,

pois, conforme afirma Jean Baudrillard (2003, p. 48), ―passa-se algo na falha das coisas, na

brecha e, portanto, em sua aparição‖. De acordo com esse autor, a brecha, isto é, a fratura,

tem uma relação estreita com o fragmento e esse, por sua vez, tem um lado enigmático, que

consiste no desafio à interpretação ou nas múltiplas e inesgotáveis interpretações. É entre

as fraturas dessas personagens que emerge a profunda ambiguidade alegórica que as

integra. Não é fortuito que, segundo Benjamin (1984), diferentemente do símbolo, a

alegoria se constitui a partir do ―fragmento amorfo‖ e irrompe das entranhas, onde moram

os segredos do ser.

Tomando como ponto de partida que Livíria, Drá, bem como Jó Joaquim e Romão

são personagens barrocas, podemos entender essas fraturas como resultado de uma tensão

existencial presente também na modernidade. Lembrando as palavras de Afonso Ávila

(1978, p. 17): ―o homem barroco e o do século XX são um único e mesmo homem

agônico, perplexo, dilemático, dilacerado‖. Mas, conforme Ávila (1978, p. 19), o homem

barroco (e, por extensão, o moderno), especialmente o artista, encontrou no jogo:

[...] a saída instintiva que teve para deter, ainda que ilusoriamente, o lento

escoar de sua situação absurda no mundo [...] jogou tanto ao elaborar a

sua arte, [...] personalizando melhor que o homem de qualquer outro

período a imagem do homo ludens de Huizinga. Aqui novamente o seu

parentesco com o homem moderno, notadamente o da crise de após-

guerra, o existencialista do primeiro momento sartriano na sua atitude de

auto-alienação, de demissão, de descompromisso de viver-a-vida.

Para que entendamos a noção de homo ludens, é importante frisar que Johan Huizinga

(2008, p. 6-7) esclarece, em seu estudo, que seu interesse maior é abordar o jogo ―como

forma específica de atividade, como ‗forma significante‘, como função social‖, isto é, como

elemento cultural da vida. Huizinga (2008, p. 7) explica também que o jogo é apreendido

―em sua significação primária [baseada] [...] na manipulação de certas imagens, numa certa

‗imaginação‘ da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)‖.

Assim, o jogo lúdico a que se refere Ávila (1978) pode ser entendido como sinônimo

do jogo alegórico a que procede Guimarães Rosa ao construir suas personagens. Esse jogo

é empreendido pelos próprios personagens Jó Joaquim e Romão. O primeiro, quando

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deixa que o ―firme fascínio‖ de Vilíria o levante de seu ―decúbito dorsal‖ e o faça

ultrapassar seu dolorido franciscanato. O segundo, quando usa sua imaginação para

converter ―pesares em prazeres‖. Nesse gesto, segundo o próprio Rosa (2003, p. 38),

personagens e autor se unem ―querendo subir à poesia e à metafísica, juntas, ou com uma e

outra como asas, ascender a incapturáveis planos místicos‖. Eles constroem uma realidade

mais alta, nova, como diria o narrador de ―Desenredo‖, mas talvez não mais certa.

Como acontece em Tutaméia, as personagens do Livro sobre nada também são

fraturadas e ambíguas. Para averiguarmos como isso se concretiza no universo ficcional de

Manoel de Barros, tomemos como referência as personagens Mano Preto, Catre-Velho e

Bernardo.

À semelhança de muitos outros personagens que aparecem no universo barreano,

Mano Preto é um indivíduo no limiar do não humano. Seu estatuto humano é posto em

questão. Sobre ele é dito: ―Mano Preto não tinha entidade pessoal, só coisal‖ (BARROS,

2004, p. 15). As perguntas feitas por ele são repletas de ilogismo, o que aponta para sua

dimensão fraturada, mas ao mesmo tempo poética, tendo em vista que elas aludem à

brincadeira, ao jogo, o qual, para Huizinga (2008), é irracional e é o solo onde a poesia tem

fincadas suas raízes de maneira profunda.

Mano Preto é capaz de ter um olhar outro – o da poesia - sobre o cotidiano e, em

especial, sobre as coisas da natureza. Percebemos então que, ironicamente, é dito que ele só

tinha ―entidade[...] coisal‖, já que o vemos fazendo perguntas que revelam uma fina

sensibilidade para perceber as coisas aparentemente sem importância, que passam

despercebidas ao ―homem empalhado‖, ―coisificado‖ pela linguagem e pelos costumes

sociais cristalizados. Seres mínimos, que normalmente não são notados, são enxergados por

ele, através de um olhar outro, renovado e renovador. O pequeno passarinho e o

minúsculo inseto ganham destaque e importância: são matéria de poesia, como transparece

nos trechos abaixo:

Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para

ele voar parado? (BARROS, 2004, p. 11)

Mano Preto aproveitou: Grilo é um ser imprestável para o silêncio.

(BARROS, 2004, p. 15)

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É por meio do olhar transfigurador da poesia que ―os sabiás divinam‖, ou seja, as

coisas ínfimas são enxergadas em sua grandeza. É assim também que as coisas

aparentemente simples ganham complexidade. O próprio Mano Preto adquire o estatuto da

grande poesia, a qual, de acordo com Octavio Paz (1982, p. 15), é uma ―operação capaz de

transformar o mundo‖, revelando-o e criando outro. Mano Preto, que é uma criança (no

poema ―Diário de Bugrinha (excertos)‖, a mãe dessa aparece batendo no Mano Preto, o

que indica tratar-se de uma criança) habitante do brejo pantaneiro, cria uma linguagem

nova (o que alguns críticos chamam de infância da linguagem) e, com isso, engendra um

nova realidade, na qual moram os encantos da poesia. Na linguagem barreana, ocorre o que

Octavio Paz (1982, p. 25-26) afirma a respeito do poema:

a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela redução

que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana. A reconquista de sua natureza

[...] afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores

significativos. A palavra, finalmente, em liberdade, mostra todas as suas

entranhas, todos os seus sentidos e alusões.

Daí, como diz ainda Octavio Paz (1982), o entusiasmo do poeta é o da criança diante

das descobertas da linguagem. Confirma isso o contexto em que Mano Preto disse que

―Grilo é um ser imprestável para o silêncio‖: enquanto estava à mesa com a família e com

um doutor que vem de fora. Como sabemos, muitas crianças costumam falar daquilo que

as deixa admiradas quando estão diante de pessoas que não fazem parte de seu convívio.

Elas parecem querer, com isso, extravasarem toda a sua alegria diante das novas

descobertas. O poeta se assemelha um pouco à criança, ao dividir suas invenções de

linguagem com o leitor.

Diferentemente de Mano Preto, a personagem Catre-Velho traz à tona a noção de

velhice. Ele é um cantador e violeiro, cujo nome já carrega a noção de algo imprestável. A

personagem Bugrinha diz que ele é ―confortável para moscas‖. Mais adiante, num poema a

ele dedicado, é dito que ele ―é um traste pessoal à-toa‖, ―não vale um cabelo‖ e ―não serve

nem pra remendo‖, como fica evidente na transcrição abaixo:

2.I.I926

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Catre-Velho é um ser confortável para moscas. Ele nem espanta

algumas. (BARROS, 2004, p. 32)

Catre-Velho é um traste pessoal à-toa.

Nossa mãe falava:

Não vale um cabelo.

Não serve nem pra remendo.

Só presta pra cantar e tocar violão. (BARROS, 2004, p. 25)

A personagem Catre-Velho traz para a escrita barreana a dimensão das coisas que se

tornaram desprovidas de função, por estarem velhas, isto é, em deterioração, em ruínas.

Catre-Velho é o rejeitado, o abandonado, o que não tem serventia, pelo menos, dentro da

visão utilitarista que predomina em nossa sociedade capitalista. Afinal, ele ―presta pra

cantar e tocar violão‖ (BARROS, 2004, p. 25). Ele tem ―uma voz de harpas destroçadas‖.

(BARROS, 2004, p. 25). A palavra destroçada remete a três palavras importantes para

compreendermos essa personagem: despedaçada, rasgada e dilacerada. Catre-Velho é um

ser em pedaços, dilacerado por conflitos internos.

Conforme nos diz o próprio poeta Manoel de Barros, ―só a alma atormentada pode

trazer para a voz um formato de pássaro‖ (BARROS, 2004, p. 75) e Catre-Velho tem a

alma assim, pois até ensina como ter grandezas na voz. A construção dessa personagem é

eminentemente barroca, pois: ―o que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço:

essa é a matéria mais nobre da criação barroca‖ (BENJAMIN, 1984, p. 200). Pelas imagens

que o revestem e pelo caráter inédito dessas imagens, Catre é, como Antônio Ninguém,

uma espécie de ―ruína concupiscente‖ (BARROS, 2004, p. 79), ou seja, um resto, um

fragmento carnal, lascivo, sensual. Além disso, por ele ensinar que ―a voz de um cantador

tem que chegar a traste para ter grandezas...‖ (BARROS, 2004, p. 25), isto é, que a

condição para a voz de um cantador ser nobre é alcançar o imprestável, ele tem a antinomia

na voz. Sendo esse ser barroco, ele é também uma expressão do fragmentado homem

moderno, o qual, segundo o próprio Manoel de Barros (2009), em entrevista concedida a

André Barros: ―não tem mais as grandes unidades, como Deus‖.

Catre-Velho é também aquele que reúne em si tudo aquilo que é rechaçado pela

sociedade moderna, cuja lógica predominante é a do capitalismo, a qual consiste em

valorizar somente o que pode se converter em moeda de troca. Por isso mesmo, ele é uma

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expressão de destaque dentro da lírica moderna, a qual, como nos lembra Theodor Adorno

(2003), é uma expressão do antagonismo social, mas, ao mesmo tempo, tem em sua base

uma corrente subterrânea coletiva. Dessa forma, ao incorporar as coisas que a sociedade

―pisa‖ e ―joga fora‖ (BARROS, 2001, p. 13), Catre-Velho expressa o desejo latente de cada

indivíduo que compõe a sociedade de fazer oposição aos valores utilitaristas que se

impõem no convívio social como regras de conduta.

Outro personagem que nos chama a atenção por seu caráter ambíguo, embora exiba

uma aparente simplicidade, é Bernardo. Ele é assemelhado, inicialmente, a um joão-

ninguém, ―passarinho que vive no cisco‖ e logo adiante é mencionado como aquele que

ensinou à personagem Bugrinha a ―infantilizar formigas‖. Ele também é apresentado como

um ser capaz de falar com pedra, nada e árvore. Isso é o que fica patente nos versos a

seguir:

22.I

O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-ninguém. Ele parece

com Bernardo. [...]

2.3

Bernardo me ensinou: Para infantilizar formigas é só pingar um

pouquinho de água no coração delas. [...]

I.I0

Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com árvore. As plantas

querem o corpo dele para crescer por sobre. Passarinho já faz poleiro na

sua cabeça (BARROS, 2004, p. 29-30).

Entre os significados da palavra cisco, está o de lixo. Daí, podemos deduzir que

Bernardo, como o joão-ninguém, é um ser que vive no lixo ou, pelo menos, nos restos, nos

rejeitos, e procura retirar deles algo para seu proveito. É dessa vivência que ele aprende a

―infantilizar formigas‖. Mas Bernardo adentra num estágio mais profundo, ele começa a

falar a linguagem das pedras e das árvores. Falando essa linguagem, ele fica à mercê das

plantas, se confundindo com elas, afinal, ―passarinho já faz poleiro na sua cabeça‖. Com

isso, ele acaba se colocando no limiar do não-humano, do irracional. Mais que isso, o ser

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parece estar no limite do não ser, já que fala até com nada. As palavras da mãe de Bugrinha,

segundo as quais ele ―é bocó. Uma pessoa sem pensa‖ (BARROS, 2004, p. 31), confirmam

muito bem essa idéia. Pelo menos, é certo o seguinte: esse ser não pode existir com base no

princípio ―penso, logo, existo‖. Ao mesmo tempo, Bernardo é um ser dotado de sabedoria

vegetal, a qual, nas palavras de Barros (2004, p. 51), ―é receber com naturalidade uma rã no

talo‖.

Quando lemos a obra barreana O guardador de águas, observamos alguns detalhes

interessantes que nos ajudam a compreender ainda melhor a personagem Bernardo.

Primeiro, ele é chamado de ―Bernardo da Mata‖. Segundo, ele é apresentado como um ser

capaz de fazer muitas peraltices, como ―encolher o horizonte/ No olho de um inseto‖

(BARROS, 2006, p. 10). Terceiro, ―como a foz de um rio ­ Bernardo se inventa‖

(BARROS, 2006, p. 10). Quarto, ele ―escreve escorreito‖ ―o Dialeto-Rã‖ (BARROS, 2006,

p. 20). Quinto, ele tem, no quintal, uma ―Oficina de Transfazer Natureza‖ (BARROS,

2006, p. 20).

Com essas características, Bernardo é capaz de se transfigurar no próprio Manoel de

Barros. Ele pode ser enxergado como um duplo do autor. Pensando no grande motivo do

livro em pauta: a água, podemos entender essa mata como sinônimo de pantanal. As

peraltices são de linguagem, são as do poeta que diz: ―posso dar alegria ao esgoto (palavra

aceita tudo)‖ (BARROS, 2004, p. 49). A invenção a que Bernardo se submete é a

especialidade do próprio autor mato-grossense, o qual, como Bernardo, ―é homem

percorrido de existências‖ (BARROS, 2006, p. 10). A escrita em ―Dialeto-Rã‖ é a do poeta

em O guardador de águas, a qual, no Livro sobre nada se converte no ―idioleto

manoelês archaico‖, o qual ―é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e

com as moscas‖ (BARROS, 2004, p. 43). Por fim, a oficina de Bernardo é uma viva

demonstração da oficina poética barreana, a qual, em seu pendor barroco, é capaz de

―perceber na physis [...] o que ela [contém] de heterônimo, incompleto e despedaçado‖

(BENJAMIN, 1984, p. 198) e de jogar com isso habilmente, seguindo o princípio:

Deus deu a forma. Os artistas desformam.

É preciso desformar o mundo:

Tirar da natureza as naturalidades.

Fazer cavalo verde, por exemplo.

Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall.

(BARROS, 2004, p. 75)

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Bernardo, como Barros, é um ser que se transfigura e transvê o mundo ao seu redor

pelo poder da imaginação. Na verdade, não só Bernardo, mas também Mano Preto e Catre-

Velho. Eles são, respectivamente, uma viva recorrência de três motivos muito presentes na

poesia de Manoel de Barros: ele mesmo, a busca pela infância da linguagem e a valorização

dos restos e das coisas ―desimportantes‖. O próprio autor ratifica isso quando diz: ―o tema

da minha poesia sou eu mesmo‖ (BARROS, 2009) e ―tenho um lastro da infância [...], no

meu Livro sobre nada, tem muitos versos que vieram da infância‖ (BARROS, 2009). Ele

também confirma quando começa seu Matéria de poesia, em tom confessional, dizendo:

―todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para

poesia‖ (BARROS, 2001, p. 11). É assim que esses personagens se tornam matéria-prima

da poesia de Manoel de Barros, cuja

originalidade [...] consiste em que, recusando grandes temas (o Sublime),

elabora liricamente, com as coisas menores, verdadeiras relíquias de

linguagem. Bem ao modo irônico de Rimbaud, ou Duchamps, transforma a

matéria mais desimportante em poesia. (JÚNIOR, 2001)

Diante do exposto até aqui, podemos dizer que as personagens estudadas são seres

alegóricos, pois, a partir dos motivos mencionados acima, criam uma outra realidade, a

qual, permeada pelo grande ilogismo que dá vez e voz à poesia barreana, aponta para

inéditas possibilidades de sentido, através da rica camada de surpreendentes e vibrantes

imagens. Elas são seres ambivalentes, que perderam sua unidade, humanos no limiar do

inumano, civilizados no limiar do primitivo, seres ―ardentes de resto‖, mas perfazendo-se

novos. Já as personagens rosianas, como vimos antes, são alegóricas em virtude de serem

indivíduos móveis (sujeitos sempre a novas mudanças). As plurinomeadas Drá e Irlívia são

seres metamórficos e multifacetados. Por sua vez, Jó Joaquim e Romão, impulsionados por

suas ―defeituosas emoções‖ e por seu alto poder de imaginação, são contraditórios em sua

trajetória, capazes de reinventar a realidade à sua volta.

É assim que tanto Manoel de Barros quanto Guimarães Rosa trazem para o centro

de seus projetos poéticos seres fragmentados, a saber, barroco/modernos, procurando

descobrir, entre as fraturas desses, os ―sentidos poéticos profundos que os colocam além

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das fronteiras da razão convencional, às margens do inefável, onde a vida, a poesia e a

linguagem se enlaçam, fluindo à procura de infinito‖ (SECCO, 2000, p. 121).

REFERÊNCIAS

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Trad. Jorge M. B. de Almeida. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2003. p. 65-89.

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consciência crítica: uma linha de tradição, uma atitude de vanguarda. São Paulo: Summus,

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______. Matéria de poesia. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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NOVIS, Vera. Tutaméia: engenho e arte. São Paulo: Debates (Editora da Universidade de

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ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo

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______.Tutaméia (Terceiras Estórias). 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. As margens do inefável: a significação poética dos

velhos e aleijados em Guimarães, Luandino e Mia Couto. In: DUARTE, Lélia Pereira [et

al]. Veredas de Rosa I. Belo Horizonte: PUC Minas, Cespuc, 2000. p. 117-121.

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9. A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO: ENTRE O CAMPO E A CIDADE

ARAÚJO, Roberta. D. de. (IFRN) – autora46

PAIVA, Kalina. A. R. de. (IFRN) – coautora47

A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a

esperança mesmo do meio do fel do desespero.

(Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas).

E o que era que eu queria? Ah, acho que não

queria mesmo nada, de tanto que eu queria era –

ficar sendo! (Guimarães Rosa, Grande

Sertão: veredas)

Viajante sem rumo pelas veredas labirínticas deste sertão, um flâneur enredado pelas

tortuosidades deste enigma, a vida.

João Guimarães Rosa é, sem dúvida, um nome de grande importância na história

literária e cultural de nosso país e sua escritura é, na verdade, um labirinto escritural,

matéria-prima de grande valor para a Literatura, pois sabemos que esta sempre se ocupou,

lidou com o estranhamento e as inquietações do homem diante dos mistérios do ser e da

existência.

A Literatura é, pois, a arte da palavra, não da palavra solitária e conciliadora, mas da

palavra inquietante e desagregadora e é essa inquietação que nos interessa neste momento.

Inquietação vivida e vivenciada por Lalino Salãthiel, personagem principal de A volta do

Marido Pródigo, segundo conto de Sagarana, livro de estreia de Guimarães Rosa, publicado

pela primeira vez em 1946.

Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo, segundo Rosa, ―a

46 Roberta Duarte de Araújo é Professora do IFRN, graduada em Letras e mestra em Estudos da

Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected] 47 Kalina Alessandra Rodrigues de Paiva é Professora do IFRN, graduada em Letras, especialista em

Educação e Mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected]

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menos pensada das novelas de Sagarana, a única que foi pensada velozmente, na ponta do

lápis‖. (ROSA, 2001, p. 26).

Escrito em tom mais leve, um tanto quanto irônico, esse conto nos apresenta

Eulálio de Souza Salãthiel, mais conhecido como Lalino Salãthiel. Homem de muito riso e

pouco trabalho.

— Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme que-horas, e, quando

chega, ainda é todo enfeitado e salamistrão!… (Vmp, p. 101).48

[…]

Lalino se afasta com o andar pachola, esboçando uns meios passos de

corta-faca, e seu Waldemar o acompanha de olhar complacente.

— Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é

de adulador, mais sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é

alegre e quer ver todo-o-mundo alegre, perto de si. Isso, que remoça.

Isso é reger o viver. (Vmp, p. 110).

Lalino Salãthiel é homem falador, tem o dom da palavra, e sempre tira proveito

disso, diante dos outros, sobressaindo aos seus companheiros de trabalho. Os gestos e

atitudes do marido pródigo, entranham-se em sua personalidade de malandro que, por si

só, já o definem como tal. (NOBRE, 2000, p. 30).

Mas o que Lalino queria mesmo era partir em busca da sua satisfação pessoal, ou

seja, ir para o Rio de Janeiro em busca de mulheres bonitas à vontade, iguais às que vira nas

revistas.

Começa então a juntar dinheiro e acaba pedindo uma parte emprestada ao espanhol

Ramiro, alegando necessidade e dizendo-lhe que a mulher ficaria.

Seu Ramiro quis, mas não pôde esquivar-se. Espigado e bigodudo,

arranja um riso fora-de-horas, e faz, apressado, um rapapé:

— Como lhe vão as saúdes, senhor Eulálio? Estava cá aguardando a

sua vinda, a perguntar-lhe se há que haver mesmo uma festinha hoje,

48 Para este trabalho, adotaremos a abreviação Vmp para nos referirmos ao conto Traços biográficos de

Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo.

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donde os Moreiras… É dizer, a festa, sei que vai ser, mas queria

saber… queria saber se o senhor também…

(Nada importa. Foi o diabo quem mandou o espanhol aqui… Ele tem

muito dinheiro junto, é o que o povo diz.)

— Seu Ramiro, se chegue. Escuta: tenho um particular, muito

importante com o senhor…

— Mas, senhor Eulálio, eu lhe garanto… À ordem, senhor Eulálio…

Que há? O senhor sabe, que, a mim, eu gosto de estimar e respeitar

os meus amigos, e, grande principalmente, as suas famílias

excelentíssimas…

(É preciso um sorriso, um só, senão o espanhol fica com medo. Mas,

depois, fecha-se a cara, para a boa decência…)

— Eu sei, eu sei. Olhe aqui, seu Ramiro: eu quero é que o senhor me

empreste um dinheiro. Uns dois contos de réis… Feito?

— Mas, senhor Eulálio… O senhor sabe… As posses não dão… As

coisas…

Olhe, seu Ramiro… a estória é séria… Eu vou-m‘embora daqui. A

mulher fica… vou me separar… Ela não sabe de nada, porque eu vou

meio assim, de fugido… O senhor em empresta o dinheiro, que é o

que falta. Senão, eu não posso ir… É só emprestado. Daqui a uns seis

meses, lhe pago. Mando. Tenho um emprego bom, arranjei — vou

ser tocador de bonde, no Rio de Janeiro… Se não, eu não posso ir…

(Agora é a hora de uma série de ares.) Sem dinheiro não vou. Não

vou ir… Como é que posso?!… (Vmp, p. 113-114).

Lalino vai embora para o Rio de Janeiro e deixa a mulher, Maria Rita, entregue ou

―vendida‖ ao espanhol. Mas Lalino logo se cansa da vida na cidade grande e das mulheres

de lá.

[…]. As huris eram interesseiras, diversas em tudo, indiferentes,

apressadas, um desastre; não prezavam discursos, não queriam saber

de românticas histórias. A vida… na Ritinha, nem não devia pensar.

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Mas, aquelas mulheres, de gozo e bordel, as bonitas, as lindas mesmo,

mas que navegavam em desafino com a gente, assim em apartado, no

real. Ah, era um outro sistema. Aquilo cansava, os ares. Havia mal o

sossego, demais. Ah, ali não valia a pena. (Vmp, p. 118).

Lalino desejava ir para a cidade grande e assim o fez. A princípio um flâneur,

encantado com a modernidade, com a cidade, o novo. Muitas pessoas, muitas mulheres,

tudo aquilo que vira nas revistas, mas Lalino desperta bruscamente para uma dura

realidade: a correria da cidade grande torna as pessoas apressadas e ―indiferentes‖. ―As

huris eram interesseiras, diversas em tudo [...] um desastre; não prezavam discursos, não

queriam saber de românticas histórias. Realmente, as mulheres da cidade grande não

eram iguais a Ritinha, o tempo delas era diferente, era o tempo da modernidade. Ritinha

representa, portanto, a tradição, não somente pelo fato de estar no campo, mas por trazer

consigo o ideal de família, de porto seguro, de uma mulher cuja função social seria cuidar

da casa, do marido e dos possíveis filhos.

As aventuras de Lalino Salãthiel na capital do país foram bonitas, mas

só podem ser pensadas e não contadas, porque meio houve demasia

de imoralidade. Todavia convenientemente expurgadas, talvez mais

tarde apareçam, juntamente com a história daquela rã catacega, que,

trepando na laje e vendo o areal rebrilhante à soalheira, gritou – ―Eh,

aguão!...‖ – e pulou com gosto, e, queimando as patinhas, deu outro

pulo depressa para trás. (Vmp, p. 118).

Lalino se desilude com a cidade grande, com a falta de sossego e, segundo

Benjamin (1984), essa desilusão é uma alegoria barroca, uma vez que a anulação do sujeito

e a desintegração dos valores e objetos fazem parte do mundo moderno. A riqueza de

imagens existentes na cidade grande chamou a atenção de Lalino Salãthiel que passou a

desejá-las, partindo ao encontro delas, mesmo que para isso tenha precisado ―vender‖ a

própria mulher. Porém, o ―mulatinho levado‖ depara-se com a descontinuidade dessas

imagens e sua fragmentação, as ruínas, a perda dos valores de uma tradição que representa

a própria morte do sujeito, Lalino Salãthiel.

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A alegoria da morte do sujeito, Eulálio, tem início quando este, ao despertar que a

realidade da cidade grande não mais o satisfaz, tenta retornar à situação antiga, procurando

ajeitar-se à sua maneira. Amadurece a custa de decepções; reflete sobre a vida por meio de

uma filosofia desencadeada em virtude das suas ações e conclui que, será melhor voltar

para a mulher, para o campo, a tradição.

Resolve então voltar. — E se eu voltasse p’ra lá? É, volto! P’ra ver a cara que aquela gente

vai fazer quando me ver… Mas sua mulher, Maria Rita, já estava vivendo com o espanhol.

Lalino não vê a possibilidade de ter a sua mulher de volta, mas, com o passar do

tempo, almeja ganhar de volta a consideração do povo do arraial e de sua Maria Rita, pois

assim como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, Lalino Salãthiel é dotado de uma

esperteza que sempre o leva aonde deseja. Em virtude de seu poder persuasivo, consegue

chegar até o Senhor Major Anacleto, homem de grande prestígio social naquela região, e

lhe aparece a oportunidade de entrar para a política, trabalhando como cabo eleitoral do

Major Anacleto, devido à sua esperteza e inteligência.

Com o passar do tempo, portando-se como excelente cabo eleitoral, ele garante a

vitória ao Major.

Tempos depois, Maria Rita fugiu do espanhol porque estava sendo judiada por

causa do ciúme e vai até a casa do Major, pedindo proteção.

Quando acordou, horas depois, foi a sustos com uma matinada

montante: o mulherio no meio da casa; os capangas, lá fora,

empunhando os cacetes, farejando barulho grosso; e muita gente

rodeando uma rapariga bonita, em pranto, com grandes olhos pretos

que pareciam os de uma veadinha acuada em campo aberto.

Com a presença enérgica do patriarca, amainou-se o rebuliço, e a

moça veio cair-lhe aos pés, exclamando:

— Tem pena de mim, seu Coronel, seu Major!… Não deix‘eles me

levarem! Pelo amor de suas filhas, pelo amor de sua mulher dona

Vitalina… Não me desampare seu Major…

[…]

— Sou a Mulher do Laio, seu Major… Me perdoe, seu Major… Eu

sei que o senhor tem bom coração… Sou uma infeliz, seu Major… É

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o Ramiro, o espanhol, que me desgraçou… Desde que o Laio voltou,

que ele anda com ciúme, só falando… Eu não gosto dele, seu Major,

gosto é do Laio… Bom ou ruim, não tem juízo nenhum, ms eu tenho

amor a ele, seu Major… Agora o espanhol deu para judiar comigo, só

por conta do ciúme… […] Quis me bater, o cachorro! Disse que me

mata, mata o Laio, e depois vai se suicidar, já que está mesmo

treslouco… Então eu fugi, para vir pedir proteção ao senhor, seu

Major. Pela Virgem Santíssima, não me largue na mão dele, seu

Majorzinho nosso! (Vmp, p. 144-145).

Acontece que Major Anacleto chama Lalino, e as mulheres trazem Maria Rita, para

os dois fazerem as pazes. ―O chefam agora é quem se ri, porque a mulherzinha chora de

alegria e Lalino perdeu o jeito‖ (Vpm, p. 149).

Marcas da Oralidade

Ao lermos Guimarães Rosa, deparamo-nos com uma beleza inexplicável. Jogo de

palavras, invencionices, trocadilhos, filosofia, enfim, todo o mundo surpreendente das

estórias49 rosianas, causa-nos impacto, estranhamento.

As manifestações culturais ocorridas nos sertões de Minas Gerais tomam formas

poéticas nas mãos de Rosa, o alquimista da palavra, segundo Eduardo de Faria Coutinho

(1991).

Rosa, entre 1946 e 1967, interveio no paradigma da literatura brasileira, ocorrido a

partir de 1922 no cenário nacional, passando a influenciar no processo de repensar a

tradição narrativa brasileira.

Em carta escrita ao amigo João Condé, revelando os segredos de Sagarana, João

Guimarães Rosa explica por que escolheu sua terra para transformá-la em arte:

49 Segundo Guimarães Rosa, a palavra estória diz respeito à ficcionalidade em si. E que a obra de arte tem

que ser basicamente invenção, acionada pelo mecanismo do imaginário enquanto que história é a narração

dos fatos que supostamente ocorreram, ou seja, qualquer narração da realidade objetiva. Para este

trabalho, adotaremos, portanto, de acordo com proposta rosiana, a palavra estória.

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Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as

minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o

arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou mesmo, o pedaço de

Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas

saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente,

bichos, árvores. Porque o povo do interior – sem convenções, ―poses‖ –

dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações

humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou

contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada

talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.

(ROSA, 2001, p. 25).

Em suas viagens de cunho etnográfico pelo sertão de Minas Gerais, Rosa retoma

contato com os costumes, as falas, as estórias, os cantos e as danças do homem do sertão,

sendo, portanto, uma das marcas da sua escritura a mediação entre dois modos de vida, um

rural e tradicional e outro urbano e moderno.

Chega a ser quase impossível falar da obra de Guimarães Rosa, abstraindo-se a

importância da elaboração linguística em busca da revitalização da linguagem. Em sua obra,

as dicotomias entre a modernidade urbana e a cultura tradicional vigentes até então, na

ficção da literatura brasileira, são quebradas, através da fusão dessas polaridades, momento

em que o erudito e o popular, palavra falada e palavra escrita se misturam no mesmo grau

de importância, restaurando o sentido poético, através da exploração das potencialidades da

língua, reinvenção da língua escrita.

Ainda em carta a João Condé, Rosa explica como se deu o início do processo de

sua escritura.

Tinha de pensar, igualmente, na palavra ―arte‖, em tudo o que ela para

mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles

variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente [...].

Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que

algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos,

a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas,

conceitos, atualidades e tradições – no tempo e no espaço. Isso porque

na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão

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grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe.

[...]

Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. (ROSA,

2001, p. 24).

Nos contos de Sagarana, alia-se ao falar do homem do sertão uma linguagem culta,

extremamente elaborada. A arte da narrativa rosiana é marcada pela experimentação

linguística, por frases sintéticas, entrecortadas, pelo discurso justaposto, em oposição à

linearidade utilizada até então por outros escritores. Sendo assim, Rosa rompe com as

estruturas tradicionais, incorporando o ―não-senso‖ da linguagem oral (da poesia),

impondo ao leitor uma lógica particular.

Segundo Simões (1976), a criação das palavras surge da necessidade de se expressar

diante de um novo acontecimento, ou uma outra realidade, tanto por parte do escritor,

quanto por parte do homem comum.

A arte de contar estórias inventadas é própria do protagonista falador, Lalino

Salãthiel, que, dotado de fértil imaginação não se cansa de contar uma estória dentro da

outra.

Para Candido (1993), Sagarana se caracteriza pela paixão de contar. Seus

personagens, contadores de estórias, são inspirados na vivência do povo brasileiro, e,

apesar de absorver algumas experiências da literatura estrangeira, representam uma vivência

nossa, do sertão, e ao mesmo tempo universal, do mundo, dos sertões.

Os contos de Sagarana estão permeados de expressões populares e provérbios,

poetizados pelo autor. Quem não tem brio engorda!/ Quem não trabuca, não manduca. (Vmp, p.

103). Essas expressões populares fazem parte da sabedoria do homem do sertão, assim

como do convívio de Lalino Salãthiel. Sabedoria essa que advém da tradição oral.

Baseada na teoria da oralidade de Zumthor e nos estudos de Cascudo, esta leitura

nos possibilita uma visão da escritura rosiana como representação da literatura modernista,

em que valores como o erudito e o popular estão mesclados num mesmo discurso, sem que

haja, portanto, um distanciamento dessas duas categorias, as quais se apresentam

intrínsecas, proporcionando assim, uma erudição do popular na narrativa rosiana.

Em ―A volta do marido pródigo‖, percebemos a palavra como elemento-chave,

pertencente ao personagem central. Para Nobre (2000), as estórias de Sagarana são

consideradas rapsódias, contos em grande forma que trazem, em seu âmago, a representação poética

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do espírito da realidade de uma região. (NOBRE, 2000, p. 29). De acordo com Nelly Novaes

Coelho (1975), as narrativas de Sagarana transformam-se em poesia, levando o leitor a se

deleitar com esse contato com a palavra/verbo.

―Pau! Pau! Pau!

Pau de jacarandá!…

Depois do cabra na unha,

quero ver quem vai tomar!…

(Vmp, p. 149)

Em todas as estórias de Sagarana, a poesia é presentificada pelo canto, e essas

cantorias representam a cultura desse povo, que as entoa e ouve daqueles a quem

chamamos cantadores, ou, caso nos reportemos à Idade Média, os chamaremos de

trovadores (cantores, músicos e recitadores ambulantes que eram contratados pelo senhor

para divertir a corte através de suas cantigas).

O ouvir/contar e transmitir a outrem o contado e o sabido também de outrem são

próprios de uma cultura. Assim como as dos trovadores, as manifestações orais do

sertanejo, através do contar/cantar, para repassar o sabido e o conhecido, são garantia de

continuidade dessa cultura, é tradição50 como permanência. (MORAIS, 2004).

Em Sagarana, os contadores de estórias são semelhantes aos narradores dos textos

literários populares publicados em folhetos, literatura de cordel, em que existe um

mediador entre a narrativa e o público ouvinte (seja o próprio autor, seja outra pessoa que

memoriza o texto ou, apenas, conta para os presentes). As estórias de Sagarana, assim como

os cordéis, são textos para serem recitados em voz alta, oscilando da leitura à verbalização

50 Cascudo (2006, p. 29) esclarece: Entende-se por tradição, traditio, tradere, entregar, transmitir, passar adiante, o processo divulgativo do conhecimento popular ágrafo.

Para Cascudo, a tradição reúne elementos de estórias e de história popular, anedotas reais ou sucessos

imaginários, críticas sociais, vestígios de lendas, amalgamados, confusos, díspares, na memória geral.

Confundem com certas superstições. Parece-me articular-se aos ‘rumores’ clássicos, o ‘rumor antigo

conta’, como dizia Camões, uma forma de comunicação de valores indistintos do saber coletivo. Sua

caracterização é compreendida quando uma tradição é equivocada. Quase sempre inicia-se pela frase: ’

— Os antigos diziam…’ Não é uma lenda, nem um mito, fábula ou conto. É uma informação, um dado,

um elemento indispensável para que se possa sentir o conjunto mental de um julgamento antigo, de meio

século, de cem anos, do século XVIII. ‘Como diz o provérbio dos antigos’, lê-se no primeiro livro de

Samuel, XXIV, 13. (CASCUDO, 2006, p. 53).

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oral. Sendo assim, a oralidade se faz imprescindível na constituição do texto escrito, porém

precisa deste para demarcar sua presença.

Ainda no conto em estudo, assim como em todas as estórias de Sagarana,

percebemos que as antinomias escrita x fala, letrado x iletrado, professor x jagunço não são

vistas sob a forma de ambigüidade, e sim, de entrecruzamento, uma ligação entre a

literatura e as raízes profundas do homem. O narrador rosiano dá voz às falas populares, a

elas sede espaço no cenário textual, fazendo a necessária travessia em direção a esse

imaginário, a outras esferas, assim como afirma Bosi (1999, p. 343):

Nessa luta, a obra é tanto mais rica e densa quanto mais intensamente o

criador participar da dialética que está vivendo a sua própria cultura,

também ela dilacerada entre instâncias altas, internacionalizantes e

instâncias populares. (Grifo do autor)

Sendo assim, percebemos que o narrador rosiano, ao contrário da tradição

canônica, vigente até então, dá ensejo à articulação de outras vozes, que de certa forma

haviam sido marginalizadas até o momento (NOBRE, 2000).

Em Sagarana, encontramos o fabulário popular arraigado pela epopéia, momento

em que as culturas popular e erudita se dão as mãos num entrecruzamento de caráter

plural, através da penetração da oralidade na ficção da literatura brasileira, comprovando-se

que, ao invés de diluir-se, enraizou-se no comportamento cultural brasileiro e, de forma

singular, na narrativa rosiana. (NOBRE, 2000).

A terceira margem, por onde se constrói a obra de Guimarães Rosa, não

é um lugar definido, que possamos encontrar e nomear, pois,

propositadamente, joio e trigo, erudito e popular, palavra falada e palavra

escrita se misturam num mesmo grau de importância, como materiais de

construção e de composição. (ALMEIDA, 2003, p. 410).

Ao dizermos que o erudito e o popular e a palavra escrita e a falada se misturam

num mesmo grau de importância, o que talvez seja a marca mais importante da escritura de

Guimarães Rosa, talvez muito mais que uma marca seria o princípio norteador e fundador,

o âmago, quase religioso da sua poética.

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A criação de uma língua própria, que incorpora as diversidades linguísticas e as

técnicas de criação artística produzidas em todos os tempos e, no caso das manifestações

da oralidade, as marcas da cultura popular que persistiram até hoje nos sertões, causa um

rompimento entre os limites e as limitações impostas pelo rigor da gramática dos textos

impressos, fazendo de Rosa, reinventor da língua escrita, ao incorporar a esta o vigor da

língua falada que os séculos de língua escrita haviam enfraquecido. (ALMEIDA, 2003, p. 410).

Diante dessa perspectiva, a trajetória aqui intentada traduziu a possibilidade de uma

(re) leitura do conto Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo, assim

como também nas demais estórias de Sagarana cujo engendramento consubstancia a

multissignificação da palavra lavrada em terra e gente sertaneja, tecida por Guimarães Rosa

com uma linha de expressão e estilo geniais, atingindo uma transcendência ímpar na

história da literatura brasileira.

O estudo sobre o autor e sua obra nos revela uma síntese entre o regionalismo e a

reação espiritualista em nossa literatura. Síntese esta que inclui, além do apreço à

transcendência e a metafísica, a valorização e exploração dos fatos vividos pelo povo

sertanejo, suas estórias e sua cultura, detalhando seus pormenores, indo além do valor

documental, chegando à recriação literária.

Sagarana é um monumento, esculpido em palavras, ao e pelo homem do sertão, que

nos dá testemunho do universo singular desse espaço em que a presença de jagunços se faz

constante nas estradas acompanhada pelo som das cantorias, das cantigas desse povo que

comprova a não inferioridade da literatura oral, fator este que constata que a literatura

brasileira, muitas vezes, recorre a fontes de inspiração na memória do povo. Um mundo de

vivências que habita a linguagem e é um constructo do próprio homem.

A narrativas aqui estudada é uma clara síntese entre o regionalismo e a reação

espiritualista em nossa literatura, entre a modernidade e os valores de uma tradição, cidade

versus campo. A reinvenção da linguagem, associada à sua rara capacidade de contar estórias

e criar seres e situações, se mostra alheia a qualquer experimentalismo estéril. Obra de

caráter essencialmente épico, revela-se como um momento privilegiado da moderna

literatura brasileira, haja vista que Guimarães Rosa faz prosa como se estivesse fazendo

poesia, uma vez que valoriza sobretudo a palavra e busca adequar a linguagem altamente

condensada da poesia a uma cadência e ritmos lógicos, com uma fluência própria da

musicalidade dos versos. Dizemos, pois, que sua narrativa realça a rima e a matéria a ser

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narrada, tornando sua arte não apenas expressão, mas fundamentalmente construção, assim

como a poesia.

Dessa forma, destacamos que antes de qualquer questão filosófica, a abordagem

engendrada neste estudo pretendeu levantar pontos fundamentais sobre a escritura tão

laboriosa e magnífica de Guimarães Rosa. A estrutura textual, as artimanhas presentes no

desenrolar da estória contada, as estratégias utilizadas no plano do enunciado e da

enunciação, a revitalização da linguagem, as diversidades entre a cidade e o campo e o mais

importante de tudo, a magia, associada à profunda harmonização, com que tece o

entrecruzamento entre as culturas popular e erudita, linguagem falada e linguagem escrita,

fazendo parte de um mesmo patamar de construção, a poesia, momento este que as

manifestações da literatura oral se fazem presente.

Dizemos assim que não existe um roteiro prévio para se adentrar na poesia rosiana,

visto que as trilhas e os percursos são inesgotáveis, o que causa-nos, na maioria das vezes,

uma experiência de muita inquietação diante da possibilidade de atravessarmos, ou mesmo,

sermos atravessados pelo grande sertão rosiano, visto que, através da poesia imensurável, da

sabedoria latente, o verdadeiro artista, poeta, consegue, mais uma vez, impulsionar-nos,

homens, a mergulhar, incansavelmente, dentro de si mesmo.

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10. MINHA VIDA DE MENINA: DIÁRIO DE HELENA MORLEY

BOEIRA, Eloísa Elena Prates51

ARAÚJO, Roberta Duarte de52

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:

esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e

depois desinquieta. O que ela quer da gente é

coragem. O que Deus quer é ver a gente

aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no

meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio

da tristeza! Só assim de repente, na horinha em

que se quer, de propósito – por coragem. Será?

Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.

(Grande Sertão:Veredas, p. 278).

O livro Minha vida de menina, escrito pela adolescente Alice Dayrell Caldeira Brant

que usou o pseudônimo de Helena Morley, mostra um período da história do Brasil no

final do século XIX, na pequena Diamantina em Minas Gerais.

Aconselhada pelo pai a escrever diariamente num caderno suas observações sobre o

mundo a sua volta, a menina dos treze aos quinze anos manteve um diário em que anotava

não apenas o dia-a-dia na família e na escola como também alguns comentários sobre a

vida da cidade e da região, com seus costumes arraigados, suas relações sociais, suas

contradições. Além do pai, Helena teve um outro incentivador, seu professor de Língua

Portuguesa da Escola Normal na qual estudava, que exigia uma composição semanal e

percebendo a desenvoltura e o gosto de Helena ao escrever, incentivava-a cada vez mais.

51 Eloísa Elena Prates Boeira é graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

Especialista Leitura e Literatura pela UnP, Especialista em Psicopedagogia pela UnP e aluna especial do

mestrado em Literatura Comparada – UFRN. 52 Roberta Duarte de Araújo é graduada em Letras pela UFRN e mestra em Estudos da Linguagem –

Literatura Comparada pela UFRN e aluna especial do doutorado pela UFRN.

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O diário de Helena Morley traça um retrato bem-humorado do dia-a-dia em

Diamantina entre os anos de 1893 e 1895, faz uma radiografia da sociedade brasileira

provinciana nos primórdios da República, momento em que ―a escravidão acabava de ser

abolida e o trabalho livre não estava ainda enquadrado nas alienações da forma salarial,‖

como observou o crítico Roberto Schwarz em seu ensaio sobre Morley, ―Outra Capitu‖

(SCHWARZ, 1977).

A menina magra sardenta e rebelde cresceu respondendo às contradições de seu

tempo. Dividida entre a infância e a puberdade, entre o sonho do diamante redentor e as

lavras e minas esgotadas, ela criou um olhar independente sobre a província tacanha e

decadente. No seu diário Helena se revelou determinada e única.

Outros registros da vida infantil, assinados por pessoas que, chegando à idade

madura se voltaram com nostalgia à sua infância, foram comentados pelo poeta Carlos

Drummond de Andrade que nenhum desses testemunhos, que ele chamava de ―aurora da

minha vida, oferece a singularidade que torna o livro de Helena Morley incomparável: ele

não recompõe o passado com maior ou menor fidelidade; vive-o, respira-o, insere-se nele‖.

( SCHWARZ, 1977, p. 60). Uma espécie de diário doméstico o livro atinge fundo na

descrição do ambiente da família brasileira modesta em zona de mineração, ali está refletido

a pobreza, o sonho de libertação das necessidades, o convívio social, a despreocupação, a

alegria e a tristeza do viver, sobretudo a alegria, pois a infância de Helena ―tem o gênio de

rir de tudo.‖ Ela se confessa impaciente, rebelde, respondona, passeadeira, incapaz de

obedecer a tudo que querem que ela seja; dona de um espírito vivaz, bem-humorado, que

capta o aspecto grotesco das cenas e das coisas e se diverte em passar em revista o

mundinho de Diamantina.

O livro ―Minha vida de menina‖ despertou a atenção da poetisa norte-americana

Elizabeth Bishop que vivia no Brasil e traduziu a obra para o inglês; outro admirador das

histórias de Helena Morley foi o pensador francês George Bernanos, que morou no Brasil

na década de 1940. Em 1969 foi produzida a primeira filmagem, de David Neves, com o

título de ―Memória de Helena‖; a segunda versão para o cinema chamou-se ―Vida de

Menina‖ (2004).

O interesse pelo livro foi renovado, nos últimos anos, com estudos de alto nível do

crítico Roberto Schwarz (no livro ―Duas Meninas‖, 1997), que aproxima a menina de

Matacavalos, Capitu de Dom Casmurro, com a menina de Diamantina, Helena de Minha

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Vida de Menina, uma distância tão próxima, duas histórias semelhantes, e irreverentes.

Roberto Schwarz consegue aproximar uma obra prima de Machado de Assis a uma escrita

ingênua e sem intenção de uma adolescente descendente de ingleses em Diamantina, no

final do século XIX.

A ousadia maior coube, sem dúvida, a Roberto Schwarz que comparou as histórias

de Helena Morley à Capitu de Machado de Assis. Diz o autor de Um mestre na Periferia do

Capitalismo:

As duas meninas surpreendem pelo iluminismo e clarividência de

capturar a história daqueles tempos. Comenta que Minha vida de menina

é um dos bons livros da literatura brasileira, e não há quase nada a sua

altura em nosso século XIX, se deixarmos de lado Machado de Assis.

Transcrevo o que o crítico Roberto Schwarz coloca no início do capítulo que

chamou de ―Outra Capitu‖, sobre o prefácio notável de Alexandre Eulálio:

[...] nada impede o leitor de imaginar que a escrita tão espontânea da

guria seja obra da autora já adulta, e que se trate então de uma impostura

literária. Mas conta ainda que Guimarães Rosa em conversa dizia que

neste caso o diário seria até mais extraordinário, pois que soubesse, não

existia em nenhuma outra literatura mais pujante exemplo de tão literal

reconstrução da infância. Noutro ensaio posterior, em que retoma e amplia

o seu prefácio, Alexandre acredita que a hipótese do ―pasticho de gênio‖

deva ser afastada, e conclui, agora como que sabendo mais, e criando

novo mistério, que não resta senão louvar a leveza da mão experiente

que preparou para o prelo os velhos cadernos da mocinha (publicados

pela primeira vez em 1942), sem deturpar em nada o caráter genuíno

deles.

O Diário de Helena Morley abre com estas palavras: ―quinta-feira, 5 de janeiro de

1893. Hoje foi nosso bom dia da semana.‖ (p. 5) É o dia em que a família acorda de

madrugada, arruma a casa e vai para o campo lavar a roupa. Nesse lugar, enquanto a mãe e

as filhas Helena e Luizinha lavam as roupas embaixo da ponte, os filhos Renato e Nhonhô

um pesca e o outro pega passarinhos, enquanto Emídio, um crioulo agregado, vai procurar

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lenha. As meninas lavam e botam as roupas pra corar, para que a mãe prepare o almoço de

tutu de feijão com torresmos e arroz, depois do almoço a mãe fica vigiando o caminho pra

ver se vem alguém, para que possam entrar no rio, tomar banho e lavar os cabelos,

enquanto isso a roupa seca pendurada nos galhos. Depois é só procurar frutas no campo,

ninhos de passarinho, casulos de borboletas e pedrinhas redondas para o jogo.

Roberto Schwarz fala das primeiras quatro entradas do diário que formam um

bloco:

Vimos a quinta-feira dos Morley, em que a tônica na frugalidade e no

trabalho em comum dissolve as distinções sociais. Em seguida veremos a

mesma família em casa, no seu papel de gente respeitada e

apadrinhadora, isto é, distinta, a que os pobres tomam a bênção. Na

terceira cena as posições se invertem e serão os Morley que estarão de

visita meio de cortesia e meio interesseira na chácara de vizinhos

abastados, que os costumam obsequiar. A quarta entrada por fim inclui

todos estes temas e põe o acento na relação já mais crua com a

propriedade privada e o pagamento em dinheiro. Os contrastes são

secos, estão à vista como um fato, além de intocados pela glosa, o que os

recomenda à contemplação reflexiva. ( SCHWARZ, 1977, p. 62).

Conforme Schwarz (1977, p. 62-63), no Diário de Helena Morley os conflitos e as

aflições morais das personagens figuram com mais beleza, mais variedade, profundidade e

humor do que os que aconteceram nos romances da primeira fase de Machado de Assis.

Os ―frouxos de risos‖ são peculiaridades simpáticas da família Morley, que mal ou bem se

conforma e veve com eles, como Benvinda com o noivo sem perna.

O Diário de Helena Morley traz à tona as segregações e formas de estupidez da

sociedade brasileira, fala das relações entre negros e brancos, a abolição da escravatura e a

liberdade sem trabalho, os agregados e a troca de favores, trocas e vendas, da pobreza, da

religião, da política e economia e os interesses e interesseiros. Denuncia a face verdadeira e

oculta das mazelas sociais daquela época.

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Minha vida de menina é sublime, é uma verdadeira viagem ao final do século XIX;

os dias desses dois anos de anotações feitas pela menina Helena são puro encantamento,

vejamos algumas passagens:

Benvinda vem participar o seu casamento a D. Carolina e seu Alexandre, pais de

Helena, a moça conta que o noivo tem um defeito, não tem perna e D. Carolina pergunta:

―Coitado! Então ele não anda?‖ Em seguida a mãe de Helena pergunta se já sabem como

vão viver. ―Não pensei ainda não, mas viver a gente veve de qualquer jeito. Deus é que

ajuda.‖ Conforme Schwarz (p. 58), a resposta de Dona Carolina faria a felicidade de

Machado de Assis. Observamos que os Morley aproveitam a parecença para comer as

frutas, dissonância entre ―obsequiar e aproveitar.‖ Nessa cena os Morley estão de visita na

chácara de uma família da vizinhança, que costuma obsequiar com frutas, ovos, frangos e

verduras. Esses obséquios ligam-se a um movimento muito brasileiro. Luizinha (irmã de

Helena) dizem que se parece com Quitinha, que viajou. Os tios desta, donos da chácara e

casal sem filhos, têm muito apego à sobrinha; para matar a saudade, gostam de olhar a

menina tão parecida e comentar as semelhanças, além de lhe encher a família de presentes.

Os Morley não se fazem de rogados. Fica evidente as aflições morais das personagens

imbricadas entre razão individual e familismo paternalista. Schwarz comenta que o leitor

interessado no nervo social da forma artística reconhecerá ao vivo o conflito que organiza

os romances da primeira fase de Machado de Assis, embora com mais beleza, variedade,

profundidade e humor no livro de Helena.

Helena comenta em uma das belas passagens do diário:

[...] penso que a educação nada vale. Cada pessoa nasceu como Deus fez

e assim terá de ser. Somos quatro irmãos e mamãe disse que eu nem

pareço filha dela, nem de ninguém da família. Meu pai disse que sou igual

a irmã dele Alice que casou e foi embora para São Paulo e nunca mais

voltou. (p. 90).

A menina Helena gostava muito de criança e costumava ajudar a cuidar dos filhos

das negras que moravam na fazenda da sua avó. Certa vez a filha de um casal de negros

adoeceu e Helena passava as noites cuidando da menina e isso incomodava a sua mãe que

dizia:

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Você não sabe como eu fico aborrecida de vê-la sair da cama com este

frio, e ficar descalça carregando negrinha dos outros. Eu dou razão a

mamãe de ficar zangada comigo. Mas que hei de fazer se não posso

mudar meu gênio? Penso que se a menina fosse branquinha mamãe não

se incomodava. Mas ela sempre ralha da gente pajear negrinhos. Que

culpa têm os pobrezinhos de serem pretos? Eu não diferenço, gosto de

todos (p. 94).

Sente-se incomodada quando tem que ir para o Bom Sucesso, prefere o seu

interior, a Boa Vista e escreve em seu diário no dia 13 de fevereiro de 1894, terça-feira:

As férias acabaram esta semana. Graças a Deus vai acabar meu

sofrimento de ficar com inveja de mamãe e meus irmãos que ainda estão

na Boa Vista. Quando acordo todas as manhãs e abro os olhos e me vejo

na cidade, em vez de estar na Boa Vista, me dá tal tristeza que ofereço o

sacrifício a Deus. Passo a maior parte do tempo pensando: ―Ah, se eu

estivesse na Boa Vista!‖(p. 94).

Helena sente pena da falta de pena do pai, habitualmente boníssimo, ao comentar

sobre a ignorância do pai de Arinda, a menina que achou o diamante no desbarranque:

Que idiota! Eu sei onde ele vai enterrar o dinheiro; é naquela grupiara do Bom

Sucesso que nós já lavramos‖. Segundo Schwarz (p. 65), Machado de Assis completaria que

seria mais metódico e racional que Helena e não Arinda tivesse apanhado a pedra?

―Quando eu tenho inveja da sorte dos outros, mamãe e vovó dizem: ‗Deus sabe a quem dá

sorte‘- comentário de Helena sobre o diamante achado.

Roberto Schwarz vai mais longe, trás para a sua análise o parentesco que o leitor da

literatura infantil de Monteiro Lobato sentirá entre a Diamantina de Helena e o Sitio do

Pica-Pau Amarelo, com pouca diferença, aí estão as avós boníssimas, o mundo dos primos,

o culto das travessuras, as meninas com resposta para tudo, a cozinheira negra que é uma

santa, e sobretudo a informalidade, que é o remédio a que os males não resistem. Schwarz

fala da irreverência juvenil e belicosa de que se nutre a estética de Helena com birra por

tudo que seja ostentação social.

Ao término do livro Duas Meninas, Roberto Schwarz (1977) diz que:

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Minha vida de menina integra uma lista substantiva da literatura

brasileira, compara o livro de Helena Morley a algo à maneira do Sargento

de milícias, que pouco rema contra a corrente, e nem por isso é trivial,

nem cheira a justificação ideológica. Por contraste, sugerimos que as

visões simpáticas do país, mesmo em autores de grande calibre,

dependeram da exclusão de aspectos evidentes da realidade. Na prosa da

menina isto não ocorre, não por artifício artístico superior, e sim porque

o momento histórico se havia encarregado da filtragem: a Abolição

acabava de suspender o trabalho escravo, e a involução relativa da

economia regional barrava o progresso burguês desimpedido, abrindo a

brecha para um progresso de outra sorte, da ordem da reacomodação

interna, de cuja humanidade a beleza do livro fala e dá prova. (p. 144).

[...]

Terça-feira, 31 de dezembro de 1895:

―Hoje estou me lembrando de vovó, porque a alma dela nos tem

protegido desde que morreu. [...] as coisas mudaram e nossa vida tem

melhorado tanto, [...]. Meu pai entrou para a Companhia Boa Vista [...].

Agora não vamos sofrer mais faltas, graças a Deus. Não é mesmo

proteção de vovó lá do Céu?‖ (p. 271).

Helena vive um conflito constante, um querer audacioso, pois, nas suas memórias,

projeta um desejo imaginário de consertar o mundo que se encontra desmoronando,

afetado pelos questionamentos religiosos, pelo desenvolvimento mercantil e pelas

contradições sociais, vivencia no seu diário de menina já adolescente a angústia da morte e

vida, dor e alegria, falta e abundância. Carrega nas suas lembranças, as inquietudes, as

alegrias, as descobertas, as paisagens, a poesia, as histórias e recordações.

REFERÊNCIAS

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BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

______. Céu, Inferno. Rio de Janeiro: 34, 2003. (Espírito Crítico).

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CANDIDO, Antonio. A literatura brasileira em 1972. Arte em revista, São Paulo, n. 1, 1979.

_______. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1986.

_______. A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989. v. 1. (Temas).

______. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.

FALLEIROS, Marcos Falchero. In: Revista Novos Estudos-Cebrap. São Paulo: n. 58,

novembro 2000.

CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1998.

CANDIDO, Antonio. Entre campo e cidade. In: Tese e antítese. São Paulo: Nacional,

1964.

MORLEY, Helena (Alice Dayrell Caldeira Brant). Minha vida de menina. Rio de Janeiro:

Livraria José Olympio Editora, 1973.

SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

__________. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

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11. AS RUÍNAS BARROCAS D’O ATENEU, OU DA ESTÉTICA DO

ROMANCE

Francisco Magno de Araújo

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

―Vais encontrar o mundo [...]. Coragem para a luta‖. Assim começa um romance como

se poema épico; um dos livros mais radicais da Literatura Brasileira, embora não o bastante

polêmico aos olhos de nossa crítica literária, a qual, grosso modo, ainda restrita a

identificações autobiográficas, se mantém mais ou menos contida frente ao tom arrebatado

e à forma apoteótica deste monumento poético de nossa prosa de ficção.

O Ateneu, de Raul d‘Ávila Pompéia – já no subtítulo se nos indica – abre as portas da

―crônica de saudades‖ do menino Sérgio: a volta retrospectiva de quem sai de casa para

moldar-se no gesso microscópico do internato, ―a escola da sociedade‖. Publicado em série

na Gazeta de Notícias, na antológica década de 1888, os corredores deste livro ―decadente‖

desde então nos enveredam pelas reminiscências de um colegial que muitos identificam

com o próprio autor e sua experiência no Colégio Abílio, concorrido estabelecimento de

ensino do Segundo Reinado:

A irradiação do reclame alongava de tal modo os tentáculos através do

país, que não havia família de dinheiro, enriquecida pela setentrional

borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse um compromisso

de honra com a posteridade doméstica mandar dentre seus jovens, um,

dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu

(POMPÉIA, 1905: 10).

O ambiente da escola, como signo institucional, como resumo dos códigos sociais e

depósito de cultura – ou seja, mecanismo de moldagem do espírito, e mesmo dos gestos e

do corpo – é recorrente em certo gênero romanesco a partir do século XVIII, onde assoma

a personagem jovem, nuclear, geralmente em meio a aventuras: seus primeiros contatos

com a sociedade e o pensamento da época e, por conseguinte, suas primeiras reflexões

morais e estéticas etc. Basta lembrarmos – sem que esqueçamos As aventuras de Telêmaco, de

Fénelon, ou o Tom Jones, de Fielding, e mesmo os ainda mais remotos diálogos platônicos, e

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determinado episódio do texto homérico que vale citar logo mais – o exemplo categórico

do Wilhelm Meister, de Goethe, onde se mostra o conceito explícito de ―romance de

formação‖ (Bildungsroman, ou Künstlerroman, quando se refere especificamente à formação de

um artista). Mas é no século XIX quando esse tipo de obra de ―formação‖ se identifica

com a tendência subjetiva e mesmo autobiográfica então delineadora dos gêneros

novelísticos, sobretudo o romance, quando as metamorfoses do espírito adolescente e a

própria modulação discursiva do gênero romanesco ―em formação‖, ou deformação, se

correspondem na busca ainda romântica da personalidade pelo ―equilíbrio entre o eu e o

mundo, o subjetivo e o objetivo‖ (MUTRAN: 2002, 73), enfim, na busca pela estátua

unitária do caráter psicológico e da estrutura de um gênero que a moldasse: estátua a qual,

no século XX, destinar-se-ia à decadência simultânea do indivíduo e do romance,

prometida logo em seguida, no século XX, em obras como A portrait of the artist as a young

man e realizada, de maneira radical, por um Ulysses.

N‘O Ateneu, assim como no texto de James Joyce, o jovem artista se lança na busca

em comum – no mesmo périplo epopeico dramatizado no espaço da escola – por uma

―boa forma‖. Que nostalgia de forma persegue Stephen Dedalus? Talvez a mesma de

Sérgio, de tantas maneiras metamorfoseada, que leva a maioria dos leitores d‘O Ateneu a

identificá-lo como núcleo do livro, como protagonista, ora estarrecidos com suas maldades,

ora emocionados com sua máscara de garoto de internato à Charles Dickens. Em ambos os

livros, o ambiente do colégio é imprescindível como referência aos resíduos livrescos tanto

de Stephen quanto de Sérgio, e seus desdobramentos estilísticos; mas no caso deste,

alimenta ainda a polarização crítica, ou melhor, moralista, em torno ao jovem narrador e à

formação de sua personalidade ambígua – dentro do gênero romanesco – emoldurada na

forma proteica que o disfarça entre menino ingênuo e o artífice de uma crônica cheia de

malícias.

Muitas leituras têm buscado, portanto, desnudar a personalidade deste garoto entre

as paredes da escola, como em sendo esta o microcosmo do mundo, como diz o próprio

autor, em mais uma das muitas pistas que despistam nossa leitura; poucas, no entanto,

lograram ultrapassar o ambiente físico e humano do Ateneu, em busca de suas raízes

míticas, ou melhor, da estrutura fabulosa onde se modela todo o procedimento de criação

radical de Raul Pompéia – e onde, em verdade, não Sérgio, mas a própria linguagem se

revela como protagonista. Não falta quem haja apontado indícios dessa linguagem estilística

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e literalmente ―dramática‖, a exemplo da caricatura e da paródia, numa perspectiva, no

entanto, apenas sociológica/ naturalista, como mero rechaço ao sistema escolar da época; o

que não se faz, ou pelo menos não se tem feito expressamente – quiçá porque fazê-lo é tão

radical quanto a criação deste escritor artista (e o radicalismo afugenta os gênios cautelosos

da crítica literária, cada vez menos idiossincrática e nem por isso mais arguta) – é admitir O

Ateneu como obra simultaneamente de tese e criação, a grande metalinguagem alegórica do

gênero romanesco, estruturada em fragmentos da historiografia literária que, partindo de

uma remota origem fabulosa das narrativas modernas, busca as raízes poéticas do seu

gênero mais representativo: o gênero da unidade utópica da classe burguesa, da plenitude

romântica, da psicologia moderna, e, por ironia, o mais fragmentário e residual de todos os

gêneros – o romance. Vejam como Sérgio, enquanto personagem, desloca a vida subjetiva

para o espaço dramatizado de sua luta:

Apesar deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da

verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações

novas da nova fase. O internato! Destacado do conchego placentário da

dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a minha

individualidade (POMPÉIA, ibidem: 7).

Quem fala é apenas uma das muitas faces de Sérgio, o clichê da criança que sai ―do

conchego placentário da dieta caseira‖ ao encontro da ―verdadeira provação‖, ou seja, da

luta algo epopeica em busca do tempo perdido de suas reminiscências: em busca do

arquétipo mítico que lhe serve de modelo, e que o jovem narrador ardentemente emula,

virgem apenas na perspectiva cronológica, mas em verdade envelhecido sob o signo do

livro. Não à toa, a ―crônica de saudades‖ aqui se articula em uma espécie de dialética

própria do século XIX, entre o signo romântico e o realista/naturalista (e, de modo mais

remoto, em face do poema épico); entre o sonho e a realidade; entre a vida e a ficção: ou

melhor, entre o lar e o internato. Daí o jogo de antíteses responsável pela sequência de

contrastes que impulsionam o próprio ritmo da ―crônica de saudades‖ de Sérgio e, por fim,

sua mecânica alegórica. No espaço de contrastes, o colégio se codifica como alegoria da

própria desconstrução – o pensamento crítico, em crise – do romance (lembremos Bakhtin

e Lukács, e imaginemo-los ―operacionalizados‖, com menos preconceitos teóricos de

época e mais ousadia criativa, na ―obra‖ em si mesma, em marcha substancial e concreta...).

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Todo o radicalismo dessa postura sobre o pensamento crítico/criador do romance se

oculta, se disfarça, na pose ―ingênua‖ de Sérgio, que tem burlado muitos leitores alheios às

artes do engenho deste que pega nas letras e armas em busca de uma personalidade que já

não lhe pertence, ou que lhe pertence apenas como máscara. Ocultando a persona, resta a

pessoa, a instância psicológica e social, em verdade artificiosamente emotiva, que Sérgio

finge para a crença dos muitos que identificam suas emoções com as do próprio Raul

Pompéia, enveredando algumas vezes por nuances psicanalíticas (as quais se viabilizariam

uma vez somente se em correspondência com a matéria concreta da obra em questão).

Assim, Mário de Andrade, num ensaio por demais paradoxal, reconhece que Raul Pompéia

―saiu-se com uma obra-de-arte esplêndida, filigranada, trabalhada, magnificente de graças e

belezas‖ (ANDRADE, 1972: 183), uma ―obra-prima‖, não se escusando da maravilhosa

sacada de tê-la como ―a última e derradeiramente legítima expressão do barroco entre nós‖.

No entanto, no mesmo ensaio, Mário vê n‘O Ateneu uma acanhada perspectiva de

―caricatura sarcástica e, relativamente a Raul Pompéia, dolorosíssima, da vida psicológica

dos internatos‖; ou: ―O Ateneu é um livro de vingança pessoal. Contra a vida?... Contra o

internato que lhe desorientou o desejado destino?... Contra si mesmo?...‖; ou ainda: ―O

Ateneu castiga o regime dos internatos. Dos internatos exatamente? Não. Um internato

errado que se individualiza logo, é o Ateneu – em grande parte o colégio Abílio que é a

base de inspiração do livro‖. Quando afirma que Raul Pompéia ―se vinga do colégio com

uma generalização tão abusiva e sentimental que chega à ingenuidade‖, é que o autor de

Macunaíma se deixa burlar de vez pela malícia de nosso pequeno herói de múltiplo caráter,

que dele ri não menos sarcástico do que sua personagem tropical, proteica e igualmente

alegórica.

*

O romance é, por si mesmo, o gênero residual da modernidade, em cujo arcabouço

se debatem antigas estruturas no afã burguês, romântico, de uma forma subjetiva e unitária

– remanescente, quanto à unidade, das poéticas clássicas, inclusive em torno ao gênero

épico –, o que se inviabiliza desde logo pela natureza fragmentária, polifônica e híbrida do

próprio romance. Na paródia dos outros gêneros, o romance ―revela o convencionalismo

das suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção

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particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom‖ (BAKHTIN, 1988: 399); mas

não tarda ele próprio a tornar-se convenção, limitando-se em termos de linguagem, técnica

e estrutura, calcificando-se assim no discurso das escolas de época. Não estranha que, nos

fins do século XIX, uma vez reconhecida sua decadência, uma vez saturado como obra de

ficção, o romance se haja voltado de maneira explícita à origem poética, seja ao encontro da

fábula ou do próprio viço ancestral, metafórico, da linguagem como de quando era uma vez

no tempo dos antigos aedos... Essa volta é o núcleo alegórico d‘O Ateneu, sob ambos os

aspectos, e muito se identifica com o cenário finissecular de sua gênese. Por conseguinte, a

gênese paródica, assinalada por Bakhtin, do romance como ―gênero em formação‖,

mostra-se patente desde sua origem nos romanços nacionais, glosados em verso, nas

crônicas régias, e sobremaneira num Don Quijote, paródia por excelência; e ainda nesta

paródia da paródia quixotesca, o Tom Jones, já dentro de um escopo romanesco que o

próprio Fielding teoriza nas introduções aos capítulos, sem que escapasse à ironia

machadiana, íntima das técnicas inglesas de ficção.

Sérgio (assim como Stephen Dedalus) é um herói, igualmente labiríntico. Mas uma

coisa é situar seu heroísmo apenas na instância da vida, ainda que reconhecendo os valores

estilísticos da enunciação, as ―graças e belezas‖ da obra-prima... Ou situá-lo sim como

ficção, mas ainda nos limites de uma psicologia condicionadora da personagem e da

linguagem por ela enunciada, que se deixa levar pela malícia de um narrador em primeira

pessoa sem perceber que no jogo antitético de clichês – por exemplo, no lugar-comum da

infância fragilizada no internato – da narrativa se oculta a busca alegórica pelos arquétipos

de um heroísmo muito mais antigo e as próprias fontes épicas que impregnam, como

palimpsesto de ecos, a estrutura do romance moderno. Sérgio se limitaria, assim, a meras

questões técnicas da ficção, como herói apenas porque personagem em primeira pessoa,

onisciente e onipresente em uma narrativa ―psicológica‖:

O Ateneu pode ser considerado como uma sucessão de quadros [...]. Mas,

apreciadas em conjunto, essas cenas, por mais nítidas que sejam, tornam-

se meros elementos ilustrativos de uma figura única, a de Sérgio: este

aparece indiretamente, reconstituído pelas sensações que cada episódio

lhe despertara. De realistas, os quadros se fazem impressionistas, já que

seu verdadeiro sentido provém, não de si mesmos, das minúcias que os

compõem, mas nas reações que provocam no adolescente. A

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personalidade de Sérgio, que nenhuma análise decompõe, se vai assim

fixando aos poucos, como se os leitores o vissem viver. E o verdadeiro

herói do livro não é o Ateneu, é esse menino que lá esteve sempre só,

entre companheiros de sua idade, murado pela barreira que a timidez e o

orgulho levantavam entre ele e os outros (MIGUEL-PEREIRA: 1973: p.

115).

Outra coisa, no entanto, é admiti-lo herói como paradigma da própria fábula, no

gesto heroico de reinventar a ficção a partir da alegoria teatral de seus resíduos históricos,

acumulados numa época da escrita onde se situa o próprio romance. Ao contrário da

epopeia e sua ―natureza oral e declamatória‖, o romance está ―organicamente adaptado às

novas formas da percepção silenciosa, ou seja, à leitura‖ (BAKHTIN, ibidem: 397). A volta

nostálgica à origem poética da linguagem, que balizou os processos de criação dos

modernos, remete, pelo contrário, a uma mnemônica muito mais rica, a uma verdadeira

relíquia da historiografia literária – nos termos que lhe dão Haroldo de Campos e,

especificamente no que tange a O Ateneu, Leyla Perrone-Moisés53. Assim, a natureza

livresca, e seus mitos calcificados no código alfabético, voltam-se cada vez mais para a

imagem, naquele sentido barroco, segundo Walter Benjamin, da ruína, ou de acordo com

McLuhan: ―A idéia das palavras apenas como correspondência da realidade, a idéia de

combinar, é característica somente de uma cultura altamente literal em que o sentido visual

é dominante‖ (MACLUHAN, 1973: 141), isto é, de uma cultura decadente, assombrada

pelos espetros do passado. No século de Raul Pompéia, basta lembrarmos o Balzac de

Ilusões Perdidas, e as ganas de Lucien de Rubempré por revisitar a cultura humana sob o

signo da produção/ proliferação em série da tipografia; ou, no mesmo caminho

enciclopédico, o Flaubert de Bouvard e Pécuchet (e o ainda mais engenhoso de Salambôo e das

Tentações de Santo Antão) etc. No século XX, como alguns exemplos, o Mann de Doutor

Fausto (ironicamente muito mais radical, no sentido de paródia, é o de Goethe54); Proust em

busca do tempo perdido; e o Joyce de Ulysses e Finnegans Wake, esses dois amontoados de

53 Conferir, respectivamente: 1) Haroldo de Campos: ―Esta ‗estória‘ na ‗História‘ poderia também ser

rebatizada como uma ‗História do epifânico‘ (protagonizada pelo ‗como‘) versus (ou paralelamente a)

uma ‗história do epos‘ (cujos heróis, no nível funcional da gramática narrativa, são os verbos de ação,

factivos e performativos)‖ etc. (CAMPOS, s/d: 125); 2) Leyla Perrone-Moisés, numa leitura que

emparelha as retóricas e paixões de Raul Pompéia e Lautrèamont (PERRONE-MOISÉS, 1988: 19). 54 A esse propósito, vejam meu ensaio ―Goethe, o Fausto (in scena) barroco‖, in SILVA, Francisco Ivan

da (org.). Colóquio Barroco, vol. I. Natal: EDUFRN, 2008, pp. 125-179.

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ruínas da história, protagonizados por heróis em frangalhos (sem esquecermos os dois

aedos da contemporaneidade, misto de síntese formalista e lirismo polilíngue, Eliot e

Pound)...

Quando Walter Benjamin sublinha que

O herói é o verdadeiro tema da modernité. Isto significa que para viver a

modernidade é preciso uma formação heróica. Esta era também a

opinião de Balzac. Assim, Balzac e Baudelaire se opõem ao romantismo.

Sublimam as paixões e as forças de decisão; o romantismo sublinha a

renúncia e dedicação. Essa nova concepção é muito mais complexa e rica

no poeta do que no romancista (BENJAMIN, 1975: 12),

lembramos que Raul Pompéia, logo às portas de sua crônica de saudades, satiriza de

maneira simultaneamente poética e heroica o conceito vulgar de espaço e tempo – duas

categorias intrínsecas à ―crônica‖ enquanto gênero –, deslocando-o para a metamorfose

cênica, alegórica, como um alternar dramático de quadros fragmentários que,

inevitavelmente, se voltam àquela origem fabulosa dos que primeiro manejaram a fábula

em linguagem humana, imitando-os naquilo que foram desde logo, ou seja, poetas, então

sagrados porque criadores. Raul Pompéia, votando-se de maneira paródica ao passado não

histórico, ou antes trans-histórico, para logo arquetípico, por meio de seus fragmentos,

desmistifica tais categorias e, enfim, a utopia neokantiana/ hegeliana de uma arte abstrata,

espiritual, plena e unitária – como a estátua neoclássica, desenterrada intacta –, e mesmo de

um tempo ―absoluto‖ por sua vez já desmentido como lugar-comum da ―crônica de

saudades‖ que Sérgio artificiosamente encarna sob o signo romântico. Vejam como ele

parodia o discurso histórico, de matiz religioso, lançando-o à derrisão para o campo dos

jogos pueris:

Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os

meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo!

espécie de museu militar de todas as fardas, de todas as bandeiras,

escolhida amostra da força dos estados, em proporções de microscópio,

que eu fazia formar em combate como uma ameaça tenebrosa ao

equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, –

massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro definitivo e

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ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que eu pacificava por

fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente,

resolvendo as pendências pela concórdia promiscua das caixas de pau

(POMPÉIA, ibidem: 7).

E outra vez se volta ao clichê de uma Idade de Ouro:

Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha

circular do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar

com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos peixinhos rubros,

dourados, argentados, pensativos à sombra dos tinhorões, na

transparência adamantinada da água... (POMPÉIA, idem, ibidem).

Desmistificando, por conseguinte, o discurso histórico, de modo autocrítico, e acionando

assim, dentro de seu próprio discurso, a constante dialética acirrada no século XIX entre o

sonho e a realidade, a história e a ficção, a vida e a arte:

Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que

nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem

considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a

compensação dos desejos que variam, das aparições que se transformam,

alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica

de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas,

um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao

crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da

vida (POMPÉIA, ibidem: 6).

O herói moderno é melancólico, pessimista, justo porque se desengana com a

imortalidade, apenas sonhada na feira das vaidades do velho Aristarco... A ―formação

heróica‖ do artista moderno evoca, pois, antigos modelos, tanto da iconografia literária

quanto da própria forma da linguagem estética, sabendo-os desde logo não como verdades

absolutas, mas sim artifício estético; modelos, por conseguinte, já desgastados seja pelo uso

ou pelo próprio tempo, que satura o sentido das coisas e as deforma, soterrando-as com

seu entulho, o que se mostra patente nas próprias línguas. Resta-lhe a caricatura: ―O artista

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exagera, no contrário disto, o momento presente, e dissolve-se na visão literária. Nessa

decomposição de suas forças pela obra de arte, e no contraste que resulta desse estado,

com a aspereza do ambiente, reside todo o preconizado pessimismo dos tempos atuais‖

(ARARIPE JÚNIOR, 1978: 151). O heroísmo de Sérgio assemelha-se, assim, ao gesto

arqueológico de sua época: ―O herói cultural empreende relatar seu mundo à realidade

pelos labores hercúleos de sondagem, recuperação e purgação‖ (MCLUHAN, ibidem: 137).

O romancista, heroico como um poeta, volta-se às formas antigas, que em sua origem

correspondiam à linguagem fabulosa do mito, um dia apoteótica na poesia e já estéril na

prosa de ficção, no gênero por si mesmo saturado e residual que é o romance. A frase que

Sérgio ouve do pai ―biológico‖, às portas da vida, na verdade traduz dentro do romance –

em termos de dramatização alegórica – o eco de uma paternidade arquetípica, ambientada e

atualizada no espaço pluridimensional do Ateneu, cuja síntese é a imagem do próprio

Aristarco. Sabemos, lição barroca: ―o absolutamente singular, a pessoa, se multiplica no

alegórico‖ (BENJAMIN, 1984: 217). No que se refere a Sérgio, o herói, O Ateneu se abre

de maneira apoteótica, como a forma de um sonho fantástico, tão fascinante e artificial

quanto um mural de biscuit, e não mais verossímil:

Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não por entender bem, como

pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da

ante-sala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico aberto para o

jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior.

Flanqueando a majestosa porta desta escada, havia dois quadros de alto-

relevo; à direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as

indústrias humanas, meninos nus como nos frisos de Kaulbach,

risonhos, com a ferramenta simbólica – psicologia pura do trabalho,

modelada idealmente na candura do gesso e da inocência. Eram meus

irmãos! Eu estava a esperar que um deles, convidativo, me estendesse a

mão para o bailado feliz que os levava. Oh! que não seria o colégio,

tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações à porta de um

templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude!

(POMPÉIA: 1905, 13).

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Sérgio ainda é, ou se faz, dominado pela fé cega da inocência, em contraste dialético

contra a qual logo se mostrará a metamorfose da ronda angélica de corações ainda

―virgens‖ para a luta vaticinada à porta do colégio, enfim levada a cabo na tradução mais

concreta do Ateneu – ou seja, na própria alegoria, pictórica, ou mesmo ―combinação

esplêndida da beleza da forma com a suprema plenitude do ser‖ a qual, ―porque chegou à

sua mais alta expressão na escultura grega, pode ser chamado o símbolo plástico‖

(BENJAMIN, 1984: 186). Desde então, desmistificado o símbolo romântico, despojada a

infância das vestes angelicais, Sérgio experimenta a melancolia da realidade do internato,

que lhe exige não menos a manha humana do que as letras e armas do artifício artístico

(lição acirrada a partir do segundo capítulo do livro e, sobretudo, do terceiro, junto ao

mentor mefistofélico, o Sanches). Vemos o amadurecimento de um menino, quiçá

autobiográfico; mas em verdade o que se projeta é o próprio romance em sua decadência,

que o narrador busca atualizar desde a estrutura narrativa aos artifícios da linguagem, numa

volta utópica à origem poética onde bebe sua narrativa ―pessoal‖, como uma criança

fascinada frente ao espetáculo de um livro de figuras, de um Tesouro da Juventude:

Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes variadas de

Bengala diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendentes do gás

interior, dava-se ares de encantamento com a iluminação de fora. Erigia-

se na escuridão da noite, como imensa muralha de coral flamante, como

um cenário animado de safira com horripilações errantes de sombra,

como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva

intensa dos romances cavalheirescos, despertado um momento da

legenda morta para uma entrevista de espectros e recordações. Um jato

de luz elétrica, derivado de foco invisível, feria a inscrição dourada

[ATHENAEUM] em arco sobre as janelas centrais, no alto do prédio

(POMPÉIA, ibidem: 19-20)

Mas logo se desvanece o brilho de papel de bala, o sonho se mostra tão verdadeiro

quanto os ideais camuflados no alto-relevo de gesso, ou seja, tão convencional quanto o

próprio símbolo, e assim como este, inexoravelmente perecível. No Ateneu, tudo lembra

fingimento, e o próprio Aristarco, uma estátua. Uma imagem que se vende primeiro como

onipotente:

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A uma delas, à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica do

semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a

sensação prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se julgava

consagrado. Devia ser assim: - luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o

ambiente glorioso do Panteon. A contemplação da posteridade embaixo

(POMPÉIA, ibidem: 20).

Para logo cair em derrisão:

Uma hora trovejou-lhe à boca, em sanguínea eloqüência, o gênio do

anúncio. Miramo-lo na inteira expansão oral, como, por ocasião das

festas, na plenitude da sua vivacidade prática. Contemplávamos (eu com

aterrado espanto) distendido em sua grandeza épica – o homem sandwich da

educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. Às costas,

o seu passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o

seu futuro: o reclame dos imortais projetos. (POMPÉIA: ibidem, 25).

O primeiro capítulo d‘O Ateneu foi todo um sonho; mas a ―realidade‖ que Sérgio aos

poucos descobre não é menos fabulosa, apenas deliberadamente híbrida de traços da

circunstância enunciativa e de outra, um tempo próprio da obra de ficção. Uma das

consequências dessa dialética, sob o signo da alegoria e do fragmento, é a plasticidade com

que Sérgio reinventa a própria vida, a exemplo da ininterrupta caricatura que faz de

Aristarco:

Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar pulso ao homem. Não só

as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos:

Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos,

soberanos, eram de um rei – o autocrata excelso dos silabários; a pausa

hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia

para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o olhar

fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês,

penetrando de luz as almas circunstantes – era a educação da inteligência;

o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura

das consciências limpas – era a educação moral. A própria estatura, na

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imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia

dele:aqui está um grande homem... não vêem os côvados de Golias?!...

Retorça-se sobre tudo isso um par de bigodes, volutas maciças de fios

alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios fecho de prata sobre o

silêncio de ouro, que belamente impunha como o retraimento fecundo

do seu espírito – teremos esboçado, moralmente, materialmente, o perfil

do ilustre diretor. (POMPÉIA, ibidem: 23)

E enfim conclui: ―Em suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a

impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria

estátua‖. Nada mais semelhante, nem menos atual, do que a perspectiva de McLuhan sobre

a reciclagem de lugares-comuns e sua revitalização em novos discursos: ―Qualquer clichê,

levado a um alto estágio, é desprezado em favor de um novo clichê que pode ser a

ressurreição de um antigo, por exemplo, um velho clichê como um novo arquétipo =

arquétipo como novo clichê‖ (MCLUHAN, ibidem: 69); ou: ―Esses resíduos verbais das

tecnologias primordiais do homem ilustram a maneira pela qual se desenvolve um clichê.

Qualquer extensão da vida sensorial, tal como o cão ou o automóvel, imprime numerosos

clichês em qualquer linguagem, estendendo seu alcance como sonda‖ (MCLUHAN, ibidem:

75); ou ainda: ―Inicialmente todo clichê é uma ruptura para dentro de uma nova dimensão

de experiência‖ (MCLUHAN, ibidem: 77).

Aí está como Raul Pompéia vai do clichê de um ridículo diretor de colégio do

Segundo Império ao arquétipo da figura aristocrática, mítica, de Aristarco. Aí está um

exemplo fecundo do culto barroco de Pompéia pelas ruínas... Observem a sagacidade

hieroglífica do poeta, quando une ao signo pictórico, à imagem – a caricatura, ou seja, a

ruína da origem –, o signo alfabético, a palavra, criptografando assim, por meio de

anagrama, os fragmentos de Aristarco Argolo de Ramos: a) arist (do gr. áristos)/arco (do gr.

arkhê), literalmente, ―origem do melhor poder‖, ou seja, do poder aristocrático dos homens

primevos (um aspecto de ordenamento e hierarquia intrínseco não apenas à organização

social, de genes, mas também à própria ordem alfabética, que sucedeu às linguagens

icônicas dos primitivos); b) argolo (do gr. argós), ―brilhante‖, ―alvo‖, ―branco‖, com

acepção de fama e pureza, como se do papel ―em branco‖ onde nada houvesse sido escrito,

donde se derivam, também, ―argila‖, o barro adônico, moldado originalmente pelo Criador,

que pode ganhar feição demoníaca se o do que deu forma ao que primeiro se rebelou

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contra Ele, ou ―argentado‖, o brilho da prata, em parte com ideia apenas de brilho, mas

igualmente da usura monetária dos povos em geral e do diretor em particular, o valor de

troca e combinatória do dinheiro, algo próprio da civilização e também muito parecido

com a ordem alfabética, ou também de ―argumento‖, ―argúcia‖, ―agudeza‖, característica

tanto do matreiro mestre de meninos quanto dos que primeiro manejaram a linguagem

humana, os quais, por serem engenhosos, falaram a linguagem poética, isto é, simulada; c)

ramos (do lat. rámus), árvore ―que gera frutos‖, cópias, ou raiz ―genealógica‖ etc. Esta

última raiz latina, por conseguinte, lembrar-nos-ia desde os ramos, os louros no arroz dos

que manejam letras e armas, nos tempos de Horácio e Virgílio, aos poetas e heróis, à cidade

eterna, Roma, incinerada assim como o Ateneu. Mas nela está cifrada outra cidade, Samos,

outro nome de Samotrácia, ilha do Chipre onde nasceu o primeiro Aristarco, gramático e

filólogo do século II a. C., primeiro crítico do texto homérico, por ele compilado. Muitas

são as inferências arqueológicas a tal personagem...

Aquela passagem, quando sintetiza a antes aparição homérica de Aristarco, agora

como ―o homem sandwich da educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes‖,

elucida bem a dialética entre as categorias de ―romance de personagem‖ e ―romance

dramático‖, segundo Edwin Muir, as quais muito se adéquam à alegorização do Ateneu:

O romance de personagem [...] preocupa-se de imediato apenas com a

exibição externa da realidade e encerra, sob isso, não algo

correspondente a ela mas algo relativamente incôngruo com ela. O

romance de personagem revela o contraste entre aparência e realidade,

entre as pessoas como elas se apresentam à sociedade e como elas são. O

romance dramático mostra que tanto a aparência como a realidade são

idênticas, e que o personagem é a ação e a ação, personagem (MUIR,

s/d: 24-25).

Um jogo antitético entre realidade e ficção que permite, não à toa, que Sérgio largue

os brinquedos e corte os cachinhos dourados, como se fosse outro que não ele mesmo, o

próprio Telêmaco no episódio homérico com Minerva, ou melhor, com o caricato

Aristarco:

―Como se chama o amiguinho?‖ perguntou-me o diretor.

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– Sérgio... – dei o nome todo, baixando os olhos e sem esquecer o ―seu

criado‖ da estrita cortesia.

– Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a bondade de ir ao

cabeleireiro deitar fora estes cachinhos...

Eu tinha ainda os cabelos compridos, por um capricho amoroso de

minha mãe. O conselho era visivelmente salgado de censura. O diretor,

explicando a meu pai, acrescentou com o risinho nasal que sabia fazer:

―Sim, senhor, os meninos bonitos não provam bem no meu colégio...‖

(POMPÉIA, ibidem: 23).

A passagem suscita muitos pruridos psicanalíticos, que se ouriçam ainda mais com a

entrada da personagem feminina, a mulher do diretor, Ema, misto edipiano de mãe e

primeira amante dos amores intransitivos de Sérgio, a qual, semelhante à canarina Ângela,

conduz de propósito a leituras maliciosas, de ranço naturalista. Mas tais pruridos, em

respeito ao próprio substrato mítico da ciência freudiana, logram êxito apenas se

apercebidos da intenção estritamente artística de Raul Pompéia na arqueologia das fontes

míticas. A memória de Homero, não nos parece demasiado crê-lo, ilustra explicitamente o

ricorso à origem épica do romance, coisa que poucos leitores têm percebido: ―Sérgio terá,

então, a ocasião de testar o ‗caráter‘ de sua identidade. Temos, portanto, de um lado, Sérgio

face à forma do ‗mito‘ [...]‖, ou ―Sérgio já se revela conhecedor das formas do mito; e faz

uso delas na ocasião de seu encontro com o Diretor‖ (SILVA, s/d: 122). É uma perfeita

identidade híbrida entre modulações de velhos discursos e seus respectivos tons poéticos

na estrutura ―dramática‖ do romance moderno:

As qualidades conhecidas dos personagens determinam a ação, e a ação,

por sua vez, modifica de maneira progressiva os personagens e assim

tudo é impelido para diante em direção a um fim. No seu ponto máximo

a afinidade do romance dramático se dá com a tragédia poética,

exatamente como a do romance de personagem com a comédia. O

diálogo [...] mal se distingue da elocução poética; as figuras mais

memoráveis [...] estão sempre à beira de se tornarem figuras puramente

cômicas [...] (MUIR, s/d: 21-22).

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As saudades heroicas de Sérgio, evocando o mundo das origens, o mundo dos pais

ancestrais, o mundo dos primeiros e dos melhores – como o da epopeia – deslocam-se

assim à fonte épica, que ―atua somente para os descendentes como um poema sobre o

passado‖ (BAKHTIN, ibidem: 405). Diante de Aristarco, Sérgio se porta como um

descendente que se rebela contra a paternidade hierática, ―baixando os olhos e sem

esquecer o ‗seu criado‘ da estrita cortesia‖. Aristarco, gabando-se da superioridade,

apaixonado pela própria estátua, delicia-se na ―chusma por alter-egos, glorificado por uma

multidão de si-mesmos‖. Mas logo o filho subverterá as influências, e quem primeiro sofre

a subversão é o próprio Aristarco, pai ancestral de nosso pequeno herói, tão logo arrastado

à derrisão caricaturesca. Os dois chegam mesmo ao embate físico, na verdade alegórico,

entre pai e filho:

– Sérgio, ousaste tocar-me!

– Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.

– Criança! feriste um velho!

Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.

– Fui vilmente injuriado, disse.

– Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os

parricidas serão malditos! (POMPÉIA, ibidem: 191).

Sérgio, embora impressionado ―até o íntimo da alma‖ com o desgosto do mestre, e

uma vez delegado ao ―abutre‖ da consciência ―o encargo da sua justiça e desafronta‖, vale-

se de uma digressão narrativa para desmistificar o mito: ―Hoje penso diversamente: não

valia a pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só pela futilidade de uma

ocorrência, desagradável, não sem dúvida, mas sem testemunhas‖. Que ―hoje‖

problemático em um romance artístico! Aristarco, por um lado, é o mestre, o melhor de

uma estirpe aristocrática e hierática; por outro, é o simples diretor de colégio, que Sérgio

desmistifica em várias passagens por meio da caricatura, a exemplo desta maravilhosa

síntese metafórica que o mostra como ―o homem sandwich da educação nacional, lardeado

entre dois monstruosos cartazes‖.

A perspectiva do heroísmo de Sérgio, sob o signo da modernidade, leva-nos ao

caminho não menos melancólico dos que, desenganados com a verdade prometida pelas

ciências sociais e tecnológicas oitocentistas, voltam-se para o regaço da fábula, ao tempo

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primitivo da linguagem poética. O caminho da decadência. Os decadentes, nostálgicos do

passado, revisitaram-no todavia de maneira muito diversa do romantismo neokantiano/

hegeliano; mas igualmente seduzidos por aquelas promessas que emergiram no início do

século XIX, para findá-lo desenganadas, melancólicas, voltadas outra vez – lição viquiana –

ao dialeto fabuloso dos antigos. Um ensaio de Oscar Wilde ilustra bem esse momento

cultural, que é o mesmo da gênese d‘O Ateneu, quando, analisando a ―decadência da

mentira‖, mostra-se igualmente nostálgico da forma fabulosa dos antigos narradores, a

exemplo de Heródoto, não obstante metonímia da historiografia, também ―o Pai das

Mentiras‖. Eis como Wilde lamenta a gana verídica de sua época: ―Não somente os fatos se

introduzem na história, mas usurpam o domínio da Fantasia e invadiram o reino do

Romance‖ (WILDE, 1961: 1081). Ou, de maneira ainda mais epigramática:

A literatura sempre se antecipa à vida. Não a copia, mas a modela à sua vontade.

O século XIX, tal como o conhecemos, é largamente uma invenção de Balzac.

[...] Não fazemos mais do que praticar – com notas ao pé da página e com

acréscimos inúteis – o capricho, a fantasia ou a visão criadora de um grande

romancista (WILDE, ibidem: 1085).

Balzac criou a vida, não a copiou; não se valeu assim do realismo sem imaginação, ou

do naturalismo de tese, ambos então em voga, mas de uma realidade imaginada: segundo

Wilde, não cometeu o erro fatal de utilizar a vida como método – como um

realista/naturalista –, senão apenas como matéria moldável pelo gênio artístico. Opinião

que também era de Baudelaire, uma das influências diretas sobre Raul Pompéia e, assim

como Flaubert, um dos ícones do Decadentismo. Os primeiros leitores d‘O Ateneu não

titubearam em identificar os matizes decadentistas do livro de Pompéia, dentre os quais, o

da prosa poética, o velo de ouro do herói moderno. A obsessão de Raul Pompéia pela

forma poética mesura toda sua prosa, estruturando os outros gêneros por ele exercitados,

seja o teatro, a novela, a crônica, a crítica de arte e, sobretudo, seu único romance. Uma

obsessão mais visível nas Canções sem metro, mas que se codifica de maneira importantíssima

na estrutura ―vibrante‖ e ―colorida‖ d‘O Ateneu. Eis como o sublinham: ―Quem quiser

captar decassílabos e alexandrinos no estilo de Pompéia encontrá-los-á em toda a parte de

suas obras, sobretudo em ‗O Ateneu‘, mas em certos trechos desse romance é que o

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número cedeu a uma fluidez mais característica de impregnação simbolista‖ (GOMES,

1958). Vejam um Huysmans:

O estilo vívido e sumamente maneiroso de Huysmans, com os seus

arcaísmos, a sua aglomeração de epítetos, a um tempo rico e recherché, a

sua grande cópia de imagens visuais, vinham apresentar uma espécie de

santo do estetismo, que abrira mão de todas as distrações normais da

vida social, afim de arder, tal como Pater, com a chama viva e fugaz da

sensibilidade estética (LAVER, 1961: 22).

E, outra vez, Wilde:

A arte começa com uma decoração, com um trabalho puramente

imaginativo e agradável, aplicado ao irreal e ao não existente. É esta a

primeira etapa. Depois a Vida, fascinada por esta nova maravilha, solicita

sua entrada no círculo encantado. A Arte toma a vida entre seus

materiais toscos, cria-a de novo e torna a modelá-la em novas formas e

com uma absoluta indiferença pelos fatos, inventa, imagina, sonha e

conserva entre ela e a irrealidade a intransponível barreira do belo estilo,

do método decorativo ou ideal. A terceira etapa se inicia, quando a vida

predomina e atira a Arte ao deserto. Esta é a verdadeira decadência e é

por isso que sofremos atualmente (WILDE, 1961: 1079).

Vejam agora como nesses decadentes identificamos muito da ―sensibilidade estética‖

de Raul Pompéia. Eis o panorama onde melhor podemos situar a psicologia estética,

segundo Araripe Júnior, de Raul Pompéia no século XIX e que o projeta, por conseguinte,

no diálogo com autores da mais sofisticada modernidade, a exemplo de James Joyce.

Desmistificada a leitura naturalista d‘O Ateneu, que toma o internato por simulacro

sociológico a partir do qual o autor vilipendiaria o mundo, desmistifica-se também a que se

ocupa de Sérgio como autobiografia de Raul Pompéia, leitura esta incompatível com o

próprio caráter protéico da personagem. A revisão de uma obra guarda surpresas, algo

como relíquias. Hoje, por meio de certo distanciamento, é possível averiguar como O

Ateneu logrou, tão logo publicado, a recepção esclarecedora e até hoje singular destes titãs

da crítica literária nacional, Araripe Júnior e Sílvio Romero.

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Sílvio, embora lendo o livro de Raul Pompéia tão logo de sua publicação, em pleno

frenesi naturalista, teve a sensibilidade escassa na maioria das críticas imediatas, e mesmo

em algumas leituras posteriores desse livro, de justamente distingui-lo de certos caracteres

daquela escola com os quais, segundo ele, opor-se-ia a crônica de saudades de Sérgio. O

crítico sublinha, primeiro, as ―belas qualidades estilísticas‖ (ROMERO, 1949: 436) do

autor, seja no bem manejar ―a difícil arte da prosa‖, seja no construí-la a partir do ―brilho,

no cintilar das frases‖ (ibidem, 447-448). O mais curioso, no entanto, está nas refutações

idiossincráticas contra a escola naturalista, que se adéquam tanto à perspectiva alegórica

quanto ao entendimento da obra de arte ―como estilo‖ que vemos patente em Raul

Pompéia e sintetizada na figura de Dr. Cláudio. Quando aponta a ―intuição monística‖ do

século XIX, o século da historiografia arqueológica, em mostrar a ―continuidade, a unidade

de todos os fatos, de todos os fenômenos, que são o objeto da ciência‖ (idem, 255), intui

sobre uma perspectiva muito barroca. Se pensarmos tal continuidade não como algo que se

repete de maneira uniforme, mas ainda que se transformando, continua a movimentar-se

(algo que Bakhtin apontou no romance, como ―gênero em formação‖, e tanto Pompéia

quanto Joyce o praticaram como ―obra em progresso‖), se pensarmos enfim na

correspondência cíclica dos fragmentos históricos, podemos a leitura de Sílvio Romero

quando, por conseguinte, a confrontamos com os discursos do Dr. Cláudio, segundo o

entendimento da arte como obra social, que em vez de se educar pela natureza, termina

educando-a. Dr. Cláudio, por um lado, afirma: ―Arte, estética, estesia é a educação do

instinto sexual‖. Sílvio Romero, por outro:

A natureza não tem arte; a arte é um produto da cultura humana. [...] A

teoria de Zola fere o princípio fundamental de ser a evolução, o

desenvolvimento, o fieri perpétuo da humanidade o resultado justamente

de uma luta contra a estreiteza, contra a esterilidade da natureza;

desconhece o combate da cultura contra a natura (ROMERO, ibidem:

256).

E segue:

Tudo quanto de elevado e grandioso tem a humanidade produzido é um

resultado dessa luta, desse combate diuturno. A civilização é o

coeficiente desse esforço. O homem natural é o das cavernas, o coevo do

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megatério e do mamute. O homem pode ser definido o animal que faz

estátuas, músicas, edifícios e poemas. É o animal que faz livros

(ROMERO, ibidem: 256-257).

Essa perspectiva é o contrário do que ensejou o Romantismo, o Realismo, o

Naturalismo... Aqui, a psicologia humana em vez de educar o livro, educa-se nele. Ou,

segundo Wilde (ibidem: 1082), a verdade da vida se educa na fantasia da arte, qual a do

primeiro mentiroso que, nos tempos primitivos, sem haver ido à caçada, falou aos seus

como pelejou com o megatério... Eis a educação sentimental do romance, por exemplo, no

autor destas duas fábulas que partem do excremento histórico para a vida moderna, e vice e

versa, que são Bouvard e Pécuchet e Salambôo. Quando Raul Pompéia delineia uma

personagem como Ângela, reiteremos, na qual muitos notam o exemplo perfeito do

naturalismo (como o fez Mário de Andrade), fá-lo também sob o signo da caricatura, da

ironia. Não é o caso de um objeto de tese, ou rechaço ao mundo sexual do internato,

tampouco a válvula autobiográfica que desenha, de jeito igualmente artificioso, a figura

feminina como se a não conhecesse... Nesse desenho caricato o que funciona é a

personagem, não a vida; e o autor deliberadamente a modela como se uma cigana, uma

Carmem das óperas. Mostra-se a sabedoria, tão velha quanto muitas vezes esquecida pelo

século XIX, de que ―a arte não consiste na imitação exata e completa dos fatos e sim na das

simples relações necessárias‖ (ROMERO, ibidem: 257).

*

Enquanto Victor Bérard busca a veracidade da cartografia homérica, sob o frisson

historiográfico do século XIX, James Joyce deliberadamente a reinventa no século XX

sobre o concreto de uma cidade moderna e, em muitos aspectos, comezinha, escavando

assim no demasiadamente humano a forma arquetípica do mito. A forma moderna

almejada por Joyce se delineia num acúmulo de ruínas literárias, num palimpsesto de

fábulas e resíduos etimológicos que lhe permitem atualizar, dentro da estrutura já decrépita

da linguagem literária e, em particular, do romance, os passos épicos de Ulisses. Pouco

importa se o códice de antigos escoliastas – de algum Aristarco de Samos, por exemplo –

ou a trivial novela de Charles Lamb: em outras palavras, não importa a verdade, mas a

fábula, a obra de ficção. Sabemos o quanto Stephen apreciava Wilde; muitos resíduos da

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decadência finissecular apregoada nos aforismos daquele esteta se abeiram da obra

joyceana, sobretudo no A portrait of the artist as a young man, de 1916. Também aqui, assim

como n‘O Ateneu, a escola se abre como espaço saturado de referências culturais onde o

jovem herói moderno trava, cheio de utopias românticas, mas também de malícia

sarcástica, a luta pela sua própria identidade. A identidade se torna heróica como reciclagem

– como queira McLuhan – das muitas técnicas modernas, dentre as quais a da ficção, como

já dito, sob o signo da escrita e da tipografia. No périplo de sua aventura para as páginas do

Ulysses, de 1922, Stephen Dedalus infla o peito como um Teseu vitorioso, invocando ao

Criador boas alvíssaras na busca do que ele chama ―a forma ainda não moldada‖ de minha

raça – ou melhor, a forma artística já impossível no romance, senão estraçalhado como no

Finnegans Wake, em todo caso uma forma em contínuo devir, ou obra em progresso como

o próprio romance...

O signo viqueano, barroco, do ricorso às ruínas ancestrais, é importantíssimo no

entendimento histórico a partir do século XIX, contrapondo o espiritualismo romântico,

neo-hegeliano e neokantista de uma unidade infinita à compreensão barroca da história

como ruína revisitada por Walter Benjamin, que sintetiza toda a crise não apenas conceitual

como formal da contemporaneidade e sua própria ausência de forma. Daí a identificação

dos contemporâneos, a partir dos impressionistas e decadentes, com o barroco no que este

implica, em parte, de fragmentação e metamorfose, mas também de uma apoteose da

forma não como verdade, mas antes como artes do engenho, criação artística (ou, como

lembrado por alguns leitores, dentre os quais Machado de Assis, da écriture artiste que Raul

Pompéia apreende de seu panorama, a partir dos Goncourt). A decadência dos séculos

XIX e XX reitera o limite das civilizações assinalado por Vico, quando estas atingem o

acúmulo – o acúmulo técnico, científico, cultural da burguesia democrática –, saturando-se,

até se voltarem à decadência, devorando-se umas as outras, enfim, arruinando-se. A

linguagem, primeiro código das civilizações, é quem primeiro o denota, tornando-se estéril

pelo uso, algo como o lixo de uma lixívia. A cultura, por demais civilizada, como se

cristaliza e quebra, voltando outra vez ao caos de sua origem. Nessa volta – que segundo

McLuhan implica na reciclagem do lixo civilizatório – ganha vulto outra vez o poeta, aquele

que se distingue porque inventa e, por isso mesmo, se reveste das formas heróicas do mito.

O poeta é o herói da modernidade porque inventa, mas já não inventa como nos tempos

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arcaicos, fingindo a natureza; resta-lhe agora fingir a partir dos próprios detritos da história,

ou seja, reciclando a ruína. Flaubert foi mestre disso.

Não é difícil perceber como a vida, a social e biológica, e não menos a verdade

histórica, deixam-se negligenciar nas páginas d‘O Ateneu, em favor da invenção. Uma

olhadela num fragmento do discurso do Dr. Cláudio: ―Extasia, educação do instinto

sexual‖. Além de uma espécie de alter ego do pensamento estético de Raul Pompéia, Dr.

Cláudio sintetiza um núcleo teórico que se realiza em todo o romance, do começo ao fim.

No século de Raul Pompéia, ou melhor, na decadência finissecular quando publica O

Ateneu, todos os meios sociais da elite se empanturram das últimas tecnologias. É a

sociedade de Dom Pedro II, um entusiasta do progresso das civilizações (ao passo que um

dos primeiros a escavar o passado). A escola, que se apresenta como microcosmo formador

da sociedade, não deixa também de consumi-las. O próprio Aristarco se arvora a última

tendência da pedagogia moderna. Os manuais didáticos, os aparelhos científicos e

ginásticos etc., tudo no Ateneu rescende a novidade... Menos o diretor, que Sérgio descreve

tão decrépito como uma múmia engalanada de condecorações por seu labor pedagógico,

imortal e também ―heróico‖; enfim, como uma ―couraça de grilos gritando ao peito‖. Sob

toda a casca de plaquê do Ateneu jazem as raízes de sua antiguidade arquetípica, a única

que dá sentido aos clichês, caricaturas, metáforas e, por fim, a todo o mecanismo alegórico

da supostamente ingênua, ou despeitada, crônica de saudades de Sérgio. Nisto reside a

identificação do poeta, como inventor de linguagem, com o herói mítico: ―O inventor, o

descobridor de novas formas e novas tecnologias, era, para o homem arcaico, alguém que

era mais que um homem [...]. Para o homem arcaico a linguagem é algo que conjura de

imediato a realidade, uma forma mágica‖ (MACLUHAN, 1973: 141). Sobretudo quando

dos alfabetos, e sua organização automática, permanecer inventando sobre o código social

era algo apenas do poeta. O heroísmo de Sérgio se identifica, assim, com os antigos poetas

os quais, algo divinos, algo míticos, manejavam as forças criativas da linguagem.

O poeta, como inventor de linguagem, se identifica com o herói mítico: ―O inventor,

o descobridor de novas formas e novas tecnologias, era, para o homem arcaico, alguém que

era mais que um homem [...]. Para o homem arcaico a linguagem é algo que conjura de

imediato a realidade, uma forma mágica‖ (MACLUHAN, ibidem: 141). Ou: ―A sacralização

do arquétipo foi trabalho do homem civilizado com sua perspectiva literal e histórica‖

(idem, ibidem: 144). O romântico almeja a estátua; o decadente, neobarroco, o pedaço de

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mármore. O primeiro se lança ao encontro de sua personalidade; o segundo põe a máscara,

e outra vez mente... Quando Sérgio se mostra um romântico, na verdade é o clichê que ele

incorpora, é o fragmento que ele submete ao processo de suas colagens, digna de um estilo

que levou a considerá-lo última expressão de um barroco tardio entre nós (bem, não

esqueçamos os sertões de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa...).

Naquela ―fonte espiritual‖, aonde afluía ―a fina flor da sociedade brasileira‖, bebe

Sérgio, o protagonista, e com ele, nós leitores; mas é preciso sondar com mais perícia

justamente a água turva, prolífera, cheia de microorganismos sígnicos, na qual a imagem

narcisista de um narrador em primeira pessoa, supostamente inteiriço, se quebra dentro do

discurso literário, multiplicada já em estilhaços e modulações que se metamorfoseiam a

todo instante em imagens outras, especulares. Sérgio é a voz onipresente e onipotente desta

―crônica de saudades‖, mas não a única, ou melhor, uma voz polifônica, impregnada de

outros discursos, de ecos remissivos à origem da própria obra de ficção: nostálgico, de

maneira dramática, das fontes primevas da fábula. À crítica resta voltar-se a essa origem,

manejando os resultados positivos de sua pesquisa (e há vários, dos primeiros aos mais

recentes críticos, no sentido da compreensão do valor estético de Raul Pompéia) e entendê-

la como vital ao processo de criação deste livro. O Ateneu é, simultaneamente, uma tese e

uma obra de criação, ou seja, uma metalinguagem do discurso literário em geral e do

romance em particular, que decompõe a historiografia literária por meio de processos

fragmentários como a paródia e a caricatura, resultando daí quadros sintéticos, fragmentos

alegóricos que ao mesmo tempo ilustram e materializam o pensamento estético do autor

por meio de múltiplos artifícios verbais e imagéticos.

Não seria demais evocar para O Ateneu as referências de Edwin Muir a respeito da

saga em busca do tempo perdido de Marcel Proust, quanto à epopeia deste como uma

―coleção de outros romances dramáticos e de personagens entretecidos uns com os

outros‖, segundo ele, ―com um fim não na ação externa, mas na mente do autor: antes o

fim de uma busca do que de um conflito‖ (MUIR, s/d: 73). O incêndio pode não resultar

de um ―conflito‖ em parte dispensável dentro do enredo (BARBOSA, 2000: 16), mas

inegavelmente sucede a uma sequência de conflitos estruturais e imagéticos entremeados

no plano expressivo da linguagem de Sérgio. Outrossim, resulta da busca nostálgica deste

jovem aedo pela origem poética do romance a qual, sabemos, é o texto épico, lançado em

sua crônica de saudades desde o signo da ―luta‖; um intertexto ou palimpsesto que termina,

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sempre, sobre ruínas, como já notado, e que vale reiterar, em relação ao tempo no romance

dramático ou, melhor, dramatizado:

O sentimento de tempo, então, pode ser amplamente dissimilar em

diferentes romances dramáticos; nossa captação do fim para o qual ele se

movimenta pode ser definida ou indefinida; a marcha da ação pode ser mais

lenta ou mais rápida, mas talvez se tenha dito o suficiente para mostrar que a

sensação de tempo esgotando-se dá a verdadeira margem à emoção

dramática. No romance dramático, pois, como em toda a literatura

dramática, o tempo se move e, portanto, vai mover-se para seu fim e

destruir-se (MUIR, s/d: 46).

Ou ainda:

O final de qualquer romance dramático será uma solução do problema que

põe os eventos em movimento; a ação específica terá se completado,

produzindo um equilíbrio ou resultando em alguma catástrofe que não pode

ter prosseguimento por mais tempo. equilíbrio ou morte, estes são os dois

finais em direção aos quais se move o romance dramático (MUIR, s/d: 31-

32).

Eis Aristarco sobre o ―desastre universal de sua obra‖. E nós ante as ruínas do

espetáculo... Neste livro, é preciso vê-lo com olhos de artista, Raul Pompéia evoca a origem

poética da linguagem literária – aí sim, não se tem percebido tal radicalismo, tal beleza! –

por meio de uma mecânica que desloca a circunstância enunciativa de Sérgio, o narrador

―psicológico‖, para uma voz arquetípica, ou polifonia, por meio das artes do engenho de

um barroco moderno que revisita o pensamento estético da linguagem, materializando-o na

estrutura, na forma outra vez apoteótica – como se uma rapsódia epopeica – deste resíduo

da fábula, o romance.

REFERÊNCIAS

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12. A CARNAVALIZAÇÃO LITERÁRIA EM SARAMAGO: ENTRE O RISO

E AS RUÍNAS

PAIVA, K. A. R. de. (IFRN) - autora55 ARAÚJO, R. D. de. (IFRN) - coautora56 Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. (Epígrafe de abertura de Ensaio sobre a Cegueira, extraída do Livro dos Conselhos)

Mal abrimos o Ensaio sobre a Cegueira e lá está uma epígrafe nos desafiando a

reparar. Mas, o que será mostrado a ponto de necessitar ―reparação‖? Se explorarmos a

carga semântica dessa recomendação inicial de leitura, essa reparação tanto pode significar

dirigir ou fixar a vista, perceber ou notar, consertar ou restaurar.

Assim, iniciamos uma leitura: cheios de questionamentos, deparando-nos com um

enredo que se propõe dialógico e paradoxal antes mesmo de começar, já que o título nos dá

pistas de que o romance pretende ressaltar a cegueira, enquanto a epígrafe nos desafia ao

exercício do olhar.

O livro, ironicamente, faz com que o leitor enxergue e tema a própria humanidade

da qual faz parte, diante de uma situação de caos: uma epidemia de cegueira. A partir da

súbita e inexplicável epidemia, o enredo passeia livremente pelas vias da desorganização e

da superação de valores mais básicos da sociedade, mostrando as faces ocultas dos seus

personagens egoístas, numa luta travada consigo e com o mundo desolador que os cerca,

em favor da própria sobrevivência. Esse mundo os rejeita em virtude de estarem cegos e

por temerem acontecer o mesmo com os demais indivíduos que ainda vêem, isolando

aqueles no manicômio - submundo dos cegos. Em meio a esse caos, existe a mulher do

médico, única personagem que transita incólume sem ser infectada pela epidemia. É através

dos olhos dela que assistimos aos acontecimentos. Seu cônjuge, um oftalmologista, não

consegue explicar ou sequer solucionar a enfermidade que acomete os humanos, aliás, ele

55

Kalina Alessandra Rodrigues de Paiva é professora do IFRN, graduada em Letras, especialista em Educação e mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected] 56

Roberta Duarte de Araújo é professora substituta do IFRN, graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem pela UFRN. E-mail: [email protected]

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figurará como cego no enredo, não diferindo dos demais.

Ao peregrinarmos pelo enredo, acompanhando esses cegos, percebemos

que Saramago confere ao humor um espaço que habita as entrelinhas do romance. Não se

trata de um humor desbragado, mas amargo, lapidado a partir de situações experimentadas

pelos personagens à semelhança do estado de exceção vivido em contexto de guerra.

Nesse sentido, Saramago fornece-nos material suficiente para investigarmos um

campo importante na literatura: o cômico, permeado pela ironia, paródia, sarcasmo,enfim

diferentes níveis de humor.

Em entrevista para a Revista de Língua Portuguesa (2005), sobre o procedimento

narrativo presente no Ensaio sobre a Cegueira, Saramago afirmou escrever como quem faz

música, decidindo abolir os sinais de pontuação para criar um ritmo próximo da palavra

falada em seus romances. Assim, lembrando-nos que ―A voz é a vista de quem não vê‖

(SARAMAGO, 1996, p. 120), a musicalidade aparece em sua obra.

No romance, a ligação entre o que se diz e o modo como se diz tem um

lugar muito especial. É claro que, se escrevesse de outra maneira, contava

a mesma história. O que ocorre é que transponho para o discurso escrito

os mecanismos da fala. Afinal, quando nós falamos não estamos a fazer

parágrafos nem pontos de interrogação. Falamos como se estivéssemos a

fazer música, com sons e pausas. Proponho, então, um pacto, dizendo:

aqui não há sinais de pontuação, o que há são sinalizações de pausa; uma

leve, simbolizada por uma vírgula, e outra um pouco mais longa,

representada pelo ponto final. Se o leitor aceita esse pacto, a história

segue. (SARAMAGO, 2005, p. 18).

Neste pacto estabelecido entre leitor e texto, a leitura se transforma numa via de

possibilidades musicais, marcadas pela leitura ora pausada, ora mais acelerada.

Essas possibilidades musicais são permitidas e alcançadas a partir da forma

saramagueana de organizar o discurso, isto é, a substituição das marcas tipográficas que

separam a fala do narrador da fala dos personagens por vírgulas, seguidas de uma letra

maiúscula, demarcando mudança de fala. O ESC não só discorre sobre o olhar como

exerce uma função metalinguística, exigindo um olhar diferente do usual para a obra de arte

e o faz a começar pelos aspectos gráficos. É uma educação do olhar, através de um jogo

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temático, verbal e musical; um mosaico, um labirinto a ser percebido via plano de

expressão (forma como o enredo se apresenta) aliado ao plano de conteúdo (temática

abordada pelo ensaio). E quanto mais se joga, mais elementos se percebem, bem ao estilo

Barroco.

Se por um lado, temos inovações nos aspectos sonoros e tipográficos da obra em

estudo, também encontramos marcas implícitas na estrutura do romance, por meio das

quais detectamos rebaixamento paródico em diferentes níveis de riso, à luz de Bakhtin.

Ao comentar sobre a estrutura romanesca em Dostoievski, Bakhtin falava sobre a

capacidade de renovação do gênero literário, afirmando que

O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo

tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do

desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado

gênero. Nisto consiste a vida do gênero (BAKHTIN, 1997, p. 106).

Isso implica assegurar a unidade e a continuidade do desenvolvimento literário, ou,

caso contrário, as obras de arte enquadradas como romance manteriam sempre a mesma

estrutura, não oferecendo nada de novo.

Nessa busca de desenvolvimento do gênero, tomando como exemplo o ESC,

percebemos a presença de uma literatura que sofreu influência de diferentes modalidades

de folclore carnavalesco, intitulada de literatura carnavalizada que figura o campo do sério-

cômico.

Bakhtin (1997) nos alerta que, enquanto festividade, o carnaval não é um fenômeno

literário, mas como criou uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, o

teórico toma a cosmovisão carnavalesca como empréstimo para compor a teoria da

carnavalização na literatura.

Segundo o teórico, uma literatura sofre processo de carnavalização quando:

a) o objeto da representação passa a ser a realidade inacabada e não o elemento

mítico;

b) não se baseia na lenda nem se consagra através dela, mas sim na fantasia livre,

desmascarando a lenda de forma crítica e cínica (leia-se: por meio do humor); c) há

pluralidade de estilos e variedade de vozes, renunciando a unidade estilística para dar lugar

à politonalidade da narração, fundindo sublime e vulgar, sério e cômico, empregando

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gêneros intercalados (cartas, diálogos relatados, paródia de gêneros literários elevados,

citações recriadas em paródia).

Essas mudanças provocam outros efeitos na narrativa, tais como: a quebra da

hierarquia socialmente imposta; a permissão da liberdade comportamental, gestual e

discursiva de forma excêntrica; as mésalliances carnavalescas, isto é, as livres relações que

se estendem a tudo (valores, ideias, fenômenos e coisas), combinando elementos antes

fechados, separados, distanciados pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca

(sagrado/profano); a profanação, resultante da paródia de textos sagrados, configurando

sacrilégios, descidas e indecências. Exatamente por promoverem a livre familiarização do

homem com o mundo, essas categorias carnavalescas foram transpostas para a literatura.

Isso destruiu as distâncias épica e trágica e refletiu substancialmente na estrutura do enredo.

A fim de entendermos melhor essas categorias carnavalescas, entrelaçaremos a

teoria bakhtiniana com algumas cenas do romance saramagueano.

Para Bakhtin (1988), a paródia consiste numa construção dialógica muito especial

por meio da qual o discurso que representa estabelece uma relação de desmascaramento em

relação ao discurso representado, desentronizando-o. Nela, encontram-se as mais variadas

formas de linguagens determinadas por inter-relações, desejos verbais e discursivos que se

encontram nos enunciados. Ainda segundo o autor, a paródia ―introduz livremente um

material de outrem nos temas contemporâneos [...], põe à prova a língua estilizada,

colocando-a em situações novas e impossíveis para ela‖. (BAKHTIN, 1997, p. 102).

Acreditamos que a paródia não somente desentroniza uma imagem primeira, um

texto primeiro, mas também a resgata, não a deixando cair no esquecimento, pois a paródia

também apresenta essa função: a de trazer à memória um elemento parodiado, mesmo que,

para isso, subverta-o.

Em ESC, existe fusão do trágico com o cômico que, em si, já constitui uma

hibridização de gêneros e oferece outras fusões do sublime com o vulgar, empregando

gêneros intercalados.

No segundo capítulo do livro, encontramos elementos do cômico por meio do uso

parodiado de um dito popular. Enquanto o primeiro cego sofre o infortúnio da desgraçada

cegueira e um homem se oferece para ajudá-lo a voltar para casa dirigindo seu carro, o

narrador nos lembra: ―se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão, também é certo

que o ajuda muito‖ (SARAMAGO, 1996, p. 25). Enquanto a dor de um dos personagens é

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apresentada, o narrador faz do momento uma piada em forma de dito popular reconstruído

como prenúncio de que assistiremos à ação de um ladrão de cego que também cegará após

o roubo. Mais requintada ainda é a expressão ―bom samaritano‖, remetendo-nos

parodicamente à parábola cristã que assegura a honestidade neste mundo, muito embora –

no contexto do romance - o ―bom samaritano‖ que se dispõe a ajudar o primeiro cego não

faça jus ao episódio bíblico original que motiva a paródia.

A própria descrição da linguagem com que os cegos se comunicam é de um humor

amargo, pois eles não falam, eles ladram. Considerando que ladrar significa latir ou proferir

com violência, então, que tipo de comportamento esperamos desta ―outra raça de cães‖

(SARAMAGO, 1996, p. 64)? A narrativa segue dando lugar à musicalidade da linguagem

canina falada pelos homens, funcionando como melodia para a metamorfose por que

passam os cegos, pois passam de humanos a animais, de animais a seres bestializados; um

prenúncio do caos em que a humanidade vai adentrando.

No liame entre o sério e o cômico, o romance prossegue através das palavras das

personagens que insistem em falar sobre impossibilidades de nomeação da cegueira, do que

estão vivendo, enfim, de tudo que os cerca. Enquanto isso, o adâmico narrador esbanja

imagens e situações sem economizar as classes de palavras, desenhando as cenas de horror

com humor amargo.

No 5º capítulo, os cegos questionam a validade de um especialista em olhos que

não pode ver:

Quem é este, a resposta veio do primeiro cego, É médico, um médico

dos olhos, Esta é das melhores que ouvi na vida, disse o motorista, logo

nos havia de ter saído na rifa o único médico que não nos vai servir para

nada, Também nos saiu na rifa um motorista que não nos levará a parte

alguma, rispostou com sarcasmo a rapariga de óculos escuros.

(SARAMAGO, 1996, p. 68).

Retextualizando o que nos diz as personagens para o provérbio popular: ―chumbo

trocado não dói‖. É bem isso que acontece entre as afirmações sarcásticas das personagens.

À medida que lemos, o nível de linguagem avança em violência e animalidade. Aqui, por

enquanto, as ironias são refinadas, alegóricas – porque dizem uma coisa para significar

outra – e sinalizam para o leitor que os ânimos das personagens, por enquanto, estão sob

controle.

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Ainda neste capítulo, mais adiante no enredo, a rapariga de óculos escuros disfarça

as lágrimas, usando colírio em olhos que já não vêem. E quanto mais o romance avança,

encontramos o surrealismo da obra, à medida que temos a sensação de passar os nossos

olhos por uma nau de loucos. Ao fim deste capítulo, acontece uma execução. Ela permitirá

uma pausa para um olhar mais apurado, já que consideramos uma cena representativa, haja

vista que o cadáver se torna um problema. ―Esse problema‖ se instala quando a mulher do

médico aponta a possibilidade de o cadáver contagiar os outros que não cegaram, inclusive

os militares de serviço. Estes últimos providenciam uma enxada para cavar uma sepultura, a

fim de enterrar não só o corpo, mas também qualquer possibilidade de propagação da

doença.

Ademais, um fato que deve ser lembrado é a justificativa para a execução, a saber,

―a legítima defesa do soldado‖. Agora, imaginemos um soldado com uma arma de última

geração atirando num homem desarmado e cego – Eis a representação da covardia diante

do que existe de mais inofensivo: um cego desarmado. Vejamos o fragmento em que a

mulher do médico, supostamente cega, é guiada pelos militares, até uma enxada para cavar

e enterrar o cadáver do ladrão:

Não me posso esquecer de que estou cega, pensou a mulher do médico,

Onde está, perguntou, Desce a escada, que já te irei guiando, respondeu

o sargento, muito bem, agora anda na direção em que estás, assim, assim,

alto, vira-te um pouco para a direita, não, para a esquerda, menos, menos

do que isso, agora em frente, se não te desviares vais dar com o nariz

mesmo em cima dela, quente, a escaldar, merda, eu disse que não te

desviasses, frio, frio, está a aquecer outra vez, quente, cada vez mais

quente, pronto, agora dá meia volta que eu torno a guiar-te, não quero

que fiques para aí como uma burra à nora, às voltas, e me venhas parar

ao portão, Não estejas tão preocupado, pensou ela, irei daqui à porta em

linha reta, no fim de contas tanto faz, ainda que ficasses a desconfiar de

que não estou cega, a mim que me importa, não virás cá dentro buscar-

me. Pôs a enxada ao ombro, como um cavador que vai ao seu trabalho, e

caminhou na direcção da porta sem se desviar um passo, Nosso

sargento, já viu aquilo, exclamou um dos soldados, até parece que ela

tem olhos, Os cegos aprendem depressa a orientar-se, explicou,

convicto, o sargento. (SARAMAGO, 1996, p. 85-6).

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Afinal, quem é o cego nesta passagem? O sargento pensa que guia uma cega, e o faz

semelhantemente a uma brincadeira do folclore infantil, o jogo do quente/frio que,

segundo Duarte (2000), é originário da Suíça. Percebemos, então, uma hibridização de

gêneros com introdução de um jogo folclórico no enredo do romance estudado.

Refletindo sobre a inserção de um gênero em outro, encontramos uma das

peculiaridades da literatura carnavalizada que, segundo Bakhtin (1997), se caracteriza pela

pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses gêneros, isto é, pela

politonalidade da narração, no momento em que intercala gêneros, a fim de dar andamento

ao enredo por meio da fantasia livre, oferecendo novo tratamento à realidade. Dessa forma,

o discurso da representação faz surgir o discurso representado.

No oitavo capítulo, aparece um elemento da arte pictórica, no mínimo, curioso:

uma tela que, na verdade, contém 7 telas conhecidas. Como se era de esperar, Saramago

decidiu lançar mais um desafio ao olhar dos leitores, pois não há nomes de pintores e sim

nacionalidade de alguns; inexistem os nomes das obras, porém há uma descrição das

imagens. É com essas pistas que o leitor tem de chegar a uma imagem paródica e alegórica.

[...] O último que eu vi foi um quadro, Um quadro, repetiu o velho da

venda preta, e onde estava, Tinha ido ao museu, era uma seara com

corvos e ciprestes e um sol que dava a ideia de ter sido feito com

bocados doutros sóis, Isso tem todo o aspecto de ser de um holandês,

Creio que sim, mas havia também um cão a afundar-se, já estava meio

enterrado, o infeliz, Quanto a esse, só pode ser de um espanhol, antes

dele ninguém tinha pintado assim um cão, depois dele ninguém mais se

atreveu, Provavelmente, e havia uma carroça carregada de feno, puxada

por cavalos, a atravessar uma ribeira, Tinha uma casa à esquerda, Sim,

Então é de inglês, Poderia ser, mas não creio, porque havia lá também

uma mulher com uma criança ao colo, Crianças ao colo de mulheres é do

mais que se vê em pintura, De facto, tenho reparado, O que eu não

entendo é como poderiam encontrar-se em um único quadro pinturas

tão diferentes e de tão diferentes pintores, assim. (SARAMAGO, 1996,

p. 130-1).

A conclusão a que chegamos sobre essas várias imagens, fundidas numa só? São

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excessivas e despertam a sensação de angústia no observador, tal como as imagens

barrocas. A sensação decorrente da leitura dessa tela, à medida que os objetos artísticos são

descritos na obra, é de uma ansiedade sem precedente, pois o narrador revela pistas sobre o

objeto artístico, envolvendo o leitor como peça desse jogo. Num livre exercício semiótico,

decidimos materializar a descrição saramagueana:

Não por acaso A Seara com Corvos (1890), do holandês Van Gogh é citada

inicialmente. Essa tela foi a última produção desse artista, antes do seu suicídio. As cores

quentes nela utilizadas marcam a intensa fase em que o pintor produzia (uma tela por dia!)

dentro do manicômio onde esteve internado. Tais cores são as preferidas dos loucos.

Por sua vez, o cão enterrado, pelas características estéticas, corresponde ao de

Picasso, muito embora Dali também tenha produzido uma tela em que aparece um animal

semelhante. O que nos faz optar pelo primeiro? O traço jamais utilizado em pintura

outrora. Dali se inspirou nos modelos neoclássicos para compor sua arte surrealista, já

Pablo Picasso, não. Esse último parece ―rascunhar‖ sua imagem. Além disso, o próprio

enredo do ESC é fragmentado, tal qual a arte cubista. Mesmo assim, se necessitássemos

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traduzir a linguagem do ESC em pintura, certamente, a obra seria cubista, pela sua

fragmentação cenográfica; barroca, pelos contrastes não só pelo jogo de luz e sombra, mas

pela suntuosidade da catástrofe; moderna, pela capacidade de reunir várias tendências

estéticas.

Seguindo a linha de raciocínio da narrativa, é-nos apresentada a tela do inglês John

Constable, O carro de feno (1820-1821). O que a tela de cenário bucólico tem a acrescentar

a este conjunto ―desarmônico‖? À semelhança de Saramago, o inglês produziu uma arte

fora dos padrões acadêmicos. Aliás, o português é contrário ao academicismo que impede a

criação artística. Constable está para a ruptura no tratamento impressionista da cor, sendo

um dos pioneiros a pintar ao ar livre, assim como Saramago o está para a ruptura com a

sintaxe, com a gramática normativa.

Já que o romancista não é adepto do academicismo, seria natural que ele instigasse a

imaginação do leitor para a tela seguinte: a mãe com uma criança no colo.

Presente na cultura judaico-cristã, a mãe de Jesus segurando-o no colo ainda

menino figura na lista das imagens mais parodiadas na pintura. As representações da mãe

de Nosso Senhor ultrapassam as barreiras do tempo e a nacionalidade dos artistas,

aparecendo nas estéticas bizantina, barroca, renascentista, romântica, entre outras.

Escolhemos, portanto, a Madona de Salvador Dali, Madonna Port Lligat (2ª versão

-1950), a título de composição da imagem, muito embora ela não seja descrita no texto.

Em seguida, A Última Ceia (1495-1498), de Da Vinci, que nos prepara mais uma

vez para a morte. A escolha dessas telas é regida pelo signo da morte. Então, passamos a

―reparar‖ que a tela é metalinguística, visto que a vida das personagens e a representação da

vida na arte se irmanam.

A seguir, Vênus é revelada entre as telas A Última Ceia e a cena da batalha.

Na tela, Vênus é a deusa, emergindo das águas em uma concha, empurrada para a

margem pelos ventos do oeste. Símbolo das paixões espirituais, assemelha-se à mesma

representação produzida pelas antigas estátuas de mármore com longos membros e

traços harmoniosos. É surpreendente que o quadro tenha escapado das fogueiras que

consumiram tantas outras obras de Botticelli, já que possui um tema pagão e foi pintado

em um período histórico o qual os artistas se atinham a temas católicos. Ao inserir este

quadro como fragmento da imagem descrita pelo cego, Saramago consegue unir as duas

pontas do sagrado e do profano, regados pela sinergia afetiva das sensações, de

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sentimentos e da sensualidade. Em torno de Vênus existe ―a atração simpática pelo objeto,

a embriaguez, o sorriso, a sedução, o impulso de prazer‖. (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2005, pág. 938).

A última das telas fecha o ciclo vital, trazendo uma batalha que não escolhe faixa

etária, raça, crença ou gênero. Estamos mais uma vez sob o signo da morte, da finitude. E a

imagem faz questão de deixar isso claro, iniciando com a temática e fechando-se nela de

igual modo: apontando na direção da morte.

Na realidade, acreditamos que a tela do ESC é uma alegoria da vida e da arte, da

estética e da concepção artística como um todo. Por meio dela, a memória da modernidade

é forjada numa imagem que abarca sete outras diferentes em todos os sentidos. Tais

diferenças são necessárias para a compreensão do convite ao olhar feito desde a epígrafe de

abertura. Nesse sentido, Saramago empreende um meticuloso trabalho de investigação,

demonstrando conhecimento da tradição pictórica que, à semelhança de um exímio

retratista e pintor de paisagem, vai oferecendo detalhes históricos na tela antropofágica.

No contexto da tela, a representação de cada paisagem é importante, quando

relacionada às ações humanas se levarmos para o que está ocorrendo com os personagens

do enredo. Para discutirmos essa ―humanidade‖, temos um contraponto personificado na

figura de um cão, o das lágrimas, mais humano e autêntico do que os cegos que, mesmo

padecendo do mal branco, são incapazes de se verem inseridos num padrão de

normalidade imposto pelo ―filtro condicionado socialmente‖. (BARROS, 2004, p. 45).

O filtro social seria constituído por uma série de elementos, como a linguagem, a

lógica, os tabus sociais, mas também por uma série de hábitos enraizados, de atitudes

automatizadas e de impulsos que dão origem a práticas culturais diversas.

Esse caráter social corresponde a ―um núcleo da estrutura do caráter que é inerente

à maioria dos membros da mesma cultura, diferentemente do caráter individual que varia

entre as pessoas da mesma cultura‖. (BARROS apud FROMM, 2004, p. 45).

Relacionando esse pensamento com a personagem o cão das lágrimas do romance e

o cão pintado por Picasso, percebemos o porquê de serem tão diferentes, visto que são

personagens autênticas e que preservam um caráter individual que parece faltar aos cegos,

por isso encontramos a humanidade nos cães e não nos homens. Estes últimos, inclusive,

decidiram usam a mesma linguagem: ladrar.

A cena chama a atenção do espectador, pois legitima um pensamento coletivo

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condicionado pelo filtro social sobre a arte, sobre o fazer artístico. A representação dessa

imagem assegura a comunicação entre um passado histórico, dependente das regras

artísticas ditadas pelo consumidor da obra de arte. Esse tipo de discussão sobre o mercado

da arte e o simbólico é recorrente nas obras de Saramago.

Em Manual de Pintura e Caligrafia, o narrador diferencia o retratista do pintor,

mostrando ainda que a arte, muitas vezes, não percebida completamente no presente em

que é feita, já que carrega mensagens subliminares.

Faço retratos para pessoas que estimam suficientemente para os

encomendarem e pendurarem em átrios, escritórios, livingues- rumes ou

salas de conselho. Garanto a duração, não garanto a arte, nem ma

pedem, mesmo que eu pudesse dá-la. Uma semelhança melhorada é ao

mais longe que chegam. E como nisso podemos coincidir, não há

decepção para ninguém. Mas isto que faço não é pintura. Apesar das

insuficiências que me deu para aqui confessar, sempre soube que o

retrato justo não foi nunca o retrato feito. (SARAMAGO, 2001, p. 7).

O fator que motiva a produção de uma linguagem implícita na obra de arte,

dependendo do contexto, é o medo de o autor se denunciar:

Só eu sabia que o quadro já estava feito antes da primeira sessão de posse

e que todo o meu trabalho iria disfarçar o que não poderia ser mostrado.

Quanto aos olhos, esses estavam cegos. Assustados e ridículos estão

sempre o pintor e o modelo diante da tela branca, um porque se teme de

ver-se denunciado, outro porque sabe que nunca será capaz de fazer essa

denúncia [...]. (SARAMAGO, 2001, p. 8).

De certa forma, esse ―desabafo‖ do pintor que exerce a função de retratista, serve

como legenda para as obras reunidas na tela do ESC, pois todas elas sofreram críticas, cada

uma em sua época, sobre o conteúdo veiculado entendido como subversivo, herético, entre

outras concepções pejorativas. Essas telas reunidas numa só constroem e legitimam uma

representação do passado. Expor essas obras ao público possibilita a criação de um

consenso acerca do discurso sobre o passado, através da circulação dos códigos de

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significação dessas telas, no entanto, a tela do ESC aliada à escrita de Saramago nos faz

questionar sobre as tradições em arte, os modelos, as mensagens moralizadoras da pintura

histórica, pensada e criada para entrar em contato com o público. Saramago, de certa

forma, nos conduz à visão de que, mesmo sendo um bem encomendado, a obra de arte é

fruto de um longo processo que envolve observação, pesquisa e estudo.

Retomando a discussão sobre o processo de carnavalização, a partir de agora,

ressaltaremos outra particularidade do enredo, a saber, a ―combinação orgânica do

fantástico livre e do simbolismo e, às vezes, do elemento místico-religioso com o

naturalismo de submundo‖ (BAKHTIN, 1997, p. 115). Isto que o teórico chama de

naturalismo de submundo mostra que as idéias não são temerosas quanto à lama da vida,

ou seja, o homem se depara com o mal universal, a baixeza e a vulgaridade, ocorrendo em

espaços como prisões, covis de ladrões, entre outros. O espaço mais baixo entra em

primeiro plano.

Dessa forma, temos o manicômio como espaço de elevado simbolismo, do

fantástico da aventura e do naturalismo de submundo. É sobre este propício lugar do ESC

que o narrador experimenta suas posições filosóficas e busca mostrar palavras derradeiras,

decisivas diante dos atos humanos, por isso se tornam comuns as cenas de escândalos, os

comportamentos excêntricos dos personagens, os discursos e declarações inoportunos.

Assim, percebemos, através do narrador, as dúvidas, perplexidades, ilusões e decepções das

quais falava Saramago ao escrever sobre um assunto tão universal: o homem diante de

situações-problemas em espaço marginalizado.

Na cena do estupro, não temos apenas corpos violados, temos discursos violados

também. Um exemplo? As vozes femininas que não têm a liberdade para gritar, para

protestar contra o estupro. No manicômio, as pessoas se reconhecem pela voz, contudo às

mulheres esse direito é privado. Assim, elas seguem silenciando a própria identidade, a

sevícia e o sofrimento, adotando a servidão.

O fato de escolherem para espaço de reclusão um manicômio e, posteriormente,

comparar cegos a loucos já nos prepara para o riso acre e flutuante entre as cenas de

tragédia durante todo o romance.

São três camaratas de cada lado, há que ver como é isto cá dentro, uns

vãos de portas tão estreitos que mais parecem gargalos, uns corredores

tão loucos como os outros ocupantes da casa, começam não se sabe

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porquê, acabam não se sabe onde, e não chega a saber-se o que querem.

(SARAMAGO, 1996, p. 112).

Dentro da atmosfera melancólica do manicômio, os cegos são tidos como loucos.

Aliás, são nomeados assim em vários momentos. Chevalier (2005) nos lembra que o poeta,

assim como o iniciado e o inspirado aparecem como loucos, de acordo com algum aspecto

de seu comportamento, que escapa às normas habituais. A sabedoria, neste sentido, é a

loucura encarnada para aqueles que não conhecem outra regra que o bom senso.

O louco está fora dos limites da razão, fora das normas da sociedade.

Segundo o Evangelho, a sabedoria dos homens é loucura aos olhos de

Deus e a sabedoria de Deus, loucura aos olhos dos homens: por detrás

da palavra loucura se esconde a palavra transcendência. (...) O louco,

segundo a simbologia dos números [no Tarô], quer dizer o limite da

palavra, o lado de lá da soma que não é outra coisa senão o vazio, a

presença superada, que se transforma em ausência, o saber último, que se

torna ignorância, disponibilidade: a cultura, aquilo que fica quando tudo

o mais é esquecido, como se diz. O Louco não é o nada, mas o vácuo do

fana dos sufis, uma vez que nenhum haver é mais necessário, tornando-

se a consciência do ser a consciência do mundo, da totalidade humana e

material, da qual ele se desligou para avançar mais à frente. (...) ele

caminha na frente, com uma evidência solar, sobre as terras virgens do

conhecimento, para além da cidade dos homens. (CHEVALIER, 2005,

p. 560).

A experiência do manicômio, neste sentido, mostra-nos seres humanos em seu

primitivismo, experimentando, inclusive, a linguagem em sua forma sonora, imprecisa, com

rupturas, elipses, com sua estrutura linguística fraturada, por sinal, características da música

moderna. Um louco falando da loucura é a própria insanidade enlouquecida. Ser louco é

renunciar ao mundo e procurar algo cujo fim não se conhece.

Por buscar o desconhecido, a todo instante, no romance, toda a situação é

mencionada como aquilo que não tem nome, pois ―começam não se sabe o porquê,

acabam não se sabe onde, e não chega a saber-se o que querem‖. (SARAMAGO, 1996, p.

112).

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Para renunciar ao mundo regrado, o louco passa a controverter a ordem. O mesmo

acontece no ambiente carnavalesco que Bakhtin (1997) apresenta da seguinte forma:

Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma

vida às avessas, um mundo invertido. As leis, proibições e restrições, que

determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é,

extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de

tudo o sistema hierárquico. (BAKHTIN, 1997, p. 123).

Quando armados, os cegos malvados se apropriam da comida e a utilizam para

estabelecer uma nova hierarquia. Esquecem-se de que a cegueira é igual para todos, de que

as relações mútuas do homem com o homem são modificadas e que as mésalliances

carnavalescas são necessárias para reorganizar valores, idéias, fenômenos e coisas. Como

não se adéquam à nova organização que tornam iguais todos os cegos, sofrem

destronamento quando seu líder é assassinado pela mulher do médico, cuja ação homicida

traduz um riso de júbilo contra a supremacia. No carnaval é assim: tudo se destrói, mas

também se renova. Apegados a essa afirmativa/promessa, seguimos esperançosos por uma

reviravolta no enredo.

Diante disto, questionamo-nos: até que ponto o limite da insanidade humana é

capaz de chegar? Vítimas da própria loucura, uns mais que outros, vagando e percebendo a

humanidade através dos outros sentidos que lhes restaram, os personagens, silenciados pela

dor e pelo isolamento, esquecem que ainda existe a palavra.

Enquanto os personagens poupam os verbos, o narrador desata mares sonoros de

palavras, velozmente desenhando o amargor que parece não esgotar diante da vitrine de

pessoas que perderam a si mesmas. Riso cortante, corrosivo e implacável do narrador bem

ao gosto de Bakhtin que vê o riso como eco das vozes de seu tempo, da história de um

grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças.

Pensamos que a loucura em sua forma de sabedoria só pode inspirar temor, o que

faz com que tenhamos piedade dos homens de bom senso. Neste sentido, ter olhos

quando todos perderam pode provocar furor, daí o pedido do médico para que a esposa se

mantivesse calada sobre o fato de ainda ter a capacidade de ver, não só porque os cegos

delas tirariam proveito, mas principalmente porque a sabedoria e, por conseguinte, os olhos

críticos são um perigo numa sociedade que nem se reconhece como tal. Amar a sabedoria é

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assumir a própria loucura. O saber incomoda assim como o louco que profere aparentes

desatinos, subvertendo a ordem, o poder.

Como nem só de loucura e angústia vive o personagem, esperamos a experiência

com o sagrado para dar suporte ao ser ante o peso da morte que ronda o seu destino. No

entanto, ao invés de amenizar a cruel realidade, o sagrado é tocado pelo humor corrosivo-

subversivo de Saramago, na cômica passagem em que a mulher do médico entra numa

igreja, desmaia e, após recobrar os sentidos, pensa que está louca:

[...] naquele mesmo instante pensou que tinha enlouquecido, ou que

desaparecida a vertigem ficara a sofrer de alucinações, não podia ser

verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem pregado na cruz

com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma mulher com

o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados por

uma venda branca, e não eram só este homem e esta mulher que assim

estavam, todas as imagens da igreja tinham olhos vendados, (...) só havia

uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava

arrancados numa bandeja de prata. (SARAMAGO, 1996, p. 301).

Na página inteira, o autor repete 18 vezes a palavra ―tapado‖, causando

musicalidade e certo humor corrosivo, pois a palavra ganha uma nova conotação: além do

sentido de venda, aparece como estupidez. Todos estão ―tapados‖, isto é, nem os santos

estão disponíveis para amenizar a desgraçada experiência da cegueira, posto que, inclusive

eles, também possuem olhos e não vêem, contrariando a máxima de que os representantes

e mediadores de Deus, feitos de gesso, a tudo podem ver, estando disponíveis para a tarefa

da salvação dos seus filhos.

Aqui, se por um lado a cegueira não faz distinção de cor, raça, situação econômica,

assemelha-se a Deus quanto à onipresença, à onipotência e à formação de um rebanho

implacável na terra, composto por cegos. Assim, Saramago faz do riso um mecanismo que

ridiculariza a idéia de salvação, ironiza a clemência, subverte a ordem por meio do discurso,

devassando qualquer possibilidade de esperança, diante do catastrófico mal branco. Ao

leitor, só resta mesmo esperar pela morte dos personagens de olhos iluminadamente

abertos. Saramago conduz os personagens, alimentando o andamento da narrativa com a

musicalidade das palavras numa espécie de dança macabra, como se a morte afinasse sua

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rabeca para começar a grotescamente ceifar vidas em potencial, entre aliterações,

repetições, assonâncias. Ao repetir 18 vezes a palavra ―tapado‖, o narrador paulatinamente

vai fechando as possibilidades de salvação que o cego encontraria ao pedir a São João, São

Pedro, São Sebastião, entre tantos outros. É nessa passagem que a situação grotesca se

mistura ao riso. A morte não só ronda como também dança grotescamente mais selvagem

e febril, cercando os cegos, acelerando seu ritmo à medida que o texto corre, sacudindo e

chacoalhando seus ossos. O seu riso lembra sua universalidade celebrada: não importa o

estatuto de uma pessoa em vida, ela, a morte, unirá a todos.

Fomos avisados ainda no capítulo 7 que ―na terra de cegos quem tem um olho é

rei, Deixa lá o outro, Este não é o mesmo, Aqui nem os zarolhos se salvariam‖

(SARAMAGO, 1996, p. 103). A palavra ―outro‖ se refere ao dito popular inadequado à

situação de calamidade em que se encontravam os cegos, antecipando aos leitores que não

há cura para a cegueira da humanidade. O mar de leite prossegue como num pesadelo

cinematográfico.

Finalmente, quando todos os personagens voltam a enxergar, a única mulher que

atravessou o romance assistindo a tudo sente medo e pensa que sua vez é chegada.

Movida pelo medo, ela baixa os olhos e, ao mirar seu rosto para o céu, percebe que

a cidade ainda estava lá. E assim o romance termina: numa felicidade amarga flutuando

num céu de um azul ilusório. Terminamos a leitura não deixando de ver que há – como em

Machado de Assis – uma gota da baba de Caim em toda essa ―felicidade‖ presente.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2002.

______. Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 1997.

BARROS, José D´Assunção. O Campo da História. Especialidade e abordagens. 4.

ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

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13. DOM QUIXOTE - ENTRE O BARROCO E A MODERNIDADE

Jóis Alberto da Silva

(Mestrando em Ciências Sociais da UFRN)

1 – Nosso Senhor Dom Quixote

Analisar as relações do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, com o Barroco e a

Modernidade é um dos principais objetivos deste artigo. Dom Quixote é considerado, por

muitos críticos literários, o melhor romance já escrito em todos os tempos. Figurando

entre os livros mais traduzidos no mundo, depois da Bíblia, Dom Quixote é um orgulho não

somente para os espanhóis, mas, sobretudo, para toda a humanidade. O El ingenioso hidalgo

don Quijote de la Mancha alcançou sucesso desde o lançamento da primeira parte do livro, em

1605 - a segunda parte foi lançada em 1615, não apenas em decorrência do êxito anterior,

mas também para desmascarar uma fraude: a falsa continuação, ou edição apócrifa do livro,

publicada em 1614 por Alonso Fernández Avellaneda. A partir de então, o livro de

Cervantes conquistou inúmeros leitores em vários países. Cerca de três séculos depois,

entre a segunda metade do século 19 e as três primeiras décadas do século 20, um dos

primeiros escritores da Espanha a destacar a importância da obra-prima de Cervantes para

a formação do caráter nacional espanhol foi o pensador Miguel de Unamuno, nascido em

Bilbao em 1864 e morto em Salamanca em 1936. Para Unamuno, famoso escritor e reitor

da Universidade de Salamanca, com doutorado em Filosofia e Letras pela Universidade de

Madri, essa que é uma das obras-primas da literatura de todos os tempos, ―é a verdadeira

bíblia espanhola, e ‗Nosso Senhor Dom Quixote‘ é um autêntico Cristo‖, conforme citação

de Harold BLOOM (2001).

Crítico literário e professor universitário norte-americano da contemporaneidade,

que tornou-se conhecido no Brasil a partir, principalmente, dos anos 80 do século 20 para

cá, Harold Bloom, na citação, não menciona os livros de Unamuno aos quais se refere. Eu

acrescento aqui, a título de esclarecimento, que possivelmente Bloom se refere à

conferência ―Espanha e os Espanhóis‖ e ao fim do penúltimo capítulo do livro O Sentimento

Trágico da vida, de Miguel de Unamuno. Na conferência, publicada no livro ―Titãs da

Oratória‖, vol. X da antiga coleção ―Os Titãs‖ publicada pela Livraria ―El Ateneo‖,

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UNAMUNO (s/d) comenta: ―(...) comparai o culto dos ingleses a Shakespeare ou dos

alemães a Goethe, com o que acontece entre nós com o bom Cervantes, cuja obra imortal,

a Bíblia Nacional, deveria ser nosso breviário patriótico e matéria de meditação frequente‖

(p. 421). Já em O Sentimento Trágico da Vida, UNAMUNO (1953) faz a seguinte

interpretação do personagem: ―(...) e há uma figura, figura comicamente trágica, figura em

que se vê todo o trágico profundo da comédia humana, a figura de Nosso Senhor D.

Quixote, o Cristo espanhol, em que se cifra e inclui a alma imortal do meu povo‖ (op. cit, p

349). Nesse sentido, segundo a opinião de BLOOM (op. cit, p. 139), Cervantes lhe parece

―o único rival possível de Shakespeare, na literatura de ficção produzida ao longo dos

últimos quatro séculos‖. Ambos, Cervantes e Shakespeare, morreram em 1616. O

dramaturgo inglês era mais moço, já que nasceu em 1564; o pioneiro romancista espanhol

nasceu em 1547. De acordo com Bloom, Shakespeare, evidentemente, leu ‗Dom Quixote‘,

porém é improvável que Cervantes soubesse da existência de Shakespeare.

Pertencente à famosa ―Geração de 98‖, Unamuno é autor de uma vasta obra – que

vai do ensaio, em títulos como Vida de Don Quijote y Sancho (1906), Del Sentimiento Trágico de

la Vida (1912) e La Agonia del Cristianismo (1924) às poesias, como ―El Cristo de Velázques‖

(1920 – considerado o maior poema religioso espanhol desde o século de ouro – passando

pelo teatro e, principalmente, pela novela ou romance, em títulos como Niebla (1914), Abel

Sánchez (1917) e La Tia Tula (1921). Um dos mais destacados sucessores de Unamuno no

cenário cultural da Espanha, da transição do espírito do século 19 para o modernismo do

sec. 20, foi José Ortega y Gasset, autor também de estudos sobre o Dom Quixote, como por

exemplo Meditaciones del Quijote, de 1914. Mais conhecido do público leitor brasileiro, por

títulos como O homem e sua circunstância e La rebelión de las masas (1930), Ortega y Gasset, que

nasceu em Madri em 1883 e morreu na mesma cidade em 1955, tendo se licenciado em

Filosofia e Letras na Universidade de Madri e obtido seu doutorado em 1904, é

considerado ―o máximo filósofo espanhol‖, segundo Julián MARÍAS (2004). Em 1905,

Ortega y Gasset foi para a Alemanha e estudou nas Universidades de Leipzig, Berlim e

Marburgo – nesta última foi discípulo do grande neokantiano Hermann Cohen. Escritor

produtivo – próximo a escritores do movimento literário ultraísmo – e grande estudioso

das principais correntes filosóficas de então, como a fenomenologia de Edmund Husserl,

Ortega posteriormente desenvolveu uma filosofia própria, determinada pela superação de

todo subjetivismo e idealismo, com base no seu sistema de ―metafísica segundo a razão

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vital‖ A partir de 1910 foi catedrático de Metafísica da Universidade de Madri, onde

ministrou cursos até 1936. Segundo MARÍAS,

―A fórmula mais sintética da filosofia de Ortega é a frase das

‗Meditaciones Del Quijote‘, já citada: ‗eu sou eu e minha circunstância‘.

As coisas aparecem interpretadas como circunstância, como o que está

ao redor do eu, referidas, portanto, a ele. Trata-se, portanto, de um

mundo, que não é a soma das coisas, mas o horizonte de totalidade sobre

as coisas e distinto delas; as coisas estão – como eu – no mundo, mas

esse mundo é meu mundo, ou seja, minha circunstância‖ (op. cit, p.

508).

Acerca do texto, que, além do quixotismo, aborda outros temas, ORTEGA Y

GASSET (1953) comenta:

―En las ‗Meditaciones del Quijote‘ intento hacer um estudio del

quijotismo. Pero hay en esta palabra un equívoco. Mi quijotismo no

tiene nada que ver con la mercancia bajo tal nombre ostentada en el

mercado. ‗Don Quijote‘ puede significar dos cosas muy distintas:

‗Don Quijote‘ es um libro y ‗Don Quijote‘ es un personaje de ese

libro. Generalmente, lo que en bueno o en mal sentido se entiende

por ‗quijotismo‘, es el quijotismo del personaje. Estos ensayos, en

cambio, investigan el quijotismo del libro.

La figura de Don Quijote, plantada en medio de la obra como

una antena que recoge todas las alusiones, ha atraído la atención

exclusivamente, en perjuicio del resto de ella, y, en consecuencia, del

personaje mismo. Cierto; con un poco de amor y otro poco de

modéstia – sin ambas cosas no –, podria componerse una parodia

sutil de los ‗Nombres de Cristo‘, aquel lindo libro de simbolización

românica que fué urdiendo Fray Luis com teológica voluptuosidad en

el huerto de la Flecha. Podrian escribirse unos ‗Nombres de Don

Quijote‘. Porque en cierto modo es Don Quijote la parodia triste de

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un cristo más divino y sereno: es él un cristo gótico, macerado en

angustias modernas; un cristo ridículo de nuestro barrio creado por

una imaginación dolorida que perdió su inocencia y su voluntad y

anda buscando otras nuevas (...)‖ (p.326).

Nascido em Alcalá de Henares, Espanha, em 1547, Miguel de Cervantes Saavedra

viveu numa época em que a Idade Moderna estava no início. Poucas décadas antes haviam

ocorrido as grandes viagens marítimas capitaneadas por espanhóis, portugueses, ingleses,

franceses, holandeses, descobridores e colonizadores de novas terras e continentes. Nesse

sentido, o nascente comércio com as colônias européias do Novo Mundo contribuía com a

revolução inicial do capitalismo. Nos campos político e cultural, era uma época em que, na

Europa, começavam a se formar os grandes Estados modernos; a Igreja passava pela

Reforma e pela Contra-Reforma; o Renascimento promovia importantes mudanças nas

artes e se iniciava a Revolução Científica que teve como pioneiros Copérnico, Galileu,

Francis Bacon e Descartes. Nesse contexto, a Espanha, sob o reinado de Carlos V,

imperador do Sacro Império Romano-Germânico, a partir de 1519, estava envolvida em

guerras contra os mouros no norte da África. Após 40 anos de reinado, Carlos V retirou-se

para um mosteiro. Em 1556 começou o reinado de Felipe II que acompanhou boa parte da

vida de Cervantes, até 1598, ano em Cervantes deixou a prisão, depois de ter sido preso em

Sevilha, no ano anterior, após ser condenado a pagar dívida exorbitante.

Filho de um modesto barbeiro-cirurgião e de uma plebéia, Cervantes, quarto filho

dos sete do casal, cresceu sem cuidados e sem conforto, conforme informações de algumas

de suas biografias. Sua educação formal lhe foi ministrada por volta dos vinte anos, pelo

mestre Juan López de Hoyos, um humanista espanhol. Nessa época da juventude,

Cervantes viveu em Valladolid e em Madri. Começou a se interessar pela literatura,

inicialmente escrevendo poesias, depois despertou o interesse pelo teatro, além de ter

mantido contatos com outros estudantes e aventureiros. Aos 22 anos mudou-se para a

Itália, a convite de um nobre cardeal. A Itália era palco, então, do Renascimento. Aos 24

anos, Cervantes juntou-se ao exército espanhol e lutou com coragem contra os turcos na

Batalha de Lepanto, na costa oeste da Grécia. Nessa batalha, em outubro de 1571, embora

as forças cristãs da Santa Liga tenham saído vitoriosas, Cervantes foi ferido e perdeu uma

mão (o que lhe valeu o apelido de ―El manco de Lepanto‖). Após um período de

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recuperação e depois de outra expedição militar em 1575 ao norte da África, foi preso por

corsários turcos em seu regresso à Espanha. Passou cinco anos e meio em cativeiro em

Argel, de onde só foi libertado quando foi pago o resgate, embora antes ele tenha tentado

fugir, por quatro vezes. De volta à Espanha, em 1584, após passar um período em Lisboa,

Miguel de Cervantes teve uma filha, Isabel, do relacionamento com Ana Franca, de quem

se separou e em seguida casou-se com Catalina de Salazar. Trabalhou, a partir de 1587,

como coletor de imposto. Dez anos depois, em 1597, voltou a ser preso, desta vez por

supostas fraudes na arrecadação. Enquanto isso, nas atividades literárias, escreveu para o

teatro e, posteriormente, novelas. Após a publicação do ―Dom Quixote‖, em 1605, veio o

sucesso literário, mas o escritor continuou enfrentando uma série de adversidades

econômicas na vida pessoal. Morreu em Madri, em 1616, às voltas com uma pobreza

franciscana, literalmente, já que três anos antes havia ingressado na Ordem Terceira de São

Francisco.

As Novelas exemplares, editadas em 1613, se destacam dentre as outras obras

literárias de Cervantes, embora a sua obra-prima seja, sem dúvidas, ―Dom Quixote‖, na

qual o protagonista, um fidalgo castelhano, dom Alonso Quijano, enlouquece por excesso

de leituras dos livros de cavalaria e acredita ser ele mesmo um cavaleiro andante, passando

a imitar seus heróis preferidos. Alonso Quijano passa a autodenominar-se com o título de

Don Quijote de la Mancha. Convencido de que necessita dedicar-se a uma dama por cujo

amor deverá lutar, de acordo com preceitos da cavalaria, Dom Quixote escolhe a

camponesa Aldonza Lorenzo, que ele passa a chamar Dulcinea del Toboso e a considerá-la

uma dama de alta nobreza. Assim, montado no cavalo Rocinante, Dom Quixote parte pelas

terras da Mancha, de Aragão e de Catalunha. Depois de viver as mais tragicômicas

aventuras, na companhia do camponês Sancho Pança, a quem havia convencido a

acompanhá-lo, prometendo-lhe fama e poder, seus vizinhos conseguem, finalmente,

recorrendo a várias artimanhas, fazê-lo retornar à casa. Antes de morrer, Dom Quixote

recupera o juízo e toma consciência das loucuras cometidas.

2 – Espírito Barroco e Tempos Modernos

O Dom Quixote situa-se entre o espírito barroco da época e o advento dos tempos

modernos. No século 18, o termo barroco designava tudo o que ia contra as normas

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clássicas e e, por extensão, tudo o que fosse extravagante e raro. Na atualidade,

notadamente a partir do século 20, o vocábulo perdeu sua conotação pejorativa, e o

barroco passou a ser considerado um sistema que se opõe formalmente ao renascentista.

Sobre a questão do Barroco em Cervantes, uma das fontes imprescindíveis no Brasil é a

coleção ―História da Literatura Ocidental‖, de Otto Maria Carpeaux, especificamente o

volume três, que trata do Barroco e do Classicismo, e em seis capítulos aborda o problema

da literatura barroca, poesia e teatro da contra-reforma, pastorais, epopéias, epopéia herói-

cômica e romance picaresco, o barroco protestante, misticismo, moralismo e classicismo, e

o antibarroco. Neste último capítulo, CARPEAUX (1987) afirma inicialmente que ―por

mais poderoso que o Barroco seja como expressão política e social e como expressão

estilística, não lhe falta oposição‖ (op. cit. 734). De acordo com esse crítico, ―(...) Américo

Castro e seus sucessores provaram que López de Hoyos, o mestre de Cervantes foi

erasmiano e que Cervantes deve a ele seu perspectivismo ‗liberal‘ e céptico‖ (op. cit., p. 740).

Mais adiante, Carpeaux é taxativo: ―o erasmismo de Cervantes basta para justificar seu

antibarroquismo‖ (op. cit., p. 741), embora ressalve:

―(...) O único argumento contra a interpretação de Américo

Castro é a última obra de Cervantes, o romance ‗Persiles y

Segismunda‘. É um romance de cavalaria, cheio de episódios

fantásticos passados em ambiente fabuloso. Os críticos antigos

registraram a obra como recidiva lamentável; confessaram-se

incapazes de explicar por que Cervantes deu a esse romance

importância muito grande, considerando-o como o principal dos seus

livros. Neste ponto, todos caíram na confusão entre cervantismo e

quixotismo. Para Américo Castro, a última obra de Cervantes é a

profissão de fé definitiva do seu idealismo platônico; mas não é

possível ignorar as sombras escuras de angústia barroca em ‗Persilles

y Segismunda‘ (...). O fenômeno Cervantes é muito mais complicado

do que se pensava. Com razão se salientaram os elementos platônicos

e renascentistas em sua obra. Mas também com razão Casalduero

destaca os elementos de Barroco idealizado, em Cervantes, apoiando-

se especialmente na demonstração bem sucedida da homogeneidade

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das ‗Novelas Exemplares‘: são todas elas, sem exceção, expressões de

um elevado idealismo moral, estritamente conforme a moral severa e

aristocrática da Contra-Reforma‖ (idem, p. 741-742). .

Mas o Dom Quixote não deve ser visto tão somente por esse viés dicotômico, que

opõe fantasia e realidade, espiritualismo e materialismo, dualidade do ser humano, voltado

para o céu e preso à terra, etc. E mais: Sancho Pança tem um papel tão importante quanto

o Cavaleiro da Triste Figura. Essa é a tese de Hipólito ROMERO FLORES (1969), autor

da ―Biografia de Sancho Panza – Filósofo de la Sensatez‖. No prólogo desse livro, Julian

Marías afirma:

―Hace ya muchos anos, y por mérito principal de Unamuno,

aunque no solo suyo, que se superó e rectificó la imagen habital de

um Sancho ‗opuesto‘ a Don Quijote, como se oponem el realismo y el

idealismo, lo material e lo espiritual, la generosidad y el ‗egoísmo´. Se

comprendió la participación de Sancho em la empresa quijotesca, la

‗quijotizacion´ del escudero – con no poca ‗sanchificacion´ del

Caballero de la Triste Figura –, frente a los que aconsejan ser Quijotes

o bien Sanchos, Ortega advirtió hace más de cuarenta años que

Cervantes vino al mundo para ponernos más allá de esa oposición,

que eso precisamente significa su libro, y que si no fuera así, se

hubiera fatigado en vano escribiéndolo. El personaje principal del

‗Quijote‘ no es Don Quijote: es la pareja, es Don Quijote y Sancho,

personage dual, esencial amistad desnivelada y, por eso, dinámica.

Don Quijote y Sancho no están, em efecto – como suelen los amigos

–, al mismo nível, a igual altura humana: hay entre ellos lo que

podríamos llamar una ‗diferencia de potencial‘, y por eso pasa de uno

a outro una corriente eléctrica y, en ocasiones – cuando se separan un

poco -, violentos, tonificadores chispazos‖ (op. cit, p. 8).

Na conclusão de O Sentimento Trágico da Vida, UNAMUNO (op. cit. p. 355) analisa

acerca da cultura e da Europa da sua época, lançando uma pergunta que permanece atual:

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―quem sabe já hoje, pelo menos em Espanha, que é a Europa?‖. Uma questão que será

retomada por um autor da atualidade, o escritor tcheco Milan Kundera, numa abordagem

igualmente filosófica e literária, a exemplo de Unamuno que, no texto citado, comenta

ainda sobre o Dom Quixote, faz referência ao ensaio de autoria dele, Vida de Dom Quijote y

Sancho e ao ―culto do quixotismo, considerado como religião nacional‖. Hoje, passado

cerca de um século desde a publicação dos ensaios aqui comentados de Unamuno, e,

parafraseando este último, considero ser fato inegável que o quixotismo tornou-se religião

internacional – religião aqui não como mero dogmatismo ou ritual de reverências, mas

como fenômeno cultural e expressão de amor profundo ao que há de melhor na criação

humana. É nessa direção também que Milan KUNDERA (1988), ao abordar, na primeira

parte do livro A Arte do Romance, ―A herança depreciada de Cervantes‖, afirma: ―o

fundador dos Tempos Modernos não é somente Descartes, mas também Cervantes‖ (op.

cit. p. 10). O escritor inicia essa seção fazendo referência às conferências que Edmund

Husserl realizou, em Viena e Praga, em 1935, sobre a crise da humanidade européia. Como

ele enfatiza, o adjetivo ―europeu‖ designava para Husserl a identidade espiritual que se

estende além da Europa geográfica (à América, por exemplo) e que nasceu com a antiga

filosofia grega. Kundera comenta também a análise que Heidegger dá a essa questão,

quando fala em ―o esquecimento do ser‖. Em seguida esse escritor a relaciona com a

evolução do romance, destacando nesse sentido as contribuições pioneiras do Dom Quixote.

De acordo com o autor de A insustentável leveza do ser, ― todos os grandes temas existenciais

que Heidegger analisa em ‗Ser e tempo’, julgando-os abandonados por toda a filosofia

européia anterior, foram desvendados, mostrados, esclarecidos por quatro séculos de

romance (...)‖ (idem, p. 10). Na argumentação inicial, Milan Kundera comenta que ―elevado

outrora por Descartes a ‗senhor e dono da natureza‘, o homem se torna uma simples coisa

para as forças (da técnica, da política, da História), que o ultrapassam, o sobrepassam, o

possuem‖(idem, ibidem, p.10).

Outro grande escritor, Jorge Luis Borges, mais que um leitor erudito, escreveu um

dos textos mais inovadores a respeito da obra imortal de Cervantes: Pierre Menard, Autor do

Quixote, um dos contos do livro Ficções. Cervantes é um dos autores que povoaram o

universo literário de Jorge Luís Borges ao longo da vida, desde a infância desse escritor

argentino – ele conta que um dos primeiros textos que escreveu, quando menino, foi uma

imitação da escrita de Cervantes – até a fase adulta, quando Borges recebeu o Prêmio

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Cervantes, em 1979. Pierre Menard, Autor do Quixote foi publicado na revista Sur, em maio

de 1939, posteriormente incluído no volume que inicialmente se chamou O Jardim dos

Caminhos que se Bifurcam, em 1941, e depois, com a inclusão de novos textos, passou a ter

como título geral Ficções, de 1944. Trata-se de um texto em que BORGES (1999) mistura

ficção e ensaio, escritura e reescritura, numa narrativa de muita originalidade, que tem

desafiado leitores e críticos.

3 – Dom Quixote no Brasil

De acordo com Luís da Câmara CASCUDO (1954), no prefácio para a edição de

Dom Quixote, da José Olympio Editora, os primeiros exemplares do livro chegaram ao

continente americano já em 1605, ou seja, no mesmo ano da publicação da primeira parte,

na Espanha:

―Desde quando é lido no Brasil Dom Quixote, Rodriguez Marin

apurou que a primeira remessa do Dom Quixote para a América foi em

1605, poucas semanas depois de publicar-se a primeira parte do El ingenioso

hidalgo Don Quijote de La Mancha (...). O indispensável mestre Rodriguez

Marin informa que antes de terminar o ano da publicação (1605) e começo

do seguinte, em 1606, habia em las tierras americanas cerca de mil

quinientos ejemplares de ella. Não encontrei registro no Brasil seiscentista

mas não é crível o desconhecimento do Engenhoso Fidalgo para os olhos

coloniais brasileiros‖ (op. cit. p. 22).

A obra chegou ao Brasil na versão original. A primeira tradução para o português

só foi publicada quase dois séculos depois, em 1794. No Brasil, circulam várias traduções,

desde a mais tradicional, que é a dos viscondes de Castilho e Azevedo, publicada pela

primeira vez no país nos anos 1970 – segundo informações de Denise GÓES (2005) – e

relançada pela Nova Cultural, até a edição integral de bolso da LP&M, em dois volumes, e

uma edição luxuosa, de 2004, em capa dura, da Nova Agullar. Existem também várias

edições e adaptações desse clássico para o público infanto-juvenil, em texto traduzido e

adaptado por grandes nomes da literatura brasileira, desde Monteiro Lobato, passando por

Orígenes Lessa, até Ana Maria Machado.

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No livro Dom Quixote – A Letra e os Caminhos, coletânea de ensaios, organizada por

Maria Augusta da Costa VIEIRA ( 2006), esta autora, no texto ―A recepção crítica do

Quixote no Brasil‖, afirma que se fosse o caso de identificar os movimentos da recepção

crítica do ―Quixote‖ no Brasil, seria possível dizer que, de modo geral, oscilou entre a

leitura livre e interpretativa e a que se preocupa com os aspectos estruturais do texto,

destacando o envolvimento da obra com seu universo cultural. Ainda segundo essa autora,

―um marco importante da história do ‗Quixote‘ em terras brasileiras

foi, sem dúvidas, a comemoração realizada em torno do terceiro centenário

da publicação da primeira parte da obra, cuidadosamente preparada pelo

Gabinete Português de Leitura, em 1905, o que constituiu, segundo relato

de José Carlos de Macedo Soares, um verdadeiro acontecimento na vida

literária do Rio de Janeiro‖ (op. cit, p. 343).

Foi nesse evento que o poeta Olavo Bilac realizou a conferência intitulada ―Don

Quixote‖, posteriormente publicada em ―Conferências Literárias‖, em 1906, pela ―Revista

Kósmos‖ do Rio de Janeiro. De acordo com Costa VIEIRA, ―pelo que se tem notícia, esse

foi o primeiro estudo interpretativo da obra de Cervantes publicado no Brasil‖ (idem, p.

344). No tópico ―Fortuna crítica no âmbito brasileiro‖, essa professora afirma que de um

conjunto de estudos produzidos ao longo do século 20, destacam-se alguns ensaios, entre

eles o de José Veríssimo; o do advogado paraense José Pérez, que passou quase toda sua

vida em São Paulo, dedicando-se com empenho aos estudos cervantinos, tendo publicado

A Psicologia Social do Quixote (1936) e Sabedoria do Quixote (1937), dentre outros. A autora

cita ainda textos, sobre o assunto, de autoria dos diplomatas e escritores Vianna Moog e

Osvaldo Orico; de Nelson Omegna e San Tiago Dantas, Josué Montello, Brito Brocca,

Augusto Meyer; até trabalhos de autores mais recentes, como a tese de doutorado de Luiz

Fernando Franklin de Matos, ―O Leitor Quixotesco: o Leitor de Dom Quixote‖, e Luís Costa

Lima, com o ensaio ―A Preocupação Nacional como Forma de Controle: o Caso do Quixote‖,

publicado nos ―Anais do 1 e 2 Simpósios de Literatura Comparada‖ (Belo Horizonte,

Imprensa da UFMG, 1987, vol. 1, p. 239-257).

REFERÊNCIAS

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14. O NEOBARROCO EM “CONTO BARROCO OU UNIDADE

TRIPARTITA”, DE OSMAN LINS

Maria Luíza Assunção Chacon (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)57

Andrey Pereira de Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)58

Introdução

Osman Lins, escritor nascido em Vitória de Santo Antão (PE), no ano de 1924,

publica em 1966, Nove, novena, uma coletânea de nove narrativas. Na obra, é possível

perceber um rompimento com as estruturas convencionais. ―Narrativas‖, o subtítulo do

livro, demonstra o desinteresse, por parte do autor, em classificar os textos como contos.

Mesmo a narrativa ―Conto barroco ou unidade tripartita‖, que, a primeira vista, poderia nos

sugerir tratar-se realmente de um conto devido ao seu título, foge do padrão de conto por

não ter seu conjunto de eventos amarrados pela causalidade, pela lógica de causa e efeito. O

título da narrativa seria assim, irônico, completamente passível de desconfiança.

Para Anatol Rosenfeld, Nove, novena é ―uma das mais importantes obras de ficção que

apareceram na década de 1960‖ (apud LINS, 2003, p. 9). Já para o crítico francês Maurice

Nadeau, é ―um dos sete melhores lançamentos de ficção estrangeira de 1971‖ (apud LINS,

2003, p. 9). Sandra Nitrini (apud LINS, 2003) mostra-nos, ainda, que a obra foi um marco

na transformação do modo de Osman Lins narrar – o autor buscava produzir narrativas

peculiares, nesse quesito, diferentes das mais tradicionais que compunham, por exemplo,

Os gestos, uma de suas primeiras obras, publicada em 1957.

Percebemos, em Nove, novena, a tentativa de equilíbrio em meio à desordem, o

homem desejando unificar-se, ―o homem diante da consciência: da arte, da história, da

política, do cosmos (tempo e espaço)‖ (FRITOLI, 2006, p. 22). Pretendemos, assim, no

presente trabalho, mostrar como essa atmosfera caótica na qual os personagens de Nove,

novena estão inseridos, permite-nos pensar ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ a partir do

57 Graduanda do Curso de Licenciatura em Letras. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, vinculada ao

Projeto ―Quixote intersemiótico: estudos de semiótica comparada‖, sob orientação do Prof. Dr. Andrey

Pereira de Oliveira. 58 Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem

(PPGeL).

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conceito de neobarroco, usando como principal referencial teórico o livro A idade

neobarroca, de Omar Calabrese.

―Conto barroco ou unidade tripartita‖, por meio de um ―ou‖ várias vezes repetido,

estrutura-se numa sucessão de alternativas ou possibilidades narrativas, e, por isso, presta-

se a uma quase-infinidade de leituras. O texto, narrado em primeira pessoa, tem como

narrador-personagem um matador de aluguel encarregado de matar José Gervársio. O

matador conhece uma negra que teve um filho de José Gervásio e pede que ela lhe mostre

sua futura vítima. Como ela demonstra insatisfação pelo fato de o pai do seu filho tê-la

abandonado, concorda em indicar a pessoa procurada. Podemos entender que a negra

indica José Gervásio em três versões e cidades diferentes – Congonhas, Ouro Preto e

Tiradentes. Em Congonhas, no entanto, podemos apreender somente que a negra espera a

chegada de José Gervásio, mas ela não chega realmente a indicá-lo para o matador de

aluguel – essa possibilidade de leitura chega ao fim quando a indicação ainda está prestes a

acontecer. O matador de aluguel passa então a ter um relacionamento afetivo-sexual com a

negra, havendo uma despedida de ambos também em três versões diferentes. O matador é

procurado pelo pai da vítima que se oferece para morrer no lugar do filho, pelo próprio

José Gervásio e pela negra. Temos, então, para o desfecho, três assassinatos possíveis: o da

negra, de um homem até então não citado na narrativa e do pai de José Gervásio que,

somente na segunda na segunda versão em que procurar o matador para morrer no lugar

do filho, tem a sua súplica atendida.

Pretendemos, ao longo deste estudo, observar de que forma o caos e a desordem,

características das obras neobarrocas, inserem-se na linguagem utilizada por Osman Lins.

O homem imerso em dúvidas e dualidades não seria, portanto, característica exclusiva do

homem barroco do século XVII.

Conceitos teóricos

Quando se fala em neobarroco, é de fundamental importância pensá-lo não como o

barroco histórico ou como um mero retorno a esse período – o termo ―neo‖ funcionaria

apenas por analogia, não como um regresso. O neobarroco apresenta traços da

modernidade, tem peculiaridades da contemporaneidade, embora tenha semelhanças com a

estética barroca do século XVII. Como bem nos mostra Omar Calabrese,

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O neobarroco é simplesmente um ar do tempo que alastra a muitos

fenómenos culturais de hoje, em todos os campos do saber, tornando-os

parentes uns dos outros, e que, ao mesmo tempo, os faz diferir de todos os

outros fenómenos de cultura de um passado mais ou menos recente.

(CALABRESE, 1987, p. 10)

A desordem e o caos presentes nos textos considerados neobarrocos rompem com a

tradição do que antes era considerado arte. Com a modernidade, o conteúdo literário

adquire pluridimensionalidade e instabilidade, bem como se utiliza de metáforas e palavras

que antes seriam inaceitáveis dentro de uma poética clássica. O caos, no entanto, é

proposital, o autor preocupa-se cada vez menos em facilitar o ofício do leitor, e se

preocupa mais em romper com o tradicional, seja por meio da pontuação, da linguagem

utilizada ou até mesmo pelo grande grau de abertura da obra.

No neobarroco, as noções de uma estética perfeita deixam de existir, cedendo lugar a

dualidades, à miséria humana, ao incompreensível, ao duvidoso, ao assimétrico. A beleza é

relativizada, e o que antes era considerado idílico e simétrico tende a ficar em segundo

plano. O neobarroco encontra sua ordem na assimetria, no caos. Calabrese mostra-nos,

ainda, que ―qualquer fenómeno seria clássico ou barroco‖ (1987, p. 28), fazendo-nos

realmente ver nas obras modernas subversivas uma forma expressiva predominantemente

barroca.

Para a análise de ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ pretendemos utilizar algumas

dualidades advindas do Barroco e conceitos utilizados por Omar Calabrese, a saber: limite e

excesso, desordem e caos, nó e labirinto, pormenor e fragmento, quase e não-sei-quê. Essas

noções nos ajudam a compreender o alto grau de complexidade presente nas obras do

neobarroco.

As noções de limite e excesso trabalham com o conceito de ―confim‖, sendo uma

abstração que pertence ao espaço interno e externo de uma configuração, articulando esses

dois espaços, determinando abertura ou fechamento. O confim constitui um limite;

quando há excesso, o limite é então ultrapassado e o limiar do sistema fechado sofre

ruptura. Sendo assim, podemos entender que obras simétricas e ditas ―harmônicas‖ ficam

no âmbito do sistema fechado. Já as obras assimétricas e excessivas, a exemplo das

neobarrocas, fazem parte do sistema aberto, pois ultrapassam os limites. Essa

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desobediência aos limites não ocorreria, no entanto, por acaso – o autor moderno tem a

intenção de ser excessivo, utilizando-se da estrutura ou do conteúdo do texto como meio

de alcançar tal objetivo.

As obras que fazem parte do sistema aberto têm mais elasticidade, e por isso o

contorno se torna menos propenso à destruição. O exagero faz parte da cultura

contemporânea, proporcionando múltiplas interpretações dentro de uma única obra.

No que diz respeito à desordem e o caos, percebemos nas obras neobarrocas, de

modo semelhante ao período Barroco, a busca da imprevisibilidade e do ininteligível, as

noções de desordem, assimetria e caos em forte evidência. Omar Calabrese divide, todavia,

a compreensão dessas noções em três posições distintas. A primeira consiste em:

―(...) pensar a ordem como um princípio de regularidade que se sobrepõe a

um instindo originário, ou inversamente, como uma condição que, no

entanto, tende para a dissolução final, absoluta eqüiprobabilidade dos

fenômenos‖. (CALABRESE, 1987, p. 132)

A ordem, nessa primeira posição, seria derivada do caos.

Na segunda posição, há uma ordem que rege qualquer acontecimento. Essa ordem

pode ser chamada de ―irregular‖ caso seja obscura a ponto de não poder ser resgatada pelo

leitor. Para a terceira posição, a irregularidade dependerá de como a obra é explicitada e

interpretada, sendo assim uma posição mais relativista.

Podemos pensar também as obras neobarrocas a partir da dualidade nó e labirinto. O

entrançamento presente nessa dualidade está muito ligado às manifestações de arte do

período Barroco, mas transcendem esse período, surgindo também nas manifestações

artísticas modernas. A complexidade da literatura moderna, por exemplo, não pode ser

automaticamente interpretada como labiríntica – ―O caos do indefinido não torna

forçosamente a figura em um nó.‖ (CALABRESE, 1987, p. 147). O labirinto implica,

necessariamente, na ambiguidade, no movimento, ainda que a existência da ordem, ainda

que causadora de confusão, em si não seja questionada . O leitor traça um itinerário em que

se perde e se reencontra diante do objeto de arte, porque ―não se possuem mapas para se

chegar ao centro do labirinto.‖ (CALABRESE, 1987, p. 147). O labirinto deve ser

―experenciado‖ pelo leitor, pois é imprescindível que ele cumpra seu itinerário dentro do

texto para, além de desfazer os nós, captar a infinidade de sentidos oferecidos na obra ou

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pelo menos alguns deles. Falar do esgotamento da obra labiríntica, em muitos casos, é algo

tão improvável que só poderia ser feito por um leitor altamente idealizado.

Nas obras neobarrocas, podemos perceber a atmosfera enigmática como forma de,

propositalmente, fazer o leitor se debruçar de forma lúdica sobre o texto, percorrendo os

sentidos mais diversos a fim de encontrar o centro do labirinto. No entanto, Affonso

Romano de Sant‘anna nos diz que ―O labirinto não existe apenas como desenho, como

jogo, como enigma. Tem uma conotação existencial‖ (2000, p. 66), uma vez que se tem o

personagem vagante que percorre o labirinto.

O pormenor e o fragmento, por sua vez, estão de tal forma unificados que não é

possível explicar um sem o outro. O pormenor seria o detalhe, podendo aparecer com mais

ou menos frequência nas obras neobarrocas, indo em direção ao excesso de detalhamento

de um texto ou a uma espécie proposital de enxugamento e tolhimento desses detalhes.

Acreditamos que a obscuridade de um texto independe da quantidade de detalhes que nele

são fornecidos. A obscuridade da obra pode ocorrer ao passo em que o leitor tem a

sensação de que falta algum pormenor, mas também ao mesmo tempo em que o texto é

tão detalhado que se torna confuso atribuir funções a cada detalhe.

A fragmentação da obra pode indicar seu inacabamento, sugerindo assim leituras

diversas. ―Diferentemente do detalhe, o fragmento, embora fazendo parte de um inteiro

anterior, não contempla, para ser definido, a sua presença‖ (CALABRESE, 1987, p. 88). O

fragmento não possui um limite nítido, não evidencia o sujeito, o tempo, o espaço,

funciona mais como recorte.

Podemos, ainda, falar em quase e não-sei-quê. É possível pensar uma representação

que almeja a perfeição como sendo mais peculiar ao período clássico, e a busca da quase-

representação como mais uma das características que confirmam a caos e a vaguidade do

barroco e, consequentemente, do que chamamos neobarroco. Diante do indizível, da

incapacidade, e da insuficiência ao definir um objeto, a obra resulta no quase. Nesse

quesito, Calabrese faz três especificações importantes:

Actuação: não se consegue pôr em foco o objeto, ou então, desfoca-se

propositadamente. Espacialização: não se consegue captar o contorno, o

perfil, o confim do objeto por causa da distância errada entre sujeito e

objecto, ou então produz-se uma distância inadequada. Temporalização:

falta a capacidade de fixar a duração do objecto (e em particular o seu

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caráter instantâneo), mas também este sentido pode ser construído.

(CALABRESE, 1987, p. 174)

Análise da narrativa

Em ―Conto barroco ou unidade tripartita‖, elementos que evocam o período

Barroco são constantemente mencionados. A escolha das cidades de Congonhas, Ouro

Preto e Tiradentes, localizadas em Minas Gerais, não é aleatória, uma vez que essas cidades

foram verdadeiros marcos do barroco brasileiro. A caracterização dos ambientes externos

em que os personagens vivem nos permite quase que visualizar as marcas que o barroco

deixou no Brasil.

Elementos como o vestido suntuoso da negra com desenhos a ouro sobre carmesim,

a descrição da ladeira de Congonhas ―cheia de Cristos e apóstolos imóveis (...)‖ (LINS,

2004, p. 120), a imagem recorrente das igrejas, casas com beirais e as ruas sinuosas

comprovam essa atmosfera barroca. No seguinte trecho da obra, vemos também que o

narrador-personagem, além de evidenciar a sinuosidade dos ambientes externos, reflete

sobre eles:

Sentei-me, abri um livro e pus-me a dissertar, solícito, sobre os arabescos,

festões, bordaduras, conchas e volutas que o ilustravam. Declarava-me

inferior a todos os enigmas e me desculpava por ter o dom de penetrá-los.

(LINS, 2004, p. 133)

Podemos citar como exemplos de confusão presentes nas narrativas neobarrocas, o

fato de, no primeiro ―ou‖ do conto, haver um enterro em Ouro Preto que podemos

considerar como sendo de José Gervásio, embora isso não fique claro – em nenhum

momento o narrador nos dá tal informação. Já no segundo ―ou‖, percebemos, no texto,

um espaçamento maior que o habitual para o próximo parágrafo, o que ocorre por diversas

vezes nesse e em outros textos de Osman Lins, a exemplo de ―Retábulo de Santa Joana

Carolina‖, novela presente em Nove, novena. É possível que o afastamento dos trechos

indique além do afastamento físico – seria uma forma de separar dois acontecimentos

muito distintos, funcionando talvez como um distanciamento temporal. A forma que o

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autor se utiliza para separar dois acontecimentos é que, a primeira vista, causa

estranhamento, confusão e surpresa ao leitor. Após o espaçamento, temos:

Nua, no leito, os joelhos redondos para cima, pernas abertas, o braço

esquerdo em repouso ao lado dos quadris, a mão direita presa ao gradil

recurvo da cama, a colcha de chitão com desenho de papoulas, palmas

entrançadas e grandes magnólias ocultando o sexo e subindo à altura do seu

ombro direito, lembra, com o redondo umbigo e os ombros achatados, a

atitude de um anjo que vi não me recordo onde, erguendo um cálice. (LINS,

2004, p. 122)

A descrição que o narrador faz da negra é tão meticulosa que permite ao leitor a

visualização do que é dito, como se o determinado momento da negra fosse um quadro

pintado com palavras. A negra é comparada, ainda, com um anjo que o narrador diz ter

visto não sabe onde, o que além de nos remeter a religiosidade do período Barroco,

reafirma mais uma vez a atmosfera de incerteza e confusão na qual o narrador está

mergulhado.

A narrativa se mostra excessiva, elástica, fazendo parte do sistema aberto –

permitindo várias interpretações possíveis, sendo labiríntica. Quando o próprio Osman

Lins informa que, ―segundo os cálculos de um professor de matemática, ‗Conto barroco ou

unidade tripartita‘ se presta a quatro mil e novecentas e noventa e cinco recriações

possíveis‖ (NITRINI, 2002, p. 18, n. 4), a ideia de que o autor neobarroco tem consciência

dos limites tradicionais que deseja subverter é apenas reafirmada.

Além da riqueza de interpretações proporcionada pela quantidade de leituras a qual a

obra, de forma geral se presta, podemos tratar ainda das várias interpretações que uma

única passagem pode ter, sendo assim alegórica. No segundo ―ou‖, durante o diálogo

empreendido pelo matador de aluguel e a negra sobre o filho que ela teve de José Gervásio

e o respectivo abandono do pai da criança, o matador diz que a negra não prossegue em

sua fala, mas sim que ―volta aos começos, aos meios, ao tortuoso giro de sua memória,

maldizendo homens, um homem, esse Gervásio que ao mesmo tempo é ele e eu, e outros

(...)‖ (LINS, 2004, p. 123). O fato de a negra voltar aos começos, aos meios, aos giros, nos

remete à figura da espiral que não tem começo e nem fim. Já quando o matador fala desse

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―Gervásio que ao mesmo tempo é ele e eu, e outros‖, percebemos a indefinição própria do

barroco e do neobarroco.

O matador risca, ainda, uma espiral no ventre da negra. A espiral está ligada ao

movimento, transitoriedade que se repete, interminável. Ao mesmo tempo, o ventre

feminino está diretamente relacionado à fertilidade e, nesse caso, invariavelmente ao filho

morto da negra. Podemos dizer, assim, que a figura da espiral tem caráter alegórico.

Em Avalovara, Osman Lins utiliza-se do labirinto barroco, o palíndromo inscrito em

um quadrado atravessado por uma espiral, e esse é o centro da narrativa. Características

neobarrocas podem ser, portanto, encontradas de forma recorrente na obra de Lins, tais

como alegorias, instabilidade, movimento, teor enigmático e obscuro. Podemos pensar,

ainda, a espiral com o significado ligado à figura do ouroboros – a serpente egípcia que

morde a própria cauda e transmite a ideia de circularidade, eterno retorno.

A mesma noção de alegoria pode ser pensada no que diz respeito ao número três,

presente no ―tripartita‖ do título e na quantidade de assassinatos possíveis. As conotações

religiosas do conto comprovam uma possível ligação entre o ―tripartita‖ e a santíssima

trindade que, apesar de subdividir-se em três, constitui uma unidade. O texto, apesar da

tripartição, constitui também uma unidade, só que criativa, capaz de reinventar-se. ―Conto

barroco ou unidade tripartita‖ suscita, assim, o conceito de obra inacabada, a dificuldade e

estranhamento do leitor diante de uma infinidade de desdobramentos.

No quarto ―ou‖, o homem fala de uma mulher que podemos pensar ser a negra.

Diferindo da forma de tratamento ―negra‖ que ele usa durante todo o conto, usa agora

―mulher‖. O matador pensa em deixá-la ou em deitar-se novamente com ela, nos fazendo

pensar, embora não possamos assegurar com certeza, que a ―mulher‖ realmente se trata da

―negra‖, já que ele mantinha um relacionamento afetivo-sexual prévio com ela e, em uma

das alternativas de leitura, já havia abandonado-a. A sensação de estranhamento do leitor,

no entanto, não para por aí. O homem mergulha em suas lembranças da infância, lembra

da irmã. A lembrança é esquisitíssima, completamente fantástica – o rato sorve a irmã do

homem; o pavão sangra o rato com uma faca; a irmã casa-se com um cachorro; o cachorro

faz um bolo de terra para que a irmã do homem coma; a irmã aponta um pão na mesa e diz

para o homem que é um menino – esse lhe responde dizendo que não é um menino, mas

um escorpião; o homem diz que nos seus pratos transbordam crianças, jacarés, cavalos,

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búfalos, lacraias, mães e flores, que eles devoram. Revela-se aí, o extravagante, o bizarro, o

imprevisível – características essas que constituem as obras neobarrocas.

Na narrativa, a confusão e o caótico trânsito de acontecimentos não param de

desnortear e sugerir ambiguidade ao leitor. O quinto ―ou‖, de início, provoca confusão –

temos a impressão de que o diálogo entre o homem e o pai da vítima ainda acontece, a mão

que no ―ou‖ anterior sustenta um gesto, agora não se estende. O matador conversa, no

entanto, com o próprio José Gervársio. A confusão proposital a qual o leitor é submetido

confirma a aproximação existente entre pai e filho: de início, os dois fundem-se,

confundem-se. A vítima coloca, ainda, que o seu verdadeiro nome não é José Gervásio, ao

que o matador complementa com ―Sei. É Artur.‖ (LINS, 2004, p. 128), levantando

inúmeras questões ao leitor. Entre elas: por que teria, a vítima, um nome falso? A

informação de que o nome da vítima não é José Gervársio ocorre sem precedentes, de

forma totalmente inusitada na narrativa. A vítima, no entanto, não confirma se o seu real

nome é mesmo Artur. Diante dessas estranhezas, Lins confere certo caráter onírico ao

texto: a imprecisão e a esquisitice trazem a sensação de sonho ao leitor.

A evocação feita por José Gervársio, quando crucificado, no momento em que seus

pais o abandonam levando o dinheiro que estava no bisaco, nos remete diretamente a Jesus

Cristo. José Gervársio, que tem cabelo à nazarena – ou seja, cabelos longos? – gritava:

―Meus pais, meus pais, por que vocês me desampararam?‖ (LINS, 2004, p. 129), mantendo

ligação direta com ―Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?‖ (Sal. 22), proferido

por Jesus Cristo, em sofrimento, no momento de sua crucificação. José Gervásio se coloca,

ainda, como homem que perdoa tudo, nos lembrando a figura do Jesus Cristo. No entanto,

não fica somente no âmbito do sagrado o caráter da religiosidade na narrativa – após José

Gervársio dizer que andava a pé quando era explorado pelos seus pais, enquanto eles se

locomoviam de trem ou de ônibus, mostra-se vingativo ao inverter os papeis: depois de

crescido, anda de carro enquanto os pais andam a pé. Podemos perceber aí, o contraponto

entre o sagrado e o profano, pois ao mesmo tempo em que José Gervásio se assemelha

fortemente a Jesus, mostra-se vingativo como um homem qualquer. Já a figura do pai que

se oferece para morrer em lugar do filho José Gervársio, como nos mostra José Paulo Paes,

―inverte o episódio de Gólgota, e o abandono do Filho pelo Pai, numa palinódia onde

ressoam ecos paródicos da teologia do ‗Deus está morto‘‖ (2004, p. 207, n. 5).

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Podemos, portanto, classificar ―Conto barroco ou unidade tripartita‖ como uma obra

neobarroca por encontrarmos nela um alto grau de instabilidade, ambiguidade,

entrançamento, dúvidas, incertezas, detalhes e dualidades. A obra é rica em detalhes, mas se

mostra caótica e propositalmente desordenada, tendo uma confusa ordem dos atos, sendo

difícil, por exemplo, resumi-la. Essa dificuldade e confusão provocada pela obra são

peculiares às obras modernas que, muitas vezes, são herméticas e exigem extrema

competência do leitor.

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http://www.destiempos.com/n14/hansen2.pdf (acesso em 17 de setembro de 2010)

http://www.google.com.br/#hl=ptBR&q=FRITOLI%2C+2006+o+homem+diante+da

+consci%C3%AAncia&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=&fp=f3b53f9ebc94cbd8 (acesso

em 18 de setembro de 2010)

http://www.revistaletras.ufpr.br/edicao/69/LuizFritoli-

OsMisteriosDaPinturaEscritaNaNarrativaDeOsmanLins.pdf

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15. UMA LEITURA ALEGÓRICA DO CONTO “ELES”, DA OBRA O OVO

APUNHALADO, DE CAIO FERNANDO ABREU

Antonio Peterson Nogueira do Vale

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

―Apesar de você amanhã há de ser outro dia

Você vai ter que ver a manhã renascer a esbanjar poesia

Como vai se explicar, vendo o céu clarear de repente, impunemente?

Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?‖

(Chico Buarque, Apesar de você, 1972)

01. Panorama de uma época

A obra de Caio Fernando Abreu está repleta de fatos ocorridos durante as décadas de

1960 e 1970, período este em que o Brasil sofreu com as repressões ditatoriais dos

governos militares; dentre elas, o mais repressivo de todos os atos, o AI-5, que cassava

deliberada e exaustivamente os direitos políticos dos brasileiros. Muitos outros artistas,

ligados direta e/ou indiretamente com o movimento considerado subversivo, tiveram seus

direitos limitados e uma grande parcela deles foi mantida exilada em outros países.

Histórica e oficialmente, a ditadura no Brasil prevaleceu até o ano de 1985, embora

no ano anterior houvesse acontecido o movimento ―Diretas Já‖, ato político que mobilizou

milhões de brasileiros com a finalidade de tornar democrática a política vigente no país.

Foi em 1985, no entanto, que houve a eleição para presidente no país, em que

Tancredo Neves – que não chegaria a assumir a presidência – venceu as eleições, na época,

contra Paulo Maluf. O vice de Tancredo, José Sarney, assume a presidência.

Em 1988 é aprovada a nova Constituição do Brasil, que apagaria os resquícios

políticos da ditadura militar, ao estabelecer novos princípios democráticos na nação.

Nesse ínterim, o autor gaúcho Caio Fernando Abreu escreve, registrando a sua época,

desenvolvendo habilidades narrativas, usando a situação política enquanto literatura,

inserindo o seu ponto de vista na história do país.

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Dentre os seus livros, Ovo apunhalado se encontra num período marcante da ditadura,

pois, conforme o próprio autor, os contos que compõem a obra ―foram escritos entre 1969

e 1973‖, num tempo de ―lindos sonhos dourados e negra repressão‖. (ABREU, 2008, p.

11).

Outros livros de Caio também giram nessa época repressiva, contendo, de igual

forma, um cunho massivo contra a ideologia da ditadura, consoante as suas palavras na

apresentação do romance ―Limite Branco‖, publicado em 1970: ―é um romance de e sobre

um adolescente no final dos anos 60. Naquela transição, no Brasil, entre o golpe militar e o

fatal AI-5, um pouco antes do psicodelismo e do sonho hippie mudarem os

comportamentos.‖ (ABREU, 2007, p. 15)

Dado esse contexto, e vertendo sobre uma análise minuciosa com ênfase para o

barroco, e mais detidamente para os aspectos da alegoria, vemos no conto ―Eles‖, através

das imagens alegóricas construídas neste trabalho, um substancial poder repressivo ao

governo de então.

É importante acentuar que a noção de leitura alegórica aqui intencionada vai ao

encontro do que propõe Walter Benjamin, ao se referir à imagem enquanto fragmento, e

João Adolfo Hansen e Olivier Reboul, entendendo a alegoria como figura retórica de

significação.

Nossa proposição é, então, empreender uma conjectura interpretativa para o conto,

analisando alguns trechos e não os concluindo hermeticamente, pois, justamente por se

tratar de texto literário, acreditamos haver outras leituras cujas interpretações e métodos

podem ser eleitos para estar em harmonia com o escopo de leitura a que cada um se

propõe.

2. “Eles”, de Caio Fernando Abreu

Do conto ―Eles‖, Caio Fernando Abreu diz não lembrar absolutamente nada. ―Nem

sequer precisar de onde exatamente brotaram – de que região submersa da cabeça, de que

fugidia impressão do real. Mistério.‖ (ABREU, 2008, p. 12).

Pode ser uma das formas de tentar apagar o passado para que não se desvende a

fugidia impressão do real, o mistério. Esse se enquadra, na literatura, dentro de um

panorama que vai do fantasioso imaginário ao maravilhoso encantado, dentro de uma

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perspectiva fantástica. Rodrigues (1988, p. 9) clarifica a palavra com as bases etimológicas

explicando que o fantástico se refere ―ao que é criado pela imaginação, o que não existe na

realidade, o imaginário, o fabuloso‖. A obra de Caio, como um todo, está longe de se

enquadrar em características embasadas no irreal, embora exista em sua antologia um livro

infantil – o que já se explica – com essas ditas características, As frangas.

No entanto, o leitor desatento que encetar a leitura do conto ―Eles‖ pode ter uma

compreensão inocente acerca da narrativa, que gira em torno de alguns elementos

estruturais, que têm, supostamente, aspectos fantasiosos. Um narrador o qual, conforme ele

próprio diz, não sabe nada sobre si mesmo, como se observa neste trecho: ―Eu não tenho

importância, não procure saber nada sobre mim porque ninguém saberá dizer, nem eu

próprio, estou apenas contando esta história que não é minha e a que assisti como todos os

outros habitantes da vila [...]‖ (ABREU, 2008; p. 61). A escolha por um narrador que não

sabe quem é traz à tona a necessidade do anonimato para aqueles que se insurgiam contra o

governo. Um menino – assim não identificado, sem nome – mais uma vez o autor reforça

o recurso de deixar anônimas as personagens – mas que propaga importante papel no

conto, devido a sua coragem, pois, a partir dela é que se tem conhecimento da história

relatada, conforme assinala o narrador:

Mas como eu ia dizendo, se aquele menino não tivesse ido lá ninguém

saberia jamais, porque não creio que um outro menino ou qualquer outra

pessoa se atrevesse a ir, inventavam coisas, cobras, plantas, animais

estranhos, medos – e não se atreviam. Aquele menino, não. (ABREU, 2008,

p. 61);

Há, ainda, três ―seres estranhos‖ que, dentro da história, habitam um bosque, onde

fatos estranhos acontecem. Esses fatos são a mola propulsora para encetar a história. O

menino, que tem coragem de ir conhecer os tais seres, tenta descrevê-los sob os delírios de

uma febre, não sabendo dizer se eram ―homens ou mulheres‖, mas sabia que ―eram altos,

claros, tinham grandes olhos azuis e gestos compassados, cabelos compridos até os

ombros, movimentavam-se mansos dentro de vestes brancas com amuletos sobre o peito.

Falavam uma língua estranha e sorriam [...].‖ (ABREU, 2008, p. 63).

Um impasse na narrativa é resolvido quando o narrador vai ao bosque com o

menino, e aquele vê mudanças neste, enquanto divaga e aconselha:

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Quando entramos no bosque, senti que ele [o menino] se modificava e seu

olhar ganhava aquela espécie de luz de que falei a você. Foi então que eu o

senti maior do que eu – maior porque sendo apenas um menino se atrevera

a penetrar no que me assustava, embora soubesse do irreversível do que o

menino vira. Porque você não pode voltar atrás no que vê. Você pode se

recusar a ver, o tempo que quiser: até o fim de sua maldita vida, você pode

recusar, sem necessidade de rever seus mitos ou movimentar-se de seu

lugarzinho confortável. Mas a partir do momento em que você vê, mesmo

involuntariamente, você está perdido: as coisas não voltarão a ser mais as

mesmas e você próprio já não será o mesmo. O que vem depois, não se

sabe. (ABREU, 2008, p. 64)

Do narrador – a quem devemos o registro da história – concluímos também o seu

status de detetive ao investigar, ir em busca dos acontecimentos estranhos e presenciar os

fatos nos quais o menino é envolvido. Esse, depois da ida ao bosque, volta para a vila, onde

incendeia a casa dos líderes locais, transformando então a cidade num verdadeiro

pandemônio: casas incendiadas, população revolta com os seres estranhos, que são

massacrados e queimados vivos, enquanto lançavam uma essência alucinógena – da qual o

narrador não era inebriado. Uma marca da insurreição deliberada contra o poder local,

contra os desmandos. O menino marca, nesse trecho, o poder que a população tem e

demonstra, quando não se cala diante da violência que a ditadura tem como legítima

patente.

Sobre o menino, o narrador o viu pela última vez e constatou que aquele não era mais

o mesmo: ―Não era mais aquele menino. Era um deles, com os mesmos olhos azuis em luz,

sem sexo, lento e decidido.‖ (ABREU, 2008, p. 68). Ser um deles, para um entendimento

alegórico, é ratificar o poder unido do povo contra o autoritarismo perverso que o regime

governamental pós-64 denotava.

O conto é finalizado com as impressões do narrador, tal qual ocorre durante toda a

história relatada, com o seu toque de cautela para o ouvinte/leitor: ―A história é essa, talvez

eu tenha falado mais do que devia, mas tenho uma certeza dura de que nem você nem os

outros todos perdem por esperar. Cuidado: eles estão aqui: à nossa volta: entre nós: ao seu

lado: dentro de você.‖ (ABREU, 2008, p. 70).

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3. Sob uma perspectiva alegórica

Empreender a leitura do conto ―Eles‖ – cuja demarcação cronológica insere a sua

feitura no pós-modernismo – e direcionar os objetivos para detectar noções do barroco,

como a alegoria, é fomentar a ideia de que o Barroco, conforme afirma Deleuze (1991, p.

13), é o traço que vai ao infinito. A fim de ressignificar essa proposição, aduz: ―O barroco

remete não a uma essência, mas sobretudo a uma função operatória, a um traço. Não pára

de fazer dobras.‖ (DELEUZE, 1991, p. 13)

Essa ideia de dobra está intimamente ligada à subjetividade, enquanto evidencia as

inúmeras formas de relação consigo e com o mundo. Tal como experimentou o escritor

gaúcho Caio Fernando Abreu ao registrar, sob aspectos que remetem ao fantástico, uma

narrativa que estabelece o seu convívio com as relações de poder e de estar no mundo.

Todorov (2008, p. 16) expõe sobre o fantástico, ao remetê-lo à ―vacilação experimentada

por um ser que não conhece mais do que as leis naturais, frente a um acontecimento

aparentemente sobrenatural.‖

Na narrativa ―Eles‖, a partir de uma leitura alegórica, percebem-se os meandros da

época da ditadura militar, com suas intrigas carregadas de subordinação e repressão. O

conto em análise restaura esse clima de tensão, de medo e de revolta.

Paramentada sob as afirmações de Benjamin, a alegoria se apresenta enquanto

imagem fragmentada. ―Sua beleza simbólica evapora, quando tocada pelo clarão do saber

divino. O falso brilho da totalidade se extingue.‖ (BENJAMIN, 1984, p. 198) A

multiplicidade da significação respaldada pela alegoria faz perceber os traços que desenham

essa característica do barroco na obra de Caio. Assim, em ―Eles‖, a visão fragmentada das

lembranças do narrador deixa no vácuo a percepção do que poderia ter acontecido de fato.

O narrador se encontra sob a égide da investigação, colaborando para que a visão seja

parcial, contando apenas aquilo que quer narrar. Ora ele adormece, deixando sempre preso

ao tempo alguns detalhes da história, ora observa as coisas a sua volta, registrando aquilo a

que ele assistiu.

Para outro crítico, Olivier Reboul, a alegoria pode ser vista como elemento didático.

Segundo ele: ―A alegoria é uma descrição ou uma narrativa que enuncia realidades

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conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma verdade abstrata. Ela é a

estrutura do provérbio, da fábula, do romance de tese, da parábola.‖ (1998, p. 130)

Aqui, os nossos esforços são visitados a partir da corroboração ideológica que cerca a

nossa leitura, pois, desde o título do livro, O ovo apunhalado, há o início de uma leitura que

lança uma ideia para anunciar outra. Nesse entendimento, vemos uma tensão que envolve

os elementos ovo e apunhalado. Sob o primeiro elemento, Campelo discorre:

O objeto ovo terá para todos os homens de qualquer cultura um acréscimo

no entendimento que acarreta: é a lembrança de vida, de transformação, de

fecundação, de dualidade (na representação fora/dentro, fechado/aberto,

simplicidade/complexidade, amarelo/branco, duro/mole, vida/não-vida,

por exemplo), de gênese, de nascimento, de totalidade, de múltiplas

possibilidades, de ciclo, de abrigo ou útero, de prosperidade. (CAMPELO,

1996, p. 23)

Ainda Campelo, ao retomar o sentido universal do ovo, clarifica:

Um ovo possui desde o início todo o material essencial para desenvolver

suas potencialidades, sendo uma complexidade químico-biológica dentro de

uma simplicidade aparente. É um texto universal, comum a todos, um texto

um tanto óbvio, quase passando despercebido ante a complexidade e

multiplicidade sígnica em que vivemos. [...] O ovo guarda a qualidade do

maravilhoso e por isso permitirá sempre uma nova leitura que iluminará a

vida. (CAMPELO, 1996, p. 24-5)

Assim, inferimos que o adjetivo apunhalado margeia a significação corriqueira da era

ditatorial, rompendo a obviedade dos direitos e a significação da vida, sentido recuperado

pela palavra ovo. O sentido de traição, da perda da inocência, do aborto, de subversão, do

expugnado ante as atitudes ditatoriais que cercavam o país, fica óbvio diante dessa análise.

Finalmente, no cabo da tríade que aqui fomenta a alegoria, Hansen (2006, p. 07)

apresenta: ―A alegoria (grego allós = outro; agourein = falar) diz b para significar a. A retórica

antiga assim a constitui, teorizando-a como modalidade da elocução, isto é, como ornatus ou

ornamento do discurso.‖

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Nesse sentido, nos apropriamos em dizer que o menino – elemento central da

narrativa – ao ir ao bosque, ao ser identificado como aquele que ―trazia na testa a marca

inconfundível‖ (ABREU, 2008, p. 61), ao ter coragem e enfrentar – no sentido de

experimentar o desconhecido – os seres estranhos dos bosques, transmuta a perda da

inocência, e mesmo quando volta febril para o colo da mãe – a segurança – já não era mais

o mesmo.

O menino não luta contra os seres que conhece no bosque. Não há embate entre

eles. Lepargneur (apud Leal, 2002, p. 69) aduz: ―O embate com o que não se conhece, com

o que não se consegue apreender do mundo, ainda legitimaria um confronto do indivíduo

com uma vontade superior, com um determinismo vago e impreciso.‖ (LEAL, 1989, p. 69).

Assim, percebe-se que o menino aceita o desconhecido, está ―do lado‖ deles, não contra si

mesmo, ele se insurge contra os poderes locais, tais quais fizeram os jovens durante a

ditadura, rompendo com a máscara do anonimato, quebrando a barreira do status que se

lhe evidenciava uma resignação mórbida. Agora era ―o‖ menino, não mais ―um‖ qualquer.

A revolta proporcionou um novo status quo, uma nova situação, na qual, depois de

experimentada – conforme repetidas vezes alertou o narrador – jamais voltaria à situação

primeira. O ovo fora apunhalado. O menino quebra o sentido da vida da população e o

narrador observa:

Os habitantes da vila levaram muitos dias para voltarem ao normal [...]

Agora os dias não são mais de pesca, sono, sesta, cadeiras sem procuras na

frente das casas. Todos buscam com olhos desvairados luzes estranhas no

céu, alfa, beta, gama, delta, sinas, signos, cumprem esquisitos rituais de

devoção e perdição. (ABREU, 2008, p. 68-9)

O trecho analisado encontra confluência com as ideias de Benjamin, para o qual a

ideia fragmentária está na esfera da alegoria, respaldando o teor barroco na ―exposição

barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas

nos episódios do declínio.‖ (BENJAMIN, 1984, p. 188). A destruição dos costumes da vila,

da própria vila, do sumiço do menino podem ser interpretados como alegoria a que a

cidade foi reduzida.

A alegoria de Hansen, a partir dos processos retóricos, nos ajuda a entender o conto

em análise como uma estrutura receptiva dos diversos olhares que o entendimento barroco

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pode perpassar, conforme afirma: ―Como procedimento retórico, a alegoria subentende o

projeto de afirmar uma presença in absentia – coisa que se exacerba, por exemplo, em artes

dos séculos XVI e XVII hoje classificadas como ‗maneirismo‘ e ‗barroco‘.‖ (HANSEN,

2006, p. 33, grifo do autor). E continua respaldando o teor fragmentário da narrativa lida:

―Mais fortemente, a alegoria serve para demonstrar (ad demonstrandum), pois evidencia uma

ubiqüidade do significado ausente, que se vai presentificando nas ‗partes‘ e no seu

encadeamento no enunciado.‖ (HANSEN, 2006, p. 33, grifo do autor).

Os seres, alegoricamente iguais à ditadura militar, deixaram três postulados:

―importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a

salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias.‖

(ABREU, 2008, p. 60). A luz é esperança, uma nova saída para a população amedrontada

pelos desmandos dos militares. As cinzas remetem à morte – no contexto do conto, uma

morte que não se resguarda diante da covardia da espera pelo tempo bom. A salvação, sob

o pretexto da ditadura, seria aliar-se àqueles que se insurgem contra o poder. Conforme

percurso feito, muitas vezes, por incontáveis e desaparecidas pessoas que afrontaram o

regime ditatorial.

Isso posto, entendemos que a obra em análise de Caio Fernando Abreu está ligada ao

fragmentário da ditadura militar, repleta de facetas que a população de então sofria e da

situação que resultava nas ações dos ditos subversivos contra os militares.

4 – Últimas palavras

O conto em análise clarifica a escritura de Caio Fernando Abreu enquanto

instrumento para delinear o momento histórico em que o autor gaúcho vivenciou. O conto

―Eles‖ é uma base para as interpretações das marcas que o Brasil ganhou após 64.

A alegoria nos serviu para entendermos o texto como aporte para as inúmeras

imagens construídas pelo autor ao denunciar o autoritarismo do poder que a ditadura

exercia no Brasil, nos anos compreendidos entre 1964 a 1985. Nesse sentido, foram

analisadas algumas características que, sob um entendimento mais profícuo, por serem mais

bem delineadas, ganham nova força interpretativa.

É interessante também perceber que os contos do livro em questão, O ovo apunhalado,

foram elencados sob três partes distintas, com nomes que derivam da Química e Física:

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Alfa, Beta e Gama. Líria Alves, em poucas palavras, nos explica o fator radiação: ―A

radioatividade é definida como a capacidade que alguns elementos fisicamente instáveis

possuem de emitir energia sob forma de partículas ou radiação eletromagnética.‖59

Ao perceber o estudo de radiações na Química, entende-se que esses três elementos

nomeiam raios que, segundo sua potência, respectivamente, têm um poder menos

penetrante, razoavelemente penetrante e muito penetrante. Sendo que as partículas Beta,

segundo Alves ―são mais penetrantes e menos energéticas que as partículas alfa‖.60

O conto ―Eles‖ está inserido na parte Beta, o que nos leva a pensar que o autor

sugeriu uma alegoria quanto a interpretação dos poderes abusivos da ditadura, mas poderes

de penetração beta indicaria o insucesso do autoritarismo: emissão alta, mas não tão

penetrante quanto a vontade popular, resultando nas inúmeras revoltas nas quais a

população se insurgiu contra o governo de então.

―Eles‖ sugere a ideia de pessoas das quais não se pode falar o nome, como era feito

na ditadura, que exilou políticos, artistas, estudantes, pessoas comuns e quaisquer outras

que demonstrassem ser contrário ao regime vigente. O pronome de terceira pessoa plural

―eles‖, no conto, remete aos seres estranhos, os que triunfam sobre o ―mal estabelecido‖,

mesmo pagando com as próprias vidas, o mesmo que acontecera durante os governos

militaristas. O conto nos mostra o menino que foi exilado de sua infância, sem saber ao

certo quem eram as pessoas que o afastaram dessa sua fase, à qual jamais voltaria com a

visão pueril e inocente que tinha antes, fomentando assim outra visão: a adulta, cheia de

riscos a serem assumidos. O menino já é um menino de grandes responsabilidades. Essa

reflexão de estar no mundo nos é dada pelo narrador, que nos mostra a sua incompletude,

mas ratifica a inquietude de um momento marcadamente repressor em nosso país.

Cumpre ratificar aqui que as leituras feitas adotaram um viés alegórico para o conto

em referência. Assim, entende-se que o apossamento das metáforas, da complexidade, do

estranhamento, por parte do narrador, traz à superfície a lembrança de um sistema injusto,

no qual cassava direitos e desumanizava os indivíduos, ressaltando ainda que esses

indivíduos, enquanto participantes de uma sociedade acuada pelo medo, temiam não

encontrar na união a vontade de sair do ovo apunhalado, desmascarar os ―eles‖,

59 O artigo se encontra, na íntegra, no artigo ―Radioatividade‖ no site:

http://www.brasilescola.com/quimica/radioatividade.htm 60 O artigo ―Raios Alfa Beta Gama‖, de Alves se encontra, na íntegra, no site:

http://www.brasilescola.com/quimica/raios-alfa-beta-gama.htm

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deturpadores da ideologia que deveria ser predominante, segundo a vontade popular. As

estratégias estruturais de Caio rompem com o convencionalismo adotado e mostra a

originalidade de fazer pensar o leitor.

Essa ligação feita entre o conto narrado e o ponto de vista depreendido sobre a

contextualização histórico-social é um dos enfoques críticos possíveis diante do texto de

Caio Fernando Abreu. A intenção dessa leitura é provocar uma reflexão sobre o

autoritarismo e a dimensão do processo de criação literária. Ler o conto do autor gaúcho

em análise é, sobretudo, empreender no processo criativo uma crítica relevante ao regime

político adotado durante o período da ditadura militar, sem fazer esquecer as tormentas e

agonias revisitadas nessas páginas da história do país, marcada pela dor e supressão de

direitos do brasileiro.

Referências Bibliográficas

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Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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Martins Fontes, 1998.

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Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Sítios visitados:

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Alves, Líria. Raios Alfa Beta Gama. http://www.brasilescola.com/quimica/raios-alfa-

beta-gama.htm

BUARQUE, Chico. Apesar de você. Letras. Disponível em:

http://letras.terra.com.br/chico-buarque/7582/

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16. O BARROQUISMO NA SIMBOLOGIA DOS ELEMENTOS DA

NATUREZA: AR, FOGO, ÁGUA E TERRA, EM LOS PERROS DEL PARAÍSO,

DE ABEL POSSE

Regina Simon da Silva (UFRN)

Introdução

O romance Los perros del Paraíso situa seu enredo em um período histórico que

compreende os anos de 1461 a 1500 – de fins da Idade Média, ao ano em que Cristóvão

Colombo é detido por Francisco de Bobadilla e deportado à Espanha – portanto, um

tempo histórico do passado. Porém, o que o leitor americano tem de ler nesse romance não

é o passado que ele encerra e sim a raiz do seu presente.

Isso quer dizer que o autor ao se referir a um tempo histórico do passado o faz à

luz do seu tempo. Abel Posse ao ―romancear‖ o descobrimento da América nos aproxima

daquele episódio sem que nos afastemos ou nos esqueçamos do tempo real em que nos

encontramos.

O ano de 1492 é uma data que representa não só a ―descoberta da América como

também a ―re-descoberta‖ da Europa. O feito de Colombo desestruturou as convenções

formadas sobre o mundo, tanto no campo científico, como no religioso e no social. Uma

nova ordem foi gerada. Esta data marca o instante em que se põem frente a frente dois

mundos que se ignoravam e que a partir de então passariam a ―conviver‖ em um mesmo

tempo e espaço. Para o mundo ocidental os acontecimentos históricos anteriores a este

episódio ocorriam entre povos europeus, culturas conhecidas e reveladas, portanto,

conceitos pré-estabelecidos. A necessidade de uma nova interpretação surgiu com

Colombo. Nesse momento, segundo Dussel, entramos na Modernidade, já que em sua

opinião:

[…] el fenómeno que lanzó a Europa a auto-interpretarse de manera

completamente nueva fue, exactamente, la expansión que se produjo en

1492, donde un ‗Nuevo Mundo‘ –para Europa fue ‗Nuevo‘– vino a cambiar

cotidiana y geopoliticamente la vida y el pensamiento de todos los europeos –y,

por supuesto, la vida y el pensamiento de todos los pueblos ‗impactados‘ en

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la ‗periferia‘ por tal evento–. Europa, sin notarlo casi, se transformó en el

‗centro‘ de la recién nacida empíricamente Historia Mundial. […] Pienso que este

‗hecho‘, el 1492 inicia exactamente esta ‗centralidad‘ europea y es el

fundamento de lo que hoy se denomina ‗Modernidad‘ (DUSSEL, 1992, p. 20).

Esta perspectiva pode ser identificada no romance de Posse, que estende o tempo

do relato da narrativa à contemporaneidade da escrita da obra, ou seja, ao século XX,

promovendo uma continuidade do processo histórico, onde se desenvolve o paradoxo do

mundo moderno descrito por Berman como ―a união da desunião‖ (In: CASULLO, 1993,

p. 67). Assim, os conflitos de ontem se repetem no presente ―globalizado‖ que integra e

que exclui.

Em Los perros del Paraíso, o narrador heterodiegético, desenvolve a ficção de forma

fragmentada, representando o redemoinho em que o homem moderno está inserido, como

também a memória destruída do povo indígena, incumbindo o leitor da reconstrução da

narrativa. Os jogos anacrônicos, tão frequentes na obra, dificultam a sua compreensão. O

narrador elimina os elementos tradicionais de coesão do texto, mas as datas dos

acontecimentos – históricos ou não – e as descrições do narrador direcionam o leitor para

frente (prolepse) ou para trás (analepse). Assim, identificamos três momentos e espaços

diferentes anteriores ao descobrimento: a Espanha e a adolescência de Isabel e Fernando; a

Itália e a adolescência de Cristóvão Colombo; a América e o encontro hipotético dos

líderes das civilizações asteca e inca. São três relatos que se desenvolvem simultaneamente,

sem que um tenha conhecimento da existência do outro (exceto o narrador e os leitores),

mas que se unirão em um momento único da História: o Descobrimento. O elo de união

entre esses três fios narrativos é proporcionado por Colombo, personagem ambíguo tanto

para a história como na ficção.

Segundo palavras de Posse, quando ele teve de enfrentar tudo isso, ele se deu conta

de que a linguagem que melhor estaria à altura de tal incumbência era uma linguagem muito

fantasiosa e poética, às vezes contraditória com o uso conceitual. Ou seja, o barroco, em

Los perros del paraíso, reside no estilo adotado pelo autor, na linguagem empregada, que

funciona como um instrumento hermenêutico para compreender a realidade americana.

Buscaremos, portanto, analisar a linguagem fantasiosa adotada por Posse para

desvendar a simbologia dos elementos da natureza: ar, fogo, água e terra.

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Estrutura quaternária: ar, fogo, água e terra

Los perros del Paraíso apresenta uma primeira grande divisão quaternária. Para a

aritmética esta palavra significa a progressão dos quatro primeiros números: 1, 2, 3, 4.

Somando esses números obtemos a Década, ―símbolo da perfeição e chave do universo‖

(CHEVALIER, 1998, p. 758). Incita a que se pense no número quatro61, que por sua vez

também traz consigo uma significação simbólica: os quatro braços da cruz, que, ao lado da

Bíblia, são os expoentes do Cristianismo – doutrina implantada pelo Império Espanhol nas

terras conquistadas –. A relação do número quatro com a cruz faz dele ―um símbolo

incomparável de plenitude, de universalidade, um símbolo totalizador‖ (CHEVALIER,

1998, p. 759), reforçando os planos de construção – por parte dos Reis Católicos – de um

mundo unitário, subjugado a uma única crença.

Em Posse, também observamos a totalização do tempo e do espaço, já que o autor

descreve o passado sem se afastar do presente, ou seja, a compreensão de nossa realidade

passa pelo conhecimento de nossas raízes – daí a importância de se conservar a memória –.

Sua obra totaliza – de forma ao mesmo tempo integradora e caleidoscópica – a

modernidade, onde ―os distintos tempos e os distintos espaços se combinam em um agora

e um aqui que está em todas as partes e sucede a qualquer hora‖ (PAZ, 1976, p. 137).

Como forma de demonstrar essa contradição da modernidade, que totaliza e ao mesmo

tempo desintegra, Posse divide a sua ficção em quatro partes bem delimitadas,

representando os quatro elementos da natureza, deixando que o leitor se encarregue de

fazer a união, um jogo de memória.

Para os adeptos da via mística o número dos elementos significa o número de

portas a ser transposto. Cada uma dessas portas está associada a um dos quatro elementos

na seguinte ordem de progressão: ar, fogo, água, terra (CHEVALIER, 1998, p. 561).

61 O número quatro tem uma série de representações: o cruzamento de um meridiano e de um paralelo divide a terra em quatro partes, existem quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do Universo,

quatro fases da lua, quatro estações, quatro elementos, quatro humores, quatro rios do Paraíso, quatro

letras no nome de Deus (YHVH) e no do primeiro homem (Adão), quatro braços da cruz, quatro

Evangelistas (CHEVALIER, 1998, p.759). Em Los perros del Paraíso Seymour Menton também

identificou uma série de repetições com o número quatro: ―‗Desde los cuatro extremos del mundo

civilizado‘ (36); ‗durante los cuatro años de guerra civil‘ (93); durante la visita de Colón a Beatriz de

Bobadilla en las Islas Canarias, ‗eran deliciosas las cuatro jóvenes que atendían‘ (130), y lo bañan ‗las

cuatro ciervas‘ (138); los cuatro curas subversivos: ‗Buil, Valverde, Colangelo y Pane‘ (191); cuatro

superhombres de los Reyes Católicos: ‗Gonzalo de Córdoba, el chancherro Pizarro, el amoral genovés, el

aventurero Cortés‘ (110); etc.‖ (1993, p. 124).

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Coincidentemente esta também é a ordem disposta em Los perros del Paraíso e em cada uma

dessas partes – ou portas – histórias simultâneas são narradas, progressivamente, até a sua

transposição para a próxima parte – ou porta –.

Discorreremos sobre cada uma dessas partes na sequência em que estas se

apresentam.

A) O elemento ar simbolicamente está associado ao vento, ao sopro – Deus soprou

no rosto do primeiro homem o espírito da vida –; representa o mundo em expansão. É um

elemento ativo, masculino (CHEVALIER, 1998, p. 68).

Nesta primeira parte, antes mesmo de começar o capítulo propriamente dito, nos

certificamos da força motriz que dá vida à obra: o livro começa e termina com a palavra

―Paraíso Terrestre‖. A presença de cinco epígrafes, tanto históricas – ―Aquí es el Paraíso

Terrenal, adonde no puede llegar nadie, salvo por voluntad divina‖ (carta del Almirante a

los Reyes Católicos) –, como fictícias – ―¡se le envió a que fuera por oro y demonios, y él

que nos viene con plumas de ángeles!‖ – (Fernando de Aragón) (POSSE, 1987, p. 8)62, dão

a tônica do texto. História e ficção se misturam e dialogam com diversos intertextos, quase

sempre anacrônicos. Como exemplo desse anacronismo podemos citar o momento em que

o narrador descreve o comportamento autoritário de Isabel (ainda não havia se tornado

rainha) e sem nenhum esclarecimento prévio dá aos leitores uma informação

correspondente ao ano de 1940:

Penumbra. Un amanuense triste frente al libro de audiencias.

Aparentemente nadie. Pero en el rincón del eterno retorno de lo mismo, casi

invisibles, el general Quipo de Llano con altas botas muy lustradas y

planchadísimos breeches preside la comitiva de académicos y magistrados

(¿Días Plaja? ¿El doctor Derisi? ¿Battistesa? ¿D‘Ors?). Le pedirán al Rey

patrocinio y fondos para el Congreso de Cultura Hispánica de 1940 (PP, p.

17).

Também é anacrônico o encontro entre Colombo e Nietzche – representado no

romance pelo personagem Ulrico Nietz, soldado mercenário alemão que cuida do

62 Los perros del Paraíso (POSSE, 1987, p. 8). A partir de agora todas as referências do corpus serão

feitas no corpo do trabalho indicadas pelas letras PP e a página correspondente.

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ferimento de Cristóvão, resultado da surra que seu cunhado Santiago Bavarello e seus

primos lhe deram –. Ulrico chega ao Vico de l‘Olivella foragido da Alemanha por haver

revelado seus pensamentos:

En la odiosa Berna de los relojeros había osado decir que ―el hombre es una

cosa que debe ser superada.‖ Amaneció brutalmente golpeado. Desde

entonces ocultaba celosamente un terrible secreto que sólo podía revelar a

los fundadores de un Imperio (PP, p. 23).

Neste discurso identificamos o elo que o unirá a Colombo, possibilitando que

ambos se reencontrem na grande viagem rumo a América: o seu segredo só poderia ser

revelado aos fundadores de um Império.

No esquema cronológico que antecede cada parte e pretende dar caráter verossímil

aos fatos ao resumir os pontos mais representativos de cada capítulo, já é possível

identificar os três fios narrativos que se desenrolarão ao longo da narrativa.

O narrador descreve uma Europa em crise, decadente e sem esperança. A Espanha

amarga anos sob o domínio árabe e vê fracassar as tentativas da Igreja Católica de uma

reconquista do território. O homem sente-se aprisionado dentro de um espaço que já não

comporta as novas aspirações; deseja expandir, construir um Novo Mundo. O narrador

comenta ironicamente que ―las multinacionales se asfixiaban reducidas a un comercio entre

burgos‖ (PP, p. 13). Essa insatisfação generalizada levava o homem a cobiçar um mundo

perfeito, uma vez que o Ocidente, ―vieja Ave Fenix, juntaba leña de cinamomo para la

hoguera de su último renacimiento. Necesitaba ángeles y superhombres. Nacía, con fuerza

irresistible, la secta de los buscadores del Paraíso‖(PP, p.13). Faltavam, para a concretização

desses anseios, homens de coragem, conhecimento científico, reis com força política, tudo

o que a Espanha do momento era incapaz de oferecer.

Gradativamente o narrador vai elaborando esses itens. O destino do homem que

abriria as portas para a expansão espanhola estava traçado desde a sua infância. O mar

confidenciava um presságio a Colombo em um momento de pura contemplação e poesia:

―El mar no decía Coo-lom-bó. No. Decía claro (en español): ‗Cooo-lón‘. El ‗lón‘, de una

forma seca y rápida, diríase autoritaria. O como quien pronuncia la última palabra

amenazado de estornudo‖ (PP, p. 20), revelando que o destino de Colombo estava

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vinculado à Espanha, ele era o ―eleito‖ para realizar essa parte da história ―posseana‖. O

conhecimento necessário nosso protagonista conquistará de várias fontes, mas a paixão e a

nostalgia do Paraíso lhe foram incutidas ainda na infância, na paróquia onde o até então

Cristoforo recebia sua pouca educação:

… fue el cura Frisón el que contagió a Cristoforo la pasión, pena y nostalgia

del Paraíso. Un viernes lluvioso (pleno invierno) después de un almuerzo

con una botella entera de Lacrima Christi, el cura, ante los asombrados niños,

comenzó a describir playas de arena blanquísima, palmeras que rumoreaban

con la suave brisa, sol de mediodía en cielo azul de porcelana, leche de

cocos y frutas de desconocido dulzor, cuerpos desnudos en agua clara y

salina, músicas suaves. Pajaritos de colores. Trinos. Fieras tranquilas. El

colibrí libando en la rosa. El mundo de los ángeles, seres perfectos, sin

tiempo. ‗¡Eso es el Paraíso! ¡Y de allí hemos sido expulsados por Adán y por

los judíos! ¡Ahora mejor morir, mejor ser abandonados por esta sucia y triste

carne y estos días! ¡Lo mejor, muchachos, el Paraíso! ¡Es lo único que vale la

pena! (PP, p. 26).

A geografia da cidade de Gênova protegia seus moradores da cultura humanista que

crescia na Itália, deixando-os em uma total ignorância, livres de ―michelángelos y dantes

(…) de aquel tiempo de mutaciones profundas‖ (PP, p. 25).

Simultaneamente à narrativa da adolescência de Colombo, o narrador também

descreve a formação dos futuros reis da Espanha, alternando as entradas em cena. Isabel,

uma adolescente impetuosa e ambiciosa, consegue a legitimidade do trono da Espanha em

uma batalha entre ―feras‖; monta e domina um leão que protegia o leito do Rei Enrique IV,

cuja impotência consegue provar, o que impossibilitaria que Juana, la Beltraneja, fosse sua

filha, logo, sua herdeira, declarando-se, portanto, a futura herdeira do trono: ―la batalla

entre la ilegal legitimidad y la ambición quedaba declarada‖ (PP, p. 19).

O erotismo na obra aparece explícito e impulsiona Isabel a conquistar seu primo

Fernando, com quem acaba mantendo relações sexuais antes do casamento, embora

estivesse proibida de vê-lo – ―para los poderes establecidos, resultaba bien claro que la

unión de aquellas fuerzas, compelidas por una cósmica eroticidad, tendría por resultante

una mutación política, económica y social sin precedentes‖ (PP, p. 51) – a adolescente

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queima de desejo, ―ni el viento frío de septiembre, que ya soplaba, la calmaba‖ (PP, p. 45).

Aconselhada pela mãe que lhe diz ―mata como puedas la fiera del deseo. El deseo es la

esencia del Mal‖ (PP, p. 46), Isabel compreendeu que poderia transformar aquela

compulsão sexual em algo mais produtivo, mais vantajoso, e ―freudianamente buscó una

ideología para encauzar tanto deseo, una superestructura adecuada‖ (PP, p. 47). Nasce a

congregação dos partidários fiéis aos reis sob o signo da SS. Não podendo mais se opor à

união dos adolescentes, estes se casam, vivem momentos fortes de erotismo, sadismo e

luxúria, para finalmente o narrador introduzir o primeiro diálogo entre o casal:

— ¡Acabar con esa pecaminosa felicidad de los moros en sus territorios de

Al-Andalus!

— ¡Un Imperio, un pueblo, un conductor!

— ¿Y el terror? ¿Cómo conseguir alguna unidad sin terror?

— ¿y el dinero?

— Lo tienen los judíos. Si ellos lo prestan, ¿por qué no quitarles el capital

en nombre de la religión verdadera? ¿Un judío sin sufrimiento se

vulgariza como cualquier cristiano…?

— ¡Todo por hacer! ¡El mundo, la vida! ¡Hay que conquistar Francia,

Portugal, Italia, Flandes! ¡Despedazar a los moros! ¡Los mares! ¡Los

mares!

— ¡Y el Santo Sepulcro!

— No lo olvidaremos. (PP, p. 56)

A linguagem, rica em detalhes, muito humor, ironia e crítica, engendra os quesitos

necessários para a realização da expansão que o elemento ar sugere. A virilidade do

elemento ―ar‖, ao contrário do que se imagina, é representada em Los perros del Paraíso pela

figura feminina de Isabel, que, seduzida pelo poder, acaba dominando Fernando.

Enquanto o Ocidente se preparava para a grande conquista, do outro lado do

Atlântico uma outra história se desenvolve paralela às narradas anteriormente.

Ao falar das civilizações ameríndias a criatividade do autor surpreende o leitor ao

promover um encontro entre as civilizações asteca e inca para resolverem o problema da

morte do sol, na cerimônia do Fogo Novo, assim explicada por Vaillant: ―La ceremonia del

Fuego Nuevo se simbolizaba por la extinción del fuego del altar antiguo, que había ardido

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continuamente durante cincuenta y dos años y encendido otro nuevo, en prueba de la

nueva concesión de vida‖ (VAILLANT, 1973, p. 166). A cada cinquenta e dois anos se

fechava o ciclo da história, ou seja, o Fogo Novo simbolizava o fim da história. Para se

assegurarem de que um novo ciclo se iniciasse, neste dia se realizavam sacrifícios em

homenagem ao deus sol e o chefe inca foi convidado para a festa. O narrador traça perfis

diferentes entre as culturas, o que dificulta as negociações entre elas.

O chefe asteca, o tecuhtli, deseja convencer o representante inca Huamán a invadir

as terras geladas e fazer prisioneiros ―veinte o treinta mil de aquellos brutos pálidos para

inaugurar, en el año azteca 219, el tiemplo de Huitzilipochtli y conjurar el drama de la anemia

solar‖ (PP, p. 33). Na ficção ―posseana‖ os incas possuíam as técnicas para se chegar à

Europa; conheciam ―el secreto de los ríos que corren en el mar‖ (PP, p. 34); dominavam a

difícil ciência de voar em balões. Segundo Huamán ―uno de nuestros globos llegó a

Düsselfort‖ (PP, p. 35). Mas o leitor logo percebe a inviabilidade do projeto, pois quando o

narrador descreve essas civilizações as põe em lados opostos, declarando sua opinião sobre

elas: ―Estos aztecas tenían aperturas a la gracia, a la inexactitud. Toleraban el comercio libre

y la lírica. El Incario, en cambio, era geométrico, estadístico, racional, bidimencional,

simétrico. Socialista, en suma‖ (PP, p. 33). Logo, também o tecuhtli se conscientiza de que

seria impossível convencer Huamán e seu povo, eles ―no se comprometerían en una

aventura imperial hacia las tierras frías‖ (PP, p. 35); as negociações fracassaram.

O narrador finaliza esse encontro com uma imagem solene. Em sua narrativa os

chefes indígenas realizam o último banquete no Palácio Imperial. Esse episódio estaria

registrado no Codex Vaticanus C. O narrador antecipa o futuro e lamenta que essa memória

tenha sido destruída pelos espanhóis: ―Ceremoniosamente se encaminaron hacia el

banquete en el Palacio Imperial. Ingresaron en ese panteón de luz y calor que es el Codex

Vaticanus C, tercera parte, perdida para siempre en la quemazón de documentos aztecas

ordenada por el atroz obispo Zumárraga‖ (PP, p. 35).

De forma humorística, antropofágica e trágica, o tecuhtli tenta, sem sucesso,

convencer Huamán de que a única forma de evitar uma conquista é conquistando: ―Señor,

¡mejor será que los almorcemos antes que los blanquiñosos nos cenen…!‖ (PP, p. 35).

O narrador decifra o Codex enquanto os chefes indígenas ―a punta de sandalia

avanzaban por el papel delicadamente pintado del Codex Vaticanus C‖ (PP, p. 57). Era a

descrição do último banquete, uma festa que terminaria com o sacrifício de escravos. Neste

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momento temos acesso ao fluxo de consciência de Huamán ―¿Por qué esclavos? ¿Por qué

no todos trabajadores del Imperio, como en el Incario?‖ (PP, p. 57), e se evidencia a

diferença entre as duas culturas.

Antes de transpor a porta, o narrador faz mais uma referência ao fogo, que na mão

do homem é metáfora da destruição, consome a história e tudo o que poderia representar

de luz para o conhecimento da evolução do mundo: ―Son harto extrañas las imágenes que

aparecían en el rollo Vaticanus C quemado por el atroz cura Zumárraga (él y el Obispo

Landa equivalen a todas las pérfidas llamas que abrasaron la Biblioteca de Alexandría), (PP,

p. 59).

B) O elemento fogo por sua característica está sempre relacionado à cor vermelha e

a alta temperatura. Simboliza o amor – seu lado positivo –, mas também a cólera – seu lado

negativo –. O fogo que destrói e consome favorece o ressurgimento da vida (técnica

utilizada por agricultores para adubar a terra), revertendo o aspecto negativo da destruição.

A dualidade na representação do fogo, onde tudo tem seu oposto, pode ser identificada em

outros elementos: os raios do sol – celeste, positivo –; o fogo do inferno – terrestre,

negativo –; os círios em funerais representam a morte – negativo –, mas a luz que emana

representa a outra vida – positivo –. Ainda que exista vida no elemento fogo o seu aspecto

negativo sobressai, se manifesta com maior intensidade: ―obscurece e sufoca, por causa da

fumaça; queima, devora e destrói: o fogo das paixões, do castigo e da guerra‖

(CHEVALIER, 1998, p. 443), o ―domínio do fogo é igualmente uma função diabólica‖ (Ibid.

p. 441).

Esta parte ou porta representada pelo elemento ―fogo‖ cobre o período de 1476 a

1488. Aqui se consolidarão os elementos forjados para a expansão. Cada história seguirá o

seu curso conforme a busca empreendida pelos personagens no intuito de atingirem seus

objetivos. O narrador seguirá a mesma técnica até a finalização da obra: saltos anacrônicos,

metaficção, intertextualidade, humor, crítica e ironia, parodiando a história.

Em Los perros del Paraíso o fogo ganha representação na sua polaridade negativa,

representando o período negro da Espanha da época, por isso o fogo destruidor: a guerra

civil, a Inquisição. Os presságios aparecem sempre com um sinal de fogo, como mau

agouro. No entanto não podemos deixar de pensar que a ciência ganha espaço, o

antropocentrismo divulgado pelo humanismo leva o homem a acreditar em si mesmo, a

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traçar o seu destino livre da intervenção da Igreja, e isso significa crescimento, expansão.

Passaremos a observar essas considerações dentro da obra, seguindo a trajetória de nossos

personagens na transposição para esta segunda parte.

Seguindo seu destino, o Colombo de Posse já se encontra na Espanha com o nome

de Cristóbal, conforme havia anunciado o mar. O protagonista pensa na melhor forma de

aproximar-se do poder – os Reis Católicos – e revelar seu segredo, mas por enquanto é

apenas uma figura ridícula que sofre com a zombaria alheia ―se burlaron desde varias

mesas. Le tiraron algún hueso, ya roído por los perros naturalmente‖ (PP, p. 64).

Dialogando com a História, o Colombo de Posse também passa por Portugal antes

de chegar à Espanha. O narrador faz um retrato de Colombo através da retrospectiva dos

últimos vinte anos de sua vida. Sentado em uma mesa de taberna, Colombo passa por uma

crise existencial, se questiona sobre a vida e recorda melancolicamente seu passado:

Sobreboló su largo ventenio de navegante y náufrago, de cartógrafo

improvisado y de marido por interés (PP, p.71). […] Y recordó con

melancolía su perdida posibilidad de orden y felicidad, su matrimonio con

Felipa Moñiz Perestrello, en una Lisboa que para siempre quedaría atrás

(PP, p. 73).

O narrador revela alguns dos métodos utilizados pelo personagem Colombo para

conseguir as informações que tanto desejava. Descobrimos que nosso protagonista

explorava as mulheres, ―largos años juntando datos. Buscando signos entre las medias

palabras. Robando mapas apolillados en los cajones de la cómoda cuando las seducidas

viudas de infaustos navegantes se dormían fatigadas de saciamiento y culpa‖ (PP, p.71);

torturava indefesos, ―abofeteó al náufrago que agonizaba en la playa de Madeira‖ (PP,

p.71); e também ―torturó a un vikingo que tuvo que explicarle con sus dos docenas de

palabras latinas cómo era la costa de esa Vinland donde hasta había llegado el obispo

Gnuppron en misión pastoral‖ (PP. p. 72).

Sua esposa Felipa tampouco foi poupada. Conhecemos um Colombo com

requintes de sadismo em suas núpcias, mas nem esse momento de erotismo o afasta de seu

destino, de sua obsessão:

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En ese mismo cajón, al fondo, a la derecha, encontró la famosa carta secreta

del geógrafo y cosmólogo florentino Paolo Toscanelli, dirigida al finado

Perestello con un claro croquís sobre las Antillas y el Cipango, no muy lejos

de la costa portuguesa. […] Se trataba de un hecho decisivo en su destino:

ignaro de aquella erótica geografía, que le pareció fantástica, creyó haber

descubierto el mapa del Paraíso terrenal (PP, p. 77-78).

Ao mesmo tempo em que crescia a sua convicção na existência de um Paraíso

Terrestre advinda de sua formação religiosa, de suas novas descobertas e de leituras

populares que o influenciavam, principalmente o livro do cardeal Pedro d‘Ailly Imago

Mundi, lido repetidas vezes, Colombo chega a algumas conclusões:

1º) de que podía retornar al Paraíso Terrenal, que como anotaba el

Cardenal: ―Hay en él una fuente que riega el Jardín de las Delicias y

que se divide en cuatro ríos.‖

2º) ―El Paraíso Terrenal es un lugar agradable situado en Oriente,

muy lejos de nuestro mundo.‖ Colón anotó al margen: ―Allende el

Trópico de Capricornio se encuentra la morada más hermosa, pues es

la parte más alta e noble del mundo, el Paraíso Terrenal.‖

3º) Supo que en él no podía haber otra decoración que no fuese de

joyas y de oro. ¡Por lo tanto se podía saquear, invertir en las empresas

genovesas y comprar la mayoría accionaria! Por último, sí, se podría

rescatar el Santo Sepulcro y reabrir el camino de Oriente en manos de

la ferocidad tártara y la ―cortina de cimitarras de hierro‖.

4º) Definió un conocimiento esotérico que no podía anotar y que

confió a la memoria (PP, p. 79).

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Também se intensificava a procura, por parte de Colombo, de conhecimento

científico que possibilitasse essa grande viagem, mas isso esbarrava, obviamente, na crença

de que a terra era uma grande esfera, teoria de que Colombo discordava, porém, como

revelar sua descoberta a um mundo onde os homens

temen arrojarse mar adentro porque saben que avanzan peligrosamente por

una esfera, la de la curvatura de la Tierra. Saben que al no tener goma en la

planta de los pies, ni estar las naves fijadas al agua, caerían en el Vacío

Estelar irremediablemente una vez superado el máximo tolerable del ángulo

de curvatura que atribuían –equivocadamente– al planeta (PP, p. 73).

Colombo sabia que deveria ser prudente ao revelar a descoberta de que a Terra não

era redonda, pois em Portugal não o levaram a sério; portanto, aguardar o momento ideal

fazia parte de sua tática e essa espera o atormentava: ―le costaba aceptar el increíble juego

del mundo. Tenía que comprender que si echase a correr hacia la tienda real vociferando

sus revelaciones, sería despedazado por la jauría de guardia‖ (PP, p. 72). Neste momento da

ficção o personagem Colombo unirá os três fios da narrativa, ou seja, fará o elo entre as

histórias que ainda se desenvolviam de forma simultânea, mas em cenários distintos. Falta

promover esse encontro que se realizará em duas etapas: 1º) Colombo revela seu segredo

aos Reis e os convence a investir em sua Empresa; 2º) Colombo transpõe o mar e expande

o império espanhol, encontrando-se com a terceira história narrada.

Vejamos a primeira etapa desse encontro. Como dissemos anteriormente, o

domínio do fogo é uma função diabólica e Isabel demonstra conhecer bem o que isso

significa. Nesta parte da narrativa vemos que essa personagem se fortifica e o narrador

justifica seu crescimento devido a uma guerra íntima. O comentário do autor dentro do

relato esclarece ao leitor a posição crítica deste com relação à visão de que apenas a história

dos grandes feitos seja registrada:

El Reino se consolidaba apenas. Paralelamente, una guerra secreta, íntima,

correspondía a la exterior, la que registraron los historiadores (sólo hay

Historia de lo grandilocuente, lo visible, de actos que terminan en catedrales

y desfiles; por eso es tan banal el sentido de historia que se construyó para

consumo oficial) (PP, p. 66).

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Essa guerra íntima se refere à guerra de sexos, de poder, que existe entre Isabel e

Fernando, onde a ―fêmea‖ resultou mais astuta e sagrou-se Rainha após a morte de

Enrique IV, não respeitando a supremacia do homem, e ―Fernando quedó herido en su

más delicado machismo‖ (PP, p. 66).

Isabel empreendeu uma luta intensa para confirmar seu poder e unificar a Espanha.

A linguagem adotada nesse instante e a sonoridade criada pelas palavras provocam no leitor

a sensação de estar cavalgando, junto com a Rainha, pelos campos incendiados e ardendo

pelo fogo da batalha:

Monta tanto

Tanto monta

Isabel como Fernando.

¡Ya la caballería! ¡y los lanceros! ¡infantes, alabarderos, ballestas! ¡ya que

hay que morir, mejor morir a puñaladas! ¡y fuego, mucho fuego, hasta

que la unidad se imponga y la tolerancia impere! ¡Muerte a los

intolerantes! (PP, p. 84).

O poder domina a Rainha que se mostra cruel, diabólica, ressaltando, neste

momento, seu lado negativo: ―El Orden Nuevo se consolidaba‖ (PP, p. 86) e com ele a

Inquisição e a figura impressionante de Torquemada, sempre submisso à Rainha.

Como bons estrategistas os Reis percebem a necessidade da legitimação dos atos de

seu governo, do apoio de uma Igreja que fosse conivente com a nova ordem criada e

subjugasse as massas sem piedade. Cria-se então um ―Papado a medida de su Imperio‖ (PP,

p. 87) e Rodrigo Borja é escolhido como Papa ideal, ―un gran mundano, capaz de ejercer el

poder con natural violencia‖ (PP, p. 87).

Colombo, ―desesperado de esperar en vano, de ser desconocido, de no ser

encontrado por quienes lo buscaban y no lo intuían‖ (PP, p. 98), se apresentará pela

primeira vez a essa rede de poder. O episódio será marcado pela comicidade de sua

representação e terminará em um grande fracasso; ainda não foi dessa vez que sua

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cosmologia abriria as portas da Espanha para o mundo. Até aquele momento o império

espanhol se encontrava ―contaminado‖ por judeus e muçulmanos contrários às leis

professadas pela nova ordem estabelecida. Fazia-se necessário sua eliminação total para a

expansão do cristianismo no mundo e Isabel intuía que

no podía consolidar un Imperio, dominar al mundo y frenar la expansión

del turco hacia Occidente sin una sangrenta guerra civil. Sabía que el fuego

que se exporta para someter a los otros pueblos y crear un Imperio no es

más que la llama del fuego de adentro, el de la guerra civil (PP, p. 104).

Com esse discurso o narrador demonstra conhecer profundamente o pensamento

de sua fictícia Rainha e o alcance dessas palavras, já que críticos e historiadores da

atualidade são praticamente unânimes em afirmar que os métodos de conquista

empreendidos na América não foram senão uma exportação dos já testados anteriormente

na Península, como nos confirma Enrique Dussel:

La ‗conquista‘ nos habla de una ‗re-conquista‘, aquella que los cristianos

hispanos durante más de siete siglos llevaron a cabo contra los musulmanes.

Desde el lejano 718, cuando comienza la reconquista en Covadonga, hasta

1550 aproximadamente, cuando termina la ocupación de los imperios azteca

e inca. […] El ‗espíritu de Guerra Santa contra los musulmanes, se

transformará sin mucha conciencia en la lucha contra los indígenas‘

(DUSSEL, 1992, p. 16).

Em nosso texto se intensifica o terror na Espanha. Torquemada é implacável na sua

caça aos judeus. Desta vez o próprio Colombo tem a sua segurança ameaçada, uma vez que

o escritor argentino se apoia na tese da ascendência semítica de Colombo63 ao construir o

seu personagem, aumentando o mistério e a ambiguidade em torno a sua figura. Isto

63 Marianne Mahn-Lot não vê a menor lógica na ―tese judaica‖ levantada por Salvador de Mandariaga em

seu livro Christophe Colomb, tradução francesa, Paris, 1952, sobre Cristóvão Colombo, rebatendo essa

hipótese com outra pergunta: ―Por que, em um país que tinha fobia judaica, como a península ibérica sob

os Reis Católicos, os numerosos inimigos do Almirante das Índias, que o tratavam de estrangeiro cúpido e

cruel, nunca o acusaram de pertencer à raça maldita?‖ (1992, p. 12).

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permite ao autor colocá-lo no centro de interesses díspares onde Colombo se apresenta

como solução para ambos: os judeus ―conversos‖ necessitam de um aventureiro que os

levem à Nova Israel; em contrapartida os Reis Católicos ambicionam conquistar o mundo e

propagar o cristianismo. Essas pretensões lhe parecem insignificantes e pouco

representativas, porém, esse poder ao qual Colombo se associa lhe permitirá dissimular o

próprio interesse e realizar a sua utopia, pois ele, ―en cambio, descendiente de Isaías como

se sabía, sólo buscaba la mutación esencial, la única: el retorno al Paraíso, al lugar sin

muerte‖ (PP, p. 109).

Pouco a pouco os elementos vão-se alinhando e narrador e leitor os vão

―costurando‖ um a um, de modo a formar um conjunto compacto que, aparentemente,

converge para um único propósito. Assim que as forças do exército espanhol conseguem

derrotar os árabes e expulsar os judeus, o Império se consolida e todos compreendem que

é chegada a hora de concretizar o que, em passagem anterior, fora intuído pela Rainha.

Pode-se observar neste fragmento que o narrador começa a valorizar o elemento ―água‖,

ou seja, ele dá início à passagem para a outra porta, ou parte: ―todos comprendieron que

había nacido el ciclo del mar, aunque el fuego de las hogueras no cesaba. Terminada la

guerra santa, tendría que empezar –necesariamente– la salvación internacional‖ (PP, p.

116).

Para realizar essa travessia o único homem com coragem suficiente se chamava

Colombo, ou o ―messias‖ como ele se intitulava. Forjou-se um encontro misterioso entre

Colombo e Isabel, onde se escutava ―el rumor constante de una fuente‖ (PP, p. 117), nosso

protagonista foi nomeado ―Almirante de la Mar Océana‖ (PP, p. 120). Colombo

compreendeu que aquele ritual64 ―sellaba un gran acuerdo. ¡La Reina era su cómplice

secreta en la secretísima aventura del Paraíso!‖ (PP, p. 120).

Para finalizar esta parte acompanharemos a progressão do terceiro fio narrativo que

ainda se encontra desgarrado do bloco maior que se formou no Ocidente em torno a

Colombo.

Na ilha do Caribe, o narrador descreve o ritual de iniciação dos adolescentes que

tomam porções alucinógenas para a viagem em direção a ―lo abierto‖ (PP, p. 81),

64 Este ritual se refere à dança sedutora que a Rainha realiza para Colombo, que, muito excitado, tem um

intra-orgasmo, o que leva Posse, em seu intertexto, a discordar da possível relação sexual entre a Rainha e

Colombo de que fala Alejo Carpentier em seu livro El arpa y la sombra (POSSE, p. 119).

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observados por el tecuhtli de Tlatelolco, uma visita no mínimo inesperada para o leitor, mas

totalmente possível na ficção contemporânea latino-americana. Entram em cena os

personagens: Caoanabo, Anacaona, Siboney, Belbor, Guaironex, o cacique Cubais e Bimbú,

futuros anfitriões de Colombo.

O leitor sente, por meio da linguagem, a tristeza que invade o coração dos jovens e

se impregna da mesma tristeza. O narrador indica com precisão o tempo e o espaço de sua

história ―era una tarde tibia, en la vega real de Guanahani, el 12 de octubre de 1491 (para

ellos, gentes de las Lucayas poseedores de un mágico calendario, era el año 16-Estrella)‖

(PP, p. 82), começariam, portanto, a receber os primeiros presságios. Um dos índios, ao

retornar do infinito em que se encontrava, revela a sua visão de que ―sobre la mar, hacia

Oriente, había visto las sombras de los tzitzimines, los demonios invasores, las furias,

capaces de quitar a los hombres del sagrado continuo del Origen‖65 (PP, p. 83), mas

ninguém acreditou nele.

De volta ao império asteca o Supremo Sacerdote, Mexicatl Teohuatzin, julga as

informações trazidas pelos informantes com os códigos disponíveis da cultura indígena

vigente, ou seja, ―antes de ‗inventar‘ uma imagem capaz de explicar a presença de

forasteiros, por uma espécie de projeção, os índios apoiaram-se no velho mito do retorno

de Quetzalcóatl. Pensaram que eram os deuses vindos do céu, os deuses que voltavam‖

(LEÓN-PORTILLA, 1987, p. 48). O texto de Enrique Dussel corrobora esse pensamento,

segundo o qual os índios ―no tuvieron categorías apropiadas para interpretar a los intrusos

invasores. Sólo pudieron pensar que eran dioses‖ (DUSSEL, 1992, p. 24). Vejamos a

passagem em Posse.

— No, no. Los hombres que vendrán del mar, barbados serán y uno de

ellos barba rojiza tendrá. Están ya cerca (tenemos información). No. No son

tzitzimines, esos monstruos del crepúsculo que esperan en el fondo del cielo

del Oriente para devorar la última generación de humanos. No. ―los que

65 Segundo o Frei Ramón Pané que fez registros sobre a religião e os costumes dos índios tainos a pedido

de Colombo, essa ―viagem‖ era provocada pelo jejum excessivo: ―por la debilidad que sienten en el

cuerpo y en la cabeza, dicen que han visto algunas cosas, quizás por ellos anhelados‖ (apud ZEA, 1991, p.

56). Em seus escritos Pané disse que um cacique informa ao grupo que chegaria ao país gente vestida, que

os dominariam e os matariam. Interpretaram que se tratava dos canibais e não deram muita importância

ao fato.

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ahora se aproximan son los últimos dioses menores. Vienen del Gran Mar.

Los manda Quetzalcóatl, que los predijo‖ (PP, p. 121).

Na narrativa de Posse este não teria sido o único erro de interpretação por parte do

Sacerdote asteca. O Mexicatl Teohuatzin julgou os europeus que se aproximavam a partir

da análise da crença cristã de seu Deus e de seu maior representante – Cristo –, avaliou o

todo pela parte (sinédoque) e com isso conjecturou que todos professavam o mesmo

pensamento; imaginou um futuro feliz para seu povo:

— ¡Oh, son seres maravillosos, los que llegan! Hijos de la mutación.

¡Generosos! Una infinita bondad los desgarra: se quitarán el pan de la boca

para saciar el hambre de nuestros hijos. Sé que su dios humano les manda

amar al otro como a sí mismo. Serán incapaces de traernos muerte: detestan

la guerra. Respetarán nuestras mujeres, porque su dios –infinitamente

benigno– les manda no desear otra mujer que no sea la propia. […] Adoran

un libro escrito por sabios y poetas. El dios que adoran es un hombrecillo

golpeado, torturado, hasta ser puesto a muerte por unos militares. ¡Con el

débil se identifican! ¡Al débil aman! (PP, p. 122).

Lamentavelmente Teohuatzin ignorava que os homens que ele supunha serem

portadores de profunda bondade compartilhavam do mesmo instinto de crueldade dos que

um dia torturaram até a morte o ―hombrecillo‖ e que eles passariam pelos mesmos

sofrimentos, assim que estas culturas tão antagônicas se encontrassem no mesmo espaço e

tempo, quando Colombo vencesse o desafio do mar – próxima parte, ou porta –

representada pelo elemento ―água‖.

C) O dicionário de simbologia de Jean Chevalier aponta três significações básicas

para a representação da água: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência

(CHEVALIER, 1998, p. 15), podendo apresentar outros matizes nas diferentes culturas.

Para o cristianismo, a água é a matéria-prima onde pairava, no gênesis, ―o Sopro ou

Espírito de Deus‖ (Ibid., p.15).

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A familiaridade de Colombo com a água é apresentada no relato desde o princípio

quando o narrador revela sua natureza anfíbia, mas, especificamente nesta parte do

romance, essas relações se estreitam e a água se torna fonte de conhecimento. Em uma tina

―proyección de la Mar Océana‖ (PP, p. 142), o Almirante submerge para meditar e

―adquiere preciosas enseñanzas sobre la costumbre de Dios‖ (PP, p. 142). Podemos

identificar que a água é representada como meio de purificação e regeneração; a submersão,

neste caso, também tem uma representação simbólica: ―A imersão é comparável à

deposição de Cristo no Santo Sepulcro: ele ressuscita, depois dessa descida nas entranhas

da terra. A água é símbolo de regeneração. A água batismal conduz explicitamente a um

novo nascimento […], é iniciadora‖ (CHEVALIER, 1998, p. 18). Por isso, podemos falar que

a viagem de Colombo é iniciática.

De acordo com as representações acima, não encontramos nenhum motivo que

possa justificar o medo que o elemento água desperta no ser humano; porém, a água

também apresenta dois aspectos opostos: ―é fonte de vida e de morte, criadora e

destruidora‖ (CHEVALIER, 1998, p.16). Foi usada por Deus para punir os pecadores no

grande dilúvio:

A água pode destruir e engolir, as borrascas destroem as vinhas em flor.

Assim, a água também comporta um poder maléfico. Nesse caso, ela pune

os pecadores, mas não atinge os justos: estes nada têm a temer das grandes

águas. As águas da morte concernem apenas os pecadores e se transformam

em água da vida para os justos (CHEVALIER, 1998, p. 18).

Em Posse, o medo da água se justifica para a tripulação, que teme o pior, pois se

encontra exposta ao perigo, ou seja, aos monstros, que no imaginário da época, habitavam

as profundezas do Mare Tenebrarum. Porém, como descendente de Isaías, Colombo estaria

protegido de qualquer mal, por isso, navegaria sempre em direção ao Ocidente, ―en la ruta

de los iniciados‖ (PP, p. 131), até efetuar a transposição para a próxima parte, ou porta,

representada pelo elemento ―terra‖. Ali, enfim, se efetivará o ―encontro‖ com o outro fio

narrativo.

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D) O elemento Terra, que designa a quarta parte de Los perros del Paraíso representa

o coração da narrativa. Todas as energias e expectativas que agitavam o Ocidente serão

ativadas deste lado do Atlântico, curiosamente denominada ―terra‖. Em Chevalier, nos

chamou a atenção a interpretação dada pelo I-ching que diz:

A terra é o hexagrama k’uen, a perfeição passiva, recebendo a ação do

princípio ativo k’ien. Ela sustenta, enquanto o céu cobre. Todos os seres

recebem dela o seu nascimento, pois é mulher e mãe, mas a terra é

completamente submissa ao princípio ativo do céu (1998, p. 878).

Analisando por este lado, o da submissão do elemento ―terra‖, podemos dizer que

ela está vulnerável à ação externa não só de fenômenos naturais – como sugere a

simbologia – mas também do homem. Não é muito difícil encontrar em Posse essa

demonstração de passividade, da impossibilidade de reação frente à destruição imposta

pelos invasores. A terra está exposta à vontade humana que nem sempre a valoriza pelo

que ela é, e sim pelo que ela pode oferecer de lucro no mercado; o narrador denuncia esta

insensatez:

Las plantas, los grandes árboles, los tigres fueron quienes primero

descubrieron la impostura de los falsos dioses. Las familias de monos, tan

neuróticos y vivos en sus reacciones, también comprendieron que los

campesinos y los herreros hacían de su hoz y de su martillo los instrumentos

de un exterminio. Era absurdo, pero derribaban la arboleda con su

complejísima vida tramada desde el origen de los tiempos. Arrancaban las

yerbas y lianas, quemaban el follaje, hasta que aparecía una especie de

desierto cuadrangular de tierra calva. Después los blanquinos labraban día y

noche, sacrificando la alegría de sus mujeres e hijos y el tiempo para los

dioses y el amor, con el fin de plantar. Esta vez indebles plantitas de

almácigo que levantaban la indignación de la floresta antigua. Eran las

―plantas útiles‖, regimentadas en hilera, cuyos frutos se cotizaban en

mercado (PP, p. 234).

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A prática de cultivo da terra por parte do homem, descrita no texto acima, aparece

em Chevalier simbolicamente comparada à mulher, ―a terra é a virgem penetrada pela

lâmina ou pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, o sêmen do céu‖ (1998, p. 879).

Além disso, é conveniente mencionar os motivos que levavam o homem ocidental

a procurar por terras novas e o principal deles era a ambição de encontrar riquezas. Quanto

a isso, sabe-se que universalmente ―a terra é uma matriz que concebe as fontes, os minerais,

os metais‖ (CHEVALIER, 1998, p. 879), o que desperta a cobiça humana. O projeto de

expansão do Império Espanhol coincidia no interesse por ouro, por isso a decepção

estampada nos olhos do Rei Fernando quando recebe a carta de Colombo: ―—¡Maldito

genovés! ¡Se le manda por oro y tierras y él nos devuelve una caja con moñitos llena de

plumas de ángel!‖ (PP, p. 196).

Os astecas também apresentam uma simbologia para o elemento Terra. Para essa

civilização ―a deusa Terra apresenta dois aspectos opostos: é a Mãe que alimenta,

permitindo-nos viver da sua vegetação; mas por outro lado precisa dos mortos para

alimentar a si mesma, tornando-se, desta forma, destruidora‖ (ALEC apud CHEVALIER,

1998, p. 879). Por isso os povos pré-colombianos sempre demonstraram um profundo

amor e consciência da necessidade de sua preservação; afinal, a Terra era uma deusa a

quem se devia dedicação e respeito.

Nesta parte do romance, onde os personagens se encontram em território

ameríndio, notamos a preocupação, por parte do narrador, em reproduzir o pensamento

indígena quanto à simbologia do elemento que dá nome à parte. Através de suas palavras

vemos surgir essa representação simbólica da Terra, que é parte da cultura desse povo e

consequentemente de sua memória:

La gran vera, el árbol hembra más importante de la región (las plantas

tienden a cierto matriarcalismo), hizo comprender que sería una batalla

perdida: los pálidos venían signados por una pulsión de exterminio, se

habían olvidado de su relación primigenia con el Todo, eran traidores a la

hermandad original de lo existente […]. Donde los blanquiñosos avanzaban,

el orden natural quedaba quebrado. Hasta desviaban los torrentes para

irrigar vides, sin saber que esas delicadísimas cintas de plata que corren por

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la selva son sagradas, son cintas de vida que exigen el mayor respeto, arterias

del cuerpo del mundo (PP, p. 235).

Os habitantes desta terra viviam em harmonia com o mundo criado, com a

natureza, com a deusa Terra que fornecia o alimento de que precisavam. Eram como um

rio, uma árvore, uma ave. Não é surpresa, portanto, que Todorov ao analisar o

comportamento do Almirante nesse ―encontro‖ tenha dito que ―Colombo fala dos homens

que vê unicamente porque estes, afinal, também fazem parte da paisagem. Suas menções

aos habitantes das ilhas aparecem sempre no meio de anotações sobre a natureza, em

algum lugar entre os pássaros e as árvores‖ (TODOROV, 1998, p. 33). Assim foram vistos

e assim foram tratados, como um animal a mais na natureza e sofreram as mesmas

agressões.

Podemos observar que a terra é vista sob dois pontos de vista: o ocidental domina a

natureza, enquanto o pré-colombiano integra a natureza. Esses aspectos da obra nos fazem

pensar na atualidade, quando vemos o planeta Terra ameaçado pela ação do homem, que

continua a destruí-la, como fizeram no passado. A cobiça segue seu rumo, em nome do

progresso tudo se justifica, inclusive a nossa aniquilação.

Conclusão

Foi possível observar em Los perros del paraíso que a linguagem tem um papel

preponderante no romance, ela é o fio condutor do passado e do presente. Por meio de

uma linguagem fantasiosa, poética e barroca, Abel Posse integra elementos contraditórios e

irracionais para falar da mestiçagem resultante da conquista da América desde sua origem

até o presente.

A linguagem, vinda da Espanha como elemento de dominação e de colonização

cultural, é protagonista nesta história, e, através dela, Posse mostra uma América

fragmentada em que persistem raízes culturais contraditórias, buscando explicitar as

oposições secretas do espírito latino-americano frente ao espírito europeu e a idéia de

homem europeu.

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Referências

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modernidad / posmodernidad. Buenos Aires: El Cielo por Asalto, 1993.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos costumes, gestos, formas,

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1998.

DUSSEL, Enrique. 1492: diversas posiciones ideológicas. In: DONASSO, M. [et al.]. La

interminable conquista 1492 –1992. Buenos Aires: Ayllu, 1992. p. 11-29.

LEÓN-PORTILLA, Miguel. A visão dos vencidos: a tragédia da conquista narrada pelos

astecas. Trad. Carlos Urbim e Jacques Waimberg. 2. ed. São Paulo: L&PM, 1987.

MAHN-LOT, Marianne. Retrato histórico de Cristóvão Colombo. Trad. Lucy

Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

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ZEA, Leopoldo. Ideas y presagios del descubrimiento de América. México: Fondo de

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17. ROMANCE HISPANO-AMERICANO E ALEGORIA

Afinidades entre Onetti, Puig e Bolaño

Reno Nícolas de Araújo Torquato

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

I

Na segunda metade do século XX, a América Latina viveu um de seus momentos

mais intensos. Foi a época das violentas ditaduras militares, das lutas dos grupos

revolucionários armados, das crises econômicas agudas, da ascensão do neoliberalismo e,

no campo literário, do surgimento do boom. Atravessando esse período e mergulhados no

mar das tormentas sociais, o uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), o argentino Manuel

Puig (1932-1990) e o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) sintomatizaram em suas obras as

angústias de quem se viu entre ondas de choques ideológicos, destroços de navios

históricos, corpos de náufragos políticos, entre páginas e mais páginas em chamas a boiar.

Assim, referirmo-nos à nacionalidade de cada escritor é fazer-lhes certa injustiça ou ironia,

dado que todos foram lançados ao mar-mundo, na condição de cidadãos exilados

politicamente e na condição de escritores exilados espiritualmente, não apenas das pátrias

onde o destino achou por bem os parir, mas, concordando com Bolaño: ―Toda literatura

lleva en sí el exílio...‖66. Isto é, na qualidade de grandes escritores que foram, viram-se

desgarrados do próprio mundo, buscando na literatura uma pátria que certamente também

nunca encontraram, sendo a escrita mais um caminho do que certamente um lugar em que

possamos nos sentir, enfim, confortados. Por isso, transparece em seus livros a ideia de

uma fuga, de uma busca, de um estar perdido, de uma insuficiência que apenas incita uma

nova fuga, uma nova busca...

Houve também entre os três o fato de que estiveram sempre num outro entre-lugar,

além da própria literatura, o que lhes propiciou uma visão a qual, não tendo sido plena, no

sentido de que não possibilitou a apreensão de uma totalidade orgânica – dado que

66 BOLAÑO, 2004, p. 49.

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julgaremos isso impossível aqui –, foi privilegiada ao expor claramente as fissuras entre os

fragmentos que compõe essa enorme montagem-continente chamada América Latina.

Como indivíduos, Onetti, Puig e Bolaño percorreram estas terras e outras terras do mundo,

o que lhes propiciou uma visão de dentro-entre-fora; como alegoristas, viram, por dentro

da montagem, por entre as fissuras da montagem e, enfim, por fora dessa montagem

precária e labiríntica de fragmentos. Como grandes escritores que foram, suscitaram

discussões que provam a multiplicidade de enfoques permitida em suas obras, a capacidade

de escapar às garras do rótulo ligeiro. Onetti, por exemplo, segundo algumas definições,

parece situar-se no entre-lugar entre o neobarroco de Sarduy e o não-barroco, entre e o

boom de Márquez e o não-boom. Puig, por sua vez, podemos tentar compreendê-lo como o

escritor pós-moderno de literatura acessível às massas, mas capaz de encantar os críticos

acadêmicos mais exigentes. Bolaño, enfim, mesmo ao parecer zombar das tentativas críticas

de encerrar o sentido da experiência literária, incita-nos a tentar compreendê-lo, persegui-

lo, sob pena de termos que assumir nossa derrota.

Quanto ao contexto em que apareceram os três escritores, falemos primeiramente

das ditaduras militares, como as que atingiram o Brasil, o Uruguai, a Argentina, o Chile, etc.

Acreditamos terem sido momentos tão traumáticos à história e à consciência dos povos,

que ainda hoje não se conseguiu realizar um trabalho de superação das perdas ocorridas, se

entendermos superação como um trabalho efetivo de luto, e não de um esquecimento

engendrado para que não se veja o presente assentado sobre uma pilha de escombros e

cadáveres. Por isso, acreditamos, concordando com Idelber Avelar67, que a implementação

do neoliberalismo, que se seguiu aos regimes militares, foi resultado de um trabalho

sistemático do capital, ou seja, as próprias ditaduras militares tinham como objetivo gerar

as condições para que a nossa ―modernização‖ viesse a ocorrer. A celebrada ―democracia‖

que se seguiu à coerção militarista foi apenas a constatação, pelo sistema, de que todas as

formas de resistência mais consistentes haviam sido eliminadas. As torturas e assassinatos

ocorridos durante os regimes, seja de membros dos grupos revolucionários que se

esconderam nas florestas do continente, seja de estudantes e operários que articulavam

entre si e as massas os protestos contra o terror militar, assim como o desenvolvimento dos

meios de comunicação em massa e das formas de propagar a apatia, o consumismo e um

alienado patriotismo, prepararam o terreno para que a nossa burguesia populista e títere do

67 AVELAR, 2003.

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capital internacional viesse a exercer sua ―democracia‖, privatizando empresas estatais,

arrochando salários, aumentando impostos e juros, entre tantas outras medidas que

revelaram ser tão ruins quanto algumas das medidas tomadas durante os governos militares.

Assim, ainda hoje convivemos num clima de alienação política, de explosão da violência

nas grandes cidades, de lutas por terra...

Portanto, no campo histórico e ideológico, acreditamos que houve, no período

citado, um processo que foi mais de uma linearidade – não absolutamente ―reta‖ nem

muito menos ―progressiva‖, como numa crescente positiva por um acúmulo de vitórias,

riquezas, direitos, etc. – do que de uma suposta ruptura entre os tempos de ditadura e os

chamados tempos de democracia, como se esta não fosse produto daquela. Esse processo

de ―derrota histórica‖ é tratado de forma implícita, ou mesmo explícita, nas obras que

analisaremos. Simbolicamente, vemos em Onetti um prólogo; em Puig, a peça encontra-se

no seu momento central; em Bolaño, num tratamento em retrospecto, vemos uma espécie

de epílogo analítico-remissivo.

Ainda no campo literário, também concordando com Idelber Avelar68, vemos no

surgimento do boom, movimento que celebrava a modernização estética de nossas letras, o

engendramento de um discurso progressista, de uma ambicionada superação, através de um

verdadeiro salto, de um passado dito primitivo para um presente dito moderno. Não é à toa

que o seu declínio deu-se em paralelo à ascensão e à intensificação dos regimes ditatoriais,

inclusive tendo como marco simbólico a destituição forçada de Allende. Viu-se que o

celebrado progresso de nossas letras e que o nosso vanguardismo literário não coincidia

com uma evolução sem traumas nos campos social, político e econômico, o que gerou,

certamente, bastante desconfiança e mal-estar a muitos escritores. Os questionamentos

acerca do fazer literário em tempos de perseguições, torturas e exílios se impuseram aos

participantes do boom e a todos os escritores.

A nossa chegada à ―modernidade‖ ter-se-ia, portanto, assentado sobre uma base de

ruínas e cadáveres: essa é assertiva que serve de ponto fulcral à nossa discussão, da qual

também se extraem alguns tantos questionamentos, que podemos exemplificar. Que

condições propiciaram a explosão do militarismo no continente? Como a literatura se

encontrava no limiar do surgimento do boom e à margem dele, entre o otimismo das letras e

o pessimismo social? O que se seguiu depois disso? Como se deu o processo de tentativa

68 Idem.

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de silenciamento das vozes contrários ao regime opressor? Como se deu a ―produção de

consciências‖ prontas a aceitar o neoliberalismo como uma suposta superação do regime

ditatorial? Como o presente sente-se em relação ao seu passado e seus mortos? Qual a sua

atitude perante a lembrança daqueles que tiveram que morrer por ideais que hoje se veem

esquecidos? Que sentimentos foram produzidos com a definitiva fragmentação da América

Latina?

Não é nosso objetivo responder a essas perguntas. Nosso objetivo, bem mais

modesto, é discutir como essas perguntas, e tantas outras, assim como tantas e tantas

respostas, são possibilitadas pela leitura de algumas obras dos escritores citados.

Preocupamo-nos em desfazer o que frequentemente é apontado como um componente de

nossa época: a cegueira histórica que acomete a tantas pessoas. Nisso, analisaremos, ainda

que de forma sucinta e mais para levantar questões e hipóteses do que para oferecer

respostas, os seguintes romances: La vida breve (publicado em 1950) e El astillero (1961), de

Onetti; El beso de la mujer araña (1976), de Puig, e Los detectives salvajes (1998), de Bolaño69.

Concordando com Fredric Jameson, achamos que esses romances, como narrativas

alegóricas, ou ao menos com elementos alegóricos, ―constituem uma persistente dimensão

dos textos literários e culturais exatamente porque refletem uma dimensão fundamental de

nosso pensamento coletivo e de nossas fantasias coletivas referentes à História e à

realidade‖70. Explorá-las é percorrer essa dimensão onde forças históricas, sociais,

ideológicas, espirituais, etc. cruzam-se e produzem efeitos tão chocantes nas pessoas. Pois

o alegórico, ainda seguindo Jameson, ―pode ser sumariamente formulado como a questão

colocada ao pensamento pela consciência de distâncias incomensuráveis no interior dos

objetos desse pensamento‖71, o que nos exige tentar chegar até esses objetos por vários

caminhos interpretativos, embora sabendo que até mesmo essa estratégia resulta na

impossibilidade de abarcar esses objetos como ―totalidades‖. Pensar o alegórico é,

portanto, pensar numa escala que vai do micro ao macro, numa luta que parece vã, mas que

69 Em relação ao nosso corpus analítico, isto é, os romances estudados, citamos no texto apenas a data da

primeira publicação de cada livro, tendo em vista nossa compreensão de ser necessário enfatizar o

momento histórico preciso de cada primeiro lançamento. Nas outras vezes que nos referirmos a esses

livros, no entanto, preferimos não citar qualquer ano, seja a data de publicação original, seja a data de

publicação do material de que dispomos, por já se encontrarem devidamente citados nas referências

bibliográficas e pela frequência com que nos referimos a eles sem fazer citações diretas. 70 JAMESON, 1992, p. 30-1. 71 JAMESON, 2007, p. 184.

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a História exige, para achar um elo perdido que, se achado, conseguiria dar coesão a todos

os elementos que compõem o mundo.

II

Antes de passar às obras, entendamos o conceito de alegoria. Por alegoria (grego allós

= outro e agourein = falar) compreendemos uma técnica metafórica que trabalha, através de

uma relação de semelhança, para ―representar e personificar abstrações‖72. Logo, a alegoria

é de ordem mimética. No entanto, como bem adverte João Adolfo Hansen, a rigor não se

pode falar apenas de uma alegoria, visto que essa figura, durante toda a história, foi

bastante utilizada e compreendida de diferentes maneiras. Importa-nos, por hora, acentuar

os seus traços mais gerais, aqueles que permaneceram em todos os seus diferentes tipos: o

seu mimetismo e sua intenção de, através de uma semelhança intuída, representar ideias

abstratas. Apoiados nisso, chegaremos a um entendimento do conceito de alegoria barroca

desenvolvido por Walter Benjamin. Para esse pensador, a compreensão dessa alegoria está

implicada numa relação dialética com outros conceitos, como fragmento, luto, melancolia e

jogo.

Por fragmento, sabemos algo fraturado, do qual foi rompido qualquer elo com um

todo do qual esse fragmento fazia parte. De modo bem mais abrangente, entendemos que

hoje é um mundo fragmentado que se oferece aos olhos dos homens, e os próprios

homens sabem-se fragmentos desse mundo. Com o capitalismo, não há possibilidade de

que o mundo seja percebido objetivamente, de que os homens sintam-se totalmente

integrados a ele e entre si mesmos, de que haja uma relação orgânica entre tudo aquilo que

compõe esse mundo, incluindo os próprios homens. Como fragmentos, homens e coisas

agonizam, sabem-se em morte, dispensáveis, substituíveis. Um fragmento, segundo Omar

Calabrese, ―deixa-se assim ver pelo observador tal como é, e não como o fruto de uma

ação de um sujeito. É determinado pelo caso, se assim quisermos dizer, e não por uma

causa subjetiva‖73. Ou seja, um fragmento torna-se ele mesmo um todo, mesmo que

precário, que deve ser lido enquanto tal, e não como parte de um todo ou como o

resultado de um processo reproduzível. Um fragmento jaz como algo que foi arrancado,

72 HANSEN, 2006, p. 7. 73 CALABRESE, 1987, p. 88.

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mas que não permite reconstituição no ser fraturado, pois esse simplesmente não é mais

acessível. Um fragmento é o vestígio de um crime, um dedo amputado, mas que não

possibilita ao investigador saber quem foi o criminoso e mesmo onde está o resto do corpo

da vítima. Tem a ver, de certa forma, com reificação, no sentido marxista clássico, em que,

por exemplo, as mercadorias são vistas como autônomas pelo operário, dada a sua posição

limitada, alheia à totalidade da cadeia produtiva e do sistema capitalista em si. Para Adorno

e Horkheimer74, no momento em que o homem divorciou-se da natureza, passando a vê-la

como objeto, nada o impediu de ver também a outro homem como objeto, passível de ser

manipulado e explorado de uma forma muito mais intensa e calculada. Logo, é por essa via

que podemos estabelecer uma relação entre fragmento, na qualidade mesma de uma

alegoria, e mercadoria, seja essa uma coisa ou mesmo um ser humano coisificado. Por isso,

Benjamin, no seu estudo sobre Baudelaire, decretou: ―A mercadoria procura olhar-se a si

mesma na face, ver a si própria no rosto. Celebra sua humanização na puta‖75. A figura da

prostituta institui-se, pois, como um ícone da fragmentação do mundo moderno, da

transformação absoluta das pessoas em mercadorias, em fragmentos, em alegorias de um

mundo sem um sentido teleológico.

Aquele senso de completude que, à leitura das epopeias clássicas, conjeturamos que

pareciam sentir os antigos gregos, não pode ser mais sentido por nós, sendo até difícil

imaginá-lo. Por isso, para Lukács, o romance é a epopeia de um mundo abandonado pelos

deuses. Supondo, por exemplo, que era Deus, durante a Idade Média, que fazia a necessária

relação entre todas as coisas, sendo ele o fim último de toda direção de sentido; supondo

ainda que, após a Idade Média, com a secularização do mundo, Deus tenha sido deslocado

do centro para o qual tudo apontava; supondo que hoje não exista um único centro e que

os homens orbitam elipticamente ao redor de vários centros, resultantes de suas buscas por

um substituto de Deus (daí a excentricidade e o descentramento do homem moderno);

enfim, supondo que não haja uma causa última para a qual aponte nossa existência, para

dar-lhe sentido, o homem volta-se para a sua subjetividade, procurando dentro de si

mesmo, e não na coletividade ou no mundo, nos quais ele não se reconhece mais, algo que

dê sentido à sua existência. Julgamos que a obra de arte romanesca, entre muitas outras

manifestações do espírito humano, demonstra claramente, dada a sensibilidade exigida para

74 ADORNO; HORKHEIMER, 1985. 75 BENJAMIN, 1989, p. 163.

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a realização de sua configuração, a relação entre subjetividade e perca da organicidade do

mundo. Daí concordarmos com Lukács, para quem o ―processo segundo o qual foi

concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a

si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro da realidade simplesmente existente‖,

realidade a qual é ―em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo...‖76. Benjamin,

por sua vez, fala da perca da capacidade de vivenciar experiências, e logo de narrá-las, já

que para isso o autor pressupunha a necessidade de uma vida em comunidade, de uma

dimensão prática dos saberes narrados, de um ritmo de vida mais lento, tudo o que o

capitalismo foi, progressivamente, devastando da terra77. Por isso, para Benjamin, o

―primeiro indício do que vai culminar na evolução da morte da narrativa é o surgimento do

romance no início do período moderno‖.78 O romance é, portanto, uma espécie de ―apesar

de tudo‖. Continuar a escrevê-lo, sabendo que sua existência é já o sintoma de um mundo

em perdição, é também a constatação da posição de extrema contradição de quem escreve.

―O romance anuncia a profunda perplexidade de quem vive‖79. O romancista é aquele

indivíduo isolado que ―não recebe conselhos nem sabe dá-los‖80.

Dessa discussão, chegamos, aos conceitos de luto e melancolia. Por luto, vulgarmente

compreendemos o estado de quem sente a perda de um ente querido ou, de modo mais

genérico, de algo que se achava vivo – um ideal de vida comunitária, um senso de

integração orgânica entre sujeito e sociedade... em suma, tudo aquilo que a fragmentação

do mundo fez morrer – e com o qual se estabelecia uma relação especial. Esse estado, no

entanto, é necessário para que cheguemos a redimir o morto, isto é, superar a sua perda,

através da reflexão acerca de tudo o que ocorreu e do que devemos fazer para seguirmos

vivendo um pouco engrandecidos intelectual e sentimentalmente, quem sabe. É, portanto,

um estado que não pode ser reprimido para que quem sobrevive consiga sentir-se em paz

consigo, sem que fantasmas o atormentem. O enlutado vê um fim ao seu sofrimento, do

qual pode sair com uma compreensão do processo pelo qual passou, encerrando uma etapa

de sua vida e apreendendo, portanto, um sentido de sua experiência. Diferente é o tipo

melancólico, que não consegue sair do estado de sofrimento. O melancólico, também

grosseiramente, é aquele que não consegue identificar a origem e, logo, um fim para a

76 LUKÁCS, 2000, p. 82. 77 BENJAMIN, 1994. 78 Idem, p. 201. 79 Idem, Ibidem. 80 Idem, Ibidem.

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apatia mórbida que o acomete. Diferente do depressivo, que sabe a origem de seu mal, o

melancólico não consegue expressá-la. Embora esteja sempre a um passo de traduzi-la, vê-

se atado à sua condição. O fim para a sua melancolia, portanto, significaria pôr fim a sua

própria vida, daí a figura do suicida como outro ícone da modernidade.

Tendo aprendido isso, chegamos às recorrentes assertivas de Benjamin sobre a

relação entre alegoria, melancolia, luto e jogo. O pensador afirma: ―A alegoria é o único, e

muito poderoso, divertimento que se oferece ao melancólico‖81, e ainda: ―Na via-crucis do

melancólico as alegorias são as estações‖82. Ou seja, como fragmentos, ou ainda como

montagens de fragmentos, as alegorias oferecem-se ao olhar dos melancólicos como

enigmas a serem decifrados, labirintos a serem percorridos. As alegorias, portanto,

convidam o melancólico ao jogo. Para Afonso Ávilla, o ―jogo para o homem barroco,

especialmente para o artista mais sensível ao dilaceramento humano, foi a saída instintiva

que teve para deter, ainda que ilusoriamente, o lento escoar de sua situação absurda no

mundo‖ 83. No entanto, seguindo ainda Ávilla, a ideia de lúdico, intrínseca ao conceito de

jogo, não deve ser compreendida como uma atitude alienada do ser, porquanto que é um

jogo cuja única regra é não limitar-se, dobrar-se ao infinito, expandindo potencialidades e

formas de explorar o (sem)sentido das coisas. É por isso que Ávilla também afirma:

―sempre que ele se sinta acuado pelas forças da conjuntura ideológica e social, o artista

estará fatalmente tentado a uma espécie de rebelião através do jogo‖84. Porém, ―a expressão

criadora só atinge a ambicionada meta da comunicação quando esta e a expressão se resolvem

numa forma apta a viabilizar aquele acordo, aquela indispensável empatia entre produtor e

consumidor‖85.

Ou seja, disso tudo podemos deduzir que: a) há um vínculo espiritual entre o homem

barroco e o homem contemporâneo, o que é evidenciado pela arte alegórica, fragmentada,

labiríntica, aberta, convidativa, apresentada nos dois períodos; b) essa arte fragmentada,

como já vimos, resulta de um mundo em ruínas, em que os sujeitos veem-se atormentados

com a perda da organicidade, da relação entre os homens entre si mesmos e entre os

homens e o mundo, já que não há mais um centro em torno do qual tudo orbite e para o

qual tudo aponte; c) a arte, fragmentada, revela o estado de melancolia dos homens, o seu

81 BENJAMIN, 2004, p. 201. 82 BENJAMIN, 1989, p. 157. 83 ÁVILLA, 1994, p. 30. 84 Idem, p. 67. [grifado no original] 85 Idem, p. 65. [grifado no original]

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possível trabalho de luto pelas coisas mortas, fragmentadas, pela perda da organicidade do

mundo; d) a arte fragmentada revela a tentativa de os homens dotarem as coisas mortas,

fragmentos, de um sentido último que, sabendo eles já impossível, adotam a alegoria, que é

aberta e explode em mil sentidos; e) a arte alegórica, sendo aberta, convida ao jogo, dado

que o artista, ao produzi-la, tenta dotá-la de um sentido que se apresenta como enigmático;

tenta montar os fragmentos num sistema que, precariamente, simula uma totalidade,

cabendo ao observador encontrar esse suposto sentido; d) tanto o artista quanto o

observador, tanto o escritor quanto o leitor, devem partilhar do mesmo sentimento de

melancolia para compreenderem essa arte, para verem nela o sem-sentido e ainda assim

insistirem em buscarem um, adentrando nos seus labirintos...

Muitas outras formulações poderiam ser feitas. No entanto, para que concluamos

esta seção retomando o que expressamos há pouco, sobre o caráter mimético da alegoria e

sobre a sua intenção de, através de uma semelhança intuída, representar ideias abstratas,

podemos afirmar que a alegoria mimetiza, portanto, o impossível, o sentido último perdido

e fragmentado em mil sentidos, e que as abstrações que a alegoria tenta representar, como

transcendências sempre falhas, aderem a concretudes, à materialidade dos fragmentos,

sempre imanentes, mas negando essa imanência sempre, pois sabem-na seu decreto de

morte.

III

Tendo compreendido a conjuntura latino-americana em que se inserem os escritores

e as obras que analisaremos, assim como o complexo sentido de alegoria e qual o vínculo

estabelecido por ele entre o barroco e a modernidade, comecemos a discutir as duas obras

de Juan Carlos Onetti.

Em La vida breve, Onetti nos apresenta a Brausen, homem que vive miseravelmente:

sua esposa o abandona, ele perde o emprego e envolve-se na trama de assassinato de uma

prostituta. Após desistir de tentar escrever o roteiro de um filme, em meio a tantos

infortúnios, entrega-se à criação de universos imaginários, preparando a sua saída do plano

que traduzimos como a própria realidade da trama do romance para ir habitando,

paulatinamente, outros planos, inferidos como diferentes tipos de ficção dentro da própria

trama principal. Nosso protagonista, já no início do enredo, ouve e imagina o que se passa

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no apartamento vizinho, onde Queca, a prostituta, recebe vários homens. Desenha-se,

então, uma instância que o leitor entende, a priori, como intermediária, já que, quando passa

a habitá-la, em suas visitas a Queca, Brausen passa a representar Arce, misturando a sua

realidade com elementos fictícios. Depois, Brausen, ao escrever, concentra-se na criação de

uma cidade a qual denomina Santa María. Essa é a instância que, também a priori, o leitor

entende como plenamente fictícia, a qual poderia ser totalmente independente das outras

instâncias, seja a realidade de Brausen ou o seu devaneio ao denominar-se Arce. Em Santa

María, Brausen projeta-se na figura do doutor Díaz Grey, personagem principal de uma

história em que estranhamente, nada significativo parece ocorrer, em que as cenas que o

médico divide com a mulher viciada em morfina, Elena Sala, inspirada na própria mulher

de Brausen, Gertrudis, são sempre monótonas. Percebe-se, enfim, que, seja como Arce ou

Díaz Grey, Brausen fracassa. Mesmo em Santa María, onde ele, encarnado no doutor,

poderia desfrutar o amor de Elena já que não mais o consegue em sua realidade, com

Gertrudis, há uma clima que assegura uma contínua frustração, uma insatisfação que não

pode ser aplacada. Enfim, todos esses planos entendidos aprioristicamente como

separados, embaralham-se, fundem-se, incitando o leitor a duvidar de que a sua própria

realidade é também um dos planos dessa ficção. Cabe, quanto a isso, um último ressalto: a

colocação em xeque da própria realidade do leitor dá-se pela sutil, mas genial, utilização de

uma técnica de jogo de espelhos, quando o escritor Onetti insere a personagem Onetti na

trama do próprio romance.

Em El astillero, acompanhamos Larsen, ou Juntacadáveres, um ex-cafetão que retorna

a Santa María cinco anos depois de haver sido expulso pelo governador. Larsen, então,

aceita o convite de Petrus, dono de um estaleiro em Puerto Astillero, nas proximidades de

Santa María, para tornar-se gerente-geral desse estabelecimento. No entanto, fica claro que

o estaleiro está em ruínas e que nunca será recuperado, embora todos, incluindo dois

patéticos operários que nele trabalham, insistam em assegurar que haverá sim um dia em

que tudo novamente irá voltar a funcionar com sucesso. Larsen, ao menos, parece ter mais

de uma razão para entrar nesse jogo, porque fica noivo de Angélica, a filha louca de Petrus.

Ele almeja, portanto, a suposta herança milionária que pode lhe cair em mãos, mas, no

fundo, sabe que nada de bom ocorrerá, sendo aquele que, ao lado de Petrus, mais imerge

na farsa quanto mais se assegura de que tudo não passa apenas disso mesmo, uma farsa,

agarrando-se a ela por saber que é tudo que lhe resta.

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Podemos já dizer que uma angústia avassaladora acomete aos personagens

onettianos. Eles, no entanto, são incapazes de nomeá-la, impossibilitados de enganá-la, por

isso entram em fuga, seja através do devaneio, do pensar em um passado fragmentado e

irrecuperável, do criar histórias e universos. Sentem-se desamparados, querem anular-se,

apagar os vestígios de suas vidas ―verdadeiras‖, transformarem-se em outros em quem não

se reconheçam mais aqueles. Porém, eis a ironia, eles são traídos pelo desejo de viver – por

suas pulsões de vida, pelo desejo, por exemplo, de fazer amor –, mesmo como outros,

noutras vidas, fazendo com que o desamparo volte, ainda que sob uma nova forma – o que

gera novas pulsões de morte, desejos de (auto)destruição. Viver um outro, mas não nomear

a angústia onipresente, o sem sentido que acomete a tudo, deixa um buraco, o não

nomeado, que fica, digamos, no céu de cada novo universo criado, fazendo com que por

ele escoe tudo aquilo que era maléfico no universo abandonado. O desejo inominável –

muito maior que as simples pulsões de vida – que também os oprime, ao realizar-se apenas

incompletamente, pelo devaneio, pela fuga, gera sempre mais frustração, fazendo com que

o novo universo torne-se sempre uma cópia piorada do mundo primeiro. O entregar-se ao

devaneio, ao escrever, ao criar mundos paralelos, gera deslocamentos sempre ineficientes.

O desejo inominável – mascarado em outros desejos ―menores‖, em pulsões de vida como

o sexo –, sendo reprimido, sempre volta a acometê-los. A angústia persiste. Ao não

poderem nomeá-la, negam-na, negam a realidade em que vivem. Mas negar é admitir que

aquilo que os oprime estará sempre presente, olhando-os de soslaio. Daí o clima de

desconfiança. Desconfia-se da linguagem, de si mesmo, do outro, de tudo.

A desconfiança reina em El astillero, por exemplo, quando as personagens assumem a

farsa como o único aceitável, temendo que alguém ameace desfazê-la, porque também

entendem que, se essa farsa ruir, em que outro estado irão viver, se não se podem nomear

o mal onipresente? Assim, tanto em La vida breve quanto em El astillero, as personagens

sentem-se impossibilitadas de agir no plano da existência ―real‖, por isso criam outros

planos, saem em rota de fuga, e assim recomeçam o processo já descrito, que novamente

gera angústias. O universo diegético de El astillero, no entanto, é o universo criado por

Brausen. O estaleiro em ruínas do velho Jeremías Petrus fica próximo a Santa María, cidade

criada como um destino para a fuga de Brausen. Escrito alguns anos depois de La vida breve,

em El astillero Onetti nos apresenta um desdobramento do universo criado por Brausen.

Disso, deduzimos: um demiurgo imperfeito é incapaz de criar um universo perfeito; com

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fragmentos não se constrói uma totalidade, um mundo orgânico, mas apenas uma

montagem precária, com partes que se descolam e caem. O universo opressivo e sombrio

de Puerto Astillero e Santa María são reproduções da opressão e angústia sentidas por

Brausen. Ao discutir os dramas de destino de Calderón, Benjamin nos fala das técnicas de

enquadramento e miniaturização implicadas numa reflexão que ―repete-se até ao infinito, e

miniaturiza até ao imprevisível o círculo que circunscreve‖. A realidade e a ficção

envolvem-se, geram ―a miniaturização lúdica do real e a introdução de uma infinitude

reflexiva do pensamento na finitude fechada de um espaço profano. (...) um espaço

fechado sobre si próprio‖86. De fato, é o universo fragmentado de Brausen, um todo

precário voltado sobre sua própria condição de desgarrado do mundo, fecha-se sobre si

mesmo, com todos os seus defeitos e carências reproduzidas até a menor escala, como um

destino implacável do qual não se pode fugir, mesmo criando-se mil mundos imaginários,

um dentro do outro, numa estrutura labiríntica ou espiralada, que vai se fechando até um

centro inatingível. Enfim, um demiurgo imperfeito e fechado na sua (i)limitada

subjetividade é incapaz de criar um universo perfeito (ao escrever isso, pensamos não

apenas na personagem Brausen, mas no próprio Onetti e na condição de todo bom

romancista em tempos de crise).

Em La vida breve, sabemos ainda do sadismo de Brausen, ao bater em Queca, e vemos

nisso uma identificação com a face de um pai opressor inominável, uma tentativa de

salvaguardar-se que se relaciona ao mesmo sadismo com que ele cria seus duplos, pois, ao

criá-los, o faz na qualidade de novos oprimidos e maltrata-os como a si mesmo, vendo na

dor de duplicar-se como um novo fracassado um fim em si; um conflito cíclico que se

retroalimenta e se autorreproduz, como um narcótico, como a morfina traficada e usada

por Elena, como o próprio ato de escrever/ler. A dialética opressor/oprimido instaura-se

como uma doença existencial. Brausen vê em si mesmo a causa da dor que o acomete (em

uma passagem do livro, alude a uma sucessão de ―brausens‖ fracassados). A melancolia de

Brausen, então, decreta uma imutabilidade de sua circunstância, dado que ela advém de

tempos imemoriais, reproduzindo-se através de seus ancestrais, tendo, portanto, que

reproduzir-se em seus duplos.

O tom lento, descritivo, em permanente suspensão, com que Onetti escreve, fazendo

o leitor perceber que muito pouco acontece, mas que muito se diz, incitando-o a buscar

86 BENJAMIN, 2004, p.79.

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segredos numa linguagem densa, numa atmosfera nebulosa, é um contrapeso dos

elementos formais que se equilibram com o presente eterno e labiríntico que configura o

universo diegético de seus livros. Também afirmamos que, mesmo em face a um mundo

fragmentado, mesmo estando sempre a encarar a face das coisas mortas, o trabalho de luto

parece ser negado por suas personagens. Elas insistem em fingir que há qualquer coisa que

lhes dará a redenção, sem que encarem os mortos como mortos. Nisso, a melancolia parece

inflar-se, estar na iminência de explodir. Ler Onetti é vivenciar essa tensão. E é na

linguagem, no plano mais imediatamente imanente pelo qual se adentra no(s) universo(s) de

seus livros e que interconecta a todos eles, que esse luto negado é mais evidente. Luto e

jogo, a relação intrínseca ao olhar do melancólico, que ―brinca‖ com os fragmentos (coisas

mortas) tentando dar-lhes sentido, é evidente no estilo onettiano, ao fazer das palavras e

dos fonemas os seus fragmentos mais imanentes, odiados (pela insuficiência da linguagem)

e amados (é tudo que lhe resta). O luto a que se resiste, portanto, também é o luto pela

própria linguagem literária.

Ainda sabemos que Brausen, como escritor, é uma espécie de narcisista, que

incorpora os objetos degradados (os seus duplos, a sua escrita) em si, anulando-os e, logo,

anulando a si mesmo. Anular-se, como Brausen, transformar-se em outro, portanto, é uma

forma de suicídio, daí o seu narcisismo, a sua fixação num ―eu‖ negado e mesmo assim

onipotente. Esse ―eu‖, esse Brausen a quem Brausen aspira perder, transformando-se em

Arce, em Díaz Grey, é um ―quem‖, mas não aquele ―quê‖ essencial que se deveria nomear.

Ou seja, Brausen vê em si a causa dos seus fracassos, mas ainda não consegue nomear isso

que o faz ser um angustiado. Ele, então, chega sempre perto de uma verdade: há sempre

um patrão velho e degradado que o despede, há sempre a falta de dinheiro, a mulher-mãe

degradada – Gertrudis, sem o seio materno que é fonte de alimento e também de conforto

infantil; Queca, a prostituta com quem Brausen trava um primeiro contato desajeitado, com

quem ele envolve-se numa relação edipiana de atração/repulsão; Elena, a viciada em

morfina que procura a Brausen/Díaz Grey apenas para que ele a forneça drogas; Angélica,

a filha louca de Jeremías Petrus, com quem Larsen pretende casar-se por interesse; a

própria Santa María, cidade com o nome da mãe de Jesus, dominada por um filho edipiano

Brausen-Grey, deus fundador ou pai-filho edipiano, que nomeia praças, ruas e demais

lugares, como os generais-estátuas feitos de ficções oficiais que habitam as praças das

cidades do mundo, etc. Brausen, então, chega sempre perto da alguma verdade, do porquê

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estar sempre em angústia, da impossibilidade de unidade e organicidade no mundo, o que

gera sempre uma frustração, para leitor e escritor, daí o seu decreto ao sem sentido da vida,

ao ―mundo louco‖ no bordão de Queca, à falta de uma verdade, de um fundamento que dê

razão ao viver. Sem razão, as personagens de Onetti fingem o tempo todo, fantasiam.

A falta de uma verdade fundacional, então, é o decreto de que não há sentido algum

a ser buscado, só há falta de sentido, mas que exige sempre uma busca, fazendo com os

sentidos precários multipliquem-se ao infinito. Em El astillero, é o próprio estaleiro, ponto

de chegada e partida entre cada jornada, lugar onde os navios-navegadores buscam abrigo e

reparo, após cruzarem os mares-desertos-desafios, que está em ruínas. Não há solução,

portanto. Assim, ―por que escrever, por que ler, por que seguir buscando esse sentido

inexistente?‖, sugerem-nos os romances, em muitas passagens. Achamos, por isso, que

Onetti, Brausen e o leitor são os melancólicos do mundo moderno, sempre em luto,

sempre angustiados, querendo recuperar o sentido perdido, montar os fragmentos do

mundo, buscando reconstruir uma totalidade perdida, adentrando em labirintos de pura

linguagem, de pura imanência que explode em sentidos que nunca transcendem a um

sentido soberano. Daí a sensação reforçada pela leitura de Onetti de que a escrita e a leitura

de um romance são atitudes totalmente utópicas, por insinuarem aos melancólicos que

esses vislumbrarão, por um segundo, um possibilidade de totalidade, através do próprio ato

solitário de ler/escrever. Sabemos já, no entanto, que, ao fazer uma montagem de

fragmentos, não conseguimos nunca obter uma totalidade. Fragmentos são dispensáveis,

substituíveis, não se encaixam perfeitamente, não formam nunca um todo perfeito. O

leitor/escritor, como fragmento do mundo, é também dispensável, substituível. A paranoia

de buscar um sentido, que acomete ao escritor e ao leitor, portanto, expressam a melancolia

moderna, o luto por um sentido morto, o luto pelas coisas mortas, em ruínas, que mostram

suas faces em degradação nos objetos, nos rostos das pessoas-objeto-fragmentos, das

memórias sempre fragmentadas incompletas, falseadas, duvidosas.

IV

Em El beso de la mujer araña, Puig nos introduz na pequena alcova de uma prisão

argentina em que se encontram presos Valentín e Molina. Enquanto presos, sabemo-nos

desgarrados da sociedade, apartados do mundo, postos à margem. Dado o caráter leve da

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prosa, já no início, somos incitados a delinear seus caracteres, mesmo através de seus

diálogos entrecortados, ágeis, em discurso direto. Assim conhecemos Valentín, um

revolucionário, homem reflexivo e desconfiado, preso por subversão às leis ditatoriais, e

Molina, um homossexual, homem falante e sentimental, acusado de corrupção de um

menor de idade. Molina, além disso, mostra-se um contador de histórias; ele narra a

Valentín, de modo fragmentado, mas eficiente, os enredos de filmes B estadunidenses que

assistira na juventude. As narrativas fílmicas são, portanto, uma rota de fuga para a

realidade dura que acomete aos presos, e é já no desenrolar de uma dessas histórias que

somos inseridos na trama, ou seja, somos introduzidos num entre-lugar, entre a realidade

da alcova e a realidade da ficção narrada pela personagem.

Ao seguirmos lendo, vemos como Puig estrutura o seu romance com a inserção de

várias notas de rodapé em que se discute o tema da homossexualidade e a psicanálise. Há,

ainda, longos monólogos interiores de Molina e, ao final, um relatório policial sobre as

ocorrências que marcam o fechamento da trama, com a trágica morte das duas

personagens: Valentín é morto por tortura, Molina é morto, ao sair da cadeia, pelos

camaradas de Valentín, ao temerem que ele os prejudicasse de algum modo, ao relatar algo

à polícia. El beso de la mujer araña é, portanto, um romance estruturado a partir de uma

montagem de diferentes planos discursivos, planos fictícios e de diferentes gêneros

textuais, os quais condicionam o leitor a fazer constantemente relações analíticas,

inferências, relações entre o político, o social, o econômico, o histórico, a sexualidade, a

religiosidade e a moral, até.

Pelas narrativas fílmicas de Molina, por exemplo, pensamos no universo da cultura

de massas, que moldou o caráter da personagem, inculcando-lhe valores que nada tem a ver

com a sua realidade. Ora, Molina, achando-se preso numa alcova latino-americana, com um

preso político (e ele também não era um preso político?), devaneia a imaginar-se como

heroínas de universos distantes. Desse modo, é Valentin quem questiona a Molina, critica

os enredos, pouco falando, mas suscitando a reflexão. Gera-se uma tensão entre uma

imanência fria e a uma transcendência que, embora falsa, aquece os corpos e as mentes.

Porém, dada a condição em que Valentín se encontra, pela necessidade de também

esquecer-se preso às vezes, de concentrar-se em alguma história, para não perder a própria

história, preservando-se, para aliviar os sofrimentos, tudo faz com que até mesmo ele

sucumba à imaginação de Molina. Ambos compartilham sentimentos que revelam o

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absurdo de sua situação, mas que fazem o leitor refletir acerca das possibilidades de

transformação humana, mesmo através do relato ficcional de filmes ruins, mesmo através

dos valores encaixotados da cultura de massas.

Desse modo, se pensarmos na relação entre os valores ideológicos muitas vezes

propagados pelo tipo de cinema americano retratado no livro – o individualismo, a

martirização, o romantismo piegas... – e a alienação deflagrada pela fragmentação social

imposta pelo regime capitalista, que faz os sujeitos não perceberem os laços entre, por

exemplo, os regimes ditatoriais latino-americanos e a política de Washington, nisso tudo

percebemos uma ironia muito profunda, a de que Valentín, o revolucionário comunista,

transforme-se em alguém mais humano, menos preconceituoso, ainda mais livre das

convenções sociais sobre a sexualidade, culminando no próprio ato de copular com Molina.

El beso de la mujer araña, devemos confessar, aparenta-nos ser de uma decifração mais

rápida (sem que isso signifique aqui algum tipo de reprovação). Uma obra plenamente

alegórica, como demonstramos, é aquela que faz com que percamos o foco de outros

fragmentos se nos fixarmos em apenas um. É aquela que dificulta ao máximo a nossa

apreensão do todo que conforma a sua montagem. Estando isso não tão marcado em El

beso de la mujer araña, ou seja, dando esse romance a impressão de que podemos nos focar

em um de seus componentes sem perder de foco os outros, parece-nos tratar-se de uma

obra cujos elementos aproximam-se mais ao conceito de símbolo, isto é, que faz uma

ligação mais instantânea e orgânica entre o que se representa e o que é representado, sem

induzir o observador a confusões, a perder-se87. Contudo, de um outro ponto de vista, se

entendermos que há uma impossibilidade de se representar, ainda nesse romance, uma ideia

de totalidade – embora haja a clara incitação a pensar nas relações entre o particular e o

geral, o individual e o social, a realidade de uma cadeia latino-americana e de seus presos e a

indústria cultural de massas dominante em praticamente todo o mundo... – sendo a própria

trama uma espécie de recorte na trajetória das personagens, sendo os seus passados vistos

como quadros fragmentados, perdidos, mortos; sendo o seu presente uma trajetória que

parece rumar, definitivamente, para uma morte sem transcendência (eles ainda são

fragmentos de uma sociedade que produz a morte não redimida, que esconde os mortos e,

portanto, proíbe o trabalho do luto), podemos ver nisso um aspecto alegórico. Além de

tudo, há um componente labiríntico na obra, evidenciado pelos diferentes planos

87 BENJAMIN, 2004.

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discursivos (a narrativa de filmes, a discussão psicanalítica nas notas de rodapé, os

relatórios frios da polícia, a própria história de Valentín e Molina) que o leitor é obrigado a

percorrer fazendo relações, ainda que não tão complexas, entre esses planos. Se a trama,

em si, não contém características definitivamente alegóricas, a obra em si alegoriza o caráter

paradoxal da sociedade latino-americana durante os anos de chumbo.

V

Achamos interessante iniciar a nossa análise de Los detectives salvajes a partir de uma

discussão sobre o seu próprio título. Está claro que ele não deixa totalmente evidenciado

do que trata o romance (comparem-no com os títulos de romances realistas, aqueles com

uma pretensão de totalidade). Considerando que a arte alegórica convida à decifração de

um hipotético enigma e que o alegorista insinua possuir um suposto segredo, o qual seria o

sentido almejado pelo leitor melancólico, o título Los detectives salvajes é em si mesmo um

elemento alegórico. No entanto, já sabendo que a alegoria, por sua natureza, não permite

um fechamento de sentido, que ela é a própria multiplicidade semântica, devemos sugerir

mais de uma interpretação, como uma forma de cercar, por vários lados, o nosso alvo.

Dito isso, pensemos que, havendo no título a palavra ―detetives‖, estamos tratando

de lei e crime; um detetive é aquele que procura pistas para desvendar os mistérios

envolvidos num crime, suas causas, seus culpados. Se um crime ocorre, há uma lei que foi

infringida, um sistema jurídico que rege a sociedade e que garante punição aos culpados

pela infração. Se um crime ocorre, no entanto, essa sociedade não está assegurada de que

todos os seus participantes estejam obedecendo ao sistema imposto; há sempre alguém à

margem, que quer ou necessita desobedecer às leis, havendo ainda os crimes acidentais.

Pode ser, no entanto, que o próprio sistema cometa crimes, e que o detetive atue para

achar as provas que o apontem por ter infringido as próprias leis por alguma razão. De

qualquer forma, ―detetives‖, por si só, convida à decifração, alude ao melancólico que

encara as alegorias como um modo, sempre falho, de buscar um sentido à vida.

Por sua vez, ―selvagens‖ também nos incita a pensar em lei, lei da selva, em que os

animais mais fortes, ágeis ou melhor adaptados ao ambiente vão devorando os mais fracos,

lerdos ou inadaptados. Todavia, não fica claro se, nesse caso, caberia usar a palavra ―crime‖

para o fato, por exemplo, de um leão devorar um antílope. ―Lei‖, sugerido por ―detetives‖,

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e ―selvagens‖, do próprio título, parecem excluir ―crime‖, também sugerido por

―detetives‖. Todos os atos violentos praticados em nome de uma lei da selva, parece-nos,

estariam naturalmente justificados, ou então, no caso de uma sociedade, as leis que regem o

sistema estariam sendo bastante desobedecidas quiçá pela perda de controle das

autoridades, instaurando o caos. De outro ponto de vista, se pensarmos em ―selvagens‖

como ―inadaptados‖ ou ―desobedientes‖, ou seja, em que não há conformidade com um

sistema estabelecido, podemos entender ―detetives selvagens‖ como uma referência aqueles

que, apesar de agirem em nome da lei, enquanto detetives, desobedecem-na em algum

momento, ao cometer algum ato inadequado. Por fim, ―selvagens‖ incita-nos a pensar,

obviamente, em selva, natureza, onde tudo obedece a um ciclo que, infalivelmente, passa

pela morte, sem que haja crimes e, logo, culpados.

Assim, pensemos na relação estabelecida por Benjamin entre alegoria, história e

natureza: ―...a natureza, se desde sempre está sujeita à morte, é também desde sempre

alegórica‖88, ou ainda: ―A palavra ‗história‘ está gravada no rosto da natureza com os

caracteres da transitoriedade. A fisionomia alegórica da história natural, que o drama

trágico coloca em cena, está realmente presente sob a forma de ruína‖89. Fazendo um

paralelo disso com Los detectives salvajes, concluímos haver – e nisso apoiamo-nos também

numa interpretação de seu enredo – uma alusão à história dos homens como algo que

parece estar fora do seu controle, tal qual ocorre na natureza com os terremotos e os

furacões, que produzem mortos e ruínas sem que ninguém possa apontá-los como

assassinos. Os detetives selvagens seriam aqueles que buscariam, em meio à selva histórica,

utilizando-se da força ―literária‖, por exemplo, e de métodos contrários às falhas leis

dominantes (como os questionamentos dirigidos à história oficial, como um desafio ao

poder instaurado), investigar, pela análise das ruínas, das carcaças, dos fragmentos, as

causas e os culpados, se os há, pelos tantos mortos que se vão esquecendo, pelos tantos

escombros sobre os quais se erigem novas construções. Detetives, portanto, seriam até

mesmo os leitores, dado que a alegoria convida ao jogo, mantém a obra de arte em

abertura. Os leitores, como melancólicos e em estado de permanente insuficiência,

buscando também no romance e na selva histórica algum sentido, decifrando alegorias,

refletindo sobre a precariedade do mundo, questionando, pela leitura, a realidade imposta,

88 BENJAMIN, 2004, p. 181. 89 Idem, p. 192.

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pensando nos crimes cometidos, nos mortos esquecidos... os leitores, enfim, fazem sua

própria investigação. Detetives, como interpretantes, são aqueles que buscam transcender,

que não aceitam a pura imanência crua da matéria natural fragmentada, sempre em vias de

putrefação.

O romance Los detectives salvajes nos conta a história de jovens latino-americanos que,

no México de meados dos anos 70, viram-se seduzidos, depois da leitura de um único e

enigmático poema, por Cesárea Tinajero, uma obscura poetisa (ou, como nos advertem

algumas personagens, obscura ―poeta‖) integrante de um grupo mexicano de vanguarda no

início do século XX. Por essa fascinação, eles partem para o deserto de Sonora, em busca

de pistas para saber do seu paradeiro. Essa busca, porém, compreende a primeira e a

terceira (e última) partes do romance, que nos são narradas através de um diário escrito por

um jovem chamado García Madero, quem abandona a universidade para dedicar-se à

poesia e juntar-se aos real-visceralistas, grupo do qual fazem parte, entre outros, Arturo

Belano e Ulises Lima. Os real-visceralistas de Belano e Lima inspiram-se, justamente, nos

real-visceralistas liderados supostamente, décadas antes, por Cesárea Tinajero. É, porém, a

segunda e maior parte do romance que atrai a maior atenção crítica. Nela, narra-se

justamente a história de Belano e Lima após terem deixado o deserto de Sonora e partido

para uma jornada que os fez passar por vários lugares do mundo, como melancólicos

errantes. Tal narrativa, porém, dá-se de modo fragmentado, disperso, descentrado. A

começar, fala-se da trajetória de dois homens, fazendo com que se aponte para duas

direções, dois centros, já que Belano e Lima seguem caminhos diferentes. No entanto, dado

que os depoentes falam também de si mesmos, os dois centros vistos em Belano e Lima,

que geram uma órbita elíptica nos discursos dos depoentes, muitas vezes se dispersam,

quando um dos depoentes fala em si mesmo, deslocando a trajetória da órbita narrativa

elíptica para girar ao redor de um terceiro, quarto, quinto... novo eixo provisório.

Utilizando uma metáfora musical, podemos dizer que, se Belano e Lima são dois baixos

que trabalham em contraponto e que todas as outras vozes – entre as dos depoentes e as

outras vozes ouvidas através destas, que constituem o restante da orquestração romanesca,

gerando uma harmonia intrincada e dissonante, pontuada às vezes por um solista, um

depoente que centra o seu discurso acentuadamente em si mesmo –, são os próprios

baixos, deduzidos como essenciais à harmonização sinfônica da trama, que silenciam,

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desaparecem, desafinam, fazendo as outras vozes se dispersarem, fazendo os solistas irem

das regiões mais graves até as mais agudas da escala para preencher o vazio harmônico.

Los detectives salvajes é, portanto, um romance labiríntico, em muitos sentidos. Sua

composição estrutural é composta ressaltemos, de três partes, sendo a primeira e a última

estruturalmente idênticas, escritas em forma de um diário pessoal, e a segunda uma série

enorme de relatos pessoais. A primeira e a última partes, no entanto, contam-nos o início

da enredo, se o dispusermos numa ordem cronológica (com a segunda parte, há uma

suspensão do relato contido no diário), e a segunda parte é, portanto, o final da história. Os

labirintos aparecem também nas peregrinações dos jovens poetas pelas ruas da gigantesca

Cidade do México, ou D.F.; pelas suas incursões em lugares como o bar Encrucijada

Veracruzana, o que por si só evidencia a alusão a um labirinto. Há labirinto também em

Sonora, o estado e deserto em que adentram os poetas em sua fuga de uma cafetão violento

e em sua busca por Cesárea Tinajero. Aliás, a própria ideia de um deserto como um labirinto

alude a uma recorrência na literatura, isto é, o deserto como um labirinto do qual se é mais

difícil escapar, por conter todas e nenhuma saída ao mesmo tempo, visto que se pode andar

para qualquer direção, mas nenhuma que leve a qualquer saída. Há labirinto, ainda, na

jornada empreendida por Belano e Lima pelo mundo, quando passam por vários países e

continentes, em sua fuga e busca de algo inominável. Contudo, o caráter labiríntico do

romance é evidenciado de modo mais evidente no já referido caráter estrutural da segunda

parte da trama, em que tudo é narrado por depoentes, em textos nos quais todos falam

tanto de si mesmos quanto de Belano e Lima. Apesar de obedecerem, com algumas

exceções, a uma ordem cronológica, de um período que compreende cerca de vinte anos,

entre 1976 e 1996, várias personagens repetem-se, e alguns depoimentos são apenas um só,

fragmentado em diversas partes, podendo o leitor ler sem obedecer à ordem em que são

dispostos no romance, como num labirinto que oferece várias entradas.

Sendo os labirintos tão evidentes na composição do romance, podendo ser ele

mesmo considerado um único grande labirinto, constituído a partir de uma montagem de

labirintos menores (a técnica de miniaturização a que já nos referimos, que se reproduz da

menor à maior escala), as ideias de fuga, busca e jogo são exigidas. Ora, entra-se ou sai-se

de um labirinto buscando algo ou fugindo-se de algo. O caráter lúdico, de todo modo, está

contido na operação. Perguntamo-nos, então: de que fogem as personagens? O que

buscam ao ingressarem nesses labirintos? O que encontram neles? Isso nos leva a refletir

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acerca dos seus nomes. Notemos, por exemplo, que Arturo Belano, alter ego de Roberto

Bolaño, também alude ao Rei Arthur. Há, inclusive, uma passagem em que a personagem

entra num duelo de espadas totalmente anacrônico e despropositado. Ulises Lima, por sua

vez, alude ao Ulisses homérico e ao joyceano. É, de toda forma, alguém que também faz

uma travessia, em busca de fechar um ciclo, encerrar uma experiência, dotar-se de um

sentido. São, portanto, nomes que aludem à ideia tanto de provação, travessia,

transformação, quanto de heróis epopeicos que, por isso, deveriam representar todo o seu

povo. Nisso, eis o problema: como já vimos, Belano e Lima ligam-se precariamente a todos

aqueles que fazem parte, digamos, de sua geração, sua comunidade. Os fios que os ligam

rompem-se facilmente. Ao tentar descrevê-los, os depoentes esquecem fatos, confundem-

se, dirigem o discurso para si mesmos. Ou seja, não há uma ligação orgânica entre todos, o

que nos traz novamente o conceito de fragmento e fragmentação. Como fragmentos,

Belano e Lima não mantêm uma ligação orgânica com aqueles a quem, na qualidade de

proto-heróis épicos, deveriam representar. A fragmentação social imposta como que

naturalmente pela história, pelas forças repressivas que eles não conseguem bem identificar,

estilhaçam o quadro social, faz todos se voltem para suas próprias subjetividades e

insuficiências, para suas próprias memórias falhas, embora compartilhem as mesmas dores.

O que motiva Belano e Lima a saírem pelo mundo é já um fato chocante, e não um

chamado à provação de seus valores ou honra. Conforme sabemos no fim do romance, o

único ciclo que se fecha não é aquele que resulta num engrandecimento, ao fim de sua

travessia, pois a trama mesma do romance termina em suspenso, deixando-se em abertura.

Um ciclo anterior, no entanto, já lhes é dado como fechado, o destino já lhes é selado

quase como inescapável. No meio do deserto de Sonora, em sua investigação, os jovens

descobrem em Cesárea Tinajero uma mulher degradada, que em nada lembra os ideais

pelos quais eles pareciam buscar como uma prova de que haveria esperança. Cesárea é o

passado que novamente os trai. Nada há nele a ser buscado que propicie redenção. O nome

de Cesárea, aliás, invoca a ideia de parto, mãe, de um passado em conforto, como um

possível tempo em que houve na América Latina alguém que, por sua arte, tenha plantado

a semente de mudança, de algo bom a ser frutificado no presente. Estando essa mãe, esse

passado, degradado, perdido, doente, morto simbolicamente, que espécie de herança esses

filhos esperam receber? (A mesma ideia de falha num retorno ao passado, da imagem

materna degradada, é encontrada, como vimos, em Onetti, que em El astillero, por exemplo,

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mostra-nos, já no final do livro, a cena de um parto-aborto, em que uma mãe esvai-se em

sangue e gritos). Ainda há o agravante de que foi por causa deles mesmos, dos poetas

perseguidos por um cafetão violento, que esse passado possivelmente redentor

representado por Cesárea Tinajero foi aniquilado, quando a poeta levou o tiro que causou

sua morte efetiva. Os heróis, portanto, carregam em si as marcas da culpa, da cumplicidade

com a morte de um passado que tentavam resgatar, do destino inescapável, da angústia

inominável.

Fechamos Los detectives salvajes, portanto, com um pouco da sensação que acomete ao

leitor também das obras de Onetti e Puig. Bolaño, do nosso presente fracassado, pois

assentado sobre cadáveres e ruínas não redimidas, volta-se ao período em que os jovens

desarraigados, homossexuais, poetas, loucos, traficantes, prostitutas... vagavam por uma

América Latina em crise declarada, a América Latina explicitada por Puig, a partir de uma

alcova. Os heróis de Bolaño, no entanto, em plena crise, decidem também voltar-se para

um passado ainda mais distante, tentando achar nele uma semente que dê ao seu presente e

ao futuro uma possibilidade de esperança, talvez plantada em si mesmos, mas sozinhos não

são capazes de achar nada, ainda que em si mesmos, a não ser um profundo senso de não

pertencimento ao mundo em que vivem. De Onetti, passando por Puig, até Bolaño, tem-se

a persistência de uma sensação de derrota, daí os escritores voltarem-se ao passado, numa

tentativa de ativar o luto que parece querer ser apagado das mentes das pessoas, como se

nada tivesse ocorrido. Quer-se redimir esse passado, seus mortos, pois se vê no presente

uma sensação insustentável de dívida, que faz os espectros virem em busca de redenção,

que faz os melancólicos no presente percorrerem labirintos filosóficos, literários... catarem

fragmentos para neles encontrarem enigmas, na esperança de que, se desvendados,

forneçam a chave para um fundamento transcendental.

Referências

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18. O PRESENTE BARROCO: A MÁQUINA DO TEMPO TEÓRICO-

LITERÁRIA DE AGUALUSA

Lisane Mariádne Melo de Paiva (Departamento de Letras - UFRN)

Julianny Katarine Aguiar de Oliveira (Departamento de Letras – UFRN)*

Pode parecer óbvia a escolha para trabalhar o barroco no livro Barroco Tropical do

escritor angolano José Eduardo Agualusa, contudo mostraremos no decorrer deste

trabalho que a escolha não está presa a uma idéia clara de encaixe teórico, e sim, está

estritamente relacionada a uma percepção crítica de que este livro não é uma obra literária,

é, porém, uma obra que propõe uma estética nova, uma crítica, é um novo modo de se

dizer e fazer teoria.

Dividiremos nossa análise em três tópicos: Estética Barroca, que tratará do modo

como Agualusa absorveu as características barrocas para construir seu enredo, para isto o

dividimos em quatro sub-tópicos: O Jogo, A Dualidade, O Sagrado e o Profano e O

Labirinto. O tópico em que serão focalizados os personagens intitula-se sugerindo esta

leitura Os Personagens está dividido nos sub-tópicos de análise: Bartolomeu Falcato e

Kianda, narradores e protagonistas de Barroco Tropical. E por fim o terceiro tópico,

Tropicalismo que observará as particularidades do barroco de Agualusa, destacando nos

sub-tópicos: Barroco e Modernidade e O Anjo Negro, a sua originalidade.

1. Estética Barroca

Em meio às discussões de modernidade ou pós-modernidade, os escritores

Agualusa (o autor) e Bartolomeu Falcato (o personagem) discutem o existir na construção

amedrontadora da sociedade de Luanda, em que é natural um labirinto para se jogar os

loucos e os dissidentes políticos, e um prédio que abriga as pessoas das mais altas classes

sociais e os marginalizados num mesmo espaço caótico e hipócrita de convivência.

Barroco Tropical absorve a estética barroca transformando-a em uma estética própria,

não observamos traços típicos do barroco em seu sentido mais usual, os elementos

orientam-se independentemente da sua tradição, porém mantendo sua influência. Há então,

concordando com diversos pesquisadores, o neobarroco, destacando sua particularidade: o

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tropicalismo, este, não sendo apenas um neobarroco de crítica ao capitalismo e à

colonização cultural da contemporaneidade, é um não-europeu, uma vertente dos trópicos,

dos marginalizados.

Neste caso, Agualusa faz questão de miscigenar a miscigenação, reafirmando e

reforçando a ponte afro-latino-americana. Apesar de o enredo passar-se em Luanda, é

evidente a negação a uma fronteira, é uma sobreposição de entre - lugares, culturais e

sociais.

Angola, como todos os países do subterrâneo do edifício das relações político-

econômicas, é agora, uma neocolônia, e é isto que defendemos neste trabalho, a volta da

estética barroca, se definindo como neobarroco, é justificada pela explosão da nova

colonização, a imposição do medo levando à degradação das relações sociais.

A extravagância barroca passa a ser um detalhe cultural, tudo pode, este é o artifício

da crítica de Agualusa. Numa cidade que tudo pode, até uma mulher cai do céu. O exagero

não é mais barroco ou neobarroco, é uma característica da modernidade/pós-modernidade.

Logo, a escolha do novo olhar sobre a tradição barroca é a escolha de um novo olhar para

si mesmo.

As contradições – leia-se aí uma influência dos jogos de oposição característico do

(neo) barroco – descritas pelo personagem Bartolomeu em suas andanças por Luanda

reforçam a crítica de Agualusa a visão atual do colonizador (mais conhecidos como os

‗desenvolvidos‘) sobre o colonizado (os ‗subdesenvolvidos‘), o autor/escritor – escrevemos

deste modo, porque posteriormente discorreremos sobre a fronteira entre o autor Agualusa

e o escritor Bartolomeu Falcato - defende que a cultura ‗civilizada‘ faz dos europeus e

americanos ―mortos muitíssimo saudáveis‖ (AGUALUSA, 2009:108), enquanto que os que

passam fome morrem todos os dias sabendo viver.

1.1 O Jogo

―O poeta é um jogador‖ (ÁVILA, 1994: 117 ) é assim que Affonso Ávila define o

escritor barroco. Fazendo uma analogia com o poeta fingidor de Fernando Pessoa, ele dirá

que ―jogar e fingir são verbos de afinidade semântica‖ (ÁVILA, 1994: 117), pois aquele que

finge sentir algo para dá início a sua narrativa, joga com as imagens, emoções, projeções; e

dá início a esse universo lúdico que banha a escrita de um escritor (fingidor). Em ‗Barroco

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topical‘, Agualusa decide jogar com sua narrativa ludibriando o leitor que também estará

jogando ao ler o enredo desse romance.

A primeira página do livro vem com duas citações: uma retirada da Bíblia Sagrada,

Sabedoria, Idolatria dos navegantes, 14, 22 e outra que fala sobre o inferno, uma citação

retirada do filme ‗Platoon‘.

E entre essas duas outras citações, numa espécie de entre-lugar de céu e inferno

bem à moda barroca (que tem sua arte habitada na curva, na elipse): ―Não me interessa

ordenar o caos: o que eu quero é fazê-lo florir!‖ (AGUALUSA, 2009: 5) esta é uma citação

de Mouche Shamba, em entrevista a Malaquias da Palma Chambão, publicada o seminário

O impoluto, de 10 de maio de 2008, sendo este um personagem do livro. Observamos aqui

que o autor (ou autores) coloca a máscara de seu personagem, fingindo sê-lo para dá a

primeira ―dica‖ ao leitor do que se passará nesse livro, que se organiza propositalmente no

caos, na desordem, no insólito e no medo.

O primeiro capítulo que tem como título ―uma mulher cai do céu‖ (AGUALUSA,

2009: 7), é como se fosse, na verdade a apresentação do jogo, como um daqueles manuais

de ajuda onde explicam o que vai se passar no jogo – Que jogo é esse? Que história tem

esse jogo? – caso o jogador decida continuar, ele então expõe as cartas... As cartas

principais, ou seja, os personagens principais, as cartas de defesa e ataque, os personagens

secundários... E assim começa esse jogo chamado Barroco Tropical. Passada essa fase, não

tem mais para onde correr, ou o jogador/leitor segue em direção ao fim, ou morre no meio

da narrativa!

Durante todo o livro somos expostos a citações feitas pelo(s) autor(es) do

livro(Bartolomeu Falcato ou José Eduardo Agualusa). Na verdade, não são apenas citações

são dicas, sejam dos personagens, dos significados das palavras ou de esclarecimento, que

servirão para o leitor continuar no jogo.

―Lua é o diminutivo carinhoso com que nós, os luandenses, nos referimos

a nossa cidade. Acho um termo muito acertado. Luanda partilha com a lua

a mesma árida e agreste desolação, a mesma poeira sufocante. Todavia,

como a Lua, vista de noite, e de longe, parece bela. Iluminada seduz. Além

disso, a sua luz tem o estranho poder de transformar homens simples em

lobos ferozes.‖ (AGUALUSA, 2009: 90)

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Esta é um exemplo das citações em que o autor explica o porquê da utilização de

um determinado vocábulo, neste caso, da palavra Lua. Durante a narrativa o escritor

também pede para voltarmos a algum ponto, algum capítulo, como se tivéssemos que

voltar a uma casa em um jogo de dados, para assim poder prosseguir na narrativa.

1.2 A Dualidade

A produção barroca de Agualusa não incorpora apenas características de um

barroco literário, em sua leitura formamos telas, vemos a sua arquitetura e ainda, ouvimos

música. Em meio a vários trompe-l’oeil de palavras, iremos analisar neste sub-tópico a estética

barroca da dualidade, entendendo claro, a particularidade dela na obra do autor angolano.

Uma característica que no barroco se limita ao significado etimológico da palavra

que a conceitua, em Barroco Tropical a dualidade é encadeada, o dual, o‗dois‘ é muito pouco

para as sobreposições lidas. Por tão diversa, a dualidade que escolhemos trabalhar por

pensar ser também a mais rica, é a da relação entre os personagens Rato Mickey e Dálmata.

Depois de um acidente com uma mina o Mestre António Taborda teve seu rosto

totalmente desfigurado, e em um dia qualquer uma pessoa lhe deu uma máscara de rato

Mickey, então ele nunca mais a tirou e desse modo ficou conhecido pelo personagem que

lhe deu um novo rosto, a partir de então também uma nova identidade, a do Rato Mickey.

Nessa construção do personagem, lemos uma entrelinha bastante curiosa, o antes

Mestre António Taborda era um belo crítico da nova colonização que passam os países

subdesenvolvidos, mas especialmente a Angola. Contudo, ao ser lhe arrancado o rosto, sua

nova identidade é a de uma figura tipicamente americana, não uma figura qualquer, mas a

representação do lúdico americano. Rato Mickey, assim como Angola, ao desfigurar-se

absorve e carrega a identidade do bondoso colonizador.

Opondo-se e ao mesmo tempo acompanhado o Rato Mickey, o taxista Dálmata, ao

contrário do amigo, naturalmente aproxima-se da figura colonizadora. Dálmata tem vitiligo,

e seus dedos já completamente despigmentados são escondidos por uma luva, ele justifica

isto dizendo: ―Um dia ainda vou ser branco. [...] Ser branco é uma doença‖ (AGUALUSA,

2009:192).

A sobreposição de dualidades a partir da relação entre esses personagens se dá mais

evidentemente, quanto Bartolomeu tenta a todo o custo descobrir a verdade sobre Núbia e

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o Anjo Negro. Para ter acesso à sala de Tatá Ambroise ele usa a máscara do Rato Mickey,

em uma leitura paralela, pra ter acesso à verdade ele teve de se identificar como semelhante

ao colonizador.

A convivência e a parceria entre Dálmata e o Rato Mickey é também a do

colonizador e do colonizado, daquele que se travesti e o que nega o simulacro, do patriota

corrompido e o que não se vê já absorto nessa rede ditatorial.

1.3 O Sagrado e o Profano

Uma das dualidades mais bem articuladas por Agualusa em Barroco tropical é o

engendramento entre o sagrado e profano. Observamos isso de várias formas na narrativa,

poderíamos destacar para explanação dessa dialógica construção a personagem Kianda,

uma das narradoras e uma das personagens principal do livro, uma vez que em kimbundo

‗Kianda‘ é um ser mitológico que corresponderia à idéia ocidental da sereia.

Kianda, incorpora as características desse ―ser‖ mitológico. Ela é cantora, dona de

uma voz que encanta milhões e, igualmente a uma sereia que consegue encantar o homem

e levá-lo junto consigo para o fundo do mar, Kianda consegue encantar Bartolomeu

Falcato e levá-lo para o abismo que era a sua vida, pois para o escritor ela era a ―Rainha dos

Abysmos‖ como está logo no índice do capítulo 24.

Núbia de Matos, a mulher que caiu do céu, é uma personagem arquitetada desde o

início da narrativa numa perspectiva sagrada e profana. A sua queda já faz lembrar a queda

do anjo ‗Lúcifer‘ que, segundo o cristianismo, por querer ser mais que Deus foi expulso do

céu. Logo depois perceberemos o desdobramento de um profano dentro do sagrado, pois

Núbia no início da narrativa define a si mesma como a mulher escolhida por Deus para dar

luz ao Salvador, sendo assim uma espécie de Maria e para isso ela escolhe Bartolomeu

Falcato para ser o pai do seu filho.

No desenrolar dos fatos percebe-se que Núbia nada tem haver com a figura de

Maria, ver-se que ela é uma menina que foi abusada sexualmente na infância pelos irmãos,

depois se torna prostituta, decide fazer um concurso para e miss e ganha. Mesmo Miss,

continua em meio a orgias e drogas... Até que depois de uma alucinação, (que pode ter sido

causada pelo uso de drogas) que ela trata como uma visão, decide mudar, tornando-se

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assim, a mãe do Salvador. O que percebemos no personagem de Núbia é o desdobramento

do profano no sagrado.

A escolha de Núbia leva-nos a uma reflexão sobre a literatura: Porque o salvador

teria de ser filho de um escritor? Qual o filho de um poeta senão sua própria palavra? A

literatura salva? Seria a literatura sagrada? O próprio escritor (es), responde nossa pergunta:

―Não acredito que a literatura possua tal poder. Os meus livros amenos

não possuem. Eu não conseguiria escrever se suspeitasse que fosse mudar

a vida de alguém. Escrever é uma irresponsabilidade.‖ (AGUALUSA,

2009: 132)

Outros tantos exemplos poderiam ser retratados nessa análise, tais como: O

curandeiro Tata Ambróise, uma espécie de Pastor que utiliza feitiços; O pai de Kianda, um

terrorista islâmico que decide tornar-se budista; a Santa Cecília, santa de Kianda que ela

queria chicotear, que não sabe de nada, que recebe desaforos da cantora e nada faz, enfim

vários são os exemplos... Mas nada tão clássico como a figura do anjo negro.

A primeira pista do Anjo Negro é logo no inicio da narrativa, quando o narrador

(es) nos fala sobre um homem que anda com asas negras penduradas nas costas e morre na

guerra. Depois temos o mito do anjo negro, e logo mais no final da narrativa, nos

depararemos com a sua morte. Este anjo, não é um anjo mal, que opera para as forças do

maligno... É apenas um anjo humano! Com asas produzidas com ―penas, arames, cartolina

e alcatrão‖ (AGUALUSA, 2009: 49). Vemos aqui uma reflexão trazida pelo autor sobre a

liberdade em seu país, pois Angola é um lugar que habita anjos negros, que construíram

suas asas com matérias do lixo e alçaram a liberdade ainda que a preço de sangue!

1.4 O Labirinto

O caos barroco é retratado severamente por Agualusa em sua crítica a uma prática

famosa em seu país, o acorrentamento dos ‗indesejáveis‘ – loucos ou não – a peças de

ferro. No enredo ficcional além da prisão violenta, os ‗loucos‘ são jogados em um labirinto,

nus, abandonados com um único abrigo, as paredes.

O labirinto é a representação fiel que nos permite voltar à discussão do barroco

como movimento cíclico, preso à consciência, ou a falta dela, do homem. Se o barroco

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retorna à superfície crítica sempre que a razão é superada pela dúvida e pelo medo, nada

melhor que o labirinto de Agualusa para definir isto.

As pessoas que lá se encontram, ou melhor, se esquecem, são forçadas a participar

de interrogatórios que vão de apenas perguntas a consumo de alucinógenos, que trazem à

tona ‗verdades‘ e fantasias, e o mais funcional, faz com que o ‗paciente‘ à medida que conta

esquece.

O labirinto ultrapassa a fronteira de apenas um elemento do enredo transformando-

se em elemento estético de sua construção. O edifício ‗A Termiteira‘ é o mapa de leitura

dos desdobramentos de ‗Barroco Tropical‘, seus andares reproduzem o caminho que o

leitor deve seguir, subindo, neste caso adiantando-se as páginas, e descendo, retornando a

capítulos anteriores.

O enredo é o próprio labirinto, onde não só os personagens como o leitor e o autor

procuram achar uma saída, e libertar-se. O edifício ‗A Termiteira‘ é um labirinto e também

uma ‗Torre de Babel‘, o personagem Bartolomeu que está em dos mais altos andares físicos

e sociais do prédio, volta e meia precisa descer ao caos dos andares mais baixos e do

subsolo. Sua morada é um labirinto que ele percorre sem rumo, ao mesmo tempo em que é

o seu lar é também o que há de mais desconhecido para ele.

2. Os Personagens

As sobreposições barrocas estão nas entrelinhas da teia criada pelas relações entre

os personagens, um tipo de re-leitura de ‗relações perigosas‘. Cada personagem traz consigo

um caminho a mais no decorrer da história, uma tangente desvendada apenas nas idas e

vindas da trama, que se centraliza mais especialmente em seus narradores Bartolomeu

Falcato e Kianda.

Personagens assumidamente secundários, pelo escritor e principal narrador,

Bartolomeu, por fim tornam-se essenciais no desdobramento do enredo, tais como: Mãe

Mocinha, Benigno Anjos Negreiros e Humberto Chiteculo.

2.1 Bartolomeu Falcato

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Um escritor e documentarista que presencia, ele e sua amante a cantora Kianda, a

morte de uma mulher que acabara de cair do céu. Após esse estranho acontecimento ele e

Kianda dividem a narrativa da trama, em que personagens se entrelaçam em torno do

medo.

Entre a narrativa de Bartolomeu e Kianda há uma diferença quase que ‗hierárquica‘,

pois apesar de paralelas a narrativa de Kianda parece depender do rumo dado pela a de

Bartolomeu. A narrativa do escritor orienta o enredo, e ainda sugere ter duas vozes, a do

escritor/personagem Bartolomeu Falcato e a do escritor/autor Agualusa. Obviamente em

toda construção de uma história a voz do autor está presente mesmo que não aparente,

mas no caso de Barroco Tropical a sua particularidade é a possível participação do autor no

enredo.

Seja através de comentários ‗suspensos‘ no enredo, ou de forma indireta ou

camuflada. Por exemplo, no capítulo em que Núbia conta os motivos que levaram à sua

morte ela se refere ao personagem de Bartolomeu como ‗José‘, o enredo possibilita duas

leituras: Núbia dizia ser a reencarnação da Virgem Maria que daria luz ao Salvador, seu

filho com ‗José‘, que ela afirmava ser Bartolomeu. Contudo, a fronteira não delimitada

entre o personagem e o autor nos permite a outra leitura de que este ‗José‘ está se referindo

ao autor José Eduardo Agualusa.

2.2. Kianda

Famosa cantora angolana que narra o seu ponto de vista como amante de

Bartolomeu, e ao contrário dele não participa efetivamente do enredo, suas contribuições

são indiretas, porém essenciais ao desdobramento da trama.

A cantora viciada em drogas e casada com Lulu, seu produtor, conhece

Bartolomeu, um famoso escritor e documentarista, e envolve-se amorosamente com ele.

Após testemunhar a morte de Núbia de Matos, ex-miss Angola, resolve terminar seu

relacionamento com Bartolomeu e é abandonada por seu marido.

O seu envolvimento com Bartolomeu representa a oposição ao envolvimento do

escritor com a modelo. Enquanto Núbia representa o sagrado, ela o profano. Núbia queria

apenas cumprir ordens divinas, já Kianda ser amante para saciar o seu ego.

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Em Barroco Tropical as oposições se aproximam, Kianda opondo-se à Núbia em seu

envolvimento com Bartolomeu se assemelhou à modelo com a sua morte. Abandonada

pelo marido e com uma doença grave recém descoberta, que a deixaria impossibilitada de

cantar, suicida-se. Seu suicídio foi planejado minuciosamente por ela, a cantora planejou

um último espetáculo. Contratou um grupo que simulava o Anjo Negro, a fixação de

Bartolomeu, e se jogou da varanda do seu apartamento, desse modo assim como Núbia,

caiu do céu fazendo de testemunha o seu ex-amante.

Nesta leitura, portanto, a característica mais conhecida do barroco foi representada

de modo fiel a sua tradição, o sagrado e o profano opostos e unidos.

3. Tropicalismo

Ao longo deste trabalho já destacamos em vários momentos a particularidade e

originalidade do enredo barroco construído por Agualusa. A partir da leitura de Sant‘Anna

observamos que o autor angolano não é o único a construir novos barrocos, autores afro-

brasileiros mostram certas tendências estéticas que reforçado pela teoria de mestiçagem de

Gilberto Freyre, indica que:

―[...] o Barroco, por ter se espalhado por diferentes e longínquas partes do

mundo num momento em que a globalização era feita por intermédio da fé

e da espada – teria, forçosamente, que se tornar um produto mestiço e

mesclado.‖ (SANT‘ANNA, 2000: 257).

3.1 Barroco e modernidade (Luanda)

Angola é um país que escreveu sua história com tinta de sangue, com muito

sangue... Sabe-se que é triste essa cena... Mas essa é a realidade! Angola foi o palco onde se

encenou um dos conflitos armados mais duradouros da guerra fria... Um povo que lutou

por um chão, por um pedaço de terra com muita força e determinação! Em 2002, enquanto

o Brasil comemorava seu pentacampeonato mundial, e elegia o povo na figura do

presidente Lula para governar o país, Angola sentia pela primeira instância o sabor azul da

liberdade, pois com a morte do líder do UNITA, Jonas Savimbe, tem fim à guerra civil

angolana... E Colorindo o ar com seus sorrisos amarelos e singelos, Angola decide ser... O

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lugar onde a poesia decidiu habitar: essa é a única explicação que encontramos para tal

encantamento! Em angola rir-se, da mesma forma que se chora, pra não dizer do mesmo

motivo... É o lugar das cores, da beleza dos cabelos trançados, dos panos cor de arco-íris

que cobre o ventre não alimentado, das casas hospitaleiras sem camas, das crianças que

brincam uma infância inventada, país dos mutilados, sejam pela guerra ou pelo HIV... É o

lugar de um povo que decide rir, quando as circunstâncias lhe impõem um choro... É sobre

esse povo que construiu sua habitação com alicerce no medo e na angústia da alegria das

cores, que Agualusa decide contar a sua história... História de um passado presente

extremamente futurista! Diante disso, fica claro que essa história não poderia ser contada

de outra forma, senão numa estética barroca.

Em Barroco tropical fica claro que o barroco é atemporal, não se prende a

determinados momentos da história, mas uma estética do ser! Agualusa utiliza a estética

que se desenha no labirinto, no jogo e na elipse para refletir ―mal-estar, e porque não, das

patologias da cultura moderna‖, como diria Irlemar Chiampi. O mal-estar causado pela

desigualdade, desemprego, indiferença política, fome, sede, dor e morte a qual os países

pobres são expostos todo dia; para refletir isso é necessária uma estética do feio, do

exagero, do avesso, do insólito: o barroco.

―Não se pode esquecer, sobretudo, que o que está em jogo

quando invocamos o potencial desconstrutivo do barroco é o papel que

toca hoje, numa nova concepção de arte e da cultura nas sociedades

hegemônicas do ocidente, aos povos e culturas periféricas [...]‖ (CHIAMP,

1998: 26)

3.2 O Anjo Negro

O Anjo Negro não é um anjo, é um homem com asas feitas de arame e penas, é o

profano que incorpora o sagrado. O limiar entre a aparência e a essência não é distinto, por

fim os personagens e o próprio enredo constroem-se em torno do que acham que existe,

que acreditam que vêem.

Assim como a interpretação do poema ‗Labirinto Cúbico‘ por Sant‘Anna in

SANT‘ANNA, 2000: 60 vê-se na estética barroca a crítica à impossibilidade de

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independência do homem. O homem barroco está jogado em um labirinto fixo que não

pode ser manipulado.

Tanto faz o Anjo (Sangue Frio, Humberto Chiteculo), ele sempre morrerá. O jogo

sempre será o mesmo, independente dos personagens o roteiro será o mesmo. O

protagonista é o Medo, ele é o único insubstituível.

3.3 Aspectos barrocos da cidade de Luanda

Tanto as características barrocas, quanto a presença tropical são evidenciadas na

ficção de Agualusa pela escolha do quadro espacial, a cidade de Luanda:

História e literatura se entrelaçam objetivando, segundo o próprio autor, denunciar

e fazer cognoscitível as disparidades e belezas da cultura angolana. Casos reais são usados

por Agualusa, como por exemplo, os métodos (medicinais) desumanos aceitados pela

sociedade em nome de uma tradição. Tal qual o Barroco, os jogos de oposição são

utilizados como método de crítica à dualidade existente nos processos de rápidas

transformações sócio-econômico-culturais.

A crítica de Agualusa não nega a tradição, contudo indica a necessidade de uma

racionalidade, teria portanto como objetivo defender a re-leitura da tradição.

O autor faz múltiplas críticas à sociedade, à tradição, à imposição sócio-cultural

através do poder econômico e do poder do medo, e ainda ao próprio barroco. Entende-se

que o barroco/Neobarroco precisa também de releituras, não o tratando como constituído

por características fixas, mas vendo-as como móveis/adaptáveis respeitando os objetivos

do autor e a estrutura da obra.

Em termos livres, Barroco tropical não se classifica apenas como releitura

barroquiana, mas como re-leitura literária, uma miscigenação teórica que dança entre as

oposições e os labirintos barrocos até a racionalidade iluminista, imersa em uma

atemporalidade da ficção e da realidade.

*Pesquisadora CnP-q na área de literaturas africanas

Referências bibliográficas

AGUALUSA, José Eduardo. Barroco tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1994.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 42 ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

CÂNDIDO, Antônio. Das origens ao romantismo. 10 ed. São Paulo: DIFEL, 1980.

CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo:

Perspectiva: FAPESP, 1998.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995

SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco,

2000.

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19. ENSAIO DE UMA SOCIOLOGIA BARROCA

Luciano Albino - UEPB

Resumo

A minha proposta de doutoramento consistiu numa investigação do processo de

modernização dos engenhos produtores de cana-de-açúcar na Paraíba. Mas a motivação

para tanto partiu da percepção de como a cachaça, bebida desvalorizada socialmente,

iniciou um processo de resignificação simbólica a partir dos anos de 1990. Como a mesma

ganhou cidadania e, a partir de então, ocupou espaço em mesas e acontecimentos

impróprios para ela noutras circunstâncias. O estudo sobre a da cana-de-açúcar me

permitiu uma aproximação sobre aquela cultura que, por excelência, estimulou o processo

de construção de um país. Encontrei na literatura grande fonte de leitura e fonte de

inspiração, uma vez que José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto passaram a ocupar

destaque na revisão bibliográfica necessária para a tese. Num certo momento me encontrei

numa encruzilhada: estava fazendo um trabalho sociológico ou literário? Descobri na

leitura atenta da obra de José Lins forte ligação com a de Gilberto Freyre. Com mais

cuidado notei que ambos partiram da mesma orientação sócio-antropológica para

fundamentação de seus trabalhos, quer dizer, o pensamento de Franz Boas. A sociologia de

um parecia literatura, enquanto a literatura do outro se mostrou bastante sociológica. Ao ler

Antonio Candido tive certo esclarecimento da relação entre literatura e ordem social, no

entanto, percebi o quanto minha tese se atolava no dilema (ou falso dilema) de não ser

considerada científica nos moldes da sociologia clássica. Percebi, após intensa reflexão,

quanto meu trabalho, do ponto de vista ideológico, estava contaminado por uma narrativa

de temporalidade circular, ou melhor, de um devir permanente, como nos ensinou a

professora Irlemar Chiampi, o Barroco, na sua dimensão Latino Americana, brasileira, coisa

nossa, moreno. Esse encontro ideológico se estendeu ainda mais na leitura de Antonil.

Quis, como ele, entender o engenho como espaço construtor de riqueza, agora, na Paraíba,

redimensionado aos novos apelos de fetichização mercadológica. Enfim, do ponto de vista

estético e metodológico, meu trabalho foi produzido por várias orientações, quer literárias

ou sociológicas, mas, na preocupação de me limitar a uma problematização racionalmente

orientada e de intenção objetiva, quero dizer, científica. Neste trabalho pretendo evidenciar

dois momentos em que sinalizo aproximações e encruzilhadas entre literatura e sociologia,

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quero dizer, uma irregularidade estética, mas com fins claros de recuperar na arte a

dimensão social que lhe foi fator. Inicialmente com João Cabral, em seguida com José Lins

do Rego e Gilberto Freyre. Se o barroco foi nossa inicial tentativa de construir uma idéia de

identidade (um projeto moderno para o novo mundo), então recorro, inspiro-me em suas

teias para me localizar melhor nessa configuração social da qual faço parte.

Palavras-chave: Sociologia, Literatura, Barroco, Engenho

Barriguda centenária no engenho Serra Preta, Alagoa Nova, PB.

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O esplendor da natureza, assim como na culinária e noutros cozeres dos engenhos

me fizeram viver, melhor, sentir, dois momentos sobrepostos. Ora há séculos, ora aqui.

Talvez nosso projeto moderno não possa perder de vista esse lance pendular, como que

para sê-lo, moderno, não podemos perder de vista o tradicional.

2. O vento no canavial de João Cabral

―Não se vê no canavial

nenhuma planta com nome,

nenhuma planta Maria,

planta com nome de homem.

É anônimo o canavial,

sem feições, como a campina;

é como um mar sem navios,

papel em branco de escrita.

É como um grande lençol

sem dobras e sem bainha;

penugem de moça ao sol,

roupa lavada estendida.

Contudo há no canavial

oculta fisionomia:

como em pulso de relógio

há possível melodia,

ou como de um avião

a paisagem se organiza,

ou há finos desenhos nas

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pedras da praça.

Se venta no canavial

estendido sob o sol

seu tecido inanimado

faz-se sensível lençol,

se muda em bandeira viva,

de cor verde sobre verde,

com estrelas verdes que

no verde nascem, se perdem.

Não lembra o canavial,

então, as praças vazias:

não tem, como tem as pedras,

disciplina de milícias.

É solta sua simetria:

como a das ondas na areia

ou as ondas da multidão

lutando na praça cheia.

Então, é da praça cheia

que o canavial é a imagem:

vêem-se as mesmas correntes

que se fazem e desfazem,

voragens que se desatam,

redemoinhos iguais,

estrelas iguais àquelas

que o povo na praça faz.‖ (MELO NETO, 2007, 61/62)

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O canavial, na sua exclusividade, unifica o espaço e atropela tudo. Não deixa existir

outra planta além da cana que o compõe. Sua ocupação ao largo submete a paisagem a um

só horizonte verde, fixado assim em predomínio que se lança. Parece coisa sem enigmas,

clara, evidente na mesmice entediante para quem nele anda, embora traga, ao mesmo

tempo, no imediatismo do olhar primeiro, outras dimensões, complexidades recônditas,

variações em detalhes e nuances mais diversos nas folhas que não deixam de aparecer.

A força do canavial avança com desdém sobre o mais, impiedoso e faminto nas

terras a desmatar. Seus tentáculos invasores esticados têm forma, contornos sutis. Nele,

lutas são travadas, ondas de conflito definem a orquestra. Nele, homem e terra se

misturam, empilham-se, fazem-se touceiras; como cana são cortados, moídos, lançados à

brasa. Nele, como cana, extrai-se o açúcar de cada um. Quem entra no canavial cana se

torna e como tal se faz e desfaz.

3. Franz Boas, Gilberto Freyre e José Lins do Rego: a busca de uma descendência

antropológica90

Divergente do pensamento antropológico de sua época, século XIX e início do XX,

Boas constrói uma abordagem revolucionária que passa a ser ponto de partida para as

pesquisas na área a partir de então. Ao contrário dos Evolucionistas, preocupados em

elucidar cientificamente as etapas pelas quais a raça humana se aperfeiçoou, pretende

focalizar seu olhar sobre a diversidade da cultura.

Com Boas a cultura assume um caráter plural fugidio à uniformidade teórica que a

determina como desdobramento de imposições naturais. Sua observação focaliza o diverso

de cada grupo, a complexidade e a dinâmica sociais peculiares, não reduzidas a

determinismos geográficos, biológicos ou de qualquer ordem, porque é múltipla pela forma

como se torna peculiar, especifica, portanto. A explicação da cultura passa a ser buscada no

registro cuidadoso da história pontual do grupo estudado, sem a pretensão evolucionista de

definir uma história geral da cultura humana.

90

Sobre a relação de amizade e cumplicidade intelectual entre José Lins e Gilberto Freyre tive a

feliz oportunidade de entrevistar Edson Nery da Fonseca que conheceu profundamente os dois. Nossa conversa no seu sobrado em Olinda foi uma experiência de grande valia para minha

pesquisa. A ele agradeço o tempo a mim desprendido, assim como os ensinamentos tão

apurados e sofisticados de um homem ao mesmo tempo bastante culto e gentil.

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O conhecimento das muitas possibilidades de como os grupos humanos se

desenvolveram revela meios para o entendimento da própria sociedade do pesquisador.

Em outras palavras, a diversidade cultural sinaliza a problematização da cultura Ocidental,

vista não mais como padrão ou referência para as outras, mas sim localizada em um plano

horizontal a partir do qual seus valores não podem assumir a posição qualitativa de melhor

ou pior. Há no pensamento de Boas o vigor do relativismo cultural necessário para, a partir

do ―outro‖, encontrar orientações à sua própria sociedade. A antropologia não é, portanto,

o relato de comportamentos exóticos de grupos distintos mas um mecanismo poderoso de

alteridade.

―A concepção boasiana de cultura tem como fundamento um

relativismo de fundo metodológico, baseado no reconhecimento

de que cada ser humano vê o mundo sob a perspectiva da cultura

que cresceu – em uma expressão que se tornou famosa, ele disse

que estamos acorrentados aos ‗grilhões da tradição‘.‖ (Castro,

2004, 18).

Embora o homem se organize socialmente a partir de universais como a política, a

religião, a economia etc., o que de fato interessa para Boas é como individualmente cada

grupo se construiu historicamente, tornando-se diverso em relação a outros. Nesta direção

sugere o método histórico ou de indução empírica que consiste no mapeamento das causas

segundo as quais os fenômenos culturais se desenvolveram naquele espaço específico, para

então, entender sua lógica interna, sem alocá-la num plano geral ou num sistema evolutivo.

A preocupação de investigar o processo histórico particular de cada grupo é cara para

Boas, pois segundo ele, todos trazem consigo uma tradição. Daí seu interesse de descobrir

como os costumes existem e lhe fazem sentido pelo detalhamento de seu desenvolvimento

no decorrer do tempo.

Recuperar a tradição historicamente significa viabilizar no presente, pela memória

material e simbólica, o esclarecimento de um passado significativo que o distingue dos

demais, que o peculiariza e oferece ao grupo referência para construção de identidade.

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―A grande e importante função do método histórico da

antropologia parece-nos residir, portanto, em sua habilidade para

descobrir os processos que, em casos definidos, levam ao

desenvolvimento de certos costumes.‖ (Boas, 2004, 38).

A dedicação investigativa ao detalhar a complexidade de relações próprias a cada

cultura sinaliza um novo fazer antropológico, especialmente em termos de método, que

inspirou seus alunos, Ruth Benedict, Gilberto Freyre, e outros, a buscarem no seu gênio o

impulso ao entendimento da diversidade cultural ou das múltiplas formas de organização

social.

―(...) Até agora temos nos divertido demais com devaneios mais ou

menos engenhosos. O trabalho sólido ainda está todo à nossa

frente.‖ (Boas, 2004, 39).

Sem dúvidas, este vigor intelectual de Boas, principalmente relativo ao método como

os grupos humanos deveriam ser abordados no estudo de suas manifestações culturais,

instigou aqueles que, posteriormente nas primeiras décadas do século XX, esforçaram-se ao

esboço de um instrumental investigativo conhecido como culturalismo.

O olhar sobre o particular, à busca do pontual e de sua universalidade, na medida em

que as partes combinadas e interdependentes demarcam unidade significativa, induziu o

surgimento de uma nova antropologia, cultural propriamente dita, diversa daquela

evolucionista e raciológica.

Apoiar-se em categorias naturais para compreender formações próprias da cultura é

amplamente refutada por Boas na medida em que, falar em raça, só faz sentido quando é

possível delimitar unidades corporais definidas e herdadas por descendentes de uma mesma

ancestralidade, o que segundo ele, torna-se praticamente impossível em termos modernos,

haja vista a multiplicidade de linhagens que formam os atuais grupos humanos. Em

resumo, não há, racialmente falando, um grupo puro, genuíno em termos de descendência.

Deste modo, as características culturais não podem ser classificadas como particulares a

grupos genéticos específicos, exclusivo a certa descendência. Em uma perspectiva

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puramente biológica os homens não se diferenciam tanto quanto a que se manifesta

culturalmente, ainda mais quando o estranho é anunciado ao lado.

―(...) Podemos dizer que cada grupo racial consiste de muitas

linhagens familiares que são distintas em formas corporais.‖ (Boas,

2004, 70).

―(...) Acredito que o estado atual de nosso conhecimento nos

autoriza a dizer que, embora os indivíduos difiram, as diferenças

biológicas entre as raças são pequenas. Não há razão para acreditar

que uma raça seja naturalmente mais inteligente, dotada de grande

força de vontade, ou emocionalmente mais estável do que outra, e

que essa diferença iria influenciar significativamente sua cultura.‖

(Boas, 2004, 82).

Estas afirmações boasianas influenciaram demasiadamente Gilberto Freyre no

tocante ao modo como este pensou o Brasil. Não à toa sua monumental obra Casa Grande

& Senzala tem o subtítulo: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal,

notadamente destacando a herança híbrida, escravocrata e agrária dos portugueses, e como

estes a incrementaram com os nativos e com os africanos. Essa inquietude de Gilberto

Freyre sobre a miscigenação brasileira encontra em Boas o suporte teórico para a devida

problematização antropológica.

―O Professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até

hoje maior impressão. Conheci-o nos meus primeiros dias em

Colúmbia. Creio que nenhum estudante russo, dos românticos do

século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da

Rússia do que eu pelos do Brasil na face em que conheci Boas. Era

como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração; da

nossa maneira de resolver questões seculares. E dos problemas

brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da

miscigenação.‖ (Freyre, 1984, lvii, prefácio à primeira edição).

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Gilberto Freyre volta ao Brasil depois de seus estudos nos Estados Unidos, carregado

dos ensinamentos antropológicos de Boas, no propósito de problematizar a formação da

sociedade brasileira segundo critérios teóricos e metodológicos centrados sobre a cultura,

nas suas manifestações mais sutis: culinária, sexualidade, parentesco, economia,

religiosidade etc.

Se Margareth Mead e Ruth Benedict representaram uma corrente antropológica

conhecida como Culturalismo, no Brasil, o pensamento de Gilberto Freyre é destacado

como Regionalista, devido sua preocupação com questões locais, com problemas específicos

do Nordeste. Sua influência se faz presente em vários intelectuais da época, com destaque,

em José Lins do Rego, cuja amizade se tornou intensa e duradoura, de acordo depoimento

deste em 1941 ao mestre e amigo pernambucano:

―Conheci Gilberto Freyre em 1923. Foi numa tarde do Recife, do

nosso querido Recife, que nos encontramos, e de lá pra cá a minha

vida foi outra, foram outras as minhas preocupações, outros os

meus planos, as minhas leituras, os meus entusiasmos; [...] para

mim teve começo naquela tarde de nosso encontro a minha

existência literária. [...] Começou uma vida a agir sobre outra com

tamanha intensidade, com tal força de compreensão, que eu me vi

sem saber dissolvido, sem personalidade, tudo pensado por ele,

tudo resolvendo, tudo construindo como ele fazia. Caí na imitação,

no quase pastiche. Isso não só no seu jeito de escrever como em

tudo o mais: nos seus gostos, nas suas relações, nos seus modos de

vida.‖ (In: Fonseca, 2007, 242).

O pensamento de Boas chega ao Brasil através de Gilberto Freyre, ou pelo menos, é

através deste que se torna significativamente difundida sua herança intelectual, seu método

de abordagem antropológica. Uma influência que não pára no autor de Casa-Grande &

Senzala, mas que se espraia, por este autor, para outros da mesma época, quando decidem

contornar suas trajetórias literárias sob a versão boasiana do pernambucano de Apipucos.

Pelo menos sobre José Lins do Rego essa influência é sintomática. A relação de

amizade que se constrói entre os dois viabiliza também o empenho de ambos sobre

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temáticas afins, sobretudo a respeito da herança tradicional comum. É através de José Lins

do Rego que Gilberto Freyre conhece os engenhos paraibanos, aqueles que se tornaram

palco de suas obras por ele mesmo denominadas de ciclo da cana-de-açúcar, de Menino de

Engenho a Usina. É Gilberto Freyre quem apresenta a José Lins do Rego autores europeus e

norte-americanos desconhecidos no Brasil daquela época, década de 1920, e o estimula a

deixar o jornalismo panfletário do qual fazia parte para se dedicar à literatura, especialmente

uma que destacasse sua memória nos engenhos paraibanos (Fonseca, 2007, 239).

―Em 1932, publica-se no Rio de Janeiro o primeiro romance de

José Lins do Rego. Romance autobiográfico no qual é evidente a

influência de Gilberto Freyre: evidência somente negada por anti-

freyrianos renitentes. Como diz o velho ditado: o pior cego é

aquele que não quer ver. Pois foi o próprio José Lins do Rego

quem proclamou, alto e bom som, que tinha vergonha de sua terra

e de sua gente antes de conhecer Gilberto Freyre, com quem

aprendeu a importância da formação e dissolução da família

patriarcal, do esplendor e decadência da aristocracia açucareira

como matéria digna de ser aproveitada em obras literárias.‖

(Fonseca, 2007, 241).

A construção literária de José Lins do Rego tem no pensamento de Gilberto Freyre

uma fonte irrefutável, um suporte sócio-antropológico a partir do qual não apenas elabora

romances sobre sua infância, graças à pungente memória, mas principalmente, por lhe

permitir explorar valores, imagens, relações e símbolos pertinentes ao seu contexto

paraibano, tal qual uma análise histórica e ao mesmo tempo sociológica de um mundo que

vê ruir. No caso, a falência dos engenhos produtores de açúcar provocada pelas usinas.

A leitura dos romances de José Lins do Rego permite a visualização dos engenhos,

suas imagens, suas histórias, cheiros, sabores e fantasias, mas também, revela, por meio da

literatura, uma análise social bem localizada, aguda da dinâmica histórica por que passava a

região produtora de açúcar da Paraíba no início de século XX. Mostra, nas entrelinhas do

seu texto, entre um partido de cana e outro, os detalhes de um contexto que para ele,

declina, desmantela-se. É possível, até certo ponto, ao ler suas obras, sentir o cheiro de

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caldo de cana cozendo em tachos grandes à indústria do açúcar, da rapadura e da cachaça,

ao mesmo tempo em que é possível conhecer mais sobre o patriarcalismo, a economia

canavieira, a política e as falas de pé-de-parede das Casas-Grandes, com suas sinhás

submissas que vendiam, às escondidas, ovos de galinha no período de crise financeira do

engenho.

―Gilberto Freyre falou muito com José Lins do Rego sobre seu

projeto de escrever uma história do menino brasileiro. Essa

história pungente – a de meninos precocemente ‗de tudo da

própria meninice‘- está como que entranhada em Casa-Grande &

Senzala, obra muito mais abrangente do que a inicialmente

projetada pelo autor: Menino de Engenho é um romance

autobiográfico desentranhado por José Lins do Rego de Casa-

Grande & Senzala, obra que leu ainda em provas tipográficas, tendo

escrito sobre o ensaio seu amigo, antes mesmo dele aparecer nas

livrarias do Rio de Janeiro...‖ (Fonseca, 2007, 241).

Gilberto Freyre e José Lins do Rego são meninos de engenho. Cada qual ao seu

modo disseca em textos a dinâmica social própria daquele cotidiano que demarcou o início

do processo de formação da sociedade brasileira. Ninguém melhor do que os dois para

explicar o espaço que foi o centro econômico e social por séculos no Brasil, o engenho. E,

em se tratando de uma pesquisa sobre cachaça de engenho na Paraíba, a menção a José

Lins do Rego é algo obrigatório.

4. Conclusão

O projeto das elites para o Brasil é positivista e clássica, cópia mal feita da sociedade

liberal burguesa moderna. Mas o Brasil vai além das elites, não se delimita a esquemas

arbitrários como os de progresso e história linear. Do mesmo modo, as iniciativas para sua

compreensão devem se estender para horizontes mais autônomos sem, necessariamente,

perder de vista o rigor do ponto de vista sociológico.

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Percebi no Barroco um encontro ideológico principalmente porque em seu estilo de

confrontos, torna-se possível a convivência num plano ético de irregularidades. Nada mais

brasileiro nesse Barroco, ou será o contrário?

5. Bibliografia

1. ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Edições

Melhoramentos, 1976.

2. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira

sob o regime da economia patriarcal. 23ª Edição. Rio de Janeiro: Livraria José

Olympio Editora, 1984.

3. REGO, José Lins. Menino de Engenho. Rio de Janeiro: José Olympio,

4. REGO, José Lins. Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio,

5. REGO, José Lins. Bangüe. 22ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympio,

6. REGO, José Lins. Moleque Ricardo.

7. REGO, José Lins. Usina. 18ª Edição. Rio de Janeiro: José Olympo, 2008.

8. REGO, José Lins. Fogo Morto. 59ª Ed. Rio de Janeiro: José Ollympio, 2003

9. CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-

americana. São Paulo: Perspectiva, 1998.

10. SILVEIRA, Francisco Maciel. Literatura Barroca: literatura portuguesa. São Paulo:

Global,1986.

11. CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de Teoria e História

Literária. 10ª Edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.

12. SANT‘ANNA, Affonso Romano de. Barroco: a alma do Brasil. Rio de Janeiro:

comunicação Máxima, 1997.

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Sessão de Comunicação: INTERFACES BARROCAS

Coordenadores: Profª Ms. Reny Gomes Maldonado

Prof. Ms. Samuel Anderson de Oliveira Lima

1. LOS JESUITAS Y SUS RESONANCIAS EN EL BARROCO BRASILEÑO

Gleba Coelli Luna da Silveira

Márcia dos Santos do Nascimento

(Universidade Estadual da Paraíba)

Resumen

En Portugal, la Casa de Avis fue responsable por una nueva visión del mundo. En

1383 con la revolución popular, la burguesía desarrolló un pensamiento positivo que ha

conducido Portugal a importantes descubrimientos91. En el siglo XVI, este pensamiento

que conducía el país, entró en declive debido a una débil economía y no existencia de

estructura administrativa. La aristocracia sentía que su poder político estaba amenazado por

la clase burguesa. Estos factores eran contra la mentalidad formada en el siglo XV y

estaban agregados a la Inquisición, un instrumento de la Contra Reforma, utilizado como

arma por la clase aristocrática, surgiendo la persecución y condenación de los Judíos que

constituían la clase burguesa. En los años que siguieron a 1580, cuando Portugal se unió a

España, se consolida un estado de terror, donde los Jesuitas apoyaron la nobleza, hacían

prácticas de tortura, basándose únicamente en las quejas. La religión impone sus valores de

una manera brutal, en violación de la conciencia humana, y el hombre del siglo XVII tuvo

que asumir una actitud de contrición con aceptación de Dios como ser absoluto que todo

puede y que quita el derecho humano de libre voluntad. Estos hechos fueron trasladados al

Brasil colonial y durante todo el siglo XVII, las persecuciones de la Inquisición ocurrieron

porque éramos parte de Portugal. En Brasil, la situación política y social no era propicia a

las artes y la literatura, y lo que se hizo en el período que hubo la presencia del estilo

barroco fue la producción de textos de brasileños y de portugueses con sensibilidad para

91 Esa palabra ―descubrimiento‖ pasó a ser utilizada en lugar de la palabra colonización, porque ―colono‖

en una de sus acepciones significa también ―aquel que ocupa la tierra del otro‖ (BOSI, 2005).

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literatura que poseían una formación cultural con estudios hechos en Portugal. Entre ellos

están: Gregorio de Matos, Botelho de Oliveira y el sacerdote Antonio Vieira, con sus textos

inspirados en la realidad del Brasil colonial.

Palabras claves: Literatura Barroca. Los Jesuitas. Brasil. Portugal.

Introducción

Las primeras manifestaciones conocidas como barroco surgieron principalmente en

el siglo XVII. El barroco es un estilo que tiene como principal característica, la existencia

de una tensión entre la materia y el espíritu, el cielo y la tierra, la razón y la sensibilidad, la

contención y el derramamiento, el científico y la realidad. En Europa estas características se

relacionan con el conflicto de ideas que surgieron debido al progreso de la ciencia que tuvo

influencia del renacimiento y de la reforma protestante, así como también de la reacción de

la iglesia católica con su contra reforma. Es probable que la palabra ―barroco‖ tenga su

origen en la palabra italiana ―barroco‖, usada en la edad media por filósofos que la

empregaban para describir obstáculos al pensamiento lógico.

Así se pasó a designar la palabra ―barroco‖ para cualquier idea oscura o pensamiento

tortuoso. Hay también otra origen para la palabra ―barroco‖, pero ésta se refiere a la

palabra portuguesa y se trata de un tipo de perla con formas irregulares, que se encuentra

crítica de arte para describir cualquier objeto irregular, que no se encuentra dentro de las

reglas establecidas. Estos conceptos existían hasta el final del siglo XIX, dónde la palabra

aún poseía el significado de extraño, grotesco, exagerado y exceso de ornamentación. Por

fin, fue con los estudios del historiador de arte, Heinrich Wölfflin, ―Renacimiento y

Barroco‖ en el año de 1888, que el Barroco se cambió en una designación estilística con la

sistematización de sus características.

No son los tiempos modernos, los descubrimientos geográficos del nuevo mundo,

las invenciones, ni el revivir del espíritu griego latino que marcó el final de la edad media.

Portugal fue el país europeo que más ha conservado parte de la herencia socio cultural de la

época medieval. Esto sucedió en el siglo XVIII, donde ha desaparecido toda esta cultura,

debido únicamente a la llegada del racionalismo iluminista. Así, serán los buques de Pedro

Alvares Cabral, que llegarán a la tierra de Santa Cruz en abril de 1500, con una visión del

mundo Medievo y con las reglas propias de la cultura europea.

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El navegante portugués y también cronista oficial, Pero Vaz de Caminha tenía una

visión pre renacentista del nuevo mundo, debido a su formación e ideologías, sin embargo,

esos hombres aún poseían pensamientos e ideas del período medieval. Ellos fueron

conducidos por una cosmovisión en la que Dios era el centro del mundo, no el hombre

como afirmaba el humanismo y como Portugal también había comenzado a darse cuenta.

De ese modo, la nueva tierra tuvo una configuración cultural diferente a través de la mirada

portuguesa; o sea, el Brasil fue retratado, en efecto, por una ―visión del paraíso‖. La Carta

de Pero Vaz de Caminha posee una coloración idílica, los paisajes literarios son

descriptivos, los indígenas son presentados con sus ―vergüenzas‖ desnudas, entre otros

elementos culturales que edifican esta visión portuguesa (HOLLANDA, 1963).

Figura 01: Carta de Pêro Vaz de Caminha para D. Manuel I.

Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos

de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em

pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim

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até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a

Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as

mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez

muita devoção.

Como podemos observar en el fragmento de la Carta de Pero Vaz de Caminha, la

misión de educar los ―gentíos‖ ha tenido éxito. Estos hombres viajaban a través de océanos

por muchos meses, enfrentaban muchos peligros y supersticiones, debido a sus creencias

humanísticas. En sus mentes estaban sus creencias medievales y toda su religiosidad, con la

busca antes del reino de Dios que el reino de los hombres; ellos hacían la propagación en el

nuevo mundo de la Fe y del Imperio. Los hombres y viajes tenían como objetivo la

exploración, el dominio de las nuevas tierras y de todo que allá se ha encontrado. Para eso

se ha usado el nombre de Cristo, haciendo la difusión del catolicismo, que en principio era

lo único ideal, pero después sirvió para justificar las actitudes por veces más deshumanas

practicadas tanto por los navegadores, como por los explotadores que llegaban a la nueva

tierra.

Los primeros años de nuestra formación histórica son caracterizados por una

literatura pragmática, sea ella de carácter Jesuítica, o sea aquella que se ha originado a partir

de los viajes que tenían la finalidad de reconocer y fornecer informaciones acerca de la

nueva tierra. En lo que se refiere a la literatura Jesuítica, que tenía como función la

catequesis de los indios y la educación de los blancos que vinieron colonizar la tierra

descubierta, eso según las reglas pedagógicas aplicadas por los seguidores de la escolástica.

Al revés, cuando se refiere a los informes o registros de viajes, esta literatura nos ofrecía

mejores datos sobre la tierra, que por su vez eran conducidos a los superiores en Lisboa

para que ellos supieran todas las posibilidades de expansión y exploración que iban traer

grandes lucros a la metrópolis.

En las dos actividades literarias los escritos eran al azar, o por veces resultaban del

uso de los recursos estilísticos animados por la estética. Así podemos decir que todos eses

documentos servían a cuestiones portuguesas, o sea, servían al interés en expandir sus

tierras y el comercio, tanto en el Brasil como en todas las partes del mundo. Los

documentos producidos en el siglo XVI no presentan gran carácter literario, pero por su

vez presenta gran riqueza sociográfica y historiográfica que han sido reconocidas por los

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especialistas y son consideradas un importantísimo documento con grandes informaciones

culturales.

Los Jesuitas y la Compañía de Jesús

Inicialmente podemos preguntar cuáles son las influencias y la importancia de la

Compañía de Jesús en la colonización y en la historia cultural brasileña. No es algo fácil,

hablar sobre la actuación de la Compañía de Jesús92 en la formación de la nación brasileña y

eso es debido al facto de que ellos conquistaron muchos enemigos (MASSAUD, 1997,

p.24). En los siglos coloniales la acción de los Jesuitas en el Brasil ha sido desarrollada en

dos momentos distintos. El primer se refiere al expansionismo geográfico de la metrópolis,

que empezó a ser puesto en práctica desde la conquista de Ceuta en el año de 1415, y éste

facto jamás podrá ser negado. Después, en la nueva tierra aumentaran y fijaron las

fronteras, hicieron la catequesis de los indígenas con un trabajo sistemático y que les han

traído mucho dinero; también influenciaron de manera benéfica tanto los nativos como los

colonos. Los Jesuitas fueron los primeros a romper las barreras naturales existentes en

nuestra tierra, como lo que les obligaba la Sierra del Mar, y por veces eran los únicos

blancos a entrar en las grandes extensiones de bosques vírgenes.

Cuando intentamos hacer un análisis de la cuestión cultural, infelizmente se trata de

algo aún menos claro. En los años de 1555, El Rey Don João III93, entrega a los Jesuitas

―O Colégio das Artes‖ y como tenían el control, ellos hacen prevalecer la cultura

portuguesa. Como consecuencia y debido al uso de una pedagogía de base escolástica, los

Jesuitas no han beneficiado Portugal con el estudio de la filosofía natural y humanística, así

como con el experimentalismo que surge en esta época debido al renacimiento

(MASSAUD, 1997, p.25). Con ese pensamiento, la cultura portuguesa aún direccionada

para las características medievales, se ha visto con retraso en relación a toda Europa con

una educación libresca, artificial y ciega en lo que se refiere a las realidades presentes, que

92 La Compañía de Jesús es un orden religioso que fue fundada en 1534 por un grupo de estudiantes de la

Universidad de Paris, liderados por el vasco Íñigo López de Loyola, conocido como Inácio de Loyola.

Los miembros de la Compañía de Jesús son conocidos como Jesuitas y por trabajo misionero y

educacional. El primer grupo de seis misioneros liderados por Manuel da Nóbrega fueron traídos por el

gobernador general Tomé de Sousa, aportando en Bahia (Brasil), en el año de 1549. 93 El Rey Don João III (1502-1557) fue el décimo quinto Rey de Portugal, conocido como ―El Piadoso‖ o

―El Pio‖ debido a su devoción religiosa. Inició la colonización en Brasil y fue responsable por la división

en Capitanías Hereditarias.

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ha llevado siglos para reconocer su retroceso con relación a otros países europeos y por lo

tanto salir en búsqueda de lo que se estudiaba en el viejo mundo.

Este era el modelo de cultura que los Jesuitas, sacerdotes de Santo Inácio de Loyola,

que han traído al Brasil. Cuando ellos aquí llegaron en 1549, con el primero gobernador

general de las regiones del Brasil (Rio de Janeiro, Bahía y Pará), han fundado escuelas con la

misma función del ―Colegio de Artes‖, o sea con un estudio direccionado a la filosofía,

teología, y del área de humanas, con el interés en formar personas para el Orden de Loyola.

Además, con el uso de los mismos valores y con todo direccionado a fe y al imperio,

también se dedicaron a la enseñanza del colono y de los indígenas. Con eso, recibimos de la

formación considerada humanista con origen en el siglo XVI portugués, la retórica, la

gramática y la educación libresca. Los Jesuitas eran responsables por toda la cultura de la

nueva tierra en el periodo colonial, y creemos que sin ellos la situación cultural del Brasil

colonia hubiera sido peor. A ellos debemos las primeras escuelas que aquí han existido,

mismo con una enseñanza destinada a contenidos ofrecidos solamente por la iglesia.

Los sacerdotes que aquí estaban en misiones en las selvas del Brasil, no eran

responsables directamente por esta obscuridad literaria. Los libros que se han puesto en la

lista eran prohibidos y entre ellos estaban: la Diana de Jorge Montemor y las obras de

Plauto, Terencio, Horacio, Marcial y Ovidio, con excepción de las expurgadas o adaptadas

de manera determinada por el Colegio Romano94. Por su vez también era prohibido recitar

sonetos y versos espirituales en eventos religiosos. Así mismo, son a los Jesuitas que

debemos las primeras manifestaciones de poesías, de teatro y pinturas, pues eran las únicas

actividades relacionadas a la cultura existente en la tierra recién descubierta. Los Jesuitas

desarrollaban sus actividades culturales en dos ramos definidos, eran ellos: primero era la

catequesis de los indígenas, cuyo objetivo era cambiarlos haciendo sociales para que fueran

útil al trabajo y cambiarlos en cristianos; y el segundo era direccionado a la educación de los

colonos, que se encontraban en éxtasis delante del paraíso que era la tierra nueva aún no

explotada.

Los libros usados por los Jesuitas en esta nueva empresa y que se direccionaba para la

enseñanza eran fragmentados en epistolografías, informes y informaciones acerca de la

nueva tierra, gramáticas, poesías y teatro. Estas tres últimas categorías literarias tenían

94 El Colegio Romano surgió un año después de la fundación de la Compañía de Jesús. Su principal

objetivo es la educación y formación de vida del estudiante, desde los estudios elementares hasta los

estudios universitarios.

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como objetivo solamente la catequesis y la educación, y las otras tenían como principal

objetivo el conocimiento de la tierra para llevar informaciones a la metrópolis acerca de

todo lo que los misioneros desarrollaban en la nueva tierra. Cuanto a la cuestión literaria

solo la poesía y el teatro eran sus representantes, los demás pertenecían a la historiografía,

sociografía, etnografía y etc. Pero no hay duda que en los dos casos el valor estético de las

obras es menor que el valor historiográfico, sociográfico, etnográfico, lingüístico y etc.

Varios Jesuitas han dejado sus observaciones escritas, principalmente en cartas, dónde

cuentan sus observaciones sobre la realidad socio geográfica del Brasil y de las

peregrinaciones como misioneros. Entre ellos, los principales Jesuitas son: Manuel da

Nóbrega, José de Anchieta y Fernão Cardim. Otros también dejaron sus contribuciones,

como: Antônio Blásques, Leonardo do Vale, João de Aspilcueta Navarro, Leonardo Nunes,

Luís da Grã y Francisco Pires.

El Barroco Literario

En la etimología de la palabra ―barroco‖, según Afrânio Coutinho (2007, p.89), en su

origen ibérica española ―barrueco‖, o portuguesa ―barroco‖, significa una perla irregular

como antes mencionado. Como ejemplo, en la literatura de catequesis podemos inferir que

la forma de representación de esas irregularidades, en la escritura jesuítica, es la presencia

de un lenguaje más trabajado y retórico.

En los siglos XVI y XVII, algunos registros textuales designaban una manera de

raciocinio que no hacía distinción entre el falso y el verdadero, entre una argumentación

extraña y viciosa, evasiva y fugaz, haciendo uso de la subversión a las reglas del

pensamiento. Así es considerada negativa, peyorativa, bizarra, extravagante, artificial,

monstruosa, que tenía como objetivo, el menosprecio por el arte del siglo XVI como forma

decadente.

En Brasil, en los siglos XVII y XVIII ha tenido rasgos representativos del barroco

europeo, en las escrituras de Gregorio de Matos y Botelho de Oliveira, Frei de Itaparica, así

como los primeros textos académicos que tenían resonancias, motivos y formas estilísticas

del barroco ibérico e italiano. El trazo de singularidad del barroco en Brasil se encuentra en

el llamado ―Ciclo de Oro Minero‖, principalmente en el material que se ha utilizado como

sustrato en la arquitectura y en la escultura. Además podrmos habar de un barroco

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brasileño y más específicamente de un baroco minero, que tiene como su mayor

representante Manuel da Costa Ataíde, más conocido como ―O Aleijadinho‖ (BOSI, 2006,

p.34).

Conclusión

En el barroco brasileño hay características específicas, como enfatizado antes en el

texto. Según las interpretaciones de Afrânio Coutinho (2007, p.97) ―o barroco é, portanto o

estilo artístico e literário, e mais do que isso, o estilo de vida, que encheu o período

compreendido entre o final do século XVI e o século XVIII, e de que participaram todos

os povos do Ocidente‖. En esas manifestaciones culturales y literarias, gracias a las cosas

locales en Brasil, el barroco se configuró un fenómeno distinto, por sus representaciones

históricas, geográficas y sociales en el arte y en la literatura barroca.

Sin embargo, podemos identificar el fenómeno barroco como una contra reacción a

las tendencias de la contra reforma de la iglesia católica, o sea una manera de reencontrar el

hilo perdido de la tradición cristiana en búsqueda de expresarla a través de nuevos

paradigmas intelectuales, artísticos y literarios. Para el estudioso, el barroco es resultante de

la contra reacción espiritual al renacimiento humanista y racionalista también.

A pesar de las contradicciones estilísticas del barroco: claro y oscuro, materia y

espíritu, cielo y tierra, razón y sensibilidad, contención y derramamiento, científico y

realidad, sus zonas de intersticios son demarcadas más ideológicamente que

territorialmente, pues las manifestaciones literarias de los Jesuitas son más misioneras e

ideológicas.

Esas son las resonancias que podemos sorprender acerca de la Compañía de Jesús en

el barroco brasileño, en periodos comprendidos en el nuevo mundo y en las

manifestaciones literarias y artísticas del Brasil, a saber, la fundación en el Brasil de un

barroco diferente, o sea, un barroco Jesuítico.

Referencias

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

______. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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VI Colóquio de Estudos Barrocos: I Seminário Internacional de Arte e Literatura Barroca | ISBN: 978-85-7273-690-9 | Página 404

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HOLLANDA, Sérgio B. As Raízes do Brasil. Brasília: UNB, 1963.

MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Origens, Barroco, Arcadismo. Editora

Cultrix. 4ª edição. V. 1. São Paulo, SP. 1997.

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2. EL AMOR EN LA POESÍA DE LOPE DE VEGA

Reny Gomes Maldonado (UFRN)

Paula Pires Ferreira (UFRN)

Lope de Vega es considerado el fundador del teatro español; en el rasgo del teatro

no fue superado por ninguno de sus contemporáneos, tanto su inmensa obra dramática

como lírica, Lope es el poeta nacional por excelencia. Hablar de este poeta es hablar de la

España del siglo XVII, que nació en Madrid, a los 25 días del mes de noviembre del 1562.

Aprendió varios idiomas como el griego, latín, italiano y el francés, a los diez años ha

traducido poemas en latín y a los trece años compuso su primera comedia El verdadero

Amante, comedia pastoril a moda nueva de las tres jornadas.

La obra de Lope de Vega en sus miles de versos es llena de lirismo que lo ha dejado

en igualdad con poetas de gran renombre, como Fray Luis de León, Garcilaso de la Vega y

Don Luis de Góngora, todos con destaque en el siglo XVII.

Al leer su poesía se encuentra un mixto de lo que acontece en su diario, sus encantos

y desencantos. La mujer y el amor siempre están presentes en su vida, esto le trajo amor,

inspiración, felicidad, odio, desilusión, inseguridad, tal vez por no saber administrar su lado

romántico, trayendo con esto grandes trastornos en su vida. Por causa de sus muchos

amores tuvo una familia numerosa que también lo hizo producir muchas obras para

conseguir vivir con dignidad.

La lírica de Lope es uno de los destaques de la literatura española, ya que en sus

versos se puede visualizar la vida del hombre, su pluralidad desenfrenada, amores,

incertidumbres, odio, perfil picaresco y también arrepentimientos. Se nota trazos

autobiográficos, como si el hombre descripto en sus versos fuese el propio poeta, con el

alma inquieta, feliz o infeliz, confundiéndose la realidad con el imaginario, donde se traduce

su estilo a través de su propia visión.

Su genialidad de describir sus poesías, lo que el alma y el corazón hablaban, advenían

del encantamiento que la mujer y el amor hacían nacer en su vida. Compuso versos en tal

abundancia, que mereció en su tiempo los sobrenombres de Fénix de los Ingenios y

Monstruo de la Naturaleza, atribuido éste último al propio Cervantes.

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Se presenta ahora A mis Soledades voy… y su traducción en forma de transcreación

poética al portugués:

A mis soledades voy...

A mis soledades voy,

de mis soledades vengo,

porque para andar conmigo

me bastan mis pensamientos.

¡No sé qué tiene la aldea

donde vivo y donde muero,

que con venir de mí mismo

no puedo venir más lejos!

Ni estoy bien ni mal conmigo;

mas dice mi entendimiento

que un hombre que todo es alma

está cautivo en su cuerpo.

Entiendo lo que me basta,

y solamente no entiendo

cómo se sufre a sí mismo

un ignorante soberbio.

De cuantas cosas me cansan,

fácilmente me defiendo;

pero no puedo guardarme

de los peligros de un necio.

Él dirá que yo lo soy,

pero con falso argumento,

que humildad y necedad

no caben en un sujeto.

La diferencia conozco,

Às minhas solidões vou…

Às minhas solidões vou…

de minhas solidões venho,

porque para andar comigo

me bastam meus pensamentos.

Não sei o que tem a aldeia

onde vivo e onde morro,

que vindo de mim mesmo

não posso vir mais longe!

Nem estou bem nem mal comigo;

mas diz meu entendimento

que um homem que é todo alma

está cativo em seu corpo.

Entendo o que me basta,

e somente não entendo

como se sofre de si mesmo

um ignorante soberbo.

De quantas coisas me cansam,

facilmente me defendo;

mas não posso me guardar

dos perigos de um néscio.

Ele dirá que eu o sou,

mas com falso argumento,

que humildade e estupidez

não cabem em um sujeito.

A diferença conheço,

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porque en él y en mí contemplo,

su locura en su arrogancia,

mi humildad en su desprecio.

O sabe naturaleza

más que supo en otro tiempo,

o tantos que nacen sabios

es porque lo dicen ellos.

Sólo sé que no sé nada,

dijo un filósofo, haciendo

la cuenta con su humildad,

adonde lo más es menos.

No me precio de entendido,

de desdichado me precio,

que los que no son dichosos

¿cómo pueden ser discretos?

No puede durar el mundo,

porque dicen, y lo creo,

que suena a vidrio quebrado

y que ha de romperse presto.

Señales son del juicio

ver que todos le perdemos,

unos por carta de más

otros por cartas de menos.

Dijeron que antiguamente

se fue la verdad al cielo;

tal la pusieron los hombres

que desde entonces no ha vuelto.

En dos edades vivimos

porque nele e em mim contemplo,

sua loucura em sua arrogância,

minha humildade em seu desprezo.

Ou sabe a natureza

mais que soube em outro tempo,

ou tantos que nascem sábios

é porque o dizem eles.

Somente sei que nada sei,

disse um filósofo, fazendo

contas com sua humildade,

aonde o mais é menos.

Não me considero entendido,

Mas, desgraçado me considero,

pois os que não são felizes

como podem ser discretos?

Não pode durar o mundo,

porque dizem, e eu creio,

que soa a vidro quebrado

e que há de romper-se logo.

Sinais são do juízo

ver que todos o perdemos,

uns por carta a mais

outros por cartas a menos.

Disseram que antigamente

a verdade se foi aos céus;

tal a puseram os homens

que desde então não mais voltou.

Em duas idades vivemos

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los propios y los ajenos:

la de plata los extraños

y la de cobre los nuestros.

¿A quién no dará cuidado,

si es español verdadero,

ver los hombres a lo antiguo

y el valor a lo moderno?

Dijo Dios que comería

su pan el hombre primero

con el sudor de su cara

por quebrar su mandamiento,

y algunos inobedientes

a la vergüenza y al miedo,

con las prendas de su honor

han trocado los efectos.

Virtud y filosofía

peregrina como ciegos;

el uno se lleva al otro,

llorando van y pidiendo.

Dos polos tiene la tierra,

universal movimiento;

la mejor vida el favor,

la mejor sangre el dinero.

Oigo tañer las campanas,

y no me espanto, aunque puedo,

que en lugar de tantas cruces

haya tantos hombres muertos.

os próprios e os alheios:

a de prata, os estranhos

e a de cobre, os nossos.

A quem importará,

se é espanhol verdadeiro,

ver os homens à antiga

e o valor ao moderno?

Disse Deus que comeria

seu pão o homem primeiro

com o suor de sua cara

por quebrar seu mandamento,

e alguns desobedientes

à vergonha e ao medo,

com as provas de sua honra

trocaram os seus efeitos.

Virtude e filosofia

peregrinam como cegos;

um leva o outro,

chorando vão e pedindo.

Dois polos tem a terra,

universal movimento:

a melhor vida, o favor,

o melhor sangue, o dinheiro.

Ouço tocar as campas95,

e não me espanto, embora possa,

que em lugar de tantas cruzes

haja tantos homens mortos.

95 Também, ― ouço tocar os sinos‖.

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Mirando estoy los sepulcros

cuyos mármoles eternos

están diciendo sin lengua

que no lo fueron sus dueños.

¡Oh, bien haya quien los hizo,

porque solamente en ellos

de los poderosos grandes

se vengaron los pequeños!

Fea pintan a la envidia,

yo confieso que la tengo

de unos hombres que no saben

quién vive pared en medio.

Sin libros y sin papeles,

sin tratos, cuentas ni cuentos,

cuando quieren escribir

piden prestado el tintero.

Sin ser pobres ni ser ricos,

tienen chimenea y huerto;

no los despiertan cuidados,

ni pretensiones, ni pleitos.

Ni murmuraron del grande,

ni ofendieron al pequeño;

nunca, como yo, afirmaron

parabién, ni pascua dieron.

Con esta envidia que digo

y lo que paso en silencio,

a mis soledades voy,

de mis soledades vengo.

Olhando estou os sepulcros

cujos mármores eternos

estão dizendo sem língua

que não foram seus donos.

Oh, bem haja quem os fez,

porque somente neles

dos poderosos grandes

se vingaram os pequenos!

Feia pintam a inveja,

eu confesso que a tenho

de uns homens que não sabem

quem vive parede no meio.

Sem livros e sem papéis,

sem tratos, contas nem contos,

quando querem escrever

pedem emprestado o tinteiro.

Sem ser pobres nem ser ricos,

têm chaminé e horto;

não lhes despertam cuidados,

nem pretensões, nem pleitos.

Nem murmuraram do grandes,

nem ofenderam ao pequenos;

nunca, como eu, afirmaram

parabéns, nem felicitações deram.

Com esta inveja que digo

e o que passo em silêncio,

às minhas solidões vou,

de minhas solidões venho.

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A MIS SOLEDADES VOY...

(TRANSCREACIÓN POÉTICA)

Se plantea esta poética de traducción manifestándose la búsqueda de una constancia

del movimiento, sumado al interés por la multiplicación de las lenguas hispánicas a un

público luso hablante y, envueltos en los misterios de la traducción agregados al mundo de

imagen barroco. Lope de Vega representa como también nos autoriza una lectura hacia este

universo contemporáneo del barroco, presentándonos temas conflictivos del propio

hombre en su eterno porvenir.

A mis soledades voy… nos ha contagiado por ser un poema que nos propone un

desafío y nos provoca verlo en la lengua portuguesa, ya que

Na tradução o original cresce, elevando-se a uma atmosfera por assim

dizer mais elevada e mais pura da língua, onde naturalmente não

poderá viver para sempre, e está longe de alcançá-la em todas as

partes de sua figura, mas pelo menos alude a ela de um modo

maravilhosamente penetrante, aludindo assim igualmente ao âmbito

predestinado e interdito, da reconciliação e da plenitude das línguas.

(BENJAMIN, apud LAGES, 2007, p.222)

Se ha intentado descubrir un sendero propio de una traducción con calidad,

adecuándose al estilo barroco. Con este intento de recuperar una traducción más

aproximada de su original fue desarrollado y aplicado, en todas las etapas de esta práctica

traductológica, un lenguaje a veces ni tan sonoros, pero de modo a aclarar el sentido de su

mensaje en cada verso utilizado en el poema.

Se debe considerar que la traducción debe permitir que el traductor supere las

dificultades que la diferencia entre las dos lenguas (la de origen y la de llegada) implica. Es

la propia lengua de llegada que impone una traducción diferente. El traductor resuelve esas

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dificultades a través de que Costa llama de ―probabilidade tradutória‖ existente entre las dos

lenguas.

Esto quiere decir que en la traducción libre hay una traducción opcional, creativa,

poética. Libre no porque no tenga parámetros o tenga los parámetros que cada traductor

elige, ya que el traductor elige una opción entre opciones, pero siempre en un plano

estético:

Em breves palavras, o que pretendemos é (talvez um tanto

apologeticamente) lembrar ao leitor que toda tradução representa uma

dentre várias possíveis opções de transposição de um texto da língua

onde ele se formou e informou para uma outra língua onde ele surge

dependente e originário de n fatores - a começar pela indispensável

consideração da identidade cultural dos prováveis consumidores desse

texto de chegada. (COSTA, 1990)

En toda traducción se presupone el desarrollo de un proceso mental, por parte de

quien traduce, que le permite efectuar la transferencia del texto original hacia la producción

del texto de llegada. Este proceso mental consiste, en esencial la comprensión del sentido

del texto de partida para en seguida reformularlo con los signos de la otra lengua. En el

desarrollo de este proceso mental es conveniente distinguir: los procesos básicos de la

lengua que la integra, en el campo de la comprensión y (re)expresión; los mecanismos que

ayudarán a resolver los problemas encontrados a través de estrategias traductoras.

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Sabemos que en toda práctica de traducción se adopta un método traductor. Ese

método es el desarrollo de un proceso fundamentado en un principio para alcanzarse con

éxito la lengua de llegada.

La escoja de un método depende de la finalidad de la traducción, no se trata de

formas opuestas de traducir, pero de contextualizar el objeto de estudio, en este caso, sobre

poéticas de la traducción, se ha procurado respetar la lengua original, adaptándose al

destinatario, informando y manteniendo la misma función y género textual, ya que la

traducción literaria se caracteriza por los aspectos históricos, culturales, etc.

Se resalta que en el ejercicio de la traducción hay una operación entre textos, y no

solamente entre lenguas, y la escrita funciona de manera diferente en cada lengua y cultura.

A partir de este punto de vista tenemos de llevar en consideración cómo funcionan los

textos en cada lengua, considerando que el texto poético trabaja con el lenguaje en todos

los niveles, semánticos, sintácticos, fonéticos, rítmicos, entre otros, además es necesario

verificar qué principios son regidos, qué convenciones son seguidas, etc.

En lo que se refiere a la traducción, los mecanismos de coherencia no

cambian, al ser fundamentos universales de significación; lo que

cambia son los mecanismos cohesión y la manera de estructurar la

progresión temática. De ahí el interés de los estudios contrastivos

textuales, que nos ayudan a conocer las discrepancias y semejanzas.

(HURTADO ALBIR, 1999, p. 33).

PROCESO MENTAL DEL TRADUCTOR

TEXTO ORIGINAL

TEXTO TRADUCIDO

FINALIDAD COMUNICATIVA

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Se habla de competencia o competencias del traductor, y de hecho, si hablamos de

un texto técnico se presupone conocimientos que no son los mismos del texto poético. Sin

embargo, la traducción literaria se diferencia de las características de la traducción general,

sobretodo por la sobrecarga estética. El lenguaje literario, marcado con recursos literarios,

tiene como objetos preponderantes el deleite en el uso estético de la lengua como también

transmitir emociones al lector.

Es justamente ese concepto de (trans)creación – en el caso de la traducción poética -

la pieza fundamental para comprender la tarea específica del traductor poético. Mario

Laranjeira denomina de significância do texto, lo que Walter Benjamin ha llamado de

significação poética: "...não se trata, então, da mera reprodução do sentido, não visa ao

significado enquanto tal, mas à vinculação do significado com o modo de significar, com

uma forma significante". (CAMPOS, 1996, p. 207)

Como Costa afirma, en una traducción poética se debe permanecer fiel a la creación

poética, al proceso creativo, al pensamiento que está atrás de la palabra. A la vez, el

traductor debe conocer el proceso creativo que está atrás de una frase o de un verso; debe

saber que antes de traducir un poema, tiene que traducir y comprender el sentir poético del

autor. Es ese sentir poético del autor que lo llevará a escoger aquella y no una otra

combinación específica de palabras.

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A MIS SOLEDADES VOY...

A mis soledades voy… ya en su título nos sugiere un viaje interior, como si el poeta

estuviese haciendo un diálogo consigo propio, reflexionando sobre su vida solitaria

haciendo una toma de decisión de pura retrospección. Sus indagaciones son propias del

hombro barroco, con su espíritu contradictorio, intentando buscar respuestas para curar el

mal que lo aflige. El reflejo de esa soledad es la incertidumbre de la vida, del amor,

sentimiento que domina el corazón del poeta. De modo que hay una melancolía que se

expresa a través de la poesía, demostrando en palabras, que el amor causa en su vida y que

no rellena su alma, ésta que está dividida entre esos conflictos de ideas y de amores.

El sujeto lírico no habla de una soledad genérica, pero de su propia soledad. En esta

formulación crea un campo de identificación entre el poeta y el lector.

Como el poeta se dirige a si propio, hay aún una reflexión y esto se dirige a una

reflexión sobre la soledad. Como punto de partida ya hay en el propio título un poeta que

habla del amor a si propio, como si estuviese haciendo un análisis de su vida:

Ni estoy bien ni mal conmigo;

mas dice mi entendimiento

que un hombre que todo es alma

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está cautivo en su cuerpo.

La intertextualidad está muy presente en el poema cuando busca en la afirmación de

Sócrates una manera de refuerzo en decir que no se sabe todo, es una herramienta de

juzgarse aprendiz y de concretar que la sabiduría consiste en la conciencia de saber que no

se sabe todo nunca jamás, con su humildad adonde lo más es menos. Como todo hombre barroco

intenta pasar una enseñanza, una moral, o sea que Lope hace una inserción a la

intertextualidad buscando en el filósofo una manera propia de su discurso en función del

don de la humildad.

Hay un cuarteto que demuestra una cierta conciencia de brevedad del mundo

terrenal, hay una fragilidad en sus palabras. Cuando habla de su brevedad en el mundo,

este poeta piensa también en su brevedad de su vida, y también de la vida terrena, de su yo.

Y cuando lo dice eso, Lope piensa en la fragilidad del mundo, se acuerda de los hombres

que se han ido a la eternidad, donde no hay más sufrimiento, soledad y el tiempo no se

cuenta más.

No puede durar el mundo,

porque dicen, y lo creo,

que suena a vidrio quebrado

y que ha de romperse presto.

En las últimas cuadras tenemos la envidia como un sentimiento indigno. En ella el

poeta se refleja y tal vez confiesa que siente envidia de hombres que se fueron y que ya no

sufren más los dolores del alma. Es como si la envidia estuviese en su corazón ocasionada

por la soledad, por la sensación de abandono y por no tener más placer en la vida que está

llevando. Hay también una cierta reflexión delante la paradoja de la vida y la muerte, esta

última representando la eternidad.

Fea pintan a la envidia,

yo confieso que la tengo

de unos hombres que no saben

quién vive pared en medio.

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[…]

Con esta envidia que digo

y lo que paso en silencio,

a mis soledades voy,

de mis soledades vengo.

Son pensamientos que lo atormentan y que lo hacen admitir su fragilidad delante la

brevedad de la vida y también de su vida. Esto demuestra que el ser humano es

esencialmente insatisfecho en busca de su esencia y por lo tanto un hombre y no un dios

sujetos a mutaciones de la vida a los caprichos principalmente del amor.

Por lo tanto en su obra lírica, Lope de Vega, fue más innovador en formas y

contenidos y refleja con gran soltura su personalidad. Entre todos sus romances hay uno,

incluido en La Dorotea, que, tal vez, sea uno de los más populares de la literatura española, y

que comienza así: A mis soledades voy…

REFERENCIAS

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Barcelona: Editorial Crítica, 2001. pp. 75-95.

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Tradução em Revista, v. 3, p. 1-15, 2006.

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LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp,

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3. A PÉROLA IMPERFEITA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A

SOCIEDADE COLONIAL BAIANA COM BASE NA POESIA BARROCA DE

GREGÓRIO DE MATOS GUERRA

Keidy Narelly Costa Matias

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

Na Bahia de todos os Santos, há 387 anos, nascia um poeta, surgia um cronista,

satírico, erótico, escatológico, depreciativo, religioso, herético, sagrado e profano96. Era

pica-flor97. Rejeitado pela alta sociedade seiscentista, profundamente estudado no século

XX, amado no século XXI – com as devidas reservas – e, personagem do futuro98.

Acusado e inocentado, bandido, vítima e herói. Seus escritos o levaram ao auge, acabaram-

no, ressuscitaram-no e o mataram.

Os papéis pregados nas paredes das igrejas, tal como acontecia em certo período da

Idade Média, propagavam sua obra. Ninguém sabia de quem se tratava, suas idéias se

espalhavam, seus conflitos o libertavam e a sociedade ficava imensamente agitada. Quanta

intimidade para falar dos mestiços e dos fidalgos, quanta coragem para falar do clero,

quanta coragem para falar de Deus, quanta dualidade para falar de todos. É uma pérola

imperfeita.

Mesmo que diante de sua obra fiquemos com a audição imutável e os olhos fechados

– algo perfeitamente comum aos dogmáticos e até mesmo aos laicos –, é fundamental que

o conheçamos. Suas atitudes diante dos vícios daqueles que pregam e não obedecem a seus

próprios preceitos é louvável. Ele é profundo na forma de se apresentar aos seus leitores,

mesmo com quase quatro séculos. É seiscentista e intensamente contemporâneo.

Não sei se a perenidade era sua intenção, provavelmente não. Ele estava

infinitamente mais preocupado em delatar os outros e a si próprio e, a denunciar os falsos

devaneios de uma sociedade que no fim explorava e vivia sob a égide do luxo e da

96 Nomes pelas quais, no âmbito da minha pesquisa, vi que se referiram a Gregório de Matos. 97 Alcunha que poeta recebeu de uma religiosa. 98 Expressão utilizada pelo historiador e poeta Fernando Peres.

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ociosidade. Ele reprovava e, ao mesmo tempo, era reprovado. Era valeroso ou temerário?

Valente ou espadachim? Atrevido ou esforçado?99

Estudiosos, certamente, levados pela controvertida figura de Gregório, como

Haroldo de Campos e João Adolfo Hansen, tem pontos divergentes em algumas de suas

interpretações. É base de minha bibliografia, também, Fernando Rocha Peres, que trabalha

com fatos documentados e lendas a respeito de Matos. Os poemas presentes neste trabalho

foram retirados da obra de Segismundo Spina, intitulada ―A poesia de Gregório de Matos‖.

Esses estudiosos parecem ter sido influenciados não só pela obra, mas também pela

personalidade de Gregório.

Esse trabalho se justifica pela importância da obra de Gregório e pelo cunho

profundo em que está inserida. Grandes poetas do barroco agitavam a Europa e nós temos

um representante tão legítimo quanto. Uma poesia polêmica por natureza foi unida a uma

sociedade dúbia e contraditória, de forma que esses elementos oferecem subsídios para

tratar desse importante período de nossa história: a Colonial.

Inicialmente, tratarei dos versos do poeta barroco direcionados a Igreja católica

baiana. O temerário Gregório implicou, delatou, horrorizou e, foi perseguido pela Santa

Inquisição. Ora! A instituição poderosa fora suplantada pelas faíscas jogadas pela pérola

imperfeita. Por um instante de 73 anos ela pareceu menos poderosa aos olhos de um poeta.

Os padres e as freiras eram ridicularizados. Coitadas das beatas que podiam se unir as

carpideiras e chorar, alcunhar e, perceber que as retrucas à Gregório eram a consolidação

de uma milagrosa inspiração.

Então, sua poesia implicou com um dos grupos responsáveis pela sua beleza. Aliás,

os ataques de Gregório parecem voltar facilmente e positivamente para a polidez de sua

obra. Falo dos mestiços, dos quais o vocabulário muito serviu a pena e a tinta de uma

inspiração que, ao mesmo tempo, era pitoresca e grotesca. Nessa segunda parte do

trabalho, minha intenção é a de mostrar como o barroco se fundiu ao tupi e que, apesar

disso ser um diferencial na obra gregoriana, o poeta abastado não estava muito inclinado a

simpatia. Ao contrário, refere-se aos mestiços com palavras de afronta.

Na terceira e derradeira parte deste trabalho, falarei brevemente da deportação de

Gregório à Angola, fato esse que fora culminado pela extrema rispidez e um tanto de

loucura – como a de Rotterdam – de seu poema ―Aos Caramurus da Bahia‖.

99 Referência a um poema gregoriano chamado ―Reprovações‖.

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Assim, um estudo sobre dois grupos da sociedade colonial baiana culmina em uma

breve admiração biográfica. Seus escritos influíam na sociedade na mesma proporção em

que alteravam sua vida. Para ele, consistia numa infelicidade e desgosto o fato de ter

nascido numa família abastada. Talvez por isso, critique tão veemente o luxo e o esplendor

dessa terra.

Trata-se de um trabalho que oferece minha pouca experiência no assunto. Mas aqui,

a questão central é justamente essa: tentar enxergar o tumulto que causa a obra gregoriana

através do ponto de vista de uma pessoa comum. Para isso me fiz cobaia de mim mesma e

certamente não permaneci a mesma depois de entrar em contato. Pois, como já disse uma

famosa escritora do século XX: ―suponho que entender é questão de entrar em contato, ou

toca ou não toca100‖.

Gregório de Matos Guerra, alcunhado de Boca de Inferno, nasceu em 1623 na

cidade da Bahia de Todos os Santos101, então capital da América Portuguesa, filho de

Gregório de Matos e de Maria da Guerra. O poeta do Recôncavo era de família abastada,

estudou no Colégio dos Jesuítas e aos 19 anos foi enviado à Coimbra por seu pai para

estudar leis. Por causa de suas sátiras foi perseguido e deportado para a Angola. Para sua

felicidade e alívio do governador do reino, abortou uma conspiração contra dom Henrique

Jaques e como prêmio pôde voltar à terra tupiniquim, dessa vez ao território recifense, pois

estava proibido de retornar a sua terra natal.

Em 1696, o poeta falece e é sepultado no Hospício de Nossa Senhora da Penha dos

Capuchinhos, em Pernambuco.

Não há melhor testemunho do que a obra de Gregório de Matos para analisar a

sociedade do Brasil Colonial, sobretudo, a nobreza e os mestiços da Bahia. Para ele,

consistia numa infelicidade e desgosto o fato de ter nascido numa família abastada. Talvez

por isso, critique tão veementemente o luxo e o esplendor dessa terra.

Abarcada pela ―pérola imperfeita‖, como ficou conhecido o Barroco, a poesia

gregoriana contempla a sátira, a lírica e a caricatura. É regida por um cunho profano e

religioso. As aspirações entre o sagrado e o profano caminham dualisticamente e a

contradição entre pontos divergentes provoca um sentido uno e gigantesco.

100 Refiro-me a Clarice Lispector (ligeiramente adaptado para fins de coerência com o texto, o sentido

permanece o mesmo). 101 A data de nascimento é motivo de controvérsia entre autores. Segismundo Spina acredita que o poeta

nasceu em 1623, adotei essa data em minha pesquisa. No entanto, Fernando Peres acredita que Gregório

nasceu em 1636.

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Críticos o depreciam, acusando-o de plagiar Góngora e Quevedo. A história provou

sua originalidade. Gregório é impiedoso com a luxúria e a escatologia presentes na fidalguia

Baiana. É munido por um realismo pornográfico, por jogos verbais e semânticos, por

violência e depreciação, ao mesmo tempo em que, possuía concessões ao gosto de seu

tempo.

A farsa regurgitada pelos costumes maculados e libidinosos da nobreza e da Igreja

Católica resultou no primeiro prelo que circulou na Colônia e, em fontes imprescindíveis a

compreensão da História do Brasil.

No soneto ―Jesus Cristo Crucificado, estando o poeta para morrer‖, Gregório exerce

um jogo de imagens e conceitos típicos do barroco. Promete viver e morrer sob a lei de

Cristo, diz que é um pecador súdito do cordeiro e pede perdão pelos seus pecados. O poeta

mostra uma aflição diante do episódio da crucificação de Cristo capaz de afrontar a Igreja e

os beatos, as carpideiras e os fidalgos. Esse comportamento não se dá como um

desrespeito à Igreja, que muitos podem encontrar nesses versos, e ao sentimento dos que

sofrem, mas pela extrema ousadia de escrever algo desse teor, e que aos olhos de hoje é

ainda ameaçador, em uma sociedade regida pelo catolicismo. A culpa refletida e a certeza

de que o amor de Cristo é maior do que os seus pecados expressam a cosmovisão barroca,

o homem como ser infinitamente inferior a Deus. Veja o poema:

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,

Em cuja lei protesto de viver,

Em cuja santa lei hei de morrer,

Animoso, constante, firme e inteiro:

Neste lance, por ser o derradeiro,

Pois vejo a minha vida anoitecer,

É, meu Jesus, a hora de se ver

A brandura de um Pai, manso Cordeiro.

Mui grande é o vosso amor e o meu delito;

Porém pode ter fim todo o pecar,

E não o vosso amor, que é infinito.

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Esta razão me obriga a confiar,

Que, por mais que pequei, neste conflito

Espero em vosso amor de me salvar.

Nesse trecho, Gregório segue falando de seus pecados, confessa-se e se mostra

arrependido, pois sabe da infinita misericórdia do Senhor.

Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,

É verdade, Senhor, que hei delinqüido,

Delinqüido vos tenho, e ofendido,

Ofendido vos tem minha maldade102.

O poema possui uma série de pontos que mostram o arrependimento por seus atos e

a vontade de salvar sua alma. A salvação da alma era o motivo mais latente no discurso da

Igreja no âmbito da Colônia. Era preciso evangelizar e Matos não deixou que isso se

passasse inocentemente. Ele satirizou.

Em ―Buscando a Cristo‖, uma de suas obras primas, o poeta segue nessa mesma

lógica, constrói um soneto com metonímias e repetições para que sua mensagem ganhe

mais força:

À vós correndo vou, braços sagrados,

Nessa cruz sacrossanta descobertos

Que, para receber-me, estais abertos,

E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados

De tanto sangue e lágrimas abertos,

Pois, para perdoar-me, estais despertos,

E, por não condenar-me, estais fechados.

102 Soneto intitulado de ―Ao mesmo assunto‖.

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A vós, pregados pés, por não deixar-me,

A vós, sangue vertido, para ungir-me,

A vós, cabeça baixa, p‘ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,

A vós, cravos preciosos, quero atar-me,

Para ficar unido, atado e firme.

Ao mesmo tempo em que busca a salvação e a remissão dos pecados, mostra-se

arredio ao clero. Seus poemas dualísticos e repletos de figuras de linguagem afrontavam a

alta sociedade. Em ―Soneto (A cada canto um grande conselheiro)‖ ele profana e acusa a

alta sociedade baiana. Trata-se de uma crítica ferrenha aos governantes da "cidade da

Bahia". Os grandes conselheiros são os indivíduos que não sabem governar sua cozinha, mas

podem governar o mundo inteiro. Ou seja, os hipócritas que apontam os defeitos dos outros sem

olhar os seus.

A cada canto um grande conselheiro,

Que nos quer governar a cabana, e vinha,

Não sabem governar sua cozinha,

E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,

Que a vida do vizinho, e da vizinha

Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,

Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,

Trazidos pelos pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,

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Todos, os que não furtam, muito pobres,

E eis aqui a cidade da Bahia.

Esse poema remete imediatamente a um outro, intitulado ―Reprovações‖:

Se sois homem valeroso,

Dizem que sois temerário,

Se valente, espadachim,

E atrevido, se esforçado.

Se resoluto, – arrogante,

Se pacífico, sois fraco,

Se precatado, – medroso,

E se o não sois, – confiado.

Se usais justiça, um Herodes,

Se favorável, sois brando,

Se condenais, sois injusto,

Se absolveis, estais peitado.

Se vos dão, sois um covarde,

E se dais, sois desumano,

Se vos rendeis, sois traidor,

Se rendeis, – afortunado.

[...]

Se não sofreis, imprudente,

Se sofreis, sois um coitado,

Se perdoais, sois bom homem,

E se não sois, - um tirano.

[...]

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Se não compondes, sois néscio,

Se escreveis, sois censurado,

Se fazeis versos, sois louco,

Se o não fazeis, sois parvo.

[...]

Se falais muito, palreiro,

Se falais pouco, sois tardo,

Se em pé, não tendes assento,

Preguiçoso, se assentado.

E assim não pode viver

Neste Brasil infestado,

Segundo o que vos refiro

Quem não seja reprovado.

Para entrar com mais afinco na análise do conteúdo que a obra gregoriana nos

oferece sobre a sociedade do período colonial do Brasil, vejamos os poemas seguintes que

tratam da Bahia.

No epigrama ―Juízo anatômico dos achaques que padeciao corpo da república em

todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia‖, Gregório é

portador de um discurso profundamente polêmico e ameaçador. Arrisco-me a proferir que

o poema contribuiu para o que posteriormente acontecera: sua deportação para a Angola.

Que falta nesta cidade?... Verdade.

Que mais por sua desonra?... Honra.

Falta mais que se lhe ponha... Vergonha.

O demo a viver se exponha,

Por mais que a fama a exalta,

Numa cidade onde falta

Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.

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Quem causa tal perdição?... Ambição.

E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desventura

De um povo néscio e sandeu,

Que não sabe que o perdeu

Negócio, Ambição, Usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.

Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.

Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,

dou ao Demo o povo asnal,

Que estima por cabedal,

Pretos, Mestiços, Mulatos.

[...]

E que justiça a resguarda?... Bastarda.

É grátis distribuída?...Vendida.

Que te, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,

O que El-Rei nos dá de graça,

Que anda a justiça na praça Bastarda,

Vendida, Injusta.

[...]

Sazonada caramunha,

Enfim, que na Santa Sé

O que mais se pratica é,

Simonia, Inveja e Unha.

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E nos frades há manqueiras?... Freiras.

Em que ocupam os serões?... Sermões.

Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas

Me concluo na verdade,

Que as lidas todas de um Frade

São freiras, sermões, e putas.

[...]

À Bahia aconteceu

O que a um doente acontece:

Cai na cama, e o mal lhe cresce,

Baixou, Subiu e Morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.

Pois não tem todo o poder?... Não quer.

É que o governo a convence?... Não vence.

Que haverá que tal pense,

Que uma Câmara tão nobre,

Por ver-se mísera, e pobre,

Não pode, não quer, não vence.

As críticas a sociedade e ao clero estão por toda a obra de Gregório, um exemplo

disso é o trecho abaixo:

A nossa Sé da Bahia,

Com ser um mapa de festas,

É um presepe de bestas,

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Se não for estrebaria:

Várias bestas cada dia103.

Ainda nesse contexto, temos um episódio curioso sobre Gregório. Uma Freira

resolveu satirizá-lo publicamente, chamando-o de ―pica-flor‖ (beija-flor), ela se referiu

assim por conta da fisionomia do nariz saliente de Gregório, que imediatamente

respondeu-a:

Se Pica-Flor me chamais,

Pica-Flor aceito ser,

Mas resta saber agora,

Se no nome que ma dais,

Meteis a flor, que guardais!

[...]

Se me dais este favor,

Sendo eu só o Pica,

E o mais vosso, claro fica,

Que fico então Pica-Flor.

Em mais uma sátira ao clero Matos protesta contra uma freira que não quis que outra

freira o mandasse um peixe:

Pois destes tão mal conselho,

Rogo ao demo que vos tome,

Por deixar morrer à fome

Um pobre faminto velho:

Rogo ao Demo que o seu relho

Vos prenda com força tanta,

Que nunca arredeis a planta,

E que a espinha muito ou pouca,

103 Trecho do poema ―À Sé da Bahia‖.

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Que me tirastes da boca,

Se vos crave na garganta.

Assim como é verdade,

Que pelo vosso conselho

Perdi eu o meu vermelho104,

Percais vós a virgindade:

Que vo-la arrebate um frade;

Mas isto, que praga é?

Praza ao Demo, que um cobé

Vos plante tal mangará,

Que parais um Paiaiá,

Mais negro do que um Guiné105.

Boca de Brasa não se resguardava ao falar da nobreza e do clero na sociedade baiana.

Aliados aos exemplos citados existem uma infinidade em sua obra. A cidade padecia em

fome enquanto os clérigos, o Estado e os fidalgos viviam sob o luxo e a vaidade. Os

incomodados com tamanha audácia o alcunhavam e o depreciavam, mas isso não foi

obstáculo para que ele se calasse, ao contrário, ele se lisonjeava.

Tratarei agora de seus versos aos mestiços da Bahia. Como podemos entender o

papel que desempenhavam na sociedade tomando como fonte a obra do poeta barroco?

Ele fala dos principais aspectos sociais da época se colocando em diversas classes da

sociedade. E seu objetivo, como bem esclarece a obra de Fernando Peres, não era o de

guardar esses escritos, aliás, talvez ele próprio fabricasse os folhetos para que moleques o

espalhassem, já que não poderia ser identificado. Antes de analisar esses poemas, é

necessário esclarecer que a própria poesia de Gregório é mestiça.

No poema ―Milagres do Brasil são ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi

vigário da Freguesia do Passé‖, Gregório diz que o cargo que Lourenço Ribeiro ocupa é

por conta de um milagre do Brasil. Chama-o de ousado e de canaz106, e culpa a Santa Sé

104 Vermelho é o nome do peixe que Gregório deixou de comer. 105 Sátira intitulada ―A uma freira‖. 106 Cão grande.

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pelo fato de um cão revestido em padre107 ladrar contra um branco. Nesse ponto de sua obra,

notamos certa aversão aos mestiços, mas Gregório também tinha aversão aos prelados.

Lourenço Ribeiro é um membro da Igreja e, nesse ponto, o poema é dúbio: Gregório o

trata com aversão por ser mestiço ou por ser prelado, ou ainda, as por causa das duas

características? Para tentar elucidar essa questão, recorro a Fernando Peres:

Sua poesia tem muita mestiçagem, até mesmo agressiva, na medida

em que ele assume um papel preconceituoso contra o negro, o

mulato. De modo algum ele pode ser considerado etnicamente um

mestiço, um mulato. Era descendente de galegos que vieram da

cidade de Guimarães e se instalaram na Bahia no início do século

XVI. Naquela época, havia uma triagem através de um processo

chamado habilitação de gênere. O sujeito que fosse mestiço — tivesse

sangue de mouro, de judeu, de africano, ou como eles chamavam,

―sangue de infecta nação‖ — ou que descendesse de oficial mecânico

não poderia freqüentar a Universidade de Coimbra nem ser nomeado

pelo rei para exercer uma função de juiz. Na sua poesia, Gregório em

todo momento está se auto-referenciando como branco e honrado.

Sua linguagem é mestiça e esse é seu grande mérito108.

Analisemos esse trecho do poema citado:

Se este tal podengo asneiro

O pai o esvanece já,

A mãe lhe lembro, que está

Roendo em um tamoeiro:

Que importa um branco cueiro,

Se o... é tão denegrido!

Mas se no misto sentido

Se lhe esconde a negridão:

Milagres do Brasil são.

107 Esse trecho faz parte do poema. 108 Em entrevista concedida ao jornal ―A Tarde‖ em 1996.

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Lourenço Ribeiro desdenhou publicamente, aliás, como quase todos os

representantes da Igreja, dos versos de Gregório. Mais uma vez atento para o fato de que o

tratamento dado ao padre pode não ser desencadeado pela sua etnia, visto que quando uma

freira – que já citei antes –, o chamou de pica-flor ele não deixou por menos e, sabendo que

iria ofendê-la profundamente, tendo em vista os desígnios de uma consagrada a Deus –

respondeu-a com muita ousadia e coragem. O mesmo se dá e, dessa vez ele roga ao Demo,

quando uma freira lhe nega um peixe. A diferença é que nesse poema ele a deseja que seja

tomada por um mestiço.

É fato que Gregório se mostra indignado com o fato de o padre ser mestiço, e em

todo o tempo se refere a ele como cão. Duvida de sua capacidade em aplicar os sermões e,

nas dez estrofes que tem esse poema, critica-o por ser mestiço e culpa a Ordem, finaliza

dizendo que o dito padre tem sangue de carrapato.

É necessário perceber, também, que todos os poemas, sejam eles destinados a Igreja,

aos mestiços ou aos fidalgos, são repletos de críticas. Gregório não tinha intenção de

elogiar ninguém. Por menor que fosse a ofensa ele a fazia. Essa poesia extremamente forte

é típica do barroco e por ser tão agressiva desperta a todos.

No soneto ―À procissão de cinza em Pernambuco‖ fica claro que não somente a

sociedade estava miscigenada, mas também a poesia. A procissão recebe negros, brancos,

crianças, estrangeiros, cegos e mamalucos109. O soneto:

Um negro magro de sufulié justo,

Dois azorragues de um joá pendentes,

Barbado o Peres, mais dois penitentes,

Seis crianças com asas sem mais custo.

De vermelho o mulato mais robusto,

Três meninos, fradinhos inocentes,

Dois ou doze brichotes muito agentes,

Vinte ou trinta canelas de ombro onusto.

109 O mesmo que ―mameluco‖.

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Sem débita reverência seis andores,

Um pendão de algodão tinto em tijuco,

Em fileira dez pares de menores.

Atrás um cego, um negro, um mamaluco,

Três lotes de rapazes gritadores:

É a procissão de cinza em Pernambuco.

No soneto ―Aos mesmos Caramurus110‖ Gregório abusa de termos tupis.

Há coisa como ver um Paiaiá,

Mui prezado de ser Caramuru,

Descendente de sangue de tatu,

Cujo torpe idioma é Cobepá?

A linha feminina é Carimá

Muqueca, pititinga, caruru

Mingau de puba, vinho de caju

Pisado num pilão de Pirajá.

A masculina é um Aricobé

Cuja filha Cobé, c‘um branco Paí

Dormiu no promontório de Passé.

O branco era um marau que veio aqui:

Ela era uma índia de Maré;

Cobépá, Aricobé, Cobé, Paí.

Aos olhos contemporâneos, esse soneto soa estranho. Mas a intenção de Gregório

era a de chocar com o que escrevia e de ridicularizar a todos. Ele não poupava nem a si

mesmo. As palavras tupis dão uma força ao soneto que certamente era percebida na época.

110 Esse poema é escrito depois do soneto ―Aos Caramurus da Bahia‖, mas preferi analisá-lo antes em

meu trabalho por motivo de organização. O outro soneto será trabalhado quando for me referir a

deportação de Gregório para a Angola.

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O poeta sabia atingir, tinha o dom de chocar. Respondia aos menores questionamentos

com um jogo de palavras espetacular.

O Paiaiá prezado de ser caramuru é o pajé. O idioma Cobepá, o dialeto da tribo

Cobé. As mulheres se dedicavam aos afazeres da casa, elas cozinhavam carimá – bolo de

mandioca posta no molho –, mingau de puba (mandioca) e vinho de caju. A miscigenação

entre índios e brancos é relatada por Gregório na terceira estrofe: uma índia da tribo Cobé

dormiu com um branco, que era marau (em tupi, quer dizer, maracujá). No fim do soneto o

poeta relata diversos termos tupis e termina com uma gíria. Segundo Haroldo de Campos,

Matos se utilizou de aspectos do barroco e da mistura de idiomas. Esse poema não é o

único em que ele faz isso, é comum em sua obra encontrar esses elementos que sem

dúvida, dão-lhe mais originalidade.

Na terceira parte deste trabalho, irei falar brevemente do estopim para a deportação

do poeta à Angola. Nessa época, tem-se início o período final da vida de Gregório, visto

que sair de sua cidade e de seu país foi um golpe emocional muito forte, arrisco-me a dizer

que tenho dúvidas se o que entristeceu o poeta foi o fato de ser deportado ou, de ser

privado de atacar a sociedade tão de perto.

Proponho que primeiramente leiamos o poema ―Aos Caramurus da Bahia‖ e depois

analisarei porque o mesmo causou tamanha confusão.

Um calção de pindoba111, a meia zorra,

Camisa de urucu112, mantéu de arara113,

Em lugar de cotó, arco e taquara,

Penacho de guarás, em vez de gorra.

Furado o beiço, sem temor que morra

O pai, que lho envasou c‘uma titara,

Porém a mãe a pedra lhe aplicara

Por reprimir o sangue que não corra.

Alarve sem razão, bruto sem fé,

111 Palmeira. 112 Fruto que de cuja polpa se extrai uma cor avermelhada. 113 Saiote feito com penas de arara.

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Sem mais leis que as do gosto, quando erra,

De Paiaiá tornou-se em Abaité114.

Não sei onde acabou, ou em que guerra:

Só sei que deste Adão de Massapé115

Procedem os fidalgos desta terra.

A miscigenação entre indígenas e europeus estava consolidada e o soneto deixa essa

questão bem explicitada. As palavras em tupi do texto reforçam esse argumento. Essas

palavras não possuem a inocência que aparentam, dizem muito e satirizam como nunca.

Lembro que Gregório era de família abastada e que apesar de criticar a fidalguia, de

certa forma, fazia parte dela. Certamente estava profundamente incomodado com a

ascensão dos muitos indígenas que, permitidos por certa contravenção social, permitiam-se

fidalgos.

Em 1685 foi delatado à Santa Inquisição sob a acusação de difamar Cristo – denúncia

que para sua sorte não teve prosseguimento. Mas Gregório nem por isso calou-se e como

já estava acostumado a satirizar o clero e os fidalgos, empreitou-se a provocar a ira de

parentes próximos (provavelmente os filhos) do governador Antônio Luís Gonçalves da

Câmara Coutinho. Os parentes acharam, possivelmente com razão, que os versos desse

soneto fossem uma crítica ao governador.

Quando o poeta fala que deste Adão de Massapé procedem os fidalgos desta terra quer dizer

que dos domínios das terras de Mém de Sá (Adão de Massapé) procedem esses fidalgos.

Segismundo Spina fala que o solo massapé é comum na Bahia, principalmente, no

município de Santo Amaro.

Essa afronta deixou o poeta sob o risco latente de ser assassinado. Temendo isso, sua

deportação foi forçada. Assim, não mais pisou em sua terra natal e quando voltou ao Brasil,

em território pernambucano, imensamente amargurado, pouco viveu.

A obra gregoriana nos revela um homem extremamente incomodado e dela

dependente, que quando não criticava o meio em que vivia estava imerso em solidão. De

114 Horrível. 115 Solo argiloso, escuro e fértil.

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certa forma, pode-se concluir que Gregório era dependente do que escrevia. Ele não

conseguia calar diante da tamanha vergonha que seus olhos testemunhavam.

REFERÊNCIAS

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São Paulo: Edusp, 1995.

CAMPOS, Haroldo de. Original e revolucionário. Disponível em:

<http://www.revista.agulha.nom.br/har01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010.

EBLE, Laeticia Jensen. A Sátira a Serviço de Gregório: Aspectos relevantes da sátira e

sua conveniência para Gregório de Mattos e Guerra. Disponível em:

<http://www.revista.agulha.nom.br/laeticiajensen4.html>. Acesso em: 24 abr. 2010.

HANSEN, João Adolfo. Floretes agudos e porretes grossos. Disponível em:

<http://www.revista.agulha.nom.br/jah01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010.

PERES, Fernando. Gregório de Mattos, 360 Anos: Fatos Documentados e Lendas

Relativas a Gregório de Mattos e Guerra. Disponível em:

<http://www.revista.agulha.nom.br/peres01.html>. Acesso em: 24 abr. 2010.

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4. O LUGAR DE GREGÓRIO DE MATOS NA LITERATURA BRASILEIRA

Samuel Anderson de Oliveira Lima

(Prof. Assistente da UFRN)

Ser poeta, não. Poder sê-lo.

Paul Valéry

I

A figura exponencial de Gregório de Matos tem causado ao longo dos séculos

grande agitação entre os estudiosos da Literatura Brasileira, quiçá da Literatura Universal.

Críticos têm levantado teorias acerca da autenticidade das poesias atribuídas ao poeta

seiscentista. Dessa forma, são formados dois grupos: os que defendem a poesia de GM1

como marco inicial da Literatura Brasileira e os que acreditam que sua poesia, além de não

ser autêntica, não pode ser considerada tipicamente brasileira, já que, ao que se parece, não

houve preocupação do poeta em escrever configurado em estilos literários.

Dos dois grupos, podemos citar duas importantes figuras para a crítica literária

contemporânea: Antonio Candido e Haroldo de Campos. Este aprova Gregório como

precursor da poesia brasileira; aquele o retira de sua Formação da Literatura Brasileira,

que de acordo com sua ideologia – uma perspectiva histórica – GM não se insere nos

parâmetros de construção de nossa literatura, uma vez que o poeta baiano mais se

encaixaria nas ―manifestações literárias‖ do que na ―literatura enquanto sistema‖. Dessa

forma, argumenta Candido (2000, p. 24):

Período importante e do maior interesse, onde se prendem as raízes da

nossa vida literária e surgem, sem falar dos cronistas, homens do porte de

Antônio Vieira e Gregório de Matos, - que poderá, aliás, servir de

exemplo do que pretendo dizer. Com efeito, embora tenha permanecido

na tradição local da Bahia, ele não existiu literariamente (em perspectiva

histórica) até o Romantismo, quando foi descoberto, sobretudo graças a

Varnhagen; e só depois de 1882 e da edição Vale Cabral pôde ser

devidamente avaliado. Antes disso, não influiu, não contribuiu para

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formar o nosso sistema literário, e tão obscuro permaneceu sob os seus

manuscritos.

É interessante notar que o crítico até cita os nomes de Antônio Vieira e Gregório

de Matos, como autores de ―porte‖, nomes importantes para o enraizamento do sistema

literário no Brasil, porém ao se referir especificamente a GM, ele o destaca como um traço

não influenciador da construção desse sistema literário. Para Candido, os alicerces de nossa

literatura são firmados após autores em cuja vida ―histórica‖ se percebeu a preocupação em

criar uma literatura brasileira: é com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e certos

intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus

variáveis a vontade de fazer literatura brasileira (p. 24-25). Sendo assim, o fato de GM não ter se

preocupado em realizar um trabalho de criação de um sistema literário no Brasil, fez com

que o crítico diminuísse o valor do poeta baiano, pondo em xeque até sua formação

intelectual, pois deixa implícito que só com os árcades surgiram homens de letras. Mas é

sabido que Gregório, Anchieta, Vieira – só para citar alguns – foram homens estudados,

cultos, que beberam da cultura ibérica e aqui mesclaram seus conhecimentos com a rica

cultura americana. É fato também que eles não se preocuparam em escrever ditados pela

norma de um regime literário vigente na Europa, o que não exclui a possibilidade de terem

sofrido influência da literatura portuguesa. Sua preocupação estava além disso, eles

pensaram em fazer poesia enquanto arte e através dessa arte atingir seu público. Talvez,

Gregório quisesse mesmo fugir do historicismo de que tanto fala Candido. O Poeta, como

pesquisador, não pode estar atrelado aos conceitos datados sob uma perspectiva histórica,

mas se distanciar disso, buscando trabalhar sua poesia de forma realmente artística. Paul

Valéry (1998, p. 15), ao falar sobre o método de Leonardo da Vinci, critica o historicismo e

apresenta alguns parâmetros para a produção da arte:

Tento dar uma visão do detalhe de uma vida intelectual, uma sugestão

de métodos que toda descoberta implica, uma, escolhida entre a

multidão das coisas imagináveis, modelo que sabemos ser grosseiro, mas

de qualquer modo preferível às sucessões de anedotas duvidosas, aos

comentários dos catálogos de coleções, às datas.

Valéry nos afirma que é preciso escolher um dentre os vários métodos existentes,

porém esse um deve, preferencialmente, estar distante dos comentários de catálogos de coleções,

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das datas. Ou seja, fazer literatura – enquanto arte – não pode estar ligado aos ditames dos

códigos, dos manuais. É claro que aqui não estamos excluindo as escolas literárias, os

sistemas, até porque a poesia de GM se enquadra num desses estilos – o Barroco -, mas

acima disso, a poesia gregoriana ultrapassa os conceitos historicistas, como o fez Góngora,

Quevedo etc. O que Paul Valéry nos apresenta é justamente a noção de que, embora não se

deva estar ligado ao historicismo, é preponderante a pesquisa, pois, para se produzir arte, é

preciso estudo e o resultado desse estudo – a poesia (arte literária) – se dá com a influência

dos cânones universais da literatura. Toda produção literária que se tenha no Brasil e no

mundo não é fruto do acaso, mas, sim, influência de muita pesquisa, de muito trabalho. O

que Homero fez em suas epopéias é fruto, sem dúvida, do estudo de outras fontes. Nesse

sentido, a poesia de GM, como de outros, também sofreu influência de outros poetas,

formando, portanto, uma constelação de intelectuais. Sob essa perspectiva, o crítico e poeta

Octavio Paz (1982, p. 20) diz que um poeta não deve fazer poesia moldado por um

sistema, pois sendo assim, ele perde as prerrogativas para ser um poeta:

Quando um poeta adquire um estilo, uma maneira, deixa de ser um

poeta e se converte em construtor de artefatos literários. Chamar

Góngora de poeta barroco pode ser verdadeiro sob o ponto de vista da

história literária, mas não o é se queremos penetrar em sua poesia, que é

alguma coisa mais.

Góngora é mais que Barroco, ele é Universal, assim como Gregório, que veio

depois e, portanto, sofreu influência. Bosi (2001, p. 39) anota a esse respeito:

Resta ver a força artesanal, que é patente em um versejador hábil como

Gregório. Alguns de seus sonetos sacros e amorosos transpõem com

brilho esquemas de Góngora e de Quevedo, e valem como exemplo do

gosto seiscentista de compor símiles e contrastes para enfunar imagens

e destrinçar conceitos.

Então, de acordo com Antonio Candido, só existe literatura, ou se faz literatura, se

houver preocupação em construir um sistema ou se enquadrar em um. O que dizer dos

clássicos universais, estavam eles preocupados com a questão de regras, de sistemas? Será

que Gil Vicente, um dos mais importantes dramaturgos da literatura portuguesa,

preocupou-se em fazer peças voltadas para as normas do Humanismo? Ou será que o texto

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por si só já não nos leva a tal ou qual movimento? O que falar, então, de João Cabral de

Melo Neto, sua poesia poder ser tachada como modernista? Não podemos deixar de

lembrar que a literatura desse ou daquele autor é influenciada por muitas coisas, dentre elas,

os fatores históricos, culturais. E parece que é justamente isso que o rotula dentre de uma

ou outra escola literária. No entanto, o fato de o artista seiscentista não ter pautado sua arte

dentro das normas, não é razão para excluí-lo dos manuais. Não estamos, com esse

discurso, desmerecendo o estudo sobre nossa literatura feito pelo crítico Antonio Candido,

e sim, querendo mostrar que o poeta GM foi a mola principal da poesia no Brasil e um dos

marcos da formação da Literatura Brasileira.

II

É preciso dar à arte um tratamento peculiar, ou seja, a literatura requer dos críticos

um estudo minucioso, para não incorrer em erros. Nota-se sob essa perspectiva que nem

todos terão a mesma opinião sobre determinado assunto – e isso vale para qualquer ramo

da vida humana -, porém há coisas que precisam de um olhar mais atento. Candido (2000,

p. 9) no prefácio da 1ª edição, inicia seu texto com cada literatura requer tratamento peculiar, em

virtude dos seus problemas específicos ou da relação que mantém com outras. Ou seja, ele aprova que a

literatura não é um manual artificial cheio de conceitos para analisar a obra de arte, mas

requer do analista determinadas peculiaridades. E se existem essas peculiaridades, Candido

nos parece contraditório porque afirma que o ponto de vista histórico é um dos meios mais legítimos

de estudar literatura (p. 29). Dessa forma, outro ponto de vista que não seja o histórico, para

ele, não é legítimo no estudo da literatura brasileira (apesar de não especificar que tipo de

literatura, mas fica subentendido que se refere à literatura brasileira). Com isso, fica sem

sustentação a idéia de se tomar cuidado com as peculiaridades no estudo de literatura, já

que legítimo mesmo seria o ponto de vista histórico.

Uma outra frase de Candido que é interessante ser notificada é a seguinte:

localizaram na fase arcádica o início de nossa verdadeira literatura (p. 25). Atente-se para o vocábulo

verdadeira. Significa que a literatura anterior ao Arcadismo é falsa, sem sentido para o Brasil.

Então, que valor teriam os sermões de Vieira? E a poesia plurilíngüe de Anchieta? Sem

falar, é claro, na língua ferina do Boca-do-inferno. De nada valeriam, então, os textos

desses poetas para a literatura brasileira? Ao que nos parece, é justamente isso que diz o

crítico. Ele tacha a literatura pré-arcádica – a literatura dos cronistas, a literatura barroca -,

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do século XVI e XVII, no Brasil, como sem importância, sem conteúdo, sem matéria

suficiente para demarcar espaço, fazer-se notória. Dizer assim é uma forma de demonstrar

preconceito, de negar a força poética dos poetas. Parece mais uma questão ideológica do

que mesmo a apreciação de um conteúdo literário de influência marcante no século XVII e

no atual. A Formação se propõe mesmo a ver a literatura no Brasil como expressão da realidade

local e, ao mesmo tempo, elemento positivo na construção nacional. (p. 25) Esquece o crítico que a

literatura do século XVI ao XVII está pautada num processo de transculturação. Por

exemplo, Gregório trabalha, em sua poesia, com o elemento estrangeiro – o colonizador -,

mesclando-o ao elemento nacional. É o caso da língua: Gregório escreve poesias em língua

espanhola, algo feito antes por Anchieta. Isso é importante porque a língua é um meio de

se ensinar uma cultura e/ou sua porta de entrada. O poeta não usou somente de elementos

da Europa, mas fez uma mistura com o americano. Esse fato nos leva a crer que a poesia

gregoriana é brasileira e universal e, portanto, digna de ser a precursora de uma literatura no

Brasil. Seja para qual fim se destina, a poesia do século XVI aponta para um horizonte de

grande poder artístico-cultural.

Raquel Chang-Rodríguez (1993, p. 301) analisa o processo de construção da poesia

na América no período colonial e diz:

Durante los siglos XVI, XVII y XVIII, Hispanoamérica experimentó un

intenso proceso de transculturación del cual surgió una sociedad cuyo

ideario e instituciones llevan las senas tanto de lo europeo como de lo

americano.

Tanto o Brasil como toda a América estavam passando pelo processo de

colonização. Era muito forte a presença do estrangeiro, que ao chegar aqui, tentou

transferir sua cultura para nosso povo. No entanto, em vez de ter havido somente a

absorção da cultura portuguesa (no caso do Brasil), houve – como já foi dito – uma mistura

com os elementos culturais brasileiros. Pode-se constatar essa afirmação estudando a

poesia de Anchieta e de Gregório de Matos. Sendo assim, Massaud Moisés (1983, p. 104)

nos considera a importância da obra gregoriana para o Brasil:

E acionada por autonomia de espírito e coragem moral, que desde logo

o aproximam de Antônio Vieira, seu contemporâneo. Ambos

representam o melhor da cultura portuguesa e brasileira durante a

quadra barroca: na ação, desempenadamente anti-obscurantista, eram

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faces da mesma moeda, e na visão do mundo, com exigências de rigor

intelectual e ético, individualidades de idêntico calibre e porte.

Dessa comunicação entre as duas culturas nasceu, na modernidade, a noção de

neobarroco, que significa o ponto de diálogo entre o Ocidente e o Oriente.1

O Brasil Colônia passou por esse processo de transculturação de que fala Raquel,

no tocante à língua, aos costumes, ao modo de escrever etc. O mesmo aconteceu com a

cidade do Natal, que durante a Segunda Guerra Mundial, foi palco da presença e atuação

do povo norte-americano, absorvendo assim muitos elementos daquela cultura. Por isso,

tão importante é estudarmos a literatura do período colonial, para entendermos como se

deu esse processo, como a literatura enquanto arte marcou a sociedade colonial brasileira.

A poesia dessa época foi um veículo culto de expressão; foi a forma como o homem

conseguiu expressar a realidade, já que a literatura – no dizer de muitos – é a expressão da

realidade. Talvez não uma realidade do dia-a-dia, do cotidiano, de fatos ou cenas

corriqueiras, mas uma realidade que ultrapasse o plano do real e nos insira no vácuo dos

contrastes, que nos absorva para dentro de nós mesmos, como a imagem alegórica

valeryriana da serpente que morde a própria cauda, o conhecimento circundante sobre o

espírito literário, bem apresentada na frase eu mordo o que posso (CAMPOS, [199-?], p. 59).

Isto é Literatura: é encontrar a ordem na desordem, é saber que o caos é harmônico.

Sobre a poesia do período colonial e o que ela significou para a época, Chang-

Rodríguez (op cit, p. 305) declara:

Como consecuencia de este interés en la literatura propiciado por el

ocio de las clases altas – debido en parte a la abundancia de mano de

obra barata – y por el prestigio de la poesía como vehículo culto de

expresión, el menos sujeto a revisiones oficiales o inquisitoriales, el

género tuvo gran auge em Hispanoamérica, especialmente en los dos

primeros siglos coloniales e así lo muestran los frecuentes certámenes

poéticos.

Tudo isso nos confirma que a poesia do período colonial e, em conseqüência, a de

Gregório é primordial para a estruturação de uma literatura no Brasil e fica evidente que

sua formação depende também do poeta baiano.

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III

Haroldo de Campos entra em conflito com as afirmações de Antonio Candido e

redige um texto sob o título O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso

Gregório de Matos (1989). Nesse texto, Haroldo integra o poeta seiscentista dentro da

Literatura Brasileira como fator determinante de sua formação e contra-argumenta com o

discurso de Candido. Para tanto, fala:

Ainda que Gregório de Matos tenha ficado provisoriamente confinado

na memória local e na ―tradução manuscrita‖ (que, todavia, teve forças

para prolongar-se através dos séculos XVII e XVIII); ainda que só

tenha sido resgatado em letra impressa cerca de 150 anos depois de sua

morte; ainda que tenha pesado renitentemente sobre sua reputação a

―morte civil‖ da acusação de ―plágio‖, a ausência do poeta, num sentido

mais fundamental, foi meramente virtual ou larvada (mascarada).

Presente, como inscrição em linha d‘água, Gregório sempre esteve no

miolo do próprio código barroquista de que ele foi operador

excepcional entre nós (p. 67-68).

A fala de Haroldo conclama o que vimos discutindo aqui. Gregório é um expoente

da poesia brasileira, sobretudo, da Literatura enquanto ―sistema‖. Os argumentos de

Haroldo são pertinentes, pois atestam aquilo que outros críticos dizem do poeta. Por

exemplo, dentre os modernistas, Oswald de Andrade (apud HAROLDO, op cit, p.9) diz:

Gregório de Matos foi sem dúvida umas das maiores figuras de nossa

literatura. Técnica, riqueza verbal, imaginação e independência,

curiosidade e força em todos os gêneros, eis o que marca a sua obra e

indica desde então os rumos da literatura nacional.

É importante termos a voz de um modernista em defesa do poeta baiano, porque,

em vez de negar um autor do século XVII, uma literatura dita – por alguns – não-nacional,

Oswald enaltece a obra de GM e o marca como essencial para a literatura nacional. Isso

demonstra que o grau de conhecimento do modernista atingiu o ambiente idealizado por

Valéry: o espírito da literatura circundou seus pensamentos: E isso torna indescritível o espírito,

que é o lugar delas. As palavras perdem aí a sua virtude. Lá, elas se formam, jorram diante de seus olhos:

é ele (o espírito) que os descreve as palavras (1998, p. 23) (grifo nosso). Noutro momento, à pagina

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27, ele diz: com ele tem início a análise de todas as fases intelectuais, de tudo o que ele vai poder chamar

louco ídolo, descoberta. Isto que dizer que o artista para ser artista precisa ter a ―bênção‖ desse

espírito, o espírito da Literatura. Por isso, a idéia de constelação, cada poeta (artista) é

influenciado pelo espírito e consegue fazer realmente Arte. Tal espírito é universal, uma vez

que desde os clássicos vem ―iluminando‖ o intelecto dos artistas até hoje, saindo, talvez, de

Homero, passando por Góngora, Gregório, João Cabral, entre outros. Dito dessa forma, a

Literatura é muito mais que um quadro historicista de datas, autores e obras; é uma

complexa teia de intelectuais, de ―cientistas‖, imersos no universo do conhecimento,

amparados pelo espírito da Literatura. Pode parecer caótico, mas é harmônico. Tudo se

combina, o contraste se organiza de forma perfeita, os cacos se juntam formando um todo,

único e universal. Assim:

A nuvem de combinações, de contrastes, de percepções que se agrupa

em torno de uma pesquisa ou que se esgueira indeterminada, conforme

o prazer, desenvolve-se com uma regularidade perceptível, uma

continuidade evidente de máquina (VALÉRY, 1998, p. 29).

Quando Antonio Candido fala em literatura como ―expressão da realidade local‖,

esquece que a poesia de Gregório se enquadra nessa categoria, pois reflete perfeitamente a

sociedade baiana da época. Sua poesia é também uma espécie de desmascaramento de uma

Bahia mal administrada, de um poder público hipócrita, entre outras coisas. Dizer que sua

poesia não mexeu com a população colonial é falso, é insustentável porque, como se sabe

através de suas biografias, GM foi deportado para Angola justamente pelo fato de que suas

poesias estavam ferindo a imagem do poder político baiano. Manuel Rabelo, biógrafo, nos

diz o seguinte a esse respeito: mas dom João o desenganou, intimidando-lhe que por sua conhecida

culpa, e necessário remédio, havia de embarcar-se para Angola em uma nau, que prontamente carregava a

tropa de cavalo d’el-rei para Benguela (1992, p. 1263). Sabe-se também que Gregório recitava

seus textos em praça pública, aos pobres. Não eram só os ricos que tomavam

conhecimento da sátira gregoriana, mas toda a população colonial. De alguma forma sua

poesia mexeu com a sociedade, seja para aguçar o senso crítico dos marginalizados, seja

para incitar a ira dos poderosos. Com este negócio, pois, e com valentia, se fez Gregório de Matos

aborrecido de uns, e temido de outros (RABELO, op cit, p. 1251). Tanto mexeu que os ouvintes

das poesias gregorianas as reproduziram mais tarde. Dessa forma, não se perdeu. Ficou na

memória deles; foi marcante. Se não tivesse tido importância, esses textos teriam

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desaparecido. Num processo natural, sua poesia atingiu a nós, atingiu e mexeu com a

modernidade.

Com isso, Gregório promoveu mudanças na vida social baiana: todos tiveram que

tomar cuidado com o que faziam. A vida do poeta também sofreu mudanças. Desde que

empreendeu seus textos nas ruas da Bahia, sua figura se tornou ainda mais conhecida.

Mudou ainda mais com seu exílio na África, e mesmo de volta ao Brasil, não pôde ficar na

terra amada, terminando seus dias em Pernambuco. Mas mesmo lá, o poeta não renega sua

capacidade de apontar os problemas de uma sociedade; seus poemas continuaram

maculando o poderio administrativo colonial, pois percebeu que em qualquer lugar, Bahia

ou Pernambuco, havia imprudência na política, na igreja, no povo.

IV

Um outro ponto em que a poesia gregoriana é atingida pela crítica diz respeito a

plágio. Afirma-se que GM nada tem de original, mas é na verdade, um imitador da poesia

de Góngora e Quevedo – poetas barrocos espanhóis. Esse é um dos pontos principais de

que se utiliza a crítica para duvidar da autenticidade das poesias de GM. Porém, se houve

imitação, isso não é motivo para não ser um grande poeta, pois a imitação faz parte da

produção de qualquer tipo de arte. É preciso conhecer para fazer diferente. E quando se

conhece, é inevitável a influência. Assim fizeram os modernistas: estudaram o passado para

trabalhar o futuro.

Há críticos, como Flávio Kothe (1997), que por perceberem essa imitação em GM,

afirmam que ele não pode ser considerado um poeta brasileiro, popular, já que estaria ainda

dentro de uma perspectiva portuguesa. Isso é óbvio, porque mesmo não tendo se

preocupado em fazer literatura, nem muito menos portuguesa, o poeta foi influenciado por

esta. Assim declara Kothe:

Ele não pode ser considerado um revolucionário, populista, antilusitano,

anticolonial. [...] Fazer dele um protótipo de brasilianidade antilusitana é

um engano e um engodo (p. 343).

É descabido ver nele a conjunção de brasilidade com qualidade artística,

o início da literatura brasileira. Se for um início, então é o início de uma

literatura que não vai além do país e que, portanto, nem para o Brasil

serve propriamente (p. 344).

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Por outro lado, dizer que foram os românticos ou a partir deles que se fez uma

literatura verdadeiramente brasileira, sem influência do europeu, é perigoso, pois eles

beberam das fontes portuguesas. Ora, o Brasil do século XIX vivia um momento de

ascensão econômica e muitas famílias puderam enviar seus filhos à Europa para estudar,

dentre eles, Gonçalves de Magalhães, precursor do Romantismo no Brasil. Sendo assim, o

Romantismo Brasileiro foi influenciado pelos ideais do Português, tanto é que a criação de

um herói nacional não foi idéia genuinamente brasileira. Na Europa se pensou em criar um

herói à imagem do cavaleiro medieval. No Brasil, o cavaleiro foi substituído pelo índio. Ou

seja, foi uma imitação da ideologia portuguesa.

Em Portugal os escritores românticos procuravam retomar o passado

histórico medieval. Já os autores brasileiros retomaram a época colonial

realizando a idealização do índio, que passou a ser o nosso herói.

Entretanto, o índio brasileiro possuía a mesma perfeição física e moral

do cavaleiro medieval europeu. [...] O Brasil dirige seu olhar à Europa e

ao Ocidente (MARTINS, 2001, p. 194).

Houve apenas a substituição do elemento a ser cultuado, mas as idéias eram as

mesmas. Nesse sentido, não foi autêntico, não foi original, portanto, mesclado com a

ideologia portuguesa. A única diferença entre GM e os românticos é que estes se

preocuparam em fazer uma literatura brasileira, enquanto o outro fez literatura sem essa

preocupação. Sua poesia estava acima disso, mas ao mesmo tempo ligada aos ideais do

Barroco, através do espírito da literatura.

Nessa perspectiva, o crítico Massaud Moisés defende o poeta, colocando-o par a

par com clássicos da literatura universal. Ele diz: Assim procedeu Camões com referência a Petrarca

e Virgílio, apenas para lembrar dois de seus mestres, e ninguém cuidará de tachá-lo de poeta menor, ou de

que a apropriação lhe empana a grandeza (1983, p. 95). Massaud Moisés põe em pé de igualdade

Gregório e Camões, afirmando que o poeta português também fez imitações dos seus

mestres e nem por isso, é tachado de ―poeta menor‖. Por que, então, Gregório o seria?

Será que seria o fato de ele ser brasileiro, fruto da colônia, sem sangue europeu? A

comparação elaborada pelo crítico aponta para algo de que já falamos: há uma constelação

de poetas que são agraciados pelo espírito da literatura, fazendo com que eles trabalhem a

arte (poesia), mesmo que em épocas distintas, em conexão uns com os outros. Ou seja, a

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qualidade da produção artística é igual. Por isso, Moisés (op cit, p. 109) afirma: Contraditório?

Paradoxal? Tão-somente barroco, e uma singular organização lírica, análoga à de poetas como François

Villon, Baudelaire, Camões.

Sigismundo Spina (apud GOMES, 1985, p. 88) também confirma que a apropriação

do original e do precioso alheios não constitui desmerecimento de quem o faz, antes virtude e conformidade

com os cânones que regem a verdadeira formação de estilo. Citações como essas nos mostram que

Gregório de Matos não foi um plagiador, mas ele apenas fez algo comum na literatura; fez

comunicação entre obras, entre estilos. Paul Valéry (1998, p. 15), trabalhando o conceito de

método nos estudos artísticos, declara imitará para tocá-la, e acabará tendo dificuldades de conceber

um objeto que ela não contenha.

Silviano Santiago no livro Uma literatura nos trópicos (1978) faz uma citação que

pode ajudar na defesa de Gregório em relação ao plágio, mesmo que não a dirija

especificamente ao poeta nem a seu tempo:

Tanto em Portugal, quanto no Brasil, no século XIX, a riqueza e o

interesse da literatura não vem tanto de uma originalidade do modelo, do

arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do poema, mas da

transgressão que se cria a partir de um novo uso do modelo pedido de

empréstimo à cultura dominante. Assim, a obra de arte se organiza a

partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira por parte do artista que

surpreende o original nas suas limitações, desarticula-o e rearticula-o

consoante a sua visão segunda e meditada da temática apresentada em

primeira mão da metrópole (p. 58).

Para Santiago, a obra de arte, quer seja o romance ou o poema, quebra com a idéia

de originalidade (no sentido de único) e promove uma reorganização dos ideais do velho e

do novo; é isso, portanto, o que fez Gregório e outros artistas. Para Poe (1981, p. 917)

durante séculos, nenhum homem, em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer uma coisa

original.

Há aqueles que tentam de todas as formas atrair o poeta seiscentista ao lugar do

mentiroso, do falsário, do ladrão, mas por outro lado, há os que o defendem de tais

acusações – parece que estes são em maior número – e dão, para isso, um compêndio de

argumentos que elevam ainda mais o ―poder‖ do poeta.

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V

A obra de arte permite que o artista transcorra por lugares sempre ou nunca

habitados; faz com que o outro, a quem essa obra chegue, perceba as conexões do

Universo em constante equilíbrio, mesmo que parta dos estilhaços de um cristal quebrado;

envolve as suas duas forças criadoras, o ontem e o hoje, criando um ambiente de

eternidade, onde nada pode ser destruído.

A poesia reúne os cacos do lixo cultural desde o Princípio e transforma-os em um

todo organizado e perfeito, sem nuances; a poesia é a nascente do rio caudaloso que nos

leva ao outro lado, aquele de onde partimos e para onde não queremos ir. Se queremos, é

devido ao espírito que encanta e desencanta, amarga e adocica, machuca e alivia, mata e

ressuscita. É preciso nos desvencilharmos dos rótulos e nos envolvermos com a Arte, pois

é ela que interessa, é ela que constrói o que foi destruído. Poe (op cit, p. 911) diz só tendo o

epílogo constantemente em vista poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou

causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento

de sua intenção. Para ele, o fim é o começo. Só existe fim se houver o começo e vice-versa.

Assim diz Gregório:

O todo sem a parte não é todo,

A parte sem o todo não é parte,

Mas se a parte o faz todo, sendo parte,

Não se diga, que é parte, sendo todo.

As considerações que aqui foram feitas dão uma idéia sobre a importância da obra

gregoriana para a Literatura Brasileira e Universal, bem como mostram o rebuliço que o

poeta Gregório de Matos vem causando desde o século XVII. Sabemos que muito pode ser

discutido a esse respeito e que esse texto deu sua contribuição para toda essa discussão.

Para finalizar nosso discurso, damos a voz a um estudioso de GM, citado

anteriormente, que na sua fala confirma o objetivo do nosso texto, que propôs mostrar a

mudança que o poeta causou e causa à Literatura, à Sociedade, à Crítica, entre outras

instâncias. Antônio Dimas (1993, p. 356) considera:

Como homem de seu tempo, Gregório de Matos não podia ser

indiferente à noção de mutabilidade, elemento tão do agrado da estética

barroca e fartamente encontrável numa sociedade que mal se punha em

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pé. Surpreendê-la nas mais diversas modalidades foi-lhe tarefa

obstinada. Portanto, nada mais coerente do que recorrer a um só objeto,

como a Igreja, por exemplo, e rodeá-lo ressabiado, ora sisudo, ora

trêfego, ora devastador. À multiplicidade incômoda das variantes de

seus versos, junte-se, então, a das perspectivas. Com ambas compõe-se

uma polivalência longe de se esgotar.

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5. NOS FIOS DO TEMPO: REFLEXÕES ACERCA DA NOÇÃO DE

“SISTEMA LITERÁRIO” DE ANTONIO CANDIDO NA FORMAÇÃO DA

LITERATURA BRASILEIRA

Moisés Ferreira do Nascimento - UFES

Para Marcos A. Ramos

―Há literaturas de que um homem não precisa sair para receber cultura e

enriquecer a sensibilidade; outras, que só podem ocupar uma parte da sua vida de

leitor, sob pena de lhe restringirem irremediavelmente o horizonte. Assim,

podemos imaginar um francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um

russo e um espanhol, que só conheçam os autores da sua terra e, não obstante,

encontrem neles o suficiente para elaborar a visão das coisas, experimentando as

mais altas emoções literárias.

―A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de

segunda ordem no jardim das Musas...‖

O trecho acima faz parte do prefácio do livro Formação da literatura brasileira –

momentos decisivos, de Antonio Candido116 e servirá de base para o desenvolvimento do nosso

trabalho. O autor levanta alguns questionamentos no mínimo intrigantes ao afirmar que a

literatura feita no Brasil, de um modo geral, é ―galho secundário da portuguesa‖. Para além

da polêmica que esta proposição articula (e que logo mais a frente será discutida aqui),

chamamos atenção para um dado interessante: Candido realiza, a observar o recorte acima,

não só o que os estudos literários chamam de ―literatura comparada‖117, mas, sobretudo,

um estudo cultural. Ao pensar daquela forma, o autor estabelece uma comparação entre a

produção literária brasileira e as produções literárias européias; consequentemente, há a

comparação da cultura brasileira com a cultura européia.

Se lá no século XIX, quando surgiu enquanto estudo e disciplina acadêmica, a

literatura comparada era compreendida apenas como ―o estudo comparativo de duas ou

116 Candido, Antonio. ―Prefácio da 1ª edição‖. In: Formação da literatura brasileira: momentos

decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2009. As demais citações da obra se darão pela sigla FDB

seguida do número da página no corpo do texto. 117 Em artigo posterior, Candido vai afirmar que ―estudar literatura brasileira é fazer literatura comparada

(Candido, 1993, p.211)

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mais obras literárias‖; no século XX, principalmente com o pensamento pós-estruturalista,

ela passou a caracterizar-se como um ―movimento para fora dos estreitos limites

disciplinares, em vista da ampliação de seu campo de estudo‖, expandindo-se também para

―a comparação entre obras literárias e obras pertencentes a outras linguagens artísticas‖. 118

Essa ponte com as demais ―linguagens artísticas‖ é que vai desembocar, na

atualidade, nos estudos comparativos que se estabelecem entra a literatura e outras áreas do

conhecimento (antropologia, história, sociologia, semiótica, psicanálise, por exemplo),

inclusive com os ―estudos culturais‖. Portanto, se o leque se estendeu de forma bastante

significativa, propiciando estudos diversos a partir do texto literário, deve-se isso aos

primeiros estudos comparatistas que compreenderam a literatura como autônoma, mas,

sobretudo, livre para se valer das demais áreas do conhecimento.

E Antonio Candido foi um desses primeiros estudiosos a sugerir essas

comparações: ―uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,

psicológica ou lingüística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a

uma interpretação coerente‖.119 Ao afirmar a liberdade da crítica pela coerência, Candido

não só expande o conceito de análise literária, na sua época muito voltado para a estilística,

como também abre portas para as demais áreas do conhecimento, desde que a crítica não

seja ―unilateral‖.

Embora não possamos afirmar que Antonio Candido participe da corrente

denominada ―estudos culturais‖, não há dúvida de que a sua obra tenha aberto caminhos

para que no Brasil, no que tange a literatura, esses estudos fossem feitos. Uma prova disso

é o método sociológico que o autor emprega na sua Formação. Nesta, no capítulo ―literatura

como sistema‖ da introdução, o autor faz uma distinção entre ―manifestações literárias‖ e

―literatura propriamente dita‖, articulada por ele como um conjunto de ―denominadores

comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase‖.

Estes denominadores são, além das características internas (línguas, temas,

imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente

organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto

orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de

118 Marques, Reinaldo. ―Literatura comparada e estudos culturais: diálogos interdisciplinares. In:

Culturas, Contextos e Discursos: Limiares Críticos no Comparatismo. Porto Alegre: Editora da

Universidade, 1999. p.60 119 Candido, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1965. p.7

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produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de

receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive;

um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos),

que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de

comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema

simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se

transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das

diferentes esferas da realidade. 120

―A formação da continuidade literária‖, conforme as palavras de Candido, só se

torna possível a partir do momento em que autor e obra estiverem integrados neste

―sistema literário‖, isto é, somente com a tríade básica (produtores literários – leitores –

linguagem) que se tem a ―tradição‖. E para o autor, tal sistema inicia-se na segunda metade

do século XVIII, no Arcadismo mineiro, e se estende até o Romantismo da primeira

metade do século XIX.

Para que não se tenha dúvida: toda a literatura produzida no Brasil do século XVI a

primeira metade do século XVIII é denominada por Candido de ―manifestações literárias‖.

As demais produções, a partir de 1750, são consideradas partes integrantes da ―literatura

propriamente dita‖, organizadas dentro de um ―sistema literário‖.

Esta noção, totalmente estrutural, foi elaborada pelo autor com base na sociologia.

Em entrevista à Heloísa Pontes, Candido afirma que na época do seu doutorado estudou

os autores Redfield, Melville Herskovits, Irving Hallowell, Raymond Firth, Malinowski,

Evans Pritchard, Radcliffe-Brown, e que essas leituras (principalmente dos dois últimos

autores) foram fundamentais para o seu pensamento nos estudos literários: ―fiquei marcado

pelo funcionalismo, me apeguei ao conceito de estrutura, que depois transpus da

antropologia para a crítica literária‖.121

Portanto, é na Antropologia social inglesa, principalmente nas leituras de Evans

Pritchard e Radcliffe-Brown, que Candido retira os elementos necessários para a noção de

―sistema‖. Essa transposição do método antropológico para os estudos literários já marca

no autor a transdisciplinaridade, a comparação do texto literário com outros campos do

120 Candido, Antonio. op. cit. p. 25 121 Pontes, Heloísa. Entrevista com Antonio Candido. RBCS. v.16 nº 47. Outubro/2001

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saber e, por que não dizer, com a ―virada culturalista‖, 122que marca a primeira metade do

século XX. Antonio Candido, ainda que não se possa chamá-lo de multiculturalista, realiza

estudos multiculturais, se levarmos em conta as afirmações acima.

No entanto, algumas perguntas necessitam ser feitas. O que Candido aufere da

Antropologia inglesa que de fato avaliza suas inferências sobre a literatura brasileira? Quais

são as bases dessas afirmações? Pode-se pensar a literatura brasileira a partir dessas bases?

O autor não deixa claro no livro o lugar onde fundamenta o seu ―sistema‖. No

entanto, de forma minuciosa, assinala às fontes que direcionam seu pensamento:

(...) Os escritores brasileiros que, em Portugal ou aqui, escrevem entre, digamos

1750 (início da atividade literária de Cláudio) e 1836 (iniciativa consciente de

modificação literária, com a Niterói), tais escritores lançaram as bases de uma

literatura orgânica, como sistema coerente e não manifestações isoladas.123

O uso das palavras ―orgânicas‖ e ―coerente‖, embora possam passar ilesas numa

leitura desatenta, não esclarece a ―armadura teórica‖ de Candido. É no livro Literatura e

Sociedade, publicado um pouco depois da Formação, que o autor traz alguns poucos

esclarecimentos para os seus apontamentos:

A acepção aqui utilizada foi desenvolvida com certa influência da Antropologia

Social Inglesa (tão atacada neste aspecto por Lévi-Strauss) e se aproximaria antes da

noção de ―forma orgânica‖, relativa a cada obra e constituída pela inter-relação

dinâmica dos seus elementos, exprimindo-se pela ―coerência‖.124

Quem chama a atenção para este dado é o escritor Luiz Costa Lima, no texto

―Concepção de História Literária na Formação‖. Com um olhar bastante atento, o escritor

direciona o olhar para a palavra ―coerência‖: ―o privilégio pois do conceito de coerência

também se prende à influência do funcionalismo antropológico inglês‖. 125 Indo à fonte,

Costa Lima cita um trecho do ensaio Estrutura e função na sociedade primitiva, de Radcliffe-

Brown:

122 Seligmann-Silva, Márcio. ―Teoria literária? Esqueça!‖. In: a crítica literária: percursos, métodos,

exercícios. Vitória: Edufes, 2009. p. 87 123 Candido, Antonio. op. cit. p. 71 124 Candido, Antonio. Literatura e Sociedade. 125 Lima, Luiz Costa. Concepção de História Literária na Formação. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 160

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―Função‖ é a contribuição que determinada atividade proporciona à atividade total

da qual é parte. A função de determinado costume social é a contribuição que este

oferece à vida social total como o funcionamento do sistema social total. Tal modo

de ver implica que certo sistema social (...) tem certo tipo de unidade a que

podemos chamar de unidade funcional. Podemos defini-lo como condição pela

qual todas as partes do sistema social atuam juntas com suficiente grau de harmonia

ou consistência interna, isto é, sem ocasionar conflitos persistentes que nem podem

ser solucionados nem controlados.126

O que Costa Lima nos mostra, e sem dúvida é um mérito do seu trabalho, são as

raízes do pensamento de Candido. Conforme já assinalado, o Funcionalismo teve um

―impacto‖ significativo sobre o pensamento do crítico, e quando ele fala de ―bases

orgânicas‖, de ―sistema coerente‖, não faz mais do que justificar sua vinculação à

Antropologia inglesa. Uma forma de esclarecermos isso é nos atentarmos para a primeira

frase da citação acima. Radcliffe-Brown afirma ser a ―função‖ um aporte para a ―atividade

total da qual é parte‖; ou seja, uma perfeita relação de contribuição para o todo, para a

―coerência‖ e organicidade do sistema social. O pensamento funcionalista, portanto,

articula-se em torno de uma homogeneidade, fruto sem dúvida de uma analogia com a

Biologia, privilegiando a ―‘harmonia ou consistência‘ do sistema‖.127

A comparação com a Biologia poderá esclarecer um pouco mais o pensamento de

Candido. Qualquer pessoa, no mais absoluto senso comum, sabe que todas as partes do

corpo humano confluem para um funcionamento coerente e perfeito. Se uma das partes

está fora do ―sistema‖, com certeza todo o corpo padecerá. Portanto, o corpo humano –

sendo aqui compreendido como um conjunto de funções que se organizam

sistematicamente – necessita que as ligações entre seus membros sejam restritas,

interdependentes, coerentes, e que suas tarefas sejam desempenhadas em conjunto; dessa

forma, temos um ―corpo‖ perfeito. É dessa forma que o Funcionalismo inglês pensava o

―sistema social‖. Segundo Costa Lima, ―às relações sociais então se conectam sua

concepção de tempo, seus sistemas políticos e de linhagem‖.128

126 Radcliffe Brown, A. R. Apud: Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161 127 Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161 128 Idem. Ibidem.

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É pelas concepções de tempo, política, história e de linhagem, que Antonio

Candido faz o seu recorte a partir do Arcadismo. O autor está em busca de uma

―coerência‖ e ―coesão‖ histórica, homogênea, conforme já dito acima.

No entanto, se podemos concordar com Costa Lima na afirmação de que ―o

sistema é da mais absoluta coerência e a coesão não pouco invejável‖, queremos ir um

pouco além e observar a sistematização de Candido através de outros olhares.

Colocar o Arcadismo como pedra fundamental da nossa formação literária custou

caro para o autor, tanto para os que consideram literatura brasileira toda a produção

literária desde o período quinhentista, quanto os que não concordaram com a exclusão do

Barroco. Duas obras são fundamentais nestes aspectos: Conceito de literatura brasileira, de

Afrânio Coutinho, e O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso gregório de

matos, de Haroldo de Campos.

O livro de Afrânio Coutinho foi escrito em 1960, um ano após a publicação da

Formação. Numa clara demonstração de resposta a obra de Candido, Coutinho busca

desconstruir o pensamento crítico que estabelece uma distinção entre literatura colonial e

literatura nacional. Para ele, tal distinção favorece a historiografia portuguesa, que costuma

colocar toda a produção literária brasileira do período colonial como que pertencente a

literatura daquele país: ―tal perspectiva acostumou uns e outros a encarar o passado literário

português como comum a Brasil e Portugal. Eram os chamados ‗clássicos‘ luso-brasileiros,

patrimônio de uma cultura comum, vazada numa mesma língua‖.129

Afrânio Coutinho afirma que ―escapou‖ à visão do português o processo de

―revolução‖ que se estabeleceu na colônia desde o momento que os primeiros homens que

para aqui se transferiram ou nasceram:

Revolução tão importante que, desde o primeiro momento havia transformado a

mentalidade dos habitantes, através de mudança da sensibilidade, das motivações,

interesses, reações, maneiras de ser e agir novas, tudo provocado pela nova situação

histórica e geográfica. (...) Os colonos à medida que se afastavam da costa e

pequenos povoados, regrediam à condição primitiva, esquecendo o estado de

civilizados, a fim de adaptar-se ao meio e de habilitar-se à luta com os silvícolas. (...)

129129 Coutinho, Afrânio. Conceito de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1960. p.

10

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Um homem novo criou-se desde o primeiro instante em que pôs o pé no novo

mundo.130

Coutinho chama atenção para o caráter político da palavra ―colonial‖. Para o autor,

o emprego de tal termo nos estudos literários apresenta uma visão da literatura como

―epifenômeno da vida política e social‖, relacionada ao fato político do Brasil, no período

denominado ―literatura colonial‖, ser uma colônia de Portugal. Daí que só se tem

autonomia literária a partir da independência política (consequentemente, depois de 1822).

Neste aspecto, a palavra ―colonial‖ soa inadequado por pressupor que a produção literária

passasse pelo mesmo ―processo pelo qual o povo colonizador exerce a colonização do

povo colonizado‖.131 E a observar a crítica literária, seus pressupostos e características, não

há outro critério para a inclusão do termo senão pelos vezos sócio-político e econômicos

do Brasil daquele tempo.

O leitor que conhece o texto da Formação perceberá que Afrânio Coutinho ataca

principalmente as proposições de Candido, em função de este ter sido um dos que se valem

do termo ―luso-brasileiro‖ (ou ―literatura comum‖) como forma de caracterizar não

somente algumas das ―manifestações literárias‖ brasileiras, mas também algumas produções

dos ―momentos decisivos‖ da formação literária a partir de 1750.

Para Coutinho, deslocar-se do local de origem para uma terra estrangeira, habitar

em outro território que não seja sua pátria, já pressupõe um novo homem que se instaura,

um grau zero da vida. Daí desconsiderar a ―noção de sistema literário‖ de Candido, por

acreditar que essa privilegia o conceito de literatura colonial, colocando as produções do

período colonial como aspecto da portuguesa.

Afrânio Coutinho afirma que Candido confunde ―autonomia‖ com ―formação‖.

Esta, para ele, começa desde as primeiras manifestações literárias do país, tendo Antonio

Viera e Gregório de Matos como seus principais nomes. Já a ―autonomia‖ literária começa

exatamente no espaço em que Candido enxerga o início da nossa ―formação‖: a partir de

1750, com as academias e os árcades mineiros.132

A obra de Coutinho e a de Haroldo de Campos possuem uma preocupação

comum: a não inclusão do barroco na ―formação‖ de Candido. Em O Sequestro do Barroco,

130 Idem. Ibidem. 131 Coutinho, Afrânio. op. cit. p. 17 132 Coutinho, Afrânio. op. cit. p. 62

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Campos chama a atenção para um problema que verifica na Formação, ancorando-se nas

―funções da linguagem‖ arquitetadas por Roman Jakobson:

O modelo semiológico, articulado por Antonio Candido para descrever a formação

da literatura brasileira, privilegia as funções EMOTIVA e REFERENCIAL,

acopladas na função COMUNICATIVO-EXPRESSIVA de exteriorização das

―veleidades mais profundas do indivíduo‖ e de ―interpretação das diferentes esferas

da realidade‖. 133

A ―literatura que privilegia a função EMOTIVA‖, segundo o autor, em

conformidade com a teoria de Jakobson, ―é a literatura romântica‖. Com base nisso, o

autor define o pensamento de Candido da seguinte maneira:

Quando ao privilégio dessa função EMOTIVA se alia uma vocação igualmente

enfática para a função REFERENCIAL (para a literatura da 3ª pessoa pronominal,

objetiva, descritiva, tal como caracterizada pela épica), é possível dizer que estamos

diante de um modelo literário do tipo romântico imbuído de aspirações

classicizantes (aspirações a converter-se, num momento de apogeu, em ―classicismo

nacional‖).134

Embora Haroldo de Campos valha-se do linguista russo para fazer sua definição,

bem claro já estava na Formação esta ligação com o pensamento romântico:

o leitor perceberá que me coloquei deliberadamente no ângulo dos nossos

primeiros românticos e dos críticos estrangeiros que, antes deles, localizaram na

fase arcádica o início da nossa verdadeira literatura, graças à manifestação de temas,

notadamente o Indianismo, que dominarão a produção oitocentista.135

A crítica de Campos, portanto, gira em torno da recuperação do cânone do século

XVII – Gregório de Matos – por entender que não é clara a sentença de Candido que

afirma que Gregório não existiu numa ―perspectiva histórica‖, que não contribuiu para o

133 Campos, Haroldo. O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso gregório de

matos. 2ª Ed. Salvador: FOJA, 1989. p. 27 134 Idem. p. 28 135 Candido, Antonio. op. cit. p. 27

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―sistema literário‖,136 já que ele é ―a fonte dessa mesma história‖.137 Para Campos, não tem

outra explicação para a ―exclusão‖ senão pelo vezo da valoração, do olhar crítico de

Candido que sempre tende para a ―relutância, as hesitações judicativas, na abordagem do

Barroco brasileiro‖. A própria noção de público leitor que Candido emprega não visualiza

de fato suas proposições, já que não se tem a dimensão desse volume de leitores das

produções neoclássicas. E se o autor leva em conta a realidade regional, o público baiano e

pernambucano do século XVII, que conheceu e divulgou a poesia de Gregório, garantiriam

o lugar do poeta no ―sistema literário‖; somente através de uma visão linear e ―finalista da

história literária‖, na busca pelos ―momentos decisivos‖, que se consegue excluir as

produções do século XVI e XVII, segundo Campos.138

Tais palavras são atestadas por Costa Lima, quando afirma que a ―coesão‖ e a

―coerência‖ do sistema literário de Candido são articuladas na concatenação das relações

sociais com a sua ―concepção de tempo, seus sistemas político e de linhagem‖.139 E o que

Haroldo de Campos e, de certa forma, Afrânio Coutinho criticam é o fato do autor da

Formação pensar a literatura brasileira de forma ―orgânica‖, ―homogênea‖. Se para o

segundo, a literatura brasileira já estava formada, ainda que sem as bases orgânicas,

inclusive sugerindo Autonomia da literatura brasileira como o nome correto para o livro de

Candido; o primeiro afirma que nossa literatura não teve infância, não teve um nascimento

―simples‖, mas ―já nasceu adulta‖, tendo uma origem de ―transformação‖, ―vertiginosa‖,

num diálogo claro com Walter Benjamin.140

No entanto, embora façam um trabalho digno de leitura e crítica da Formação,

ambos os escritores – Afrânio e Haroldo – partem de visões com as quais não

concordamos. Afrânio Coutinho, embora faça uma crítica no mínimo interessante à tese de

Antonio Candido, enfatiza a ideia de formação literária quando coloca o Barroco como o

início desta, discordando do Arcadismo pensado por Candido, colocando inclusive as

figuras de Antonio Vieira e Gregório de Matos como os principais fundadores; Além disso,

constrói seu pensamento por um vezo nacionalista, que por vezes cai num discurso

―localista‖. Com relação a Haroldo de Campos, acreditamos ser um anacronismo atribuir a

136 Candido, Antonio. op. cit. p. 26 137 Campos, Haroldo. op. cit. p. 43 138 Idem. p. 51-52 139 Lima, Luiz Costa. op. cit. p. 161 140 Campos, Haroldo. op. cit. p. 64

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Gregório de Matos a verdadeira autoria dos poemas que contêm seu nome, principalmente

depois da obra A Sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen, que afirma:

―Gregório de Matos‖ é uma etiqueta, unidade imaginária e cambiante nos discursos

que o compõem contraditoriamente numa hierarquia estética, determinada pela

―cadeia de recepções‖, na expressão de Jauss. Não-substancial, é efeito da leitura dos

poemas atribuídos, não sua causa.141

Além disso, não acreditamos que tenha ocorrido de fato um ―seqüestro‖, já que

Candido sequer leva em conta os períodos anteriores a 1750. No entanto, concordamos

com Campos quando pensa a literatura como ―trans-formação‖, isto é, não homogêneo,

não-linear.

Um olhar atual à historiografia literária não nos permite pensar uma literatura

nacional a partir de nenhuma dos pontos de vista elucidados acima (no caso, Antonio

Candido, Afrânio Coutinho e Haroldo de Campos). Se perguntássemos ao escritor Jacint

Verdaguer, ou até mesmo ao contemporâneo Jaume Cabré, qual a sua nacionalidade, não

só diriam ―catalão‖, como também chamariam de ―catalã‖ as suas literaturas. E se sabemos

que a Catalunha não constitui um estado-nação de acordo com a tradição advinda do

século XIX, pois politicamente faz parte do território espanhol, temos aqui um bom

exemplo da fragilidade que se instala quando pensamos o sistema literário de acordo com

Candido.

Se levarmos em conta as noções de língua, povo e nação, de acordo com o

pensamento contemporâneo, veremos que as proposições lançadas na Formação se tornam

complexas se ainda forem aplicadas à literatura brasileira, haja vista a fluidez que tais

conceitos possuem na pós-modernidade. Peguemos a noção de língua, por exemplo: se nos

séculos XIX e XX ela era imprescindível para se caracterizar uma literatura nacional, na

atualidade tal conceito se perde a partir do momento que surgem escritores como a turca

Elif Shafak, que escreve suas obras tanto em turco quanto em inglês.

Voltemos agora ao início do nosso texto, no ponto em que propomos discutir a

afirmação de que a literatura brasileira é ―galho secundário da portuguesa, por sua vez

arbusto de segunda ordem no jardim das Musas...‖. Foi neste ponto que vimos Candido

fazer literatura comparada, já que compara a produção literária brasileira com as produções

141 Hansen, J.A. A Sátira e o engenho. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 14-15

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européias. Com o intuito de clarear a mente do leitor, tais palavras foram escritas no

primeiro prefácio à Formação, em 1959; portanto, o autor tinha visto passar diante dos

seus olhos toda a movimentação da literatura brasileira, desde a década de 30 à geração de

45. Uma pergunta se faz necessária: se galho é parte de um todo, o que de fato é a literatura

brasileira? Se a brasileira é o galho, onde se localiza a árvore?

Não há explicação para a afirmação de Candido senão pelo pressuposto de haver aí

a um juízo de valor, que se sustenta em face da ocultação no texto das bases que sustentam

tal definição. O que garante ao crítico que Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa,

é uma literatura menor que Crime e Castigo, de Dostoievsky?

Se a abordagem do autor faz referências às produções literárias dos séculos

anteriores (XVI, XVII, XVIII e XIX), de imediato temos a falha de informação no texto da

Formação, que não marca no tempo e no espaço a afirmação do autor. Todavia, se tais

palavras alfinetam as temáticas, a não pureza ideológica e o caráter híbrido de nossos

autores, chamamos atenção para o ensaio ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖, de

Silviano Santiago, que afirma que ―a maior contribuição da América Latina para a cultura

ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza‖. Para este, a

América Latina se posiciona no ocidente exatamente no ―movimento de desvio da norma,

ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus

exportavam para o Novo Mundo‖.142

O discurso de Candido serve a uma época que para a América Latina não existe.

Não somos intelectualmente do tempo de Quixote, não nascemos no mesmo continente

que Homero, Horácio. Palavras como essa, segundo Santiago, ―reduz a criação dos artistas

latino-americanos à condição de obra parasita, uma obra que se nutre de uma outra sem

nunca a lhe acrescentar algo de próprio; uma obra cuja vida é limitada e precária,

aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte, do chefe-de-escola‖.143

A literatura brasileira, assim como a latino-americana, nasce exatamente como

segunda. E nisso consiste o seu sabor. Na assimilação de que somos um povo colonizado,

que recebemos uma cultura imposta, arbitrária e reacionária, mas que, a partir disso,

construímos nossa trapaça no poder, citando Roland Barthes, nossa literatura parte como

um segundo texto, mas totalmente desviado do discurso dominante.

142 Santiago, Silviano. ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖. In: Uma literatura nos trópicos. São

Paulo: Perspectiva, 1978. p. 18 143 Idem.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Campos, Haroldo de. O Sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de

Matos. 2ª Ed. Salvador: FOJA, 1989.

Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 12ª Ed. Rio de Janeiro:

Ouro sobre Azul, 2009.

______________. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1965.

Carvalhal, Tania Franco. Culturas, Contextos e Discursos: Limiares Críticos no Comparatismo.

Porto Alegre: Editora da Universidade, 1999.

Lima, Luiz Costa. Pensando nos trópicos: dispersa demanda II. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

Pontes, Heloísa. Entrevista com Antonio Candido. RBCS. V. 16. Nº 47. Outubro/2001

Santiago. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.

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6. BÍBLIA E A LITERATURA BRASILEIRA: PRESENÇA DO DIABO NA

POESIA DE GREGÓRIO DE MATOS

Ciro Soares dos Santos (UFRN)

Apresentação do problema: uma busca de paz intelectual

Alguém pode considerar como verossímil uma alegação de o poema lido a

seguir não ser da autoria de Gregório de Matos e Guerra (1636-1695?). Ocorre de alguém

considerar acertada a hipótese de o poeta não haver existido de fato como pessoa, assim

como acontece de alguém negar a relevância literária do legado elaborado pelo bacharel

literato para as letras brasileiras. Essas teses podem ser úteis para relativizar ou refutar no

todo ou em parte a leitura tecida nas próximas páginas para uma pequena mostra da obra

do poeta baiano. Discussões centradas em polêmicas relativas à referência autoral, à

existência biográfica e à importância literária de Gregório de Matos (GM) serão

consideradas exploradas o suficiente para se poder construir uma reflexão sobre a obra

desse homem de Estado poeta-tradutor-recriador com paz intelectual minimamente

suficiente, propiciada pelas considerações consolidadas pelo debate acadêmico em torno do

maior dentre os primeiros dos poetas brasileiros, o fundador da literatura brasileira.

Haroldo de Campos valida a abordagem de João Carlos Teixeira Gomes (1985) quanto

a sua concepção de plágio-tradução-cópia como trabalhos criativos, entendimento capaz de

motivar a retirada do poeta do banco dos reus, e refuta a relativização da certeza da

existência humano-histórica da vida espantosa de o poeta Devorador, contada por

Pedro Calmon (1983) e por Fernando da Rocha Peres (2004), empreendida por João

Adolfo Hansen (2004), ao abordar a obra de Gregório de Matos e a Bahia do século

XVII. Defensor incansável de O boca de brasa, como prefere chamá-lo Gomes a, ―o

boca do inferno‖, Haroldo de Campos dedica-se a desconstruir a verdade historiográfica

construída com fundamento em convenções metodológicas de sistematização construídas

por Antônio Cândido (1981) responsáveis por levá-lo a cometer o seu sequestro do

barroco na formação da literatura brasileira (CAMPOS, 1988), tal como o lança no

banco dor reus o inquérito do seu ex-aluno poeta-tradutor paulista ao investigar o caso

Gregório de Matos. As breves considerações seguintes terão por livre de quaisquer

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cativeiros o estadista-poeta Gregório de Matos e Guerra como pressuposto à leitura do

poema seguinte, com a convicção de que os poemas copilados por James Amado

seguramente resultam do trabalho da figura humana do filho de portugueses nascido e

criado nas terras brasileiras, embora com idas e vindas para Portugal e para África. Assim,

os parágrafos seguintes se dedicarão a um poema em especial, não para investigação

histórico-autoral, como a empreendida por Maria Aparecida Ribeiro sobre a imagem de

Angola no espelho barroco projeção das canções de Exílio de Gregório de Matos,

como fez Maria Aparecida Ribeiro (2008) para um colóquio barroco, mas para

explorar-lhe um motivo literário da poesia de Gregório: a presença do diabo como

elemento-personagem literário tomado de empréstimo da tradição histórico-literária para

elaboração poética. As linhas seguintes passam de largo, o máximo possível, por polêmicas,

compondo um texto baseado em mapa de leitura construído sob as indicações de Haroldo

de Campos, sem marcas de angústia gerada por desejo de desviar-se para os descaminhos

das questões acima mencionadas.

O diabo como construção histórico-literária: a pena luciferina de Gregório de matos

O estudo da presença da Bíblia na poesia de Gregório de Matos (GM) tem sua

motivação fundada em mais do que mera identificação pessoal do estudante em relação ao

objeto estudado, fruída com a liberdade das relações de transferência-contratransferência

na recepção-leitura do texto poético e de projeções do estudante em relação ao seu objeto

de observação, embora uma investigação crítica da apropriação gregoriana da enciclopédia

de lugares, episódios e personagens bíblicos seja uma oportunidade para resignificar

histórias e doutrinas ouvidas e internalizadas desde sua tenra infância. A impossibilidade de

dar conta da amplidão de referências às escrituras operada pelo poeta exige o recorte para,

por escolha livre, a presença do diabo, do satanás, do demônio na poesia de GM: será a

personificação do mal construída pelo cristianismo o cerne da reflexão sobre a presença da

Bíblia na literatura brasileira por via da poesia de Gregório de Matos. Harold Bloom, Piter

Stanford e Haroldo de Campos serão autores chamados para socorro útil à difícil tarefa

de construir uma compreensão da personagem-personificação do mal consoante ela se

manifesta em sua aparição em um poema de Gregório sob o cotejamento com a sua

aparição nas escrituras bíblicas. Leituras de narrativas e discussões de exegese bíblicas

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empreendidas por leigos e por pastores, testemunhadas nos templos dos adventistas ao

longo de uma infância e a apresentação do barroco Gregório de Matos das aulas de

literatura brasileira elaboradas pelo Professor Francisco Ivan da Silva nas salas da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte são fatores motivadores à reflexão a seguir,

como o são a experiência de leitura literária de Harold Bloom, associada ao seu judaísmo

de família e ao seu gnosticismo de formação estética, baseado na sua leitura do mormismo

e do cristianismo, para construção de sua crítica literária à Bíblia, assim como o interesse de

Haroldo de Campos pela literatura bíblica, pelo barroco e por Gregório de Matos. Os

principais motores para a elaboração deste ensaio são seus objetivos acadêmicos abaixo

apresentados, além de idiossincrasias afetivas e gosto literário apresentadas acima.

Duas metas correlacionadas se apresentam frente ao caminho para a

composição deste ensaio-tentativa de registrar uma leitura pertinente para poema de

Gregório de Matos: divulgar a importância do poeta e difundir o tratamento crítico da

bíblia como literatura. Os dois objetivos se coadunam em uma fusão propiciada pelo

recorte temático e pelo corpus: desmistificar o diabo como personificação material do mal

ao tratá-lo como personagem literário historicamente forjado em multifaces. A negligência

da academia quanto ao legado bíblico, vivo na poesia brasileira, abandona os leitores

perdidos entre o preconceito desdenhoso e a leitura normativo-dogmática da composição

estético-literária fundamental de maior difusão do Ocidente. O estudo da biografia do

diabo como construção histórico-literária revela a pena de Gregório de matos como uma

luciferina ferramenta, mas não no sentido vulgar, no sentido depreciativo que importa aos

desmerecedores de seu trabalho.

Os poemas de Gregório de Matos reunidos no Códice organizado por de

James Amado apresentam mais de cem referências a lugares, episódios e personagens

bíblicos. Deus e o diabo são mencionados dezenas de ocorrências, às vezes no mesmo

texto, às vezes com papel idêntico entre textos diferentes, às vezes com papeis diferentes,

mas nunca como antagonistas similares aos da construção histórica empreendida pelo

cristianismo desde Paulo até os papas, desde a origem até os dias atuais (STANFORD,

2003). As páginas seguintes sobre especificamente o diabo na poesia de Gregório

possibilitam a divulgação ao público em geral de estudos capazes de retirar as nuvens

dogmáticas, normativas e catequéticas responsáveis por encobrir interesses escusos da

religião alcançados pela manipulação de uma personagem multifacetada, como

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demonstrado por Stanford (2003) ao construir uma biografia histórico-religiosa para o

diabo; figura tão importante quanto Deus, seja o Javé da Bíblia hebraica, seja o Deus Pai da

Bíblia cristã, para a cultura ocidental. A pena luciferina de Gregório de Matos fere a quem

atinge, mas não faz dele um ―boca do inferno‖, como o demonizou o poderio estatal-

religioso de sua época, única e simplesmente por ele não se fazer mudo ante os de seu

século, conforme conta Peres, Calmon . O poeta não poupava quem quer que fosse, como

o defende da acusação de somente versejar contra os mais vulneráveis da sociedade, como

o defende Atônio Loureiro de Souza (SOUZA,1959). A poesia de Gregório escapou às

amarras históricas da cena de sua época por não ser expressão panfletária de protesto em

tomada de partido contra ou a favor seja lá do que fosse. Embora o poeta não se fizesse

cego aos aspectos sociais configuradores de seu século, como o demonstra sua obra, a

atualidade e a permanência de seu trabalho devem-se não a esse aspecto, mas ao labor

artístico empregado para constituir uma elaboração estética capaz de inseri-lo no legado

literário universal. A apropriação do legado bíblico-literário é um aspecto da poética de

gregoriana comprobatório dessa inserção.

Se Gregório foi detentor de uma ―boca do inferno‖, foi somente numa

acepção bem diferente da construída pelo poder cristão hegemônico há séculos durante a

história do cristianismo católico (STANFORD, 2003), o qual lançou condenação contra

toda voz dissidente de seus ditames político-dogmáticos. Gregório de Matos foi o artífice

de uma pena luciferina, um boca do inferno, no sentido de ser um instrumento de Deus

capaz de e responsável por lançar contra quem merecera juízo capaz de atingir a terceira e

quarta geração dos abonáveis poderosos, alcançando até os dias de hoje: a punição da

ridicularização. Gregório gerou o saboroso riso paródico delineado diante das convenções

sociais, das imposições normativas, como um Lúcifer, um anjo de luz, um rebelde em

busca de mais saber e de mais poder para desvelar as trapaças dos homens.

Inescapavelmente, o legado literário reunido na Bíblia pela sua riqueza estética, por sua

vastidão de alcance ao público, por sua repercussão na cultura oral, por sua deturpação nos

meios eclesiásticos ao longo da história, seria matéria-prima para a poesia de Gregório, caso

ele se aventurasse, como o fez para a felicidade geral da nação, em ser poeta desde jovem.

O diabo não escaparia a esse processo de apropriação poética do legado bíblico-literário,

personagem tomado por Gregório do mesmo modo como o tomou o discurso religioso:

para fazer o que bem entenda (STANFORD, 2003). A apropriação literária da

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personificação do mal, com cada poema atribuindo-lhe um aspecto novo, adequado ao

interesse poético subversivo ou não em relação à Bíblia, verificável na obra poética de

Gregório, demonstra respeitou somente aos ditames da criatividade. A criação-apropriação

dogmática da face do mal verificável na biografia do diabo (STANFORD, 2003), com cada

momento histórico sendo atribuído um traço peculiar ao maior sedutor de mundo

adequado aos interesses circunstancias do poder religioso hegemônico, demonstra respeito

somente a intenções escusas de obtenção de mais poder pela agremiação de uma

coletividade ignorante e amedrontada, mas pelas consequências de desafiar o poder

instituído do que de se deparar com o sobrenatural, deve bem ser essa a verdade. Gregório

de Matos e seus perseguidores foram ―bocas do inferno‖ (o poeta, por lançar-lhes no

inferno do fogo da ridicularização pelo riso paródico; seus detratores, por semearem sobre

o solo da vida do artista a mentirosa alcunha difamatória e demonizadora), criadores como

foram de mais uma fase da materialização personificada em uma face com personalidade da

concepção dualista quanto à existência do mal, nascida nas remotas culturas da antiguidade

da história do homem.

Uma brevíssima incursão teórica: Gregório de Matos e o barroco – paródicos

Em sua obra Deus e o diabo no Fausto de Goethe (CAMPOS, 2005),

Haroldo de Campos pouco fala sobre Deus, apesar do título, mas apresenta o diabo com

elemento literário universal, advindo das ânsias humanas por transcendência, como o

declara em entrevista publicada em O arco-íris branco (CAMPOS, 1997), quando

responde Questões fáusticas a J. Jota de Moraes, sobre a presença do diabo no universo

das narrativas populares, ao que o entrevistado remete a esse seu livro sobre a obra máxima

de Johann Wolfgang Von Goethe. Uma indicação teórica registrada em nota sobre o

escrito sobre um corpo de Severo Sarduy revela, segundo Haroldo de Campos (2005,

p.133), a pertinência dos estudos do ensaísta para a linguagem barroca quanto ao seu

artifício paródico de composição. Em Por uma ética do desperdício, estudo estimado

por Campos, Sarduy estabelece a paródia como elemento do seu ―esquema operatório

preciso‖, criado pelo criativo ensaísta cubano para ―restringir o conceito de barroco‖, a fim

de codificar ―a permanência de sua aplicação‖ (SARDUY, 1979, p.59). Uma breve incursão

teórica se faz necessária para esclarecer o fato de a análise seguinte ter por fundamentação

o conceito de ―paródia que não deve ser necessariamente entendida no sentido de imitação

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burlesca‖, como estabelece Haroldo de Campos ao entendê-la ―enquanto ‗canto textual‘‖,

da maneira como ele a encara, ―etimologicamente, [...] enquanto ‗canto paralelo‘‖,

acercando-a ―tanto da idéia batikhtiniana de dialogismo (Gr, dia, entre, através, logos,

discurso) como da noção de inter (entre) textualidade kristeviana‖ (CAMPOS, 2005, p.73-

74). Combinando-se Sarduy com Campos ―na medida em que‖ a obra de Gregório de

Matos permitir ―uma leitura em filigrana, em que esconde, subjacente ao texto [...]- outro

texto – outra obra – que este revela, descobre, deixa decifrar‖, o trabalho de elaboração da

poética gregoriano se harmoniza com ―o barroco latino-americano‖ que ―participa do

conceito de paródia, tal qual o definia em 1929 o formalista russo Bahktin‖ (SARDUY,

1979,p.68). Demonstrada essa relação, sob as provas de se tratar de legítima a paródica

operação textual de Gregório ―na medida em que orienta seu desenvolvimento e

proliferação‖, com sua ―estrutura inteira constituída, gerada pelo princípio da paródia‖

(SARDUY, 1979, p.70) de textos bíblicos, será, então, entregue ao mundo acadêmico mais

uma parcela do resgate do barroco e de Gregório de Matos e Guerra para pagamento do

seqüestro há muito sofrido.

Considerações sobre a presença do diabo na poesia de Gregório: uma a voz paródico- tentadora

As menções ao diabo realizadas por Gregório de Matos apresentam oscilações

em relação à Bíblia cristã, como prefere chamar o Novo Testamento Harold Bloom:

aproxima-se e afasta-se das representações da personagem construída pelos autores bíblicos

responsáveis produção dos escritos fundamentais à expansão do cristianismo e a sua

consolidação institucional. O Pai Criador do universo divide espaço com o inimigo

humano universal (criações cristãs) no poema seguinte, situado dentre os tecidos para Os

homens bons, homenageados às avessas na Crônica do viver baiano seiscentista de

Gregório de Matos, mais especificamente como as Pessoas muito principais da cidade da

Bahia. Ocorre nele de ser dada voz ao Demônio para construção de diálogo cujo resultado

esperado é o de uma peleja para seduzir uma alma ―cristã resistindo às tentações

diabólicas‖, enquanto clama por Deus:

Alma

Se o descuido do futuro,

e a lembrança do presente

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é em mim tão continente,

como do mundo murmuro?

Será, porque não procuro

temer do princípio o fim?

Será, porque sigo assim

cegamente o meu pecado?

mas se me vir condenado,

Meu Deus, que será de mim?

(OC, I, 73)

Segismundo Spina (1995), em seu livro A poesia de Gregório de Matos,

organiza antologia da obra do poeta pluriguista, publicação estimulada, prefaciada por e

oferecida a Haroldo de Campos, destaca a ocorrência de tupinismos, africanismos,

termos chulos, gírias e arcaísmos na obra poética do artista considerado por Campos como

―maior poeta barroco‖ do Brasil e ―um dos maiores‖ da literatura nacional (1988, p.35) e a

quem talvez ninguém tenha superado na sátira em ―toda a América Latina‖ (1995, p.12).

Spina, porém, silencia quanto à ocorrência do léxico de origem bíblica na poesia do poeta

um dia degredado para Angola por sua língua luciferina, declamadora dos textos sagrados,

como se reflete em seu vocabulário do que é mostra a palavra ―alma‖. Haroldo de

Campos e Harold Bloom constroem explicações para o uso bíblico da palavra,

esclarecedoras ao emprego dela no poema de Gregório. Para comentar sua escolha pela

palavra alma para sua tradução transcriadora do mais barroco dos textos, o Eclesiastes,

Haroldo de Campos afirma que sublinha para a palavra néfesh (’eth-nafshi), traduzida para

alma, a ―conotação [...] ligada à séde das ‗emoções‘, dos ‗apetite‘‖, assim como pode

significar ―si mesmo‖ (CAMPOS, 2004, p. 135 e p. 122), o homem como um todo.

Campos, para comentar tradução publicada em seu livro Bere’shith, nome dado pela

tradição hebraica ao livro de Gênesis, primeira palavra dessa obra atribuída a Moisés,

registra o ensino de que ―alma‖ (néfesh) pode ter o sentido de ―ser que respira‖ (CAMPOS,

2000, p. 30). Harold Bloom, em comentário sobre a palavra alma, empregada na tradução

do episódio do Gênesis (o mesmo traduzido por Campos), transposta para o português, a

partir da versão em inglês elaborado de David Rosenberg, por Monique Balbuena, em

que é narrada a criação do homem a partir da terra moldada por Javé, esclarece que:

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J é o mais monístico dos autores acidentais, assim como São Paulo é o

mais dualístico. Para J não há qualquer divisão entre corpo e alma,

natureza e mente. Até onde posso ver, tal monismo foi criação de J

(BLOOM, 1992, p.192).

Seja qual for a acepção mais adequada para alma no texto de Gregório, o certe

é que se vê um ser vivente pensando consigo mesmo em simultânea busca com

concomitante influência do Demônio sobre seus pensamento a respeito de sua experiência

com os prazeres do mundo. Campos aprova comentário crítico sobre o fato de que, na

expressão do Qohélet, ―os prazeres físicos da vida eram divinos na origem‖, e de que,

embora o prazer não fosse ―um objetivo adequado à vida‖, constitui-se como ―único

programa prático para a existência humana‖ (CAMPOS, 2004, p.122.):

Eu saudei eu § o prazer § §

pois benesse alguma para o homem § sob o sol § §

fora § comer e beber § e se aprazer § § §

E isto § o há de seguir em seu afã de fazer §

Pelos dias de vida § que lhe deu Elohim § sob o sol

(QO, 2004, p.80)

Nesse sentido, o anseio da alma e o incentivo do demônio estão em harmonia

com a pregação bíblica do Qohélet (capítulo oito, verso quinze), mas apresenta-se na dual

condição de entrega deliberada ao seguir ―cegamente pecando‖ associada ao sentir temor

causado por crer em possíveis consequências de seu proceder. A expressão de tom bíblico

―do princípio o fim‖ da composição da estrofe expressa um prognóstico de futura danação,

antecedente às seguintes palavras de sedutora persuasão do demônio:

Demônio

Se não segues meus enganos,

e meus deleites não segues,

temo, que nunca sossegues

no florido dos teus anos:

vê, como vivem ufanos

os descuidados de si;

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canta, baila, folga, e ri,

pois os que não se alegraram.

dois infernos militaram.

Bangüê, que será de ti?

(OC, I, 73-74)

Segundo a tradição cristã, o Demônio é anjo caído e tem voz em alguns dos

relatos bíblicos desde o Gênesis, quando teria se encontrado com o ser humano; aos

evangelhos, quando teria se deparado com Jesus. Como fizera com usufruto de a astúcia

da serpente, assim Haroldo de Campos chama o episódio de Gênesis, para alcança êxito

em sua persuasão na busca por mobilizar Eva no Éden, o sedutor, semelhante ao do

poema de Gregório, tenta Cristo no deserto. Nos dois episódios (ou nos três, para incluir o

do poema em comento, a despeito da peculiaridade de os relatos bíblicos dizerem respeito

ao Satanás em pessoa e não a um enviado, um demônio, como pode ser o personagem do

poema de Gregório), o sedutor age sob promessas de mais viver. Haroldo de Campos

elabora uma dublagem transcriadora em português para a voz do diabo cujo tom é dado

pela tradição javista comentada por Harold Bloom como objeto de manipulação pelos

escritores neotestamentários:

E a serpente § era o mais astuto § §

dentre todos § os animais do campo § §

que fizera § O-nome-Deus § § §

E ela disse § à mulher § §

acaso § terá dito Deus § §

não comerás § § de toda árvore do jardim?

E disse a mulher § à serpente § § §

Do fruto das árvores do jardim §

Poderemos comer

E do fruto da árvore §

que está no meio do jardim § §

disse Deus § não comereis § dele § §

não tocareis nele § § §

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Senão morrereis

E disse a serpente § à mulher § § §

Morrer § não morrereis

Pois § sabe Deus § §

que § no dia em que dele comerdes § §

se abrirão § vossos olhos § § §

E sereis § como deuses § §

sabedores § do bem e do mal

E viu a mulher § §

que era boa a árvore para comer §

e uma delícia para os olhos §

e aprazível a árvore que dá conhecimento § §

e tomou de seu fruto § e o comeu § § §

E deu também ao homem § junto a ela §

e ele comeu

(CAMPOS, 2004, p.54-55)

Harold Bloom elabora extensa análise aos relatos considerados de origem

javista, em tese, separados em O livro de J por David Rosenberg, das contribuições

sacerdotais, redatoriais e eloístas para a composição do que hoje é o Pentateuco, a Torá

hebraica, os cinco primeiros livros bíblicos. Embora o comentarista da elaboração literária

javista, ao escrever sobre o Gênio autoral presente na Bíblia, desaprove a trabalho

tradutório de Rosenberg (BLOOM, 2003, p.142), reitera o estudo em que da seguinte

forma explicita uma reflexão advinda de pesquisa sobre a questão da gênese literário-

cultural da ideia de o diabo haver se metamorfoseado em serpente, como o estabeleceu a

Bíblia Cristã em sua reescritura da Bíblia hebraica:

O homem e a mulher não conheciam a malícia; a serpente não conhece

nada além dela. Nosso problema, enquanto leitores de J, está em

desembaraçar sua estória da serpente no Éden da escandalosa

proeminência que alcançou na teologia cristã e na literatura de ficção do

ocidente. É um desafio enorme resgatar J neste ponto em particular.

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Como será que a encantadora serpente de J se transformou em Satã? A

resposta parece remontar a pelo menos o primeiro século antes da era

comum, a certos escritores judaicos apocalípticos e eréticos, incluindo o

testamento de Adão, a vida de Adão e Eva e aquele outro, curiosa e

incorretamente intitulado Apocalipse de Moisés. Por trás deles está uma

vida perdida, ou o apocalipse de Adão, onde supostamente o Diabo e a

serpente de J aparecem pela primeira vez, onde a história da

desobediência escrita por J foi transmutada em uma história de luxúria, e

onde a árvore do conhecimento do bem e do mal se transformou em

absolutamente qualquer outra árvore que pudesse ser associada à

serpente Satã. (BLOOM, 1992, p.197-198)

O fato de a serpente do livro de Gênesis ser identifica em fusão com o Satanás

dos livros do novo testamente é exemplo de como o cristianismo é marcado por ensinos

construídos com base em narrativas mitológicas antigas, anteriores a sua constituição como

movimento religioso. Haroldo de Campos, em comentário a passagem sobre a

sagacidade da serpente, um dos capítulos do seu Éden: um tríptico bíblico, confirma a

leitura de Harold Bloom relativa à personagem criada pela suposta autora da narrativa, a J,

mulher intelectual da corte salomônica como a imagina de Bloom. Esclarece Haroldo de

Campos:

Diferente do que é sugerido nas representações cristãs, a serpente,

(nahash), termo que significa ―brilhante‖ e que pode ser associado ao

bronze (nehósheth), não é, por definição, no texto hebraico, um ―ente

diabólico‖. Ao contrário, mais do que qualquer outro animal, foi dotada

―astúcia‖, de ―ardilosidade‖ [...]. No episódio do Éden, a serpente

aparenta um conhecimento da ―árvore do bem e do mal‖ que vai além da

―inocência‖ paradisíaca do casal humano (fato que, para Bloom,constitui

a maior ironia do texto ―javista‖). O verbo que descreve o ato de

persuasão praticado pela serpente em relação à mulher é nasá’ ou nashá,

com o sentido de ―elevar para um plano mais alto‖ [...], ―seduzir‖,

―iludir/decepcionar‖. (CAMPOS, 2004, p.45-46)

O ensaio anjos caídos, escrito por Haroldo Bloom, apresenta uma síntese da

esclarecedora correlação do diabo como serpente com Eva e com Lilith, personagem

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mitológica não mencionada por Haroldo de Campos em suas considerações

interpretativas de cunho linguístico e tradutório sobre a serpente do Éden. Ao ensino de

Bloom sobre o fato de que ―a estrela‖ dos demônios (categoria de ser universal e

pertencente a todos o povos) habitantes enfestadores da Mesopotâmia era Lilith, ―primeira

esposa de Adão‖, ―afastada pela criação de Eva‖ (BLOOM, 2008, p.41), associe-se a

explicação explicitada por Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero em seu O livro dos

seres imaginários e se percebe o fato de que não é uma peculiaridade criada pelo

cristianismo a existência de uma personagem para personificar concretamente o mal, tal

como a que surge no texto de Gregório para dialogar com a alma:

―Porque antes de Eva foi Lilith‖ lê-se em um texto hebraico. Sua lenda

inspirou o poeta inglês Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) a

composição de Eden Bower. Lilith era uma serpente; foi esposa de Adão e

lhe deu glittering sons and radiant daughters (filhos resplandecentes e filhas

radiantes). Depois, Deus criou Eva; Lilith, para vingar-se da mulher

humana de Adão, instou-a a provar o fruto proibido e a conceber Caim,

irmão a assassino de Abel. Tal é a forma primitiva do mito, seguida por

Rossetti. Ao longo da Idade Média, a influência da palavra layil, que em

hebraico quer dizer noite, foi transformando esse mito. Lilith deixou de

ser uma serpente para ser um espírito noturno. Às vezes é um anjo que

rege a procriação dos homens; outras, um demônio que assalta aqueles

que dormem sós ou aqueles que andam pelas estradas. Na imaginação

popular costuma assumir a forma de uma mulher alta e silenciosa, de

negros cabelos soltos. (BORGES e GUERRERO, 2000, p.113)

De Lilith como serpente perseguidora do homem depois de lhe tornar-se

defeso prosseguir como sua companheira, à serpente como diabo perseguidor do homem

depois de ser um angélico irmão em Deus Pai, a origem do demônio cristão apresentado

como verdade única e última na Bíblia cristã e na interpretação normativa dos textos

escriturais advém de transformações de mitos de fontes várias em escrituras de valor

sagrado. Nesse sentido, pode também Gregório de Matos, ao seu bel prazer, modificar

como entenda essa tradição em nome da criatividade poética, retomando a voz seguida pela

pena distante de ―J‖, assim como as narrativas dos evangelhos. O poema, em sua segunda

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estrofe, registra aos argumentos da tentação: deleite dos que vivem sem temor futuro

―descuidados de si‖ pela garantia de livrar-se de ao menos uma danação, a do presente mal

vivido. A tentação de cristo, para quem, segundo a narração de Lucas144 foi oferecido todo

prazer secular acessível ao homem (fato não contado por Marcos) na condição de se

prostrar ao diabo, assédio sofrido em dado momento dos quarenta dias de fome sofrida no

deserto; ao contrário da versão de Marcos145, segundo a qual os anjos lhe serviam, é

referência recuperável a partir dos versos de GM..Haroldo Bloom, em suas reflexões

sobre os evangelhos, publicadas em Jesus e Javé: os nomes divinos, detém-se

consideravelmente à explicitação de relações verificáveis por meio do exercício de

comparação dos evangelhos sinóticos entre si. Para o crítico, ―tanto Mateus quanto Lucas

procedem de Marcos‖, ―provavelmente, o Evangelho mais antigo, [que] costuma ser

datado da época da rebelião judaica contra a Roma, ocorrida entre 66 e 70 da Era Comum‖

(BLOOM, 2006, p. 83e p. 77). O fato de certo de que ―nenhum dos Evangelhos, em si,

representa um relato confiável dos ensinamentos do Messias ao qual eles se referem, seja

em palavras ou em atos‖ (p.78.) em nada diminui a beleza resultante da exegese das

escrituras (midrash), operada por Marcos e por Lucas, como defende Karem Armstrong

em sua biografia da Bíblia (ARMSTRONG, 2008) haver ocorrido para consolidação da

justaposição de elementos históricos dispersos sobre Jesus, concretizada para a composição

dos evangelhos - pois a riqueza literária estaria nas diferenças. Empobrecedora é a leitura

dos textos para busca de uma versão unitária ao negar as discrepâncias para afirmar a não

contradição impossível de ser percebida, criada para sustentar a defesa de palavra revelada e

não de literatura elaborada como mais pertinente para as narrativas. Em GM, não é o

prazer secular de possuir os bens materiais, a pompa dos poderosos apresentadas a Cristo

no deserto e sob a montanha da tentação, mas o prazer mundano de se entregar ao riso, ao

144 No evangelho segundo Lucas, a Bíblia de Jerusalém assim conta o episódio da tentação de Cristo,

após o relato de sua genealogia: Jesus, pleno do Espírito Santo, voltou do Jordão; era conduzido pelo

espírito através do deserto durante quarenta dias, e tentado pelo diabo. Nada comeu nesses dias e, passado esse tempo, teve fome‖. Em seguida, o texto apresenta um duelo de conhecimento do Antigo Testamento,

travado entre Jesus e o diabo, parte do qual é a seguinte passagem: ―o diabo levou-o para mais alto,

mostrou-lhe num instante todos os reinos da terra e disse-lhe: ‗eu te darei todo este poder com a glória

destes reinos, porque ela me foi entregue e eu a dou a quem eu quiser. Por isso, se te prostrares diante de

mim, toda ela será tua‘. Replicou-lhe Jesus: ‗Está escrito: Adorarás ao senhor teu Deus, e só a ele

prestarás culto”, destaque do original, (BJ, p.1794). No evangelho segundo Marcos, tradução da Bíblia

de Jerusalém, lê-se, imediatamente após o relato da submissão de Jesus ao ritual do batismo: ―e logo o

espírito o impeliu para o deserto. E ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás, e vivia

entre as feras e os anjos o serviam (BJ, p.1759). o evangelista nada fala sobre as ofertas do diabo 145 Os Evangelhos segundo João e segundo Mateus nada contam sobre a chamada tentação de Jesus.

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deleite da alegria festiva, em substituição ao comedimento introspectivo da vida religiosa, as

vivências postas em evidência pelo tentador Demônio do poema de Gregório. Nesse

sentido, a solene abstinência do carnaval em vida (concretizada por um não entregar-se sem

medida ao cantar, bailar, folgar e rir), equivale a não ter vida em abundância, é infernal

escolha.

Assim como a absoluta impaciência dolorosa do duvidoso Jó diante da

injustiça de lhe haver sido subtraído todo deleite de vida sem qualquer razão admissível,

posto que sua desgraça, como não o sabia o miserável homem, fora fruto de uma disputa

entre Iahweh e satanás, para quem a fidelidade de um homem a seus princípios devia-se

somente às recompensas de gozo material por ele aferidas, também a alma sofre em vida

eterna insolucionável dúvida quanto a entregar-se ou não ao prazer, embora Deus em nada

se manifeste. Enquanto na dramatização, o diabo se faz presente em voz, Deus aparece

somente na expressão irônico-cômica da alma entregue deliberadamente ao pecado em seu

clamor: é uma imagem do inferno cristão às avessa, pois o diabo oferece não dor, mas

prazer à alma pseudo-sofredora ou sofredora senão apenas do medo de um possível futuro

de castigo: Como em Gregório tudo é fingido, até o diabo finge enganar, pois convida à

elevação da alma ao enganoso estado de plenitude para futura descida ao inferno, à moda

da serpente, como explica Haroldo de Campo, com a paradoxal advertência de que se

trata de enganos os seus convites: isso não é engano; é enganar de enganar.

A primeira das passagens bíblica construídas com o registro da voz do diabo

encontra-se em O livro de Jó, segundo Harold Bloom (fonte de onde ele, como judeo

crítico literário estudioso leitor da literatura bíblica, pode encontrar a sabedoria), o

Satanás, no episódio abertura do livro e ao longo da Bíblia hebraica, Antigo Testamento, é

um servo de Iahweh; ―um advogado de acusação, um funcionário de excelente reputação‖

(2008, p.53), enquanto na Bíblia cristã, Novo Testamento, é um inimigo voraz da

humanidade, conforme as epístolas de Paulo e as narrativas dos evangelhos. O diabo do

poema em análise se aproxima da concepção literária de Bloom, explicitada em suas

reflexões sobre os Presságios do milênio e sobre os anjos caídos, em nada divergentes

da leitura biográfico-histórica de Stanfor: para os dois, o diabo é um personagem literário

crucial para a história do cristianismo, mas cujo nascimento remonta a época muito mais

remota do que dois mil. Jorge Luis Borges bem sintetiza a origem biográfica do diabo

como o considera os estudos de Bloom e Stanford ao categorizar a personagem com um

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ser fruto da imaginação em O livro dos seres imaginários, erudito catálogo de

personagens fantásticas, elaborado em co-autoria com Margarita Guerrero. Os dois

escrevem sobre os demônios do judaísmo:

Entre o mundo da carne e o do espírito, a superstição judaica

pressupunha um universo habitado por anjos ou demônios. O censo

de sua população excedia as possibilidades da aritmética. Egito,

Babilônia e Pérsia contribuíram, ao longo do tempo, para a formação

desse universo fantástico. Talvez por influência cristã [...] a

demonologia, ou ciência dos demônios, teve menos influência do que a

angiologia, ou ciência dos anjos. (BORGES e GUERRERO,

2000, p.184)

Bloom, na sua negação da existência de Anjos caídos na bíblia hebraica,

justificada exatamente pelos fatos apresentados acima, desenvolve a percepção explicita por

Borges, acrescentado a cultura da ―Índia antiga, que via o demônio por toda parte‖ (2008,

p.41) ao rol borgeano, e destacando a importância helenista para uma reconstrução das

origens literárias não bíblicas formadoras da concepção de demônio de que toma posse

Gregório de Matos. Sobre o interesse por anjos como um dos presságios do milênio,

ensina o professor da universidade de Yale quanto à origem do demônio:

Embora os anjos, os do nosso tipo, se tenham originado na Pérsia e na

Babilônia, qualquer história dos anjos caídos provavelmente deve

começar com o autor helenista do séculos 2 da E.C. Apuleio, mais

conhecido por seu esplêndido romance O asno de ouro, porém no fim

mais influente como autor de um ensaio, ―Do Deus de Sócrates‖. O

―deus‖ de Sócrates era o seu daimon, um espírito nem humano nem

angélico, que mediava entre os deuses e o filósofo. Apuleio identificava

os daimons como habitantes do ar, como corpos tão transparentes que

não podemos vê-los, só ouvi-los, como ouvia Sócrates o seu. Apesar

disso, os daimons são materiais, como são os deuses; foi inovação de

Tomaz Aquino encarar os anjos, equivalentes dos deuses, como puros

espíritos. Segundo Apuleio, cada um de nós tem um guardião e gênio

individual. No fim da Idade Média, esses daimons foram também

identificados com os anjos caídos, ou ―demônios‖, como certamente o

eram por Aquino. C. S. Lewi aventurou que São Paulo, em última

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análise, estava por trás disso, pois em Efésios 2:2 escreveu sobre ―o

príncipe do poder do ar, que agora atua nos filhos da desobediência‖, o

que foi entendido como uma referência aos daimons como seres

satânicos. (BLOOM, 2006, p.52-53)

A poética constituída por Gregório de Matos com as marcadas da apropriação

paródica do legado bíblico-religioso, relido pelo poeta sob a inescapável influência (ainda

que para transformá-la ao menos em parte) da herança teológico-doutrinal-catequética,

deixadas por Paulo e por Aquino na transformação dos daimons de Apuleio em anjos caído

ou demônios, didaticamente explicitada por Harold Bloom, manifesta-se no texto

comentado pela construção de um diálogo de uma alma vivente com um seu daimon (ela

não consegue vê-lo, mas pode ouvi-lo, sem conseguir distinguir, talvez, se se trata de sua

voz ou da dele), transnomeado em demônio, conforme a tradição católico-cristã o realizou.

A alma dirige-se a Deus, mas quem a ouve é o demônio:

Alma

Se para o céu me criastes,

Meu Deus, à imagem vossa,

como é possível, que possa

fugir-vos, pois me buscastes:

e se para mim tratastes

o melhor remédio, e fim,

eu como ingrato Caim

deste bem tão esquecido

tenho-vos tão ofendido:

Meu Deus, que será de mim?

(OC, I, p.74)

A exaltação a Deus como criador se dá não para esboçar sequer uma sombra

de real submissão piedosa por desejo de mudança de postura diante da vida, mas para

igualar-se em postura ao primeiro dos homicidas na tradição do cristianismo, conforme a

leitura normativa de Gregório para o episódio em que o primeiro filho de Eva é vítima das

diabruras de Javé, registrada no relato de Gênesis. Gregório, ao referir-se a Caim como

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ingrato, adequa-se à leitura cristã da Bíblia hebraica, ignorante do fato levantado por

Harold Bloom de que o fratricídio cometido pelo ―rebelde trágico‖, construído por J, não

como um homicida, comete um ―assassinato provocado pela arbitrariedade de Yahweh‖

(BLOOM, 1992, p.206), em acréscimo à defesa do ponto de vista de que ―Caim é a

primeira realização humana após a expulsão do Éden, e sua principal qualidade não é o

mal, mas um implícito ressentimento de Yahweh‖ (BLOOM, 1992, p.205).

Nas palavras da alma, Deus é apresentado como responsável por predestinar a

sorte humana para a redenção sobre o pecado, mas não para exaltar o criador, senão em

contraponto à confissão de se destinar para longe de se salvar pelos méritos Dele. A alma

percebe-se destinada ao ceu (seria o terceiro, para onde foi levado em espírito o apóstolo

Paulo?), no sentido destinar-se a um lugar preparado por Deus para habitação das almas

não tragadas pelo demônio, porém ver-se em permanente marcha contrária a alcançá-lo.

Ao demônio resta tão somente reiterar a alegria de um viver entregue ao cantar como bem

o deseje a alma vivente em uma sério-cômica apologia à construção de um viver alheio às

possibilidades de perder ou ganhar um lugar no ceu:

Demônio

Todo o cantar alivia,

e todo o folgar alegra

toda a branca, parda e negra

tem sua hora de folia:

só tu na melancolia

tens alívio? canta aqui,

e torna a cantar ali,

que desse modo o praticam,

os que alegres pronosticam,

Bangüê, que será de ti?

(OC, I, p. 74)

O Demônio assume, então, o mero papel de validar o modo como a alma

conduz sua vida, apresentando as vantagens de permanecer sob a força da alegria oferecida

na recitação da estrofe anterior, um ato de bufonaria realizado quando deveria não ser um

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gesto de provocação de riso burlesco transluciferino; mas uma defesa diabólica da servidão

ao mal contraposta à resistência da alma cristã em se entregar ao fáustico deleito dos bens

mundanos. Como uma instância jurídica em ação para defesa da liberdade, fruída no levar

vida regalada em detrimento do temor nascido da previsão de possíveis conseqüências, o

diabo, pelo elogio à recompensa imediata de fruir como bem deseje os prazeres da vida

livre, apresenta contra-razões para rechaçar os motivos de inquietação apresentados nas

confissões de angústia. A alma apela para o símbolo maior de punição advinda da

permissividade humana de saciar seu desejo de saber, de poder, de ser: temerosa de fruir

para depois sofrer punição simula impossibilidade de algo fazer para não se lançar à entrega

dos deleites apresentados pelo demônio e apela para a crucificação146. Bloom questiona a

factualidade da morte de Jesus no Calvário como consequência de sua não aceitação da

concepção de Jesus ser Deus, e, mais ainda, de sua inaceitabilidade relativa à existência de

um Deus suicida, conforme declara: ―nada no cristianismo teológico é para mim tão difícil

de aprender quanto à noção de Jesus Cristo enquanto um Deus que morre e revive‖

(BLOOM, 2006, p.19). A remissão gregoriana à crucificação, realizada para representar um

ideal de modo de estar no mundo não atingido pela alma – de fato, sequer perseguido –, é

alheia à discussão teológico-historiográfica tecida por Bloom, pois se limita a se referir ao

episódio do Gólgota para expressão de uma futura culpa gerada pelo não alcance de um ideal

de ser humano à altura do abnegado homem do sacrifício evangélico, fracasso a terminar

por ocorrido mediante a inequívoca incapacidade de a alma se ajustar aos padrões de quem

se submete à perene lembrança de um ideal de redentor alinhado a altíssimo padrão de

auto-negação humana. Javé fora o Deus ideal para as almas viventes israelitas, nos tempos

bélico-imperialistas; Jesus representa o Ideal para a alma, nos seus momentos de

angustiante culpa.

Alma

Eu para vós ofensor,

vós para mim ofendido?

146

Segundo Harold Bloom, ―gnósticos e mulçumanos insistem que Simão, o Cireneu, que

carregou a Cruz, foi crucificado em lugar de Jesus‖, além do que. ―há outras tradições, ainda

mais esotéricas, segundo as quais os soldados romanos foram subornados, e Jesus retirado da

Cruz ainda vivo‖ (2006, p.162.).

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eu já de vós esquecido,

e vós de mim redentor?

ai como sinto, Senhor,

de tão mau princípio o fim:

se não me valeis assim,

como àquele, que na cruz

feristes com vossa luz,

Meu Deus, que será de mim?

(OC, I, p.74-75)

A alma quer mesmo deixar-se levar pela entrega desmedida aos deleites ao

alcance de seu uso, enquanto ao demônio cabe prosseguir com as promessas de mais

prazer e de mais ainda ser válida a fruição quando da força da juventude em sua sede

demasiadamente humana de mais viver. A sugestão do usufruto dos bens do presente

durante a juventude, ressaltado por Qohélet, está nos lábios das demoníacas alegações

destinadas à alma, por si só já entregue, embora com temor, à fuga das tristezas de uma

vida regrada desde a juventude.

Demônio

Como assim na flor dos anos

colhes o fruto amargoso?

não vês, que todo o penoso

é causa de muitos danos?

deixa, deixa desenganos,

segue os deleites, que aqui

te ofereço: porque ali

os mais, que cantando vão,

dizem na triste canção,

Bangüê que será de ti?

(OC, I, p.75)

Produção poética cujo ―foco principal é a mortalidade‖, com o ―destino e o

acaso‖, considerados tal qual não o ocorre em outros livros bíblicos, fonte onde Harold

Bloom encontra a sabedoria (BLOOM, p.36, 2009), o discurso poético-sapiencial

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Eclesiastes, dublado em português pelo tradutor-transcriador Haroldo de Campos em

Qohélet: O-que-sabe=Eclesiastes, é recuperado pelo demônio de Gregório de Matos

para persuadir a alma a se entregar ao deleite dos anos joviais. Campos reelabora da

seguinte forma as palavras sapienciais atribuídas a Salomão:

Jovem: júbilo em tua juventude §

e bonança em teu coração § na infância dos teus dias §§

e vai § pelas vias do teu coração §§

e pelas miragem dos teus olhos §§§

E sabe §§

Por tudo isso § Elohim te fará vir a § a julgamento

E afasta o sofrimento § do teu coração §§

e aparta o mal § do teu corpo §§§

Que a juventude e cabelos negros § névoa-nada

(CAMPOS, 2004, p.102)

Terminasse nesse ponto o discurso de sabedoria qohélitica, a alegação de tentação de diabo

Gregoriano teria nele inquestionável fundamento bíblico para o elogio ao deleito proferido

aos ouvidos da alma, pois a desobediência à ordem de aproveitar o vigor da juventude para

extrair dela prazer será levada a julgamento por Elohim segundo o teria dito Salomão. O

texto, embora prossiga sob influência das marcas normativas nascidas da necessidade de

adequação para inclusão no cânone bíblico, apresenta um capítulo final, deste que é o livro

bíblico mais apreciado por Harold Bloom, capaz de fazer o crítico calar profundamente,

conforme admite (BLOOM, 2009, p.41e p.42):

E recorda § o teu criador §§

nos dias § de tua juventude §§§

Antes que venham § os dias ruins §§

e se avizinhem os anos §§§ dos quais dirás §§

neles para mim § nenhum prazer

Antes § que se escureça o sol § e a luz §§

e a lua § e as estrelas §§§

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E venham de volta as nuvens turvas § depois da chuva

(CAMPOS, 2004, p.103)

Bloom cita mais versos do trecho, o capítulo doze, do poema a ser, segundo

ele, lido até a memorização, percepção plausível, pois a influência normativa verificada pela

crítica não atenuou a beleza e a profundidade da expressão poética milenar. Se analisado

sob a mira de olhar capaz de se focar em cada verso com simultânea visão voltada ao

antecessor (a ordem para fruir a vida) e ao sucessor, a ciência do juízo de Elohim e a

lembrança do criador devem servir ao jovem para levá-lo a fruir uma vida de deleites, em

conformidade com a incentivada pelo demônio do poema de Gregório. Na ―flor dos

anos‖, nos dias do júbilo da juventude, não haveria, na concepção demoníaco-gregoriana,

espaço para a amargura de uma vida temerosa de fenecer em um futuro de danação, como

também vai mostrado na expressão divino-sapiencial. Espanta-se o demônio diante da

angústia confessada pela alma advinda de um senso de autopunição pelo apreciar os

prazeres.

Como antigo anjo de luz no coração de quem nasceu a sanha por mais poder e

por mais saber, agente de disseminação na humanidade desses quereres, conforme sua

construção cristã, baseada na leitura normativa não literária do relato javista do Gênesis, o

demônio é o único referente – exógeno ao texto, diga-se -, para o qual um dedo ao

percorrer os versos poderia apontar. Antes de pensar a próxima estrofe nesses termos já

apresentada, importa um aparte sobre o pensamento de Harold Bloom, tomado como

norte para a leitura que se vai construindo. Se a Bíblia hebraica é obra artística antes de ser

escritura sagrada, então os autores cristãos em nada erram ao dela se apropriarem para criar

a Bíblia cristã. Do ponto de vista composicional é uma arquitetura por demais complexa

tornar um Deus humano guerreiro em um Deus Pai bondoso, feliz por ter seu filho

unigênito crucificado, um humano Deus suicida pelo propósito de cumprir os planos do

seu Pai em um conjunto de obras com quatro narrativas da vida do filho, primeiras

consequências de sua morte, cartas sobre ensinamentos sobre a religião nascida de seus

ensinamentos e um grande poema escatológica com seu ressurgimento divino-fantástico.

Nesse sentido, vale ser relativizado o amargor de Bloom em relação à apropriação dos

escritores neotestamentários da Bíblia hebraica a despeito do uso tendencioso realizado da

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literatura por eles tomada posse para fins de torná-la um Antigo Testamento, cuja força

poética Harold Bloom não deixa de reconhecer em seus comentários, por exemplo, às

narrativas da vida de Cristo, registrado em seu Jesus e Javé: os nomes divinos (BLOOM,

2006). Voltando ao poema, a alma menciona o primeiro ofensor de Deus, pela construção

cristã, o anjo caído chefe dos demônios, ou o demônio em si:

Alma

Quem vos ofendeu, Senhor?

Uma criatura vossa?

como é possível, que eu possa

ofender meu Criador?

triste de mim pecador,

se a glória, que dais sem fim

perdida num serafim

se perder em mim também!

Se eu perder tamanho bem,

Meu Deus, que será de mim?

(OC, I, 75)

A alma construída por GM para o poema não tem reverente precisão

dogmática em relação às informações bíblicas, mas faz uma livre apropriação da literatura

sacralizada. A Bíblia, no discurso de Ezequiel, em poema interpretado como referência à

queda de Lúcifer, segundo a Nota da Escola Bíblica de Jerusalém (BJ p.1520), retrata o anjo

rebelde como um ―querubim cintilante‖ antes de contra Deus voltar-se, segundo lê o texto

a tradição cristã, desde quando passa a pôr em prática a construção de Lúcifer como anjo

caído personificador do mal, conforme ensinam Bloom (2006) e Stanford (2003), baseados

em suas pesquisas. Em uma passagem de Presságios do milênio, Harold Bloom ressalta a

participação de São Paulo no processo de demonização do Satanás de O livro de Jó e

apresenta um enfrentamento à impossibilidade aritmética de calcular o número de

demônios, ressaltada por Borges e Guerrrero:

João Evangelista, no capítulo 12 de seu Apocalipse, diz que caiu

um anjo em cada três, enquanto Gustav Davidson, em seu

delicioso A Dictionary of Angels [Dicionário de anjos], cita um bispo

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do século 15 que estabelece o número dos caídos na substancial

soma de 133.306.608. Essa cifra teria apavorado os primeiros

rabinos, pois eles seguiam a Bíblia hebraica ao não atribuir

nenhum impulso mau aos anjos, para os quais nenhuma lei divina

teria sido demasiado severo, sem dúvida outro motivo por que

São Paulo tanto detestava os anjos.

[...]

Na medida em que o cristianismo é essencialmente paulino, pouco

uso tem para anjos virtuosos. O que Paulo e o cristianismo

precisavam era de anjos caídos, em particular do chefe deles,

Satanás. Não devemos esquecer nunca que, na Bíblia hebraica,

―Satanás‖ não é um nome próprio. No Livro de Jó, o leitor

encontra ha-Satan, ―O Satanás‖, que é um título da corte

equivalente ao nosso ―promotor público‖. Como um dos b’ne

Elohim, ―filhos de Deus‖, o Satanás é um ser divino ou anjo, malak

Javé, ou representante diplomático de Deus. Seu título significa

alguma coisa como ―agente barrador‖: é um adversário autorizado

dos seres humanos. Em grego, o agente barrador é um diabolos, e

assim Satanás se tornou diabólico. (BLOOM, 2006, p. 55-56)

Harold Bloom apóia-se nas pesquisas de Norman Cohn para afirma que, para alcançar o

cristianismo ―os nomes dos anjos vieram da Babilônia, e a natureza má dos anjos caídos, da

Pérsia‖, e passaram antes pela traição judaica apócrifa, de modo que ―ironicamente,

Zoroastro, e não o javista ou Isaías, é o autêntico ancestral de são Paulo e de Santo

Agostinho‖ (BLOOM, 2006, p.54-55).

Querubins foram seres guardiões postos à porta do jardim do Éden para

protegê-lo do alcance do homem, conforme registrado no capítulo três do livro de

Gênesis. A alma expressa medo de se igualar ao ―serafim‖ em sua ofensa de tudo poder

pela total falta de compromisso com regras estabelecidas pelo Criador. Os serafins são

seres celestes descritos por Isaías como detentores de seis asas, empregadas, segundo o

relato fantástico do capítulo seis do livro do profeta, para voar e para reverenciar Deus. São

cantores-poetas tais anjos: Isaías testemunha com ouvidos e olhos seu contar poético:

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Santo, santo, santo é Iahweh dos exércitos,

a sua glória enche toda a terra.

Gregório de Matos de modo algum passa incólume a essa construção social

demonizadora de satanás, realizada pelo cristianismo, como se percebe em outro poema,

elaborado como indicado no códice de James Amado, com propósito de homenagear uma

autoridade em estado de enfermidade. Um poeta se apresenta para compor versos com

remissão a Apolo e a Tália para expressar modéstia relativa ao seu cantar encomiástico. O

texto encerra a seção dedicada aos homens de bem da Crônica do viver baiano

seiscentista:

1 Oitavas canto agora por preceito,

Sem que na oitava possa diligente

Louvar as excelências de um sujeito,

Que pode ser em tudo o melhor Lente:

Mas como em mim não pode ser perfeito

O canto, ficará menos cadente

A música de Apolo, e de Talia,

Que não há cantar bem sem melodia.

[...]

6 Deixem-se os Gregos já do seu Eliano,

Condenam a silêncio um Xenofonte,

Não louve Alexandria Herodiano,

Que na Bahia tem Timocreonte:

O qual pode ensinar Quintiliano,

Camões, Terêncio, Ênio, Anacreonte,

Platões, Anaximandros, e Musés,

Acusilaus, Priscianos, e a Timéus.

(OC, I, p.189-190 e 191)

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Após o desfilar de filósofos e personagens gregos, junta-se à convivência

comum o ―decrépito invejo‖ Lúcifer, segundo a tradição cristã, anjo ambicioso responsável

pela origem do grande conflito bíblico. O texto bíblico interior ao fragmento de poema a

seguir tem sua leitura polemizada por Harold Bloom:

7 Nos anos climatéricos glorioso

Vosso nome será tão dilatado,

Que suba, onde o decrépito invejoso

O veja nas estrelas colocado:

Sereis novo Planeta luminoso,

E Sol em nova esfera sublimado,

Que, a quem o mundo singular aclama,

Só descansa no céu com ele a fama.

(OC, I, p.191)

O texto bíblico recuperável pela leitura dos versos, discutido por Bloom

segundo a tradução de Rei James, encontra-se no capítulo quatorze, versos de doze a

quinze, do livro do profeta Isaías:

Como caíste do céu,

ó estrela d‘alva, filho da aurora!

Como fostes atirado à terra,

vencedor das nações!

E, no entanto, dizias no teu coração:

‗subirei até o céu,

acima das estelas de Deus colocarei meu trono,

estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia,

nos confins do norte.

Subirei acima das nuvens,

tornar-me-ei semelhante ao altíssimo‘

E, contudo, foste precipitado ao Xeol,

nas profundezas do abismo‖.

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(BJ, p.1276)

O fragmento acima está configurado segundo a tradução da Bíblia de

Jerusalém e seus editores elaboram nota para esclarecer o sentido dessa ―sátira ao rei da

Babilônia‖. À Vulgata o leitor é levado a voltar sua mente para aderir a uma interpretação, a

mais aceita pela tradição católica, para as palavras do Deus poeta, já que foi Iahweh o autor

dos versos. Segundo a referida nota, os versos em que se divide o trecho acima:

parecem inspirar-se em modelo fenício. Em todo caso,

apresentam vários pontos de contato com poemas de Râs-Shamra:

a estrela d‘alva e a aurora são duas figuras divinas; a montanha da

Assembléia é aquela em que os deuses se reuniam, como no

Olimpo dos gregos. Os padres interpretam a queda da estrela

d‘alva (Vulg. ―Lúcifer‖) como a do príncipe dos demônios (BJ

p.1276).

A abordagem dos textos bíblicos da Escola Bíblica Francesa responsável pela

tradução da Bíblia de Jerusalém (BJ), autora das notas traduzidas para o português para a

edição brasileira da BJ, é a de literatura elaborada com raízes em diversas tradições. A

poesia de Gregório de Matos deu o calor do novo mundo ao legado literário milenar

elaborado e reelaborado ao longo das eras. A vulgata assim traduz o trecho a que se refere a

nota dos estudiosos franceses:

Quomodo cecidisti de caelo,

Lucifer, qui mane ariebaris?

Corruisti in terram,

Qui vulnerabas gentes?

Qui dicebas in corde tuo:

In caelum conscendam,

Super astra Dei

Exaltabo solium meum;

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Sedebo in monte testamenti,

In lateribus aquilonis;

Ascendam super altitudinem nubium,

Similis ero Altissimo?

Verumtamen ad infernum detraheris,

In profundum laci.

(VULGATA, p.690)

Harold Bloom, em seus Presságios do milênio, ao discutir angiologia, tece

esclarecedor comentário sobre a construção do diabo na Bíblia cristã quanto à passagem

ensejadora da presença dele fragmento presente na poesia de Gregório:

Embora seja sempre surpreendente compreender que na Bíblia

hebraica não há anjos caídos, eles na verdade não são uma idéia

judaica durante o longo período de composição da Bíblia. O

Satanás do livro de Jó é o ―adversário‖, ou advogado de acusação,

um servo de Deus em boa posição, e de nenhum modo mau.

Também em Isaías 14:12-15, quando o profeta canta a queda de

Helel bem shahar, a estrela da manhã, a referência indubitavelmente

é ao rei da Babilônia, e não a um anjo caído como tem acreditado

intérpretes católicos. (BLOOM, 1996, p.53)

A versão bíblica discutida por Bloom, a do Rei James, é substituída pelo

tradutor da reflexão do crítico Américo em Presságios pela do Padre João Ferreira de

Almeida pelo tradutor. Na edição publicada pela British and Foreign Society, lê-se o

trecho acima, na tradução da majestade, e constata-se tendência similar à da Vulgata de

levar o texto original à interpretação reprovada por Bloom:

Howart thou fallen from heaven, O Lucifer, son of the morning!

how art thou cut down to the ground, which didst weaken the

nations!

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For thou hast said thine heart, I will ascend into heaven, I will

exalt my throne above the stars of God: I will sit also upon the

mount of congregation, in the sides of the north:

I will ascend above the heights of the clouds; I will be like the

most High.

Yet thou shalt be brought down to hell, to the sides of the pit.

(JAMES VERSION, p.724)

O crítico americano, antes de seguir refutando interpretações e traduções da

Bíblia hebraica, elaboradas para adequação da tradição judaica à teologia cristã, segundo as

quais nela existe a noção de anjos caídos, assim amplia seu comentário ao fragmento

transposto acima: ―por mais magnífico que seja o estilo do Rei James, distorce radicalmente

o texto hebraico, uma vez que ‗Lúcifer‘ quer dizer apenas o ‗Luzente‘, e ‗inferno‘ é um

tanto diferente de ‗Sheol‘, uma espécie de Hades‖ (BLOOM, 1996, p.53). A apropriação da

passagem de Isaías realizada por Gregório de Matos aproxima-se da tradição católica

combatida por Harold Bloom, a da Vulgata e a do Rei James, segundo as quais o profeta

profere palavras dirigidas ao líder dos anjos caídos, o responsável pela entrada do mal no

mundo criado por Deus para deleite do homem. A Bíblia de Jerusalém é mais coerente à

tradição hebraica que essas duas quanto à abordagem de Bloom às palavras do profeta, pois

seus tradutores reservam-se ao recurso de lançar mão de nota para apresentar a leitura da

tradição cristã para os versos (diga-se que na BJ trata-se de parte de um poema o fragmento

comentado), deixando no texto as marcas geradoras de polêmica: ―estrela d‘alva, filho da

aurora‖, ―Xeol‖; diferente da versão da Vulgata e da versão do Rei James: Lucifer, infernus

e ―Lucifer‖, ―hell‖, respectivamente, para verter do original os trechos polemizados por

Bloom. O cotejamento da tradução da BJ para o trecho (quanto ao aspecto discutido) com

a construção textual da Bíblia hebraica ―baseada no hebraico‖, elaborada por David

Gorovits e Jairo Fridlin (2006), publicada pela editora Sêfer, evidencia similaridade entre

as versões:

Como despencastes do céu, ó estrela da manhã, filho da aurora!

Como foi derrubado por terra o que ditava sortes sobre as

nações!‘

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E tu, que dizias no teu coração: ‗ascenderei aos céus; acima das

estrelas de Deus exaltarei meu trono; sentar-me-ei sobre o outeiro

da assembléia, do lado mais extremo do norte; subirei acima das

nuvens; seu como o altíssimo‘. Entretanto, ao shéol foste trazido,

ao mais profundo do abismo. (BÍBLIA HEBRAICA, p.407)

Os versos de doze a quinze do capítulo quatorze do Livro de Isaías, comentados por

Bloom e acima registrados, foram traduzidos nesta última versão, como visto, com a

preservação do texto de se destinar à consolidação da leitura cristã para o fragmento como

referência a um chefe de anjos caídos e ao seu local de habitação. Segundo o verso nove do

capítulo quatorze dessa tradução de influência judaica, shéol é ―a terra dos mortos‖, com

―subterrâneos‖, onde seres podem interagir.

Lúcifer é o ―decrépito invejoso‖ do poeta das oitavas compostas em louvor ao

político referido no texto elaborado por ocasião de seu aniversário. Somente uma

consciência diabólico-poética para tecer uma ironia de refinamento literário como a

subjacente aos versos. Lúcifer, pois, conforme deseja o poema, se posicionaria abaixo do

homenageado, sentado como deverá permanecer onde, o dragão, a antiga serpente, o

diabo, o Satanás, como vai dito por João no Apocalipse, desejou um dia ficar. O poeta das

décima em louvor ao político oferece-lhe o encômio de desejar-lha a blasfêmica posição de

estar onde Deus não permitiu Lúcifer atingir.

Após a digressão pelas origens do mal segundo a tradição cristã presente na

poesia de Gregório de Matos, antes do retorno ao diálogo alma com o demônio, perceba-se

que a presença do diabo na poesia de Gregório tanto ocorre pelo chamamento de um dos

seus nomes, quanto de modo mais sutil, pelo artifício da intertextualidade somente

recuperável pela leitura em filigrana de outros textos para fazer do poema gregoriano uma

obra mais rica literariamente. Consta, então, na última estrofe, como o demônio ergue a

palavra final em franco ataque aos males interiores experimentados pela alma em sua sede

insaciável e insaciada de viver:

Demônio

Se a tua culpa merece

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do teu Deus a esquivança

folga no mundo, e descansa,

que o arrepender aborrece:

se o pecado te entristece,

como já em outros vi,

te prometo desde aqui,

que os mais da tua facção,

e tu no inferno dirão,

Bangüê, que será de ti?

(OC, I, p.75)

O demônio encerra seu diálogo com a alma, estabelecendo duas relações

condicionais cuja implicação consiste sempre em razão para reprovar qualquer expressão

de senso de desajuste sentido por ela se entregar à vida. Ou Deus levará nada em conta e o

arrepender-se é tão somente um aborrecer ou o destino certo há de ser mesmo o inferno o

católico destino de quem seja tragado pelo demônio?) e nada há para ser feito, conforme se

percebe na relação tautológica estabelecida pelo demônio quando de sua abstração

inferencial do diálogo estabelecido com a alma explicitada para terminá-lo. O fato de Deus

esquivar-se do aborrecimento de dar ouvidos às confissões de culpa sofrida pela alma e o

fato de o pecado vir a entristecer a alma são condições suficientes para a alma se lançar aos

prazeres e, respectivamente, para ela ser lançada no inferno. A entrega à folga no mundo,

assim como a promessa de ver lançada no inferno da lamentação, como incentiva e garante

o demônio à alma, são condições necessárias provenientes da esquivança de Deus e do

entristecimento possivelmente experimentados pela alma. As relações lógicas em tom

cultista e conceptista, construídas pelo demônio, implicam a defesa da normalidade na

presença de dualidade no drama humano frente às pressões sócio-coercitivas caras ao

regramento e contrárias ao saciamento das propensões humanas naturais à fruição; bem

diferente da verdade monológica dada pela religião.

Poder-se-ia imaginar uma encenação para o dramatizável diálogo: uma alma

vivente, um ―homem-hÚMUS‖ (como chamou Deus ao homem, segundoa tradução de

Haroldo de Campos em seu Tríptico bíblico), angustiadamente orando a Deus, em um

tom de ―peco, mas não gosto‖, embora prossiga pecando; enquanto o demônio somente se

deleita em convalidar os atos considerados errôneos para completar a cena sem a alma-

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homem saber o quanto satisfaz ao sadismo do Demônio seu íntimo estado espiritual. O

demônio, nesse exercício de imaginação interpretativa, também não saberia o quanto sua

interação com a alma constitui-se como cômica. As definições teóricas apresentadas por

Harold Bloom para comentar a expressão literária de J poderiam inspirar uma leitura

dramática construída para o poema de Gregório:

ironia remete à palavra grega eirom, ―dissimulador‖, e nossos

dicionários ainda seguem a tradição grega ao definir a ironia

primeiramente como socrática: uma fingida ignorância e

humildade com o objetivo de expor as inadequadas suposições de

outros através de um hábil questionamento dialético. [...] Outras

duas significações mais amplas da ironia literária [...] são: o uso da

linguagem para expressar algo diferente do suposto sentido literal,

particularmente o oposto de tal sentido, e também o contraste ou

distância entre expectativa e realização. Uma coisa mais próxima

de J é o que chamamos de ironia dramática ou mesmo ironia

trágica, que é a incongruência entre o que se desenvolve num

texto teatral ou numa narrativa e o efeito daquilo que se

desenvolve nas palavras e ações adjacentes que são compreendidas

de maneira mais completa pelo público ou pelos leitores do que

pelos personagens

(BLOOM e ROSEMBERG, 1992, p.38)

A ironia dramática recuperável em Gregório de Matos depende de um

exercício de imaginação capaz de perceber uma oração mais engrandecedora do demônio

do que de Deus. Um demônio, ou o demônio, invisível, suspenso no ar, soprando ao

ouvido da alma vivente, falando-lhe ao íntimo do coração, enquanto ela resiste a si, a uma

parte de si, ao seu daimon, responsável por mostrar-lhe tão somente verdades sobre (e as

possíveis implicações de) sua forma de estar no mundo. A alma, incapaz de entender-se a si

mesma e ao acontecimento no qual está envolvida, é perfeitamente compreendida pela

platéia expectadora de seu drama dramatizado. O demônio, numa leitura assim, mais

mostraria sua face cômica, talvez com um riso delineado com ares de bufão feroz, de

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aliciador trapaceiro e de sedutor , em regozijo por ter sob sua influência uma alma entregue

por si mesma aos deleites gozoso-diabólicos da vida, do que uma face má, assustadora

propriamente dita. Após o embate, ao longo do códice de James Amado, o demônio é

somente referido, ouve- se seu timbre em apenas mais um poema. Fora isso, somente vê-se

a imagem muda do diabo, pintada pela mão de Gregório de Matos à medida que seu pincel

vai dando forma aos versos nos quais o justapõe com Deus.

Deus e o diabo existem, seja como seres materiais habitantes de dimensões

inacessíveis ao homem, seja na imaginação humana, seja como construções literárias, daí a

importância do estudo acadêmico dessas duas figuras por demais difundidas no ocidente e

da divulgação de tais estudos. A presença da Bíblia em Gregório de Matos, com remissão

equânime a Deus e ao diabo, garante uma constate capaz de dar unidade à obra do poeta.

As páginas acima haverão de ser um passo a caminho da construção de uma análise crítica

de tal presença. Harold Bloom confessa viver sonhos angustiantes com Javé por se

encontrar ao procurar por ele; Peter Stanford comenta experimentar sinestesias

provocadas por estudar o diabo. De sua parte, o autor deste parágrafo não sonha com

Deus, nem sente o diabo, mas, pela convivência com Gregório, tem sentido o deleite do

riso lascivo diabolicamente nascido como reações ao contato com os Deuses e com os

diabos de sua poesia. De toda forma, buscar Javé e estudar o diabo implica descobrir a si

mesmo, conforme mostram Bloom e Stanford, inescapável consequência sofrida por um

estudante marcado pela influência do protestantismo fundamentalista da Igreja Adventista

do Sétimo Dia. Harold Bloom em Presságios do milênio cita o mormismo com a mais

americana de todas as religiões e menciona o adventismo (2006, p.23 e p 12), diga-se: outra

religião pode ser tão apocalíptica quanto a dos adventistas do sétimo dia, mas nunca mais

do que ela alguma o é, e mostrar como o pensamento religioso evolui do apocalipse ao

gnosticismo (2006, p.33), percepção religiosa marcada pela leitura estética da vida. Marcado

pela concepção adventista da existência de um ser sobre-humano, um anjo poderoso, o mal

em pessoa, uma personificação do mal, agindo como leão, querendo devorá-lo, trabalhando

para retirar-lhe a coroa da salvação, com capacidade para possuí-lo imperceptivelmente

como o fez a Pedro, o autor destas linhas encontrou no estudo acadêmico auxílio para uma

percepção mais madura dessa concepção e encontrou em Gregório de Matos a leveza

cômico-criativa para se tratar do diabo com o respeito que ele merece.

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7. METAFÍSICOS OU BARROCOS?

Sandra S.F. Erickson

(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

Surgiu no sec. XVII, na Inglaterra, "uma raça de

escritores que podem ser denominados de poetas

metafísicos". Samuel John, Life of Cowley, 1781.

Nos estudos de literatura inglesa, o termo baroque é praticamente fora de uso; todavia,

isso não significa que a literatura inglesa tenha sido menos influenciada por essa estética do

que as demais literaturas européias. Estudiosos de Literatura Comparada como René

Wellek (1903-1995) já traçaram considerações no sentido de defender que a tradição

poética referida como ―metafísica‖ representa a vertente inglesa do barroco (1946). Após

providenciar uma breve caracterização do barroco, discutiremos a pertinência dessa linha

de pensamento tendo como contexto a poesia de dois poetas representativos dessa tradição

metafísico-barroca, John Donne (1572-1631) e Andrew Marvell (1621-1678), ressaltando a

presença de recursos tipicamente barrocos como as marcas mais notáveis de suas poéticas.

Depois, mostraremos como a poética de Augusto dos Anjos (1884-1914) se afilia a essa

linhagem poética.

I.

O barroco atraiu a atenção de notáveis críticos e teóricos como T. S. Eliot (1888-

1965), Georg Lukács (1885-1971), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Walter Benjamin (1892-

1940), Theodor Adorno (1903-1969), Ernest Bloch (1885-1977) e Gilles Deleuze (1925-

1995). Do ponto de vista da apreciação crítica das qualidades estéticas e ideológicas no

movimento, nossa época tem produzido substanciais reflexões sobre o significado do

barroco na história da Arte e, para usar uma expressão de Hegel, na dialética da história.

Por exemplo, as reflexões de Walter Benjamin e Adorno nos desafiaram a ver certas

técnicas barrocas tradicionalmente tratadas como grotescas porque representam uma

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fragmentação des-conforme das formas clássicas, como processos naturais de

representação de uma visão de mundo que não mais se con-formava (ficava na forma) com

as anteriores. Ou seja, o que chamamos barroco já representa a modernidade. Pelo

interesse temático em investigar a condição humana, Lukács aproximou o barroco do

existencialismo. Mais recentemente, Deleuze em A dobra: Leibniz e o barroco (1988)

desenvolve uma definição de barroco como cisão, dobra, diferenças não antagônicas entre

duas dimensões e, assim, considera o barroco como uma tentativa de reconstruir, e não

desafiar, a razão clássica. Não nos interessa aqui entrar no campo discursivo da teoria das

formas barrocas, mas apenas pincelar algumas de suas características mais marcantes, com

as quais tentaremos argumentar que a designação de poetas/poesia metafísica na literatura

inglesa, é um missnomer [designação errônea] porque essa vertente estética é, na verdade, o

barroco inglês.

Não é preciso uma incursão teórica muito estendida para se verificar 1. a existência

do barroco na literatura inglesa; 2. a relação direta entre a estética barroca e a poesia

geralmente denominada metafísica produzida na Inglaterra no sec. XVII; 3. o predomínio

da poética barroca na poesia de John Donne e Andrew Marwell e 4. o link entre essa

linhagem (barroca) e Augusto dos Anjos.

Veja-se a definição do termo barroque encontrada no Webster Dictionary:147 ―relacionado

ou tendo as características de um estilo artístico prevalecente especialmente no sec. XVII,

geralmente marcado pelo uso de formas complexas, ornamentação audaciosa, e

justaposição de elementos contrastantes, muitas vezes oferecendo um senso dramático,

movimento e tensão; caracterizado pelo grotesco, extravagante, complexidade ou

extravagância, amostração, irregularmente formato‖148 [nossa tradução].

A definição de barroco do importante crítico M. H Abrams para o Glossary of Literary

Terms (1993) repete os mesmos paradigmas: "termo aplicado por historiadores da arte para

o estilo de arquitetura, escultura e pintura que se desenvolveu na Itália no final do sec. XVI

e início do sec. XVII e se espalhou para a Alemanha e outros países da Europa. O estilo

147

Essa mesma fonte refere que a palavra vem do português, barroco, significando pérola de formato

irregular: ―from Portuguese barroco irregularly shaped pearl‖ (ver Merriam-Wesber Dictionary online). 148

―of, relating to, or having the characteristics of a style of artistic expression prevalent especially in the

17 th century that is marked generally by use of complex forms, bold ornamentation, and the

juxtaposition of contrasting elements often conveying a sense of drama, movement, and tension;

characterized by grotesqueness, extravagance, complexity, or flamboyance; irregularly shaped.‖

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emprega a forma clássica da Renascença, mas quebra-a, misturando-a para alcançar efeitos

elaborados, grandiosos, energético, e altamente dramático."149

Imbic Buffum ressalta que, para quem o estilo barroco é uma exibição consciente

(alerta) tanto da beleza quanto do terror encontrados na diversidade dinâmica do mundo

acompanhado de um prazer quase perverso no choque, mas motivado pela esperança do

triunfo de valores elevados. Ressalte-se ainda o gosto pela teatralidade e dramaticidade dos

poetas e artistas barrocos, como aponta Rolf P. Lessennich em The ‗Metaphysicals‘:

English Baroque Literature in Context (2001). Provavelmente por causa da influência da

pintura e arquitetura, os textos barrocos são, como nota Lessennich, distintamente

pitorescos e el gran theatro del mundo é um tema e letmotif favorito do artista barroco. ―As

igrejas barrocas eram esplendidamente desenhadas como theatrum sacrum.‖ Definindo o

período barroco como uma era "em que não somente teologias, filosofias e contraditórias

visões da história tiveram que ser encaradas,‖ Lessennich sugere que, diante desses novos

paradigmas, a mentalidade barroca também teve que dar conta (se acomodar) a um mundo

cujo centro tinha se perdido, e onde o excesso e a excentricidade se tornou a norma.

Assim, a estética do excesso, desproporção, distorção, monstruosidade e estupendo se

tornaram a assinatura do Barroco. ―Foi lá,‖ Lessennich afirma com grande percepção, ―que

a substituição da religião pela arte começou.‖150

Talvez é inadequado o tratamento de dimensões e da expectativa do receptor da arte

no Barroco (em que ele fica diminuído), como grotesco porque procura ―domar‖ o campo

de visão do ―expectador‖ da arte. A partir do tratado Philosophical Enquiry into the Origin of our

Ideas of the Sublime and Beautiful (1757), do filósofo inglês Edmund Burke (1729-1797), essa

característica do objeto de arte de ser estupendo, no sentido de se apoderar do olho

observador, fazendo-o pequeno (buscando mesmo aterrorizá-lo), é apontada como sublime

e nela o romantismo ―pegou carona.‖

As definições e características acima apontadas são aplicáveis ao estilo e estética dos

poetas ingleses conhecidos como metafísicos. Esses poetas ainda se destacam pelo uso

abusivo de figuras de linguagens e de pensamento (tropos) comumente associadas ao

149

"Term applied by the art historians to a style of architecture, sculpture and painting that developed in

Italy, in the late sixteenth and seventeenth century, and then spread to Germany and other countries of

Europe. The style employs the classical form of Renaissance, but breaks them up and intermingles to

achieve elaborate, grandiose, energetic, and highly dramatic effects."

150

Todavia, note-se que essa supervalorização da Arte no Barroco se deveu a uma tentativa neoplatonista

de utilizar a arte como meio de contemplação divina e, assim, de salvação.

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barroco, tais como, conceit,151 emblema, paradoxo, hipérbato, lítotes, hipérbole, antíteses,152

trocadilhos de diversas configurações cujos resultados retóricos pode se considerar

grotesco no sentido de desarmônico, não-natural.

Além das características elencadas acima são ainda relevantes: o uso de imagens

matemáticas (geométricas e numerológicas) abundantes em Marvell e Augusto dos Anjos; a

representação distorcida de objetos, percepções e afetos; a captura (em temas e imagens) de

um mundo cujos processos (ou desdobramentos como argumenta Deleuze) caminham

para a decadência como condição necessária para seu renascimento, para o retorno a um

estado primevo (talvez de inocência, harmonia e ordem). Essas características se relacionam

com a filosofia neoplatônica que sustentava a cosmovisão barroca.

Tal cosmovisão se manifestou nos textos através de abruptas aberturas (em termos

da retórica do discurso). Nelas se questionavam os cenários do mundo em termos de

tempo e espaço, agenciando para a discussão imagens exóticas, inusitadas onde temas

radicais (possibilidades e limitações do mundo fenomenal e da matéria) buscavam a

imaginação e o raciocínio do leitor ou do expectador da arte. Por isso, os artistas utilizavam

paradoxos, deslocações, e a estrutura argumentativa que se chamou conceit—imagens que

misturavam coisas (aparentemente) dissimilares conscienciosamente. O poeta reagia ao

inusitado do mundo, com uma eloqüência áspera e vigorosa. Sua tensão sintática,

combinada com ritmos e dramas da fala e da vida cotidiana, se insurgia contra a suavidade

polida da poesia elizabetana convencional. A poesia dos metafísicos foi muito diferente da

dos outros poetas de seu tempo e desde então. Esses poetas ficaram relegados ao canto do

cânone até que Gerard Manley Hopkins (1844-1889) chamou a atenção da crítica para os

processos barrocos empregados por essa geração de poetas, provocando interesse editorial

na produção dos poetas barrocos—ups! metafísicos. Hopkins (talvez) não por coincidência

foi um padre católico.

Como observa Augusto de Campos,

151 Do inglês médio (que perdurou do sec. XI até meados do XV) e Latin concipere, conceit significa to take in, introjetar, ―conceber;‖ talvez traduzido em português como ―conceito,‖ o conceit, é uma metáfora

elaborada construída através da justaposição de coisas ou imagens incomuns com as quais o poeta busca,

através de sua própria complexidade lógica surpreender o leitor, convidando-o a um entendimento mais

sofisticado/complexo do objeto. 152

Tipo de paradoxo complexo em que dois termos opostos são colocados juntos não na intenção de

estabelecer uma oposição, mas apenas para estabelecer um paralelismo, como antítese, com a diferença de

que nesta, a intenção é de ressaltar a diversidade ou mesmo divergência dos termos.

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o que se condena, com esse ritual eufemístico [sic], nos poetas

‗metafísicos‘ é, na verdade, a intervenção do pensamento, do

raciocínio, ou mais ainda, da racionalidade, onde pareceria lícito usar

apenas da emoção e do sentimento: condena-se em resumo, uma

poesia dirigida mais ao cérebro que ao coração (CAMPOS, 1988, p.

125).

Todavia, seria mais acertado, como veremos na discussão dos poemas de Donne e

Marvell, considerar o raciocínio como método de composição dos textos (poemas)

barroco. No que se refere à busca do pensamento, e não do pathos, o barroco tem

afinidades com a poesia órfica, dos poetas gregos antigos, como Píndaro, em cuja poética

se encontra já a utilização de esquemas em que temas cotidianos e seculares, como a

celebração da vitória dos atletas nos jogos olímpicos serviam apenas como pano de fundo

para o interesse do poeta de celebrar o sagrado e providenciar reflexões sobre o modo de

existência dos humanos durante o exílio terreno (vida). Estreitamente influenciadas pelo

neoplatonismo medieval e renascentista, que via a arte como ponte entre o sagrado e o

profano (humano) e que acreditava na arte como método, tecnologia de resgate do elo

entre o homem e o sagrado, a poesia barroca buscava produzir uma purgação do

expectador. E, tal qual a concepção dos metafísicos ingleses, tinha um sentido espiritual—

era mesmo uma pedagogia mística, que pretendia usar a arte para realizar a catarse, a

purgação da parte material imiscuída no homem.

Os recursos barrocos na poética de Donne

Vemos esse ―kit‖ barroco no soneto Death be not proud [Morte, não seja orgulhosa], da

coletânea Poems (1633) hoje em dia colecionado como Holly Sonnets (Sonetos sagrados).

Composto no modo retórico de persuasão chamado de ―logos,‖153 o poema se afilia a um

gênero retórico, silogismo, que é também um tropo ou figura de pensamento

argumentativo empregado na filosofia. Silogismo é um termo grego que significa "conexão

153 Há ainda dois outros modos retóricos persuasivos: ethos (que utiliza argumentos da ordem moral) e

pathos (que utiliza argumentos que apelam aos sentimentos); pathos é o modo utilizado na poesia

clássica, contra o qual os barrocos/metafísicos se rebelam.

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de idéias", "raciocínio," "cálculo," medição de argumentos e idéias através do qual se pode

determinar, pelo exame minucioso do desenvolvimento do argumento, a validade e /ou

pertinência das premissas.

Logo na primeira linha a voz lírica, confronta a morte, através da lítotes (hipérbole

em reverso que emprega o exagero para diminuir):

―Morte, não se orgulhe, apesar de alguns chamarem-te Todo-

Poderosa e aterrorizadora, pois não o és/ Já que aqueles aos quais

pensas ter vencido, / Não morrem, pobre Morte, e, ainda mais, não

podes tu matar-me.‖

[Death, be not proud, though some have called Thee/ Mighty and

dreadful, for thou art not so/ For those whom thou think'st thou

dost overthrow, / Die not, poor Death, nor yet canst thou kill me.]

Nesses versos, vemos a figuração e temática audaciosa do poeta confrontando a condição

humana de temporalidade e espacialidade, através da criação de uma duplicidade, em vês de

oposição, entre os estados de vida/viver e morte/morrer. A voz lírica diminui o poder da

morte afirmando, no modo imperativo, que a morte não pode matar; ou seja, a morte não

pode exercer seu poder próprio, a saber, o de tirar a vida, de pessoas em geral e menos

ainda a do poeta. O poeta personifica a morte para, assim, colocá-la em pé de igualdade

ontológica com o homem e torná-la vulnerável.

A voz lírica segue ―calculando‖:

Do descanso ao sono, os quais são somente teu retrato

Mais prazer; então, de ti, muito mais há de fluir

E logo nosso melhor homem contigo irá

Descanso de seus ossos, e libertação da alma

[From rest and sleep, which but thy pictures be, / Much pleasure;

then from thee much more must flow, / And soonest our best men

with thee do go, / Rest of their bones, and soul's delivery].

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Aí, vemos a sintaxe intrincada em que é preciso estar-se atento para a identificação

do sujeito das orações (ora a Morte, ora morte, ora a voz lírica, ora o ser humano em geral)

e onde estão justapostas as condições de dormir, descansar e morrer e ainda em que morrer

significa deixar de estar no mundo (como o concebemos). A voz lírica tenta humilhar a

Morte por atribuir-lhes funções benéficas e, portanto, altamente desejáveis, de descanso e

sono, e ainda por chamar a atenção para o fato de que é aos ossos (corpo material) que tais

efeitos ―mortíferos‖ se destinam. Assim, Donne consegue criar um corpo que não

sucumbe à morte que é justaposto ao corpo, o qual é objeto apenas de uma maneira

limitada (de acordo com o poema), da Morte. A morte é, ainda, segundo a voz lírica, um

processo secundário, dispensável, quase inútil. O poema caracteriza o ―discurso‖ da Morte

como falacioso porque é logicamente inconsistente, uma vez que não pode provar o que

alega, a saber, que possui, realmente, o poder próprio e distinto de outros de matar.

A voz lírica continua dando combate ao poder da morte através de vários

mecanismos retóricos, por exemplo, utilizando a apóstrofe como eufemismo e, ao mesmo

tempo, paradoxalmente, o disfemismo,154 todos no sentido de diminuir a ―presença‖ da

morte:

Tu escrava és do destino, oportunidade, reis, e homens desesperados,

/ E em veneno, guerra e doenças co-habitas; / E papoula ou

amuletos podem nos fazer dormir igualmente / E ainda melhor do

que teu golpe; por que então te empafas?

[Thou art slave to fate, chance, kings, and desperate men, / And dost

with poison, war, and sickness dwell; / And poppy or charms can

make us sleep as well / And better than thy stroke; why swell'st thou

then?]

154 Disfemismo (ou cacofemismo) é o emprego de expressões depreciativas, sarcásticas em referência à

coisa, no sentido de ressaltar suas características negativas. É oposto ao eufemismo porque este evita

criticar o objeto diretamente, atenuando as qualidades críticas, enquanto que o disfemismo tem a intenção

ofensiva e depreciativa.

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Os atributos próprios da morte são apenas circunstanciais e, assim dependentes do

destino e não da Morte. Ou seja, o que chamamos morte é, na verdade, o efeito de

acontecimentos contingentes e não um ―ser‖ real. O poeta personifica a morte para

destituí-la de...vida.

O poeta conclui proclamando que, ―Passado um passo curto, acordamos

eternamente, / E morte não será mais; Morte tu morrerás‖ (One short sleep past, we wake

eternally, / And death shall be no more; Death, thou shalt die). Note-se, no poema, a

representação engenhosa que os ingleses, a partir do estudo de Johnson sobre os

metafísicos citado acima, chamam de wit—raciocínio a partir de conceitos, muitas vezes

com intenção humorística (satírica) que requer atenção, como o silogismo, para serem

entendidos e apreciados. Nessa última fase do poema o poeta mata a morte—isto é, usa a

catacrese já que ―morte‖ é a designação própria para fim absoluto e, assim, não há uma

palavra própria com a qual se diga que a morte morre. O poema se conclui com um

provérbio155 destinado aos que temem a morte e não à Morte, desde que ela não existe, não

tem realidade última, mas apenas fenomenal. Existe, segundo o poema, como fenômeno da

imaginação—ou da falta de. Não é à Morte que o poema fala, mas aos que a temem, que o

poema tenta matar, assim, o poeta ―prova‖ que Morte, como sujeito não existe. O que

existe é apenas o medo da morte.

Os recursos barrocos na poética de Marvell

To His Coy Mistress (1681) [À sua [dele] Senhora esquiva],156 de Marvel é um poema

totalmente barroco. O texto pertence a um gênero de discurso chamado, em inglês, de plea

155 Frase curta que expressão uma ―verdade‖ cujo sentido é de validade universal.

156 Nossa tradução; optamos pela literalidade para manter, o mais possível, fidelidade ao que diz o poeta.

Há uma tradução de Augusto Campos, À amada esquiva (1988, p. 170-173), onde muitas modificações

foram introduzidas que descaracterizam o imaginário e mesmo o sentido do poema. Por exemplo, começando com o título, o substantivo mistress é o feminino de mister, senhor; e geralmente significa a

senhora da casa, ou senhora que está no comando. A acepção de amante é apenas a quarta em The

Merrian-Webster Dictionary. A omissão do substantivo possessivo, his (seu, no sentido de sua, dele)

também é significante porque ―à amada esquiva‖ tem um sentido geral, enquanto o poeta se refere,

especificamente, a uma amada que é de um ―ele.‖ Esse ―ele‖ não é necessariamente o poeta. Na primeira

linha a voz lírica começa sua ―cantada‖ por ―Had we world enough and time‖ (Tivéssemos mundo

suficiente e tempo) Campos traduz por ―Dessem-nos Tempo e Espaço afora.‖ Portanto, o tempo que tem,

no poema, um sentido mais geral de ser um dado da vida fenomenal e, assim, uma posse natural do

homem, passa a ser, na tradução, algo dado, como uma concessão. ―Afora‖ é também muito diferente de

―suficiente‖ porque enquanto o primeiro dá a idéia de vastidão, o segundo, ao contrário, indica quantidade

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(argumento, apelo) em que se faz uma exposição em apoio de uma causa ou se apresenta

um argumento, justificativa ou desculpa em defensa de uma (provável) acusação. No caso,

a voz lírica apresenta uma desculpa e/ou justificativa para seu discurso sedutor ou sua

proposta amorosa. O poema é um argumento legal (no sentido de jusriprudência) escrito

no modo lírico—o que é radicalmente anticlássico. Há ainda um erotismo desbravado,

implícito, quase até pornográfico desenvolvido num cenário exótico (Ganges, l. 5;

Apocalipse, l. 10) e romântico; a corte amorosa é marcada por uma postura e uma

linguagem direta e agressiva (l. 37-38; 42-43), erótica e grotesca (l. 27-30), mas de um

realismo afinado com o carpe diem e o romantismo dos Cânticos dos cânticos de Salomão (l. 1).

Comentaremos os recursos barroco do poema, indicando alguns dos versos em que

ocorrem para que o leitor possa conferir no poema.

Antíteses e paralelismo: ―Thou by the Indian Ganges‘ side / […] I by the side / of

Humber […]‖ [Tu do lado do Ganges/ […] eu ao lado do Humber [...] (l. 5-7); Ganges é

um dos maiores e mais conhecidos rios da Índia (estrangeiro), importante também

miticamente, pois é um rio sagrado; enquanto que o rio Humber é um pequeno que corre

no norte da Inglaterra (―local‖). Assim esses registros geográficos estabelecem um

contraste enorme entre as duas situações dos personagens do poema, duas geografias e

duas historiografias, duas visões e duas perspectivas sobre o amor.

Hipérbato: ―Had we but world enough and time‖ [Tivéssemos, mas, suficiente

mundo e tempo] (l. 1); enquanto em português o fenômeno da irregularidade gramatical

fica menos evidente, em inglês o adversativo ―but‖ [mas] está completamente fora de lugar.

Esse tropo que funciona a partir dos deslocamentos do sentido operados na sintaxe e,

assim, muitas vezes seu resultado é esteticamente estranho, ―feio.‖ Ele é muito utilizado

pelos barrocos e é citado para argumentar o ―borroquismo‖ em Augusto dos Anjos.

Hipérbole & figuração extravagante: ―My vegetable love should grow/ Vaster than

empires, and more slow‖ [Meu amor vegetal cresceria / Mais vasto que impérios, e mais

devagar] (l. 11); o poeta aí viaja no exagero (ou como, se diz hoje em dia, na maionese); o

qualificativo de vegetal para o amor contrasta (e assim é também uma antítese) a

constituição menos quente, apaixonada do vegetal em relação ao animal, procurando

disfarçar, atenuar (e ai temos uma lítotes) a paixão quente, carnívora do interlocutor. Outro

limitada de tempo e espaço. Esses são apenas alguns exemplos em que a tradução literal poderia e deveria

ser mantida.

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contraste exagerado é entre as dimensões de vastidão e vagareza. Vasto conota intensidade,

amplidão e, assim, de certa forma, rapidez, e vontade (willingness, em inglês) de se seguir um

curso, enquanto que devagar conota graduação, apatia, falta de vontade. Hipérbole e

exagero figurativo marcam também a difícil seqüência: ―agora, vamos gozar enquanto

podemos e agora, como amorosos pássaros predadores vamos nosso tempo devorar‖ (l.

37-39); ―Now, let us sport us while we may; / And like amor‘us birds of prey, / [...] / Let

us roll all our strengh, and all / Our sweetness, up into one ball; / And tear our pleasure

with rough strife‖ [Agora, vamos jogar enquanto podemos/ E, como amorosos pássaros

de rapina, / [...] / Vamos enrolar nossa força, e toda / Nossa doçura, em uma só bola; / E

rasgar nosso prazer com ásperos atritos ( l. 41-43). Marcada pela urgência do presente

(note-se as palavras de ordem ―agora,‖ ―vamos,‖ ―enquanto podemos‖) toda essa

seqüência, além de exagerada é picante. Nela, ainda o estatuto do homem (superior) na

hierarquia renascentistas, vem abaixo quando os amantes, igualados aos animais pela símile,

devem se comportar como pássaros de rapina.

Metalepse: nos versos acima citados, imagens complexas (a bola humana) e

chocantes (amantes como pássaros de rapina) são oferecidas ao leitor, mas também

imagens do rio sagrado da tradição (para usar uma imagem do poema), a saber, o Banquete,

onde Platão descreve os amantes perfeitos exatamente como almas enroladas como uma

bola. Essa imagem também alude ao yang-ying, símbolo oriental da criação e sustentação

perfeita do cosmos fundado a partir de polaridades opostas. Assim essas imagens

constituem/constroem uma grande bola de linguagem, uma metalepse.

Grotesco: ―[...] then worms shall try / That long preserv‘d virginity, / And your

quaint honor turn to dust‖—[...] então vermes experimentarão / Aquela longamente

preservada virgindade, / E tua requintada honra há de virar pó] (l. 27-29); o interlocutor,

que é o amante, utiliza um discurso muito duro e direto, lembrando a sua pleiteada donzela

que, enquanto ela não quer realizar o coito amoroso com alguém que a ama e a valoriza, ela

deixará aos vermes e depois ao pó a preciosa parte. Lembre-se que esse discurso de verme

comendo partes refinadas de donzelas está sendo colocado em poesia no sec. XVII quando

ainda hoje seria de uma agressividade picante. Novamente, Augusto dos Anjos vai trabalhar

esse imaginário de verme de modos não menos radical.

Conceit: ―Thus, though we cannot make our sun / Stand still, yet we will make him

run‖ [Portanto, apesar de que nós não podemos fazer nosso sol / Parar imóvel, ainda

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assim podemos fazê-lo correr] (l. 45-46). A voz lírica então deduz que, os amantes não

podem fazer o sol parar (como o herói bíblico, Josué, Js. 10:13), mas podem fazê-lo correr,

isto é ir para frente. Temos uma prolépse porque a frase dita no presente trás (antecipa) o

futuro, por, imaginativamente, prever o que virá adiante deles: a velhice, a morte da paixão,

o tempo em que toda luxúria do amante se tornará cinza (l. 30). O sol é ainda uma

metáfora (talvez até símbolo, emblema) para vida, paixão. Há ai uma alusão poderosa ao

episódio bíblico em que Josué faz o sol parar para que os judeus vençam os palestinos. O

poema estabelece um tipo interessante de paralelismo com o verso 11, quando a voz lírica

anuncia que cantaria cada parte da donzela ―until the conversion of the jews‖ [até a

conversão dos judeus], que aconteceria no final dos tempos. O mesmo acontece na

continuação do verso da linha 43, ―Through the iron Gates of life‖ [Através dos portões de

ferro da vida]; a voz lírica oferece a analogia entre a passagem da vida (morte) por barras

(portões) de ferro (que podem ser derretidos pelo sol, se seguirmos a indicação da prolépse

acima). Vale notar-se o uso incomum do poeta de iron (ferro) transitando de duro, rígido

para, a partir de sua etimologia (celta *isarnon e Pro-indo-europeu *is-(e)ro-) forte, poderoso,

sagrado e gate, passagem ou abertura; donde podemos construir a idéia de que a morte é

leve e sublime ironicamente contida na idéia da passagem por um portão de ferro (duro,

difícil). Assim, temos um tropo composto de vários outros tropos, característico da

metalepse.

Esperamos ter oferecido ao leitor exemplos suficientes para substanciar nosso

argumento de que as complexidades tropológicas e sintáticas do poema são condizentes

com a estética barroca. Apontamos apenas alguns dos recursos tropológicos barrocos do

poema, cujas quarenta e seis linhas, são densamente construídas, e cuja desconstrução foge

ao escopo desse trabalho.

A virada terminológica

A estética barroca se opunha as regras neoclássicas de claridade, decorum e arranjo

elegante—ou seja, a definição aristotélica de beleza como harmonia e ordem. Para os

barrocos, a coexistência de elementos opostos e/ou antitéticos era ―natural‖—metafísico,

ou seja, além do mundo natural (physis). A desordem e desarmonia que os inspirava

correspondiam ao estatuto do próprio mundo, sendo, portanto, uma ordem natural e

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harmônica porque correspondiam a uma representação naturalista da natureza do mundo.

Os poetas ingleses Donne e Marwell foram denominados metafísicos, seguindo a

caracterização da crítica inglesa desse estilo desenvolvida, principalmente, por Johnson em

Lives of the English Poets (1779-81)157 porque seu tratamento dos temas parecia além do que a

natureza requeria. Por exemplo, tratar a morte como pessoa, discorrer do amor apelando

para o raciocínio, e não a emoção, utilizar a linguagem matemática para exemplificar os

estados da mente. Johnson observa, analisando, derrogatoriamente, a poesia de Abraham

Cowley (1618-1667), como sendo rústica [unpolished], descuidada [careless], que o poeta usa

conceitos absurdos arbitrariamente colocados juntos [abstruse conceits] num tipo de ―discordia

concors,‖ [discórdia concordante], hipérboles, obscenidades (Jonhson se refere à

sensualidade presente na poética desses poetas). Essas características nomeadas por

Johnson correspondem ao barroco encontrado também em muitos outros dos chamados

poetas metafísicos.

Por causa do enorme prestígio intelectual de Johnson (e Dryden) os metafísicos

ficaram depreciados no cânone inglês até o histórico ensaio The Metaphysical Poets (1921)

de T. S. Eliot (1888-1965). Pode ser que os ingleses tenham evitado o termo ―barroco‖ por

causa da associação estreita entre o barroco e o catolicismo. O fato de que poetas

protestantes empregavam técnicas e métodos associados a um gosto estético católico (o

próprio Donne foi um católico convertido) pode ter sido incompreensível ou indesejável

para os críticos ingleses. A vertente protestante conhecida como puritanos que, apesar de

minoritária, influenciou grandemente a vida intelectual inglesa, era especialmente avessa à

representação barroca, tendo, inclusive desenvolvido um estilo conhecido como plain style

(estilo simples [plano] sem ornamentação). Desse modo, a designação ―barroco‖ encontra

resistência, e tem sido somente via os estudos de Literatura Comparada e de teorias pós-

coloniais que a crítica inglesa começa a encarar com boa vontade a inserção de seus poetas

metafísicos na estética barroca: patinhos feios encontram, afinal, seu lago.

Conforme já observamos, o movimento barroco foi mal entendido e mal

representado na crítica inglesa pelos ―pais da crítica‖ John Dryden (1631-1700) e Samuel

Johnson (1709-1784) que consideraram as diferenças na poética barroca como sendo uma

questão de gosto—mal gosto. Subseqüentes críticos continuaram nessa mesma postura

157 Embora o termo metaphysical poet tenha sido utilizado pelo poeta e crítico, John Dryden (1631-1700),

em 1693, referindo-se ao estilo do poeta John Donne, foi o uso de Johnson que o tornou célebre.

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depreciativa desses metafísicos-barrocos até T.S. Eliot, que entendeu essas diferenças como

não apenas no âmbito do gosto ou estilo, mas em termos de representarem uma poética

(no sentido Aristóteles) distinta, ou seja, a estrutura e o conteúdo desses poetas possuem e

postulam uma proposta norteadora ―x‖ vis-à-vis a tradição.

Os principais poetas metafísicos ingleses são, além de Donne, Cowley e Marvell:

George Herbert (1593–1633), Saint Robert Southwell (c. 1561–1595), Richard Crashaw (c.

1613–1649), Thomas Traherne (1636 ou 1637-1674), Henry Vaughan (1622–1695), George

Chapman (c. 1559–1634), Thomas Carew (1595–1640), Edward Herbert (1583–1648),

Richard Leigh (1649 ou 50-1728), Katherine Philips (1632–1664), Sir John Suckling (1609–

1642), Edward Taylor (c. 1642–1729), Anne Bradstreet (c. 1612–1672), John Wilmot, 2nd

Earl of Rochester (1647–1680).

Uma viagem nos tropos: Augusto dos Anjos & a linhagem de Donne & Marvel—ou seja,

do barroco inglês

É mister observar-se que, em termos de estilo, a poética de Augusto dos Anjos é rica

em processos e recursos barrocos geralmente discutidos sobre o código ―grotesco.‖

Todavia, essa poética é, do ponto de vista de sua tropologia interna, consoante com a

poesia grego-romana, especificamente com a poesia lírica cujos temas clássicos de pathos é

amor e morte. O poeta desenvolve esses temas através de um imaginário construído em

uma tropologia fundada na literatura clínica sobre a morte, no evolucionismo de Darwin e

outras teorias científicas contemporâneas cujos vocabulários e conteúdos programáticos

poderiam ser perfeitamente utilizados, de um modo muito ―avanguarda‖ e modernista,

como análogos a tradições poéticas anteriores, como o neoplatonismo e o orfismo, que

também tinham sido retomados pelos metafísicos ingleses e os graveyard poets158. No

imaginário de Augusto dos Anjos, verme é um substituto metafórico para poeta, uma vez

que o poeta tardio compõe a partir de um processo de decomposição de sua herança

tropológica, a qual ele tenta recriar por retropologização. É nesse sentido que O Deus-Verme

se refere à matéria morta (acabada) legada como a ―herança rica,‖ cuja melhor porção

158 Grupo de poetas ingleses pré-românticos do sec. XVIII cujos temas eram meditações sobre a

mortalidade, desenvolvido através de um imaginário povoado por cemitério, caveiras, caixões, vermes.

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caberá aos filhos (seus descendentes poéticos) os quais poderão se deleitar no banquete da

―arca ancestral de palimpsestos‖.

Dessa perspectiva, na poética de Augusto dos Anjos, os elementos radicais que são

geralmente tratados como rupturas dissonantes, extravagantes mesmo, são tropos bem

sucedidos que realizam a ―mentira contra o tempo‖ e o swerve do poeta sobre seus antecessores

poéticos. Nesse sentido, o verme e os processos de decomposição tão característicos de seu

imaginário (e tão simbólico de sua radicalidade e originalidade) barroco são tropos através

dos quais ele trabalha/batalha por seu lugar no cânone (busca integrar-se, acomadar-se,

tornar-se consoante ao fluxo da tradição). O mesmo acontece com Donne em Death be not

proud e Marvell em To His Coy Mistress, onde verme é um agente negativo e a cova um lugar

indesejável:

[…] then worms shall try

That long preserv'd virginity,

[…]

The grave's a fine and private place,

But none I think do there embrace. (l. 27-32).

[...] então vermes experimentarão

Aquela longamente preservada virgindade

[...]

A cova é um lugar fino [legal, ok] e privado

Mas ninguém, eu penso, lá se abraça.

Augusto dos Anjos torna o verme um agente produtivo e a cova um lugar de

fertilidade biológica e poética, aproveitando as possibilidades semânticas da língua: cova =

lugar de plantar novas sementes; de morte e, ao mesmo tempo, de

nascimento/renascimento; possibilidade de encontro, de um poeta abraçar outro ―de uma

caveira para outra caveira‖ (Idealismo), assim, invés de marcar o fim das possibilidades

(como em To His Coy Mistress), ironicamente, cova é o ponto de encontro onde o rito de

passagem do poeta maduro se realiza. O significante ―cova,‖ em português, permite ao

poeta o swerve que Marvell não podia acessar em grave (do inglês antigo græf, grafar; mais

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tarde associado a grafan, do alemão grab, grave significa gravar e só mais tarde adquiriu o

sentido de to dig, cavar). O sentido carpe diem de Marvell é apropriado por Augusto dos

Anjos em termos de superar a maldição do tardio: ―seize [apoderar] o material.‖

A analogia direta que Augusto dos Anjos estabelece entre verme e poeta é

repugnante do ponto de vista da representação clássica, mas extremamente eficiente em

termos de ―economia poética.‖

Considerações finais

Um dos aspectos ressaltados na estética barroca é seu drive (pulsão) por originalidade

e individualidade, em outras palavras, o desejo do artista de ficar a sós com a Mãe-Musa, a

linguagem. Talvez o motor dessa pulsão seja o fenômeno identificado por Harold Bloom

como ansiedade da influência. A luta agonística por um lugar no cânone leva os poetas a

experimentarem, especialmente sob uma tropologia que é muito barroca: metáforas

complexas (conceits e metalepse), metonímias, hipérboles, sinestesia, cacofonia. Os críticos

ingleses talvez tenham resistido à terminologia ―barroco‖ para seus poetas metafísicos

numa tentativa de colocar, num patamar diferenciado, sua poesia, num tempo em que seu

destino canônico era duvidável em relação ao lugar consolidado da poesia grego-romana.

Seja como for, fica óbvio que, apesar de terem conseguido criar uma poesia distinta e

singular, os poetas metafísicos ingleses são barrocos de carteirinha. Fica também claro que

há uma relação genealógica entre seus processos, seu imaginário e temas poéticos e os de

Augusto dos Anjos.

Referências

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1993.

BLOOM, Harold. A angústia da influência: Uma teoria da poesia. 2ª ed. Trad. Marcos Santarrita.

Rio de Janeiro: Imago, 2002.

CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1988.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. São Pualo: Papirus, 2007.

ERICKSON, Sandra S. F. A melancolia da criatividade na poesia de Augusto dos Anjos. João Pessoa:

Editora Universitária, 2003.

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LESSENICH, Rolf P. The "Metaphysicals": English Baroque Literature in Context.

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OPPENHEIMER, Max, Jr. Tendencies and Bias in Baroque Literary Studies. The Modern

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WELLEK, René. The Concept of Baroque in Literary Scholarship. The Journal of Aesthetics and Art

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WELLEK, René. The Concept of Baroque in Literary Scholarship and Postscript. In Concepts of

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