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Anais Enio

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Poemas traduzido de Enio.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    EVERTON DA SILVA NATIVIDADE

    Os Anais de Quinto nio:estudo, traduo e notas

    So Paulo2009

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    Os Anais de Quinto nio:estudo, traduo e notas

    Everton da Silva Natividade

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas

    do Departamento de Letras Clssicas e Vernculasda Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    da Universidade de So Paulo,para o obteno do ttulo de Mestre

    em Letras Clssicas.

    Orientadora: Profa. Doutora Zelia Ladeira Veras de Almeida Cardoso

    So Paulo2009

  • RESUMO

    Os Anais de Quinto nio: estudo, traduo e notas

    Este trabalho apresenta a traduo dos fragmentos suprstites do poema pico Anais de

    Quinto nio (239 ca. 169 a. C.). Uma seo introdutria trata de discutir o que se sabe

    sobre o poeta, partindo das citaes dos autores antigos que a ele se referiram. Faz ainda parte

    dessa seo inicial um estudo sobre os Anais, observando o poema segundo as vises dos

    antigos e tambm de acordo com o que hoje, na forma fragmentria em que chegou a ns,

    cujo elemento unificador se centra no trabalho filolgico de crticos de todo o mundo.

    O cerne do trabalho consiste na traduo e anotao dos 420 fragmentos tomados edio

    italiana de Valmaggi (1945). Os comentrios se baseiam sobretudo nas reflexes de Skutsch

    (1985), Steuart (1976), Warmington (1988) e Vahlen (1967), partindo da contextualizao de

    cada fragmento, assinalando o tema a que esteja ligado e, por conseguinte, explicando por

    que tal fragmento foi includo no canto de que faz parte. Em seguida, ocupamo-nos de

    analisar o fragmento, ressaltando motivaes estilsticas e empregos lingsticos, em busca

    do significado do texto-fragmento, o que se faz com o uso de recursos diversos, como o

    auxlio de diferentes dicionrios, a comparao da mesma palavra em distintos fragmentos

    dos Anais ou de outras obras enianas, ou ainda o estudo do emprego de uma palavra em

    contextos semelhantes de outros autores, ou em diferentes contextos de autores

    contemporneos de nio.

    Palavras-chave: Anais; Quinto nio; pica; fragmentos; traduo

  • ABSTRACT

    The Annals of Quintus Ennius: study, translation and notes

    This thesis presents the translation of the remaining fragments of the epic poem

    Annals by Quintus Ennius (239ca. 169 BC). An introductory section discusses what is

    known about the poet, taking the ancient authors quotes that refer to him as a starting-point.

    In this initial section a study on the Annals is also included; it observes the poem according to

    the ancients point of view and to what it is today, in the fragmentary form in which it has

    come down to us, the philological work of critics from all over the world being its unifying

    element.

    The kernel of this text consists of the translation and commentary of the 420

    fragments taken from the Italian edition of Valmaggi (1945). The comments are based

    primarily on the contributions of Skutsch (1985), Steuart (1876), Warmington (1988) and

    Vahlen (1967), and the contextualization given to each fragment, since such procedure aids

    and enables my search for the theme it is connected with and thus explains why each

    fragment was included in the book it is part of. I then analize the fragments one by one, mark

    its stylistic motivations and linguistic uses, and search for the meaning of each text-fragment,

    which is done through diverse resources, such as the help of different dictionaries, word

    comparison in distinct fragments either of the Annals or other Ennius works, and the study

    of a words usage in similar contexts found in other authors, and in different contexts of

    Ennius contemporary authors.

    Keywords: Annals; Quintus Ennius; epic; fragments; translation

  • CCILI ME,

    magistrae primae,

    sine qua non.

  • SUMRIO

    Agradecimentos ................................................................................................................ p. i

    Consideraes iniciais ....................................................................................................... p. 1

    Quinto nio ....................................................................................................................... p. 3

    Obras ....................................................................................................................... p. 7

    Os Anais .......................................................................................................................... p. 10 Esta traduo ........................................................................................................ p. 14

    Canto I ................................................................................................................. p. 16

    Canto II ................................................................................................................ p. 63

    Canto III .............................................................................................................. p. 71

    Canto IV .............................................................................................................. p. 76

    Canto V ............................................................................................................... p. 77

    Canto VI .............................................................................................................. p. 81

    Canto VII ............................................................................................................. p. 96

    Canto VIII ......................................................................................................... p. 116

    Canto IX ............................................................................................................ p. 131

    Canto X ............................................................................................................. p. 140

    Canto XI ............................................................................................................ p. 149

    Canto XII ........................................................................................................... p. 154

    Canto XIII ......................................................................................................... p. 156

    Canto XIV ......................................................................................................... p. 159

    Canto XV .......................................................................................................... p. 164

    Canto XVI ......................................................................................................... p. 166

    Canto XVII ........................................................................................................ p. 178

  • Canto XVIII ...................................................................................................... p. 181

    Fragmentos de localizao incerta .................................................................... p. 183

    Consideraes finais ...................................................................................................... p. 245

    Referncias bibliogrficas ............................................................................................. p. 249

  • Agradecimentos

    Esta uma das pginas mais importantes deste trabalho, e eu espero conseguir

    palavras corretas e de sonoridade adequada para expressar a alegria da gratido que cada

    nome citado mereceu no processo de redao ou representa no processo de crescimento

    pessoal envolvido.

    Em primeiro lugar, como manda a piedade religiosa, dou graas a Deus, pela

    sade concedida, pelo auxlio enviado, pela concluso permitida.

    Em seguida, os meus mais honestos agradecimentos minha orientadora, Profa.

    Doutora Zelia Ladeira Veras de Almeida Cardoso. Alm de ecoar a j costumeira frase em

    que isentamos o orientador das falhas da dissertao, que, asseguro, neste caso, so da

    minha total responsabilidade, por imaturidade na audio ou incapacidade na apreenso, eu

    gostaria de deixar expressa a minha gratido. A minha gratido se inicia no momento de

    recepo no Programa de Ps-graduao, que significou a segurana de um contato

    acadmico que eu desejava desde muito; ela se fortalece na lembrana de cada uma das

    sesses de orientao, em que uma hora de charla equivalia a uma mirade de

    aprendizagens para mim; ela se completa na leitura e reiterada releitura dos meus

    textos, com olho crtico de mestra e bondade de guia; a minha gratido se rejubila, enfim,

    no modelo adquirido. Magistrae maximae gratias ago meas.

    Pela leitura atenciosa e pelas sugestes feitas quando do exame de qualificao,

    que livraram a parte inicial deste texto de equvocos e excessos, meu grato reconhecimento

    aos professores Doutor Jos Eduardo Lohner e Doutor Ariovaldo Augusto Peterlini.

    Gostaria ainda de expressar a minha gratido pelas leituras de quatro professores,

    em momentos distintos, de diferentes partes desta pesquisa: pela leitura do projeto, s

    professoras Doutora Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet, da Universidade Federal de

    Minas Gerais, e Mestra Fernanda Messeder Moura; pela leitura de anlises e comentrios

    de versos, aos professores Doutor Iv Lopes, atuante em estudos de Semitica Potica, e

    Doutora Norma Goldstein, atuante em estudos de Estilstica, ambos da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    Aos revisores, amici certi in rebus incertis, professores Mestre Aristteles

    Angheben Predebon e Mestra Fernanda Messeder Moura, sou grato; o seu trabalho muito

    i

  • me dignifica o texto, e a sua leitura muito me honra, pois faz de ambos os meus primeiros

    leitores.

    Grato sou ainda FAPESP, Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So

    Paulo, que me concedeu bolsa de estudos durante parte do perodo do Mestrado,

    possibilitando o acesso a bibliografia importada e atualizada, a participao em eventos

    nacionais e internacionais que muito me auxiliaram no desenvolvimento desta pesquisa e a

    liberdade para a dedicao exclusiva aos estudos que ora se apresentam neste volume.

    ii

  • Consideraes iniciais

    Esta traduo anotada dos Anais de nio, introduzida por um estudo da vida e da

    obra do autor, seguida de outro breve estudo, sobre o poema pico, insere-se na linha de

    pesquisa Narrativa greco-latina do Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    Foi nio o primeiro grande poeta pico da literatura latina; a redao dos dezoito

    cantos dos seus Anais lhe concedeu fama imortal entre os romanos seus sucessores, ainda

    que as opinies sobre o seu trabalho variem. No que tange ao gnero, foi o primeiro a se

    destacar no canto pico, ainda que dois outros poetas, Lvio Andronico e Nvio, tivessem

    comparecido cena antes dele. O grande lapso criado na produo pica ps-eniana s se

    vai encerrar quando do surgimento da Eneida de Virglio, no sculo I a.C., texto que

    suplantaria os Anais em fama. Convm ressaltar a importncia da tradio: se verdade que

    a epopia de nio no se teria alado ao nvel que conheceu sem a primitiva produo de

    Lvio ou a de Nvio, nem tampouco o texto virgiliano teria sido o que foi sem retrilhar

    certos caminhos que nio j havia percorrido.

    A traduo do texto dos Anais, do poeta pico pr-virgiliano Quinto nio (239

    ca. 169 a.C.), justifica-se na medida em que ela no existe, disponibilizada em portugus,

    feita a partir de texto crtico confivel e notas que auxiliem a leitura dos fragmentos

    suprstites, quase nunca to simples. A traduo e a exegese do texto, nos comentrios que

    o seguem, analisando-o fragmento por fragmento, tm como finalidade primordial fazer

    conhec-lo no seu estado atual. Quanto introduo, o citarem-se passos de outros autores

    antigos, que fizeram referncia ao poeta e obra postos em estudo em diferentes pocas,

    cria a vantagem da coleta organizada dessas passagens.

    Na seo inicial, intitulada Quinto nio, situamos o autor e a sua produo. Para

    isso, apresentamos as passagens que se referem a nio nos autores antigos, graas aos quais

    nos chegou o que resta dos fragmentos enianos, as fontes dos fragmentos. As informaes

    biogrficas, que so, como veremos, quase sempre cercadas de incertezas e conjecturas

    mais ou menos plausveis, sero oportunamente completadas pela leitura da obra

    1

  • propriamente dita, dos fragmentos suprstites que apresentamos, anexado o devido

    comentrio explicativo de cada um.

    Na seo seguinte, Os Anais, aps apresentar o poema em linhas gerais, passamos

    ao que constitui propriamente o trabalho de pesquisa desta dissertao: a traduo

    comentada. Tal traduo se manteve em prosa e, quanto possvel, em correspondncia

    justalinear. O estudo compreende a contextualizao de cada fragmento, considerando e

    anotando momentos de relevncia histrica e referncias mticas que se fazem necessrias

    para a melhor apreenso do texto, as caractersticas estilstico-semiticas do original, alm

    de algumas explicaes de ordem lingstica, utilizadas sobretudo na justificativa de

    escolhas de traduo.

    2

  • Quinto nio

    Quinto nio, cujo nome se atesta em diferentes fontes, recebe provavelmente o

    prenome Quinto de Quinto Flvio Noblior1, filho de Marco Flvio Noblior. Foi tambm

    Quinto Flvio Noblior que, como trinviro, tendo colonizado o Pisauro, anexado a Roma

    em 184 a.C., ofereceu a nio a cidadania2. O poeta era originrio de Rdias, o que fica dito

    por ele mesmo no fragmento 313 dos Anais, mas a localizao desta cidade (ou vilarejo?)

    no se pode averiguar com certeza: diferentes autores referiram-se a distintas localizaes3,

    que podem ser reduzidas ao denominador comum da Calbria, chamada pelos gregos de

    Iapgia ou Messpia4.

    O nome Messpia provm de Messapo, rei mtico, domador de cavalos, condutor

    dos messpios, povo de provvel origem ilrica. Imbuda na cultura grega, a Messpia,

    parte da Magna Grcia, foi a origem das duas primeiras lnguas de nio: o grego e o osco,

    este ltimo comum nas regies do sul da Itlia que no estavam sob a influncia direta dos

    gregos. Como em 266 a.C. a lngua latina j se havia espraiado pela Messpia5, nio, o

    poeta semi-grego6, podia declarar-se possuidor de trs coraes7, cada um ligado a uma das

    lnguas que falava e cultura que elas expressavam. Ao rei Messapo nio parece ter-se

    declarado aparentado, o que se veria em um fragmento dos Anais que no faz parte deste

    nosso trabalho, uma vez que foi excludo da nossa edio, mas que comparece na de

    Skutsch (ibid.: 119), como o de nmero 524, fragmento em que nio mencionaria o nome

    do rei8. A passagem de Virglio, na Eneida, VII, 691-705, em que o poeta imperial faz a

    1 Magno, 1979: 10; Tarnassi, 1939: 112; contra Skutsch, 1985: 1.2 Vejam-se, a respeito da cidadania de nio e da sua viagem ao lado de Noblior: Ccero, Arch., IX-X; Tusc., I, 2; Br., 20; Aurlio Victor, De uiris illustribus, LII, 3; Smaco, Epist., I, 21. Menes aos dois Nobiliores nos Anais encontram-se nos comentrios aos fragmentos 107; 168-169; 233-235 (canto XV todo dedicado expedio de Marco Flvio Noblior Etlia); 313; 408. 3 Estrabo, VI, 81; Ovdio, A. Am., III, 409; Slio Itlico, XII, 393; Horcio, O., IV, 8, 10; Pompnio Mela, De situ Orbis, II, 4, 66.4 Magno (op. cit.:10-14) traz longa discusso das diferentes localizaes atribudas a Rdias, alm de vasta bibliografia sobre o tpico, e conclui que Rdias deveria ficar no corao da Messpia, entre Brindes e Tarento. So Jernimo (Chr., 240 a.C.) afirma erroneamente que nio nasceu em Tarento; Warmington (1988: xviii) supe que, por esse erro, pode-se concluir que o poeta foi educado em Tarento.5 Magno, ibid.: 14.6 Suetnio, Gram., I, 2; Festo, 412, 33.7 Aulo Glio, XVII, 17 e, a partir dessa meno, o fragmento op. inc. i na edio de Skutsch (ibid.: 130, com comentrios nas pginas 749-750, nas quais Skutsch ainda supe que nio dominasse o messpico). 8 Veja-se o nosso comentrio ao fragmento 218, o nico constituinte do canto XII, ad finem.

    3

  • coorte seguidora de Messapo cantar como cisnes, segundo Srvio, ad Aen., VII, 691, seria

    uma meno origem declarada de nio; tambm Slio Itlico, XII, 393 e ss., na sua

    descrio de nio em campo de batalha durante a Segunda Guerra Pnica, menciona essa

    conhecida origem do poeta messpio.

    Outro dado incerto a data da morte do poeta. Se sabemos, com segurana, a data

    do seu nascimento, 239 a.C.9, a morte de nio deve, contudo, ser assinalada entre 169 a.C.10

    e algo mais tarde, embora certamente no depois de 167 a.C., pois o poeta no ter assistido

    ao triunfo de Emlio Paulo, vencedor da Terceira Guerra da Macednia11.

    Da sua vida, temos algumas informaes esparsas, que nos levam imagem de

    um soldado, poeta de aspiraes e influncias filosficas, professor e amigo de figuras

    polticas importantes da sua poca. nio participou, como soldado, da Segunda Guerra

    Pnica, na Sardenha12, justamente de onde, em 204 a.C., tendo sido a encontrado por Cato

    (234149 a.C.), que voltava do exerccio da questura na frica13, foi levado para Roma.

    Com efeito, Cato teria sido instrudo nas letras gregas por nio14. Este mesmo Cato, o

    Censor, haveria de tornar-se um grande opositor dos costumes gregos que se introduziriam

    em Roma, os quais considerava imorais, ainda que no deixasse de ser um grande

    admirador da literatura grega.

    Uma vez estabelecido em Roma, nio viveu modestamente no monte Aventino15,

    prximo ao templo de Minerva, onde se situava o collegium poetarum, colgio dos

    poetas, uma espcie de espao destinado aos encontros e oferendas de poetas e atores,

    onde se guardava (e possivelmente se arquivava) tambm a produo desses artistas16. nio

    9 Data atestada pelas citaes de Aulo Glio, XVII, 21, 43, e Ccero, Br., XVIII, 72; Tusc., I, 1, 3.10 Como o atesta Ccero, Brut., 78 e C. M., XIV.11 Vejam-se as discusses detalhadas de tais concluses em Skutsch, 1980, 103-104, e Rebuffat, 1983: 159, n. 12 (que defende 167 a.C. como a data definitiva), com as referncias bibliogrficas (antigas e modernas) discutidas em ambos os autores. Sobre a Terceira Guerra da Macednia, vejam-se os fr. 154 e 261 e os comentrios ad locum.12 Slio Itlico, na cena j mencionada dos Punica (XII, 387-419), em que nio feito personagem pica e posto em campo de batalha, descreve o poeta como centurio e f-lo combater com Hosto, filho de Hampsgoras, prncipe da Sardenha. O nome de Hosto, filho justo de um pai injusto (Slio Itlico, XII, 346), ainda se pode ligar ao do combatente que Anbal aniquila (Slio Itlico, I, 437) e ao mtico Hosto (Tito Lvio, I, 12; cf. Natividade, 2005: 69, n. 32). 13 Cornlio Nepos, Cato, I, 4.14 Aurlio Vtor, De uiris illustribus, XLVII.15 So Jernimo, Chr., 240 a.C.; Varro, L. L., V, 163; Festo, 492, 22.16 O collegium poetarum um enigma (Horsfall, 1976: 79), frase inicial do artigo de Horsfall, em que o autor explora as informaes coletveis sobre a organizao, partindo das menes dos antigos. Goldberg (1995: 132-133) menciona a criao de outro collegium poetarum, diferente do que se reunia no templo de Minerva; enquanto este se havia iniciado em honra do poeta Lvio Andronico, aquele ter provavelmente sido

    4

  • dava lies de grego e compunha poemas, uma vida modesta que era acompanhada por

    uma s servial, segundo So Jernimo (cf. referncia na n. 15), o que no impedia que

    recebesse a visita de amigos como Cipio Nasica, cnsul do ano de 191 a.C., como atesta a

    anedota que Ccero narra em De Oratore, II, 68, 276. tambm Ccero, desta vez em De

    Senectute, IV, XX, quem nos fala da amizade prxima que o poeta teve com Cato: no

    dilogo sobre a velhice , Ccero pe a expresso familiaris noster, nosso familiar, ntimo

    nosso, nos lbios da personagem protagonista.

    Costuma-se crer que, em algum momento, Cato tenha sofrido alguma desiluso

    com nio17, o que se teria dado pelos hbitos gregos que o poeta adotou na sua criao

    potica18, ou pela aproximao de nio e os Cipies. difcil acreditar que Cato, homem

    que se aprimorou no conhecimento da lngua e da civilizao gregas, mostrando traos de

    grecismo at mesmo nos seus livros, possa ter-se enfadado com nio pela influncia grega

    que, mais que permitir-se ter sofrido, o nosso poeta utilizou em servio prprio. Antes

    talvez, ainda que no creiamos numa inimizade entre nio e Cato, tal desaproximao

    tenha sido gerada pelas diferenas que existiam, de longa data, entre as idias de Cato e

    dos Cipies. De fato, quando Cato encontrou nio na Sardenha, em 204 a.C., aquele

    voltava da frica, onde exercera o posto de questor, e de onde sara em desacordo com

    Pblio Cornlio Cipio (236183 a.C.), de quem desaprovava a prodigalidade, contrria

    disciplina militar19.

    Alm de Cipio Nasica, nio tambm manteve laos de amizade com o mesmo

    Pblio Cornlio Cipio (o Africano), a quem enalteceu em versos dos Anais20, no texto

    (de classificao incerta, cf. adiante, p. 9) Cipio e nos Epigramas. No por menos, conta a

    tradio que nio teve um busto no sepulcro dos Cipies21.

    presidido por nio, no templo das Musas que foi construdo por Marco Flvio Noblior (cf. comentrio ao fr. 1). 17 Cf. Warmington, 1988: xxi-xxii.18 nio foi o introdutor do metro herico grego, o hexmetro, na poesia latina; as suas tragdias, como veremos, eram em grande parte fruto de aemulatio de ttulos gregos; originrio da Magna Grcia, nio levou consigo, para Roma, teorias filosficas de origem grega, como o pitagorismo e o que explicou nos seus Evmero e Epicarmo.19 Tarnassi, op. cit.: 103; cf. Grimal, 1975: 201-213. 20 Referncias aos Cipies encontram-se nos fragmentos dos cantos VII, VIII e IX dos Anais et passim.21 Ccero, Arch., IX, 22; Tito Lvio, XXXVI, 56. Talvez tal efgie existisse prxima ao tmulo dos Cipies, mas aparentemente no nele; cf., a respeito, a discusso detida que levam a cabo Canfora e Roncali, 1994: 33.

    5

  • Entre os grandes nomes a que nio esteve ligado, convm ainda mencionar a

    famlia dos Nobiliores, a que j nos referimos. Em 189 a.C., nio acompanhou Marco

    Flvio Noblior, ento cnsul, na expedio contra os etlios, aparentemente como poeta

    cantor da gesta do general22. Esse uso, de procedncia helenstica23, foi reprochado por

    Cato num discurso24. Com a ocupao da Ambrcia, Marco Flvio Noblior ps rpido fim

    ocupao da Etlia, o que nio celebrou no seu texto Ambrcia, de que no sabemos, ao

    certo, se era uma fabula praetexta ou um poema apologtico. A amizade entre nio e os

    Nobiliores se v ainda na cidadania atribuda ao poeta por Quinto Flvio Noblior, fato a

    que j nos referimos25.

    Entre os que aprovam a teoria do patronato, a passagem de nio da clientela de

    Cato para a de Noblior seria a causa da imprecao daquele contra este26, no momento em

    que levou consigo o poeta para a Etlia. Os dois teriam sido, antes, aliados nos seus

    combates contra os Cipies, o que se teria modificado quando da reconciliao de Flvio

    Noblior com Emlio Lpido, freqentador dos Cipies. Ter sido possivelmente por

    intermdio dos prprios Nobiliores que nio se aproximou dos Cipies27. Contrrio idia

    do patronato levanta-se Goldberg28, que prope que a amizade entre nio e os grandes

    polticos que vimos mencionando no se tratasse de dependncia servil, mas antes de uma

    relao que, se no implica igualdade social, supe trocas de valor equivalente. Goldberg

    emparelha a sua leitura com o fragmento 158, e assevera que considerar nio um poeta

    cliens, alm de anacrnico, por tratar-se de um rtulo prprio dos anos mediais da

    Repblica, incorreto e intil, pois cria leituras tendenciosas que no se deveriam levar a

    cabo.

    Os ltimos anos da sua vida, nio parece t-los passado em tranqilidade, cercado

    dos discpulos, entre os quais o poeta pde contar com o sobrinho Pacvio (220ca. 130

    a.C.), tragedigrafo, a quem fizera vir de Brindes, e com o comedigrafo Ceclio Estcio

    22 Ccero, Arch., XI, 27; Aurlio Vtor, De uiris illustribus, LII, 3.23 Introduzido por Alexandre, o Grande; cf. outras referncias em Canfora e Roncali, op. cit.: 31.24 Ccero, Tusc., I, 3. 25 Vejam-se o primeiro pargrafo deste texto e as notas 1 e 2.26 Ccero, Tusc., I, 2.27 Cf. Canfora e Roncali, loc. cit.28 Op. cit.: 111-134.

    6

  • (ca. 225166 a.C.)29. Morre aos setenta anos30 de gota31, no mesmo ano em que se fizera

    representar o seu Tiestes32.

    Obras

    nico poeta latino a receber o ttulo de pater33, nio diz, num dos versos das suas

    Stiras34, que no escreve poesia seno quando lhe atacam as dores do reumatismo; a ironia

    eniana se reproduz nos trechos de Horcio e Sereno Samnico35: pai, por um lado, e amigo

    da bebida, por outro, era o poeta dos Anais, cuja produo mesclava, de fato, a seriedade e

    o jocoso. Foi autor de peas de teatro, comdias (de que nos restam dois ttulos,

    Caupuncula, O pequeno albergue36, e Pancratiastes, O pugilista) e tragdias.

    As tragdias tiveram maior sucesso37, tendo-nos restado fragmentos de vinte e trs

    peas. Entre elas38, de tema atestadamente euripideano39, encontramos trs ttulos: Hecuba,

    Hcuba40; Medea ou Medea exul, Media ou Media exilada; e Iphigenia, Ifignia.

    H dvida sobre a influncia de Eurpedes em Andromeda, Andrmeda. Para outros

    ttulos, aceita-se a relao com Eurpides: Cresphontes, Cresfontes41; Erechtheus,

    Erecteu; Melanippa, Melanipe; Telephus, Tlefo; Alcmeo, Alcmeu; Telamo,

    Telamo; e Thyestes, Tiestes.

    29 Sobre a relao de nio com estes dois literatos, cf. Magno, op. cit.: 19, n. 42.30 Ccero, C. M., V, 14 e Brut., 78.31 So Jernimo, Chron., 168 a.C.32 Ccero, Br., 20.33 Magno, op. cit.: 9. nio assim chamado por Horcio, Epist., I, 19, 7; Proprcio, III, 3, 6; Sereno Samnico, 713. Sobre os significados e as implicaes deste ttulo, veja-se o comentrio ao fr. 170.34 Fr. 21, Warmington, op. cit.: 390.35 Cf. citaes desses autores na nota 33.36 Traduo do ttulo tomada a Cardoso, 2003: 26.37 As comdias no parecem ter sido bem aceitas, se devemos crer no cnon de comedigrafos elaborado por Volccio Sedgito, citado por Aulo Glio, XV, 24; nessa lista, nio citado por ltimo numa longa seqncia de nomes, havendo ainda a justificativa de que s se lhe outorga o lugar pela antigidade do seu trabalho.38 Para uma edio confivel das tragdias, costuma-se recorrer a Vahlen (1967) e, mais modernamente, a Jocelyn (1967). 39 A organizao didtica dos ttulos aqui adotada foi tomada a Canfora e Roncali, op. cit.: 34.40 Cf. Aulo Glio, XI, 4, 1-4.41 Pea que se referiria mesma personagem que o Cresfontes de Eurpides, ou ao filho dela; a discusso entre os crticos se resume em Martos, 2006: 371-372.

    7

  • Outros ttulos so: Achilles ou Achilles Aristarchi, Aquiles ou Aquiles de

    Aristarco42; Alexander, Alexandre; Andromacha ou Andromacha aechmalotis,

    Andrmaca ou Andrmaca cativa43; Athamas, Atamante; Nemea, Nemia44;

    Phoenix, Fnix; Eumenides, As Benevolentes e Hectoris Lytra, O resgate de Heitor,

    estas duas possivelmente escritas sob a influncia de ttulos de squilo45; e Aiax, Ajax,

    possivelmente baseada na pea homnima de Sfocles.

    Devem-se adicionar lista de peas teatrais Sabinae, As Sabinas, e Ambracia,

    Ambrcia46, poemas freqentemente vistos como praetextae, pretextas, peas de teatro

    em que se abordavam temas referentes a Roma. A primeira delas trata do lendrio rapto das

    esposas dos vizinhos sabinos, cumprido pelos romanos sob o comando de Rmulo47; a

    segunda, da tomada da capital da Etlia por Marco Flvio Noblior, em 189 a.C.48

    nio escreveu ainda obras menores: Saturae, as stiras, de diferentes temas e

    metros, agrupadas em quatro livros49; Hedyphagetica, Aperitivos, um poemeto de que

    nos resta um s fragmento, citado por Apuleio, no qual se lem informaes sobre peixes e

    outros frutos do mar, inspirado em Arquestrato de Gela (ca. 350 a.C.); Sota, poema

    inspirado em textos de Stades, poeta grego (ca. 280 a.C.), cuja produo parece ter sido de

    temtica pardica e obscena; epigramas (dos quais restam-nos quatro) e um livro de

    preceitos. nio atuou tambm na filosofia, deixando-nos dois ttulos: Euhemerus,

    Evmero ou Histria Sacra, em que o poeta tratava de ligar a imagem dos deuses de

    monarcas falecidos50; e Epicharmus, Epicarmo, em que os quatro elementos e a natureza

    so o tema.

    42 Segundo Warmington (op. cit.: 219), porque nio se teria baseado no ttulo original de Aristarco de Tgea, contemporneo de Eurpides, tragedigrafo de Atenas. 43 Ainda segundo Warmington, ibid.: 244-245.44 Ou talvez Jogos nemeus; no se sabe ao certo a que se refere o ttulo (Martos, op. cit.: 423: n. 244).45 Sobre O resgate de Heitor e a influncia de squilo, cf. Martos, ibid.: 384-385, n. 156 e 157.46 Uma breve contextualizao do mito ou evento histrico envolvido no enredo, bem como o resumo da trama, segundo diferentes opinies de crticos, para cada uma das peas, cujos ttulos esto organizados em ordem alfabtica, pode ser consultada em Martos, ibid.: 317-492. 47 Nos Anais, vejam-se os fr. 47-50 e 274.48 Cf. n. 2.49 Para uma edio confivel das stiras, costuma-se recorrer a Vahlen (op. cit.) e, mais modernamente, a Courtney (2003: 7-21). Tambm os mesmos crticos so indicados para os textos do Sota, dos Aperitivos, do Cipio, do Epicarmo, dos Preceitos e dos Epigramas. 50 Vejam-se as referncias feitas a este ttulo nos comentrios aos fr. 57 e 287.

    8

  • O ttulo Cipio, uma apologia ao Africano, vencedor da batalha de Zama em 202

    a.C., alvo de discusso: no certo se fazia parte das stiras, entre as quais seria o terceiro

    livro, ou se estava entre as tragdias, na lista das praetextae.

    A principal obra eniana de que temos notcia, o poema pico Anais, contava com

    dezoito cantos, uma narrativa da histria de Roma desde a fundao at os eventos

    contemporneos do poeta. Restam-nos 420 fragmentos dessa obra, somando-se

    aproximadamente seiscentos versos suprstites, nos quais as idias filosficas e literrias de

    nio se encontram ilustradas51.

    51 As obras de nio, compiladas e traduzidas para o ingls, em verso bilnge, so mais facilmente encontradas e lidas na edio bastante confivel de Warmington (op. cit.); em espanhol, h as tradues de Moreno (1999) e Martos (op. cit.), esta ltima mais cuidada que a primeira, ainda que no traga o texto latino. Quanto aos Anais, alm das tradues j citadas, convm mencionar os trabalhos de Steuart (1976) e Skutsch (1985), que, ainda que no contem com uma traduo, apresentam edio e comentrios de grande valor para a compreenso dos fragmentos. Em portugus, dois trabalhos foram feitos, no Brasil, acerca da obra de nio: as teses de doutoramento Nbrega (1963), sobre os Anais; e de Souza (1989), uma traduo incompleta e no muito confivel dos fragmentos de nio e Nvio.

    9

  • Os Anais

    Pela grandiosa obra, composta de dezoito cantos, mereceu nio o ttulo de alter

    Homerus52. Com efeito, antes da Eneida de Virglio, foi o poema dos Anais o mais famoso

    texto pico romano, tendo ganhado lugar central nos programas escolares e permanecido

    como atrao de recitais mesmo aps a morte do poeta53.

    A idia da narrativa cronolgica anuncia-se desde o ttulo: Annales Maximi

    chamavam-se os anais pontificais, registros anuais do ocorrido na Cidade, lendariamente

    institudos pelo rei Numa Pomplio e publicados, segundo Ccero54, somente em torno de

    120 a.C. Ensejando narrar a histria de Roma desde a queda de Tria at os seus dias,

    quando se declarou a reencarnao de Homero, no sonho que abre o primeiro canto dos

    Anais, e utilizando o verso herico desse poeta grego para a construo formal da sua

    poesia, nio foi alm de Lvio Andronico, que havia traduzido a Odissia; quando

    empreendeu a histria desde antes do seu tempo e a narrou at o momento do seu

    testemunho, foi alm de Nvio, que havia escrito um poema pico sobre a Primeira Guerra

    Pnica55. Infelizmente, dessa empreitada monumental, resta-nos o equivalente a cerca de

    metade do que teria sido um canto na obra original56.

    Tendo sido, mui provavelmente, escritos em tradas que se centravam em um

    perodo histrico delimitado, os dezoito cantos dos Anais cobriam aproximadamente mil

    anos de histria (1184/3-187/4 a.C.). A ltima trada, do canto XVI ao XVIII, foi

    adicionada por nio posteriormente, e ela ter circulado separadamente do resto do livro57.

    Os grandes temas esto assim agrupados:

    Cantos I-III: Invocao s Musas; um longo promio, em que figura o clebre sonho de

    nio com o poeta grego Homero; a narrativa da queda de Tria e da chegada de Enias

    52 Horcio, Epist., II, 1, 50.53 Kenney e Clausen, 1989: 97.54 De Or., II, 52.55 O desdm de nio, em especial por Nvio, encontra-se marcado nos Anais, no promio do canto VII, sobretudo. 56 Kenney e Clausen, ibid.: 80.57 Plnio, H. Nat., VII, 101.

    10

  • Itlia; a fundao de Roma; os episdios envolvendo os gmeos Rmulo e Remo; o perodo

    monrquico da Cidade.

    Cantos IV-VI: As guerras contra os povos itlicos e a guerra contra Pirro, rei do Epiro.

    Cantos VII-IX: Aps um novo promio, em que nio fala do contato com as Musas e do

    seu conhecimento filosfico, a narrativa das guerras pnicas, das quais a Primeira deve ter

    sido pouco mais que mencionada, e a Segunda narrada em extenso.

    Cantos X-XII: Aps a vitria sobre Anbal, as campanhas na Grcia.

    Cantos XIII-XV: A guerra contra Antoco; apologia, no canto XV, de Marco Flvio

    Noblior.

    Cantos XVI-XVIII: A guerra na stria e as campanhas mais recentes poca do poeta, que,

    acredita-se, teria narrado a histria de Roma at a data da sua morte (i.e. ca. 169 a.C.).

    digno de nota que, se tomarmos o que teria sido o plano original da obra, isto , do canto

    I ao XV, o poema se abriria com uma invocao s Musas e se encerraria no livro de

    apologia a Marco Flvio Noblior, fundador do templo de Hrcules das Musas58. Alm

    disso, o canto VII, que estaria na metade do plano inicial da obra, abre-se com um novo

    promio, em que nio afirma ter tido contato direto com as Musas59. No que nos resta hoje

    do poema, aos dezoito cantos adiciona-se uma coleo de fragmentos de localizao incerta

    (sedis incertae), sobre cuja contextualizao pouco se sabe, bem como sobre as suas

    possibilidades de localizao. Na edio por ns adotada, a de Valmaggi60, essa miscelnea

    conta com os fragmentos de 272 a 420.

    Como poema celebratrio, os Anais se ocuparam da gesta de grandes

    personagens, como Fbio Mximo, o Contemporizador; Cato; Cipio; Marco Flvio

    Noblior. Nessa prtica, nio seguia o seu modelo inicial, Homero. Como poema de

    temtica histrica, nio avizinha-se da tradio pica alexandrina61, pela narrao de feitos

    histricos que so, em muitos casos, contemporneos do poeta. Um poema de narrao

    58 Cf. com. ao fr. 1.59 Cf. fr. 123 e com. ad locum. Nesse conjunto de versos, costuma-se ver a influncia grega de Calmaco, que narra, nos seus Atia, um encontro, em sonho, com as Musas no monte Hlicon, e de Hesodo que, na sua Teogonia, tambm se encontra com as Musas. 60 De 1945. Transcrevemos dessa edio todos os versos, alterando, por questo de hbito e comodidade, as letras ramistas por u e i. As leituras alteradas so anotadas e justificadas oportunamente, no comentrio a cada um dos fragmentos em que tal procedimento se deu. 61 Vejam-se exemplos elencados em Kenney e Clausen (op. cit.: 84) e os com. aos fr. 387-390.

    11

  • contnua, em ordem cronolgica, longo como resultou, era porm algo que se distanciava

    da proposta dos alexandrinos, de que nio se aproxima pela afiliao em conceitos e

    (auto-)representaes62. Entre as fontes literrias no se pode deixar de citar o prprio Lvio

    Andronico, de quem nio teria herdado o uso da forma quamde63 e a expresso insece

    Musa64. Nvio, cuja presena se detecta com maior dificuldade, pode ter sido o autor da

    histria de Dido que nio teria narrado65. No que tange s fontes histricas, provvel que

    nio tenha lido Fbio Pctor, o nico historiador cujo texto sabemos que estava disponvel

    quela poca66.

    A datao das obras de nio motivo de longas discusses, e o que se pode

    afirmar somente que o poeta iniciou cedo a redao das tragdias, cuja produo

    continuou ao longo de toda a sua vida, assim como a das stiras. Precederam, muito

    provavelmente, a composio dos Anais obras de que se tm reflexos detectveis nos

    fragmentos do poema pico: o Evmero, o Cipio, Ambrcia, os Aperitivos. Para a datao

    dos Anais propriamente dita, contamos somente com duas informaes. O livro IX teria

    sido escrito no antes de 179 a.C., pois nio se refere, no fragmento 179, aos homens que

    admiravam a retrica de Marco Cornlio Cetego, cnsul em 204 a.C., como uma gerao

    passada67. O livro XII, levando-se em considerao a afirmao de Aulo Glio68, teria sido

    escrito por volta do ano 172 a.C.; mas devemos considerar que h vrios problemas que

    pem em dvida a veracidade da afirmao de Glio69. O que se conclui, portanto, que

    nio se ocupou da composio dos Anais nos seus anos finais de vida.

    Ao lado da venerao que recebeu de Ccero, que sabemos ter sido um grande

    leitor de toda a poesia eniana, e no s dos Anais, o que lhe vale hoje, inclusive, o ttulo de

    ser a fonte70 mais freqente para os fragmentos a que temos acesso; de Lucrcio, autor da

    62 Cf. com. aos fr. 123 e 307.63 Cf. fr. 44 e 67.64 Fr. 190 e com. ad loc.65 Ainda sobre a influncia de Lvio Andronico e Nvio, cf. Martos (op. cit.: 16-17).66 O uso de fontes pblicas, como o arquivo pblico de atividades dos magistrados e os Annales Maximi, foram discutidas por Skutsch (1985: 7-8).67 Veja-se a explicao do raciocnio, de que apresentamos meramente as concluses, em Skutsch (ibid.: 4-5), base fundamental da redao de todo este nosso pargrafo sobre a datao da obra.68 XVII, 21, 43.69 Cf. o questionamento em Skutsch, loc. cit. 70 Para um estudo consciencioso das fontes dos fragmentos dos Anais, que compem uma histria do texto e dos seus ecos na literatura latina, perpassando os poetas, os historiadores e outros autores que escreveram em prosa, encerrando-se num estudo detalhado dos gramticos, lexicgrafos e escoliastas, cf. Skutsch (ibid.: 8-46).

    12

  • forjada expresso Ennius perennis, nio perene71; da respeitosa ateno que se depreende

    dos estudos constantes de Aulo Glio, menes elogiosas, h ainda as citaes menos

    apologticas de Horcio e Ovdio, que nos permitem ter uma noo do que teriam sido as

    diversas reaes que os Anais de nio criaram entre os antigos. Enumerando citaes e

    discutindo-as, por vezes polemicamente, como o caso do estudo dedicado a Horcio,

    Tarnassi, no captulo nio na opinio dos escritores latinos72, traa um panorama dos

    diversos olhares que nio recebeu, em uma abrangente lista de autores, que inclui nomes

    como o de um desconhecido Pomplio, ao lado dos celebrados Proprcio e Sneca,

    acompanhados de autores tcnicos como Vitrvio, Quintiliano e Macrbio, lista pontuada

    pelo nome de Petrarca, cujo poema frica apresenta um nio personagem, no canto IX,

    como j o fizera Slio Itlico73. A apreciao que se colige entre os antigos, nada mais que

    reflexo da riqueza e diversidade dos elementos que constituem o poema74. Com efeito, ao

    lado dos elementos tpicos da poesia pica, como os sonhos, os conclios dos deuses e as

    descries de cenas de batalhas e de discursos, os Anais so, em Roma, o primeiro registro

    de uma poesia pica to ambiciosa que pretendesse cantar a histria oriunda dum passado

    longnquo e mtico at a histria presente e vivida pelo poeta. Nessa ambio, elementos

    novos foram criados e incorporados por nio, que Mariotti75 elenca e exemplifica:

    elementos filosficos, gramaticais, crtico-literrios, autobiogrficos. Nessa ambio,

    enfim, gerou-se uma lngua prpria, com metro, prosdia, formas gramaticais, neologismos

    e outras prticas que so, por sua vez, aventados e estudados por Skutsch76.

    71 Lucrcio, I, 112-126; a expresso propriamente dita forjada por Dominik (1993: 37).72 Tarnassi, op. cit.: 123-156; o item dedicado Horcio encontra-se entre as pp. 133-137. 73 Cf. nota 12 do texto Quinto nio, p. 4. 74 Mariotti, 1991: 69. 75 Ibid.: 70-74.76 Ibid.: 46-67.

    13

  • Esta traduo

    Os 420 fragmentos, centro do trabalho, tomados edio italiana de Valmaggi

    (1945), uma vez traduzidos, foram comentados e analisados segundo as reflexes que nos

    possibilitaram os diferentes estudos a que tivemos acesso. Dentre esses estudos, destacamos

    Skutsch (1985), com a sua obra monumental, fruto de mais de trinta anos num trabalho

    consciencioso sobre os fragmentos; Steuart (1976) e Warmington (1988), trabalhos

    respeitveis em seu escopo; esses trs trabalhos, por sua vez, apresentam grande dvida

    edio de Vahlen (1967).

    A traduo se fez, quanto possvel, justalinear e em respeito s observaes que os

    supra-citados crticos tecem, com relao ao significado que cada fragmento adquire,

    quando estudadas as palavras e expresses que o compem e recolocados no contexto a que

    devem pertencer. Em busca de facilitar a compreenso da relao entre o texto latino e a

    traduo proposta, no poucas vezes tambm apresentamos justificativas das nossas

    escolhas, com referncia aos dicionrios e aos crticos. Os nomes prprios, cujas formas em

    portugus costumam apresentar variaes, padronizamo-los pela adoo da ortografia

    registrada em Faria (1991), a cuja obra recorremos igualmente para as abreviaturas de

    ttulos de obras citadas, tomando-as ao Oxford Latin Dictionary (Glare, 1968), quando se

    tratou de obras que no se listavam em Faria.

    As anotaes partem da contextualizao de cada fragmento, assinalando o tema a

    que esteja ligado e, na seqncia e como conseqncia, por que tal fragmento foi includo

    no canto a que pertence. Em seguida, ocupamo-nos em analisar o fragmento, ressaltando

    motivaes estilsticas e empregos lingsticos, em busca do significado do texto-

    fragmento, o que se faz por meio de diversos recursos, como o uso de diferentes

    dicionrios, a comparao da mesma palavra em diferentes fragmentos dos Anais ou de

    outras obras enianas, ou ainda pelo estudo do emprego de uma palavra em contextos

    semelhantes de outros autores, ou em diferentes contextos de autores contemporneos de

    nio.

    Como se v, adotamos uma edio crtica do texto e nos ativemos a ela para um

    trabalho de traduo e comentrio lingstico-literrio, escolhendo deixar que fugissem ao

    escopo da nossa pesquisa as questes filolgicas de estabelecimento do texto e de estudos

    14

  • de manuscritos77. A abordagem interpretativa que escolhemos para o comentrio dos

    fragmentos propiciou-nos, ento, a possibilidade de anot-los, segundo a necessidade

    especfica que se apresentou em cada caso, tomando-os verso a verso ou com os versos em

    conjunto, num texto que procuramos manter, quanto nos foi possvel, fluido e de fcil

    leitura, o que explica a nossa preferncia pela insero das referncias bibliogrficas no

    corpo do texto, no utilizando notas de rodap, seno quando inevitavelmente necessrias,

    ao longo de toda a seqncia dos Anais.

    Por fim, para a compreenso do contexto histrico da narrativa, preferimos

    sempre a citao de Tito Lvio, autor que, sabemos, disponibilizado em portugus, tem

    acesso facilitado; em alguns poucos casos, sobretudo para os cantos VII-IX, servimo-nos de

    Polbio.

    77 Questes de estabelecimento do texto, excludas do escopo deste trabalho, tiveram, contudo, necessria abordagem em alguns fragmentos, que se apresentavam, nas edies dos outros crticos, em leitura que nos pareceu melhor, comparada edio de Valmaggi. Veja-se o que ficou dito na n. 58.

    15

  • Q. ENNI LIBRI PRIMI ANNALIVM RELIQVIAEFragmentos restantes do primeiro livro dos Anais de Quinto nio

    1. Musae, quae pedibus pulsatis magnum Olumpum

    Musas, que com os ps fazeis vibrar o grandioso Olimpo

    Invocao s Musas, as nove filhas geradas da unio, realizada durante nove

    noites seguidas, de Jpiter com a deusa Memria. O seu nascimento se deu aps a vitria

    dos deuses na guerra contra os Tits, e pelo desejo da criao de cantoras para os feitos

    dessa guerra. Eram elas: Calope, a musa da poesia pica e da eloqncia; Clio, a da

    Histria; rato, a da poesia lrica; Euterpe, a da msica; Melpmene, a da tragdia;

    Polmnia, a dos hinos sagrados; Tlia, a da comdia; Terpscore, a da dana; Urnia, a da

    astronomia. Em dias de festa no Olimpo, cantavam e danavam ao som da lira de Apolo,

    seu protetor (da um de seus eptetos, Musagetes, o que conduz as Musas), fazendo vibrar

    a morada divina.

    Este verso figura como o primeiro dentre os fragmentos por algumas indicaes

    que nos restam. Varro o assinala no De lingua latina, VII, 20 e, no seu livro De re rustica,

    I, 1, 4, cita novamente o verso, a propsito da invocao aos deuses que far, mencionando

    nio e Homero; estes o fazem no comeo dos seus textos, ao invocarem as Musas, e nisso

    Varro se diferencia deles: ao contrrio dos poetas picos que menciona, ele se dispe a

    invocar os doze principais deuses.

    Questionando a localizao do verso como primeiro fragmento, uma observao

    vlida a que apontam Cnfora e Roncali (1994: 41), de que nem em todo poema pico

    est a invocao no primeiro verso. Convm notar ainda que este verso s se pode ver

    como uma invocao real se e quando a leitura toma a sua primeira palavra, Musae, como

    um vocativo (o que , de fato, a leitura da tradio). Outro comentrio que merece meno

    o de Skutsch (1985: 143-4), que ressalta o fato de uma relativa no ser seqncia comum

    a um vocativo, mas normalmente a outro termo (que se suporia posterior a Musae; neste

    caso, possivelmente o pronome uos subentendido).

    Ainda a propsito da mesma palavra Musae, comum que os comentadores

    ressaltem a originalidade de nio, numa espcie de clich da crtica. Nesse caso

    16

  • especificamente, a originalidade declarada no vocativo se expressa no fato de que nio foi

    o primeiro, entre os poetas picos romanos arcaicos (designadamente ele, Nvio e Lvio

    Andronico), a empregar o termo Musae em referncia s deusas patrocinadoras do canto

    potico. Lvio Andronico, na sua traduo da Odissia, a Odusia, com o verso uirum mihi

    Camena insece uersutum (canta-me, Camena, o varo artificioso; sobre este verso, veja-

    se o fr. 190), transpe as tradicionais musas gregas para as figuras das Camenas, ninfas do

    canto proftico, divindades tipicamente itlicas, a que Tito Lvio (I, 19, 5) tambm faz

    referncia, no comentrio da legendria intimidade de Numa Pomplio, o segundo dos reis

    de Roma, com tais deidades (cf. fr. 61 e com. ad loc.). Nvio, por sua vez, no fragmento

    nouem Iouis concordes filiae sorores (nove filhas de Jpiter, irms concordes), fala das

    Musas, mas parece t-las identificado, tambm ele, com as Camenas, como podemos

    inferir com alguma certeza do epitfio de Nvio: Immortales mortales si foret fas flere /

    Flerent diuae Camenae Naeuium poetam [Se aos imortais fosse lcito chorar mortais, as

    divinas Camenas chorariam o poeta Nvio] (Skutsch, 1968: 18). Com esse que o

    primeiro uso atestado do nome Musa (Skutsch, ibid.: 144), nio expressa a sua inteno

    de sujeitar a poesia romana mais cuidadosamente disciplina da forma potica grega.

    Skutsch (loc. cit.; 1985: 143-146) ainda adiciona dados que viabilizam leituras

    histrico-contextuais para o verso eniano. O estabelecimento do culto das Musas em Roma

    data da poca de nio, tendo o prprio Marco Flvio Noblior cnsul vitorioso na

    Guerra da Etlia (191-189 a.C., narrada no livro XV dos Anais) a quem nio acompanhou

    como o poeta que cantaria os seus feitos levado as esttuas das deusas e fundado o

    templo de Hercules Musarum no campo de Marte, em 187 ou 179 a.C.

    Note-se, no verso, a aliterao em quiasmo das consoantes m e p: Musae, ...

    pedibus pulsatis magnum. A expresso magnum Olumpum, o grandioso olimpo,

    homrica (cf., e.g., Il., I, 530) e prenuncia o sonho e a afiliao literria declarada, em

    manifesto literrio e filosfico (Canfora et alii, 1994: 40) nos fragmentos 2-8. Outros

    crticos, pelo fato de as Musas se apresentarem aqui na sua faceta de danarinas, vem no

    fragmento uma filiao ao canto alexandrino de Hesodo (cf. Teogonia, vv. 1-8). Bettini

    (1979: 105-110), no texto intitulado A dana das Musas, apresenta uma interpretao

    instigante para a operao eniana. Para ele, no se trata de ter o poeta pensado antes em um

    ou outro autor para estabelecer qual trao distintivo da figura mtica adotar na construo

    17

  • da sua poesia. Pensando na dana sacra do tripudium, praticada pelos Slios e pelos Irmos

    Arvais (cf. com. ao fr. 62), compara a descrio da dana das Musas enianas das virgens

    que entoaram o Hino a Juno escrito por Lvio Andronico no ano de 207 a.C. (cf. com. ao fr.

    169), segundo Tito Lvio (XXVII, 37, 14). Assim, as Musas danam, em nio, segundo os

    ritmos, ritos e movimentos de uma dana sagrada romana, da mesma forma que as virgens

    do Hino a Juno: trata-se de uma apropriao cultural, com a insero de um trao grego

    oportunamente modificado no sistema constitudo da cultura romana (Bettini, ibid.:

    109). Bandiera (1978: 6), curiosamente contrrio leitura j tradicional a que nos ativemos

    na nossa traduo, cr que o significado do verbo pulsare neste fragmento seja calcar,

    percorrer e da habitar, tendo a palavra pedibus mera funo expletiva e pleonstica,

    como j ocorria em Homero.

    2. somno leni placidoque reuinctus

    preso num doce e plcido sono

    3. uisus Homerus adesse poeta

    pareceu aproximar-se o poeta Homero

    4. o pietas animi!

    piedade de esprito!

    5. oua parire solet genus pinnis condecoratum non animam; post inde uenit diuinitus pullis ipsa anima

    o gnero adornado de penas costuma produzir ovos, no a alma; logo depois, como que por divina obra, vem para os filhotesa prpria alma

    6. terraque corpus, quae dedit, ipsa capit neque dispendi facit hilum

    18

  • e ao corpo, a terra, que o deu, ela mesma o toma e faz que nada se perca

    7. memini me fiere pauom

    lembro ter-me tornado pavo

    8. latos per populos terrasque poemata nostra cluebunt clara

    por vastos povos e terras nossos poemas tero grande reputao

    Os fragmentos de 2 a 8 narram o sonho de nio com Homero, o grande poeta

    pico grego (sc. VIII a.C.), autor da Ilada e da Odissia. Homero apresentado no

    fragmento 3, num verso que se encerra com a palavra poeta, poeta, que ganha, em nio,

    um significado especial, porquanto representa o cultor da poesia trabalhada, afiliada

    grega, em oposio aos versos dos vates patrocinados pelas Camenas (cf. ainda os com. aos

    fr. 1, 123 e 124). No sonho, Homero declara ser nio a sua reencarnao, faz uma breve

    exposio filosfica de rerum natura, lembra-se de ter j reencarnado num pavo, vaticina

    o futuro sucesso dos poemas e temas que nio vai cantar.

    No primeiro fragmento do conjunto, que traduzimos preso a um doce e plcido

    sono, a noo de preso, presente no particpio reuinctus, poderia ser ainda traduzida de

    forma mais enftica e forte por aprisionado, mas cremos que a idia menos violenta e

    que talvez esteja ligada antes idia inicial do verbo reuincio, a de atar, porque o sono,

    ainda que priso, doce e plcido; de toda a forma, a traduo adotada interpe-se entre

    ambos os sentidos, deixando entrever a ambigidade que o fragmento parece conter. Cf. fr.

    333 e com. ad loc.

    A presena de Homero no promio programtico do primeiro canto suscita uma

    srie de indagaes, refletidas em diferentes artigos e discusses que perpassam a crtica

    eniana. Bibliografia vasta (e seleta) sobre as questes principais levantadas (entre as quais a

    da localizao do sonho, que alguns supem ter-se dado no monte Hlicon, e outros, no

    19

  • monte Parnasso), alm da transcrio das referncias principais feitas pelos antigos,

    encontra-se em Skutsch (1985: 147-153); a discusso da localizao do sonho e da

    possibilidade de um encontro com as Musas, alm das pginas citadas em Skutsch,

    ganharam longo desenvolvimento sob a pena de Bandiera (1978: 12-20).

    Brink (1972) trata de examinar como o Homero do promio se compara com

    outras figuraes do poeta a que temos acesso e como as alegaes pitagricas de nio se

    comparam com os traos do pitagorismo popular. A forte metfora da transmigrao, que

    teve como anterior a da fonte de guas homricas de que bebem os poetas que se nutrem da

    tradio sua predecessora, apresenta uma implicao corporal, fsica, em que dois espritos

    criativos passam a fazer parte um do outro; ademais, h a convico de que a poesia

    homrica deve e pode ser continuada no seu esprito e carter, no importando a

    diferena de assunto, gnero ou de sucessor (Brink, ibid.: 556).

    No que tange configurao desses elementos no texto eniano, guardamos o

    incio da fala de Homero, que chama a ateno de nio para a sua exposio. Dominik

    (1993: 40) assinala, na leitura do fragmento 4, que o uso de pietas, um termo de lao

    familiar, extraordinrio, uma vez que nio o usa para estabelecer a relao potica entre

    ele e Homero como uma de pai potico para filho potico. Entre ns, Vasconcellos (2001:

    72) tambm observou a importncia do termo:

    nio, portanto, v no precursor a imagem de um pai a quem cultuar com toda reverncia e seguir obedientemente. No esqueamos os traos afetivos, profundamente arraigados na sensibilidade romana, da figura arquetpica do pai, de resto to presentes numa obra como a Eneida, bem como a carga emocional da palavra pietas, que confere s relaes familiares carter de escrupulosa sacralidade.

    No fragmento 5, vemos a teoria da metempsicose ser exposta pela viso de

    Homero, como nos atesta Lucrcio, I, 116-126. O poeta grego explica como as almas,

    provindas das divindades, chegam aos corpos, que a prpria vida mortal gera. A palavra

    diuinitus, que preferimos traduzir como que por divina obra, com Warmington (1988: 7)

    e Moreno (1999: 46), segundo Skutsch (ibid.: 163), deve ser interpretada como vinda do

    cu. No fragmento 6, observe-se a palavra hilum, traduzida por nada, que significa

    propriamente aquilo que gruda no gro de feijo (Paulo, 101, apud Valmaggi, 1945: 3),

    ou seja, algo de mnimo e nfimo e, da, nada.

    20

  • Para a curiosa figura do pavo, para a qual a alma de Homero teria transmigrado,

    algumas leituras se apresentam. A figura de Pitgoras e a sua teoria da metempsicose vm

    como primeiro elemento de leitura, e Brink (ibid.: 563, n. 52) apresenta o animal como

    configurao freqente da imortalidade, sem deixar de observar que tal interpretao se liga

    sobretudo Roma Imperial e a artefatos cristos, de um lado, e a evidncias iconogrficas

    dos sculos II e I a.C., de outro. Traando a ligao entre Apolo, Pitgoras e a figura do

    pavo, Miroslav Marcovich (1976: 334-5 et passim) acrescenta-nos que a figura do animal,

    porque dedicado ao deus, uma representao do atributo divinatrio, aps uma longa srie

    de citaes de textos que estabelecem a linhagem das reencarnaes de Pitgoras, cuja alma

    teria vindo, em princpio, do prprio deus Apolo. Por fim, ainda temos o observao de

    Dominik (ibid.: 41), que afirma que como o Homero em forma de pavo se transforma em

    nio, assim a pica grega se transmigra na romana, o que faz dos Anais no uma imitao

    ou emulao do seu grego predecessor, mas uma reencarnao na pica romana. digna

    de nota, no fragmento, a construo memini me fiere, em que o infinitivo presente, na sua

    forma arcaica fiere, equivale a um infinitivo perfeito, factum esse, ter-me tornado; tal uso

    est de acordo com as normas do latim arcaico, em que o passado do verbo da orao

    principal j sustinha, por si s, a noo temporal do perfeito que a frase ensejava (cf.

    Valmaggi, ibid.: 4, e a bibliografia por ele citada ad loc.).

    O ltimo fragmento da narrativa do sonho traz mais uma mostra da diferena que

    nio estabelece entre o seu trabalho, orientado pelas Musas, e o dos antigos vates,

    orientados pelas silvestres e rsticas Camenas: enquanto estes escreviam carmes

    (carmina; curiosamente, Varro, L. Lat. VII, 27, relaciona as palavras carmen e

    Ca(s/r)menae), ele escreve poemas (poemata) que se faro conhecer vastamente. Ainda a

    respeito do valor que nio atribui sua obra, veja-se o comentrio aos fragmentos 123 e

    124. O fragmento poderia fazer parte da invocao s Musas (uma exortao aos leitores,

    para Warmington, ibid.: 3), mas mais provavelmente se inclui entre as palavras de nio ou

    Homero na concluso do sonho.

    9. est operae, cognoscite, ciues

    vale a pena, tomai conhecimento, cidados

    21

  • Como aqui est, este verso o convite de nio ao conhecimento da histria de

    Roma, matria dos Anais.

    Em outras edies (e.g. Steuart, 1976: 1; Moreno, 1999: 47), l-se Lunai portum

    (o porto de Luna, referncia a uma cidade italiana hoje conhecida como Spezia) no incio

    do verso; essa leitura faz do verso a ubicao do sonho (cf. fr. 2-8), como concluso cena

    onrica inicial.

    Chamou-se Portus Lunae uma colnia fundada em 177 a.C., o que Mller (apud

    Skutsch, 1985: 751) utilizou como contextualizao para o verso, por ele atribudo ao canto

    XVII.

    10. quom ueter occubuit Priamus sub Marte Pelasgo

    quando o velho Pramo caiu morto sob o Marte pelasgo

    Aps a narrativa do sonho, nio procede diretamente s aventuras de Enias (10-

    16): partindo da queda de Tria (10), descreve a linhagem do heri (11-12) e apresenta a

    deusa Vnus em dilogo com o heri (13-16).

    A partir deste verso se inicia a narrativa pica propriamente dita, com o velho

    Pramo, ltimo rei de Tria, morrendo durante a queda da cidade saqueada pelos gregos.

    Marte pelasgo metonmia para guerra grega. interessante notar que, fazendo a sua

    narrao iniciar-se na cena da queda de Tria, nio estabelece o ponto de partida do seu

    poema na cena final da Ilada de Homero, fazendo dos seus versos a continuao da obra

    de quem proclama ser a reencarnao.

    11. Assaraco natus Capus optumus, isque pium ex se Ancisam generat

    nasceu de Assraco, o timo Cpis, e este gera de si o pio Anquises

    12. doctusque Ancisa, Venus quem pulcerrima dia fata docet fari, diuinum ut pectus haberet

    22

  • e o douto Anquises, a quem a belssima deusa Vnusensina a prever o futuro, para que tivesse o dom da profecia

    Os fragmentos 11 e 12 descrevem a linhagem de Enias, filho de Anquises e da

    deusa Vnus. As possibilidades de contextualizao de ambos os fragmentos, numerosas e

    pouco precisas, encontram-se detalhadas em Skutsch (1985: 171 e 187). Enias o

    guerreiro troiano que escapou queda da sua cidade e se tornou o portador da misso de

    fundar a nova Tria, conduzindo os Penates (duas divindades masculinas protetoras do lar

    e, por extenso, da cidade) e os sobreviventes da sua terra, guiado pelos fados e pela

    vontade dos deuses. A linhagem de Enias divina pelo lado materno, em sucesso direta,

    e pelo lado paterno, em sucesso indireta. A sua me Vnus, a deusa do amor, a quem

    Roma dedicava especial afeio, tendo-a como protetora (cf. fr. 23, 25 e 26). O pai de

    Enias Anquises, filho de Cpis e neto de Assraco, que era filho de Trs, o fundador de

    Tria; a sua ascendncia passa ento por Erictnio e Drdano para chegar a Jpiter,

    progenitor da linhagem.

    No nome do pai de Enias, Ancisa (Anquises), observe-se que a aspirada se

    transcreve pela plosiva surda correspondente, c em vez de ch. Assim eram representadas as

    aspiradas poca de nio (outros exemplos: Pemonoe por Phemonoe, fr. 101;

    Kartaginiensis por Karthaginiensis, fr. 153). O fragmento 12 caracteriza Anquises com

    uma capacidade augural. Segundo a lenda, aps seduzi-lo, Vnus teria se identificado e

    alertado Anquises de que lhe seria dado um filho que reinaria sobre Tria; isso, contudo,

    deveria permanecer em segredo, para que no se desencadeasse a ira de Jpiter. Num

    momento de embriaguez, Anquises permitiu que lhe escapasse o segredo e, fulminado por

    Jpiter, teria ficado coxo, segundo algumas verses, ou cego, segundo outras. A imagem

    literria da cegueira, que representa comumente a capacidade expandida de enxergar o que

    os olhos normalmente no vem, expressa em uma das verses do castigo, bem conviria

    sua caracterizao neste fragmento: Vnus lhe ensina a prever o futuro, ensina-lhe a

    profetizar. Fari, equivalente a prever, na nossa traduo, usado em sentido tcnico

    religioso e significa falar como profeta, profetizar (Steuart, 1976: 101; Skutsch, ibid.:

    174). O significado de diuinum, proftico, encontrado no verso final deste fragmento,

    est em Catulo, XLIV, 383 e Virglio, En., III, 373 (cf. Glare, 1969: 564, s. v. diuinus, item

    23

  • 6). Steuart (ibid.: 102) lembra que a cincia augural de Anquises era j atestada por Nvio

    (fragmento 2-4, citado da ed. de Warmington, 1982: 48):

    Postquam auem aspexit in templo Anchisa,sacra in mensa Penatium ordine ponuntur;immolabat auream uictimam pulchram.

    Depois que Anquises observou a ave no espao celeste, os objetos do culto so ordenadamente dispostos na mesa dos Penates;imolava uma bela vtima ornada de ouro.

    ainda Anquises quem prev o futuro diante dos olhos de Enias, no canto VI da Eneida,

    no deixando de aparecer, mesmo aps a sua morte, em vises de admoestao ao filho (cf.

    En., IV, 351 e ss.). Em considerao desses aspectos, adotamos uma traduo livre de

    pectus diuinum, que propriamente o peito divino, e que interpretamos como o dom da

    profecia.

    13. quom superum lumen nox intempesta teneret

    quando a calada da noite ocupou a luz celeste

    14. transnauit cita per teneras caliginis auras

    rpida voou atravs dos suaves vapores do nevoeiro

    15. constitit inde loci propter sos dia dearum

    desde ento, a deusa das deusas permaneceu no lugar, prxima deles

    16. face uero, quod tecum precibus pater orat

    faz, ento, o que o pai te pede com splicas

    Os fragmentos 13, 14, 15 e 16 apresentam a descida de Vnus, deusa da beleza,

    que se aproxima, durante a noite, do filho, Enias, e de Anquises, pai de Enias (cf. com.

    aos fr. 11 e 12).

    24

  • No fragmento 13, a expresso cristalizada nox intempesta significa calada da

    noite, horas mortas (Saraiva, 2000: 622, s. v. intempestus; cf. tambm Lewis, 1962: 975

    e Glare, 1968: 937). Steuart (1976: 113) sugere que o fragmento faa referncia ao

    momento da tomada de auspcios, quando da fundao da Cidade, localizando-o

    imediatamente antes do nosso fragmento 43. Ainda nesse fragmento, a expresso superum

    lumen poderia ser traduzida tanto por a luz dos deuses, considerando-se superum o

    genitivo sincopado de superus, como por a luz celestial, a luz das estrelas, fazendo

    superum concordar com lumen no acusativo singular. A diferena de sentidos de mera

    nuance: que a calada da noite tivesse tomado conta da luz dos deuses, o que nos daria a

    imagem de Vnus como a nica que se destaca, na escurido; ou que a calada da noite

    tivesse tomado conta da luz celestial, apagando as estrelas, talvez, o que nos daria a

    imagem descritiva do cenrio em que a deusa se apresenta aos mortais. Ainda no fr. 13,

    traduzimos a conjuno quom acompanhada de subjuntivo por quando, seguindo a leitura

    de Bennett (1982: I, 302): trata-se de um uso especfico (e raro) do quom temporal com

    subjuntivo.

    No fragmento 14, traduzimos o termo caligo, no fragmento 14, segundo a terceira

    das quatro indicaes dadas por Steuart (ibid.: 103-4):

    (a) Ela passou rapidamente atravs da fumaa (da cidade em chamas).(b) Ela passou rapidamente atravs da poeira (da batalha).(c) Ela passou rapidamente atravs de delicadas nuvens areas.(d) Ela passou rapidamente atravs do etreo ar.

    O fragmento 15 apresenta Vnus como superior entre as deusas, na construo

    dea dearum, deusa das deusas, que tem dois paralelos no poema, ambos em referncia a

    Juno: vejam-se os fragmentos 39 e 168. Repare-se no uso de sos por eos, [prxima] deles,

    acusativo preposicionado, seguindo a preposio propter; a mesma forma do pronome

    reaparece nos fr. 47, 48, 83, 128 e 209.

    O fragmento 16 parte do discurso de Vnus, que aconselha Enias a seguir as

    recomendaes de Anquises. O verbo orat, que traduzimos suplica, tem aqui o seu

    significado mais ativo, de instar, e est semanticamente ligado ao derivado orator, como

    aparece no fr. 118.

    25

  • 17. est locus, Hesperiam quem mortales perhibebant

    existe um lugar, que os mortais chamavam Hespria

    18. quos homines quondam Laurentis terra recepit

    homens que outrora a terra do Laurento recebeu

    19. Saturno, quem Caelus genuit

    a Saturno, que Cu gerou

    20. late Saturnia terra

    muito ao longe, a terra de Saturno

    21. quam prisci casci populi tenuere Latini

    que os priscos latinos, o antigo povo, ocuparam

    Os fragmentos anteriores apresentam a Hespria, isto , a Itlia: Hespria, termo

    potico, significa, no fr. 17, propriamente a terra do oeste, o que se identifica comumente

    com a Itlia e, menos freqentemente, com a Espanha; isso porque, para os gregos, esses

    pases eram naturalmente o local do pr do Sol. O passo eniano imitado por Virglio, En.,

    I, 530. Skutsch (1985: 178) sugere trs possibilidades de contextualizao para o

    fragmento: como na Eneida, III, 163, poderia tratar-se de um anncio proftico a Enias;

    como o relato da sua jornada feito por Ilioneu, tambm na Eneida, I, 530, poderia ser este o

    de Enias; por ltimo, poderia tratar-se do poeta, familiarizando os seus leitores com o

    nome antigo da Itlia.

    A terra do Laurento do fr. 18 um territrio do Lcio, onde se escondeu Saturno,

    quando da sua queda do Olimpo, expulso pelo prprio filho, Jpiter. Valmaggi (1945: 8-9)

    observa que, como em Virglio (En., VII, 25 e ss.), o fragmento provavelmente descrevia a

    26

  • chegada do sqito de Enias ao Laurento, o que dava ensejo a uma descrio do Lcio.

    Quos homines, homens que, assim, seria uma referncia aos seguidores de Enias,

    possivelmente mencionados num verso anterior. Prisciano (I, 338 H, apud Valmaggi, loc.

    cit.; VII, 337 H, apud Steuart, 1976: 4), explica que os antigos usavam a forma Laurens por

    Laurentis para nomear o Laurento.

    Os fragmentos 19-21 so uma digresso que descreve a lenda dos antigos tempos

    do Lcio. O Lcio tambm chamado terra de Saturno (fr. 20), deus filho do Cu (fr. 19)

    e da Terra, que criou costumes e ensinou aos latinos a agricultura e as tradies, enquanto o

    antigo povo ocupou aquelas terras (fr. 21). No fragmento 19, note-se o uso de Caelus,

    Cu, em forma masculina, o que pouco usual na denominao do deus. No fragmento

    20, Saturnia terra, a terra de Saturno, segundo Varro, L. Lat., V, 42, uma referncia

    que inicialmente se aplicava ao monte Capitolino, estendendo-se o nome ao Lcio, como

    aqui o emprega nio. No fragmento 21, prisci Latini, os priscos latinos, uma expresso

    que nomeia o povo tomado por aborgine do Lcio, antes da chegada dos troianos; o que se

    insere entre o adjetivo prisci e o nome Latini, a expresso casci populi, poderia ser vista

    como um genitivo, do antigo povo, ou como um aposto, como aqui a traduzimos.

    22. excita cum tremulis anus attulit artubus lumen, talia tum memorat lacrumans, exterrita somno: Eurudica prognata, pater quam noster amauit, uires uitaque corpus meum nunc deserit omne. Nam me uisus homo pulcer per amoena salicta 5 et ripas raptare locosque nouos; ita sola postilla, germana soror, errare uidebar tardaque uestigare et quaerere te neque posse corde capessere: semita nulla uiam stabilibat. Exim compellare pater me uoce uidetur 10 his uerbis: o gnata, tibi sunt ante ferundae aerumnae, post ex fluuio fortuna resistet. Haec ecfatus pater, germana, repente recessit nec sese dedit in conspectum corde cupitus, quamquam multa manus ad caeli caerula templa 15 tendebam lacrumans et blanda uoce uocabam. Vix aegro cum corde meo me somnus reliquit.

    Quando a anci, desperta, trouxe a luz com os membros trmulos, ento que aquela, chorando, apavorada com o sonho, conta isto:Filha de Eurdice, a quem nosso pai amou,

    27

  • as foras e a vida agora abandonam todo o meu corpo.5 Eis que pareceu que um belo homem por ameno salgueiral, ribeiras e lugares novos me arrastava; assim, sozinha,depois disso, irm germana, eu parecia vagar e lenta procurar-te e seguir-te, mas no poder alcanar-te no corao: nenhuma senda determinava um caminho. 10 Em seguida, meu pai parece chamar-me em alta vozcom estas palavras: filha, antes h alguns sofrimentos a serem suportados por ti; depois, do rio, a fortuna se restabelecer.Tendo o pai dito essas palavras, germana, de repente se retirou, nem, desejado no corao, deu-se a ver, 15 embora as mos aos azulados espaos do cu eu, chorando muito, estendesse e o chamasse com branda voz. Somente nesse momento, com o meu corao aflito, o sonho me deixou.

    O fragmento 22, um dos mais longos que nos restaram, faz a narrativa da

    concepo de Rmulo e Remo, que aqui so dados como filhos de lia, personagem que se

    vai identificar nos fragmentos 25 e 28. O estupro da virgem pelo deus Marte, como

    conhecido pela lenda, tratado de forma pouco clara, com menes que pressupem o

    conhecimento do mito, aqui apresentado num sonho.

    A cena se abre com a chegada de uma anci que traz a luz para o quarto em que

    lia acaba de despertar-se do sono. Tal anci, anus (v. 1), segundo as diferentes leituras

    crticas que se tm feito do texto, ora vista como uma terceira personagem cuja atribuio

    se reduz a segurar a luminria, ora identificada com a irm mais velha, designada nos

    versos 3 e 7 por vocativos. Marouzeau (1935: 78), referindo-se alternncia entre longas e

    breves, comentando o uso que o poeta pode fazer dessas qualidades opostas, reconhece as

    passadas trpegas e agitadas de uma anci neste verso:

    t c-t / cm tr-m- / -ls // -ns / t-t-lt / r-t-bs / l-mn

    Com Marouzeau est Skutsch (1985: 196), que chama ateno para o verso quase

    exclusivamente formado de ps datlicos e cita En., IV, 641 em comparao.

    Apavorada com o sonho, como traduzimos exterrita somno (v. 2), toma

    somnus, propriamente sono, por somnium, sonho (cf. Valmaggi, 1945: 10); outra

    leitura seria a proposta por Pascal (apud Valmaggi, ibid.: 10-11), bruscamente desperta do

    sono. Segundo Skutsch (ibid.: 196), lia desperta do sonho com a sua prpria voz, quando

    28

  • chamava pelo pai com branda voz, blanda uoce (v. 16). Repare-se ainda na aliterao em

    t do verso, ritmando com a plosiva, em harmonia imitativa, os soluos do choro.

    Observemos, ademais, com Skutsch (ibid.: 195), que cada linha deste fragmento contm

    uma aliterao, em geral de palavras avizinhadas no texto: prognata pater (v. 3); uires

    uitaque (v. 4); ripas raptare (v. 6); corde capessere (v. 9); etc. (cf. os comentrios

    detalhados das aliteraes no consciencioso trabalho de Grilli, s.d.: 226-228).

    O verso 3 apresenta duas ambigidades que no se podem esclarecer sem o total

    conhecimento da rvore genealgica de Enias e de lia segundo a verso eniana do mito,

    conhecimento de que no possumos seno indcios. Filha de Eurdice, o vocativo que

    lia utiliza para referir-se irm, segundo Warmington (1988: 15, n. f), atesta que nio

    dava a lia e irm o mesmo pai, Enias, mas lia no seria filha de Eurdice, personagem,

    ademais, no identificada. Steuart (1976: 107) concorda com Warmington e explica que a

    palavra germana, com que lia se dirige duas vezes irm, significa propriamente nascida

    do mesmo pai e da mesma me, asseverando, em seguida, que esse sentido no to

    estreitamente respeitado (cf. tambm Skutsch, ibid.: 198, que acredita que o adjetivo

    equivalha a cara, querida). O latim pater quam noster amauit, a quem nosso pai amou,

    no deixa claro, e procuramos restabelecer essa ambigidade na nossa traduo, se o

    relativo se refere irm ou a Eurdice. Tal ambigidade desfeita por Warmington (ibid.:

    15), que traduz voc a quem o nosso pai amou. Skutsch (ibid.: 197) ratifica os crticos j

    citados, alm de asseverar que quam se refere a Eurydica e explica a sua identidade. A

    figura da confidente, chamada cena para ouvir os infortnios da personagem principal,

    trao caracterstico da tragdia, e assim se assinala uma das influncias na construo do

    fragmento.

    No verso 5, a palavra me, que traduzimos como o acusativo de raptare, me

    arrastava (linha 6 da traduo), poderia ainda ser lida como um dativo (Pascal, apud

    Valmaggi, ibid.: 11), ligado ao verbo uisus: pareceu-me. Preferimos a primeira leitura

    porque, ainda que a forma me equivalha atestadamente ao dativo mihi em outros

    fragmentos dos Anais (e.g. cf. fr. 64 e com. ad loc.), aqui temos trs ocorrncias do verbo

    uidetur (uisus, v. 5; uidebar, v.7; uidetur, v. 10), nas quais uma traz o verbo

    intransitivamente utilizado, e as outras duas trazem o mesmo me que poderia equivaler a

    um acusativo (de raptare, nos vv. 5-6; de compellarre, no v. 10) ou ao dativo,

    29

  • acompanhando o verbo uidetur. O verbo aparece ainda como intransitivo no fr. 3. Aqui,

    convm notar que as ambigidades que se podem ler de acordo com as diferentes

    classificaes que se atribuam forma me enriquecem o texto: me raptava ou me pareceu,

    chamar-me ou parece-me, diferentes formas de olhar para a imagem que se descreve, a de

    um sonho, cujos acontecimentos, em rpida seqncia, mal se podem acompanhar pela

    personagem que o protagoniza. A confuso e o medo so ainda representados pela

    separao de me uisus... raptare, nos vv. 5 e 6, em que o primeiro enjambement do

    fragmento, seguido pelo segundo, vv. 6 e 7, cria um ritmo mais rpido na passagem de um

    verso a outro, ritmo que se quebra no incio dos versos 6 e 7, ambos iniciados com dois ps

    espondeus (Bandiera, 1978: 54, e Lanham, 1970: 185). Observem-se ainda os

    enjambements entre os versos seguintes, 8 e 9, 10 e 11, 11 e 12, 15 e 16.

    O homo pulcer a que lia se refere o deus Marte, meno que se faz clara no s

    pelo conhecimento prvio e esperado do mito, mas tambm pelo uso do adjetivo pulcer,

    belo, que originalmente pertence esfera religiosa, e que utilizado por nio uma vez

    em referncia a Rmulo e outra a Vnus (cf., respectivamente, os fr. 43, v. 6, e 12). A

    reverncia religiosa est, ademais, distribuda nos detalhes da narrativa que no s desviam

    a ateno do deus, mas tambm amenizam as suas aes: observe-se, por exemplo, o

    enfraquecimento semntico criado por raptare, arrastar, que subatitui a descrio do

    ponto mais crtico de tal abduo, o estupro propriamente dito da vestal.

    A repetio de semas em termos diferentes, marca caracterstica do latim arcaico

    (cf. com. expresso auspicio augurioque, fr. 43), o que se v no conjunto uestigare et

    quarere te, no verso 8, que traduzimos procurar-te e seguir-te, em que o sema da busca se

    reitera em ambos os verbos, que tm um s complemento expresso, que repetimos na

    traduo, te. A busca se encontra ainda como sema de capessere, freqentativo de capere,

    que aqui tem propriamente o significado de alcanar (Skutsch, ibid.: 199). O conjunto

    corde capessere de interpretao difcil, e Skutsch (loc. cit.) acredita que signifique o

    mesmo que cupitam capessere, alcanar a desejada, alm de fazer notar a aliterao em

    c, que avizinha a expresso de corde cupitus, desejado no corao, que comparece no v.

    14, em referncia ao pai. Quanto a ns, preferimos apoiar-nos nas leituras de Valmaggi (op.

    cit.: 11) e Steuart (op. cit.: 108) e considerar o ablativo corde como um locativo, cujo uso

    parece ter sido comum entre os arcaicos. Warmington (op. cit.: 16-17) considera que em

    30

  • corde capessere o ablativo se refira a lia, e traduz a expresso alcan-la em meus

    sentidos (catch you in my senses). O uso da palavra cor, corao, em si, tipicamente

    eniano, e aqui est identificado como o rgo do desejo (vv. 9 e 14), deixado aflito pela

    viso que desaparece (v. 17; cf. Gowers, 2007, para um estudo desenvolvido dos valores da

    palavra e do conceito de cor em nio, e von Albrecht, 1999: 55, para uma leitura das

    emoes que no descritas em termos fsicos, mas esto localizadas no corao na

    literatura latina). Repare-se que o verso 9, no render a angstia de lia, que continua sem

    cessar em busca de um caminho, construdo sem cesura, numa seqncia sonora e ligeira

    de cinco ps dtilos (Bandiera, op. cit..: 54; Marouzeau, op. cit.: 271; Skutsch, loc. cit.).

    No verso 10, o pai parece chamar (compellare uidetur) com a autoridade discreta

    que traz este verbo no que especifica de uma chamada para fora da situao de conflito,

    para ento falar parte, acompanhado do verbo parecer que estabelece a condio do pai

    trata-se de um morto e, portanto, de uma imagem, de uma viso, de um parecer que no

    ; o ltimo verbo, ecfatus (v. 13), tendo dito, em sentido lato, tendo anunciado, previsto

    em sentido especfico, anuncia, no seu esmiuamento semntico, que o pai, mais que

    declarar, prev: este mesmo verbo o que se empregava para expressar o que era dito,

    declarado, determinado ou fixado por um ugure. J se marca, desde j, a autoridade de que

    se investe esta figura paterna, pois, para alm dos verbos que destacam a sua fala, ele

    mesmo aparece numa prosopopia (Martins, 2000: 216: [A prosopopia] consiste em pr

    em cena os ausentes, os mortos, os seres sobrenaturais ou mesmo os inanimados e faz-los

    agir, falar, responder) e inicia a sua fala com uma apstrofe: o vocativo o gnata (v. 11),

    filha. Tais recursos marcam a distncia que separa o pai morto e inatingvel da filha, viva e

    atingida por um futuro amedrontador que se faz presente no sonhado e nas previses do pai.

    Esse discurso premonitrio, alis, tem funo, papel e posio proeminentes em

    toda a seqncia. Protegido pelo invlucro das palavras da filha, o seu anncio vem

    marcado por uma aliterao em [p], compellare pater (v. 10). Da mesma forma, no mesmo

    verso, a aliterao de [w] em uoce uidetur, parece em voz alta, destaca, a um s tempo, o

    instrumento, a forma como atua a nova personagem e a sua apario. O substantivo uoce

    sugere, ainda, que Enias no se dirige a lia em presena, mas que somente a sua voz se

    faz ouvir, e pater uoce, o pai, em voz alta talvez equivalha a patris uox, a voz do pai;

    compare-se esta apario com a de Egria, no canto II, fr. 61 (Skutsch, ibid.: 199). Em

    31

  • adio, o verso 10 ainda apresenta uma assonncia da vogal e, anterior, dividida entre

    ocorrncias de diferentes quantidades (Exim compellare me pater uoce uidetur).

    No segundo verso da fala do pai (v. 12), a aliterao liga fluuio, [do] rio, e

    fortuna, sorte, fortuna, marcando a relao necessria entre os dois elementos

    conhecemos a fortuna de lia, e a dos seus filhos Rmulo e Remo, que, lanados ao rio,

    sobrevivero, pelo conhecimento prvio do mito que aqui se narra. A expresso post ex

    fluuuio, depois, do rio, determinao de tempo e forma de salvao para um futuro que se

    principia em dores, vem isolada e destacada pela cesura dupla:

    -rm- / -n, // pst / x fl-u- / - // fr- / -t-n r- / -s-stt

    A idia de premonio que est contida neste sonho est tramada em torno da

    figura do pai: na sua fala que aparecem os dois nicos verbos com aspecto de futuro,

    designadamente ferundae, a serem suportados (v. 11), e resistet, se restabelecer (v.

    12) a primeira forma, inclusive, destacada pelas rimas (ou ecos?) que faz no conjunto

    ferundae aerumnae (sobre a semelhana de desinncia casual como recurso retrico, veja-

    se Her., IV, 28), por um lado, e ferundae aerumnae, por outro. A outra palavra em que

    detectamos o sema futuro, ecfatus, tendo dito (v. 13), por ser um verbo que se aplica ao

    que se diz como previso, como j deixamos exarado, faz tambm referncia figura do

    pai. Warmington (op. cit.: 17 e n. a) traduz resitet por se erguer (will rise) e assinala, em

    nota, que o uso raro do verbo descreve uma viso que profetiza a salvao de Rmulo e

    Remo por uma cheia do Tibre. Tal uso raro pode ser a expresso estilstica de solenidade

    oracular, como assinala Skutsch (ibid.: 200).

    A declarao de Enias de que a fortuna se restabeleceria pelo rio se confronta e

    confirma com as passagens de Porfrio (ad Hor., Carm. I, 2, 17) e de Srvio (ad Aen., I,

    273). O primeiro gramtico anota que, na verso eniana do mito, tendo sido lanada ao rio

    Tibre por ordem do rei albano Amlio, lia contraiu matrimnio com o rio nio; Srvio,

    por sua vez, acrescenta que lia ter sido lanada ao Tibre com os dois gmeos por ordem

    do mesmo rei, tendo-se casado ou com o rio nio ou com o Tibre, segundo outras

    verses.

    32

  • Se so os pequenos detalhes de sonoridade e ritmo que destacam a funo e a

    participao da figura do pai nesta narrativa, a fala de lia propriamente dita, mais longa e

    entrecortada como est, englobando o discurso do prprio pai, sobressai pela seleo lexical

    em torno da qual ela se constri. De volta ao verso 10, a palavra uoce, que traduzimos em

    alta voz, pode ser, como acreditou Pascoli (apud Valmaggi, op. cit.: 12), um pleonasmo

    homrico, mas tambm lembra a construo virgiliana na Eneida, V, 161, verso em que

    compellat uoce significa grita a, segundo Cunha (1948: 289).

    No verso 15, multa um adjetivo plural neutro em funo adverbial, ligado aos

    trs verbos lacrumans, tendebam e uocabam (v. 11), segundo Steuart (op. cit.: 108), que

    ainda nota que a idia de repetio que enfatizada pelo preciso contraste de imperfeitos

    com perfeitos na cena enquanto, chorando, lia estendia as mos e chamava pelo pai

    com branda voz, este desapareceu e no se deu mais a ver. Na traduo, ligamos a forma

    adverbial a chorando. Observe-se o expressivo enjambement entre os versos 15 e 16, em

    que o advrbio multa (v. 15) se refere aos trs verbos do verso seguinte (v. 16), e manus,

    complemento de tendebam, encontra-se tambm no verso anterior ao que contm o verbo.

    Ainda no verso 15, a palavra templa, que aqui traduzimos espaos, parece ter derivado do

    significado religioso de templo, um espao que o ugure determinava, traando-o

    imaginariamente no cu, para que pudesse observar o vo dos pssaros (cf. Varro, L. Lat.,

    VII, 7 e Srvio, ad Aen., I, 92); a mesma palavra reaparece no fr. 41.

    Ao advrbio uix, no ltimo verso, traduzimo-lo s nesse momento (cf. Glare,

    1968: 2083, s. v. uix, item 3a). A palavra cum, porm, poderia estar a por conjuno

    temporal, ligada ao advrbio. Glare assinala que uix pode ter significados muito similares

    com ou sem essa conjuno. Esse cum, contudo, poderia ser ainda uma preposio regente

    do conjunto ablativo aegro corde meo, aflito o meu corao, como o cum do primeiro

    verso, e assim o traduzimos. Essa ambigidade se cria tambm em torno da ocorrncia de

    cum no primeiro verso, que traduzimos como uma conjuno relacionada ao tum do

    segundo verso, mas que nada impede que fosse visto como uma preposio de ablativo

    ligada a tremulis artubus, membros trmulos.

    Esse fragmento recebeu maior ateno de Krevans (1993: 257-271), Elliott (2007:

    47-50) e Keith (2007: 55-72). A primeira das trs autoras, Krevans, analisa o sonho

    segundo a deciso de nio de combinar diferentes tipos de sonhos (ibid.: 259), quais

    33

  • sejam, as cenas de sonhos em tragdias e o sonho tradicional pico, cujo modelo inicial

    seria o homrico. Perpassando diferentes exemplos das literaturas grega e latina, Krevans

    estabelece um parmetro para o qu