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Francismary Alves da Silva Gabriel da Costa vila
Paloma Porto Silva (Orgs.)
Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC
1 Edio
ISBN: 978-85-62707-19-3
Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
2010
SUMRIO
Prefcio........................................................................................................03
Primeira Seo............................................................................................05
Segunda Seo............................................................................................42
Organizao, Realizao e Apoio..........................................................536
3
PREFCIO
Com o intuito de fortalecer a crescente rede de produo de conhecimentos no campo da Histria das Cincias e reas afins, discentes do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Minas Gerais organizaram o I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias. Com apoio do Scientia - Grupo de Histria e Teoria da Cincia e do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG, tal Encontro realizou-se entre os dias 22, 23 e 24 de setembro de 2010, na Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas - Fafich/UFMG. Dentre os participantes do evento encontram-se alunos de graduao e de ps-graduao, professores, tcnicos, pesquisadores e acadmicos de diferentes reas, como a Biologia, a Qumica, a Filosofia, a Histria, a Antropologia, a Fsica, a Engenharia, a Sociologia, a Matemtica, entre outras. Acreditamos que ter fomentado um dilogo possvel entre as distintas reas do conhecimento tenha sido uma das grandes conquistas do Encontro que, para nossa grande alegria, reuniu pesquisadores de diversas regies do pas. A quantidade de trabalhos apresentados durante o I ENAPEHC foi impressionante. Ao todo, foram enviados sessenta resumos para apresentao de trabalhos, que foram distribudos em cinco Simpsios Temticos. Posteriormente, devido grande demanda e escassez de tempo, a Comisso Executiva optou por fundir os trabalhos enviados a dois dos Simpsios Temticos em apenas um grupo de trabalho, o que nos deu como resultado final quatro Simpsios Temticos realizados durante o Encontro. Temos o prazer de destacar os cinco Simpsios Temticos originalmente aprovados: a) Cincias da Vida: sujeitos, prticas e instituies no Brasil (proposto por Valria Mara da Silva e Rodrigo Osrio Pereira); b) Discursos, saberes e prticas psiquitricas no Brasil (proposto por William Vaz de Oliveira); c) Histria das prticas e saberes mdicos no Brasil (proposto por Iranlson Buriti de Oliveira e Paloma Porto Silva); d) Histria da Sade e da Doena (proposto por Betnia Gonalves Figueiredo, Rita de Cssia Marques e Anny Jackeline Torres Silveira); e) Cincia, tecnologia e cultura na histria (proposto por Mauro Lcio Leito Cond). Como resultado final do evento, apresentamos os Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Essa publicao expressa a pujana da produo acadmica oriunda dos grupos e institutos de pesquisas e dos
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programas de Ps-Graduao em Histria das cincias das diversas regies do Brasil. Optamos por organizar os Anais da seguinte forma: inicialmente, na primeira seo, publicamos alguns dos trabalhos que foram apresentados durante as Conferncias e Mesas Redondas seguindo a ordem em que as mesmas aconteceram no I ENAPEHC. importante lembrar que nem todos os convidados apresentaram textos, pois as apresentaes eram livres do compromisso textual. Contudo, algumas apresentaes renderam textos que nos foram gentilmente doados pelos convidados que participaram das Conferncias e Mesas Redondas. Posteriormente, na segunda seo, publicamos em ordem alfabtica os trabalhos enviados pelos participantes e organizadores dos Simpsios Temticos. Com exceo da primeira pgina de cada trabalho, a diagramao original de todos os autores foi preservada. Ademais, os quarenta e dois trabalhos apresentados nesses Anais impressionam pela abrangncia temtica, pela diversidade de reas e pelo rigor cientfico. Por fim, a Comisso Executiva agradece ao Scientia e ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG pela realizao do I ENAPEHC. Agradece tambm Fafich / UFMG e FUNDEP pelo constante apoio. Em especial, gostaramos de agradecer aos professores convidados e aos professores colaboradores que, desde o incio de nossa jornada, se dispuseram gentilmente a participar do ENAPEHC, fazendo do mesmo um evento de representatividade nacional e de periodicidade bianual. So eles: Olival Freire Jr. (UFBA), Anny Jackeline Torres Silveira (UFMG), Iranilson Buriti de Oliveira (UFCG), Betnia Gonalves Figueiredo (UFMG), Bernardo Jefferson de Oliveira (UFMG), Rita de Cssia Marques (UFMG), Jnia Ferreira Furtado (UFMG), Ana Carolina Vimieiro Gomes (UFMG), Mauro Lcio Leito Cond (UFMG), Ricardo Fenati (FAJE), Eduardo Viana Vargas (UFMG), Lorelai Kury (FIOCRUZ), Ktia Gerab Baggio (UFMG), Jos Newton Coelho Meneses (UFMG), Carlos Alvarez Maia (UERJ), Jos Carlos Reis (UFMG), Luiz Carlos Soares (UFF) e Ivan da Costa Marques (UFRJ). Esperamos que essa experincia de sucesso possa se repetir em outras edies do evento, transformando o ENAPEHC em um espao de constante interao e aprendizado para os jovens pesquisadores em Histria das Cincias e reas afins.
Francismary Alves da Silva Gabriel da Costa vila
Paloma Porto Silva
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro
Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de
Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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PRIMEIRA SEO
A histria da cincia histria? Explicando uma tautologia*
Carlos Alvarez Maia
Doutor em Histria Social pelaUSP
Ps-Doutor pela UFMG
Professor adjunto / UERJ
Esta mesa foi motivada em mim pelo texto irretocvel que o professor Jos Carlos
Reis apresentou na avaliao da dissertao da Francis, em junho passado. Trata-se de
um texto que merece uma circulao ampla, todo mestrando ou doutorando que se
dedica histria da cincia deveria l-lo e analis-lo cuidadosamente.
Dentre outras questes, ele avalia uma situao bastante problemtica na historiografia
dos estudos de cincia e que assola essa rea desde suas origens. Durante as primeiras
dcadas da profissionalizao do historiador da cincia no sculo XX, e at a dcada de
1970, ela predominou na historiografia com a denominao de querela internalismo-
externalismo. Uma disputa que colocava em regies opostas aqueles que julgavam que
a atividade cientfica decorria de um processo lgico de observao-experimentao dos
fatos da natureza e, de outro lado, aqueles que procuravam as motivaes sociais como
a melhor explicao para a constituio do saber cientfico.
Do lado dos internalistas, supunha-se que a lgica interna das teorias espelhava uma
certa lgica dos fenmenos naturais que fora capturada por cientistas habilitados em
ler o livro da Natureza. A participao dos agentes humanos nesse processo era um
* NOTA DOS ORGANIZADORES DO I ENAPEHC: A histria das cincias histria? Explicando uma tautologia foi o ttulo da mesa redonda do dia 24 de setembro de 2010, realizada durante o I ENAPEHC, evento organizado pelos discentes do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG,
Belo Horizonte. Essa mesa redonda foi proposta pelos professores Carlos Alvarez Maia (UERJ), Jos
Carlos Reis (UFMG) e Luiz Carlos Soares (UFF). O texto que segue foi apresentado pelo professor
Carlos Alvarez Maia nessa ocasio.
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro
Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de
Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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papel passivo, eles deveriam simplesmente reproduzir aquilo que j estava dado no
mundo. Dizia-se assim que a verdade era descoberta, atingia-se a verdade da natureza.
Quando esta fidelidade reprodutiva no era respeitada ocorria o erro. E o erro era devido
uma interferncia humana, ao papel ativo desse agente, na percepo dos
acontecimentos. O que se esperava era a no interferncia dos cientistas na rotina dos
fenmenos, que eles no errassem ou no fraudassem, que no fossem ativos. Caso
ocorresse um equvoco ou desvio da verdade reprodutiva ento poderia, e deveria, ser
desenvolvida uma sociologia do erro que explicasse como fatores externos ao
conhecimento imiscuram-se no procedimento correto e alteraram seus resultados. A
sociologia do erro deveria fazer uma anlise social externa das maneiras ativas
que os cientistas interferiram na pesquisa.
Assim o internalismo percebia os humanos como passivos, o nico agente ativo
permitido era a prpria natureza. A verdade era compreendida como a captura correta
desse funcionamento natural. Da decorriam outras caractersticas, como: a objetividade
isto , a verdade emerge do objeto e a neutralidade axiolgica do pesquisador. Estas
deveriam ser qualidades desejveis para a pesquisa.
Da decorreram duas prticas. Na historiografia das histrias das cincias desenvolveu-
se com fora a tendncia de que a explicao histrica deveria perseguir o nexo entre as
teorias vencedoras, aquelas que se aproximavam melhor da verdade dos fatos. A outra
prtica da decorrente foi a prpria atividade cientfica: os cientistas adotavam como
normas comportamentais estas prescries. Havia uma harmonia entre o fazer cientfico
e a histria que se produzia sobre esses fazeres. Tornavam-se complementares.
Esta foi uma denominao corrente dos estudos de cincia entre as dcadas de 1940 e de 1970. J a proposta do
programa forte produz um deslocamento radical na sociologia da cincia de linhagem mertoniana e promove um resgate do olhar mannheimiano, da sua sociologia do conhecimento.
At esse momento, a verdade e a objetividade cientfica no solicitavam explicaes sociolgicas, bastavam a anlise
do contedo lgico-conceitual e o tratamento epistemolgico para compreender as razes e resultados do
conhecimento verdadeiro e objetivo da cincia. J os enganos, as fraudes e os fracassos cientficos, no, estes
estariam sob a responsabilidade da anlise sociolgica. Somente quando os elementos sociais imiscuam-se no fazer
cientfico que a sociologia era convocada para explicar o erro que certamente ocorrera. Estvamos na era da sociologia do erro, retratada no pensamento: o erro deve-se ingerncia das questes sociais, pertence sociedade, e a verdade decorre da compreenso lgica da natureza.
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro
Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de
Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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Toda disciplina cientfica observava uma certa utilidade nas descries internas do
desenvolvimento dessa disciplina. Em geral essas histrias disciplinares eram
empregadas como formas pedaggicas introdutrias para os iniciantes.
Assim havia uma histria da qumica no departamento de qumica, da matemtica no de
matemtica etc. Eram histrias que ornamentavam aquele saber disciplinar dando-lhe
um sentido progressivo e serviam de testemunho (histrico, factual) do correto modo de
proceder e servia de manual sobre o comportamento desejvel para os futuros
cientistas.
Ainda hoje esse modelo de fazer uma histria das cincias tem seu espao de atuao
assegurado. Em quase todo departamento de fsica h uma histria DA fsica, tal como
no de biologia h uma outra histria DA biologia e assim segue em monotonia por todos
os cantos da universidade. O que estas histrias DE possuem em comum?
Elas possuem duas coisas em comum: so histrias que se caracterizam por se
nomearem de histria e que, entretanto, no so produzidas por historiadores. So
histrias que pertencem a seus prprios objetos historiados. So histrias genitivas, elas
possuem um proprietrio, a disciplina em questo. So histrias de historiadores
ausentes. So histrias que reduzem o aspecto histrico a um evolver de teorias, a uma
diacronia causal da lgica interna progressiva das idias cientficas.
Ainda que esse tipo de histria da cincia prossiga com sucesso no sculo XXI j
encontramos algumas excees, mesmo aqui no Brasil. H uma infiltrao do
pensamento histrico em diversos setores acadmicos. H aliengenas, desbravadores,
instalados em alguns departamentos: desde no de Educao Fsica ao de Fsica, na
Geologia, na Sade Pblica, na Educao mas ainda so minoritrios, so excees. H
tambm esforo institucional em alguns setores, talvez por idiossincrasias locais, como
a COC na Fiocruz ou o Mast no CNPq. So iniciativas acobertadas pelas disciplinas
cientficas [Sade e Astronomia] porm que alcanaram alguma autonomia. Em
departamentos universitrios de histria onde a autonomia da pesquisa mais
garantida s conheo dois casos no Brasil, o da USP e o daqui, da UFMG, que
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro
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Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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produziram grupos de pesquisa atuantes. H outras iniciativas dentro da histria, como a
do Luiz Carlos Soares na UFF. Na minha universidade, a UERJ, a rea de histria da
cincia foi impedida de figurar nos destinos da ps-graduao.
Isso nos encaminha para outro lado daquele drama, o da histria da cincia ser uma
empresa de historiadores ausentes: parece que a prpria disciplina, ou seus
profissionais, no vem a atividade cientfica como um objeto histrico. H uma
resistncia dentro dos departamentos de histria para a entrada da cincia entre seus
objetos de pesquisa. Discutir a historicidade da cincia parece ou empreendimento
hercleo ou um sem sentido. Ainda h na histria aqueles que vem a cincia como a
produo de indivduos especiais que capturam a lgica DA natureza em uma passiva
genialidade. No vem a cincia como produo de agentes sociais ativos.
Por qu? Como vencer esta barreira?
Talvez um componente desta questo explicite-se nos acontecimentos historiogrficos
que marcaram o crescimento da disciplina histria das cincias no sculo XX. Desde
seu alvorecer, ainda no sculo XVII pelas mos dos secretrios das academias
cientficas, a histria da cincia sempre foi internalista, estava prxima da histria das
idias filosficas. Esta situao somente sofreu alterao na dcada de 1930 com a
apario de uma historiografia marxista, ocasio em que se instala a tal querela
internalismo-externalismo. Afloram os externalistas.
Com o surgimento dos externalistas, especialmente marcados pelo trabalho de Boris
Hessen em 1931, surgia ameaadoramente uma outra compreenso do fazer cientfico
como historicamente situado. Tornava-se uma ameaa para os historiadores das idias e
para seu modelo dominante de compreender a cincia movida pela fora e necessidade
dos prprios conceitos ante o contraste com os fatos naturais. Os externalistas traziam
uma novidade, pensavam a produo do saber como uma atividade de indivduos porm
historicamente constitudos e que se moviam em uma arena societria, submetidos a
foras econmicas e ideolgicas.
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A mais contundente oposio feita a esses externalistas e nascente sociologia do
conhecimento de Mannheim deu-se com o Crculo de Viena e o de Berlim. Ainda na
dcada de 1930 surgira a denominada dicotomia de Reichenbach que calou fundo no
ambiente dos estudos de cincia, seja em internalistas ou em externalistas.
Reichenbach props a diviso entre contexto da descoberta e contexto da
justificao. O contexto da descoberta trataria dos procedimentos sociais e
psicolgicos que levaram ao sucesso de um empreendimento visto como descoberta
de algo que j estava l, no alm das relaes humanas. J a justificao seria o
contexto lgico-epistemolgico que mostraria as conexes necessrias e suficientes para
que tal ocorrncia se desse ou devesse acontecer. O contexto da descoberta
pertenceria aos processos, idiossincrticos ou no, que possibilitaram (favoreceram ou
impediram) que determinada descoberta cientfica fosse realizada. Seria o territrio do
historiador ou do socilogo cuja funo era explicar como determinado evento ocorreu
em seu devir histrico e social.
Este contexto, o da descoberta, no garantiria se aquela descoberta era consistente ou
no, se tratava-se de cincia ou pseudo-cincia. Simplesmente relatava a forma pela
qual o fato acontecera. O contexto da descoberta nada dizia a respeito se aquela teoria
era uma boa teoria ou no. No garantia a verdade nem explorava as condies para
que a verdade do fato se desse. Era um corolrio ornamental para aquela outra
explicao, a que examinaria o ncleo duro da teoria: o contexto da justificao.
Dizia-se na poca a gnese de uma teoria nada garante sobre a validade da mesma.
A dicotomia de Reichenbach constituiu assim um obstculo para uma histria da
cincia com vis efetivamente histrico, ela constitua dois lquidos imiscveis. De um
lado, da justificao, o da epistemologia e sua histria das idias. De outro, da
descoberta, o da histria tout court e da sociologia restritas uma crnica das aes
dos cientistas. O histrico era um terreno meramente interessante que descrevia como
determinada teoria foi descoberta e o epistemolgico examinava as condies lgicas
efetivas que levaram a uma determinada descoberta cientfica necessria. O primeiro
nada dizia a respeito do segundo. A verdadeira explicao inclusive a verdadeira
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explicao histrica da emergncia de novas idias cientficas encontrava-se no
contexto da justificao. Com isso a histria das idias ganhava legitimao como a
forma de fazer histria que realmente interessava a cientistas e filsofos. A histria
interna vestia-se como a histria verdadeira, cientfica. A histria externa pouco ou
nada atendia aos interesses corporativos dos cientistas. Os externalistas nada falavam do
contedo, das condies nas quais a verdade cientfica era constituda historicamente.
Ao lado das dificuldades naturais para algum tratar desse objeto, as cincias, devido a
seu lxico hermtico e esotrico, as cincias humanas omitiram-se e encontraram na
dicotomia de Reichenbach um registro de cumplicidade para seu afastamento das
questes mais especficas do fazer cientfico. Dessa forma, os prprios historiadores
evitavam tratar do ncleo duro das cincias. Em ltima instncia, seu silncio servia de
declarao de que a cincia no pertencia ao territrio do historiador. Omitiam-se
quanto historicidade da atividade cientfica. E isso era, e , grave e tambm bastante
insatisfatrio.
Esse quadro sofreu poucas alteraes apesar dos trabalhos de Koyr e Butterfield.
Mesmo Kuhn que ousou avanar bem mais contra a dicotomia de Reichenbach, o
obstculo persistiu e o modelo de cincia difundido pelo Crculo de Viena e por Popper
seguia com alguns arranhes, mas seguia.
At o incio da dcada de 1970, ainda valia com restries o velho modelo. De um lado,
cientistas passivos, inertes ante uma natureza ativa, que ditava as leis a serem
descobertas, fazendo uma histria bem comportada das idias cientficas. Ainda
valiam aqui os mitos da objetividade e da verdade cientficas. De outro, os externalistas
e at Kuhn sem grande sucesso tentavam demonstrar quanto a cincia era um
produto da sociedade, uma sociedade que teria um papel mais ativo e construtivo.
Havia, sim, uma vontade marxista em apresentar as leis de Newton como consequncia
da emergncia do modo de produo capitalista, mas isto j estava entrando no
anedotrio que circulava ento, na rea.
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro
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Esse quadro sofre uma mudana drstica com a retomada do programa de uma
sociologia do conhecimento de Mannheim por socilogos ingleses na dcada de 1970.
O lanamento do programa forte por Barnes e Bloor foi um ponto de virada. A
questo mais notvel foi a proposio de que tanto a verdade quanto o erro seriam
produtos sociais. Este princpio de simetria entre verdade e erro mostrava que a mesma
ao ativa dos cientistas produzia tanto um quanto o outro. No lugar do conceito de
verdade uma verdade que advinha da natureza eles pensavam em termos de crenas
sociais. Nada emergia da natureza em estado de pureza objetiva, a natureza no falava
por si, a crena de que algo era verdadeiro era um acordo societrio promovido pelos
agentes sociais, os humanos. O humano era o agente ativo tanto ao produzir erros
quanto crenas tidas como verdadeiras. Fim da passividade humana e da objetividade
natural.
O mesmo fantasma que assombrou Mannheim tambm acometeu o programa forte: a
acusao de relativismo. Como saber quando a cincia atinge o procedimento correto?
A natureza onde fica? Ela no participa?
Entre os adeptos dos estudos de cincia que da advieram havia alguma insatisfao. A
mais contundente reao a esse relativismo sociolgico foi dada por Callon-Latour que
propuseram um princpio de simetria generalizada. Pretendiam estar avanando alm
de Bloor, superando-o e corrigindo exageros que silenciavam um outro componente do
jogo: as coisas da natureza. O princpio generalizado de Callon-Latour propunha que
humanos e no-humanos fossem simtricos. A natureza tambm devia participar do
jogo e no s os humanos entre si. Criticavam o relativismo por se aproximar de um
solipsismo sociolgico.
Entretanto esta soluo callon-latouriana somente recebeu demonstrao na instncia
retrica. Eles no mostraram como as coisas atuam a no ser atravs de relatos
animistas que davam s coisas, os no-humanos, qualidades volitivas, intencionais. As
vieiras, o cido ltico, as portas e as lombadas tornavam-se actantes atravs de
comportamentos hilozostas, humanizados.
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E aqui retorno questo da histria de historiadores ausentes. Somente um
pensamento estrangeiro histria pode imaginar humanos com alguma equivalncia
ontolgica com as coisas materiais. Ora no se nasce humano, humano algo
constitudo na histria. Torna-se humano ao ser constitudo pela histria. O animal
designado como Homo sapiens no nasce como humano, s se torna humano na
histria, em relaes societrias com outros j constitudos como tais.
Traduzindo Callon-Latour para o lxico e para as categorias do pensamento histrico
poderamos dizer que o aspecto positivo dessa ousadia seria melhor descrito se falasse
de agenciamento das coisas ao lados dos agenciamentos humanos. O desafio mostrar
como ocorre a agncia material sobre os seres sociais. Este passo ainda uma incgnita
nesses autores apesar das suas diversas tentativas. Como as coisas efetivamente atuam
sobre os humanos. Como se d a interao das pessoas com o mundo natural.
Em vez de simetria que passa a idia de equivalncia, de paridade, deveria se dizer,
sim, agenciamento recproco. Os indivduos sociais possuem um papel ativo (como quer
o relativismo sociolgico) mas tambm sofrem o agenciamento dos objetos naturais
(como quer o realismo cientificista). O desafio hoje para a pesquisa encontra-se
justamente em evidenciar como ocorre essa interao entre coisas e humanos sem cair
no engodo da simetria. Coisa que os estudos mais pragmticos da cincia, e mais
histricos, como os de Karen Barad e Andrew Pickering vm tentando apontar.
Por faltar a presena do pensamento histrico nos estudos de cincia essa hiptese
estranha alcanou um pleno sucesso e elevou Latour ribalta mais prestigiada da rea.
Para quem est habituado com o pensamento histrico no h maiores dificuldades em
pensar as relaes humanas como relaes estabelecidas entre indivduos que esto
vivendo em um mundo que simultaneamente natural e social. H 150 anos a proposta
de Marx em torno do conceito de trabalho j indicava a forma de integrao das
relaes humanas com a natureza. At uma explicao simplificada da sua categoria de
modo produo aquilo que definia e detalhava o tipo de sociedade representava em
si uma sntese entre a sociedade e a natureza. O modo de produo era forjado por
relaes de produo (relaes dos homens entre si) integradas s foras produtivas
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(relaes dos homens com a natureza). A sociedade e a natureza no eram para Marx,
nem para um historiador de bom senso, partes desconexas. Cada indivduo nascido
como um animal torna-se humano nesse contato muito particular entre o social e o
natural. Justamente essa integrao particular que funda a histria desde a mais singela
ferramenta utilizada socialmente para enfrentar a natureza.
A hiptese de uma simetria generalizada entre coisas e humanos somente pode emergir
e grassar em um terreno onde o pensamento histrico se fez ausente. A histria d outro
tratamento ao dilema do relativismo sociolgico. Evidentemente que a natureza
participa do jogo. H um agenciamento recproco entre o social e o natural. A questo :
preciso mostrar como no trabalho cientfico as coisas atuam sobre os pesquisadores,
como ocorre a agncia material. Mas essa questo no exclusiva da cincia, no
diferente da que um agricultor enfrenta ante sua plantao. Como o p de milho agencia
o agricultor? O agricultor no precisa ler Latour nem se entregar a malabarismos
retricos para obter sucesso em seu agenciamento sobre o milho. Basta observar o
agenciamento material do milho, entend-lo em sua atividade. Como? Como ocorre a
agncia do milho?
Simples, todo agricultor sabe, mas vou convocar Fleck para examinar isso. S haver
agncia do milho com o agricultor se o agricultor estiver habilitado por um estilo de
pensamento para entender os sinais emitidos pelo milho, isto , somente se o
agricultor tiver o Gestaltsehen adequado, adequado para ver, para ler o milho. Assim
faz-se uma significao interativa, d-se a agncia material do milho. Mas vamos ao
passo a passo:
passo 1: o milho tem que produzir algo no mundo, tem que efetuar alguma
transformao, p. ex., o milho produz uma folha amarela;
passo 2: como a agncia relacional, necessita-se de no mnimo dois, essa ao
do milho tem que ser interativa, deve haver um outro, alm do milho;
passo 3: o outro precisa interagir, ser afetado, para a agncia ocorrer, isto , o
agricultor interage com a folha amarela, toma-a como sinal, como sintoma de
algo. Mas o agricultor, somente afetado se perceber a ao do milho. Em
caso contrrio, no haver agncia;
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passo 4: para ser afetado o agricultor deve estar habilitado para capturar o
significado da ao do milho, deve possuir um Gestaltsehen especial, um
modo de ver e perceber particulares. Somente assim poder entender a
linguagem do milho. Para tanto, o agricultor deve pertencer ao estilo de
pensamento dos cultivadores de milho e, ento, produzir a significao sobre
aquela folha amarela.
Um leigo no produz a mesma significao sobre a folha; outro Gestaltsehen, outro
estilo de pensamento, outra agncia. Se o leigo no extrair alguma significao, no
haver agncia, no haver interao; o amarelo da folha lhe ser invisvel, no ter
importncia significativa. Ele no extrai nenhuma significao e no afetado pela
folha.
Em sntese, como d-se a agncia material? A resposta direta: atravs do agricultor
saber ler os sinais agenciadores do milho.
Em Fleck, saber ler os sinais do milho significa possuir o Gestaltsehen adequado para
ter fluncia neste lxico de significao do milho. Assim, tal agncia do milho sobre o
agricultor s pode ocorrer neste Gestaltsehen.
O mesmo ocorre com uma ultra-sonografia. Um leigo v manchas de claros-escuros,
esta a agncia produzida pela ultra. J o especialista, em outro Gestaltsehen, percebe e
sofre outra agncia, extrai outra significao, l a ultra de maneira diferente e diz: feto
no 6 ms e masculino.
Situao anloga deu-se com o vazamento de petrleo no Golfo do Mxico que
agenciou engenheiros, empresas e naes e, aps meses, foi neutralizado. Foi
neutralizado pela sucesso de leituras feitas por especialistas que fizeram diferentes
agenciamentos reativos agncia do vazamento.
Produzir uma vacina, a cura da AIDS, no um jogo estrito de humanos entre si, h o
vrus. Mas ele no simtrico aos pesquisadores e ele, o vrus, deve ser considerado
como participante ativo do jogo.
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Como ocorre a agncia material do vrus? Ora cabe ao pesquisador desvendar, perceber,
ser sensvel s aes e reaes do vrus, atravs de seu Gestaltsehen. Na medida que a
forma de agenciamento do vrus entendida ento torna-se possvel agenci-lo
reativamente de maneira diferente (este o carter interativo) e at, talvez, chegar a uma
soluo que neutralize o agenciamento viral a tal vacina. Assim tem sido h milhares
de anos. Assim, atravs do trabalho domesticou-se plantas e animais constituindo novas
foras produtivas que permitiram outras relaes societrias de produo. E a sociedade
e a natureza sofreram diversas transformaes histricas, em agenciamento recproco.
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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A HISTRIA DAS CINCIAS HISTRIA:
POR QUE PRECISO EXPLICAR ESTA TAUTOLOGIA?*
Jos Carlos Reis
Doutor pela Universit Catholique de Louvain Ps-doutor pela cole des Hautes tudes en Sciences Sociales
Ps-doutor pela Universit Catholique de Louvain Professor Adjunto do Departamento de Histria/UFMG
Uma tautologia, por sua definio, no se explica. Tautologia, por um lado,
um vcio de linguagem em que se repete a mesma ideia de maneiras diferentes, tem
como sinnimos pleonasmo, trusmo, e no se explica porque s ampliaria a
redundncia; pode ser tambm um vcio de raciocnio que consiste em repetir com
outras palavras o mesmo conceito j emitido ou desenvolver uma idia citada sem
aclarar ou aprofundar a sua compreenso, repetindo a mesma coisa j dita, no
demonstrando o que se pretende demonstrar; por outro lado, tautologia no mero vcio
de linguagem ou erro de raciocnio, mas o que h de mais preciso em epistemologia, os
juzos a priori, proposies e enunciados evidentes em si mesmos, que permanecem
sempre verdadeiros, uma vez que o predicado uma caracterstica intrnseca ao sujeito.
Kant definiu esta tautologia como um juzo analtico no prefcio Crtica da Razo
Pura. Eis alguns exemplos de tautologia como vcio de linguagem: sal salgado, subir
para cima, leite branco. Alguns exemplos de tautologia como juzo analtico: o
espao extenso, o hexgono tem seis faces, o sol uma estrela. Nos dois casos, no h
o que explicar porque, entre pessoas inteligentes, quando se explica o bvio, algum se
sente menosprezado.
A nossa tautologia : a historiografia das cincias historiografia ou a
historiografia historiografia. No vamos tomar esta frase como um vcio de
*NOTA DOS ORGANIZADORES DO I ENAPEHC: O texto A Histria das cincias histria: Por que preciso explicar esta tautologia? foi apresentado pelo professor Jos Carlos Reis no dia 24 de setembro de 2010, durante uma mesa redonda do I ENAPEHC, evento organizado pelos discentes do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG, Belo Horizonte. A mesa redonda em questo intitulava-se A histria das cincias histria? Explicando uma tautologia e foi proposta pelos professores Carlos Alvarez Maia (UERJ), Jos Carlos Reis (UFMG) e Luiz Carlos Soares (UFF).
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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linguagem ou um erro de raciocnio, um pleonasmo, um trusmo, porque talvez no seja
to bvia assim. Vamos tom-la como um juzo a priori, que, embora autoevidente,
claro e distinto, pode ser desenvolvido. Por que e a quem explicar uma proposio to
clara e precisa, cujo sentido se autoapresenta, se autojustifica e se autoexplica? porque
os historiadores das cincias do a impresso de no a considerarem to evidente assim
e, por isso, aps a defesa da dissertao de Francismary Alves da Silva, no programa de
ps-graduao da UFMG, esta mesa-redonda est acontecendo, sob a liderana do Prof.
Carlos Maia e contando com a honrosa presena do prprio presidente da Sociedade
Brasileira de Histria da Cincia (SBHC), Prof. Luis Carlos Soares, em cuja
comunicao estamos todos interessados. Nesta tautolgica mesa, composta por Carlos,
Jos Carlos e Luis Carlos, e diante de tantos ilustres representantes da comunidade da
Histria das Cincias, vou apresentar o meu ponto de vista sobre o lugar da histria das
cincias na universidade, sem nenhuma pretenso de ver o problema com mais clareza
do que vocs. Ouvirei atentamente as objees dos meus companheiros da mesa e do
auditrio, disposto a repensar e a reelaborar o modo como estabeleo a relao entre
processo histrico, historiografia strictu sensu e historiografia das cincias.
Tornou-se necessrio explicar esta tautologia, portanto, porque comum ouvir-
se da parte dos historiadores da cincia que a historiografia strictu sensu no cincia
e no pertence ao campo da histria das cincias. Uma professora da USP me disse uma
vez que a historiografia at pertence ao campo da histria das cincias, mas a histria
das cincias no se interessa pela historiografia, no dialoga com a histria. E
acrescentou: basta ver os peridicos da rea, no h nada sobre o saber
historiogrfico. E verdade. A tendncia da historiografia das cincias no
dialogar nem com o processo histrico e nem com a historiografia. Por exemplo: as
grandes mudanas histricas ocorridas nos sculos XVI-XVII, processos e eventos que
todo historiador conhece, a historiografia da Revoluo Cientfica os menciona
vagamente. A mudana revolucionria descrita apenas no nvel cientfico-filosfico,
como se este tivesse autonomia em relao sua historicidade. Por isso, o historiador
strictu sensu no se reconhece na histria das cincias dita internalista, feita por
cientistas naturais, e pode fazer a ela a mesma objeo que Febvre fez histria da
filosofia, feita por filsofos: uma histria desencarnada, espirituosa, sem carne e
sangue, onde fogueiras, inquisies, restries ou incentivos oramentrios so apenas
citados retoricamente, como fogos de artifcio.
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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preciso explicar esta tautologia tambm porque comum ouvir-se este
estranho dilogo entre epistemlogos: Epistemlogo 1 afirma: a historiografia strictu
sensu no histria das cincias; Espistemlogo 2 pergunta: e qual a sua atividade?;
Epistemlogo 1 responde: eu fao historiografia da cincia! O Epistemlogo 2 (que
mineiro) faz o efusivo comentrio: uai! Ele no entendeu este duplo emprego da palavra
historiografia, um com conotao negativa e outro com conotao positiva, como se o
fato de estar acompanhado de cincias enobrecesse o segundo sentido e empobrecesse
o primeiro, e tem vontade de estender o dilogo, de perguntar mais, de aprofundar a
discusso, mas percebe que impossvel, pois aquilo no era um dilogo, mas um
veredito, uma deciso poltica, uma violncia epistemolgica, que visa defender um
campo institucional em formao. Os que compartilham este ponto de vista, sem
discuti-lo, so reconhecidos como membros do campo e so solenemente incorporados;
os que querem discuti-lo no pertencem ao campo e so silenciosa ou ostensivamente
excludos.
Diante disso, o epistemlogo 2, primeiro, tem vontade de compor O samba do
epistemlogo doido, mas como no sabe, infelizmente, compor nem versos e nem
canes, ento, procura fazer o que imagina saber fazer: anlise do discurso
epistemolgico. E se pergunta: ser que o campo da historiografia das cincias
independente, autnomo, e no precisa mesmo dialogar com a histria da historiografia?
Quando se diz historiografia das cincias o emprego do termo historiografia quer
dizer outra coisa do emprego j consagrado pela cultura Ocidental e definiria um outro
campo do saber cientfico? Se no quer se referir historiografia propriamente dita, que
um saber j milenarmente constitudo e institucionalizado, a historiografia das
cincias, feita por cientistas naturais, teria o direito de usar o nome historiografia?
No teria que se designar de outra forma? Se a historiografia no pertence ao campo da
histria das cincias, uma dissertao ou tese de historiografia das cincias poderia
ser apresentada ao campo da ps-graduao em histria strictu sensu? Os historiadores
no deveriam tambm evitar o dilogo com estes historiadores que os desconhecem e
at os menosprezam, reproduzindo a atitude prepotente das cincias naturais em relao
s humanidades?
Por exemplo, continua o epistemlogo 2, dialogando com os seus botes: quem
foi Alexandre Koyr? De onde lhe veio a noo de revoluo cientfica? Por que foi
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nos anos 30/ps-45 que esta interpretao da histria das cincias surgiu? A
periodizao da histria das cincias coincide, sem fazer-lhe referncia, com a
periodizao da histria da historiografia: at os anos 30, para os primeiros, uma
historiografia Whig; para os segundos, uma histria positivista, teleolgica, evolutiva,
progressista, uma marcha linear, produzida por grandes heris, com grandes eventos,
uma histria dos vencedores; nos anos 30/40, para os segundos, houve a ruptura feita
pelos Annales, surgiu uma histria estrutural; para os primeiros, apareceu a viso
revolucionria do conhecimento cientfico, com as obras de Koyr e Kuhn; aps-1989,
para os primeiros, surgiu uma micro-histria de negociaes, estratgias, em que os
agentes sociais procuram obter aprovao e insero na sociedade-mercado livre; para
os segundos, surgiu o programa forte de Edimburgo e a obra de Steven Shapin. Ser
que este movimento idntico da historiografia strictu sensu e da historiografia das
cincias se deu paralelamente, sem nenhum dilogo entre os historiadores das cincias e
os historiadores?
O epistemlogo 2 continua a sua reflexo: por que os trabalhos de Koyr tiveram
tanta aprovao exatamente nos anos 30/50? O seu reconhecimento cientfico teria
sido resultado de uma situao histrica mundial revolucionria ou teria sido resultado
da sua anlise estrutural internalista? O pensamento de Koyr pode ser considerado uma
construo pessoal, independente e original, ou completamente saturado pelo processo
histrico revolucionrio que o mundo vivia em sua poca e pelas historiografias
estrutural e revolucionria, que dominavam o pensamento histrico ocidental? Koyr,
embora fale de revoluo, parece ignorar a sua proximidade com as duas tendncias
hegemnicas da historiografia nos anos 30/50: a estrutural dos Annales e a
revolucionria marxista.
Outro exemplo: quem foi Thomas Kuhn? Ele no inventou o conceito de
estrutura e nem o de revoluo, em 1962. O conceito de estrutura remonta a Marx,
Saussure, Durkheim, histria estrutural de Febvre, Bloch e Braudel. Nos anos 60, o
estruturalismo de Lvi-Strauss era hegemnico. Quanto ao conceito de Revoluo, at
veio da astronomia, mas foi completamente ressignificado pelas cincias sociais. No
entanto, Kuhn no dialoga com as suas fontes e parece que foi ele o criador genial do
pensamento da descontinuidade. E no foi! Deve ser por isso que o ttulo do seu livro
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um oxmoro: estrutura das revolues. Alm disso, a sua teoria das rupturas na fsica
pode ser estendida e aplicada s outras cincias?
Contudo, parece que a aproximao entre historiografia strictu sensu e
historiografia das cincias quase se consuma com o Programa Forte da Escola de
Edimbugo e com a obra de Steven Shapin. Para estes, a cincia uma atividade
histrica e socialmente situada, contextualizada. Eles so franca e assumidamente
externalistas, pois reconhecem que h muito de social-poltico-econmico-cultural no
laboratrio e muito de cientfico na sociedade. Para Shapin, a Revoluo Cientfica,
tal como a definiram Koyr e Kuhn, nunca existiu, porque no possui uma essncia
interna e no se pode narr-la globalmente. Ele radicaliza a pluralidade e
heterogeneidade das transformaes ocorridas nos sculos XVI-XVII e faz narrativas
dessa poca sem mencionar os grandes heris revolucionrios. Para ele, as cincias
podem ser narradas de forma plural, dependendo dos interesses de instituies e
necessidades do presente. A atividade cientfica no pode ser prescrita, pragmtica. O
desenvolvimento cientfico depende de negociaes scio-econmico-polticas, depende
da adeso social. o reconhecimento social que torna uma teoria vlida.
Penso que o Programa Forte e Shapin quase explicam a nossa tautologia, pois
conseguiram reunir processo histrico, historiografia strictu sensu e historiografia das
cincias. Eles, sim, fazem histria das cincias, quando afirmam que so as foras
histricas que definem a pesquisa; quanto pesquisa, internamente, cedo ou tarde, a
natureza vai se inclinar e dizer sim aos poderes cientfico-histricos, que se
organizam cientfica, poltica, econmica e culturalmente, no para sevici-la, mas para
extrair dela todos os benefcios para a sociedade com os menores riscos e os maiores
lucros. As tendncias externalistas da histria das cincias entenderam o peso da
historicidade sobre o conhecimento cientfico. Externalismo significa isso: o
conhecimento cientfico acontece em uma data e local, em circunstncias determinadas.
Newton s podia ser ingls, a revoluo cientfica s poderia ocorrer na Europa e
naquela poca. E nem por isso ignoram a importncia do carter interno das cincias,
porque seria absurdo no reconhecer a relevncia das questes tcnicas e as respostas da
natureza, pois fariam a defesa impossvel de uma cincia incompetente. Penso que o
que quiseram dizer foi o seguinte: o interno importante, mas apenas uma questo
tcnica. Se o presente precisa resolver questes ecolgicas, mdicas, psicolgicas,
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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militares, por exemplo, ele cria poderes, instituies, grupos de pesquisa e oramentos
que vo procurar tecnicamente estas solues, que acabaro achando o carro eltrico, o
motor flex, o Viagra, a cura da Aids e do cncer, operaes transgnicas, a prospeco
espacial. A energia nuclear (a bomba atmica) foi uma exigncia de uma situao
histrica determinada, assim como as pesquisas sobre o vcuo (a bomba de ar) foram
uma exigncia de outra poca determinada.
Concluindo as suas reflexes, o epistemlogo 2 explicaria assim a tautologia que
estamos examinando, formularia assim a sua hiptese sobre o lugar da histria das
cincias na universidade: a historiografia das cincias historiografia strictu sensu
porque uma atividade de historiadores e no de uma outra comunidade cientfica. No
um campo interdisciplinar ou multidisciplinar, mas historiografia strictu sensu. Os
fsicos, qumicos, bilogos, mdicos, que queiram fazer competentemente a histria da
sua cincia, devero tornar-se historiadores propriamente ditos, assim como quando
querem se tornar professores, dirigem-se pedagogia, Faculdade de Educao. A
histria das cincias no multidisciplinar porque no o objeto que define a
multidisciplinaridade, mas as abordagens. A historiografia das cincias, i.e., os
objetos so mltiplos, mas a abordagem singular, nica: a historiografia strictu sensu.
claro que um fsico pode se lembrar e narrar os acontecimentos da fsica sem recorrer
historiografia, assim como um indivduo pode se lembrar e narrar os feitos da sua
famlia sem ser historiador. A histria muito mais uma necessidade humana do que
uma especialidade cientfica. Mas, neste caso, faro apenas uma memria da sua
disciplina, nostlgica, eloqente, comovente, mas amadora, imprecisa, sem o
conhecimento das armadilhas e dificuldades que envolvem o conhecimento dos homens
no tempo.
O que seria uma abordagem multidisciplinar das cincias? Para mim, o seu nome
seria Cincias da Cincia e no Histria das Cincias. As abordagens vo para o
plural e o objeto vai para o singular. Ento, sim, teramos um departamento
universitrio parte, onde se faria uma abordagem multidisciplinar da cincia:
sociologia da cincia, antropologia da cincia, filosofia da cincia, psicologia da
cincia, literatura da cincia e, claro, histria da cincia. Eis o que, para mim, quer dizer
uma abordagem multidisciplinar da cincia. No Brasil h vrios departamentos de
cincias da religio, que seriam o modelo, o prottipo, de um departamento de
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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Cincias da Cincia. Mas, aqui surge um problema em relao ao objeto, que vale
tambm para religio: cincia pode ser usado no singular? Se as cincias surgiram
em pocas diferentes e so tecnicamente mltiplas, o risco de um departamento
multidisciplinar desta multiplicidade seria o da fuso, confuso, disperso, emprstimos
inadequados, abordagens reducionistas, princpios simplificadores... Talvez, em vez de
um departamento multidisciplinar, o melhor caminho seja a tematizao das cincias em
cada departamento j existente: uma sociologia da cincia, no departamento de
sociologia, uma psicologia da cincia, no departamento de psicologia, uma histria da
cincia, no departamento de histria. Ou, talvez, outro caminho, cada departamento das
cincias naturais devesse oferecer disciplinas sobre a histria da sua cincia, ministradas
por fsicos, qumicos, mdicos com formao especializada em historiografia strictu
sensu. Os dois caminhos se completam e se enriquecem reciprocamente.
Enfim, talvez, se possa compreender a relao entre processo histrico,
historiografia e historiografia das cincias atravs da classificao positivista das
cincias de Augusto Comte. Para Comte, a hierarquia das cincias inclui seis cincias:
matemtica, astronomia, fsica, qumica, biologia, sociologia, que apareceram
sucessivamente e se hierarquizaram por sua ordem lgica: grau de generalidade, de
simplicidade e de independncia recproca, uma ordem de generalidade decrescente e de
complexidade crescente. Aparentemente, aqui, a histria no est presente. Contudo,
para ns, esta classificao tem um duplo critrio: epistemolgico e histrico. Embora
Comte enfatize o seu carter epistemolgico (interno), esta classificao traz
implicitamente uma histria das cincias (externo): estas apareceram sucessivamente,
emergiram em pocas e sociedades diferentes e cada surgimento trouxe mudanas
profundas na ordem do conhecimento e na ordem social. Esta classificao inclui
implicitamente a historicidade dessas cincias, o que nos leva hiptese de que, talvez,
a principal cincia das cincias seja a histria, pois s a histria strictu sensu pode
explicar a matemtica, a astronomia e a fsica a elas mesmas. A histria seria a primeira
cincia, anterior matemtica, pois s ela explica cada cincia a si mesma e a relao de
todas entre elas. Todas elas dependem da histria, epistemologicamente, pois precisam
da memria e da linguagem para continuarem existindo, e porque os registros, os anais,
so anteriores e mais importantes do que os teoremas. Um teorema que foi demonstrado
no passado, mas que no foi registrado e publicado, no se tornou um documento
histrico e, portanto, no foi transmitido e jamais foi demonstrado. Por isso,
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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extremamente fecundo que os fsicos, qumicos e bilogos se interessem pela trajetria
das suas cincias e, ento, ao irem atrs das suas marcas, dos seus vestgios, dos seus
testemunhos, das suas biografias, das suas temporalidades, deixam de ser cientistas
naturais e se transformam em historiadores strictu sensu.
Enfim, para mim, o departamento de histria o lugar adequado histria das
cincias e o departamento de histria da UFMG est de parabns, porque est entre os
pioneiros da integrao destes importantes objetos do conhecimento histrico, as
cincias, as tcnicas, o meio ambiente, ao seu programa de ps-graduao e, agora,
tambm com disciplinas na graduao. Por isso, os historiadores das cincias,
geralmente cientistas naturais de formao, devem entender que, acolhidos pelo
departamento de histria, tornam-se historiadores strictu sensu e devem aprender
teoria e metodologia da histria, histria da historiografia, anlise de fontes primrias,
para fazerem a sua histria da fsica, da qumica, da medicina etc... de forma no
amadorstica. Se quiserem, profissionalmente, se tornar historiadores da fsica, da
qumica, devem se dirigir aos departamentos de histria das Faculdades de Filosofia e
Cincias Humanas. Afinal, quando os cientistas naturais querem ser professores de
fsica, biologia, no exigido que se dirijam Faculdade de Educao?
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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Trazendo as cincias e tecnologias da transcendncia para a imanncia
(com consideraes sobre "e o Brasil nisso?")*
Ivan da Costa Marques
Doutor pela University Of California At Berkeley Ps-doutor pela New School for Social Research
Professor Associado da UFRJ [email protected] **
Introduo Procuro caracterizar as mudanas na apreciao dos fatos e artefatos cientficos que entraram em circulao principalmente a partir dos estudos etnogrficos de laboratrios ocorridos na dcada de 1980. Meu interesse ressaltar que, longe de se restringirem aos limites dos departamentos acadmicos, espao em que elas indicam novas direes para os estudos dos conhecimentos cientficos e tecnolgicos, essas mudanas podem transformar e diferenciar maneiras de ver e de ser em coletivos muito mais abrangentres. Particularmente procuro apontar que novas bases de legitimao de prticas de construo local de conhecimento, mais favorveis s especificidades locais, podem ser construdas por histrias das cincias e das tecnologias que vo alm das cronologias das descobertas e das idias luz de contextos sociais para tornar propriamente histricas as entidades (objetos e leis) que povoam o universo dos conhecimentos cientficos&tecnolgicos. Transcendncia: Natureza e Sociedade como rbitros Seja uma proposio, isto , um enunciado que pretenda expressar um fato cientfico como,
por exemplo, fora = massa x acelerao ou a riqueza das naes resulta da capacidade de
um e de todos de perseguir os interesses de seu prprio ser individual. Na epistemologia da
tradio moderna os critrios para decidir sobre a veracidade ou falsidade de uma proposio
so estabelecidos com base no contedo do enunciado da proposio. Diante de uma
controvrsia, isto , se h dvidas sobre a veracidade ou falsidade de uma proposio, a
epistemologia dominante nos responder que o mtodo cientfico faz com que, em ltima
instncia, a controvrsia seja resolvida cotejando o contedo do enunciado com a Natureza ou
* NOTA DOS ORGANIZADORES DO I ENAPEHC: Trazendo as cincias e tecnologias da transcendncia para a imanncia foi o ttulo da conferncia proferida pelo professor Ivan da Costa Marques (UFRJ), no dia 24 de setembro de 2010, durante o I ENAPEHC, evento organizado pelos discentes do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG, Belo Horizonte. ** Programa de Ps-Graduao em Histria das Cincias e das Tcnicas e Epistemologia (HCTE) da UFRJ. Este texto reflete partes de minha apresentao no evento denominado I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias, feita a gentil convite dos estudantes organizadores, a quem agradeo.
Lu LanaRealce
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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a Sociedade. Ou seja, comparando o que diz o enunciado com o que se percebe na Natureza,
o que nos diz a Fsica no caso da primeira proposio acima, ou com o que se percebe na
Sociedade, o que nos diz a Cincia Econmica no caso da segunda proposio acima. Assim
trabalha a epistemologia dominante. Em conseqncia, no adianta perguntar ao governante,
ao povo, ou mesmo a Deus se este corpo pode se deslocar a velocidade superior
velocidade da luz uma proposio verdadeira ou falsa, pois o rbitro desta pergunta, na
epistemologia ainda hegemnica, a Natureza desvendada pelos cientistas.
Nesta viso, o cotejamento dos enunciados com aquilo que percebido das formas da
Natureza, assumidas como estando l, pr-existentes, feito em laboratrios ou centros de
clculo, onde os cientistas buscam estabelecer as condies de reprodutibilidade dos
fenmenos ou das experincias. Os laboratrios e os centros de clculo encenam uma
reprodutibilidade como se ela se desse em qualquer espao e em qualquer tempo. Desta
maneira o conhecimento cientfico pode ser dotado dos atributos de universalidade e
neutralidade, atributos que, segundo as correntes dominantes, o diferenciam
epistemologicamente das demais formas de saber. Nos ltimos sculos, os europeus
divulgaram para as outras culturas que esse trabalho de obteno das condies de
reprodutibilidade levado a cabo na construo dos saberes das cincias e tecnologias
modernas operando uma Grande Diviso do mundo em duas esferas separadas: de um lado, a
esfera das coisas-em-si (na qual estariam tomos, molculas, micrbios, rochas, astros),
isto , a Natureza, estudada pelas cincias naturais e, do outro lado, a esfera dos homens-
entre-si (na qual estariam o Estado, a democracia, os valores, os crimes), isto , a Sociedade,
estudada pelas cincias sociais e humanas. As justificativas de validao do conhecimento
moderno so fundamentadas no princpio da Grande Diviso: no se mistura a esfera da
Natureza com a esfera da Sociedade ou seja, saberes sobre tomos no tm nada a ver com
saberes sobre democracia, nos dizem as correntes dominantes modernas do saber sobre o
saber. Por exemplo, incumbindo-se de entender uma parte da natureza da Sociedade e/ou do
comportamento dos humanos, a cincia econmica tambm, na maior parte das suas
apresentaes, coloca em cena a Grande Diviso: assim com a forma tomo pr-existente
na Natureza e no tem nada a ver com o que homens e mulheres possam fazer, da mesma
Sociedade qual atribuda ume espcie de natureza, justamente a Natureza da Sociedade que pretende ser desvendada pelas cincias sociais. Para uma apresentao detalhada desta Grande Diviso entre Natureza e Sociedade, mundo das coisas-em-si e mundo dos homens-entre-si ver (Latour, 1991/1994)
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maneira a forma homo economicus (racional) pr-existente, natural, est l, e no pode
ser mudada pelos humanos.
Pode-se dizer que nos moldes cientficos do sculo XIX os atributos de universalidade e
neutralidade da cincia dominavam como absolutos. No entanto, se voltarmos o olhar para a
contemporaneidade, ao longo e principalmente no fim do sculo XX, os estudos que se
voltaram para entender como as cincias e as tecnologias so feitas mostraram que essas
feituras esto hoje bastante distanciadas daquilo que muitas vezes a historiografia da cincia e
da tecnologia lhes fazia (e ainda faz!) corresponder.
Novas maneiras de entender o saber, especialmente o conhecimento cientfico moderno, j
vinham sendo buscadas e propostas pelo menos desde o comeo do sculo XX. Estas
formas transbordavam dos quadros de referncias** da epistemologia das correntes
dominantes e das sociologias do conhecimento que no cruzam a Grande Diviso que separa
Natureza e Sociedade. Aps o livro que ocupa uma posio inaugural da sociologia do
conhecimento, publicado por Karl Mannheim em 1929, destacam-se ainda como
precursores o estudo de Ludwick Fleck na dcada 1930 e o marcante livro de Karl Polanyi
na dcada de 1940.
Em meados do sculo XX, e com especial nitidez logo aps a Segunda Guerra, a viso das
correntes dominantes j enxergava a configurao do modo de fazer cincias e tecnologias a
partir de instituies e de pessoas assalariadas. Especialmente nos Estados Unidos, com seus
Francisco de Oliveira escolhe Marx como o primeiro pensador de economia poltica a investigar a manhas da linguagem do discurso econmico que esconde interesses de classe que se convertem em valores universais, na clssica e conhecida operao da Ideologia alem, mas Marx estava por demais envolto na linguagem e nos moldes cientficos do sculo XIX (Paulani, 2005:14) para cruzar a Grande Diviso. ** Quadros de referncias epistemolgicas que esto amalgamados a quadros convencionados de contabilidade. As discusses em torno das questes ecolgicas tornaram este amlgama evidente, pois antes de estabelecer quem paga, por exemplo, pelo aquecimento global, preciso que se entre em acordo (convencione) sobre se ele realmente existe e o que / quem o causa. (Mannheim, 1929/1936/1985). Este livro de Mannheim s foi traduzido para o portugus em 1986: (Mannheim, 1936/1986). Este estudo, (Fleck, 1979, 1986), feito na dcada de 1930 por um mdico judeu que sobreviveu ao nazismo, passou mais de vinte anos ignorado, antes de ser resgatado por Thomas Kuhn (Kuhn, 1992). Recentemente traduzido pela primeira vez para o portugus pela Fabrefactum: (Fleck, 1935/2010) (Polanyi, 1944/1957, 1944/2000)
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aparatos militares, de pesquisa e educacionais,*** cedo perceberam-se as cincias e as
tecnologias feitas em redes que imbricavam universidades, grandes empresas e o Estado.
Configuraram-se escalas coletivas cada vez maiores de construo e inveno de uma
Natureza, e no mais os desempenhos dos grandes cientistas dos sculos passados, que
transitavam em pequenas escalas, escalas mais facilmente vistas como individuais e de
descobertas de uma Natureza que j estava l, previamente dada, para ser desvendada. O
ofuscamento que as luzes dos atributos idealistas da neutralidade e da universalidade
provocavam, dificultando a viso a partir de outros pontos de vistas, no iluministas, sobre a
natureza do conhecimento cientfico-tecnolgico, no continuou capaz de encobrir esta nova
configurao por muito tempo aps a Segunda Guerra. Fortificaram-se novos entendimentos
e abordagens das cincias e das tecnologias da modernidade, que desde ento vm tendo seus
atributos de universalidade e neutralidade reavaliados.
Imanncia: Natureza e Sociedade como efeitos
Feitos de forma independente uns dos outros, tornaram-se conhecidos na dcada de 1980 os
primeiros trabalhos de observao etnogrfica e anlise de como se d a construo de
conhecimentos cientficos e tecnolgicos na contemporaneidade, denominados estudos de
laboratrio. Nos anos seguintes, na palavra que passou a circular amplamente nas
comunidades dos estudos CTS (cincias-tecnologias-sociedades), observou-se a
tecnocincia, ou seja, as atividades, tomadas cada uma delas e no seu todo, que entram
em cena na feitura dos fatos e artefatos cientficos tecnolgicos. Considerado o conjunto
desses estudos, pode-se dizer que na dcada de 1980 a antropologia, e tambm a sociologia e
novas formas de fazer histria das cincias e das tcnicas, entraram nos laboratrios. Os
*** emblemtica de meados do sculo XX a viso da sociologia da cincia descortinada por Robert Merton, que traou um modelo bsico de realizao do conhecimento cientfico que perdura at hoje para o funcionamento de instituies de apoio e regulamentao (e tambm orientao, embora isto continue obscuro) das atividades cientficas, tais como a National Science Foundation e, no Brasil, o CNPq e a CAPES. Ver tambm (United States. Office of Scientific Research and Development. e Bush, 1945/1980), (Price, 1965) e, para uma apreciao mais recente do ps-segunda guerra, (Guston e Keniston, 1994). Ver, por exemplo, (Soares, 2001). So quatro os estudos de laboratrio mais conhecidos como trabalhos seminais: (Knorr-Cetina, 1981), (Latour e Woolgar, 1979), (Lynch, 1985), (Traweek, 1988). Destes, h somente um traduzido para o portugus: (Latour e Woolgar, 1979/1997). A palavra tecnocincia designa todo o conjunto de atividades percebidas pelos que estudam a cincia tal como ela feita, isto , atividades que explicam / participam da construo dos conhecimentos cientficos e tecnolgicos. Bruno Latour us[a] a palavra tecnocincia para descrever todos os elementos amarrados ao contedo cientfico, por mais sujos, inslitos ou estranhos que paream. (Latour, 1998:286)
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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estudos de laboratrio deslocaram a cincia e o cientista daquela posio privilegiada a partir
da qual, potencialmente, podiam tudo observar mas no so observados por ningum.****
Os estudos de laboratrio mostraram que algo que convencionalmente as cincias destacam
como Natureza, embora de certa forma participe, no o rbitro final das controvrsias
cientficas, mesmo nos campos que integram o chamado ncleo duro das cincias, como os
da fsica, da qumica e da biologia. O que acontece nos laboratrios e centros de clculo, tal
como descrevem convincentemente aqueles estudos, muito mais compreensvel como um
processo de inveno e construo do que de procura e descoberta de formas previamente j
dadas e presentes em uma Natureza.
Consideremos uma proposio que ensejou uma controvrsia cientfica famosa, tal como a
forma da molcula do DNA uma dupla hlice. A idia (at hoje) popularizada que a
controvrsia se resolveu quando se verificou que a forma da molcula do DNA, uma forma
supostamente pr-existente na Natureza, realmente uma dupla hlice. Ou seja, divulga-se a
idia de uma Natureza (universal e neutra) como rbitro final na soluo das controvrsias
cientficas. Mas o que os estudos etnogrficos de laboratrio da dcada de 1980 observam em
casos como esse um processo em que a natureza no apresenta forma alguma at que os
cientistas entram em acordo sobre a forma em questo. A forma dupla-hlice uma
possibilidade de estabilizao de muitos elementos heterogneos, mas no est l
configurada como tal. Em outras palavras, as formas ou entidades que habitam a Natureza
tal como a dupla hlice da molcula do DNA s passaram a habit-la depois que l foram
colocadas pelas cincias. Ou seja, essas formas no so prpria ou simplesmente descobertas.
Pode-se dizer que, assim como os artefatos tecnolgicos, elas no existem antes de serem
inventadas e construdas pelas cincias (e tecnologias). Quando um microscpio eletrnico
fotografa uma forma que supostamente est l na Natureza, os estudos de laboratrio nos
mostram de que modo o instrumento e as teorias atuam para que ela esteja l. A forma da
dupla hlice da molcula do DNA que est l o resultado da resoluo das controvrsias
cientficas e no uma forma, uma entidade, um elemento previamente dado que j estava l
sem as teorias e os instrumentos, que incorporam diversas camadas, muitas delas invisveis,
soterradas, por assim dizer.
**** Uma cincia que alega estar munida do olho de Deus (Gods eye trick).
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O mesmo que dissemos acima para a molcula do DNA poderia ser dito para os micrbios de
Pasteur ou para o oxignio que, na abordagem semitica, foi mais prpria e
compreensivelmente inventado e construdo, e no to propriamente descoberto por
Lavoisier. A proposio de que as idias de inveno e construo, em oposio idia de
descoberta dos fatos e objetos cientficos, aumenta o rendimento dos processos de
entendimento de como se configura o conhecimento cientfico pode, primeira vista, parecer
uma proposio estranha ou mesmo absurda. No seria evidente que os egpcios, os gregos e
os romanos respiravam o oxignio que Lavoisier descobriu muitos sculos depois deles? O
oxignio no esteve sempre l? Diante desta colocao as abordagens semiticas, grosso
modo, concordaro que o oxignio sempre esteve l, mas s depois que Lavoisier o inventou
ou construiu. Embora isto possa parecer um mero jogo de palavras, a resposta aponta para o
cerne de um dispositivo de imenso poder acionado pelas cincias: a capacidade de criar
formas, entidades ou objetos (por exemplo, o oxignio) que esto fora do tempo e do lugar
onde apareceram. A cincia, se transcendente, criaria objetos que esto fora da histria.
Objetos naturalizados. Uma vez naturalizadas, tais entidades um objeto, um fato, uma lei
cientfica libertam-se das condies espaciais e temporais de sua criao para serem
colocadas na esfera das coisas-em-si, que esto l na Natureza e que, reza a constituio
moderna, disjunta da esfera da Sociedade, onde se trata das questes dos homens-entre-si.
O que os estudos etnogrficos e as abordagens semiticas permitem enxergar que, na
modernidade, embora a epistemologia afirme que os saberes das cincias e tecnologias
modernas se estabelecem operando a Grande Diviso, e assim dotam a cincia ocidental dos
atributos de universalidade e neutralidade, isto somente uma parte do que acontece. Antes
da estabilizao de uma proposio cientfica como fato (durante a pesquisa e o
desenvolvimento, se poderia dizer), todas as questes intervenientes apresentam-se em um
mundo que mistura as duas esferas, natureza e sociedade em um s mundo de prticas
imanentes. no processo de justificao da verdade ou legitimao de um objeto, fato ou lei
cientfica, que um processo de purificao levado a cabo, traando naquele ponto uma
fronteira separando as duas esferas ou os dois mundos: o das coisas-em-si e o dos
homens-entre-si
Pode-se dizer que a mudana da viso de cincia como atividade transcendente para atividade
imanente, ou seja, da epistemologia das correntes dominantes para a adoo da abordagem
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semitica, conduz a um espao-tempo de onde podemos ver como o conhecimento cientfico-
tecnolgico no mau, no bom e no neutro. Mas sua construo imanente um
empreendimento to poderoso que no s descreve uma realidade mas tambm atua para criar
a realidade que descreve. (Callon, 2008) E isto, dito direta e simplesmente, abre um leque
novo de realidades possveis.
Linhas de fuga: de impactos a tradues-translaes
Um leque novo de realidades possveis uma idia fascinante para aqueles insatisfeitos com
a realidade que as cincias, ou mais precisamente, que a metafsica euro-americana ajudam
a colocar em cena. Mas como buscar linhas de fuga rumo a outras realidades? Vou ser
aqui suficientemente imodesto para apontar que a realidade para a qual diz-se pretender
construir opes um mundo ou um universo contemporneo j habitado por muitas criaturas
ou entidades construdas pelo impulso dito civilizador que levou ou melhor, traduziu-
transladou para o resto do mundo muitas maneiras de ver e de ser europias. Essas criaturas
da modernidade esto naturalizadas e justamente por isso so vistas como fazendo parte da
realidade e no de uma realidade ou de uma noo preconcebida de realidade: oxignio,
DNA, homo economicus, democracia, etc. A naturalizao dessas criaturas no s as torna
transcendentes por passarem a fazer parte de uma Natureza ou de uma Sociedade cujas leis
so supostamente independentes dos desgnios humanos como tambm faz crer que essas
criaes europias sejam as mesmas em todos os lugares e tempos. Como retirar dessas
criaturas a naturalidade que usufruem, torn-las imanentes e portanto visveis e por
conseqncia legitimamente sujeitas a uma escolha, isto , sujeitas a um processo em que est
presente um direito epistemologicamente legtimo de ficar com algumas e rejeitar outras,
situando-as em espaos e tempos especficos onde elas reconhecidamente se transformam
mediante negociaes que condicionam sua aceitao ou no? No espao que disponho aqui
vou continuar sendo imodesto ao sugerir que as linhas de fuga passam pela re-apreciao da
histria de como as entidades ou criaturas europias se disseminam mundo afora. Bruno
Latour chama a verso dominante dessa histria de modelo de difuso. (Latour, 1998)
Se adotarmos essa expresso sinttica de (Law, 2004). Escrevi com detalhes a esse respeito em (Marques, 2008)
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A epistemologia das correntes dominantes se alia noo de impacto, de forte apelo
mecanicista, e coloca em cena o modelo de difuso dos artefatos cientficos e tecnolgicos.
Nesta verso dos estudos sobre o saber que propem apresentar o conhecimento da cincia
moderna a partir de um mundo dividido em partes estanques, Natureza e Sociedade no se
misturam, mas comum afirmar que as descobertas (invenes) que acontecem na esfera da
Natureza atravessam o espao esvaziado entre as duas esferas e alcanam a Sociedade. Os
objetos ou entidades tcnico-cientficas, sejam elas fatos e leis cientficas ou artefatos
tecnolgicos, chegam ento Sociedade com (opes de) formas determinadas e
provenientes de outro mundo, do mundo da Natureza, do mundo das coisas-em-si, coisas ou
objetos que possuem essncias independentes das questes dos homens-entre-si. Estes
objetos ento, que so produes das cincias e tecnologias (ou, em expresso mais recente,
produes das tecnocincias), causam, por definio no modelo de difuso, impacto no seu
encontro com a Sociedade que passa a fazer uso deles.
Nos ttulos de elementos narrativos que entram na construo de conhecimentos
contemporneos, tais como, tipicamente, artigos, livros e congressos, a palavra impacto
refora a imagem de algo que chega pronto, modifica, e de maneira muitas vezes um tanto
sub-reptcia mas drstica, perturba o ambiente que adentra, robustecendo a presena,
consciente ou no, do modelo de difuso da cincia e da tecnologia na Sociedade. Segundo
este modelo ou modo de pensar e agir, os artefatos tcnico-cientficos nos chegam com
formas que esto determinadas a priori na esfera da Natureza, por leis no-humanas,
universais e neutras, fora do bem e do mal, fora da histria. Assim, no modelo de difuso, as
entidades construdas pela tecnocincia (fatos cientficos e artefatos tecnolgicos) chegam
Sociedade com formas possveis determinadas tecnicamente, ou seja, naturalizadas, e o
mximo que a Sociedade pode fazer construir critrios ticos para a sua utilizao, uma vez
que a mesma cincia que faz os (bons) remdios faz a (m) guerra bacteriolgica. ***** Na
base do modelo de difuso, junto com a noo de descoberta, a idia de que a cincia No caso dos artefatos tecnolgicos a convivncia de formas diferentes e mesmo a opo entre elas apresentam-se como algo esperado, tolervel ou at desejvel, vinculado competio entre produtos diferentes cujos mercados coincidem (gilete e o barbeador eltrico). No caso das leis e fatos cientficos a competio entre formas diferentes candidatas a fazer parte da Natureza (proposies concorrentes) geralmente vista com algo temporrio a ser tratado pelos cientistas, associado a uma controvrsia espera de ser resolvida ou abandonada em uma mudana de paradigma ou revoluo cientfica (ver (Kuhn, 1992)). Muitas vezes, mas nem sempre, uma das proposies no resistir aos testes de realidade na comparao com as formas pr-existentes na Natureza seria dito. ***** No caso dos artefatos tecnolgicos, poder haver concorrncia entre formas diversas, todas tecnicamente determinadas, competindo pela preferncia dos usurios ou consumidores.
Francismary Alves da Silva, Gabriel da Costa vila, Paloma Porto Silva (orgs.). Anais do I Encontro Nacional de Pesquisadores em Histria das Cincias / ENAPEHC. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG, 2010. ISBN: 978-85-62707-19-3
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descobre as formas naturais antes desconhecidas mas que j estavam l presentes,
determinadas, independentemente do observador, est tambm presente o expediente ou
estratagema de uma separao entre cincia e tecnologia, entre o conhecimento cientfico e
sua aplicao. As correntes identificadas com o chamado determinismo tcnico-cientfico
aderem fortemente ao modelo de difuso da cincia e da tecnologia.
Historicamente, a situao se complicou quando, desde as primeiras dcadas do sculo XX,
ficou cada vez mais difcil negar que os objetos e fatos tcnico-cientficos eram imanentes a
prticas, aes, comportamentos, interesses, que sua configurao envolvia uma construo
s possvel de estabilizao para caracterizar uma entidade (oxignio, DNA, democracia,
homo economicus) mediante um consenso que afastasse as controvrsias, mediante um
acordo robusto. Em meio a esta complicao, surgiram na segunda metade do sculo XX
aqueles que, pode-se dizer, foram para o extremo oposto, isto , deixaram o determinismo
tcnico-cientfico para abraar o chamado construtivismo social. Muitas correntes associadas
chamada condio ps-moderna compem uma viso de fragmentos no s para
aqueles que se preocupam com o saber sobre o saber, mas tambm para todos que precisam
se situar no caleidoscpio das atividades de construo de conhecimento. Muitas correntes
dos movimentos ps-modernistas passaram a afirmar que a cincia seria pura construo
social, mero discurso, um constructo da linguagem para elas, tudo seria resolvido na esfera
dos homens-entre-si, a Natureza seria uma conseqncia exclusiva das relaes entre os
humanos.
Os Estudos CTS em geral, e a teoria ator-rede (TAR) especialmente, ao desfazerem a
grande diviso entre Natureza e Sociedade que o catecismo moderno prega a todos os povos,
se distancia tanto do determinismo tcnico-cientfico quanto do construtivismo social.
O prprio uso deste termo objeto de grandes discusses nos circuitos acadmicos especializados e fora deles. Ver, por exemplo, (Lyotard, 1979/1986). Para uma apresentao da condio ps-moderna de talvez maior apelo imediato para economistas e administradores ver (Harvey, 1989/1993), ou ainda os volumes de Manuel Castells abrangendo a era da informao: economia, sociedade e culturta. A assim chamada teoria ator-rede (TAR) (em ingls actor-network theory (ANT)) no encontrada em uma nica forma, mas tem razes nos trabalhos de Michel Callon, John Law e Bruno Latour. Trata-se de uma abordagem minimalista, radicalmente materialista e ontolgica, para descrever um mundo em fluxo permanente (um mundo de verbos) onde todas as entidades (os substantivos, os actantes) se configuram / so configuradas a partir de relaes que se estabilizam provisionalmente. Ver, por exemplo, (Law e Hassard, 1999) ou (Latour, 2005) ou ainda, em espanhol, (Latour, 2008 (2005)).
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Enxergando a realidade como constituda por redes e adotando uma concepo
minimalista e reflexiva de rede como justaposies ou relaes de elementos (ou entidades)
heterogneos que por sua vez so tambm justaposies ou relaes de elementos
heterogneos, a teoria ator-rede situa-se fora das duas correntes acima (determinismo tcnico
e construtivismo social). Para a teoria ator-rede, as redes so ao mesmo tempo reais como a
natureza, narradas como o discurso e coletivas como a sociedade. (Latour, 1994:12)
Ao adotar uma abordagem semitica, a teoria ator-rede estabelece um compromisso radical
com a materialidade ao mesmo tempo que enxerga um mundo que atua sem formas pr-
definidas e em fluxo permanente. Tudo se desloca, se faz e se desfaz em movimento e no h
mais uma separao entre Natureza e Sociedade. Mais rigorosamente, no h mais Natureza e
Sociedade como entidades no situadas e que no sejam efeitos de resoluo de
controvrsias. Enquanto houver controvrsias, naquele ponto espao-tempo controvertido,
Natureza e Sociedade no esto delineadas. Com mais rigor no se poderia dizer que ali
Natureza e Sociedade se misturam, pois ali elas no so entidades, no tm forma, no foram
batizadas.
Quase sempre, uma controvrsia surge quando uma proposio entra em cena. Uma
proposio o enunciado de uma rede, de uma certa disposio que justape elementos
(coisas, narrativas e pessoas) heterogneos. Uma proposio tem sempre definidos seu espao
e seu tempo. Ou a disposio (tcita ou explcita) proposta de elementos heterogneos se
torna estvel, perdura, mantm-se (sempre de maneira aproximada pois o que acontece
fluxo permanente de relaes), resolvem-se as controvrsias a ela associadas e a proposio
se torna