Anália Franco e a Associação Feminina Beneficente e Instrutiva[1557]

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UNIVERSIDADE SO FRANCISCO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM EDUCAO

ELIANE DE CHRISTO OLIVEIRA

ANLIA FRANCO E A ASSOCIAO FEMININA BENEFICENTE E INSTRUTIVA: IDIAS E PRTICAS EDUCATIVAS PARA A CRIANA E PARA A MULHER (1870 - 1920)

Itatiba 2007

UNIVERSIDADE SO FRANCISCO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM EDUCAO

ELIANE DE CHRISTO OLIVEIRA

ANLIA FRANCO E A ASSOCIAO FEMININA BENEFICENTE E INSTRUTIVA: IDIAS E PRTICAS EDUCATIVAS PARA A CRIANA E PARA A MULHER (1870 - 1920)

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao Stricto Sensu em Educao da Universidade So Francisco, como exigncia obteno do ttulo de Mestre em Educao. Linha de pesquisa: Histria, Historiografia e Idias Educacionais. Orientador: Professor Doutor Moyss Kuhlmann Jnior

Itatiba

2007

Dedico este trabalho s minhas crianas: Antnia, Clara e Sofia, minha me, grande mulher, e ao meu marido, pelo incentivo e carinho. De maneira, no menos especial, dedico a todas as crianas silenciadas e privadas dos seus direitos mais elementares e do convvio com suas mes e pais.

AGRADECIMENTOS

Finalizar uma etapa sempre gratificante. Um misto de nostalgia e felicidade soma-se s expectativas sobre o prximo passo. o momento de lembrar aqueles que, de forma desprendida e generosa, colaboraram para o processo de elaborao deste trabalho. Agradeo ao meu orientador, professor Moyss Kuhlmann Jr, pelo incentivo e crdito minha pesquisa. A este profissional, a minha admirao pelo vis to humano que caracteriza seu trabalho. s professoras da Banca: Carmen Sylvia Vidigal de Moraes, pela generosidade das observaes; Rosrio Silvana Genta Lugli, pela contribuio durante a Qualificao e a Elizabeth dos Santos Braga, que aceitou gentilmente colaborar nesta fase final. CAPES pelo apoio financeiro, o qual possibilitou uma dedicao maior pesquisa. Ao professor Laerthe de Moraes Abreu Jr, pelos longos papos esclarecedores, enquanto eu era aluna especial nesse curso, minha gratido e respeito. s professoras Maria Grabriela S. Martins da Cunha Marinho e Maria ngela Borges Salvadori digo: suas aulas to vivas e entusiasmadas ajudaram-me a enxergar a histria de um jeito muito especial. Ao pessoal que me ajudou com a digitalizao dos documentos: Carlos, ngela, Olga, Peterson e Alexandro, obrigada pelo cuidado e empenho. Aos colegas, que por fim, tornaram-se importantes amigos: Silvana, Srgio, Renata, Pedro, Antnio, Maria Clia: meu carinho e respeito. Solange e Isabel, amigas queridas, agradeo porque sempre estiveram por perto, colaborando e sugerindo. minha irm e sobrinhas que, mesmo longe, estiveram na torcida este tempo todo. Rosangela Silva de Moraes e Eliane Schneider, meu carinho e gratido. Agradeo a Henrique Klajner, pessoa que me ensinou a lidar com a maternagem e, sobretudo, estimulou em mim o gosto pela educao. Elmo, Patrcia e Maurco da Associao Feminina Beneficente e Instrutiva Anlia Franco, meu mais sincero agradecimento pela disposio com que sempre me atenderam. Agradeo tambm Maura Marques Leite (sobrinha-neta de Anlia Franco), pelo emprstimo da foto de Anlia Franco e de alguns recortes de jornal.

Ao presidente do Lar Anlia Franco, Jairo Silvestre dos Santos, obrigada pela valiosa ajuda e pela confiana, concedendo o emprstimo das fotos histricas. funcionara do Labrimp, Ruth E. de Martin, por ter me apresentado tantas informaes valiosas. E a todos que, de uma forma ou de outra, colaboraram ou ficaram na torcida, obrigada!

No se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo o

entendimento.

Clarice Lispector

OLIVEIRA, Eliane de Christo. Anlia Franco e a Associao Feminina Beneficente e Instrutiva: idias e prticas educativas para a criana e para a mulher (1870 1920).

RESUMO

Este trabalho pretende discutir as prticas sociais e educativas na obra de Anlia Franco, relacionado educao da criana e das mulheres pobres, em So Paulo, no final do sculo XIX e incio do XX, assim como se prope a contribuir para anlises sobre a circulao das idias, das polticas, das iniciativas e prticas educativas, bem como dos materiais didticos e pedaggicos que pensavam a educao das crianas neste perodo. A anlise enfoca desde os fatores sociais que sensibilizaram Anlia Franco, para a causa da criana pobre, perpassando sua formao no magistrio e atuao na imprensa feminina, at a fundao da Associao Feminina Beneficente e Instrutiva (AFBI), no ano de 1901, em So Paulo, que teria disseminado pelo estado, cerca de 110 entidades, entre escolas maternais, asilos e creches, liceus e escolas noturnas, tanto para crianas abandonadas e rfs, quanto para mulheres desamparadas e mes solteiras, sem distino de credos e raas. O material didtico, utilizado nas entidades, ligadas AFBI, eram elaborados por Anlia e impressos em tipografia, implementada pela Associao. Parte deste material, como o Manual das Escolas Maternaes, Revista lbum das Meninas e Relatrios da AFBI, fazem parte das fontes de pesquisa, que analisamos neste trabalho, assim como fotografias registradas na poca. Palavras-chave: Infncia, Educao, Emancipao Feminina, Instituio.

ABSTRACT

This dissertation intends to discuss the social and educational practices in the work of Anlia Franco, related to children education and to poor women in So Paulo, at the end of the 19th and beginning of the 20th century. It also aims to contribute to the analyses concerning the circulation of ideas, policies, initiatives and educational practices, as well as the didactic and pedagogical materials background on children education during this period. The analysis focuses from the social factors which invoked sensibility in Anlia Franco, until the cause of poor children; through her grade in teaching and engagement in the female press, until the foundation of the Associao Feminina Beneficente e Instrutiva (AFBI - Female Beneficent and Instructive Association) in the year of 1901 in So Paulo. The AFBI disseminated through the state nearly 110 entities, among these there were maternal schools, asylums, day-care centers, lyceums and nocturnal schools, serving orphan and abandoned children as for unassisted women and single mothers, without distinction of creed or race. The didactical material, used in all entities linked to the AFBI was elaborated by Anlia and printed in a typography implemented by the Association. Part of this material, such as the Manual das Escolas Maternaes (Maternal School Manual), Revista lbum das Meninas (The Girls lbum-Magazine) and Relatrios da AFBI (The AFBI Reports), are sources of research which were analyzed in this work, as well as photographs registered in the period. Key-Words: Childhood, Education, Female Emancipation, Institution.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Fachada da antiga sede da Colnia regeneradora p.18 p.22 Figura 2 Foto de Anlia Franco Figura 3 Prdio Asilo de Santos p.35 Figura 4 Carta do Centro Esprita de So Paulo p.37 Figura 5 Rua 15 de novembro p.50 Figura 6 Rua So Bento p.52 Figura 7 Primeira pgina do lbum das Meninas p.62 Figura 8 Colnia Regeneradora p.80 Figura 9 Capa do jornal A Voz Maternal p.81 Figura 10 Largo do Rosrio p.86 p.90 Figura 11 Capa do Manual das Escolas Maternais Figura 12 Sala de aula p.92 Figura 13 Recreio na Colnia Regeneradora p.94 Figura 14 Meninas e meninos enfileirados .........................................................................p.97 Figura 15 Ptio da Colnia Regeneradora p.98 p.99 Figura 16 Meninos e meninas na sala de aula Figura 17 Exerccios fsicos ao ar livre p.102 Figura 18 Capa do relatrio de 1905 p.104 Figura 19 Creche e Asilo S. Jos do Rio Pardo p.105 Figura 20 Relao das Escolas Maternais da capital p.106 p.107 Figura 21 Relao das Escolas Maternais do interior Figura 22 Carta de Genoveva Lousada p.109 Figura 23 Oficina de trabalhos manuais p.110 Figura 24 Oficina de costura p.111 Figura 25 A interna Augusta Ormires p.112 p.115 Figura 26 Relatrio de 1907 Figura 27 Creche e Asilo de Jaboticabal p.117 Figura 28 Aspectos da Colnia Regeneradora p.119 Figura 29 Colnia Regeneradora p.119 Figura 30 Relatrio de 1912 p.120 Figura 31 Meninos e meninas p.121 Figura 32 Meninos, meninas e mulheres p.122 Figura 33 Verso da carta de Manoel Felippe p.125 Figura 34 Carta de Carlos Fernandes p.128 Figuras 35 e 36 Frente e verso da carta de Elisa p.129 Figura 37 Cena cotidiana na Colnia Regeneradora p.131 Figura 38 Asilo e Creche na capital p.132 Figura 39 Banda de msica p.134 p.135 Figura 40 Programao Figura 41 Bazar p.136 Figura 42 Fachada do prdio da AFBI, da dcada de 1930 p.137 Figura 43 Creche e Asilo de Monte Azul p.141

Figura 44 Figuras 45 Figuras 46 Figuras 47 Figuras 48 Figura 49

Altar catlico Fachada vira piso Fachada ornamento de jardim Faixa decorativa com motivos infantis Faixa decorativa com motivos infantis Vitral

p.142 p.151 p.151 p.152 p.152 p.153

SUMRIO

INTRODUO

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CAPTULO 1 Num lugar da histria 1.1 O contexto social que mobiliza Anlia Franco 1.2 A presena do espiritismo e da maonaria na vida de Anlia Franco 22 31

1.3 A escola e o progresso: disciplina, higiene e princpios morais .........................................38 1.4 Educao e nao moderna 47

CAPTULO 2 A fora da palavra nas pginas impressas 2.1 Com a palavra a mulher 2.2 Em pauta a educao e a instruo 56 66

CAPTULO 3 Aspectos da histria da Associao Feminina Beneficente e Instrutiva 3.1 Anlia Franco abre caminhos para fundar a Associao Feminina 74

3.2 O jornal A Voz Maternal como meio de divulgao da AFBI .........................................78 3.3 Os primeiros passos da AFBI 3.4 Influncia ecltica na adoo do mtodo 3.5 Nas pginas dos relatrios e das cartas da AFBI 3.6 A Colnia Regeneradora e a expanso da AFBI 3.7 Primeira Guerra Mundial, gripe espanhola, presses e crticas 85 96 104 131 138

CONSIDERAES FINAIS FONTES BIBLIOGRAFIA ANEXOS

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APRESENTAO

Nada do que aconteceu deve ser perdido para a histria. S humanidade redimida o passado pertence inteiramente. (Walter Benjamin)

Empreender uma pesquisa mergulhar por vielas com muitos sinais, cujos apelos reluzentes nos prendem pelos olhos, nos enfeitiam e por vezes fazem-se crer iluses. O tempo da histria nos distancia e nos aproxima, surge como um caleidoscpio imerso em fontes, contextos, personagens, sujeitos, cenrios, disputas, conflitos, e abre-se por fim em longas pginas, cuja dolorida leitura, o folhear atento e vagaroso cabe ao pesquisador. Como bem escreveu Clarice Lispector, todo momento de falta de sentido exatamente a assustadora certeza de que ali h o sentido. No momento em que me coloquei finalmente diante do meu objeto de pesquisa - aps abandonar uma primeira inteno de estudo que focava a educao da criana cega no processo histrico -, experimentei a falta de sentido: estudar a condio da mulher associada promoo da infncia, mais precisamente daquela formada por crianas pertencentes s classes populares. Percorri, desse modo e com essa inteno, alguns perfis femininos da virada do sculo XIX at as primeiras dcadas do XX. A pista me foi dada pela leitura da autobiografia de Dorina Nowill, fundadora de uma instituio voltada para cegos na cidade de So Paulo e que leva seu nome. Em uma passagem do seu livro ao contextualizar o momento histrico, final de 1930 e incio dos anos de 1940, em que foi nomeada a primeira tcnica de educao especial no estado de So Paulo -, h referncias a nomes que circulavam em torno de causas sociais, ligadas infncia e mulher. Entre esses nomes o de Prola Byington, uma das fundadoras da Cruzada Pr-infncia, em 1930. A contribuio da mulher para a visibilidade da infncia me pareceu, ento, relevante, bem como a ligao estreita entre a mulher e a criana no processo histrico da educao. Desta forma conclu que, anterior educao pensada para a criana cega, seria importante investigar a

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promoo da infncia em outras dimenses, que inclussem tambm as crianas abandonadas, as rfs e as negras, independente de seus credos, e em que fosse operada pelas mos femininas. Dos nomes Dorina Nowill e Prola Byington, a teia intrincada da histria levou mdica belgo-brasileira, Marie Rennotte, que acabou por conduzir educadora Anlia Franco. Rennotte foi colaboradora, ao lado de Anlia, na revista A Famlia e na A Mensageira. Escreveu tambm para a revista lbum das Meninas e mais tarde acompanhou de perto o trabalho da educadora na Associao Feminina Beneficente e Instrutiva (AFBI), prestando servio voluntrio e fazendo parte da diretoria. As duas permaneceram amigas at a morte de Anlia Franco, em 1919. Assim, Anlia Franco - que at ento para mim no passava do nome de um bairro separado por poucas travessas daquele que vivi por cinco anos na cidade de So Paulo -, colou-se por sua obra e pensamento, como uma intrigante personagem, historiografia brasileira, particularmente da Educao. Do nome relativamente familiar, foi-se descortinando um rosto pouco conhecido dentro das discusses e anlises historiogrficas. Passava praticamente todos os dias em frente ao prdio da antiga sede da Associao Feminina Beneficente e Instrutiva (AFBI) que, restaurado, deu lugar ao campus de uma universidade em So Paulo. Assim como a maioria dos moradores da regio, sabia pouco sobre a vida e a obra da fundadora daquela instituio. S mais tarde com a pesquisa soube que, para alm do espao onde funciona a universidade, havia em 1911 uma nica chcara com o nome de Paraso. Numa rea de 75 alqueires, onde hoje, pela exploso imobiliria da regio, s se vem prdios, havia a Colnia Regeneradora Dom Romualdo, uma das instituies da AFBI, que abrigava mulheres arrependidas (ex-prostitutas ou que haviam tido filhos solteira), meninas e meninos, brancos e negros. Alm de abrigo, essas crianas e mulheres freqentavam as aulas oferecidas pela escola e oficinas que funcionavam na Colnia. medida que a pesquisa foi avanando, na busca de documentos, fui tendo a oportunidade de compor as feies de Anlia. Numa busca pela Internet, havia vrias pginas que sucintamente informavam sua biografia, vinculando seu nome, na maioria das vezes, ao espiritismo. A partir dessas informaes, soube da existncia da sua biografia, assinada por Eduardo Carvalho Monteiro. Esse livro apontou para uma srie de fontes relacionadas obra e ao pensamento de Anlia Franco, em torno da histria da AFBI. Era dezembro de 2005, e como no final do livro esse autor havia registrado seu endereo eletrnico, para que aqueles que tivessem interesse no tema entrassem em contato com ele, assim o fiz.

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Minha tentativa, no entanto, foi frustrada. O bigrafo havia morrido naqueles dias. Porm, havia a esperana de eu encontrar reunidos documentos sobre a obra de Anlia Franco, personificada na AFBI, em meio a seu acervo de cerca de 35 mil livros, alm de um bom nmero de outras fontes como fotografias, revistas e jornais. Como Monteiro era esprita, havia doado todo esse material, com a finalidade de se fundar o Centro de Cultura, Documentao e Pesquisa do Espiritismo, na cidade de So Paulo. Estive no local, aventando a possibilidade de realizar uma pesquisa. Receberam-me os responsveis, mas nada puderam fazer por mim. Difcil prever em qual daquelas centenas de caixas poderiam estar os documentos, os quais eu precisava para compor o meu trabalho. No andamento da pesquisa, outras tentativas foram feitas, mas, por dificuldades variadas, aquele centro de cultura no pde em tempo abrir seus arquivos para mim. Numa segunda leitura da biografia de Anlia Franco e outras pistas foram surgindo. Ao agradecer a colaborao do Lar Anlia Franco de Jundia, Monteiro sugeria que alguns documentos poderiam ser encontrados l, assim como, ao citar Kishimoto, indicava que essa autora pudesse conservar algum material de pesquisa, uma vez que na sua tese de doutorado , na dcada de 1980, havia dedicado algumas pginas AFBI. Tinha enfim, duas possibilidades. Na Biblioteca Paulo Bourrol da Faculdade de Educao da USP e Labrimp (Laboratrio de Brinquedo e Materiais Pedaggicos da Faculdade de Educao da USP), comeou minha garimpagem de documentos. L, encontrei o material didtico da AFBI, voltado para contedos pedaggicos de suas escolas maternais, asilos e creches, liceus femininos, colnias regeneradoras, internatos, externatos, e dois dos nmeros da revista lbum das Meninas, lanada em 1898. Nessa publicao, via-se uma Anlia preocupada em discutir a participao da mulher na sociedade, defendendo seu acesso educao pelas pginas da imprensa. A cada nova visita a arquivos ou a casas, que ainda funcionam e levam seu nome, entendia que estava diante de uma nova surpresa acerca da AFBI e da prpria obra e pensamento de Anlia. Em cada canto, residia um fragmento da sua histria e por certo h outros que ainda dormem sem que eu tenha podido despertar para o dilogo. Na segunda vez em que fui ao Lar Anlia Franco de Jundia, o presidente do lar, Sr Jairo, ps minha frente um bom nmero de fotografias que trazem vrios fragmentos da histria da Associao e de sua difuso. Outras fotos digitalizadas, desta vez tendo como cenrio a Colnia Regeneradora Dom Romualdo, acabaram sendo localizadas na antiga sede da Associao, no

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atual Bairro Anlia Franco, na cidade de So Paulo, quando l estive para fotografar. preciso que se diga que essas fotos fazem parte do acervo da AFBI, fato que pude me certificar quando fui Associao para a leitura das suas atas. Eu, que a princpio imaginava que a Associao havia sido extinta, fiquei surpresa com sua longevidade de 105 anos, ainda atuante no municpio de Itapetininga, interior de So Paulo. L so atendidas cerca de 400 crianas e adolescentes, que recebem o ensino da escola formal e tm atividades culturais, esportivas e recreativas. Graas longevidade dessa instituio e ateno de um ou outro scio - que tiveram o cuidado de recolher documentos importantes para a histria da Associao -, foi possvel ter acesso s atas da AFBI e a vrios nmeros da revista lbum das Meninas; ao jornal A Voz Maternal; fotografias e um relevante nmero de cartas, recebidas por Anlia Franco, enquanto presidente da Associao. Ao me deparar com essa diversidade de fontes, no preciso dizer do meu entusiasmo. Entre textos escritos, idias e pensamentos no papel, registros fotogrficos, imagens e rostos, fui costurando retalhos de uma histria protagonizada por Anlia Franco, mas com um elenco prestigiado, personificado pelo rosto da infncia brasileira e pela mulher do final do sculo XIX e incio do XX. Foi possvel perceber uma mulher com uma atuao marcada por aes efetivas no campo da educao infantil no estado de So Paulo. Anlia pensava uma escola que inclusse e desse acesso indiscriminado a crianas, independente da sua condio social, cor e credo. Partilhava do ideal de que a mulher alcanasse sua independncia, por esforo prprio, por isso colaborou, por meio de aes educativas e pela imprensa feminina, com a promoo da educao da mulher. Seu esforo era no sentido de romper com o esteretipo da incapacidade intelectual e da fragilidade da mulher. Valorizava o esforo do contingente feminino que buscava no trabalho o sustento para seus filhos. Com vistas a essa realidade, abriu as portas da Associao para receber crianas pequenas, que ficavam no Albergue Diurno para os Filhos de Mes Jornaleiras ou nos asilos e creches durante o tempo que suas mes trabalhavam. Ao tomar a AFBI como foco deste trabalho, no houve como deixar de fora da leitura e anlise a produo literria e didtica, assinada por Anlia Franco. Compuseram este estudo: relatrios, atas, manuais, jornais, revistas, fotografias e cartas. A cada leitura e anlise dessas fontes, viam-se entrelaadas vida e obra de Anlia Franco. Impossvel olhar para a AFBI sem se

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deparar com a mulher Anlia, educadora, jornalista, escritora e sujeito da sua prpria histria, em dilogo com o contexto histrico do seu tempo. O recorte temporal, definido para a realizao da pesquisa, inclui as ltimas trs dcadas do sculo XIX at a segunda dcada do sculo XX, perodo de efervescentes mudanas no panorama scio-poltico, econmico e cultural. Desse movimento, resultaram uma srie de debates e discursos voltados para a implantao da ordem e do progresso custa da educao, principalmente, das classes populares. A escolha do recorte inicial, 1870, est relacionada ao fato de aquela dcada ter sido representativa tanto para as bases de formao de Anlia, tanto sob o aspecto do magistrio como do ponto de vista das escolhas de causas sociais que assumiu. Sensibilizada com as crianas negras que vo para as ruas com a promulgao da Lei do Ventre Livre, em 1871, Anlia assumiu pelo exerccio do magistrio a causa da criana pobre, negra e rf. As discusses em torno da libertao dos escravos, da mudana de regime, a instruo como propaganda do progresso, bem como a presena do movimento mdico-higienista e a sua articulao com vrios setores sociais, influenciando diretamente na educao, tambm justificam a opo pelo recorte. O texto composto de trs captulos, sendo que o primeiro se prope a fornecer um panorama sobre o contexto histrico em que Anlia Franco nasceu e onde desenvolveu suas bases, pensando desde ento a educao da criana e da mulher. Uma abordagem voltada para a atuao de Anlia na imprensa feminina feita no segundo captulo, ocasio em que se discute os artigos publicados por ela, por outras mulheres e homens, em defesa da educao e da instruo. Como fonte para essa anlise foi tomada a revista de sua responsabilidade, intitulada lbum das Meninas. No terceiro e ltimo captulo a abordagem incide diretamente sobre os aspectos da histria da AFBI, fundada por Anlia Franco em 1901 na cidade de So Paulo. Parte do material didtico elaborado pela educadora ali apresentado e discutido, na tentativa de identificar as influncias de pensamento que recebeu, alm do mtodo de ensino adotado em suas escolas. A Associao, voltada criana negra, pobre e rf, tinha tambm uma poltica para a mulher e no fazia qualquer discriminao de credo ou de raa. Ao longo da sua histria, foram implementadas cerca de 110 escolas, entre asilos, creches, escolas maternais, liceus femininos e a colnia regeneradora. A Associao contou com o apoio da sociedade civil, da maonaria e de grupos espritas; recebeu subvenes do Estado e do municpio e ganhou a antipatia do clero.

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Oficinas de tipografia, de confeco de chapus, de corte e costura, alm de cultivo de flores e um trabalho intenso na lavoura, contriburam para o sustento da AFBI. Porm, com a Primeira Guerra Mundial e os tempos de crise a Associao se ressente. Na Banda Feminina, Anlia encontra um meio possvel para angariar recursos. Assim durante quatro anos, a Banda excursiona pelos estados de So Paulo e Minas Gerais. Pelas imagens registradas nas fotografias, possvel observar a convivncia entre crianas negras e brancas; de idades diferentes e entre adultos. Os aspectos de organizao, de higiene e de disposio das salas de aula servem como testemunho para legitimar as propagandas que a AFBI fazia de suas escolas. As fotografias que compem este trabalho, assim como as demais fontes, foram localizadas em espaos diferentes e pertencem tanto AFBI quanto s sucursais que foram implantadas na poca de Anlia, mas que hoje no tm qualquer ligao entre si. Aquelas cedidas pela AFBI so digitalizadas, enquanto que as do Lar Anlia Franco de Jundia passaram pelo processo de digitalizao das originais em papel. Por acreditar no potencial de informao e expresso que a fotografia agrega, fico muito satisfeita por terem seus respectivos donos, de maneira generosa, confiado-as a este trabalho. Conforme Kossoy (2001, p.39):

O ato do registro, ou o processo que deu origem a uma representao fotogrfica, tem seu desenrolar em um momento histrico especfico (caracterizado por um determinado contexto econmico, social, poltico, religioso, esttico etc); essa fotografia traz em si indicaes acerca de sua elaborao material (tecnologia empregada) e nos mostra um fragmento do real (o assunto registrado).

Ao trazer esse fragmento do real, entende-se que a fotografia constitui-se como uma espcie de tijolo, um vestgio do passado, que conjugada com outras fontes, colabora para a construo da leitura da histria. O momento do registro, ou aquele em que a imagem foi escrita, guarda no resultado material da fotografia, informaes e expresses. Nas palavras de Mauad (2004, p.25), na qualidade de texto, que pressupe competncias para sua produo e leitura, a fotografia deve ser concebida como uma mensagem que se organiza a partir de dois segmentos: expresso e contedo.

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Figura 1: Fachada da casa, sede da Colnia Regeneradora Dom Romualdo, em So Paulo, hoje tombada como patrimnio histrico, mas no aberta visitao. Sem data. (Fonte: AFBI Anlia Franco)

Entre as fontes utilizadas nesta pesquisa esto: 19 nmeros da revista lbum das Meninas; 12 nmeros do jornal A Voz Maternal; atas de 1901 at 1922; 79 cartas recebidas pela presidente da AFBI; relatrios dos anos de 1905, 1907, 1910 e 1912; livros de visita; material de propaganda das Creches; mapa resumido sobre as instituies; leituras infantis; Manual das Mes de 1916 e 1917; Manual das Escolas Maternaes de 1902; Lies para as Escolas Maternaes; Sucinto Resumo Histrico das Escolas Maternaes de 1910; Jornal Unificao n 178; Jornal A Tribuna de 9/9/1928; Boletim GEAE -Grupo de Estudos Avanados Espritas n 459,

17/07/2002; cerca de 40 fotografias das escolas, das creches e asilos, dos orfanatos e da colnia regeneradora, vitrais pinturas em parede com cenas de brincadeiras infantis. A orientao terica que entende-se ser mais apropriada para a construo deste trabalho a que valoriza o indivduo e que na dimenso do conflito recupera o sujeito. Apesar de identificarmos esta preocupao presente em vrios tericos estudados, no podemos deixar de

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lembrar o exemplo de Carlo Ginzburg que, meticulosamente, nos faz ver como se constri um escrito histrico a partir de histrias de sujeitos silenciados, nos alertando para o peso das perguntas ao interrogarmos as fontes. Alm de Ginzburg, nos inspiraram: Eric Hobsbawm e E.P. Thompson.

O passado humano no um agregado de histrias separadas, mas uma soma unitria do comportamento humano, cada aspecto do qual se relaciona com outros de determinadas maneiras, tal como os atores individuais se relacionam de certas maneiras (pelo mercado, pelas relaes de poder e subordinao etc.) (THOMPSON, 1981, P.50).

Peter Burke, Maria Ciavatta e Boris Kossoy colaboraram, por meio de seus textos, para a leitura das imagens fotogrficas. O bigrafo de Anlia Franco, Eduardo Carvalho Monteiro, sugeriu, por meio de seu livro, boas pistas e forneceu vrias informaes. Leituras de autores como Marta Maria Chagas de Carvalho, Carlos Monarcha, Carmen Sylvia Vidigal de Moraes, Moyss Kuhlmann Jr e Tizuko Kishimoto tambm ajudaram no alicerce deste trabalho. A leitura de trabalhos como o de Ana Mignot e de Maria Aparecida Lima Dias, que tm no centro das suas discusses a presena feminina na educao, mostrou-me outras mulheres esquecidas pela historiografia. Por entender que a histria construo constante, o objetivo deste trabalho poder contribuir para uma anlise da relao entre a mulher e a promoo da infncia na histria da educao, atravs do exemplo histrico de Anlia Franco. Este trabalho, Anlia Franco e a Associao Feminina Beneficente e Instrutiva: idias e prticas educativas para a criana e para a mulher (1870 1920), est vinculado ao projeto: Temas e fontes na histria da educao das crianas, coordenado pelo professor Dr. Moyss Kuhlmann Jr, meu orientador. A histria da AFBI, ao lado da obra e pensamento de Anlia Franco coloca-se para ns como um instigante trabalho de pesquisa, que busca contribuir para a discusso das idias e prticas educativas voltadas para crianas e mulheres pobres, no apartada do discurso mdicohigienista, jurdico-policial e religioso, mas com outro vis: o da perspectiva do pensamento da mulher da virada do sculo XIX para o XX. A considerar sua produo literria - escreveu contos, crnicas, poesias e romances -; sua atuao como jornalista em revistas e jornais; sua obra didtica e leituras infantis, sem contar a

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abrangncia da AFBI e o seu carter pioneiro no que se refere educao e profissionalizao da mulher, Anlia Franco figura na histria como um fragmento importante para colaborar na (re)construo da historiografia da educao.

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CAPTULO 1

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NUM LUGAR DA HISTRIA

1.1 O contexto social que mobiliza Anlia Franco

Reivindicar a presena das mulheres na histria significa necessariamente ir contra as definies da histria e seus agentes j estabelecidos como verdadeiros ou pelo menos, como reflexes sobre o que aconteceu ou teve importncia no passado. (Joan Scott)

Figura 2 Anlia Franco

Falar da Associao Feminina Beneficente e Instrutiva (AFBI) tambm falar da sua fundadora, Anlia Franco, discutir a presena feminina no sculo XIX, o universo da mulher, o

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magistrio e o exerccio dessa profisso como trampolim para a atuao na vida pblica e lugar de relaes sociais e de trocas de idias. O percurso trilhado pela educadora Anlia Franco, o espao de visibilidade conquistado por ela, enfim, as rupturas e limites para a sua atuao so marcados pela defesa que assume do acesso indiscriminado de crianas e mulheres educao. Entendemos, portanto, que analisar os documentos da AFBI estar diante de um convite irrecusvel para discutir o papel da mulher e os valores eleitos pela sociedade daquele perodo. preciso dizer que Anlia, junto com outras mulheres, idealizou e fundou a AFBI, permanecendo de 1901 at o incio de 1919 (quando morreu) como presidente dessa Associao centenria, ainda em atividade. No dilogo com as fontes, propomo-nos, neste captulo, a percorrer alguns caminhos na tentativa de identificar os espaos de sociabilidade que contriburam para a formao de Anlia Franco, bem como pretendemos discutir sua rede de relaes, suas posies polticas e bandeiras defendidas. Um atalho - no sentido de ir direto para a histria da Associao, desprezando a presena do sujeito Anlia , seria, a nosso ver, inadequado para o contexto no qual pretendemos inscrever este trabalho. Embora no se proponha aqui, a realizao de um estudo de uma vida em particular, concordamos com Borges (2005, p.222) sobre a questo de que o ser humano existe somente dentro de uma rede de relaes e que, por isso algumas coordenadas devem ser levadas em conta pelo pesquisador: deve-se atentar para os condicionamentos sociais do biografado, o grupo ou grupos em que atuava, enfim, todas as redes de relaes pessoais que constituam o seu dia-adia (grifos da autora). O fato de concordarmos com Borges tem resposta no percurso da nossa pesquisa: no foi a AFBI que localizamos primeiro na construo deste trabalho, mas a pessoa de Anlia Franco. Da a sua rede de relaes nos levou AFBI. Quando se olha para os propsitos que fizeram nascer a Associao, percebe-se que havia na sua idealizadora uma sensibilidade social despertada muito tempo antes da efetiva fundao da Associao. O contexto social que mobilizou Anlia, direcionando-a para o caminho das causas da educao, estava sob o guarda-chuva das leis regidas por escravocratas e monarquistas. Era um Brasil de aoites, em que escravos vergados ao peso das messes, mas felizes e cantando1, comoviam a ainda menina Anlia Emlia Franco (assim batizada), nascida em 1 de

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Trecho da poesia Uma saudade, escrita por Anlia Franco, que faz referncia a momentos da infncia. (lbum das Meninas. Revista literria e educativa dedicada s jovens brasileiras, julho, 1898, p.90).

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fevereiro de 1853, em uma famlia catlica, na cidade de Resende (RJ). Filha de Antnio Mariano Franco Jnior e Thereza Franco, Anlia era a filha mais velha do casal, tendo como irmos: Antnio Mariano Franco e Ambrosina Franco. Sobre o ano do seu nascimento, h situaes que aparece como sendo em 1853 e outras em 1856. Dvida tirada prova por seu bigrafo, Eduardo Carvalho Monteiro, que atesta ser 1853 o ano correto, apresentando-nos dados de seu batistrio. Pudemos perceber no decorrer de algumas leituras referentes Anlia que, pelo fato de as duas datas serem tomadas como do seu nascimento, h variaes de dois ou trs anos para o mesmo acontecimento em sua vida, dependendo da origem da publicao. Por exemplo, alguns escritos citam que Anlia teria 13 anos iniciou no magistrio, outros dizem para essa mesma circunstncia, que Anlia teria 15 anos. A data de nascimento, no entanto, no a nica lacuna na trajetria da educadora. Isso poder ser observado ao longo deste e dos demais captulos que compem nosso estudo. Nada conseguimos levantar sobre a sua relao familiar, nem mesmo qual era a atividade desempenhada pelo seu pai, apenas que ele teria nascido em Mogi das Cruzes, em So Paulo. Sua me, professora, era pernambucana e teria vivido com Anlia at morrer, j no incio do sculo XX. At os oito anos de idade, Anlia viveu em Resende, cidade em que teve tambm as primeiras noes de aprendizagem escolar, promovidas pela sua me. Em 1861, segundo Monteiro (2004, p.37), a famlia de Anlia teria se estabelecido em So Paulo. Entre uma incurso e outra por cidades do interior, provavelmente por motivos de trabalho, Anlia fixou-se na capital, particularmente, a partir de 1898. Ali morreu em 20 de janeiro de 1919, vtima da epidemia de gripe espanhola, quando ainda era presidente da AFBI. Na cronologia da vida de Anlia, apontada por Monteiro (2004, p.37), h algumas lacunas quanto sua atuao na vida pblica, entre os anos de 1875 e 1898. Nesse perodo, h poucas referncias sua trajetria profissional. Uma delas do ano de 1876 quando Anlia muda-se com a me, de So Paulo para Guaratinguet e passa a ser sua assistente naquela cidade -, e a outra, em 1877, quando retorna capital para fazer a escola normal. No final daquele ano, o jornal A Provncia de So Paulo elogia o exame por ela prestado. Monteiro relata que Anlia teria feito algumas incurses para o interior do estado, como So Carlos do Pinhal e Taubat. No se sabe precisamente, mas existe a possibilidade de ter sido

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Taubat a cidade em que iniciou no Jornalismo, colaborando nos jornais e revistas literrias como A Famlia, o Eco das Damas e A mensageira, ao lado de expoentes femininas da poca, como: Presciliana Duarte de Almeida, Josefina lvares de Azevedo, Zalina Rolim, Ins Sabino, Amlia Carolina da Silva, Francisca Clotilde, Cndida Fortes, Francisca Jlia da Silva, Maria Clara da Cunha Santos, Jlia Lopes de Almeida, Guiomar Torrezo e outras (2004, p.61). Em 1898, Anlia lana sua prpria revista, intitulada lbum das Meninas. No ano de 1901 funda a AFBI e a partir dessa data, como poderemos observar nos captulos que seguem, a vida e obra de Anlia Franco se fundiro num nico objetivo: o de atender crianas e mulheres, fundando escolas, asilos e creches, liceus femininos, orfanatos, implementando ensino profissionalizante, combatendo o analfabetismo. Embora no tenhamos encontrado nenhum documento que explicite o porqu da opo pelo magistrio, feita por Anlia, entendemos que para alm de ser uma possibilidade de transpor os muros do mundo destinado s mulheres de sua poca - no caso o ambiente domstico -, o magistrio associado imagem da sua me e da mulher, representava para Anlia uma um espao possvel de mudana na ordem natural das coisas estabelecidas. Toda a infncia e em boa parte da vida adulta, Anlia conviveu com uma sociedade escravocrata. A mudana do interior do Rio de Janeiro para a cidade de So Paulo propiciou, certamente, que Anlia assistisse a uma srie de mudanas no cenrio brasileiro, particularmente ligado urbanizao e seu contraste com o meio rural. O fato de ter escolhido o magistrio, pode ter favorecido uma proximidade com a atmosfera intelectual da poca. Suas opes polticas e a defesa social que assume devem ter aflorado em meio a tenses sociais que supomos terem feito parte no s da sua vida, como da de toda a sociedade nas ltimas dcadas do sculo XIX. Enquanto, em 1868, aos 15 anos, Anlia iniciava no magistrio, auxiliando sua me, outras jovens reproduziam as geraes anteriores, colaborando para a manuteno do lar como santurio reservado figura feminina. Quanto mais fechadas no espao privado de suas vidas em suas casas menor era o alcance na participao efetiva na vida pblica dominada pelos homens. Esta parecia ser a regra. Com ela, mulheres como Anlia buscaram ser exceo, cultivando a leitura e a escrita, no se contentando apenas com as atividades voltadas para o aprimoramento das prendas domsticas. O fato da me de Anlia trabalhar fora de casa como professora causa estranheza, de certa forma, considerando que no era comum naquela poca mulheres casadas estarem no mercado de

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trabalho. Essa situao, associada produo literria de Anlia em que suas protagonistas so, na maioria, meninas e moas rfs , faz-nos supor que talvez seu pai j tivesse falecido e que trabalhar, para sua me, fosse condio primeira de sobrevivncia. Se relevarmos essa

possibilidade, poderemos avaliar que havia na histria de vida de Anlia alguns elementos que sustentavam sua opo de luta, que tinha como foco as causas dos excludos e descriminados. A defesa da causa social assumida por Anlia - que permeou o seu percurso de educadora, escritora e jornalista est associada aos reflexos da Lei do Ventre Livre, aprovada em 28 de setembro de 1871. Essa lei tornava livres todos os filhos de mulheres escravas, nascidos a partir da data de sua promulgao. Os filhos menores ficavam sob o poder e autoridade dos senhores de suas mes, que tinham a obrigao de cri-los at os 8 anos de idade, completos. A partir dessa idade, o senhor da me da criana tinha a opo de receber do Estado a indenizao de 600$000, ou utilizar os servios do menor at que este tivesse 21 anos completos

(http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei do Ventre Livre. 8/10/2006). Conforme Barata (1999, pp.119-120), a Lei do Ventre Livre no teria trazido resultados satisfatrios para os abolicionistas. Se, em princpio, a lei havia conseguido neutralizar esse movimento, sua ineficcia provocou um ressurgimento deste movimento atravs do aparecimento de vrias sociedades emancipadoras com uma acentuada participao popular durante a dcada de 80. Nos anos que se seguiram, a Lei do Ventre Livre teria suscitado muitos abusos por parte dos fazendeiros, desinteressados em criar os filhos de seus escravos sem o retorno financeiro que desejavam. Segundo consta no Boletim do GEAE (Grupo de Estudos Avanados Espritas, n 459, 2003), diante dessa situao, Anlia teria escrito cartas para as mulheres fazendeiras, apelando em favor das crianas ento abandonadas, ao tempo que buscava meios de ampar-las. Assim, apesar de ter sido aprovada num Concurso de Cmara, em 1872, na capital, que lhe garantiria trabalhar oficialmente como assistente de sua me, Anlia teria preferido ir para o interior, conforme comentrio de Tizuko Kishimoto (1988, p.52):

Ao perceber que os pequenos negrinhos expulsos das fazendas j perambulavam mendigando pelas ruas, imediatamente troca seu cargo na Capital paulista por outro, no interior, a fim de socorrer as criancinhas necessitadas. Num bairro de uma cidade do norte de So Paulo instala, em imvel alugado, a primeira Casa

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Maternal, amparando todas as criancinhas trazidas sua porta ou encontradas nas moitas e estradas.

O local onde foi instalada a Casa Maternal, de acordo com Kishimoto (1988), seria

cedido gratuitamente se Anlia respeitasse a condio imposta pela proprietria, que era a de no misturar crianas brancas com negras. Condio no aceita por Anlia, que paga um aluguel pelo imvel. A proprietria, no entanto, ao ver sua fazenda transformada em Albergue de crianas negras, usa seu prestgio e consegue a remoo de Anlia. Diante do fato, a professora teria ido para cidade, onde alugou uma velha casa, pagando de seu prprio bolso. Alm disso, anunciou em folha local a existncia do abrigo. Como o restante de seu salrio era insuficiente para pagar as despesas da alimentao, a opo foi a de ir com as crianas pedir esmolas.

O comportamento, inslito para a poca, de uma professora esprita proteger negros, filhos de escravos, pedir esmolas pelas ruas em pleno regime monarquista, catlico e escravocrata, gera um clima de antipatia e rejeio entre os moradores da regio ante a figura daquela mulher considerada perigosa, e seu afastamento da cidade j cogitado, quando surge um grupo de abolicionistas e republicanos a seu favor. (KISHIMOTO, 1988, p.53)

Na leitura do episdio, a que se refere Kishimoto, chamou-nos a ateno o fato de Anlia Franco ter sido esprita. Outras fontes posteriores, como a sua biografia, indicam-nos, no entanto, que a essa poca (dcada de 1870) Anlia no havia se convertido religio esprita. At porque, segundo o prprio Monteiro (2004, p.199):

Precisar-se a data e como a Missionria de Educao converteu-se ao espiritismo tarefa difcil depois de 70 anos de seu desencarne e sem que se tenha encontrado qualquer fato ou depoimento concreto na pesquisa biogrfica que empreendemos. Alguns fatos e referncias, contudo, fazem crer que, batizada e praticamente catlica moderada at por volta de 1899, por essa poca, concomitantemente cegueira que a vitimou, em sua cura que se deu sua aproximao com o Espiritismo. Arriscando, porm, uma hiptese, sem que tenhamos dados fidedignos para comprov-la, talvez nessa cura possa estar a chave do enigma.

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No encontramos nenhuma informao distinta da que nos apresenta seu bigrafo, porm a questo religiosa, ao lado da moral, tem peso relevante na obra produzida pela educadora, como pode ser observado nos seus textos literrios e outros, publicados na revista lbum das Meninas, a qual estaremos analisando no captulo seguinte. Quanto ao Espiritismo, importante destacar que ele nasceu na Frana e foi decodificado por Allan Kardec, na metade do sculo XIX, culminando no lanamento da obra O livro dos espritos, em 18 de abril de 1857. O Brasil, poca que estamos nos reportando, mirava a Frana como modelo de civilizao, ideal a ser perseguido para se atingir o status de nao; havia ainda circulao de literatura estrangeira entre os intelectuais brasileiros, particularmente escrita em francs.

Na Corte, aps a florao extempornea do incio dos anos 60 e do longo perodo de incubao, a doutrina de Kardec renascia como um dos aspectos do dia. A convico dos fiis demonstrou que no se tratava de uma novidade antiga, que apenas aflorava superfcie para logo ser tragada por guas profundas. Essa renascena, agora, vinha entrelaada s reivindicaes sociais mais corajosas e liberais. Entre os jovens propagandistas republicanos havia vrios espritas. Dos 58 signatrios do Manifesto Republicano de 1870, dois, pelo menos, eram espritas: Bittencourt Sampaio e Otaviano Hudson; um terceiro, Antnio da Silva Neto, se converteria pouco depois. Os tolerantes, o que equivalia a dizer simpatizantes, tambm eram muitos, como Quintino Bocaiva, que aceitaria o espiritismo muitos anos aps. O prprio Saldanha Marinho revelava simpatia pelos discpulos de Kardec. Alis, o grande jornalista afagava tudo o que se opunha ao clero. Da ter aberto as colunas de A Repblica para a divulgao do espiritismo. (MACHADO, 1996, p.113)

Nas reunies republicanas e nas conversas de redao, estariam em pauta discusses em torno da queda da monarquia e da abolio da escravatura. Porm, conforme Machado, apesar de todos serem intelectuais abertos aos problemas contemporneos - juntava-se ao grupo tambm Silva Neto -, outros temas fariam parte da roda, entre os quais, o espiritismo. A Doutrina esprita teria se irradiado, para alm da Corte e conquistado novos adeptos em todo o pas. Fatores como esses podem ter contribudo para que Anlia tivesse tido contato com idias relacionadas doutrina esprita, bem como com a prpria obra de Kardec.

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O livro dos espritos foi a primeira traduo brasileira de uma obra de Allan Kardec, feita pela Livraria Garnier, em 1875. Esse fato, de acordo com Machado, teria instigado a imprensa a criticar duramente Garnier, na poca maior editor do pas. Um outro dado que o Espiritismo apresenta algumas afinidades com o cientificismo, que naquele momento histrico era largamente propagado, tendo por base a evoluo. A prpria trade em que se assenta o Espiritismo - Filosofia, Cincia e Religio - est relacionada ao fato dessa crena valorizar sobremaneira a razo. A evoluo, segundo os crentes no Espiritismo, pode ser atingida por meio do melhoramento do esprito, com a prtica principalmente da caridade.

A viso esprita difere daquela do campo cientfico somente quanto ao agente que evolui. Enquanto a cincia encara a evoluo biolgica de forma materialista, vendo os seres, at mesmo o Homem, apenas como matria, o espiritismo, ao considerar o mesmo processo biolgico, expe o esprito como principal agente que evolui. A evoluo orgnica fruto da evoluo espiritual, contnua no tempo, resultado de uma constante passagem dos seres por dois mundos: o mundo terreno e o mundo espiritual.[...] Kardec nos aponta para a evoluo da vida como um processo acionado por um agente espiritual. Transfere, portanto, a evoluo para o esprito, considerando-o como o agente que progride no tempo.[...] (SOUZA, 2002, pp.57-180):

As questes colocadas, relativas presena do Espiritismo e sua afinidade com o cientificismo, no propem aqui uma discusso aprofundada. Apenas busca, com isso, tentar entender seus possveis reflexos naquele momento histrico, do qual o sujeito Anlia no estava descolado. Pelo que se observa, ela era uma mulher que lia muito, principalmente autores franceses. O fato de a traduo de O livro dos espritos ter sido feita em 1875 pode tambm indicar que, de alguma forma, tenha chegado s mos da educadora, at porque como vimos, discusses que incluam temas relacionados queda da monarquia e abolio da escravatura, tambm podiam acolher aquelas relacionadas ao espiritismo. Importante dizer que em 1876, a mesma Livraria Garnier editou a traduo nacional de outra importante obra de Kardec: O evangelho segundo o espiritismo. O acesso ao conhecimento esprita pode, portanto, ter despertado em Anlia a vontade de conhecer mais de perto a Doutrina. Porm, no temos condies de precisar em que ocasio tal

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fato tenha ocorrido e se ela teria se convertido imediatamente, ou diante do contexto teria sido discreta e no professado a f publicamente. importante destacar que ser esprita muitas vezes significava fazer parte da Ordem Manica e vice-versa. Nas palavras de Machado (1996, p.146), Maonaria e Espiritismo andaram durante muito tempo associados. [...] Maom, esprita e republicano poderia ser a trplice divisa para identificar o comportamento poltico-social-religioso de vrios homens notveis do ocaso imperial, em oposio ao reacionarismo catlico [...]. Alexandre Mansur Barata (1999), em estudo sobre a ao da maonaria brasileira, aponta para a expressiva atuao manica, no perodo de 1870 a 1910, seu engajamento nos mais diversos debates intelectuais e a presena, enquanto grupo, na presso poltica em defesa da abolio da escravido, da separao entre Igreja e Estado e da universalizao do ensino primrio com nfase na incluso da mulher e das classes populares. Se tomarmos o pensamento de Anlia - refletido em suas aes que privilegiam a criana negra abandonada e a instruo da mulher -, pode-se dizer que h uma aproximao tambm com a maonaria. O discurso veiculado no Boletim do Grande Oriente Unido do Brasil, em julho de 1872, conforme descrito por Barata (1999, p.140), d-nos uma dimenso clara da situao: Instruamos nossas mulheres, instruamos nossos filhos. Ns os libertaremos do medo, do terror que certos homens se obstinam em fazer penetrar em suas almas fracas e sensveis por doutrinas insensatas, e por mentiras que todos os dias impunemente divulgam. Seguindo uma tendncia

internacional, a Igreja Catlica no Brasil iniciou um processo de reorganizao interna, conhecido como romanizao do clero catlico. Tal processo, nas palavras de Barata (1999, p. 100), significou a condenao da Maonaria, do Protestantismo, do Espiritismo e dos cultos de origem africana por parte da Igreja Catlica. Ao mesmo tempo, a questo religiosa, segundo Machado (1996, p.145), era traduzida por uma onda de repdio da imprensa liberal com relao atitude dos bispos. As novas geraes comeavam a se afastar da religio, seduzidas por diretrizes filosficas. Por extenso, a Igreja era vista como uma instituio arcaica, servida por um clero corrompido e venal.

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1.2. A presena do Espiritismo e da Maonaria na vida de Anlia Franco

Na primeira pgina do Jornal So Paulo, publicado em 29 de janeiro de 1908, as instituies de Anlia so apontadas como espritas, perigosas. Acusam-nas de viverem custa de subvenes manicas e da proteo de livres-pensadores. O trecho, conforme citado no trabalho de Monteiro (2004, p.192), diz o seguinte:

Essas escolas, para uns suspendem a taboleta de institutos leigos, acolhendo a todos, judeus, protestantes, espritas, livres-pensadores, catholicos, para outros a quem no soe bem a denominao de Institutos sem religio, falam de Deus e Jesus, em Maria e assim vo enganando as conscincias tmidas e desconfiadas, que se no apercebem de que aquelles santos nomes, envolvidos em taes escolas nada significam seno uma profanao a mais a acrescentar s outras a que o espiritismo se entrega. (Jornal So Paulo apud MONTEIRO)

Quando trata das posies sociais e polticas de Anlia, Monteiro afirma que Anlia recebia forte oposio da Igreja por suas convices espritas e pelo apoio da Maonaria sua obra. Na revista lbum das Meninas, de 31 de outubro de 1898, quando Anlia publicou o texto A Lei do Trabalho, possvel perceber pela exposio dos seus pensamentos polticos e sociais, uma certa afinidade com as idias manicas e republicanas.

Hoje que o nosso futuro pertence a Democracia que a liberdade, a justia e a fraternidade, triade harmonica cujas tendncias generosas so para unir entre si e estreitar em indissoluveis laos os membros dispersos da famlia humana, um dever sacratssimo que a consciencia nos impe e contribuirmos humildemente com o nosso trabalho para esse fim superior e mysterioso que o como o alvo supremo a que o universo encaminha. Assim para que a revoluo pacifica das ideas venha a tomar a posse definitiva do que o de direito lhe pertena: para que os caminhos de direitos de fora cedam o lugar s victorias da civilisao, cumpre evidentemente cultivar e aperfeioar as instituies democrticas, e trabalhar com afinco na educao do povo, para o goso dos direitos, e, principalmente, para o cumprimento dos deveres domesticos.

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O auge da presena de Lojas manicas no estado de So Paulo, conforme Barata (1999, pp.75-141) ocorre entre 1901 e 1905, alcanando o nmero de 176. Este perodo coincide com a fundao e expanso rpida da AFBI. Em julho de 1922, o estado de So Paulo contava com 59 escolas, voltadas para a alfabetizao das camadas populares, apoiadas pela maonaria. Na capital, a Loja Manica Sete de Setembro chegou a manter 12 escolas e Asilos e Creches da AFBI, que tambm recebeu o apoio das Lojas Comrcio e Cincias e Grande Oriente de So Paulo. No interior, de acordo com Monteiro (2004, p.193), colaboraram as Lojas: Amor e Luz (Sertozinho); F e Esperana (Jaboticabal); Ribeiro Preto e Estrela DOeste (Ribeiro Preto); Fraternidade Paulista (Barretos); Coraes Unidos (Santa Cruz das Posses); Amor Ptria (Bragana Paulista) e So Paulo (So Joo do Paraso). Sobre a ligao de Anlia com a Maonaria, assim fala Monteiro (2004, p. 191):

Se de um lado Anlia Franco recebia forte oposio da Igreja por suas convices espritas, de outro, a maonaria, Instituio que tem por escopo lutar pela liberdade de conscincias e avessa a qualquer sectarismo religioso, de raa ou de cor, sempre auxiliou a Obra da Benemrita Educadora. E era natural que isso acontecesse. Maons e republicanos tinham a plena conscincia da importncia da instruo do povo para o novo regime e da criao de uma identidade cultural para o pas que sedimentasse a emancipao do jugo luso, contrariamente aos imperialistas e catlicos, estes temerosos de perder seu domnio religioso sobre a sociedade brasileira.

Moraes (2003, pp.255-256) observa que no perodo republicano a Maonaria era atuante na rea do ensino popular, mas diversifica suas aes, voltando-se fortemente para a educao infantil.

Entre as escolas manicas destacam-se, pelo seu avultado nmero e pela quantidade de seus alunos, as instituies criadas pela Loja Sete de Setembro. Fundadas em 1909, propunham-se segundo o diretor Nelson Teixeira a guiar os primeiros passos daqueles que se iniciam no perodo educativo ou que, retardatrios vivem aos tropeos contnuos, por falta de luz da instruo. Ou seja, tinham por objetivo auxiliar a ao benemrita e patritica do governo, sem cogitar de outra cousa do que observar cegamente este programa receber um analfabeto e no mais curto prazo de tempo, faz-lo saber ler, escrever, contar e conhecer a grandeza deste solo o Brasil, ptria nossa e daqueles que ele to hospitaleira e beneficamente abriga, como se fossem seus prprios filhos.

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A Escola Maternal Dr Bento Quirino, em Campinas, que aparece na lista de escolas da AFBI em 1905, pode ser um indicativo de que havia apoio obra de Anlia por parte daquele que lhe emprestava o nome. Bento Quirino figura na lista dos maons brasileiros da virada do sculo XIX para o XX, tendo sido um dos fundadores do Colgio Culto Cincia, de Campinas. Ou o fato de Anlia homenage-lo pode ter rendido o apoio deste sua obra. Ou, ao contrrio, o apoio pode ter motivado a homenagem. Entre as deliberaes, que constam na ata da reunio de diretoria e conselho fiscal da AFBI, do dia 5 de julho de 1903, est a de dar s ltimas escolas criadas o nome dos mesmos cavalheiros que estavam prestando benefcios Associao. Desta forma, ficou definido que escola que funcionava no bairro do Braz fosse dado o nome de Grande Oriente em atteno e reconhecimento pelo auxilio que a Loja Manica Grande Oriente est prestando Associao. Por tratar-se de uma ordem que no admite mulheres no seu grupo, no podemos afirmar que Anlia pessoalmente tenha feito parte da sociedade manica, o que pode ter ocorrido de maneira indireta, via seu marido, ou at mesmo via sua rede de relacionamentos, por meio de scios, maridos de scias e membros da diretoria da ABFI. Ainda que no tenhamos encontrado nenhum registro que demonstre uma ligao direta de Anlia com a Maonaria, chamou-nos a ateno o artigo A Me da Pobreza, de Monteiro (2006, p.1). O autor discute a presena feminina na maonaria por meio da Associao Operrias Leigas do Bem, entidade que ele se refere como pra-manica, ligada Loja Piracicabana, fundada em 1897. A mulher que inspira o ttulo de seu artigo D. Eugnia da Silva, ltima sobrevivente da agremiao. Ao seu lado estavam outros nomes como Escolstica do Couto Aranha, presidente da Associao, Augusta da Silva Possolo, Maria Mendes, Carlota de Paula Ferreira, Joaquina da Silva, Sara Gooda, Ana Couto e Teresa Castanho, e outras cujos nomes que no so citados, mas que seriam cerca de 50. Tendo por fim amizade e concrdia, o trabalho das associadas almejava a regenerao da mulher, sua reabilitao social e a garantia de seus direitos. De acordo com o Almanak de Piracicaba de 1900, a execuo do programa da Associao Operrias Leigas do Bem se fazia por:

Intermdio da instruo gratuita em todas as escolas fundadas pela associao, por conferncias pblicas, por Propaganda escrita, por socorros aos indigentes, pela fundao e manuteno de hospitais e asilos, por socorros aos indigentes, pela

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fundao e manuteno de hospitais e asilos ou auxlios aos que j existem com carter leigo. (ALMANAK DE PIRACICABA DE 1900 apud MONTEIRO)

E o que Anlia teria a ver com as Operrias Leigas do Bem? A princpio, no h evidncias da sua filiao com a Associao, porm os preceitos que reuniam as mulheres em torno do trabalho da agremiao, como pudemos ver pela sua propaganda, aproximam-se bastante dos valores da AFBI. A mulher est de novo no centro das discusses. Tambm nos chamou a ateno o fato de Cllia Rocha, uma das seguidoras do trabalho de Anlia Franco, ter fundado na dcada de 1920 um grupo denominado de Liga Feminina Operrias do Bem. O grupo era composto por suas pupilas maiores de 16 anos e tinha como objetivo a formao de novas equipes de cooperadoras que pudessem mais tarde dar continuidade ao seu trabalho assistencial. Cllia Rocha era natural de Piracicaba e mais tarde fundou em So Manuel o Lar Anlia Franco, ainda em atividade. Na assemblia geral extraordinria, realizada em 19 de julho de 1902, um dos nomes que figuram entre as associadas participantes de Eugenia da Silva. Apesar de o nome ser o mesmo no temos, no entanto, como afirmar se tratar da mesma pessoa ligada Associao Operrias Leigas do Bem. Um outro fragmento na trajetria de Anlia, a deliberao em ata da Associao - em 3 de fevereiro de 1903, quanto permanncia da sede do Centro Esprita de So Paulo, no Largo do Arouche n 64 -, sugere que o Espiritismo poderia ser de fato a opo religiosa da educadora. Por meio de ofcio se propunha que no espao pudessem funcionar noite, os trabalhos desse Centro. E durante o dia a sala estaria livre para funcionar uma das Escolas Maternais. A proposta do ofcio foi posta em votao e a solicitao aceita. importante destacar que o marido de Anlia, Sr Bastos, foi o fundador e um dos dirigentes do Centro Esprita de So Paulo. O Centro, por sua vez, foi pioneiro na aglutinao do movimento esprita em So Paulo no incio do sculo XX.

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Figura 3 Associao Asilo e Creche, de Santos, s/data (Fonte Lar Anlia Franco de Jundia). A fotografia do Asilo traz escrito no seu verso o endereo (Avenida Ana Costa) e os seguintes dizeres: ainda funciona, mantido pela Maonaria.

Anlia era uma defensora da liberdade de pensamento e como j pudemos discutir, teve na causa da criana desvalida e da mulher, o alicerce de sua obra educacional e social. A propaganda da AFBI pregava que nas suas instituies no se fazia distino de credo ou de cor, recebendo crianas e mulheres de qualquer procedncia religiosa ou tnica. Desta forma, buscava-se imprimir um carter laico Associao. Em nenhum dos documentos, como estatutos e atas da AFBI, encontramos qualquer meno religio Esprita, enquanto base religiosa das instituies a ela vinculadas. No cenrio de conflitos sociais, embates religiosos e disputas que marcavam a poca em que Anlia teria se tornado Esprita, talvez resida a explicao quanto ao fato de ela ter mantido annima sua opo religiosa.

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Conforme Monteiro, ela no queria expor a Associao a rotulagens que pudessem comprometer e causar mais oposio a seu trabalho. (2004, p.205). Porm, com a colaborao de Bastos, seu marido, ela chegou a escrever o opsculo Habilitao Assistncia nas Sesses de Espiritismo, em 1912. Embora Anlia fosse bastante cautelosa, com relao f que professava, evitando tornla pblica, conta Monteiro que no ano de 1905 foi publicada por engano em A Voz Maternal uma mensagem medinica com o ttulo Instruo. poca, a tipografia DA Voz Maternal imprimia outros peridicos da Associao, sendo um deles de carter esprita, chamado A Nova Revelao, dirigido por Bastos. Provavelmente o texto publicado em A Voz Maternal pertencia ao editorial deste. Em resposta ao engano, publicou-se a seguinte nota: Por um deplorvel engano de paginao, saiu nesta pgina o artigo Instruo que est fora do nosso programa e pertencente a outro jornal impresso nesta tipografia, pelo que pedimos desculpas aos nossos amveis leitores (A Voz Maternal apud Monteiro, 2004, p.207). possvel que brechas como essas tenham favorecido os argumentos de opositores ao trabalho prestado pela AFBI, como a prpria Igreja Catlica. Ao tempo que no h registros em documentos formais quanto aproximao da AFBI com o Espiritismo, fatos como o da publicao por engano e o funcionamento do centro esprita na mesma sala de uma das escolas maternais, podem ter sido armas utilizadas pelos opositores da obra de Anlia contra o trabalho por ela desenvolvido, comprometendo, inclusive o seu andamento.

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Figura 4 Carta do Centro Esprita de So Paulo: embora tenha sido mantida entre as correspondncias de Anlia, percebe-se que era dirigia a seu marido, Francisco Antnio Bastos.

Entre as correspondncias recebidas por Anlia, enquanto presidente da AFBI, algumas trazem o carimbo de centros espritas, entre os quais: Centro Esprita Familiar Santa Maria, de So Paulo; Centro Esprita de So Paulo; Grupo Esprita Luz e Amor, da Bahia. So mencionados, ainda, Sociedade Esprita 25 de dezembro, de Barretos e Centro Esprita Maria Santssima, do Paran.

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Outras referncias doutrina esprita so feitas em vrias cartas. Importante dizer que no contedo escrito h, em algumas situaes, meno a Bastos, quando o assunto se refere ao espiritismo, conforme esse trecho, assinado por Igncio de Jesus, de Ja, em 6 de setembro de 1909: [...] Retribuo ao presado irmo Bastos, as saudaes; parabns pela installao do Instituto Espirita [...]. Tambm de Ja, a correspondncia datada de 14 de junho de 1910, sugere familiaridade com o espiritismo.

Querida me D. Analia Venho por meios destas linhas dar noticias minhas e receber as suas. Eu graas ao pai Celeste e os bons guias Ismael Christiano e o nosso sempre querido Beserra estou completamente boa e os guias disseram que agora estou bastante desenvolvida. Hontem os nossos irmos tiveram a honra de receber uma comunicao de Beserra que muito nos confortou, eu no estive presente mais fiquei muito contente porque a minha f inabalada. Eu por enquanto no posso prestar servio sem ordem dos nossos guias. Mas espero em Deus que logo heide comprir a minha misso. Saudades a D. Emilia Snr Bastos e a todos. Queira aceitar o meu corao cheio de amisade. Sua filha Chiquinha.

1.3 A escola e o progresso: disciplina, higiene e princpios moraisA ruptura entre os poderes da Igreja e do Estado, com vistas a um ensino laico, no pe fim disputa pela deteno dos caminhos da instruo, especialmente quando a escola configurava-se como um espao para se formar o povo, atendendo s metas de controle preconizadas por um projeto de progresso. Vive-se um momento em que a sociedade urbana marcada por uma lgica econmica industrial e por conseqncia impe tal ritmo escola. O reconhecimento da educao como elemento fundamental na constituio de uma sociedade civilizada atingiu os mais diversos setores dessa sociedade, desde o final do regime monarquista (Kuhlmann Jr, 2001, p.234). Envolvem-se nesta empreitada, a fim de intervirem na instruo pblica, vrios campos de conhecimento, personificados na presena de mdicos, advogados, religiosos e educadores.

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Conforme Alessandra Schueler (1998), as discusses sobre educao pblica relacionavam-se com questes mais amplas de formao da nacionalidade, com o objetivo de integrar o povo ao Estado, estabelecendo ao mesmo tempo hierarquia e distino social. Como a meta nacionalista era atingir a civilizao, era preciso circular entre as naes, levar o Brasil para as exposies internacionais, intercambiar culturas, articular as foras, melhorar a raa, instruir para o trabalho. Enfim, pr em prtica, aes que representassem a crena no progresso, de maneira a diluir os conflitos sociais em meio ao esplendor da riqueza das naes. Estava nas mos da educao e da instruo a garantia de que o pas alcanaria o status de nao. Para isso era imprescindvel o cultivo da disciplina, da higiene e dos princpios morais. A escola se constituiria, ento, na grande aliada com vistas a atingir tal objetivo. Se, conforme Moraes (2003, p.62), inicialmente, no Brasil, o ensino das primeiras letras era atividade masculina e, at o incio do sculo XIX, havia uma srie de restries ao acesso das mulheres escola, inclusive como alunas, essa situao no se perpetuaria, menos por entendimento da igualdade de direitos que por desejo de conduzir a mulher no caminho considerado correto. Assim, criam-se escolas para o ingresso do sexo feminino, como foi o caso do Seminrio da Glria. Seus primeiros estatutos definiam como objetivos atender a msera orfandade do sexo feminino cuja pobreza, poderoso veculo de tantos costumes e vcios que desgraadamente transmitidos pelas mes s filhas tanto influem na depravao e estraga geral dos costumes.2 Com a reabertura da Escola Normal de So Paulo - por meio da Lei provincial n 9 de 22 de maro de 1874 -, em 1877, Anlia volta para a Capital para concluir seus estudos. Cabe destacar que a primeira turma da Escola Normal, em 1875, aps reabertura, era composta apenas por homens, num total de 21, segundo consta no Anurio de Ensino do Estado de So Paulo de 1907-1908. Anlia teria feito parte da terceira turma. Nessa segunda fase da Escola Normal, os candidatos ao magistrio eram tanto homens como mulheres, sendo que a seo masculina funcionava tarde, nas salas do extinto Curso Anexo da Academia, e a feminina no Seminrio da Glria.

[...]Em 1876 visando assegurar a essas filhas da provncia uma posio social, independente e honrosa, a Assemblia Provincial cria, na Escola Normal, uma seo para o sexo feminino, e a instala no pavimento inferior do Seminrio da2

Estatutos de 10 de agosto de 1925 apud Moraes 2003, p.59.

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Glria. No entanto, permaneceu por pouco tempo em funcionamento [...] (MORAES, 2003, p.63).

Por ato do presidente da provncia, de 9 de maio de 1878, a Escola Normal foi efetivamente fechada em 30 de junho daquele ano. Com isto, a terceira turma, da qual Anlia fazia parte, no chegou a concluir o curso. Mesmo assim, o exame prestado no primeiro ano do curso elogiado publicamente pelo jornalista Justus na Seo Livre3 do jornal A Provncia de So Paulo:

A Exma. Sra D. Amlia Emlia Franco4 O exame to brilhantemente prestado por esta inteligente senhora, professora pblica da cadeira do sexo feminino da cidade de Jacare, como aluna do primeiro ano da Escola Normal, descobre aos olhos da Provncia de So Paulo, j sobremodo notvel pelo talento e pela iniciativa e patriotismo de seus filhos, uma verdadeira novidade rasgando novos horizontes literatura do pas. No foi somente o descobrimento de uma inteligncia digna de apreo o que nos revelou esse exame; foi igualmente a mais proveitosa dela, manifestada nessa memorvel exibio. Com estas linhas inspiradas mais pelo entusiasmo do que por conhecimento que nos outorguem, temos dois fins: render preito inteligncia da jovem paulista e impor-lhe, em nome do nosso pas, o do nosso futuro e estudo acurado, e a mais conscienciosa aplicao.

Muzart (2000, p.617), ao se referir notcia publicada, pondera, dizendo sobre o fato que:

Ou ao jornal faltavam notcias, sendo assim, qualquer fato que sasse do corriqueiro era levado suas pginas, ou, o que mais srio, eram raras as mulheres que se distinguiam pelo estudo, que as que faziam, espcies de avis rara, era preciso destacar [...]. De qualquer modo, essa nota estranha, visto no se tratar de formatura, mas de simples exames. (grifos da autora)

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Segundo estudo de Hilsdorf (1988, p.51), sobre Rangel Pestana e o jornal A Provncia de So Paulo, o tema educao e ensino era abordado nesse jornal das mais variadas maneiras. Entre os tipos de notcias e matrias veiculadas estavam Atos Oficiais, textos literrios, mas tambm as matrias pagas por particulares, como Avisos, Editais, Anncios e Seo Livre. Ao invs de Anlia Emlia Franco, o jornal publica Amlia Emlia Franco. A Provncia de So Paulo, Ano II n.861 de 29/12/1877, 2 pgina Seo Livre.

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Na ocasio da publicao, o diretor do jornal era Rangel Pestana. No aprofundamos nenhuma anlise acerca da linha editorial do peridico, mas pudemos perceber que, particularmente nessa edio, havia artigos e notcias relacionadas instruo pblica5, destacando sua importncia para a sociedade. Ao elogiar o exame prestado por Anlia enfatizando seu talento como uma novidade no mbito da literatura do pas -, o jornalista sugere que o magistrio era um caminho possvel para o desenvolvimento da capacidade literria e que tal avaliao no se restringia apenas ao contedo exclusivo das matrias do curso6. No conseguimos localizar o exame citado, nem qualquer referncia ao nmero de mulheres matriculadas na Escola Normal naquele ano de 1877. Imagina-se, no entanto, a contar o prprio destaque dado pelo jornal, que no eram muitas as que freqentavam o curso. Casamento ou magistrio eram os destinos naturais da mulher do sculo XIX. Menos uma profisso e mais uma vocao, o magistrio exigia dedicao, qualidades morais e aptido. Uma condio que colocava a mulher mais prxima da extenso domstica e, portanto, pouca ameaa representava para a estabilidade da famlia e dos bons costumes. Embora, historicamente, os homens tenham se ocupado de ensinar as primeiras letras, medida que as mulheres tomaram parte nessa atividade encontraram brechas para alm das salas de aula. Promovendo no s o ensino das primeiras noes de ler, escrever e contar, encontraram no exerccio do magistrio mais que uma via de acesso ao mercado de trabalho, uma possibilidade de desenvolver aes voltadas para as polticas sociais. Nas palavras de Maria Cndida Delgado Reis (1994, p.96), em artigo escrito por ocasio do centenrio da Escola Normal Caetano de Campos, com o advento da Repblica, as mulheres5

Hilsdorf diz que uma das questes que foram abordadas com mais insistncia por Pestana e seus colaboradores em A Provncia de So Paulo, foi a instruo pblica. Palavras da autora: Francisco Rangel Pestana criou e dirigiu entre 1875 e 1890 o jornal A Provncia de So Paulo (hoje O Estado de So Paulo) imprimindo-lhe suas principais caractersticas que o tornaram um adequado instrumento de proselitismo e luta pelo poder. Nele fazia-se a doutrinao liberal e democrtica e a crtica s instituies vigentes monarquia, igreja oficial, lavoura conservadora, mas, sobretudo, escola retrica que queria ver substituda pela escola positiva, onde se praticasse o ensino moderno, isto , objetivo, concreto e emprico das humanidades e das cincias fsicas, naturais e sociais. Enfatizar, apontar, sugerir, argumentar, protestar, denunciar, reivindicar e apoiar foram algumas das formas de ao de que se serviu na imprensa e que o transformaram no principal articulador de escolas que foram criadas, segundo aquelas caractersticas, em So Paulo nas dcadas de 1870 e 1880. (1988 pp. 10-51 grifos da autora) O curso era dividido em quatro cadeiras, sendo que a primeira contemplava lngua nacional e aritmtica. Faziam parte da segunda, as matrias de Francs, methodica e pedagogia. Cosmografia e geografia, especialmente do Brasil, compunham a terceira cadeira, enquanto histria sagrada e universal, histria ptria e noes gerais de lgica eram matrias agrupadas na quarta cadeira. (Anurio de Ensino do Estado de So Paulo 1907-1908, pp. 83-84).

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tornaram-se cada vez mais numerosas na escola, mas o crescimento numrico pouco significou em termos de novas oportunidades. De acordo com o artigo, a Ordem e o Progresso preconizados pelos republicanos no s excluam as mulheres da participao poltica, como reforavam, na formao escolar que lhes era destinada, os laos com o mundo privado da casa. Provavelmente em 1888, quando nomeada professora pblica, Anlia deixa algumas escolas maternais no interior para radicar-se em So Paulo. Associa-se ao Partido Republicano Paulista (PRP), mas, segundo Colombo, decepciona-se com ele logo aps o advento da Repblica (2001, p.224). Pela documentao a que tivemos acesso - ao analisar os escritos de Anlia, que tinham como tecla recorrente a Educao -, avaliamos que ainda que ela tenha se decepcionado com o desempenho dos republicanos, no teria havido um efetivo rompimento. Seu empenho em torno da causa da educao cada vez mais expressivo. Como educadora acreditava piamente que, s por meio do acesso aos saberes proporcionados pela escola, as classes populares poderiam conquistar dignidade e espao e tornarem-se visveis aos olhos das classes dominantes.

E enquanto a maioria do povo continuar entregue a deplorvel incria, profundamente imersa nas trevas da ignorncia absoluta, verdadeiramente lamentvel, a escravido no se extinguir entre ns. A liberdade no passar de uma falsidade se faltar ao seu mais importante e rigoroso dever: a educao do povo7.

Ao mesmo tempo, tambm possvel observar que, pela instruo, a educadora pretendia transformar os pequenos vagabundos das ruas em legies democrticas, que mais tarde sabero combater pela emancipao e felicidade do nosso caro Brazil. (A Voz Maternal, fevereiro de 1904). Tanto a Abolio da Escravatura quanto a Proclamao da Repblica no trouxeram mudanas imediatas positivas para a vida da populao pobre, nem para a dos negros libertos que ao serem considerados incapacitados para muitas atividades no tiveram espao garantido ao

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FRANCO, Anlia. lbum das Meninas revista literria e educativa dedicada s jovens brasileiras. So Paulo, outubro, 1898, p.158.

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mercado de trabalho. O descaso das autoridades marcado pelo isolamento dessa populao do convvio social. Moares (2003, p.72), apoiada em Hardman e Kowarick, assim escreve:

[...] Apesar de, em So Paulo, o imigrante ser largamente majoritrio nos vrios ramos da economia urbana, particularmente nas atividades fabris, constituindo-se no principal segmento do proletariado em formao, no se pode esquecer a presena dos nacionais pobres e libertos na constituio do mercado livre de trabalho. Para o parque industrial que se desenvolvia em So Paulo, o brao estrangeiro dispensou o trabalhador nacional [...]. O Segmento nacional, vtima de fortes preconceitos raciais principalmente o trabalhador negro e o mestio que traziam estampada na pele a pecha que a escravido to fortemente sedimentada -, foi considerado inapto e indisciplinado para o trabalho. providenciada a criao tanto por parte do estado como da iniciativa privada de inmeras instituies assistenciais, os denominados asilos: asilos para mendigos, para alienados, para rfos, para tuberculosos etc.

Questes de ordem poltica, econmica e social sedimentam o clima de transformaes tanto na paisagem urbana, quanto na prpria essncia das feies de um pas que se pretendia. No meio da nova ordem que se propunha, a educao configurava-se na ponte pela qual se atravessaria a fim de formar as novas geraes, em conformidade com os ideais estabelecidos. Envolvida por essa atmosfera, Anlia participa com suas idias, sendo intransigente defensora do direito da mulher de instruir-se, mais que isso, se intelectualizar, pregando a democratizao do ensino e os direitos iguais de homens e mulheres (MONTEIRO, 2004, p.49). J no incio do sculo XX - quando cria o chamado Albergue Diurno para os Filhos de Mes Jornaleiras, um dos braos da AFBI, na cidade de So Paulo -, Anlia demonstra preocupao com as mes trabalhadoras daquele perodo. E ao pensar na me, ela pensa no filho e, assim, criana e mulher so postos frente na ordem de prioridade da sua prtica. Para Tizuko Kishimoto (1988, p.54), o fato de Anlia ter sido membro do Partido Republicano Paulista, teria facilitado o apoio da equipe instalada no poder no incio da Repblica. Este apoio, segundo ela, no vinculava as obras sociais de Anlia s metas do partido, pelo menos no plano financeiro. Suas atividades apresentam como motivao bsica a prpria sensibilidade para os problemas sociais da poca. A ausncia de proteo me pobre e criana a mola propulsora que leva Anlia criao de creches, asilos e escolas maternais.

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A presena do secretrio do interior, Bento Bueno, na inaugurao das atividades da Associao - alm da autorizao concedida por Bernardino de Campos para que os liceus da capital e de Santos funcionassem nos prdios dos grupos escolares - e a concesso dos passes para o transporte das professoras e diretoras de escolas da capital e interior, segundo Kishimoto, so indicativos de que havia comunho de idias entre Anlia e o grupo que estava no poder. O senador Paulo Egydio de Oliveira Carvalho tambm teria sido um admirador da obra presidida por Anlia. importante lembrar que nomes como o de Bernardino de Campos e de Paulo Egydio eram vistos como livres-pensadores pelos catlicos, por serem favorveis ao ensino leigo. Ao falar a favor da AFBI, o senador Paulo Egydio assim se pronunciou:

[...] Mas agora, vamos outra Instituio, a Associao Feminina. Sr. Presidente, peo ao Senado que me oua com um pouco de ateno porque essa Instituio no tem rival, no pode ter rival entre ns na grandeza, na magnificncia e nos resultados que se deve dela esperar. Eu no conhecia a Associao Feminina para a promoo da Instruo Pblica no Estado. No tinha notcia alguma. Conheci-a por acaso, em uma ocasio que me procurava, em casa, uma senhora que apresentou-me uma lista de subscrio consistente na consignao de quantias de 500 ris, 1$000, 2$000, sendo a mxima de 5$000. Apresentada que foi essa senhora, em minha casa, lendo a sua subscrio comeou por mostrar-me estatutos, projetos, etc. Eu fui lendo, interessando-me, interessando-me, interessando-me, at que, Sr. Presidente, eu disse a essa senhora: senhora, ide dizer quela que vos enviou a mim que eu desejo associar-me a esse seu empreendimento, e que estou pronto, por todos os modos ao meu alcance, como escritor, como orador, como legislador, como senador, a acorooar, a dar-lhe a mo, ide dizer ainda a quem vos enviou c, ide dizer a essa senhora, que o papel, que o servio que ela vai prestar por meio da sua Associao de alta relevncia: ide dizer-lhe que esse servio nenhum Presidente de Estado, nenhum poltico nenhum Presidente da Repblica o tem feito e o poder fazer. Eis aqui, Sr. Presidente, como recebi e como respondi ao apelo dessa senhora. Essa senhora a distinta paulista D. Anlia Franco, que fundou uma Associao Feminina para promover a instruo particular das crianas do Estado. Em um espao inferior a um ano, esta senhora e a Associao que ela dirige fundaram no Estado e na capital e nalgumas cidades do interior 25 escolas e, h quatro meses mais ou menos, essas 25 escolas tinham uma populao escolar de mil crianas de ambos os sexos, de todas as origens e procedncias. Ali esto juntos o turco, o judeu, o maometano, o catlico e o calvinista [...]8.8

Discurso do Senador Paulo Egydio de Oliveira Carvalho, registrado nos Anais do Senado, no final de 1903, (Cf MONTEIRO, 2004, p.84) e publicado no jornal A Voz Maternal. So Paulo, janeiro, 1904. O contedo desse discurso recorrente em vrias publicaes que tratam da AFBI, de modo a legitimar as atividades desenvolvidas pela Associao.

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Outros discursos foram feitos pelo senador, ressaltando a importncia da presena da AFBI para a instruo do pas. Em uma dessas situaes, seu pronunciamento foi visto pela revista Miniatura de Santos, como uma iniciativa que demonstrava justia aos esforos praticados por Anlia Franco. O texto da revista, reproduzido no jornal A Voz Maternal, em outubro de 1904, referia-se ao fato como algo inusitado:

No sei o que mais admire e de que maior orgulho devemos ter. A intelligencia e valor da mulher ou o reconhecimento dos homens e atteno que lhes acaba de merecer esse mrito. Os dois fatos so to raros em nossa sociedade actual que devemos vangloriamonos com esse principio de conquista. Tanto escasseam as senhoras de reconhecido valor, como so raros os cidados que sabem respeitar, acatar e auxiliar as theorias e idas de uma mulher.

Anlia enxergava na educao a emancipao e a liberdade, no s com relao ao regime escravista, mas ideologia patriarcal. Suas aes, apoiando as classes populares e parcelas discriminadas, como mulheres e crianas negras, pobres e rfs, diferenciavam-na do tipo de mulher que pouco participava da vida pblica e das decises polticas e sociais. Ao consolidar um projeto educacional, a educadora expe-se social e politicamente, ocupando papel importante na histria da AFBI. Professora, mulher e solteira com quase 50 anos, as convenes sociais pareciam no a preocupar. Conheceu Francisco Antnio Bastos quando j presidia a Associao, em 1902, e com ele viveu maritalmente at 1906, ocasio em que oficializou o casamento. De acordo com Monteiro, os dois teriam se conhecido quando Anlia fundou a AFBI e precisou contratar um guarda-livros, cargo ento preenchido por Bastos. Pelo seu comportamento, pela sua forma de viver, dividindo-se entre capital e interior, nos faz crer que levava uma vida independente, ainda que a atitude no fosse comum no contexto em que vivia. Ao contrrio das moas que eram criadas para assumir lar, marido e filhos, Anlia, segundo o que observamos, encontrava no magistrio, na escrita e leitura os mecanismos de relacionamento e de dilogo com a sociedade em que vivia. Intrnseco a esta questo possvel supor, estava o valor que ela dava educao, como veculo de transformao de vida e aquisio de auto-estima e dignidade. Percebe-se uma mulher em sintonia com os pensamentos de mdicos, juristas e religiosos. A forma redentora atribuda ao ensino atravessou o sculo XIX em direo

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ao XX. Da, conclua-se que os bancos escolares seriam capazes de tornar as crianas principalmente as pertencentes s classes populares disciplinadas e civilizadas. Uma civilizao, baseada no modelo europeu. Pela escola, seria possvel afastar crianas e jovens do ambiente degenerativo das ruas, aproximando-os, pela instruo, de valores que correspondessem aos de uma nao avanada que construiria a sociedade moderna desejada. Era preciso, no entanto, despertar desde cedo a infncia para o sentimento de patriotismo. Patriotismo este, construdo nos ambientes escolares. Os discursos das professoras, em torno da ordem e da disciplina, deveriam ter a fora de se reproduzir entre a populao infantil - base de formao da sociedade.

Povo brasileiro, a tua causa a da Educao porque s ela que pode aperfeioar a sade, a moralidade e o trabalho dos seus filhos, o que lhes h de permitir amealhar patrimnio, fundar famlia, envelhecer no remanso da paz, morrer nos braos da felicidade. Fonte inesgotvel, onde se vai buscar no s a pureza da linguagem, mas o sentimento, a poesia, a tradio, o amor nacional, a riqueza, o tributo de sangue, o trabalho, tudo o que h de grande. Coopera para o progresso esforando-se especialmente para a tua instruo, no s pela glria do Brasil, no s pela civilizao sul-americana, mas tambm por necessidade porque a Humanidade nossa irm a Ptria nossa me 9.

Em conferncia proferida durante um festival em benefcio do asilo e creche da AFBI, a mdica Marie Rennotte, ao falar da condio da mulher e situ-la no contexto internacional da poca, traz para a discusso a atuao de Anlia, assim se referindo educadora:

Antes de fazer ponto final, porm, seja-me permitido chamar a vossa atteno sobre o trabalho ingente de vossa illustre patrcia, a qual, no obstante as immensas difficuldades com as quaes tem de luctar, responde a cada novo obstaculo com uma nova dose de energia e continua sua obra altruistica e moralizadora a fora de ardor e tenacidade. Ponderai bem a obra bemfazeja desta senhora! Lembrai-vos semeia idas onde o vicio brotaria, que ella afasta da perdio offerecendo asylo, que ella previne o mal hospedando quelles que de outro modo vagando pela rua seriam expostos s influencias nefastas da libertinagem e do crime, que ella resguarda da malicia e perversidade, creanas que de outro modo no escapariam a perdio! (A Voz Maternal, julho de 1904 p.3)9

Texto de Anlia Franco, divulgado em 19 de julho de 1908, em Limeira,SP (Cf. MONTEIRO, 2004, p.15)

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1.3 Educao e nao moderna

Kuhlmann Jr (2001, p.9), apresenta-nos um estudo sobre as exposies internacionais, onde analisa a relao existente entre elas e a temtica educacional, bem como a participao do Brasil num processo que passa a considerar a educao como um dos pilares centrais para a normatizao e edificao controlada da sociedade ocidental moderna. Escreve ele:

[...] Notamos que as Exposies tiveram uma repercusso significativa em seu tempo, e que na sua organizao transparecia uma inteno didtica, normatizadora, civilizadora, junto a diferentes pases e setores sociais. Alm disso, elas prestigiaram a educao como um signo de modernidade, difundindo um conjunto de propostas nessa rea, que abarcava materiais didticos e diferentes instituies da creche ao ensino superior, passando pelo ensino profissional e pela educao especial.

De acordo com a anlise de Kuhlmann Jr, no Brasil, esse movimento ocorreu com algumas especificidades condicionadas situao poltica, Imprio e Repblica, e social, caracterizada pelos altos ndices de excluso, alm do lugar ocupado pelo pas no plano internacional. Com vistas a fazer parte da sociedade moderna, diferentes grupos sociais se reuniam no Brasil para debater sobre as propostas relacionadas s instituies educacionais. No centro da discusso, a educao moral e a incorporao dos indivduos na sociedade de classes. Ao participar das exposies internacionais, o pas redimensionava e redirecionava suas propostas, medida que tinha como parmetro os avanos alcanados pelas civilizaes tidas como modelo de desenvolvimento. Modelos esses que no prescindiam da eugenia como soluo para se atingir o progresso, uma vez que o fator da qualidade da raa estava diretamente associado ao avano tecnolgico. O Brasil e seus porta-vozes, formados pela elite intelectual, estavam com o olhar voltado para outras naes. A fim de tornar o imprio conhecido e apreciado, levava-se para as exposies um cenrio brasileiro colorido e extico, no meio do qual as desigualdades sociais desapareciam. A soluo era pensada a partir do vis da higienizao.

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Conforme Schueler (1998, p.26), a inteno de higienistas, mdicos e demais dirigentes imperiais no era de apenas transformar e modernizar a cidade, mas atingir os costumes e hbitos da populao. Os seus ideais almejavam a civilizao e o progresso e tinham como base os modelos estrangeiros, os pases ento considerados civilizados, principalmente Europa e Estados Unidos. A reconstruo da nao e a formao de um povo - homogneo e harmnico -, por meio da educao e a partir da imagem de um Estado organizado e neutro, segundo Schueler, era a resposta para disciplinar os imigrantes e homens livres e pobres, enfim, a populao heterognea. A ao pedaggica dos setores dominantes, ao lado de outras prticas mais diretamente repressivas, nos ltimos anos do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX, estava voltada para a reconstruo nacional, a conformao da cidadania e para a questo da organizao do trabalho, de acordo com Moraes. Por conta disso, segundo a autora, inmeras estratgias so desenvolvidas, com o objetivo de ajustar e moralizar o trabalhador nova ordem. A educao ao lado de outros modelos didticos como leis e novas regras de convvio social - carregava a responsabilidade de regenerar a populao e, assim, era um dos principais alvos modelares. Todas as mazelas sociais, portanto, deveriam ser enquadradas e solucionadas dentro de uma perspectiva educacional. Nos anos 60 do sculo XIX, por influncia do darwinismo social, estava posta a cientificidade na definio da raa, associando cor a outras caractersticas. Partia-se da premissa da desigualdade das raas e da construo de hierarquias baseadas na superioridade da raa branca sobre a raa de cor. A mestiagem no Brasil configurava-se num prejuzo para o progresso da nao - um progresso pautado na cincia, na indstria e na tcnica.

O carter nacional e a especificidade brasileira baseavam-se em dois pilares fundamentais: raa e natureza. Atravs desses conceitos, marcantes nas teorias evolucionistas e darwinistas do sculo XIX, alguns intelectuais e dirigentes imperiais procuravam explicar o atraso e buscar os caminhos para a constituio da nacionalidade e do progresso. (SCHUELER, 1998, p.92)

A eugenia colocava-se como uma soluo para o desenvolvimento e para a evoluo da populao brasileira, medida que a sua pretenso centrava-se no branqueamento, entendendo a raa branca como superior. Mas, fugindo ao controle cientificista, o branqueamento no ocorreu e

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o desenvolvimento da indstria exigiu a formao de uma mo-de-obra qualificada e tecnicamente preparada. Conforme Alessandra Schueler a educao pblica era vista como alternativa para solucionar o problema da constituio de uma mo-de-obra livre, moralizada e dependente, em contraponto com o fim da escravido que vinha a acontecer no perodo. O cenrio das cidades era protagonizado por uma populao livre, em que a maioria era negra e mestia. Neste contexto, confundiam-se livres e escravos, nacionais e os recm-chegados. O crescimento demogrfico aumentava e as ruas tambm eram ocupadas por crianas e jovens populares, escravas, livres nacionais ou estrangeiras, que desempenhavam pequenas atividades, como vendedores ambulantes moleques de recado, criados e aprendizes. Devido a essa exposio, muitas crianas e jovens eram presos sob a acusao de vadiagem, crimes de roubo, furto, desordens, injrias e capoeiragem, conforme registra Schueler. Com base nesse contexto, os projetos educacionais, que se apoiavam em modelos de pases estrangeiros, comeavam a ser elaborados e readaptados a partir da realidade local, imersa em diferenas sociais, tnicas e culturais das cidades.

esta sociedade abandonada, privada de possibilidades, que se defronta com as crianas rfs, abandonadas, infratoras, filhas de pais pobres, oprimidos, explorados. Crianas e adultos abandonados, transformados em populao sobrante pela forma assumida pelo desenvolvimento capitalista (MARTINS apud MORAES, 2003, p.73)

O modelo da instruo no se furtava a acompanhar as exigncias impostas pelo ritmo da industrializao, em uma sociedade que pretendia alcanar o status de civilizao moderna. A escola empregava o ritmo manifesto da indstria, tendo como parmetro uma educao moral voltada para a disciplina e obedincia. A programao das atividades dirias evidenciava um estrito controle do temp