ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO

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ANLISE CRTICA DO DISCURSO:EXPLORAO DA TEMTICA

Relatrio 01/2006

MARIO AQUINO ALVES

No permitido o uso das publicaes do GVpesquisa para fins comerciais, de forma direta ou indireta, ou, ainda, para quaisquer finalidades que possam violar os direitos autorais aplicveis. Ao utilizar este material, voc estar se comprometendo com estes termos, como tambm com a responsabilidade de citar adequadamente a publicao em qualquer trabalho desenvolvido.

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Anlise Crtica do Discurso: explorao da temtica

Critical Discourse Analysis: exploring the theme

Resumo: Este trabalho uma extensa reviso bibliogrfica para a criao de um quadro de referncias sobre os temas discurso e anlise crtica do discurso, para aplicao no campo dos estudos administrativos e organizacionais.

Palavras-chave: Discurso - Anlise Crtica do Discurso - Ideologia.

Abstract: This work is a comprehensive bibliographical review arranged to create a referential frame on the themes discourse and critical discourse analysis, in order to be applied in the field of management and organization studies.

Key words: Discourse - Critical Discourse Analysis - Ideology.

Mrio Aquino Alves doutor e mestre em Administrao de Empresas pela FGV/EAESP. Bacharel em Administrao Pblica pela FGV/EAESP e Direito pela USP. Professor Assistente na FGV/EAESP, onde ministra cursos sobre Teoria das Organizaes e Comunicaes. Seus interesses de pesquisa so as reas de estudos organizacionais, organizaes da sociedade civil e anlise do discurso.

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INTRODUO Embora no se possa afirmar que a Anlise do Discurso seja uma metodologia ou mtodo coesa e uniforme, pode-se considerar que o campo da Anlise do Discurso est em franca ascenso, mesmo com as limitaes e obstculos que a metodologia impe aos pesquisadores, e que a Anlise Crtica do Discurso (ACD), uma das mais afluentes possibilidades de pesquisa.

Dentre as produes acadmicas que possuem como linha metodolgica a Anlise do Discurso, pode-se encontrar estudos sobre os aspectos ideolgicos dentro de organizaes, abordando temas como diversidade na dentro da polcia do Reino Unido que explora a resistncia dos indivduos iniciativas de promoo da diversidade (DICK & CASSEL, 2002), outros estudos que seguem a mesma linha abordam a desigualdade de gneros (BENSCHOP; DOOREWAARD, 1998).

Ainda dentro da anlise das organizaes, aborda-se em diversos trabalhos a influncia do discurso dentro da prxis administrativa, assim encontramos diversas produes que abordam a criao dos discursos gerenciais (OSWICK; KENNOY; GRANT, 1997; THOMAS, 2003; COUPLAND, 2001; LANGLEY, 2000), e adiante o papel que os discursos desempenham na formao da organizao (HOPKINSON, 2003; SILLINCE, 1999, DOOLIN, 2002).

Outra linha que tambm seguida por quem adota a Anlise do Discurso denota um uso mais prtico do discurso para a empresa, a exemplo o trabalho realizado Palmer e Dunford (2002) que analisa como o discurso pode e foi usado para promover uma vantagem competitiva para a empresa.

Deve-se ressaltar que a grande maioria destes trabalhos foi realizada com base em um referencial terico metodolgico de Michel Foucault (1972, 1987, 1996), que utilizado para Anlises Crticas do Discurso, que consegue dar grande importncia para os mecanismos de representao e, ao mesmo tempo, manter-se agnstica s relaes do que representado e a realidade (McHOUL; CLEGG,1987).

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Este Relatrio de Pesquisa uma tentativa de estabelecer um quadro de referncias para o desenvolvimento de pesquisas em Anlise do Discurso, mais particularmente em Anlise Crtica do Discurso, no campo de estudos das organizaes. Assim, sendo, procedeu-se o seguinte caminho. Primeiro identificou-se o que Anlise do Discurso, diferentes tipologias e prprio conceito de discurso. Segundo, discorreu-se sobre a Lingstica e o discurso, destacando os principais elementos lingsticos do discurso (polifonia, dialogismo e intertextualidade, a criao de campos discursivos e a ligao do discurso com a ideologia. Terceiro, procurou-se apresentar o que Anlise Crtica do Discurso, destacando os desenvolvimentos que se podem fazer por este tipo de abordagem.

necessrio que se faa aqui o devido aos alunos Albert Felipe Mojzeszowicz e Caio Motta Luiz de Souza, auxiliares da pesquisa que culminou com este relatrio, cujo trabalho de reviso bibliogrfica e reflexo sobre os textos foi incorporado a este trabalho, especialmente nas classificaes sobre Anlise do Discurso e na discusso sobre o papel da ideologia no discurso. Alm deles, o aluno Marcus Vinicius Peinado Gomes foi orientando de iniciao cientfica pelo GVPesquisa neste projeto, que culminou com o seu prprio relatrio final: AS POLTICAS DE INCLUSO SOCIAL DA PREFEITURA DE SO PAULO POR MEIO DA ANLISE CRTICA DO DISCURSO: A 'EMANCIPAO DOS COOPERADOS'. Seu grande esforo em compreender ACD e aplica-la a uma pesquisa emprica, bem como na participao das leituras, discusses e compilao dos textos, contribuiu muito para a criao deste referencial.

a estes valorosos alunos que este trabalho dedicado.

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ANLISE DO DISCURSO E O CONCEITO DE DISCURSO Segundo Maingueneau (1993), a anlise do discurso pode significar quase qualquer coisa, hoje em dia, uma vez que toda a produo de linguagem pode ser considerada discurso. Vrios campos das cincias humanas utilizam a expresso, qual tm acesso em funo das disciplinas em que se apiam vrios campos e domnios interdisciplinares.

Em cada caso, evidentemente, a expresso discurso modificada de acordo com as referncias que faz psicologia, histria, filosofia, antropologia etc. Nestas condies, compreensvel que a noo da analise do discurso se torne uma espcie de coringa para um conjunto indeterminado de quadros tericos (MAINGUENEAU, 1993, p. 12).

No que diz respeito s diversas linhas de anlise do discurso, Maingueneau (1993) classifica-as a partir de duas tradies regionais, como se v no Quadro 1.

AD Francesa Tipo de Discurso Escrito Quadro doutrinrio

AD Anglo-Sax Oral institucional Conversao comum cotidiana

Objetivos determinados

Propsitos textuais Explicao forma Construo do Objeto Estruturalismo Lingstica e Histria

Propsitos comunicacionais Descrio uso Imanncia do objeto Interacionismo Psicologia e Sociologia

Mtodo

Origem Lingstica Antropologia QUADRO 1: Comparao entre as Tradies em Anlise do Discurso Fonte: MAINGUENEAU, 1993, p. 16 Como se pode perceber, as duas tradies possuem vises bem distintas do que se pode chamar de anlise do discurso: a escola francesa privilegia o texto escrito e a tradio estruturalista; a tradio anglo-sax privilegia a oralidade, a sociologia de matriz interacionista e os estudos etnometodolgicos.

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Phillips e Hardy (2002) propem uma tipologia baseada que se constri a partir de dois eixos: um que distingue a nfase no contexto da produo do discurso e a nfase no texto; e outro eixo que distingue a nfase na anlise da construo do texto e outro na anlise crtica do texto. Esta tipologia mostrada na forma de um esquema (FIGURA 1), de onde ele ir retirar as linhas gerais que podem ser seguidas em uma anlise de discurso.

Contexto EstruturalismoInterpretativo Anlise Crtica do Discurso

Construtivista Anlise Social Lingstica Anlise Lingstica Crtica Crtica

Texto FIGURA 1: Uma Tipologia de Anlise do Discurso FONTE: Phillips e Hardy (2002) A Anlise Social Lingstica congrega estudos que se fazem a partir de uma leitura prxima do texto para fornecer insights sobre a sua organizao e construo, e tambm para entender como textos trabalham para organizar e construir outros fenmenos. O Estruturalismo Interpretativo foca a anlise do contexto social e o discurso que o mantm. Mesmo os textos fornecendo um grande subsdio a este estudo, a descrio do contexto toma lugar de destaque, uma vez que esta abordagem almeja estudar pontos que provoquem insights em um contexto mais amplo. A Anlise Crtica do Discurso tenderia a compreender o contexto da produo do discurso individual de forma crtica. Por fim, a Anlise Lingstica Critica tambm foca textos individuais, mas com forte interesse na dinmica do poder que envolve o texto. (PHILLIPS; HARDY, 2002)

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Como se pode perceber, h diversas possibilidades de se entender anlise do discurso e, inclusive, formas diferentes de criar tipologias. Mas, resta definir o que se entende por anlise do discurso, mais precisamente, se uma metodologia ou uma disciplina.

Maingueneau (2000) prefere definir a anlise do discurso como a disciplina que visa a articular enunciao do discurso sobre um lugar social. Ela se relaciona, assim, com os tipos de discurso que so praticados nos diversos setores do espao social ou nos chamados campos discursivos.

Para Phillips e Hardy (2002), a anlise do discurso a explorao das relaes entre discurso e realidade. Sem o discurso no h realidade social, e sem entender o discurso, ns no podemos entender nossa realidade, nossas experincias, ou ns mesmos (PHILLIPS; HARDY, 2002, p.2). Ainda segundo esses autores, a analise do discurso explora como os textos so feitos carregando significados atravs dos processos sociais e tambm como eles contribuem para a constituio da realidade social fazendo significados. Os textos podem ser considerados uma unidade discursiva e uma manifestao material do discurso. Textos podem ter uma grande variedade de formas, incluindo textos escritos, palavras ditas, fotos, smbolos, artefatos, entre outras. Os textos no tem significncia individualmente: somente com a natureza de sua produo, disseminao, e consumo e que eles se tornam significantes.

Assim sendo, a anlise do discurso simultaneamente mtodo e metodologia. (PHILLIPS; HARDY, 2002). As abordagens qualitativas tradicionais comumente assumem um mundo social e, a partir da procuram entender, o significado deste mundo para os participantes. A Anlise do Discurso, por outro lado, tenta explorar como as idias e objetos socialmente produzidos que existem no mundo foram criados e como eles se mantm ao longo do tempo. Enquanto outras metodologias qualitativas trabalham para entender ou interpretar a realidade social como ela existe, a Anlise do Discurso busca desmascarar a forma em que ela produzida (PHILLIPS; HARDY, 2002, p.6).

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O Conceito de Discurso O termo discurso apresenta trs conotaes distintas (DUBOIS, 1995): 1. Discurso a linguagem posta em ao, a lngua assumida pelo falante, sendo, portanto, sinnimo de fala. 2. Discurso uma unidade igual ou superior frase; constitudo por uma seqncia que forma uma mensagem com um comeo, um meio e um fim, sendo, portanto, sinnimo de enunciado. 3. Segundo a lingstica moderna, o termo discurso diz respeito a qualquer enunciado ou seja, toda combinatria de elementos lingsticos provida de sentido (FIORIN, 1993, p.80) superior frase, considerado do ponto de vista das regras de encadeamento das seqncias de frases.

Antes do desenvolvimento das formas contemporneas de anlise do discurso, somente do ponto de vista lingstico que o discurso podia ser considerado sinnimo de enunciado (fala). A oposio enunciado/discurso marcava simplesmente a oposio entre lingstico e extralingstico. A lingstica incidia apenas sobre os enunciados que, reagrupados em um corpus, ofereciam-se anlise. As regras do discurso isto , o estudo dos processos discursivos que justificam o encadeamento das seqncias de frases eram remetidas a outros modelos e a outros mtodos, em particular a toda perspectiva que levasse em considerao o falante, como a psicanlise.

Foi mile Benveniste que conduziu o discurso para o campo da lingstica (GRUMBACH, 1983). Segundo o autor francs, a frase, unidade lingstica, no mantm com as outras frases as mesmas relaes que as unidades lingsticas de um outro nvel mantm entre si. As frases no constituem uma classe formal de unidades que se opem entre si. Com a frase, deixa-se o domnio da lngua como sistema de signos; o domnio abordado o do discurso, em que a lngua funciona como instrumento de comunicao. nesse domnio que a frase, deixando de ser um ltimo termo, torna-se uma unidade: a frase a unidade do discurso (GRUMBACH, 1983).

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Mas Benveniste foi alm, dando um outro enfoque para o discurso quando ops a narrativa (ou histria) e o discurso. Para o autor, a narrativa representa o grau zero da enunciao, j que neste domnio, tudo se passa como se no existisse nenhum falante, onde os acontecimentos parecem ter vida prpria. J o discurso caracterizado por uma enunciao que supe um locutor e um ouvinte, em outras palavras, um emissor e um receptor e, pela vontade, no emissor, de influenciar seu receptor (GRUMBACH, 1983). Se a narrativa caracterizada pela ausncia de um sujeito (enunciados na terceira pessoa), o discurso justamente caracterizado pela presena de sujeitos (enunciados em primeira pessoa e em segunda pessoa) (GRUMBACH, 1983).

Portanto, o discurso pode ser entendido como um enunciado cuja funo fazer com que o receptor reaja da maneira esperada pelo emissor.

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A LINGISTICA E O DISCURSO A linguagem pode ser definida primeiramente, como um sistema de sinais vocais (BERGER e LUCKMANN, 1985). Esse sistema encontra seu fundamento na capacidade inerente do corpo humano de expressividade vocal. Apesar disto, embora certas expresses verbais (urro, grunhido, grito, assobio etc.) possam ser integradas a um ou vrios sistemas de objetivao, eles no constituem a linguagem. O que a caracteriza o fato de que as objetivaes que ela mantm sejam resultado de um processo de significao lingstica. O destacamento da linguagem consiste muito mais fundamentalmente em sua capacidade de comunicar significados que no so expresses diretas da subjetividade instantnea. Dessa forma, a linguagem se torna capaz de armazenar objetivamente uma quantidade praticamente infinita de significados e experincias que vo sendo preservadas e transmitidas de geraes a geraes. A linguagem, portanto, tem origem na prpria vida cotidiana, referindo-se, sobretudo realidade experimentada na conscincia em estado de viglia, dominada por motivos pragmticos (aglomerados de significados diretamente referentes a aes presentes ou futuras) que so partilhados com outros indivduos. Embora a linguagem possa tambm ser empregada para se referir a outras realidades [...] conserva assim mesmo seu arraigamento na realidade do senso comum da vida diria. (BERGER e LUCKMANN, 1985, p.58) Mesmo estando imersa na vida cotidiana, a linguagem pode transcender completamente a essa realidade. Ela tem a capacidade de se referir a experincias de reas limitadas de significao e abarcar esferas da realidade separada. A linguagem constri, ento, imensos edifcios de representao simblica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenas de um outro mundo (...) A linguagem capaz no somente de construir smbolos altamente abstrados da experincia diria, mas tambm de fazer retornar estes smbolos, apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana. Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simblica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreenso pelo senso comum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e smbolos todos os dias. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p.61).

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Ocorre que a linguagem no opera como algo neutro, auto-referenciado, mas como um sistema simblico que uma forma de poder num certo campo social (BOURDIEU, 1989). Os sistemas simblicos dentre os quais a linguagem o sistema mais do que primordial funcionam como sistemas de dominao, uma vez que as relaes de comunicao produzidas na linguagem e pela linguagem so relaes de poder que dependem em forma e contedo do poder material ou simblico acumulado pelos diversos agentes do campo social; alm disso, tm uma funo poltica de instrumentos de imposio ou de legitimao da dominao, uma vez que so estruturas estruturadas (BOURDIEU, 1989). A linguagem cria campos semnticos ou zonas de significao lingisticamente circunscritas. O vocabulrio, a gramtica e a sintaxe esto engrenados na organizao desses campos semnticos. Assim, a linguagem constri esquemas de classificao para diferenciar os objetos em gnero ou em nmero; formas para realizar enunciados da ao por oposio a enunciados do ser; modos de indicar graus de intimidade social etc. Uma vez que a linguagem cria smbolos, esses precisam ser interpretados coletivamente por aqueles que habitam um mesmo ambiente social, para a realidade compartilhada tenha algum sentido. A Lingstica, cujo objeto de anlise a linguagem, tem por objetivo a formulao de um modelo de descrio desse instrumento atravs do qual o homem informa seus atos, vontades, sentimentos, emoes e projetos (COELHO NETTO, 1980, p.15). A Teoria Lingstica passou inmeros estgios de desenvolvimento, ficando restrita, durante muito tempo, ao estudo das chamadas lnguas naturais. Foi com o suo Ferdinand de Saussure (1857-1913) que a lingstica partiu para uma dimenso mais generalista, aplicando-se aos mais diferentes domnios da atividade humana, em especial comunicao. Saussure imaginou a existncia de uma disciplina que estudaria os signos no meio da vida social, o que validaria sua penetrao em outros campos de estudo da atividade humana. Essa cincia, que ele acreditava ser parte da psicologia social, recebeu a denominao de Semiologia, uma cincia geral de todos os sistemas de signos, por meio dos quais se

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estabelece a comunicao entre os homens. Da Semiologia, a lingstica no seno uma parte desta cincia geral (SAUSSURE, 1974, p.24). Mas, pode-se dizer que uma parte privilegiada, j que vai fornecer um modelo de anlise e interpretao aplicvel s outras partes da Semiologia.

A dualidade entre lngua e fala Dentre as inmeras contribuies de Saussure aos estudos da linguagem humana, uma das que mais mereceram destaque junto aos pesquisadores da comunicao humana foi justamente o desenvolvimento conceitual da dicotomia Lngua/Fala. Segundo o estudioso suo, a linguagem apresenta uma natureza multiforme e heterclita, no podendo ser considerada isoladamente, uma vez que participa simultaneamente do fsico, do fisiolgico e do psquico, do individual e do social o que, de certa forma, faz com que se torne aparentemente inclassificvel (SAUSSURE,1974). Ocorre que essa aparente desordem acaba quando, desta massa desregrada, extrado ...um conjunto sistemtico de convenes necessrias comunicao, indiferente matria dos sinais que o compem, e que a lngua, diante do que a fala recobre a parte puramente individual da linguagem. (BARTHES, 1971, p.17) Originada nas necessidades humanas de comunicao, a lngua , portanto, uma instituio social e um sistema de valores ao mesmo tempo (BARTHES, 1971). Sendo um sistema de valores, a lngua constituda por um pequeno nmero de elementos signos que funcionam como meio de troca entre outros valores correlatos. A lngua um sistema de valores contratuais (em parte arbitrrios, ou, para ser mais exato, imotivados) que resiste s modificaes do indivduo sozinho e que, conseqentemente, uma instituio social. (BARTHES, 1971, p.18) J a fala seria um ato individual de seleo e atualizao, que constituda por: combinaes graas s quais o ser falante pode utilizar o cdigo da lngua visando expressar seu prprio pensamento e mecanismos psicofsicos que permitem a exteriorizao das combinaes. O aspecto combinatrio da Fala evidentemente capital, pois implica que a Fala se constitui pelo retorno de signos idnticos: porque os signos se repetem de um discurso a outro e num mesmo

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discurso (embora combinados segundo a diversidade infinita das palavras) que cada signo se torna um elemento da lngua; porque a Fala essencialmente uma combinatria que corresponde a um ato individual e no uma criao pura. (BARTHES, 1971, p.19) Levando em considerao a dicotomia proposta por Saussure, o lingista russo Mikhail Bakhtin (1979) aceitou o princpio de que a lngua um fato social, cuja existncia est calcada nas necessidades de comunicao entre os homens. Mas, acreditava que a fala fruto da manifestao individual de cada falante. Procurou formular uma teoria do enunciado, portanto, atribuindo um lugar privilegiado enunciao enquanto realidade da linguagem. Segundo ele, a matria lingstica apenas uma parte do enunciado; existe tambm uma outra parte, no-verbal, que corresponde ao contexto da enunciao (BRANDO, 1994, p.9). Isso significa dizer que no s a lngua deve ser tratada pela Lingstica, mas tambm a fala ou enunciado. Mais ainda, o enunciado no apenas um dos objetos de estudo da linguagem, mas o componente necessrio para a compreenso e a explicao da estrutura semntica de qualquer forma de comunicao verbal. Cada ato de enunciao corresponde realizao da intersubjetividade humana. Lngua e fala so, portanto, conceitos que s podem ser compreendidos enquanto relao dialtica, j que um existe lngua sem fala e to pouco existe fala abstrada da lngua. S podemos usar a fala quando a retiramos da lngua. Por outro lado, a existncia da lngua s possvel a partir da fala: os fatos de fala antecedem, historicamente, os fatos de lngua, uma vez que a fala que faz a lngua evoluir; o sujeito aprende a lngua e essa se torna parte de sua realidade objetiva por meio da fala, durante seu processo de socializao (BERGER; LUCKMANN, 1986). Portanto, a lngua , simultaneamente, produto e instrumento da fala, caracterizando uma verdadeira dialtica (BAKHTIN, 1979). A concepo acima revela as relaes entre o lingstico e o social. O processo entre a elaborao mental do contedo a ser externalizado sua real objetivao a fala tem o seu contedo orientado socialmente, buscando adaptar-se ao contexto imediato do ato de comunicao e, principalmente, aos interlocutores.

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A discusso das idias dos autores citados nessa parte do texto permite afirmar, portanto, que a realidade social uma construo humana e a linguagem um sistema simblico importante nesse processo de construo.

O Discurso Nas pginas anteriores apresentou-se como os estudos lingsticos foram, aos poucos, reconhecendo o carter dual constitutivo da linguagem, ou seja, carter que tem a linguagem e que a faz, ao mesmo tempo, formal e atravessada por perspectivas subjetivas e sociais. Tal enfoque permitiu que a Lingstica deslocasse seus estudos, e passasse a poder descrever o fenmeno da linguagem a partir de outras perspectivas e no mais, apenas, exclusivamente, a partir da lngua. A linguagem, assim, deixou de ser um sistema ideologicamente neutro e pde afinal ser descrita a partir de um plo externo dicotomia saussuriana entre lngua e fala.

Isso significa dizer que, naqueles estudos, estabeleceu-se uma instncia a partir da qual se pode operar uma ligao indispensvel entre o nvel propriamente lingstico e o extralingstico, dado que, nesses modelos e nessas novas teorias e estudos, estabeleceu-se um ponto mais, a rigor, um plano em que se articulam os processos ideolgicos e os fenmenos lingsticos. Esse ponto de articulao o discurso.

Nesta parte, apresentar-se-o alguns dos conceitos mais amplamente aceitos na rea, sobre o que seja anlise do discurso, para, depois, discutir o conceito de discurso e as vrias noes que esto envolvidas nesse conceito.

Polifonia e dialogismo Bakhtin (1979) foi um dos maiores crticos do objetivismo de Saussure quando o mesmo defendia a separao entre a lingstico e aquilo que considerava como o extralingstico. Segundo Bakhtin, Saussure, tratando a lngua como um fenmeno estanque, entende a questo lingstica de forma monolgica. Para o pensador russo, pelo contrrio, a verdadeira substncia da lngua constituda pelo fenmeno social da interao verbal, realizada atravs da enunciao e das enunciaes (BAKHTIN, 1979, p. 109).

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Portanto, para Bakhtin, o ser humano s pode ser compreendido em sua relao com o outro. E isso vale para os produtos da sua interao. Portanto, a tese saussuriana da separao lngua/fala, como j havia mencionado anteriormente, no se sustenta. Desta forma, pode se argir que as palavras no so monolgicas, mas dialgicas (BAKTHIN, 1979), ou seja, incorporam em seus significados lgicas de diferentes campos, no apenas do campo lingstico.

Quanto ao dialogismo, esse trao apresentado como a condio constitutiva dos sentidos dos enunciados lingsticos. E foi a partir da noo de dialogismo que Bakhtin conseguiu elaborar sua teoria da polifonia (BAKHTIN, 1979).

Na obra Problemas da Potica de Dostoievski (BAKHTIN, 1981), o lingista russo traou uma distino entre duas categorias de textos.A primeira categoria se refere aos textos que principalmente da literatura popular apresentam uma conotao carnavalesca, ou seja, que o autor parece vestir uma srie de mscaras diferentes. Esses so os chamados textos polifnicos, nos quais cada mscara corresponde a uma voz e todas as vozes falam ao mesmo tempo, sem que haja a preponderncia de uma das vozes. A segunda categoria se refere aos textos que principalmente os chamados textos dogmticos apenas uma voz fala: so textos monolgicos, nos quais mesmo que haja vrias conscincias presentes, essas so obra do narrador (um grande exemplo o monlogo de Hamlet, na pea homnima de Sheakespeare).

Os textos monolgicos negam qualquer existncia fora de si prprios; no h alteridade. Para Bakhtin, a dialogizao do discurso tem uma dupla orientao: uma voltada para os outros discursos como processos constitutivos do discurso, outra voltada para o outro da interlocuo.(BRANDO, 1994, p. 53). Na primeira orientao, a palavra pluriacentuada: vrios acentos contraditrios se cruzam no seu interior e o seu sentido constitudo pelo e no entrecruzamento. Isto significa dizer que o enunciado em um discurso dialgico se constri em um emaranhado

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de fios dialgicos vivos, ou seja, outros discursos que, intertextualmente, se localizam no interior do prprio discurso. O discurso se tece polifonicamente, num jogo de vrias vozes entrecruzadas, complementares, concorrentes, contraditrias. (BRANDO, 1994, p. 53).

Na segunda orientao, voltada para o destinatrio, a interlocuo um fator especfico para que o discurso se torne dialgico, uma vez que todo discurso depende da relao bivocal entre emissor e receptor. No momento do enunciado, o locutor inicia um dilogo com o discurso do receptor, que no apenas um mero decodificador, mas um agente ativo capaz de proferir um contradiscurso, mesmo que esse discurso ainda no tenha sido dito ou esteja oculto.

Com Oswald Ducrot, o conceito de polifonia ressurge na Lingstica mais recentemente (BRANDO, 1994). Embora para o presente trabalho, Bakhtin tenha uma importncia superlativa, Ducrot oferece alguns elementos de grande importncia para a compreenso da polifonia.

Ducrot demonstra como, num mesmo enunciado isolado, pode-se detectar mais de um falante, contestando o que se entendia na Lingstica por unicidade do sujeito falante. Pela tese da unicidade do sujeito falante, o sujeito possui trs propriedades (DUCROT, 1987):

1. Ele o encarregado de toda atividade psicofisiolgica necessria produo do enunciado. 2. Ele o autor, a origem dos atos ilocutrios executados na produo do enunciado (ordens, perguntas, asseres etc). 3. Ele designado pelas marcas da primeira pessoa quando elas designam um ser extralingstico; ele , portanto, a base de sustentao dos processos atravs de um verbo cujo sujeito eu, o proprietrio dos objetos qualificados de meus, ele que se encontra no lugar chamado aqui.

Dessa forma, a teoria polifnica parte do pressuposto de que o sentido do enunciado uma descrio de sua enunciao e, para essa descrio, o enunciado oferece indicaes. Dentre

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as indicaes fundamentais que o enunciado traz inscritas em seu sentido, esto aquelas sobre o autor ou autores eventual da enunciao.A tese do lingista francs abriga duas idias centrais (DUCROT, 1987): a atribuio enunciao de um ou vrios sujeitos que seriam sua origem; e a necessidade de se distinguir entre esses sujeitos pelo menos dois tipos de personagens: locutores e enunciadores.

A teoria se desenvolve a partir do primeiro elemento dos seguintes pares em oposio: locutor/alocutrio; enunciador/enunciatrio e falante/ouvinte. Busca-se, ento, conceber duas distines.

A primeira distino aquela que se faz entre locutor e falante. O locutor o ser responsvel pelo dizer, mas no um ser no mundo, j que se trata de uma fico discursiva. O falante aquele que vemos e identificamos empiricamente a fonte do discurso. Referem-se a ele o pronome eu e outras marcas da primeira pessoa. O locutor se distingue do sujeito falante emprico (produtor efetivo do enunciado e exterior ao seu sentido) da mesma forma que o narrador se distingue do autor de um romance. O narrador um ser fictcio, interior narrativa; o locutor um ser do discurso que, pertencendo ao sentido do enunciado, est inscrito na descrio que o enunciado d de sua enunciao.

Na segunda distino, o enunciador apresentado de forma distinta tanto do locutor quanto do sujeito falante. A figura da enunciao representa a pessoa de cujo ponto de vista os acontecimentos so apresentados. Se o locutor aquele que fala, que conta, o enunciador aquele que v, o lugar de onde se olha sem que lhe sejam atribudas palavras precisas. Chamo enunciadores os seres que se expressam atravs da enunciao, sem que, no entanto, lhes sejam atribudas palavras precisas. Se eles falam apenas no sentido de que a enunciao vista como exprimindo seu ponto de vista, sua posio, sua atitude, mas no, no sentido material do termo, suas falas. (DUCROT, 1987, p. 204) Existe a polifonia quando, em um mesmo enunciado podem ser distinguidos mltiplos enunciadores ou locutores. A polifonia, portanto, um fenmeno que pode ocorrer tanto para o locutor quanto para o enunciador.RELATRIO PESQUISA 1 /2006

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A polifonia apresenta-se ainda em casos de dupla enunciao, como na ironia e na negao. Um enunciado irnico faz ouvir uma voz diferente da do locutor. O locutor assume as palavras, mas no o ponto de vista que elas representam. Na negao, a maior parte dos enunciados analisvel como o choque de duas posies antagnicas, atribudas a dois enunciadores diferentes.

Intertextualidade, interdiscursividade e formao discursiva Existe uma certa discordncia entre os lingistas sobre a existncia de uma diferena entre os fenmenos da intertextualidade e da interdiscursividade, diferena que s se pode explicar ao se estabelecer alguma diferenciao entre discurso e texto.

O discurso todo enunciado que apresenta um locutor tentando influenciar um ouvinte. J o texto corresponde ao conjunto dos enunciados lingsticos submetidos anlise: o texto a amostra do comportamento lingstico que pode ser escrito ou falado (DUBOIS et alli, 1995, p. 586).

Ocorre que, de acordo com o postulado da sensatez da mensagem (LOPES, 1978), todo discurso tem um sentido, mas no um sentido imanente de outra forma, no seria necessrio interpret-lo. O fato de que, para captar o sentido do discurso, preciso interpret-lo, significa que, pelo menos, o sentido do discurso est fora dele, situando-se num espao que o transcende que o texto. Portanto, no se pode dizer que todo texto um discurso, mas, com certeza, todo discurso um texto. Se o discurso texto, ento, no cabe falar em interdiscursividade, mas apenas em intertextualidade. De qualquer forma, o leitor deve estar informado que muitos lingistas fazem essa diferena e que, portanto, existe uma boa parte da literatura que diferencia interdiscursividade e intertextualidade.

Para fins desse trabalho, os termos intertextualidade e interdiscursividade sero entendidos como intercambiveis. Mas, ento, o que vem a ser intertextualidade? A intertextualidade o processo de incorporao de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para

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transform-lo. H de haver trs processos de intertextualidade: a citao, a aluso e a estilizao. (FIORIN, 1994, p.30) No processo de citao, o sentido do texto mencionado pode ser confirmado ou alterado. Por exemplo, se algum escreve: Machado de Assis dizia sobre a importncia da vitria no campo de batalha: Ao vencedor, as batatas!, est fazendo uma citao do texto Quincas Borba de Machado de Assis.

J no processo de aluso no se citam palavras (todas ou quase todas), mas so reproduzidas as construes sintticas em que certas figuras so substitudas por outras, sendo que todas mantm relaes hiperonmicas com o mesmo hipernimo ou so figurativizaes do mesmo tema. Um exemplo de aluso a frase de Oswald de Andrade tupi or not tupi, onde o escritor faz uma aluso famosa frase do solilquio de Hamlet, to be or not to be, de William Shakespeare. Nesta aluso, o escritor brasileiro se refere no somente a estrutura afirmao/negao do texto ingls, mas tambm a sua sonoridade.

Por fim, h o processo de estilizao, que nada mais do que a reproduo do conjunto de procedimentos do discurso de outrem, isto , do estilo de outra pessoa. Estilos devem ser entendidos como o conjunto das recorrncias formais tanto no plano da expresso quanto no plano do contedo manifesto que produzem um efeito de sentido de individualizao. Um exemplo de estilizao do discurso na literatura brasileira o pico Caramuru do Frei Jos de Santa Rita Duro, no qual o autor praticamente reproduz a estrutura de Os Lusadas de autoria do escritor portugus Lus de Cames.

O dito, o no-dito e o silncio Parece evidente que universos simblicos e seus significados sejam formados por mecanismos lingsticos aparentes, ou seja, por aquilo que verbalizado, pelo que escrito, pelo que dito. Ocorre, porm, tambm o que no dito tem uma importncia fundamental na construo dos significados. O contedo no-dito tem sido objeto de anlise de alguns lingistas, destacando-se o trabalho de Oswald Ducrot (1987).

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No seu trabalho, Ducrot procurou fazer uma diferenciao entre o pressuposto e o subentendido. Em uma frase como o carro parou, existe um pressuposto (no-dito) de que o carro estava em movimento, uma vez que o carro no poderia parar se no estivesse em movimento. Portanto, aquilo que posto (o dito) traz consigo necessariamente um pressuposto (no-dito). Mas, por que motivo o carro parou?. O que fez o carro parar o subentendido (no-dito). No se tem certeza dos motivos da parada do carro. Tudo vai depender do contexto.

H outra forma de tratar o no-dito na anlise do discurso. o caminho sugerido por Orlandi (1993), ao discutir o silncio. Diferentemente do que se imagina, o silncio que muitas vezes pode ser confundido com a ausncia de palavras no o momento da no significao. Para Orlandi (1933), o silncio tambm pode ser pensado como a respirao da significao, lugar de recuo necessrio para que se possa significar, para que o sentido faa sentido.

O silncio pode ser compreendido, assim, tambm como a iminncia de sentido. Essa uma das formas de silncio, que a pesquisadora Eni Orlandi (1993) chama de silncio fundador: silncio que indica que o sentido pode sempre ser outro. Nas formas discursivas irnicas, por exemplo, expresses de ambigidade so silncios fundadores.

Mas o silncio no se limita ao carter fundador. H outras formas de silncio que atravessam as palavras, que falam por elas, que as calam (ORLANDI, 1999, p. 83). Existe o silenciamento (ou poltica do silncio) que se divide em: silncio constitutivo e o silncio local. No silncio constitutivo, utiliza-se uma palavra ou expresso no lugar de outra. Por exemplo, dizer no culpado significa no dizer inocente. J o silncio local a censura, a proibio dizer em uma certa conjuntura. o que faz com que o sujeito no diga o que poderia dizer: numa ditadura no se diz a palavra ditadura no porque no se saiba, mas porque no se pode diz-lo. (ORLANDI, 1999, p. 83).

As palavras se acompanham de silncio e so elas mesmas atravessadas de silncio. esse atravessar corresponde ao momento de interdiscursividade de um discurso. No caso de uma

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narrativa, o ponto de inflexo da mesma, ou seja, o ponto onde a narrativa sofre a sua transformao, onde ela cria novos sentidos, gera nova narrativa. O trabalho do silncio se situa justamente nos efeitos de sentido. Falar em efeitos de sentido , pois aceitar que se est sempre no jogo, na relao das diferentes formaes discursivas, na relao entre os diferentes sentidos. Da a necessidade do equvoco, do sem-sentido, do sentido do outro e, consequentemente, do investimento em um sentido. (ORLANDI, 1993, pp.21-2) O silncio possui uma dimenso poltica interessante para a sua compreenso. Se pelo silncio que se pode compreender a mudana de sentido de um discurso (ou de uma narrativa), e como se sabe, o discurso tambm prxis, o silncio carrega um potencial estratgico para a ao. Pode-se dizer, portanto, que o silncio , tambm, uma estratgia.

A estratgia de silncio fica bastante evidenciada quando se analisa as distines que Lyotard (1983) prope para o silncio. Partindo de uma concepo negativa do silncio, diz que o silncio substitui uma negativa. E, o que o silncio nega seria uma das quatro instncias que constituem um universo de frases: o destinatrio, o referente, o sentido e o emissor. Dessa maneira, o silncio em um discurso seria entendido da seguinte forma: este assunto no do seu interesse; este assunto no existe; este assunto no tem significado algum; esse caso no do meu (emissor) interesse.

Todas essas instncias dizem respeito a uma estratgia discursiva de incluso ou excluso de sujeitos e sentidos em um discurso. Portanto, sua formulao constitutivamente poltica.

Os conceitos de locutor e de enunciador constituem, portanto, instrumentos muito importantes para a anlise do discurso. Por meio deles, sabe-se que o discurso no falado por uma nica voz, mas por vrias vozes que emitem diversos enunciados que, submetidos anlise, tornam-se textos.

Nos processos de intertextualidade, o discurso estabelece sua relao com os demais discursos de forma contratual ou de polmica: na forma contratual, existe a afirmao de

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um discurso pelo outro; j na forma polmica o que existe uma negao de discursos. Na primeira, se estabelece uma aliana e, na segunda, uma oposio.

Para entender ainda mais o carter polmico dos discursos, deve-se observar a questo das formaes discursivas e do campo discursivo.

Campo Discursivo Os discursos no so autctones, mas, so formados a partir de uma relao complementar ou concorrencial entre si. Essa relao compreendida a partir do conceito de formao discursiva.

O conceito de formao discursiva foi delineado por Michel Foucault (1972) em Arqueologia do Saber, com o intuito de designar conjuntos de enunciados relacionados a um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas. Embora Foucault procurasse se afastar de conceitos como cincia, teoria e ideologia, a tradio francesa de Anlise do Discurso incorporou o termo, associando-o diretamente a formaes ideolgicas.

Partindo do conceito de formao discursiva, Maingueneau (1993) prope que os mesmos sejam identificados espacialmente em: universo discursivo, campo discursivo e espao discursivo..

Por universo discursivo entende-se o conjunto de formaes discursivas de todos os tipos que coexistem em uma certa conjuntura. Nenhum tipo de anlise do discurso consegue recuperar a totalidade das formaes discursivas existentes em um universo discursivo, muito embora as mesmas tenham um nmero finito. Por esse motivo, faz-se necessrio um recorte mais limitado que corresponde ao campo discursivo. O campo discursivo definvel como um conjunto de formaes discursivas que se encontram em relao de concorrncia, em sentido amplo, e se delimitam, pois, por uma posio enunciativa em uma dada regio. O recorte de tais campos deve decorrer de hipteses explcitas e no de uma partio espontnea do universo discursivo.(MAINGUENEAU, 1993, pp. 116-7)

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Dentro de um campo discursivo encontram-se espaos discursivos. Os espaos discursivos so subconjuntos do campo discursivo. Em cada espao discursivo h pelo menos duas formaes discursivas que mantm relaes privilegiadas, de extrema importncia para que se compreendam os discursos que, adiante, sero analisados.

Os espaos discursivos so definidos no porque sejam definidos como naturais, mas por uma deciso do pesquisador em funo de seu objeto de estudo. Os espaos discursivos so recortados (...) porque uma formao discursiva dada no se ope de forma semelhante a todas as outras que partilham seu campo: certas oposies so fundamentais, outras no desempenham diretamente um papel essencial na constituio e preservao da formao discursiva considerada. (MAINGUENEAU, 1993, p. 117) Assim como os discursos se definem na relao com outros discursos (ditos e no-ditos), nenhum campo discursivo existe isoladamente, havendo trocas dentro de um universo discursivo. Usando a linguagem dos campos sociais, dizemos que os campos discursivos estabelecem homologias com outros campos discursivos, e tambm com outros campos sociais. Essa caracterstica relacional que se pode descrever entre os campos nem sempre explorada por aqueles que trabalham com anlise do discurso. Esses analistas preferem analisar os discursos considerados dentro dos limites dos prprios campos, o que no usa todo o potencial da teoria e acaba por empobrecer a anlise do discurso.

Definidas as idias de universo discursivo, campo discursivo e espao discursivo, pode-se melhor compreender as inter-relaes entre os discursos, em especial a chamada relao polmica. Uma formao discursiva ope dois conjuntos de categorias semnticas, as reivindicadas (chamemo-las de positivas) e as recusadas (as negativas). (MAINGUENEAU, 1993, p. 122). Um discurso s pode relacionar-se com um outro discurso do mesmo espao discursivo por meio de um simulacro construdo a partir deste outro discurso: no h relao direta entre esses discursos, mas mediada por esse simulacro. Ao discurso que se encontra na posio de tradutor d-se o nome de discurso agente. J ao discurso que traduzido d-se o nome

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de discurso paciente. Numa relao polmica, h alternncia constante dos papis de agente e paciente.

Os discursos constroem simultaneamente suas identidades e suas relaes com os outros discursos, os quais, por sua vez, permitem que essas relaes se estabeleam. Isso se afirma porque as relaes de intertextualidade so constitutivas, ou seja, atribuem sentido aos discursos. Da que, se, pelo menos aparentemente, um discurso mostra-se indiferente ao outro se pode supor que, do ponto de vista semntico, seja importante para esse discurso que ele seja denegado no seu prprio campo e que, ao mesmo tempo, de algum modo, ele se impea de desenvolver-se fora daquele campo.

o que se pode observar quando se analisa, por exemplo, o discurso dos defensores da pena de morte, em oposio ao discurso dos defensores dos direitos humanos: numa leitura superficial, os dois discursos podem ser descritos como contraditrios, dado que, primeira vista, constroem-se em espaos discursivos diferentes e, portanto, so incompatveis ou incomparveis. Afinal de contas, os defensores da pena de morte so associados defesa de um Estado forte, mais autoritrio; por sua vez, o discurso dos defensores dos direitos humanos, construdo em outro campo, pode ser descrito como relacionado defesa da democracia e do humanismo. Em todos os casos, contudo, tudo depender sempre do modo como cada um desses discursos se construa: haver um tipo determinado de construo se qualquer dos dois discursos desejar ser descrito apenas dentro de seu campo original e haver outros tipos determinados de construo, no caso de qualquer dos dois discursos desejar, aspirar ou, at, admitir que se o descrevam num plano superior de descrio, no qual se possam, sim, comparar os dois tipos de discurso.

Pode-se pensar, assim, em dois grupos de enunciadores, de cada lado dessa oposio: haver enunciadores do discurso da pena de morte aos quais no interessar, como estratgia discursiva, que seu discurso seja comparvel ao do campo semntico superior (onde possvel discutir a pena de morte sob a tica dos direitos humanos); e pode-se pensar, portanto, que, correspondentemente, haver enunciadores do discurso da pena de morte aos quais, sim, interessar faz-lo. A cada um desses grupos corresponder,

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portanto, uma especfica construo discursiva que, ao mesmo tempo, conforme variem os interesses de cada grupo, impea as comparaes no desejadas e favorea as comparaes desejadas ou, claro, as que se deve impedir e as que se pode admitir.

Por a se explica tambm, tambm, por exemplo, as inmeras variantes que se constatam nos projetos de lei no Congresso Nacional, mesmo que, no geral, todas estejam pedindo que se organize um plebiscito para discutir a adoo da pena de morte no Brasil. Em alguns casos, haver projetos inaceitveis para um ou outro grupo, sobretudo nos casos radicais em que as construes discursivas anulem uma ou outra diferena essencial e a correspondente relao polmica que, claro, tem sempre de ser preservada, por um ou outro grupo, porque nela que se encontra a possibilidade de o grupo existir e manter-se como tal. Para os humanistas, por exemplo, nenhuma proposta ser discutvel se, nela, no se preservarem os valores da democracia e os direitos humanos; pela mesma relao, os defensores do Estado forte no podem discutir seno as propostas cuja construo discursiva preserve esses valores. Por outro lado, a discusso corre o risco de se tornar totalmente irrelevante se, a custa de aparar todas as arestas, para continuar os debates, todos os grupos facilmente aceitassem abrir mos de todas as diferenas relevantes. Nos dois casos, chegar-se-ia a um impasse.

A situao acima representa uma modalidade exemplar de dialogismo, dissecada, de fato, at quase o impasse absoluto, risco que Maingueneau claramente percebe, tambm no seu campo de pesquisa. Mas no haveria algum perigo em diluir dessa forma a diferena usual entre polmico e no-polmico, em proveito de uma interdiscursividade generalizada? (MAINGUENEAU, 1993, p. 123) Sim, isto possvel, principalmente se o pesquisador no tomar o cuidado devido de compreender o tipo de dialogismo que est lidando. Existem dois nveis de dialogismo: o dialogismo constitutivo, que define as condies de possibilidade de uma formao discursiva no interior de um espao discursivo e; o dialogismo mostrado (dilogo polmico), que a interdiscursividade manifestada (MAINGUENEAU, 1993).

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O dialogismo polmico mostrado importante para o analista de discurso porque considera assuntos de controvrsia. Controvrsias normalmente ocorrem sobre alguns pontos que podemos chamar de pontos-chave, deixando uma zona sombria entre os mesmos. Os assuntos de controvrsia so previamente levantados em dois domnios: as zonas que j foram objeto de ataques e aquelas que ainda no foram debatidas. No primeiro domnio, o discurso filtra entre os enunciados contra ele dirigidos, os temas aos quais lhe parece impossvel no responder; no segundo ele define pontos que, no conjunto dos textos do adversrio, lhe parecem particularmente importantes.(MAINGUENEAU, 1993, p. 124) O que se deve evitar, porm, imaginar que o discurso pode se reduzir apenas a alguns pontos chave. Apesar de sua importncia, a palavra no pode ser descontextualizada, ela deve ser analisada no somente no seu processo de semiose lingstica, mas tambm de como ela explorada em um debate e tambm como esse prprio debate produzido. Mais ainda, a interdiscursividade possui uma grande diversidade de dimenses, que podem estar todas implicadas nesse mesmo debate.

Toda polmica no estabelecida imediatamente. Ela se legitima aparecendo como repetio de outras que acabam definindo uma memria polmica de uma formao discursiva. As diversas memrias polmicas recorrem a um tesouro cujas linhas de partilha so incessantemente deslocadas. Quando um discurso novo emerge, ele faz emergir com ele uma redistribuio destas memrias (...) o discurso mobilizado por duas tradies: a que o funda e a que ele mesmo, pouco a pouco instaura. (MAINGUENEAU, 1993, p. 125). A questo da memria polmica remete s homologias de campos sociais definidas por Pierre Bourdieu (1983). Um campo discursivo acaba reproduzindo situaes de poder de outros campos discursivos. Assim como nos campos sociais, a polmica supe ... um contrato entre o locutor agente e o locutor paciente. A polmica presume a diviso de um mesmo campo discursivo e das leis que lhe so inerentes por plos distintos, e que se colocam em posies assimtricas de poder. O tipo de capital presente um capital lingstico. Os locutores mudam de registro lingstico com tanto maior margem de liberdade quanto mais total for o domnio dos recursos lingsticos em funo da relao objetivaRELATRIO PESQUISA 1 /2006

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entre sua posio e a de seus interlocutores na estrutura da distribuio do capital propriamente lingstico e, sobretudo, das outras espcies de capital. (BOURDIEU, 1983, p. 173). Essa lembrana refora a tese de que a razo de ser de um discurso nunca se encontra no interior do mesmo, nem mesmo na competncia lingstica do locutor: ela se situa no lugar a partir do qual ele socialmente definido, ou seja, nas propriedades inerentes no campo particular que lhe homlogo. Por exemplo, o discurso do Presidente da Repblica se define no pelas palavras que ele profere, mas pela posio que ocupa e pelo conjunto de outras aes que lhe so associadas.

Outro ponto importante a ressaltar que na polmica que se vislumbra o silncio, tal como mostrei anteriormente. A polmica tem um potencial constitutivo de sentido (dialogismo constitutivo) muito forte, uma vez que no exerccio da polmica os sentidos das formaes discursivas so passveis de alterao.

Explicadas as questes da polifonia e da intertextualidade, falta discutir como o discurso articula os processos ideolgicos e os processos lingsticos. Em outras palavras, resta discutir o carter ideolgico do discurso.

O Carter Ideolgico do Discurso A polifonia e a intertextualidade mesmo que no perceptveis em um primeiro momento so caractersticas intrnsecas ao discurso e demonstram que, ao incorporar vrias vozes e vrios textos, o discurso no uma entidade autnoma, mas sim condicionada por uma malha de vrios sentidos. Tal afirmao vai ao encontro do que Edward Lopes chama de postulado do carter oculto do significado (LOPES, 1978, p.3).

Segundo o postulado do carter oculto do significado, o sentido algo que se procura. O discurso no possui um nico sentido, mas vrios. Tudo se passa como se, assim como a floresta esconde a rvore, uma pluralidade de sentidos ocultasse um sentido nico. Objetos alegricos, a floresta e o discurso seriam modos de manifestao figurativa de um no saber que eminentemente perturbador (LOPES, 1978, p.3).RELATRIO PESQUISA 1 /2006

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O discurso assume, ento, um carter incmodo.O discurso incomoda porque ele sempre o discurso do outro (ou seja, de um virtual oponente). O nosso discurso no produz duplos sentidos para ns mesmos. O discurso do outro enigmtico porque o outro enigmtico, o que se torna um problema a ser resolvido: na passagem do discurso ao texto conta-se, de forma subjacente, uma narrativa que vai do no-saber ao saber. O carter enigmtico do discurso no significa uma ausncia de sentido; pelo contrrio, o discurso misterioso porque conotado, ou seja, apresenta mltiplos sentidos, escapando, portanto, do domnio do interlocutor.

Alis, procurar o sentido do discurso uma das formas encontradas pelas pessoas para manifestarem um desejo de dominao ou de contra-dominao. Analisados, um a um, todos os modos de dominao que o homem inventou ao longo dos sculos para relacionar-se com o seu prximo, nenhum mais eficiente que o da manipulao dos sentidos. Aquele que manipula os sentidos do discurso transformase no rbitro todo poderoso da comunidade para a qual define o que venha a ser valor e antivalor; ele quem assinala os objetivos a serem perseguidos pelo grupo, dita as regras de comportamento que ho de dirigir a ao singular dos indivduos na tentativa de realizao de seus valores, pune e recompensa (LOPES, 1978, p. 4). Sendo assim, o discurso incorpora textos que dizem respeito a interesses relacionados ao poder. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdies que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligao com o desejo e com o poder (FOUCAULT, 1996, p.10). Se o discurso se relaciona expressamente a interesses, est claro que ele est relacionado ideologia.

Sobre a Ideologia O ser humano no existe sobre a natureza, mas sobre os campos sociais (e instituies) onde pratica a natureza. E essas instituies so fruto de prticas sociais. Tais instituies so legitimadas por universos simblicos que, por seu turno, se legitimam por mecanismos conceituais, dentre eles, as ideologias.

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Todo conhecimento de um indivduo um conhecimento da prtica em processo que esse indivduo realiza. Ocorre, porm, que, o conjunto de concepes de cada indivduo, enquanto sistema pessoal, exprime somente a prtica desse indivduo. Mas o carter social da prtica, isto , o fato dessa prtica decorrer sobre instituies comuns a mltiplos indivduos, faz com que nos sistemas particulares de cada um deles existam concepes gerais partilhadas por uma comunidade de indivduos (...) quando invoco a ideologia como ideologia da prtica refiro-me a uma prtica cujo nico processo direto ocorre na institucionalizao social (BERNARDO, 1978, p.88-90). O modelo acima parte da suposio de que todas as formaes ideolgicas so conhecimento de uma prtica, concebendo, portanto, uma relao imediata e constante entre a prtica e o processo de pensamento. Tal suposio perfeitamente adequada ao modelo de significao lingstica semiose que apresentei anteriormente, j que, de um produto da prxis (que agora posso chamar de ao intelectual) do homem cognoscente surgem os processos de pensamento que nos fazem perceber a realidade.

Toda ideologia , portanto, a expresso de uma prtica social, sendo anterior a essa. Porm, a ideologia determinada por uma prtica vai constituir o quadro de representaes iniciais que a nova prtica se ir prosseguir (...) Isto no significa que uma ideologia determinada por uma prtica passada seja determinante da prtica futura, mas simplesmente que as produes ideolgicas no surgem permanentemente do nada e que as formaes ideolgicas produzidas por um dado momento de prtica serviro de matria prima conceptual s formaes ideolgicas determinadas por uma nova prtica ou pelos estados futuros da mesma prtica. (BERNARDO, 1978, p. 94). A ideologia no a mera expresso de uma realidade exterior, j que, como mostrei anteriormente, os meios exteriores onde se realizam as prticas sociais so as instituies, que por seu turno, integram e reproduzem a realidade social. A ideologia expressa, portanto, o processo da prtica. Assim sendo, ideologias no esto acima ou entre pessoas, grupos ou sociedade, mas so partes de seus membros (...) isto no significa que elas so individuais ou somente mentais. Pelo

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contrrio, assim como as linguagens, as ideologias so to sociais quanto so mentais (VAN DJIK, 1998, p.49). Tambm seria errneo dizer que a ideologia uma falsa conscincia da realidade como apregoava uma tradio marxista ortodoxa, isto implicaria a existncia de uma realidade verdadeira e imutvel, o que no se pode conceber no campo social, uma vez que, conforme discorri antes, a realidade um produto social. No se pode falar numa oposio entre verdade e ideologia (MOTTA, 1986). No h erro nem falsidade. Cada prtica pensa a sua verdade. Expresso imediata da prtica, uma concepo , por isso, sempre adequada, e a problemtica do falso e do verdadeiro no tem qualquer sentido. O erro no mais do que a negao por uma prtica das concepes de outra, ou melhor, a inconscincia dessa negao. Quando digo que uma determinada teoria errada, quero dizer que ela no exprime a minha prtica. (BERNARDO, 1978, p. 201). Pode-se dizer que existe uma verdade nas ideologias, contanto que se sublinhe que as ideologias no tm a mesma pertinncia, nem mesmo nos diferentes momentos de sua histria, e contanto que se defina essa verdade em sua particularidade de verdade conflitual. (ANSART, 1978, p.187). As diversas ideologias se apresentam como arcabouos tericos que explicam distintamente a realidade social. Diferentes grupos sociais tero afinidades diferentes com as teorias em competio e conseqentemente se tornaro portadoras destas ltimas (BERGER; LUCKMANN, 1985, p.162).

As ideologias constituem a fundamentao das crenas sociais partilhadas por um grupo social. As crenas ideolgicas devem ser ambas gerais e abstratas, e tambm muito relevantes para um grupo. Elas normalmente no lidam com detalhes da vida social cotidiana, mas se aplicam s dimenses fundamentais do grupo e s suas relaes com os outros grupos (...) elas devem ser funcionais para o grupo como um todo e refletir as condies de sua existncia e sua reproduo. (VAN DJIK, 1998, p.49).

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Quando as crenas gerais que governam o funcionamento da sociedade como um todo no so contestadas, fica difcil, a priori identific-las como ideologias, uma vez que no h grupos que contestem tais idias, ou mesmo proponham uma alternativa para as mesmas. Por outro lado, se algumas crenas tidas como universais so de fato manifestaes dos interesses de um grupo especfico (por exemplo, crenas sobre os papis das mulheres e seus direitos at muito recentemente) e so tidas como dadas (taken for granted), aceitas tacitamente e de forma inconteste pelos outros grupos, a sim se pode inferir as diferenas entre os diferentes grupos e seus interesses, o que significa dizer que uma boa parte das idias gerais que governam o funcionamento da sociedade so de fato crenas pertencentes a um nico grupo e que so impostas sociedade ou cultura como um todo.

Portanto, dentro de uma cultura totalmente homognea, nenhum conflito de interesses de quaisquer crenas bsicas pode ser concebido ou pensado, mas a partir do momento que um grupo social que percebe que as idias bsicas no esto de fato representando os interesses de todos, ento, um conjunto de idias bsicas comuns ser declarado ideolgico e atrelado a um grupo dominante especfico. Da mesma maneira que as crenas grupais podem se tornar crenas culturais de diversas maneiras (normalmente pelo poder, hegemonia, inculcao e outras) tambm o contrrio pode ser verdade, quando indivduos formam um grupo que desafia crenas sociais aceitas de forma geral, desenvolve crenas opostas e desenvolvem assim, a sua prpria ideologia de resistncia. (VAN DJIK, 1998, p.51). H aqui, portanto, uma competio entre os grupos sociais e, quando a competio deixa o campo terico e se materializa na prtica, a capacidade de expresso pragmtica da teoria s se mostra aplicvel aos interesses das foras sociais que se tornaram portadores dela. Quando uma particular definio da realidade chega a se ligar a um interesse concreto de poder, pode ser chamada de ideologia (BERGER; LUCKMANN, 1985, p.166).

Sintetizando o que os pensamentos mencionados ao longo da construo do conceito, creio que posso definir ideologia como sendo um conjunto de significados que expressam a prtica de um determinado grupo social em um campo social, significados esses relacionados a um interesse concreto de poder (ANSART, 1978, BOURDIEU, 1989; VAN DIJK, 1998, MOTTA, 1986, BERGER; LUCKMANN, 1985).RELATRIO PESQUISA 1 /2006

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Relao discurso e ideologia A relao entre discurso e ideologia fica mais prxima quando so analisados os conceitos de formaes ideolgicas e formaes discursivas. Uma formao ideolgica pode ser compreendida como o conjunto de representaes das prticas institucionais de um grupo social, de suas idias, revelando a compreenso que cada grupo tem do mundo. Para a anlise do discurso, uma vez que no existem idias fora da linguagem, essa formao ideolgica no existe fora da linguagem. Por isso, a cada formao ideolgica corresponde uma formao discursiva (...) com essa formao discursiva assimilada que o homem constri seus discursos, que ele reage lingisticamente aos acontecimentos. Por isso, o discurso mais o lugar da reproduo que o da criao (FIORIN, 1993:32). Portanto, os discursos so responsveis pela construo lingstica dos traos ideolgicos que moldam os filtros atravs dos quais enxerga-se a realidade.

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A ANLISE CRTICA DO DISCURSO Nas pginas anteriores mostrou-se como os discursos se relacionam a ideologias e, conseqentemente, s questes da distribuio de poder no mundo social. Portanto, uma anlise do discurso no pode se restringir a uma mera descrio dos contedos lingsticos das falas e dos textos escritos dos homens. O que se pretende aqui desenvolver uma Anlise Crtica do Discurso (ACD).

Para Teun Van Kijk (2001), a ACD um tipo de pesquisa analtica do discurso que primeiramente estuda as maneiras pelas quais o abuso do poder social, a dominao e a desigualdade so produzidas, reproduzidas e resistidas por meio de textos e falas no contexto social e poltico.

Com tal pesquisa dissidente, a ACD assume posio explcita e at mesmo enseja compreender, expor e, por fim resistir desigualdade social.

A ACD uma forma de continuidade de uma tradio nas cincias sociais que rejeita a possibilidade de uma cincia neutra. A cincia e, especialmente, os discursos acadmicos so partes constitutivas e influenciadas pela estrutura social, produzidos e reproduzidos na interao social. Os objetivos crticos na anlise do discurso visam elucidar as naturalizaes (que parecem ser no pertencentes a uma ideologia, mas se tornam senso comum), tornar claras as determinaes sociais e os efeitos do discurso que esto obscuros. (FAIRCLOGH, 1995, p. 28).

Segundo Van Dijk (2001), a ACD para se efetivar como uma linha de pesquisa crtica deve satisfazer alguns requisitos para poder alcanar de forma efetiva seus objetivos. 1. Qualquer pesquisa em ACD tem que ser melhor que outras pesquisas para poderem ser aceitas. (Entende-se por melhor aqui um tipo de pesquisa que esteja adequada s especificaes do campo cientfico e que, desta forma, seja ela prpria legitimvel por outros que fazem parte da comunidade cientfica). 2. A ACD deve focar primeiramente em problemas sociais e questes polticas, ao invs de paradigmas em modas momentneas.

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3. A ACD multidisciplinar. 4. Mais do que meramente descrever estruturas discursivas, a ACD deve tentar explic-las em termos de propriedades da interao social e, especificamente, da estrutura social.

Mais especificamente, a ACD deve focar as maneiras pelas quais os discursos criam, confirmam, legitimam, reproduzem ou desafiam relaes de poder e dominao na sociedade.(Van Dijk, 2001).

A ACD no constitui um tipo de pesquisa especfica, uma vez que no possui um nico recorte terico. Dentre os objetivos mencionados anteriormente, h vrios tipos de ACD e esses, por sua vez, podem ser bastante diversificados tanto do ponto de vista terico quanto analtico. Ainda assim, dados a perspectiva comum e os objetivos gerais da ACD, pode-se encontrar de forma global conceitos e teorias que se relacionam melhor. Desta forma, muitos tipos de ACD questionaro as maneiras pelas quais algumas estruturas discursivas especficas so utilizadas na reproduo da dominao social, enquanto outras fazem parte de conversaes de noticirios, de outros gneros e contextos. Assim sendo, o vocabulrio tpico de muitos scholars em ACD apresentaro certas noes como poder, dominao, hegemonia, ideologia, classe, gnero, raa, discriminao, interesses, reproduo, instituies, estrutura social ou ordem social ao lado de noes analticas do discurso mais familiares.(VAN DIJK, 2001, p.3). No de se estranhar que a pesquisa em ACD quase sempre far referncia aos principais filsofos e cientistas sociais do nosso tempo ao teorizar algumas noes fundamentais. Desta forma, referncias aos principais pensadores da Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer e Marcuse) e ao trabalho mais contemporneo de Habermas sero, obviamente, bastante comuns em ACD. De forma similares, muitos estudos crticos faro referncia a Foucault ao lidar com noes como poder, dominao e disciplina, ou mesmo a noo mais filosfica de ordem do discurso (FOUCAULT, 1996). H ainda a tradio neo-marxista inspirada em Antonio Gramsci (1975) e suas noes de hegemonia, bloco histrico e ideologia. Alm disso, muitos estudos sobre a linguagem, cultura e sociedade perpetrados

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por Pierre Bourdieu (1972, 1983, 1989) tm se tornado muito influentes, em especial por causa das noes de habitus e campo.

Outros autores e referncias poderiam ser mencionados no presente trabalho. Mas ao invs de trabalhar com cada autor em separado, melhor mostrar algumas noes bsicas que podem nortear a ACD (VAN DIJK, 2001). So elas: a polaridade macro x micro, poder como controle, acesso e controle do discurso, controle de contexto, controle do texto e da fala, controle da mente, discurso da mdia, discurso e poder.

Polaridade Macro e Micro O uso da linguagem, o discurso, a interao verbal e a comunicao pertencem ao nvel micro da ordem social. Poder, dominao e desigualdade entre grupos sociais so termos que normalmente pertencem ao nvel macro de anlise. Desta forma, a ACD deve procurar construir pontes que aproximem os nveis macro e micro, que por sua vez, so teoricamente separados eles prprios por uma construo sociolgica. Na interao cotidiana os nveis macro e micro so um s, um todo unificado.

H vrios modos de analisar e unificar esses nveis (VAN DIJK, 2001), a saber: 1. Afiliao a grupos sociais: atores enunciam discursos como membros de grupos sociais, organizaes ou instituies; por outro lado, desta forma grupos podem atuar por meio de seus membros. 2. Ao-processo: os atos sociais de atores individuais so parte constituinte de aes de grupos e de processos sociais, tais como legislao, fabricao da notcia ou a reproduo de ideologias. 3. Contexto-estrutura social: situaes de interao discursiva so similarmente partes (ou constituem) da estrutura social; uma conferncia de imprensa uma prtica tpica das organizaes e das instituies de mdia. 4. Cognio pessoal e social: atores sociais possuem tanto cognio pessoal quanto social: memrias, conhecimento e opinies pessoais, bem como memrias, conhecimento e opinies partilhadas com membros de um grupo ou de uma cultura

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como um todo. Ambos os tipos de cognio influenciam a interao e o discurso de membros individuais, enquanto representaes sociais (habitus) comandam as aes coletivas de um grupo. Desta forma, a cognio tambm a interface crucial entre o individual e o social e, no caso, entre discurso individual e a estrutura social (VAN DIJK, 2000). Van Dijk discorre que nas teorias clssicas sobre os atos de fala, a adequao usualmente cognitiva, isto , as concepes, o que est sub-entendido, o que est por trs, considerado como premissa e no estudado. Ele diz que devemos estudar essas premissas, os processos cognitivos subjacentes noo de adequao que se estabelece nos contextos comunicativos(VAN DIJK, 2000, pg. 75), em outras palavras qual a distncia entre condies e a verdadeira compreenso dos atos. Poder como controle e hegemonia Uma noo central na maior parte dos trabalhos sobre o discurso a noo de poder, mais especificamente de poder social dos grupos e das instituies. (VAN DIJK, 2001).

Grupos tm maior ou menor poder de acordo com a sua possibilidade de controlar os atos e as mentes dos outros grupos (e de seus membros). Essa possibilidade pressupe uma base de poder calcada no acesso a recursos sociais escassos, aquilo que Bourdieu chama de tipos de capital (1983, 1989), tais como: fora, dinheiro, status, fama, conhecimento, informao, cultura e vrias formas de discurso pblico e comunicao (LUKES, 1974).

Diferentes tipos de poder podem ser identificados de acordo com os vrios tipos de recursos que so empregados para o seu exerccio. de se notar, porm, que o poder raramente absoluto, mesmo o poder de grupos podem controlar mais ou menos outros grupos ou mesmo, apenas control-los em situaes especficas ou em certos campos sociais. Mais ainda, grupos dominados podem mais ou menos resistir, aceitar, ignorar, corroborar o poder do grupo dominante, ou at mesmo ach-lo natural. isso que Gramsci chama de hegemonia, ou seja, a forma como os grupos dominantes exercem os seus poderes como guias da sociedade, por meio de estratagemas no se limitam as foras materiais, mas tambm s ideologias, cultura, ao ensino etc. (GRAMSCI, 1975).

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Seguindo a linha de Gramsci, a ACD tambm compreende a hegemonia como liderana, e tambm como dominao econmica, poltica e ideolgica de uma sociedade. Hegemonia o poder sobre uma sociedade como um todo (FAIRCLOUGH, 1995, p. 76-7). importante lembrar que essa liderana constituda por alianas e integraes, por isso ela est em constante conflito de classes e blocos, para manter, substituir e construir alianas de dominao e subordinao que assumem forma economia, poltica e ideolgica. (FAIRCLOUGH, 1995).

A partir de Gramsci, Fairclough (1995) considera que as ideologias esto ligadas a ao e devem ser julgadas pelos seus efeitos e no por suas assunes de verdade. Por isso a ordem do discurso a faceta discursiva e ideolgica do contraditrio e instvel equilbrio hegemnico, assim a prtica do discurso uma parte da luta que colabora com a transformao e reproduo da ordem do discurso existente e tambm com a relao social de poder.

de se notar, porm, que o poder nem sempre se manifesta em termos de atos bvios vindos de membros de grupos dominantes, mas so representados por uma mirade de aes que so relevadas (taken for granted) no cotidiano. Da mesma forma, nem todos os membros de um grupo poderoso so mais poderosos do que todos os membros dos grupos dominados. Tambm no significa dizer que se pode menosprezar outras formas de poder, tais como o poder disciplinar (FOUCAULT, 1987) que se manifesta por meio de disciplinas que se originam em redes que independem de haver grupos dominantes ou dominados. Para os efeitos do presente trabalho, o poder definido como um poder dos grupos como um todo.

Nesse sentido, uma anlise das relaes entre poder e discurso precisa de um acesso a formas especficas de discurso, tais como a poltica, a mdia e a cincia. Para tanto, preciso compreender como se d o processo de cognio pessoal e social que influencia a ao, processo que, em teoria, j acompanhamos, quando tratei da questo da dualidade percepo-cognio e de sua relao com o referente lingstico. Pode-se, ento, fazer a

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seguinte ilao: uma vez que as mentes das pessoas so tipicamente influenciadas pela prxis, e dado que a prxis envolve aes sociais calcadas no texto e na fala, pode-se dizer que o discurso pode, pelo menos indiretamente, controlar as aes das pessoas o que se observa nos processos de persuaso e manipulao. Aqueles grupos que controlam o discurso mais influente tambm tm mais chances de controlar as mentes e as aes dos outros (VAN DIJK, 2001, p.5).

O foco da ACD recai sobre o abuso desse tipo de poder dos grupos dominantes especialmente na relao de dominao , ou seja, sobre as maneiras pelas quais o controle sobre o discurso exacerbado para controlar as crenas e aes das pessoas no interesse dos grupos dominantes, contra os melhores interesses ou as vontades dos outros. Sob uma perspectiva habermasiana, abuso pode ser caracterizado como uma violao que agride aos outros (HABERMAS, 1987b, 1996). Em outras palavras, a dominao pode ser considerada como uma forma ilegtima de exerccio do poder.

Van Dijk (2001) prope trs questes bsicas para compreenso do poder de controle dos grupos dominantes sobre os grupos dominados, em termos da ACD: 1. Como os grupos mais poderosos controlam o discurso pblico? 2. Como esse discurso controla as mentes e as aes dos grupos menos poderosos, e quais so as conseqncias sociais de tal controle, tais como a desigualdade social? 3. Como os grupos dominados desafiam e resistem discursivamente a esse poder?

Formas de acesso e de controle do discurso Como j se mostrou anteriormente, o acesso ou o controle do discurso pblico e da comunicao uma forma importante de capital simblico. A maioria das pessoas apenas possui controle ativo sobre as conversaes dirias com seus familiares, amigos ou parentes, e um controle passivo sobre outras formas de comunicao, tais como a mdia e seu uso. Em muitas situaes, pessoas comuns so mais alvos passivos de textos e falas, por exemplo, de seus chefes ou professores, de autoridades (policiais, juzes, burocratas,

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governantes etc.) que podem, simplesmente, dizer-lhes sobre o que devem ou no acreditar ou sobre o que ou no devem fazer.

Por outro lado, membros de grupos sociais dominantes (em especial suas elites) tm maior ou menor acesso exclusivo (ou controle) sobre um ou mais tipo de discurso pblico, dependendo do campo social em que atuam. Assim, cientistas controlam o discurso acadmico, jornalistas controlam o discurso da mdia, advogados o discurso jurdico e polticos controlam a elaborao de polticas e outros tipos de discurso poltico. Aqueles que possuem maior controle sobre o maior nmero de discursos (e suas propriedades distintas) so, por definio, os mais poderosos.

Essas noes de acesso ao discurso e ao seu controle so muito generalistas, e uma das funes da ACD traduzi-las em termos de forma de poder. Assim uma vez que o discurso pode ser definido em termos de eventos comunicativos complexos, deve-se definir o acesso e o controle ao discurso tanto para o contexto e para as estruturas de texto e fala.

Controle de contexto Contexto definido como a estrutura (mentalmente representada) daquelas propriedades, daquela situao social que so relevantes para a produo e o entendimento do discurso (VAN DIJK, 2000).

O contexto consiste de certas categorias como a definio global da situao, tempo e lugar, aes de continuidade (incluindo discursos e gneros discursivos), participantes em vrios papis comunicativos, sociais ou institucionais, bem como suas representaes mentais.

O controle do contexto envolve o controle sobre uma ou mais destas categorias. Por exemplo, a determinao do que uma situao comunicativa, a deciso da hora e do local de um evento comunicativo, ou a determinao de quais participantes podem ou devem estar presentes, exercendo quais papis, que tipo de conhecimento eles podem ou no possuir e quais so as aes sociais que podem ou devem acompanhar o discurso. A ACD deve especificamente focar sobre as formas de controle de contexto que atuam da melhor

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maneira para representar e reproduzir os interesses do grupo dominante no campo social em questo.

Primeiramente deve-se lembrar que a noo de contexto uma abstrao terica e cognitiva, e deriva de uma situao fsico-biolgica, tambm temos que lembrar que inmeras caractersticas da situao so irrelevantes para a compreenso da fora ilocucionria dos atos dede fala.

Uma teoria cognitiva tem alm de regras e conceitos, estratgias e esquemas, recursos para uma compreenso rpida e funcional de informaes, eles permitem suposies sobre possveis significados, por exemplo, se algum vem andando pela rua em sua direo, ela provavelmente pedir alguma informao ou pedido e no lhe contar a histria de sua vida.

O contexto inicial no caracterizado pelos eventos precedentes ao ato de fala, mas por informaes precedentes acumuladas anteriormente. Mas como no podem ser guardados e recuperados todos os detalhes de interaes passados, guardam-se s os que se acham relevantes para o futuro.

O contexto inicial em relao interpretao de um ato de fala contm trs tipos de informaes: informaes semnticas gerais (memria, frames); informaes de estados finais, derivadas de eventos/atos imediatamente precedentes; (macro) informao global sobre todas as estruturas/processos interativos prvios.(VAN DIJK, 2000, p. 82)

Depois destas observaes, podemos considerar que os contextos so estruturados e mais, so hierarquizados, o que definido em termos de estruturas sociais, atos de falam fazem parte de interaes sociais. a estrutura hierrquica da sociedade que permite realizar esta classificao

Por isso para determinar se um ato de fala ou no apropriado, deve-se ter em mente o contexto social que ele est inserido. o conhecimento de mundo contextual.

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A estrutura relevante, que deve ser levada em considerao a mentalmente representada, o que conta realmente em uma comunicao real nem tanto a situao e, si, mas a interpretao/compreenso que os participantes fazem (VAN DIJK, 2000).

No se pode esquecer que so socialmente irrelevantes todas as propriedades que no condicionem de alguma forma a interao dos membros sociais, o que penso irrelevante a menos que eu demonstre meu pensamento atravs do meu comportamento, e assim com atos que ocorrem durante ao, como coar a orelha, se isso no tiver um significado semitico, irrelevante.

Assim a anlise de contexto social comea no nvel mais geral, segundo as categorias: Privado; Pblico; Institucional/Formal; Informal. Estes diferentes contextos sociais so definidos em categorias: posies (p. ex.: papis, status,etc.); propriedades (sexo, idade); relaes (dominao, autoridade); funes (pai, garonete, juiz) (VAN DIJK, 2000, p. 83).

As propriedades dos contextos sociais e seus membros definem as possveis aes dos mesmos. Os contextos sociais podem ser organizados por uma estrutura de frames sociais. Nestes frames os membros desempenham funes, propriedades e relaes, estes frames que regulam quais aes podem ser realizadas.

Para analisar o contexto deve-se considerar: seu tipo especfico, o frame do contexto posto em relevncia, as propriedades/relaes das posies sociais, as funes e os membros envolvidos.(VAN DIJK, 2000, p. 84)

O contexto no esttico, ele muda no desenvolvimento da interao. A condio mais geral que os atos antecedentes estabelecem o contexto subseqente. A seqncia de atos geralmente condiciona, tornando uma fala plausvel, provvel e at mesmo necessria. As seqncias de atos devem ser analisadas globalmente. As macroregras especificam como uma seqncia de atos de fala est relacionada com a sua representao global em termos de macroatos de fala.(VAN DIJK, 2000, p. 94)

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O controle do texto e da fala O controle sobre as estruturas do texto e fala fundamental para o exerccio e para a representao do poder de um grupo. Ao relacionar texto e contexto pode-se ver claramente que os membros dos grupos poderosos podem decidir sobre quais tipos de discurso ou atos de fala so mais apropriados para cada ocasio.

Certos gneros de discurso possuem um esquema convencional, que se pode organizar em categorias. Em uma sala de aula, por exemplo, o professor tem o controle sobre o que deve ser falado ou no, bem como o tipo de linguagem que deve ser empregado.

Portanto, vital, para que se compreendam todos os discursos, saber quem controla os tpicos aqui entendidos como macro-estruturas semnticas que devem ser abordados e quando devem ser mudados. Assim como em outras formas de controle de discurso, tais decises devem ser negociadas entre os participantes e, dependendo do contexto, isto se refere a como os participantes interpretam a situao comunicativa. Virtualmente todos os nveis de estruturas de contexto, texto e fala podem, em princpio, ser mais ou menos controlados por enunciadores poderosos, e esse poder pode ser abusado em detrimento dos outros participantes. Deve ser, porm ressaltado que fala e texto nem sempre representam ou incorporam as relaes globais de poder entre os grupos: sempre o contexto que pode interferir, reforar ou de outra maneira transformar tais relaes. (VAN DIJK, 2001). Controle da mente Se o controle do discurso a primeira grande forma de poder, o controle das mentes das pessoas outra maneira fundamental de reproduo da dominao e da hegemonia. No contexto da ACD, controle da mente envolve mais que uma mera introjeo de crenas sobre o mundo por meio do discurso e da comunicao. Segundo Van Dijk (2001), os elementos de poder e de dominao surgem de vrias maneiras, tais como: 1. A menos que sejam inconsistentes com suas crenas e experincias pessoais, os receptores tendem a aceitar crenas por meio do discurso proferido por fontes percebidas como confiveis, crveis e autorizadas, tais como acadmicos, peritos,

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profissionais ou pela mdia confivel. Neste sentido, um discurso poderoso definido contextualmente em termos do poder percebido destas fontes. 2. Em algumas ocasies os participantes so obrigados a serem recipientes do discurso, tais como em situaes de aprendizagem e de trabalho. 3. Em muitas situaes no existem outros discursos pblicos ou mdia que pode fornecer informao por meio da qual crenas alternativas possam ser geradas. 4. Receptores podem no ter o conhecimento ou as crenas necessrias para desafiar os discursos ou as informaes aos quais esto expostos.

Esses quatro pontos sugerem que o controle discursivo mental uma forma de poder e dominao se esse poder se exerce de acordo com os interesses dos grupos dominantes e se os receptores no possuem alternativas para rebater esses discursos.

Pela perspectiva de Habermas (1987, 1996), se a liberdade definida como ter oportunidade para pensar e fazer o que qualquer um quer, ento essa carncia de alternativas , por definio, uma limitao da liberdade dos receptores. Onde essas condies de controle mental so amplamente contextuais (...), outras condies so discursivas, ou seja, uma funo das estruturas e estratgias de texto e fala por elas prprias. Em outras palavras, dado um contexto especfico, certos significados e formas de discurso tm maior influncia sobre a mente das pessoas que outras.. (VAN DIJK, 2001, p. 8) Discurso da mdia O inegvel poder da mdia tem inspirado muitos estudos crticos em muitas disciplinas, no menos do que no prprio campo da comunicao de massa (MICELI, 1973; CHOMSKY e HERMAN, 1989), por exemplo. O que causa mais espanto que na maior parte dos casos os estudos de mdia no tm focado diretamente as estruturas do discurso. Isto porque, muitos dos estudos crticos sobre a mdia levam em considerao a lingstica, a semitica e a anlise do discurso (VAN DIJK, 2001).

Normalmente as anlises no vo alm de leituras de notcias ou de estrias relevantes, mas subteorizadas de casos em que a mdia efetivamente cometeu distores (LEE e

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SOLOMON, 1990). Estudos desenvolvidos dessa forma e mesmo utilizando mtodos (normalmente de anlise quantitativa de contedo) consagrados nas cincias sociais carecem de anlise detalhada das prprias estrias reais mostradas pelas notcias.

Essa situao anteriormente descrita de espantar, uma vez que h algum tempo, desde que McLuhan desenvolveu seu clssico estudo sobre os meios de comunicao de massa como extenses dos sentidos humanos (MCLUHAN, 1973) possvel estabelecer conexes sobre a natureza dos meios de comunicao e a possibilidade de, ao control-los, grupos dominantes (ou seus membros mais proeminentes) podem exercer controle sobre os mecanismos de percepo dos seres humanos e, conseqentemente, sobre a construo dos seus mecanismos de cognio.

De qualquer forma, estudos sobre a mdia podem prover uma riqueza de elementos para a ACD. Para tanto, muitas fronteiras entre os estudos de mdia e a lingstica, a semitica e a anlise do discurso precisam ser ultrapassadas, para que se possa dar mais ateno para as sutilezas dos textos que so transmitidos pela mdia. Um dos pontos mais interessantes para analisar o discurso da mdia levantar, por exemplo, a freqncia com que ocorre determinado assunto, quem so as pessoas mais freqentemente citadas etc.

Discurso e poder As relaes entre poder e discurso devem levar em considerao no apenas as maneiras pelas quais o discurso cria afirmaes e interdies para o comportamento das pessoas, mas sobre a maneira pela qual as estruturas discursivas influenciam diretamente a cognio, por exemplo, por meio da persuaso, e suas conseqncias: como as pessoas fazem as coisas pelo uso da linguagem (VAN DIJK, 2001, p. 20).

Dessa maneira, deve-se prestar ateno como as pessoas (ou os grupos) demonstram seu poder por meio do uso de um grande nmero de caractersticas estilsticas e assim demonstram um estilo poderoso. Alm disso, os usos de um lxico diversificado, da eloqncia ou da intensidade da fala, podem estar envolvidos em demonstraes de poder, tais como a mudana de tpicos de conversao ou o uso da mitigao de palavras.

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CONSIDERAES FINAIS

Espera-se que este trabalho possa ajudar queles pesquisadores que pretendem desenvolver estudos no campo das organizaes a partir de uma abordagem analtica crtica do discurso.

Neste trabalho no se procurou simplesmente esgotar as possibilidades de Anlise Crtica do Discurso. Pelo contrrio, h muitas outras variantes que ainda poderiam ser exploradas, mas que aqui no o foram por falta de espao.

O que se procurou explorar neste trabalho foi a contribuio da Lingstica para a Anlise Crtica do Discurso, a partir da construo de um quadro de referncias que integra os conceitos mais importantes para dar ensejo s diversas possibilidades de pesquisa.

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