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ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS O DEMÔNIO FAMILIAR JOSÉ MARTINIANO DE ALENCAR Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br

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Análise de obrAs literáriAsO DemôniO Familiar

José MArtiniAnode AlencAr

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP

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suMário

1. contexto sociAl e HistÓrico .................................................... 7

2. estilo literário dA épocA ........................................................... 8

3. o Autor ................................................................................................. 12

4. A obrA .................................................................................................... 15

5. exercícios ........................................................................................... 45

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José MArtiniAnode AlencAr

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1. Contexto soCial e HistÓRiCo

A vinda de d. João Vi para o brasil e as consequentes transformações ocor-ridas em nosso quadro cultural, como a inauguração da biblioteca pública (hoje biblioteca nacional), a criação de cursos médico-cirúrgicos na bahia e no rio de Janeiro, a Academia da Marinha e a Academia Militar, o real Horto (Jardim botânico) e o Museu real, contribuíram para a inserção de um ensino técnico e científico em nosso meio, embora visasse sobretudo à reorganização do Exército e da Marinha. A criação de escolas e de cursos profissionais visava a uma resposta imediata para os problemas do governo português recém-transladado ao brasil. A nova configuração do meio brasileiro, que adquiria aspectos urbanos, necessi-tava de determinados profissionais. A independência política, realizada quatorze anos após a chegada de d. João Vi, e as lutas para sustentá-la contra portugal, como os problemas militares externos (a Cisplatina) e internos (a Confederação do equador), colocaram a questão política e militar em primeiro plano, apresen-tando como único empreendimento cultural do primeiro império a criação das Faculdades de ciências Jurídicas e sociais, em 1827, em olinda e em são paulo. no período da regência (1831-1840), foi criado o colégio pedro ii.

no dia 13 de maio de 1808, começou a funcionar no brasil a primeira tipografia, imprimindo livros científicos e um jornal, a Gazeta do rio de Janeiro. Aos poucos, numa terra de analfabetos, foram-se criando um público leitor e as condições necessárias para a consolidação de uma literatura.

Após a independência do brasil, em 1822, cresceu entre os intelectuais brasilei-ros o sentimento de nacionalismo, o desejo de criar uma literatura identificada com as raízes históricas do país e do seu povo, com o intuito de diferenciá-la da literatura portuguesa. os escritores românticos brasileiros ansiavam por criar uma literatura que contivesse os elementos essenciais da cultura brasileira; surgiu, então, a primeira geração romântica, que trabalhava os temas indianismo e nacionalismo.

O teatro romântico brasileiro surgiu dentro do programa de nacionalização da literatura.

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2. estilo liteRáRio da époCa

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A palavra romântico deriva do latim romanice e significa “à maneira dos romanos”. no século xii, o termo rommant referia-se à língua vulgar, ou seja, a toda língua que não fosse o latim.

das acepções da palavra romantismo, convém distinguir: 1) a palavra ro-mantismo deriva de romântico (romantic), que, por sua vez, deriva de romance (roman). o adjetivo romântico designava, na inglaterra do século xVii, as nar-rativas fantasiosas das novelas de cavalaria; 2) romântico, no século xViii, na França, designava paisagens selvagens e pitorescas; 3) romântico, no século xix, na Alemanha, designava uma tendência artística contrária ao classicismo.

como o adjetivo romântico é empregado sem muito rigor, normalmente ocorrem algumas confusões, porque ora designa um estado de espírito, uma atitude, e, portanto, está presente em todas as épocas, ora designa uma escola literária do início do século xix.

como escola literária, o romantismo surgiu na Alemanha com a publica-ção da revista athenäeum, editada pelos irmãos schlegal, entre 1798 a 1800, em iena, espalhando-se daí para o restante do mundo. na inglaterra, o romantismo teve início em 1798, com a edição de lyrical Ballads, de autoria conjunta de Wor-dsworth e coleridge e na França, ele passou a ter plena aceitação em 1820, com méditations, do poeta lamartine.

em portugal, o ano de 1825, com a publicação de Camões, de Almeida Gar-rett, marcou o início do Romantismo português. Já no Brasil ele teve início em 1836, com a publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães.

O Romantismo valoriza, sobremaneira, o idealismo e o espiritualismo. Por idealismo, entenda-se o primado do sujeito sobre o objeto, ou seja, o universo in-terior é mais importante que a realidade exterior e, por isso, as emoções importam mais que a realidade, a subjetividade vale mais que a realidade externa e as emo-ções falam mais alto que a razão. Por espiritualismo, entenda-se que a realidade é espírito e a matéria (o real) é inferior ao espírito, devendo apenas servi-lo.

O Romantismo valoriza a noite, o sonho, a dor, a arte e a natureza como formas de fugir da realidade, de negar a razão. Para os românticos, em oposição ao Iluminismo do século XVIII, não é a razão que leva o homem ao conhecimen-to do infinito, e sim o sentimento e a fantasia. Por isso, cabe ao poeta, e não ao racionalista, a descoberta do sentido da vida.

o homem romântico encontra-se no limiar de dois mundos: pela alma está ligado ao divino, e aí reside sua grandeza; pelo corpo está preso à matéria, e aí reside sua desgraça. Sua metade matéria o prende ao mundo físico, o que faz com que ele sinta uma profunda nostalgia do infinito e do divino, e toda separação, seja da infância, do lar, seja da amada ou da pátria, desperta nele a saudade do infinito. Por isso, para ele a vida é insuportável e a morte é vista como solução para o sofrimento. como os cristãos chamam o mundo terreno de século, vem

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daí o “mal do século”, isto é, a consciência de que este mundo é apenas sofrimen-to e, portanto, o melhor a fazer é abandoná-lo, seja através do sonho, seja através da morte, vista como “a recompensa da vida”. O homem nasceu para a dor, não para a alegria.

para o romântico, o sentimento mais importante é o amor, porque liga o homem ao infinito. Todo o amor terreno é apenas a superfície do amor infinito, que só pode ser alcançado pela morte. daí a morte completar o amor, pois só no infinito o homem pode viver a plenitude do sentimento amoroso. Por isso, o final feliz não é importante, porque a única felicidade possível reside na co-munhão com o infinito. O sentimento elevado ao infinito é o que o romântico chama de sublime.

como a alma do homem não é deste mundo, ele se rebela contra toda re-gra que deseje prendê-lo, pois acredita que a sua alma é livre. nada, portanto, pode prendê-lo, nem as regras da sociedade nem as regras da criação literária. daí a ideia de ruptura com todas as regras da arte e com tudo o que aprisiona o homem.

A relação do homem com sua parte divina pode ocorrer por intermédio da nação, que o romântico entende como um povo que se organiza politicamente num território, em decorrência de uma vontade divina. por isso, a inspiração vem do povo, e o artista é nacionalista, devendo saber traduzir, em seus textos, a “alma do povo”. Não é por acaso que no Romantismo surgiu uma ciência que procurava investigar a sabedoria popular, recebendo o nome de folclore.

o individualismo romântico não é contrário ao sentimento nacionalista, porque, em sua solidão, o romântico sente simpatia por todos os seres do universo e, em particular, pelo ser humano. em seu egocentrismo, ele se sente integrado ao cosmos.

o movimento romântico brasileiro coincide com o momento decisivo de autonomia da pátria. os escritores tomam para si a missão de reconhecer e va-lorizar o passado brasileiro, conferindo à literatura cores locais, esforçando-se para criar uma literatura legitimamente brasileira, capaz de revelar as qualidades grandiosas da pátria que se tornara independente. neste sentido, José de Alencar aparece na literatura brasileira como o consolidador do romance, realizando na prosa de ficção a tendência nacionalista que vinha sendo reclamada pela crítica, sobretudo em romances como O Guarani e iracema.

o gosto pelo teatro foi uma das características marcantes do romantismo em todos os países. no brasil, coube a Gonçalves de Magalhães a encenação da primeira tragédia, intitulada antônio José ou O poeta e a inquisição, no dia 13 de março de 1863, no palco do Constitucional Fluminense, no Rio de Janeiro, sob os cuidados do ator João caetano.

o grande nome do teatro romântico brasileiro é o de Martins pena, consi-derado o inventor da comédia de costumes brasileira.

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o teatro de José de Alencar é marcado por uma preocupação moral. A comédia O demônio familiar apresenta a figura do menino escravo Pedro, o “de-mônio familiar”, como um malandro e aproveitador, capaz apenas de fazer o mal para a família brasileira.

Resumo das principais características românticas

• Liberdade de expressão• Escapismo, fuga da realidade através de um retorno à infância e ao passado

histórico e através do sonho e da morte.• Individualismo, egocentrismo• Subjetivismo, valorização das emoções• Nacionalismo• Idealização da realidade

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3. o aUtoR

José Martiniano de Alencar nasceu no dia primeiro de maio de 1829, em Mecejana, Ceará, e faleceu no Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 1877, aos 48 anos de idade. Morreu de tuberculose, doença que se fez presente durante grande parte da sua vida. Filho de um senador do império, foi ainda menino para a então capital federal do Brasil, o Rio de Janeiro. Aos catorze anos, em 1843, mudou-se para são paulo, formando-se em direito no ano de 1850. Formado, retornou ao Rio de Janeiro e exerceu a profissão de advogado. Foi jornalista, político (sendo repetidas vezes deputado conservador pela sua Província) e ministro da Justiça, não conseguindo, entretanto, chegar a senador, que era sua grande meta.

a carreira literária de José de alencar principia, realmente, com as crônicas que depois reuniu sob o título de Ao correr da pena (1856). mas a notoriedade foi devi-da aos artigos polêmicos do mesmo ano, contra o poema épico A confederação dos tamoios, de Gonçalves de magalhães, nos quais traçava o programa de uma literatura nacional, baseada nas tradições indígenas e na descrição da natureza, mas norteada por uma rigorosa consciência estética. Para juntar o exemplo à teoria, publica em 1857 o Guarani, que fora precedido por um pequeno romance, cinco Minutos. a partir daí não cessaria mais de escrever e publicar com relativa abundância, em três fases mais

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ou menos distintas. na primeira, que vai de 56 a 64, publica alguns de seus romances mais importantes e quase todo o teatro. De 66 a 69, apenas escritos políticos, inclusive as famosas cartas a erasmo, nas quais exortava o imperador a exercer efetivamente seus poderes, a fim de pôr cobro à tirania das cliques governamentais. De 70 a 75, postos de lado a política e o teatro, entra em nova fase criadora, publicando oito livros de ficção. O último romance, acabado em 77, encarnação, foi publicado depois da sua morte, assim como o belo fragmento autobiográfico, como e por que sou romancista.1

CRonologia das obRasRomances

1856 – Cinco minutos1857 – O Guarani1860 – Viuvinha1862 – lucíola1862 – as minas de prata (parte inicial)1864 – Diva1864-65 – as minas de prata (obra completa)1865 – iracema1870 – O gaúcho1870 – a pata da gazela1872 – Sonhos d´ouro1872 – Til1873 – alfarrábios1873-74 – a guerra dos mascates1874 – Ubirajara1875 – Senhora1875 – O sertanejo1893 – encarnação

1 cÂndido, Antônio e cAstelo, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: Modernismo v. 3. são paulo: difel, 1983.

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teatro

1857 – O crédito1857 – O demônio familiar 1857 – Verso e reverso as asas de um anjo, representada em 1858, publicada em 1860 mãe, representada em 1860, publicada em 18621875 – O jesuíta

Crítica, polêmica, publicística

1856 – Cartas sobre a Confederação dos Tamoios1865 – ao imperador: cartas políticas de erasmo e ao imperador: novas cartas políticas

de erasmo1886 – ao povo: cartas políticas de erasmo1867 – O juízo de Deus, a visão de Jô 1868 – O sistema representativo

Crônicas e autobiografias

1874 – ao correr da pena1893 – Como e por que sou romancista

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4. a obRa

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A peça O demônio familiar foi encenada pela primeira vez no Teatro do Ginásio do rio de Janeiro, no dia 5 de setembro de 1857, fundindo uma temática europeia, como a interferência do dinheiro nas relações afetivas, com uma temática brasileira, a atuação do escravo no interior das casas das famílias brasileiras.

O objetivo de José de Alencar era produzir uma peça original e de efeito moral, capaz de revelar a singularidade da comédia brasileira e de educar as famílias no combate ao vício, o de permitir, no interior das casas, a figura do escravo. Quanto ao aspecto formal, a peça não apresenta novidades, pois empre-ga recursos típicos da tradição teatral para a solução dos problemas de enredo. na peça em questão, o recurso do inesperado como solução para os problemas surge na forma de uma carta de alforria ao moleque pedro, funcionando como um instrumento de punição para a personagem. A técnica que liga um ato ao outro da peça é conhecida como “técnica do gancho”, porque cria um pequeno suspense no final do ato para prender a atenção do espectador.

Quanto ao aspecto temático, O demônio familiar apresenta uma ideia curio-sa. A peça, aparentemente, é avançada para a época. em 1857 (ano da estreia da peça), trinta anos antes da abolição da escravidão, o tema do abolicionismo soaria aos ouvidos da plateia como algo avançado e contrário aos interesses da elite dominante. entretanto, a apologia da liberdade é apenas aparente, pois a liberdade na peça é vista como um instrumento de punição. A liberdade traria para o escravo consequências severas, porque ele teria que aprender com a vida o que não conseguiu assimilar como escravo, como o respeito e a educação. em outras palavras, a escravidão é um mal não porque o branco subjuga o negro, mas porque a maldade vem do negro. este paga com tramas e desejos mesquinhos o bem que lhes queria seus senhores. em suma: não se trata de livrar o negro da crueldade do branco, mas de preservar o branco das maldades do negro. como a “classe” branca era econômica e politicamente a dominadora, podia falar e escrever o que quisesse, como a mensagem interpretada acima.

José de Alencar emprega recursos convencionais para se fazer entender pelo público, objetivando a educação moral das famílias brasileiras. As principais lições são: a escravidão é um mal, porque expõe a família à falta de escrúpulo dos negros; a família é mais importante que a sociedade, pois é ela que fornece as bases para que o indivíduo possa evitar os prazeres excessivos da vida so-cial; na família, a mulher, por desconhecer os perigos do mundo, deve sempre agir em nome do verdadeiro amor; o dinheiro interfere de forma negativa nas relações afetivas. em O demônio familiar, todas as lições de moral são dadas pelo personagem eduardo.

as peRsonagens da peça

eduardo: é o protagonista da peça. Órfão de pai, tornou-se o chefe da família, conduzindo-a sempre através dos princípios da justiça e da bondade, o que o faz ter o respeito de todos. Por trabalhar como médico, conhece as dores do mundo e, por isso mesmo, sabe dar importância à vida familiar.

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Carlotinha: é a irmã de Eduardo. Suas ações revelam esperteza e inteli-gência. Como típica mulher romântica, é bonita e deixa-se levar pelo sentimento amoroso.

Jorge: irmão caçula de Eduardo e Carlotinha. Sua proximidade das arti-manhas de pedro determina sua pequena importância na peça.

d. Maria: viúva, mãe de eduardo, carlotinha e Jorge. sem grande impor-tância na trama, D. Maria é apresentada como mãe zelosa.

pedro: escravo de Eduardo. Pedro é um “moleque” capaz de aprontar gran-des confusões no seio da família, sendo, por isso mesmo, o “demônio familiar”. Sua grande ambição não é deixar de ser escravo; pelo contrário, o que almeja é ser cocheiro e, por isso, arma as tramas para que seus senhores obtenham posses e ele possa conduzir uma carruagem.

alfredo: é, ao lado de eduardo, outro ‘bom moço” da peça. pretendente de Carlotinha, sua sinceridade e honestidade, bem como seu apego à cultura brasileira, logo angariam a amizade de Eduardo e o amor de Carlotinha.

azevedo: é o oposto de Alfredo e Eduardo. Homem rico, excessivamente frívolo e afrancesado nos modos, é avesso ao amor e despreza as mulheres e tudo o que diz respeito ao Brasil. Sua função na peça é a de despertar a antipatia do público.

Henriqueta: amiga de Carlotinha e apaixonada por Eduardo. Os obstáculos que a separam do amado são as artimanhas de pedro e as dívidas do pai com o moço Azevedo.

Vasconcelos: pai de Henriqueta. Sua situação financeira instável o leva a negociar o casamento da filha como forma de quitação das dívidas.

espaço

O espaço da peça restringe-se à casa de Eduardo.

teMpo

os três primeiros atos da peça ocorrem em um único dia. o quarto ato ocorre um mês após os acontecimentos do final do terceiro ato.

enRedo

Pedro é um “moleque” escravo de Eduardo. Sua maior ambição é ser co-cheiro de um amo rico. Para realizar seu desejo, arma uma série de confusões na casa em que vive. primeiramente, envia uns versos de amor de seu amo para uma viúva e não para Henriqueta, a quem eduardo verdadeiramente ama. depois, procura aproximar Carlotinha, irmã de Eduardo, de Alfredo.

descoberta a primeira intriga, pedro tenta remediar seu erro. Henriqueta, ciente do desprezo de Eduardo, tornara-se noiva de Azevedo. Pedro, então, tenta

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afastar Azevedo da noiva e procura aproximá-lo de Carlotinha. Esta, por sua vez, está apaixonada por Alfredo. As artimanhas de Pedro quase afastam os casais que verdadeiramente se amam.

As diversas traquinagens de Pedro o tornam o “demônio familiar” da peça. No final, desfeitas as intrigas e unidos os pares românticos, Pedro, como punição, recebe sua alforria.

O demônio familiarcomédia em 4 atos

peRsonagens

carlotinha AlfredoHenriqueta Azevedoeduardo d. Maria pedro VasconcelosJorge

ato pRiMeiRo

em casa de eduardo. Gabinete de estudo.

Cena pRiMeiRa

Comentário – em visita ao quarto de eduardo, quando este está ausente, Carlotinha percebe nas lágrimas da amiga Henriqueta o amor e o desprezo com que é tratada pelo amado. eduardo sempre a tratara com atenção, mas repen-tinamente tornara-se indiferente aos seus olhares. Henriqueta podia ver da sua casa o quarto de eduardo, que subitamente passou a fechar as janelas. Henri-queta descobriu a causa do desprezo nos versos que ele lhe enviou. Carlotinha resolve ajudar a amiga, pedindo ao irmão que esclareça o ocorrido, mas a amiga lhe afirma que já é tarde para tentar uma solução. Henriqueta não chega a dizer para a amiga os motivos que a impedem de recusar a sua ajuda, pois a chegada de Eduardo as obriga a deixar rapidamente o quarto.

Ato 1, cena 1Carlotinha, Henriqueta

Carlotinha – mano, mano! (Voltando-se para a porta.) não te disse? Saiu! (ace-nando.) Vem, psiu, vem!

Henriqueta – não, ele pode zangar-se quando souber.Carlotinha – Quem vai contar-lhe? Demais, que tem isso? Os homens não dizem

que as moças são curiosas?

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Henriqueta – mas, Carlotinha, não é bonito uma moça entrar no quarto de um moço solteiro.

Carlotinha – Sozinha, sim; mas com a irmã não faz mal.Henriqueta – Sempre faz.Carlotinha – Ora! estavas morrendo de vontade.Henriqueta – eu não; tu é que me chamaste.Carlotinha – Porque me fazias tantas perguntinhas, que logo percebi o que havia

aqui dentro. (no coração.)Henriqueta – Carlotinha!...Carlotinha – está bom, não te zangues.Henriqueta – não; mas tens lembranças!Carlotinha – Que parecem esquecimentos, não é? esquecia-me que não gostas

que adivinhem os teus segredos.Henriqueta – não os tenho.Carlotinha – anda lá!... Oh! meu Deus! Que desordem! aquele moleque não

arranja o quarto do senhor; depois mano vem e fica maçado.Henriqueta – Vamos nós arranjá-lo?Carlotinha – está dito; ele nunca teve criadas desta ordem.Henriqueta (a meia voz) – Porque não quis!Carlotinha – Que dizes?... Cá está uma gravata.Henriqueta – Um par de luvas.Carlotinha – as botinas em cima da cadeira.Henriqueta – Os livros no chão.Carlotinha – ah! agora pode-se ver!Henriqueta – não abrimos a janela?Carlotinha – É verdade. (abre.)Henriqueta – Daqui vê-se a minha casa; olha!Carlotinha – Pois agora é que sabes? nunca viste mano eduardo nesta

janela?Henriqueta – não; nunca.Carlotinha – Fala a verdade, Henriqueta!Henriqueta – Já te disse que não: se vi, não me lembra. Há tanto tempo que esta

janela não se abre!Carlotinha – Bravo! Depois não digas que são lembranças minhas.Henriqueta – O quê? O que disse eu?

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Carlotinha – nada; traíste o teu segredo, minha amiguinha. Se tu sabes que esta janela não se abre, é porque todos os dias olhas para ela.

Henriqueta – Pois não...Carlotinha – Para que procuras esconder uma coisa que teus olhos estão dizendo?

Tu choras!... Por quê? É pelo que eu disse? Perdoa, não falo mais em semelhante coisa.Henriqueta – Sim; eu te peço, Carlotinha. Se soubesses o que eu sofro...Carlotinha – Como! meu irmão é tão indigno de ti, Henriqueta, que te ofendes

com um simples gracejo a seu respeito?Henriqueta – eu é que não sou digna dele; não mereço, nem mesmo por tua causa,

uma palavra de amizade!Carlotinha – Que dizes! mano eduardo te trata mal?Henriqueta – mal, não; mas com indiferença, com uma frieza!... Às vezes nem

me olha.Carlotinha – mas antes, quando nos visitavas mais a miúdo, e passavas dia

conosco, ele brincava tanto contigo!Henriqueta – Sim; porém, um dia, tu não reparaste, talvez; eu me lembro... ainda

me dói! Um dia vim passar a tarde contigo, e durante todo o tempo que estive aqui ele não me deu uma palavra.

Carlotinha – Distração! não foi de propósito.Henriqueta – Oh! foi! Desde então essa janela nunca mais se abriu. agora posso

dizer-te tudo... eu o via do meu quarto a todas as horas do dia; de manhã, apenas acordava, já ele estava; antes de jantar, quando ele chegava, eu o esperava; e à tarde, ao escurecer.

Carlotinha – e nunca me disseste nada!Henriqueta – Tinha vergonha. Hoje mesmo se não adivinhasses, se eu não me

traísse.Carlotinha – Deixa estar que hei de perguntar-lhe a razão disto.Henriqueta – eu te suplico! não lhe digas nada. Para quê? Sofri dois meses, sofri

como tu não fazes ideia. Uns versos sobretudo que ele me mandou fizeram-me chorar uma noite inteira.

Carlotinha – mas por isso mesmo! não quero que ele te faça chorar. Hei de obri-gá-lo a ser para ti o mesmo que era.

Henriqueta – agora... É impossível!Carlotinha – Por quê?Henriqueta – não tenho coragem de dizer; e, entretanto, vim hoje só para dar-te

parte e para... despedir-me desta casa.Carlotinha – Vais fazer alguma viagem?Henriqueta – não, mas vou... (Ouve-se subir a escada.)

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Carlotinha – É ele! É mano!Henriqueta – ah! meu Deus!Carlotinha – Depressa! Corre!...

Nas cenas seguintes, Eduardo fica pouco tempo em casa, o que impossi-bilita carlotinha de saber os reais motivos da indiferença do irmão para com Henriqueta.

eduardo pede a pedro que lhe chame um tílburi (carruagem) para visitar um paciente e dá instruções ao escravo sobre a arrumação do quarto, sem atender ao pedido da irmã de ter uma pequena conversa com Henriqueta.

A cena seguinte mostra o menino pedro em ação. este tenta entregar a carlotinha um bilhete de Alfredo, tecendo comentários sobre a aparência do moço, ao mesmo tempo que lhe expõe o desejo de ver a sua senhora muito rica para que ele possa se tornar cocheiro.

Cena Vi

Pedro, Carlotinha Pedro – Sr. moço eduardo pensa que a gente tem perna de pau e não precisa

andar!Carlotinha – Fecha aquela porta!Pedro – então, nhanhã, V. mercê. não recebe aquele bilhete, não? Carlotinha – moleque! Tu estás muito atrevido!... Pedro – Pois olhe, nhanhã; o moço é bonito, petimetre mesmo da moda!... mais do

que o Sr. moço eduardo. Xi!... nem tem comparação!Carlotinha – não o conheço!Pedro – Pois ele conhece nhanhã; passa aqui todo o dia. Chapéu branco de castor,

deste de aba revirada; chapéu fino; custa caro! Sobrecasaca assim meio recortada, que tem um nome francês; calça justinha na perna; bota do Dias; bengalinha desse bicho, que se chama unicorne. Se nhanhã chegar na janela depois do almoço há de ver ele passar, só gingando: Tchá, tchá, tchá... Hum!... moço bonito mesmo!

Carlotinha – melhor para ele; não faltará a quem namore.Pedro – não falta, não; mas ele só gosta de nhanhã. Quando passa, nhanhã não

vê; mas eu, cá de baixo, estou só espreitando. Vai olhando para trás, de pescocinho torto! Porém nhanhã não faz caso dele!

Carlotinha – É um desfrutável! está sempre a torcer o bigode! Pedro – É da moda, nhanhã! aquele bigodinho, assim enroscado, onde nhanhã vê,

é um anzol; anda só pescando coração de moça.

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Carlotinha – moleque, se tu me falares mais em semelhante coisa, conto a teu senhor. Olha lá!

Pedro – está bom, nhanhã; não precisa se zangar. eu digo ao moço que nhanhã não gosta dele, que ele tem uma cara de frasquinho de cheiro...

Carlotinha – Dize o que tu quiseres, contanto que não me contes mais histórias.Pedro – mas agora como há de ser!... ele me deu dez mil-réis.Carlotinha – Para quê?Pedro – Para entregar bilhete a nhanhã. (Tira o bilhete.) Bilhetinho cheiroso; papel

todo bordado!Carlotinha – ah! se mano soubesse!Pedro – ele é amigo de Sr. moço eduardo.Carlotinha – nunca vem aqui!Pedro – Oh! se vem; ainda ontem; por sinal que me perguntou se já tinha entre-

gado.Carlotinha – e tu que respondeste?Pedro – Que nhanhã não queria receber.Carlotinha – e por que não restituíste a carta?Pedro – Porque a carta veio com os dez mil-réis... e eu gastei o dinheiro, nhanhã.Carlotinha – ah! Pedro, sabes em que te meteste?Pedro – mas que tem que nhanhã receba! É um moço mesmo na ordem!Carlotinha – não!... não devo! (Chega-se à estante e escolhe um livro.)Pedro – nhanhá não há de ser freira!... (mete a carta no bolso sem que ela o per-

ceba.) entregue está ela!Carlotinha – Que dizes?Pedro – nada, nhanhã! Que V. mercê. é uma moça muito bonita e Pedro um

moleque muito sabido!Carlotinha – É melhor que arrumes o quarto de teu senhor, vadio! (Carlotinha

senta-se e lê.)Pedro – isto é um instante! mas nhanhã precisa casar! Com um moço rico como

Sr. Alfredo, que ponha nhanhã mesmo no tom, fazendo figuração. Nhanhã há de ter uma casa grande, grande, com jardim na frente, moleque de gesso no telhado; quatro carros na cocheira; duas parelhas, e Pedro cocheiro de nhanhã.

Carlotinha – mas tu não és meu, és de mano eduardo.Pedro – Não faz mal; nhanhã fica rica, compra Pedro; manda fazer para ele sobre-

casaca preta à inglesa: bota de canhão até aqui (marca o joelho); chapéu de castor; tope de sinhá, tope azul no ombro. e Pedro só, trás, zaz, zaz! e moleque da rua dizendo “eh! cocheiro de sinhá D. Carlotinha!”

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Carlotinha – Cuida no que tens que fazer, Pedro. Teu senhor não tarda.Pedro – É já; não custa! meio-dia, nhanhã vai passear na rua do Ouvidor, no

braço do marido. Chapeuzinho aqui na nuca, peitinho estufado, tundá arrastando só! assim, moça bonita! Quebrando debaixo da seda, e a saia fazendo xô, xô, xô! moço, rapaz deputado, tudo na casa do Desmarais de luneta no olho: “Oh! Que paixão!...” O outro já: “V.ex.a passa bem?” e aquele homem que escreve no jornal tomando nota para meter nhanhã no folhetim.

Carlotinha – Oh! meu Deus! Que moleque falador! não te calarás? (lê.)Pedro – Quando é de tarde, carro na porta; parelha de cavalos brancos, fogosos;

Pedro na boleia, direitinho, chapéu de lado, só tenteando as rédeas. nhanhã entra; ves-tido toma o carro todo, corpinho reclinado embalançando: “Botafogo!” Pedro puxou as rédeas; chicote estalou; tá, tá, tá; cavalo, toc, toc, toc; carro trrr!... Gente toda na janela perguntando: “Quem é? Quem é?” – “D. Carlotinha...” Bonito carro! Cocheiro bom!... e Pedro só deitando poeira nos olhos de boleeiro de aluguel.

Carlotinha – Ora, mano não vem! Disse que voltava já!Pedro – De noite, baile de estrondo, como baile do Sr. Barão de meriti; linha de

carro na porta, até no fim da rua, e torce na outra; ministro, deputado, senador, homem do paço, só de farda bordada, com pão-de-rala no peito. moça como formiga! mas nhanhã pisa tudo; brilhante reluzindo na testa como faísca, leque abanando, vestido cheio de renda. Tudo caído só, com o olho de jacaré assim. e nhanhã sem fazer caso.

Carlotinha (rindo) – Onde é que tu aprendeste todas essas histórias, moleque? estás adiantado!

Pedro – Pedro sabe tudo!... Daí a pouco, música vom, vom, vom, tra-ra-lá, tra-ra--lá-ta; vem ministro, toma nhanhã para dançar contradança; e nhanhã só requebrando o corpo! (arremeda a contradança.)

Carlotinha – Ora, senhor! Já se viu que capetinha!

nas cenas seguintes, Jorge, o irmão caçula de carlotinha, avisa-a de que Henriqueta está de saída, e carlotinha se retira.

no quarto do irmão, Jorge põe-se a revirar os objetos e encontra, no meio de um livro, um papel, que entrega a pedro. este lhe revela seu plano, que con-sistia em entregar os versos românticos de eduardo a uma viúva rica, para que seu amo ficasse rico e ele se tornasse cocheiro. Pedro tem aversão a Henriqueta por ela ser pobre.

Quando Alfredo, o pretendente de Carlotinha, chega à casa de Eduardo, é recebido por Pedro. Inquirido sobre o bilhete, Pedro diz ao moço que a sua senhora demorava a responder porque estava suspirando de amores. em seguida, diz-lhe a verdade, isto é, que enfiara o bilhete no bolso dela e que havia insinuado que Alfredo era rico. Alfredo contesta pedro.

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À entrada de carlotinha, Alfredo pensa em declarar seu amor, mas é contido por Pedro, que lhe sugere tratar a moça com certa fineza e distância.

carlotinha reclama com pedro sobre o bilhete que achara e comenta o des-prezo com que foi tratada pelo suposto pretendente. Acrescenta, por fim, que, se Alfredo quisesse algo com ela, deveria falar com eduardo.

Eduardo retorna, acompanhado agora por Azevedo, moço rico e afrancesa-do. Os dois amigos conversam sobre a proximidade do casamento de Azevedo, que até então defendia a condição de solteiro. Azevedo explica ao amigo que não está apaixonado pela mulher e que vai se casar para cumprir certas exigências para ingressar na política.

A discussão entre os amigos aparece na cena seguinte.

Cena xiii

Eduardo, Azevedo

Eduardo – Com que então, vais te casar? Ora quem diria que aquele azevedo, que eu conheci tão volúvel, tão apologista do celibato...

Azevedo – e ainda sou, meu amigo; dou-te de conselho que não te cases. O celibato é o verdadeiro estado!... lembra-te que Cristo foi garçon!

Eduardo – Sim; mas as tuas teorias não se conformam com esse exemplo de su-blime castidade!

Azevedo – Considera, meu caro, a diferença que vai da divindade ao homem.Eduardo – Mas enfim, sempre te resolveste a casar?Azevedo – Certas razões!Eduardo – Uma paixão?Azevedo – Qual! Sabes que sou incapaz de amar o quer que seja. algum tempo

quis convencer-me que o meu eu amava a minha bête [besta], que era egoísta, mas de-senganei-me. Faço tão pouco caso de mim, como do resto da raça humana.

Eduardo – assim, não amas a tua noiva?Azevedo – não, decerto.Eduardo – É rica, talvez; casas por conveniências?Azevedo – Ora, meu amigo, um moço de trinta anos, que tem, como eu, uma

fortuna independente, não precisa tentar a chasse au mariage [caça ao casamento]. Com trezentos contos pode-se viver.

Eduardo – e viver brilhantemente; porém não compreendo então o motivo...Azevedo – eu te digo! estou completamente blasé, estou gasto para essa vida de

flaneur [passear à toa] dos salões; Paris me saciou. Mabille e château des Fleurs

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embriagaram-me tantas vezes de prazer que me deixaram insensível. O amor hoje é para mim um copo de cliqcot que espuma no cálice, mas já não me tolda o espírito!

Eduardo – e esperaste chegar a este estado para te casares?Azevedo – Justamente. Tiro disso duas conveniências: a primeira é que um marido

como eu está preparado para desempenhar perfeitamente o seu grave papel de carregador do mantelete, do leque ou do binóculo, e de apresentador dos apaixonados de sua mulher.

Eduardo – Com efeito! admiro o sangue frio com que descreves a perspectiva do teu casamento.

Azevedo – chacun son tour, eduardo, nada mais justo. a segunda conveniên-cia, e a principal, é que, rico, independente, com alguma inteligência, quanto basta para esperdiçar em uma conversa banal, resolvi entrar na carreira pública.

Eduardo – Seriamente?Azevedo – Já dei os primeiros passos; pretendo a diplomacia ou a administração.Eduardo – e para isso precisa casar?Azevedo – Decerto!... Uma mulher é indispensável, e uma mulher bonita!... É o

meio pelo qual um homem se distingue no grand monde!... Um círculo de adoradores cerca imediatamente a senhora elegante, espirituosa, que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! Os elogios, a admiração, a consideração social acompanharão na sua ascensão esse astro luminoso, cuja cauda é uma crinolina, e cujo brilho vem da casa do Valais ou da Berat, à custa de alguns contos de réis! Ora, como no matrimônio existe a comunhão de corpo e de bens, os apaixonados da mulher tornam-se amigos do marido, e vice-versa; o triunfo que tem a beleza de uma, lança um reflexo sobre a posição do outro. e assim consegue-se tudo!

Eduardo – Tu gracejas, azevedo; não é possível que um homem aceite dignamente esse papel. a mulher não é, nem deve ser, um objeto de ostentação que se traga como um alfinete de brilhante ou uma joia qualquer para chamar a atenção!

Azevedo – Bravo! Fizeste a mais justa das comparações, meu amigo! Disseste com muito espírito; a mulher é uma joia, um traste de luxo... e nada mais!

Eduardo – Ora, não acredito que fales seriamente!Azevedo – Podes não acreditar, mas isso não impede que a realidade seja essa.

estás ainda muito poeta, meu eduardo! Vai a Paris e volta! eu fui criança no espírito e voltei com a razão de um velho de oitenta anos!

Eduardo – mas com o coração pervertido!... Ouve, azevedo. estou convencido que há um grande erro na maneira de viver atualmente. a sociedade, isto é, a vida ex-terior, tem-se desenvolvido tanto que ameaça destruir a família, isto é, a vida íntima. a mulher, o marido, os filhos, os irmãos atiram-se nesse turbilhão dos prazeres, passam dos bailes aos teatros, dos jantares às partidas; e quando, nas horas de repouso, se reúnem no interior de suas casas, são como estrangeiros que se encontram um momento sob a tolda do mesmo navio para se separarem logo. não há ali a doce efusão dos sentimentos, nem o bem-estar do homem que respira numa atmosfera pura e suave. O serão da família

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desapareceu; são apenas alguns parentes que se juntam por hábito, e que trazem para a vida doméstica, um, o tédio dos prazeres, o outro, as recordações da noite antecedente, o outro, o aborrecimento das vigílias!

Azevedo – E que concluis desta tirada filosófico-sentimental?Eduardo – Concluo que é por isso que se encontram hoje tantos moços gastos

como tu; tantas moças para quem a felicidade consiste em uma quadrilha; tantos maridos que correm atrás de uma sombra chamada consideração; e tantos pais iludidos que se arruínam para satisfazer o capricho de suas filhas julgando que é esse o meio de dar-lhes a ventura!

Azevedo – realmente estás excêntrico. Onde é que aprendeste estas teorias?Eduardo – na experiência. Também fui atraído, também fui levado pela imaginação

que me dourava esses prazeres efêmeros, e conheci que só havia neles de real uma coisa.Azevedo – O quê?Eduardo – Uma lição; uma boa e útil lição. ensinaram-me a estimar aquilo que

eu antes não sabia apreciar; fizeram-me voltar ao seio da família, à vida íntima!Azevedo – Hás de mudar. (Toma o chapéu e as luvas.)Eduardo – não creio!... Já te vais?Azevedo – Tenho que fazer. algumas maçadas de homem que se despede de sua

vida de garçon. Janto hoje com minha noiva; amanhã parto para minha fazenda, onde me demorarei alguns dias, e na volta terei o prazer de te anunciar, com todas as forma-lidades de estilo, em carton porcelaine sob o competente enveloppe satinée et dorée sur tranche, o meu casamento com a Sra. D. Henriqueta de Vasconcelos.

Eduardo – Henriqueta!... ah! É com ela que te casas?Azevedo – Sim. De que te admiras?Eduardo – Julguei que escolhesses melhor! É tão pobre!Azevedo – mas é bonita e tem muito espírito. Há de fazer furor quando a Gudin

ajeitá-la à parisiense.Eduardo – Dizem que é muito modesta.Azevedo – Toda a mulher é vaidosa, eduardo; a modéstia mesmo é uma espécie

de vaidade inventada pela pobreza para seu uso exclusivo.Eduardo – assim, estás decidido?Azevedo – mais que decidido! estou noivo já. adeus, aparece; andas muito raro.

Na última cena do primeiro ato, Eduardo confirma com Pedro a notícia do casamento de Henriqueta, fato que o escravo não comentou porque estava proi-bido pelo amo de falar sobre ela. Ao conversar com carlotinha sobre o mesmo assunto, ela se compromete a explicar, logo após o jantar, no jardim da casa, os motivos que estão levando a amiga ao casamento com Azevedo .

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o término do primeiro ato tem como objetivo criar um certo clima de suspense na plateia, despertando no público certa expectativa para o início do segundo.

na primeira cena do segundo ato, no jardim da casa, carlotinha desvia-se das afetividades da mãe para poder conversar com o irmão. Este fica surpreso ao ouvir o relato da irmã sobre as queixas de Henriqueta. Eduardo diz para a irmã que ele sim sentia-se ofendido com a indiferença de Henriqueta, que ela havia se queixado a Pedro sobre a sua presença na janela, dizendo-lhe que seus olhares para a casa a incomodavam.

Eduardo fica ainda mais surpreso quando a irmã lhe pergunta sobre os versos em que ele chamava a vizinha de namoradeira. Carlotinha afirma ter lido os versos e reconhecido a letra do irmão. Diz-lhe, ainda, que Henriqueta esperou dois meses por ele, e como não houve nenhum sinal de seu amor por ela, resolveu então satisfazer o desejo do pai, que pretendia casá-la em breve. Embora tivesse cedido aos apelos do pai e aceitado a proposta de casamento feita pelo noivo, na mesma tarde em que aceitara o compromisso resolveu fazer uma visita a eles. como eduardo recusou-se a vê-la, conformou-se então com seu destino.

eduardo se pergunta como isso pôde ter acontecido e suspeita de que Pedro esteja envolvido nessa trama. Para desfazê-la, pede à irmã que convide Henriqueta para uma visita e interroga pedro sobre os versos que foram parar nas mãos da moça. pedro revela seu plano: com medo de que seu amo se casasse com uma moça pobre, resolveu trocar os versos. os que eram destinados a Hen-riqueta foram entregues a uma viúva, que agora está cheia de esperanças, e os que eram dedicados à viúva, ridicularizando-a, foram entregues a Henriqueta. Pedro afirma que agiu assim porque queria ver o amo enriquecido e porque desejava tornar-se cocheiro.

A cena seguinte reproduz o diálogo entre Eduardo e Pedro.

Cena iV

Eduardo, Pedro

Eduardo – Vem cá!Pedro – Senhor!Eduardo – responde-me a verdade.Pedro – Pedro não mente nunca.Eduardo – Que versos são uns que entregaste a D. Henriqueta, de minha parte?Pedro – Foram versos que senhor escreveu...Eduardo – Que eu escrevi?Pedro – Sim, senhor.

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Eduardo – a Henriqueta?Pedro – não, senhor.Eduardo – a quem, então?Pedro – À viúva.Eduardo – Que viúva?Pedro – essa que mora aqui adiante; mulher rica, do grande tom.Eduardo (rindo) – ah! lembro-me! e tu levaste esses versos à Henriqueta?Pedro – levei, sim, senhor.Eduardo – Com que fim, Pedro?Pedro – Sr. não se zanga, Pedro diz por que fez isso.Eduardo – Fala logo de uma vez. Que remédio tenho eu senão rir-me do que me

sucede?Pedro – Sinhá Henriqueta é pobre; pai anda muito por baixo; senhor casando com

ela não arranja nada! moça gasta muito; todo o dia vestido novo, camarote no teatro para ver aquela mulher que morre cantando, carro de aluguel na porta, vai passear na rua do Ouvidor, quer comprar tudo que vê.

Eduardo – Ora, não sabia que tinha um moralista desta força em casa!Pedro – Depois modista, costureira, homem da loja, cabeleireiro, cambista, cocheiro,

ourives, tudo mandando a conta e senhor vexado: “Diz que não estou em casa”, como faz aquele homem que mora defronte!

Eduardo – Então foi para que eu não casasse pobre que fizeste tudo isto? Que inventaste o recado que me deste em nome de Henriqueta?...

Pedro – Pedro tinha arranjado casamento bom; viúva rica, duzentos contos, quatro carros, duas parelhas, sala com tapete. mas senhor estava enfeitiçado por sinhá Henriqueta e não queria saber de nada. Precisava trocar; Pedro trocou.

Eduardo – O que é que trocaste?Pedro – Verso feio da viúva para sinhá Henriqueta; verso bonito de sinhá Henri-

queta foi para a viúva.Eduardo – De maneira que estou com um casamento arranjado com uma corres-

pondência amorosa e poética; e tudo isto graças à tua habilidade?Pedro – negócio está pronto, sim senhor; é só querer. Pedro de vez em quando

leva uma flor ou um verso que senhor deixa em cima da mesa. Já perguntou por que V. mercê. não vai visitar ela!

Eduardo (rindo-se) – eis um corretor de casamentos, que seria um achado precioso para certos indivíduos do meu conhecimento!

Vou tratar de vender-te a algum deles para que possas aproveitar o teu gênio industrioso.

Pedro – Oh! não! Pedro quer servir a meu senhor! V. mercê. perdoa; foi para ver senhor rico!

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Eduardo – e que lucras tu com isto! Sou tão pobre que te falte aquilo de que pre-cisas? não te trato mais como um amigo do que como um escravo?

Pedro – Oh! Trata muito bem, mas Pedro queria que senhor tivesse muito dinheiro e comprasse carro bem bonito para...

Eduardo – Para... Dize!Pedro – Para Pedro ser cocheiro de senhor!Eduardo – então a razão única de tudo isto é o desejo que tens de ser cocheiro?Pedro – Sim, senhor!Eduardo (rindo-se) – Muito bem! Assim, pouco te importava que eu ficasse mal

com uma pessoa que estimava; que me casasse com uma velha ridícula, contanto que governasses dois cavalos em um carro! Tens razão!... e eu ainda devo dar-me por muito feliz, que fosse esse o motivo que te obrigasse a trair a minha confiança.

Na sequência, Pedro diz a Carlotinha estar arrependido pelo que fez, afir-ma que pode conseguir reatar o amor entre eduardo e Henriqueta. pergunta-lhe também pela resposta ao bilhete do moço Alfredo, insistindo para que ela res-ponda por escrito. carlotinha se recusa a dar-lhe uma resposta por escrito, mas aceita a ideia de Pedro de enviar uma flor como resposta.

Carlotinha resolve contar ao irmão sobre o bilhete recebido e a flor envia-da como resposta. Eduardo afirma que a irmã errou agindo assim, mas que o erro maior foi dele, pois, preocupado que estava com a profissão, acabou por descuidar-se de suas obrigações de irmão mais velho. para reparar a situação, manda um bilhete a Alfredo para marcar uma conversa e saber das suas inten-ções com carlotinha.

Quando Henriqueta chega, carlotinha rapidamente procura esclarecer toda a confusão armada por pedro. entretanto, Henriqueta lamenta que o mal enten-dido tenha sido esclarecido agora, pois seu casamento com Azevedo já estava acertado entre este e o pai. Aliás, os dois a estão acompanhando. Vasconcelos, o pai da noiva, celebra com D. Maria, mãe de Eduardo, o casamento da filha.

Na cena abaixo transcrita, Vasconcelos expõe à D. Maria as manias afran-cesadas do noivo.

Cena Viii

Os mesmos, Vasconcelos, D. Maria, Azevedo

Vasconcelos – Onde está o nosso Doutor? não há mais quem o veja.Carlotinha – Subiu ao seu quarto, já volta. Vasconcelos – Oh! D. Carlotinha! Como está?!... apresento-lhe meu genro. O

Sr. azevedo. (a azevedo) É a mais íntima amiga de Henriqueta.

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Azevedo – e eu o mais íntimo amigo de seu irmão! Há, portanto, dois motivos bastante fortes para o meu respeito e consideração.

Carlotinha – muito obrigada! (a Henriqueta) Vai-te sentar; estás toda trêmula!Henriqueta (baixo) – e ele, por que não vem?Carlotinha – não tarda! (afastam-se.)Vasconcelos (a D. maria) – Parece-me um excelente moço, e estou certo que há

de fazer a felicidade de minha filha.D. Maria – É o que desejo; tenho muita amizade à sua menina e estimo que seu

marido reúna todas as qualidades.Vasconcelos – Para mim, se quer que lhe diga a verdade, só lhe noto um pequeno

defeito.D. Maria – Qual? É jogador?Vasconcelos – não; o jogo já não é um defeito, segundo dizem; tornou-se um

divertimento de bom-tom. O que noto em meu genro, e que desejo corrigir-lhe, é o mau costume de falar metade em francês e metade em português, de modo que ninguém o pode entender!

D. Maria – ah! não observei ainda!Vasconcelos – É uma mania que eles trazem de Paris e que os torna sofrivelmente

ridículos. mas não se querem convencer!Azevedo – Tem um belo jardim, minha senhora, um verdadeiro bosquet. Oh!

c’est charmant! [é tão charmoso, tão encantador] não perdoo, porém, a meu amigo eduardo não ter aproveitado para fazer um kiosque. Ficaria magnífico!

Vasconcelos – então, entendeu?D. Maria – não, absolutamente nada!Vasconcelos – O mesmo me sucede! Tanto que às vezes ainda duvido que realmente

ele me tenha pedido a mão de Henriqueta!D. Maria – Ora! É demais! (Sobem.)Azevedo (a Carlotinha) – aqui passa V. ex.a naturalmente as tardes, conversando

com as suas flores, em doce e suave réverie!Carlotinha – não tenho o costume de sonhar acordada; isso é bom para as natu-

rezas poéticas.Azevedo – les hommes sont poètes; les femmes sont la poésie [os homens

são poetas; as mulheres são a poesia], disse um distinto escritor. Oh! Eis a flor clás-sica da beleza.

Carlotinha – a camélia?Azevedo – Sim, a camélia é hoje, em Paris, mais do que uma simples flor; é uma

condecoração que a moda, verdadeira soberana, dá à mulher elegante.

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Carlotinha – Parece-me que uma senhora não precisa de outro distintivo além de suas maneiras e de sua graça natural. Que dizes, Henriqueta?

Henriqueta – Tens razão, Carlotinha; não é o enfeite que faz a mulher; é a mulher que faz o enfeite, que lhe dá a expressão e o reflexo de sua beleza.

Azevedo – Teorias!... Fumées d’esprit...[fumaças do espírito...] (a Carlotinha) mas, minha senhora, disse há pouco que se podia fazer deste jardim um paraíso!

Carlotinha – Como? Diga-me; quero executar perfeitamente o seu plano.Azevedo – Com muito gosto. Vou traçar-lhe em miniatura o jardim de minha

casa; de nossa casa, D. Henriqueta.Carlotinha (a Henriqueta) – Deixo-te só! (Dá o braço a azevedo.)Azevedo – aqui un jet d’eau [jato d´água]. À noite é de um efeito maravilhoso!

além de que espalha uma frescura! (afastam-se.)

No final do segundo ato, surge um novo gancho: Azevedo fica encantado com os modos de Carlotinha, e Eduardo não consegue ficar a sós com Henriqueta. A expectativa é bastante limitada, pois na verdade consiste em saber o que o pú-blico já sabe, isto é, as intrigas serão desfeitas e o amor triunfará. entretanto, saber como isso vai acontecer é mais importante do que saber o que vai acontecer.

O terceiro ato inicia-se com um chá sendo servido às visitas. Eduardo mostra-se preocupado e triste, para surpresa da mãe e da irmã. Henriqueta preocupa-se com o silêncio dele, mas carlotinha e pedro a acalmam, falando que ele a ama. na verdade, eduardo está preocupado com Alfredo. Quando este surge, eduardo vai correndo ao seu encontro, pois deseja saber, na qualidade de irmão, quais são as intenções do pretendente.

A cena a seguir deixa claros as intenções e o caráter de Alfredo.

Cena V

Eduardo, Alfredo

Alfredo – Boa noite. ah! Dr. eduardo...Eduardo – Sente-se, Sr. alfredo; preciso falar-lhe.Alfredo – Peço-lhe desculpa de me ter demorado; mas quando levaram o seu bilhete

não estava em casa; há pouco é que recebi e imediatamente.Eduardo – Obrigado; o que vou dizer-lhe é para mim de grande interesse, e por

isso espero que me ouça com atenção.Alfredo – estou às suas ordens.Eduardo – Sr. alfredo, minha irmã me pediu que lhe entregasse esta carta.Alfredo – a minha!...

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Eduardo – Sim. Quanto à resposta, é a mim que compete dá-la. É o direito de um irmão, não o contestará, decerto.

Alfredo – Pode fazer o que entender. (ergue-se.)Eduardo – Queira sentar-se, senhor, creio que falo a um homem de honra, que não

deve envergonhar-se dos seus atos.Alfredo – eu o escuto!Eduardo – não pense que vou dirigir-lhe exprobrações. Todo o homem tem o

direito de amar uma mulher; o amor é uni sentimento natural e espontâneo, por isso não estranho, ao contrário, estimo, que minha irmã inspirasse uma afeição a uma pessoa cujo caráter aprecio.

Alfredo – então não sei para que essa espécie de interrogatório!...Eduardo – Interrogatório? Ainda não lhe fiz uma só pergunta, e nem preciso

fazer. Tenho unicamente um obséquio a pedir-lhe; e depois nos separaremos amigos ou simples conhecidos.

Alfredo – Pode falar, Dr. eduardo. Começo a compreendê-lo; e sinto ter a princípio interpretado mal as suas palavras.

Eduardo – ainda bem! eu sabia que nos havíamos de entender; posso ser franco. Um homem que ama realmente uma moça, Sr. alfredo, não deve expô-la ao ridículo e aos motejos dos indiferentes; não deve deixar que a sua afeição seja um tema para a ma-lignidade dos vizinhos e dos curiosos.

Alfredo – É uma acusação imerecida. não dei ainda motivos...Eduardo – estou convencido disso, e é justamente para que não os dê e não siga o

exemplo de tantos outros, que tomei a liberdade de escrever-lhe convidando-o a vir aqui esta noite. Quero apresentá-lo à minha família.

Alfredo – Como? apesar do que sabe? e do que se passou? Eduardo – mesmo pelo que sei e pelo que se passou. Tenho a este respeito certas

ideias, não sou desses homens que entendem que a reputação de uma mulher deve ir até o ponto de não ser amada. mas é no seio de sua família, ao lado de seu irmão, sob o olhar protetor de sua mãe, que uma moça deve receber o amor puro e casto daquele que ela tiver escolhido.

Alfredo – Assim, me permite...Eduardo – não permito aquilo que é um direito de todos. Somente lhe lembrarei

uma coisa, e para isso não é necessário invocar a amizade. Qualquer alma, ainda a mais indiferente, compreenderá o alcance do que vou dizer.

Alfredo – não sei o que quer lembrar-me, doutor; se é, porém, o respeito que me deve merecer sua irmã, é escusado.

Eduardo – Não; não é isso, nesse ponto confio no seu caráter, e confio sobretudo em minha irmã. O que lhe peço é que, antes de aceitar o oferecimento que lhe fiz, reflita.

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Se a sua afeição é um capricho passageiro, não há necessidade de vir buscar, no seio da família, a flor modesta que se oculta na sombra e que perfuma com a sua pureza a velhice de uma mãe, e os íntimos gozos da vida doméstica. O senhor é um moço distinto; pode ser recebido em todos os salões. aí achará os protestos de um amor rapidamente esquecido; aí no delírio da valsa, e no abandono do baile, pode embriagar-se de prazer. e quando um dia sentir-se saciado, suas palavras não terão deixado num coração virgem o germe de uma paixão, que aumentará com o desprezo e o indiferentismo.

Alfredo – a minha afeição, Dr. eduardo, é séria e não se parece com esses amores de um dia!

Eduardo – Bem; é o que desejava ouvir-lhe. (Vai à porta da sala e faz um aceno).

Na sequência, Eduardo apresenta Alfredo à família e aos amigos. Durante o chá, carlotinha torna-se o centro das atenções, particularmente das atenções de Alfredo e Azevedo.

Pedro resolve agir e diz a Azevedo que o pai de Henriqueta anda espa-lhando pela cidade que ela vai se casar com um moço rico, querendo com isso acalmar as pessoas a quem deve. Diz também que a beleza da moça é uma farsa, artifício de modistas, que ela na intimidade é feia. compara-a com carlotinha, dizendo-lhe que esta é realmente bonita, tem muitos pretendentes, inclusive o moço Alfredo, mas que ela tem interesse mesmo é pelo moço Azevedo.

A cena a seguir apresenta o diálogo entre Pedro e Azevedo.

Cena xi

azevedo, pedro

Pedro – Charutos, Sr. azevedo; havanas de primeira qualidade, da casa de Wal-lerstein!

Azevedo – Pelo que vejo já os experimentaste!Pedro – Pedro não fuma, não senhor; isto é bom para moço rico, que passeia de

tarde, vendo as moças.Azevedo – então é preciso fumar para ver as moças?Pedro – Oh! moça não gosta de rapaz que toma rapé, não, como esse velho Sr.

Vasconcelos, que anda sempre pingando. Velho porco mesmo!...Azevedo – Mas tem uma filha bonita!Pedro – Sinhá Henriqueta! noiva de senhor!...Azevedo – Tu já sabes?...Pedro – Ora, já está tudo cheio. na rua do Ouvidor não se fala de outra coisa.Azevedo – ah! Quem espalharia? apenas participei a alguns amigos...

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Pedro – O velho foi logo dizer a todo o mundo. V. mercê não sabe por quê?Azevedo – não; por quê?Pedro – Porque... Esse velho deve àquela gente toda da Rua do Ouvidor; filha

dele gasta muito, credor não quer mais ouvir história e vai embrulhar o homem em papel selado. Então, para acomodar lojista, foi logo contar que estava para casar a filha com sujeito rico, que há de cair com os cobres!

Azevedo – isso é verdade, moleque? Pedro – Caixeiro da loja me contou!Azevedo – mas é infame... Um tal procedimento!... especular com a minha boa fé!Pedro – Sr. azevedo, não faz ideia. esse velho, hi!... Tem feito coisas...Azevedo – Vem cá; diz-me o que sabes, e dou-te uma molhadura.Pedro – Pedro diz, sim senhor; mesmo que V. mercê não dê nada. É um homem

que ninguém pode aturar... Fala mal de todo o mundo. Caloteiro como ele só. rapé que toma é de meia cara. na venda ninguém lhe dá nem um vintém de manteiga. Quando passa na rua, caixeiro, moleque, tudo zomba dele.

Azevedo – Um sogro dessa qualidade!... É uma vergonha! Vejo-me obrigado a ir viver na europa!...

Pedro – Pedro já vem!... (Vai à porta e volta.) Filha dele, sinhá Henriqueta... mas Sr. azevedo vai casar com ela!...

Azevedo – Que tem isso? Gosto de conhecer as pessoas com quem tenho de viver.Pedro – Pois então, Pedro fala; mas não diga a ninguém.Azevedo – Podes ficar descansado!Pedro – Sr. azevedo, acha ela bonita?Azevedo – acho; por isso é que me caso.Pedro – moça muda muito vista na sala!Azevedo – Que queres dizer?Pedro – modista faz milagre!Azevedo – então ela não é bem feita de corpo?Pedro – Corpo?... não tem! aquilo tudo que senhor vê é pano só! Vestido vem

acolchoado da casa da Bragaldi; algodão aqui, algodão aqui, algodão aqui! Cinturinha faz suar rapariga dela; uma aperta de lá, outra aperta de cá...

Azevedo – não acredito! estás aí a pregar-me mentiras.Pedro – mentira! Pedro viu com estes olhos. Um dia de baile ela foi tomar respi-

ração, cordão quebrou; e rapariga, bum: lá estirada. Moça ficou desmaiada no sofá; preta deitando água-de-colônia na testa para voltar a si.

Azevedo – e tu viste isto?

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Pedro – Vi, sim senhor; Pedro tinha ido levar bouquet que nhanhã Carlotinha mandava. mas depois viu outra coisa... Um!...

Azevedo – Que foi? dize; não me ocultes nada.Pedro – Água-de-colônia caiu no rosto e desmanchou reboque branco!...Azevedo – Que diabo de história é esta! reboque branco?Pedro – Ora, senhor não sabe; este pó que mulher deita na cara com pincel. Sinhá

Henriqueta tem rosto pintadinho, como ovo de peru; para não aparecer, caia com pó de arroz e essa mistura que cabeleireiro vende.

Azevedo – Que mulher, meu Deus! Como um homem vive iludido neste mundo! aquela candura...

Pedro – moça bonita é nhanhã Carlotinha! essa sim! não tem cá panos, nem pós! Pezinho de menina; cinturinha bem feitinha; não carece apertar! Sapatinho dela parece brinquedo de boneca. Cabelo muito; não precisa de crescente. não é como a outra!

Azevedo – então, D. Henriqueta tem o pé grande? Pedro (fazendo o gesto) – isto só! Palmo e meio!... Às vezes nhanhã Carlotinha e

as amigas zombam deveras! Mas não pergunte a ela, não? Sinhá velha fica maçada.Azevedo – não; não me importo com isto; mas vem cá; dize-me, nhanhã Carlotinha

não gosta de moço nenhum?Pedro – Qual! Zomba deles todos. esse rapaz, Sr. alfredo, anda se engraçando,

mas perde seu tempo. Homem sério assim, como Sr. azevedo, é que agrada a ela.Azevedo – então pensas que...Pedro – Pedro não pensa nada! Viu só quando se tomava chá, risozinho faceiro...

segredinho baixo...Azevedo (desvanecido) – não quer dizer nada!... moças!

eduardo, contando com a ajuda da irmã, consegue conversar com Hen-riqueta, que lhe conta os motivos que a levaram a assumir o compromisso com Azevedo. O motivo é uma dívida do pai com Azevedo. Ela, entretanto, não pode se negar ao compromisso, pois poderia causar a ruína do pai.

Antes que Eduardo perguntasse a Azevedo qual o valor da dívida de Vasconcelos, alegando desejar “saber quanto custa uma mulher em primeira mão”(ato III, cena XVIII), Alfredo tem uma curiosa conversa com Azevedo sobre arte e nacionalismo. no diálogo, a fala de Alfredo representa as ideias de José de Alencar, que procurava valorizar os aspectos da cultura brasileira num país que insistia (e insiste) em valorizar o que é estrangeiro em detri-mento do que é nacional.

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Cena xiii

Alfredo, Azevedo

Alfredo – É raro encontrá-lo agora, Sr. azevedo. Já não aparece nos bailes, nos teatros.

Azevedo – estou-me habituando à existência monótona da família.Alfredo – monótona?Azevedo – Sim. Um piano que toca, duas ou três moças que falam de modas;

alguns velhos que dissertam sobre a carestia dos gêneros alimentícios e a diminuição do peso do pão, eis um verdadeiro tableau de família no rio de Janeiro. Se fosse pintor faria um primeiro prix au Conservatoire des Arts.

Alfredo – e havia de ser um belo quadro, estou certo; mais belo sem dúvida do que uma cena de salão.

Azevedo – Ora, meu caro, no salão tudo é vida; enquanto que aqui, se não fosse essa menina que realmente é espirituosa, D. Carlotinha, que faríamos, senão dormir e abrir a boca?

Alfredo – É verdade; aqui dorme-se, porém sonha-se com a felicidade; no salão vive-se, mas a vida é uma bem triste realidade. ao invés de um piano há uma rabeca, as moças não falam de modas, mas falam de bailes; os velhos não dissertam sobre a ca-restia, mas ocupam-se com a política. Que diz deste quadro, Sr. azevedo, não acha que também vale a pena de ser desenhado por um hábil artista, para a nossa “academia de Belas-artes”?

Azevedo – a nossa “academia de Belas-artes”? Pois temos isto aqui no rio?Alfredo – ignorava?Azevedo – Uma caricatura, naturalmente... não há arte em nosso país.Alfredo – a arte existe, Sr. azevedo, o que não existe é o amor dela.Azevedo – Sim, faltam os artistas.Alfredo – Faltam os homens que os compreendam; e sobram aqueles que só acre-

ditam e estimam o que vem do estrangeiro.Azevedo (com desdém) – Já foi a Paris, Sr. alfredo?Alfredo – não, senhor; desejo, e ao mesmo tempo receio ir.Azevedo – Por que razão?Alfredo – Porque tenho medo de, na volta, desprezar o meu país, ao invés de amar

nele o que há de bom e procurar corrigir o que é mau.Azevedo – Pois aconselho-lhe que vá quanto antes! Vamos ver estas senhoras!Alfredo – Passe bem.

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De forma explícita, José de Alencar tece uma crítica àqueles que menos-prezam a cultura nacional. Ao colocar Alfredo, um típico bom rapaz, em diálogo aberto com Azevedo, uma figura típica da frivolidade, o autor confere sensatez à fala de Alfredo, mostrando a necessidade que o brasileiro tem de prestigiar a sua cultura, enquanto a fala de Azevedo revela uma total falta de apego à cultura da pátria. Em outras palavras, somente as pessoas superficiais não conseguem perceber e valorizar a cultura brasileira.

O quarto ato da peça principia com as tentativas de Pedro de aproximar Carlotinha de Azevedo, imaginando, assim, aproximar Henriqueta de seu amo e ao mesmo tempo casar carlotinha com um moço rico.

ato iV

em casa de Eduardo. Sala de visitas.

Cena primeiraEduardo, Henriqueta, Carlotinha, Pedro

(Carlotinha na janela; Pedro sacudindo os tapetes.)Carlotinha (baixo, a Pedro) – não passará ainda hoje?Pedro – não sei, nhanhã.Carlotinha – está doente?... Zangado comigo?... Por quê?Pedro – não se importe mais com ele! Há tanto moço bonito! Sr. azevedo... (Pedro

vai colocar o tapete e sai.)na segunda cena do ato quarto, uma fala de eduardo sugere que o tempo decorrido

do terceiro ato ao momento presente é de um mês.

Cena ii

Eduardo, Henriqueta, Carlotinha

Eduardo – Quando eu lhe digo que espere, Henriqueta, é porque estou convencido de que há um meio de desfazer esse casamento sem a menor humilhação para seu pai.

Henriqueta – e esse meio qual é?Eduardo – não lhe posso dizer; é meu segredo.Henriqueta – ah! Tem segredos para mim?eduardo – É injusta fazendo-me essa exprobração, Henriqueta. Se não lhe falo fran-

camente, é porque não desejo que partilhe, ainda mesmo em pensamento, os desgostos, as contrariedades que eu há um mês tenho sofrido para conseguir esse meio de que lhe falei.

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Henriqueta – mas, eduardo, uma parte dessas contrariedades me pertence, e por dois títulos; porque se trata de mim, e porque nos... estimamos!

Eduardo – Porque nos amamos: é verdade! mas nessa partilha igual que fazem duas almas da sua dor e do seu prazer, há a diferença das forças. À mulher cabe a parte do consolo, ou da ternura; ao homem, a parte da coragem e do trabalho.

Henriqueta – então eu não tenho o direito de fazer também alguma coisa para a nossa felicidade?

Eduardo – não disse isto! Faz muito!Henriqueta – Como? Se toma para si tudo e não me quer deixar nem mesmo a

metade dos cuidados?Eduardo – e quem me dá força para prosseguir e a fé para trabalhar? não são

esses momentos que todos os dias passamos juntos aqui ou em sua casa?Henriqueta – assim, não me quer dizer qual é essa esperança? Eduardo – Não desejo afligi-la com ideias mesquinhas. Os homens inventaram

certas coisas, como os algarismos, o dinheiro e o cálculo, que não devem preocupar o espírito das senhoras.

Henriqueta – Porque somos nós tão fracas de inteligência?... Eduardo – não é por isso; é porque tiram-lhes o perfume e a poesia.Henriqueta – isso é muito bonito, mas não me diz o que desejo saber.Eduardo – O quê?Henriqueta – O meio por que há de fazer o meu casamento.Eduardo – ainda insiste; pois bem, hoje mesmo lhe direi.Henriqueta – Sim?Eduardo – Talvez daqui a uma hora.Carlotinha – mano, aí entrou uma pessoa, que julgo procurar por você.Eduardo – Há de ser naturalmente o negociante que espero. A fala de Eduardo revela a visão moralista do autor quanto à participação

da mulher na família e na sociedade. A ela cabe apenas compreender e auxiliar afetivamente o marido, a quem cabe prover materialmente o lar. A mulher não deve se envolver com negócios e dinheiro, sob pena de perder a poesia que lhe é inerente. ou seja, a participação da mulher na família restringe-se ao afeto. A mulher não é necessariamente fraca de inteligência, mas deve evitá-la, pois a inteligência fica melhor nas atividades masculinas.

Na sequência, Carlotinha confessa à amiga Henriqueta que está preocupada com Alfredo, pois já faz quatro dias que ele não lhe dá atenção. Está preocupada e não consegue compreender os motivos da ausência dele, desde o dia em que o deixou por alguns instantes para escrever uma carta para a amiga. Quando

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retornou à sala e pediu a Pedro que entregasse a carta pessoalmente a Henriqueta, Alfredo repentinamente deixou a sala.

Henriqueta contou, então, que recebeu a carta das mãos de Azevedo, e não de pedro, e achou o sobrescrito uma brincadeira de mau gosto, porque lia-se no envelope “Madame Azevedo”.

carlotinha chama pedro e pede-lhe esclarecimentos sobre a carta. o menino lhe diz que encontrou Azevedo na rua e que, por ser ele o noivo de Henriqueta, não viu nada de mais em entregar-lhe a carta.

Em seguida, Azevedo aparece para uma visita e dirige elogios e gracejos para carlotinha, que não entende as intenções do moço e de qualquer forma procura ignorá-lo. Por sua vez, Azevedo não compreende o comportamento de carlotinha, pois acreditava que ela estivesse interessada por ele, conforme lhe havia dito pedro.

Quando Azevedo procura por Pedro para que este lhe esclarecesse a situa-ção, o escravo lhe diz que Carlotinha sente-se constrangida por estar apaixonada pelo noivo da melhor amiga. Azevedo acha a explicação convincente.

Assim que Azevedo se retira e o pai de Henriqueta, Vasconcelos, entra, Pedro dá sequência a seu plano, dizendo ao velho que Azevedo anda espalhando que lhe comprou a filha. Tomado de indignação, Vasconcelos retira-se da casa de Eduardo.

Quando chega Alfredo para visitar eduardo, pedro novamente mente ao moço, dizendo-lhe que Carlotinha só tinha pensamentos para Azevedo, o que Alfredo já tinha constatado ao ver no envelope o nome do rival a quem a moça havia escrito.

carlotinha e Henriqueta entram na sala e Alfredo trata a amada com in-diferença. Irritada com a situação, Carlotinha exige uma explicação de Alfredo. Este comenta superficialmente a carta que ela havia endereçado a Azevedo e, aproveitando-se da chegada de eduardo, retira-se para falar ao amigo.

No diálogo com o amigo, Alfredo lhe diz que Carlotinha ama outro homem, razão pela qual ele pretende se afastar da convivência da família que almejava frequentar. Eduardo fica surpreso com a conversa. Carlotinha, que havia escutado toda a conversa, exige explicações de Alfredo. Este hesita, mas acaba confessando ter lido num envelope o nome a quem ela havia enviado uma carta – tratava-se de Azevedo. A revelação surpreende tanto Carlotinha quanto Henriqueta.

Cena xiV

Os mesmos, Carlotinha, Henriqueta

Carlotinha – E que eu exijo que se patenteiem, porque não me envergonham, eduardo!

Eduardo – Tu nos ouvias, Carlotinha!Carlotinha – Sim, mano. Tratava-se de mim; fiz mal?

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Eduardo – não, minha irmã, eu mesmo te chamaria se não quisesse poupar-te um pequeno desgosto. Mas já que aqui estás, fica. Alfredo parece que tem algumas queixas de nós; julgarás se ele é injusto.

Henriqueta (à meia voz, a eduardo) – ele está iludido! Carlotinha o ama!Eduardo – eu sabia! (Continuam a conversar.)Carlotinha – O Sr. alfredo diz que tem provas de que amo outro homem... re-

clamo essas provas.Alfredo – não é possível, D. Carlotinha! na minha boca seriam uma exprobração

ridícula e ofensiva. Guardo-as comigo e respeito os sentimentos que não soube inspirar.Carlotinha – O senhor não mais quer dar?... Pois bem, serei eu que provarei o

contrário!... eis a prova... (estendendo-lhe a mão.)Alfredo – ah!... (Tomando a mão.) mas essa mão não pode ser minha!Carlotinha – Por quê?Alfredo – Porque escreveu a outro e lhe pertence!Carlotinha – meu Deus! mano, Henriqueta!...Eduardo – Que tens?Carlotinha – ele diz que eu amo a outro, que lhe escrevi!... Quando a ele...Alfredo – não devia dizê-lo; mas foi o amor ofendido, e não a razão, que falou.Eduardo – Sei que é incapaz de tornar-se eco de uma calúnia; para dizer o que

acabo de ouvir é preciso que tenha certeza do que afirma. A quem escreveu minha irmã, alfredo?

Alfredo – Perdão!... não devo!Eduardo – Exijo!...Alfredo – ao Sr. azevedo!Henriqueta – É impossível!Carlotinha – ele acredita!Eduardo – O senhor viu essa carta?Alfredo – Vi essa carta sair da mão que a escreveu e ser entregue àquele a quem

era destinada! (rumor de passos.)Eduardo – Silêncio, senhor!

A entrada de Azevedo interrompe a conversa. Este fala reservadamente a Eduardo, comunicando-lhe que desfaz o noivado com Henriqueta e que a dívida de Vasconcelos seria cobrada em oportunidade futura.

carlotinha, decidida a esclarecer a questão da carta, entra e pergunta a Azevedo se este havia recebido alguma carta sua. Azevedo afirma que não, mas que desejaria tê-la recebido para que pudesse corresponder-lhe ao amor. carlo-

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tinha descobre, então, que é amada por Azevedo e Henriqueta descobre que seu compromisso está desfeito, o que a deixa feliz.

Vasconcelos entra na casa de Eduardo e, enfurecido, diz a D. Maria que a casa dela não é digna de confiança, pois dali partem os boatos que denigrem as pessoas de bem. D. Maria fica envergonhada e Eduardo parte em sua defesa. trata-se da última cena da peça.

Cena xVii

Os mesmos, Vasconcelos, Pedro Pedro – Barulho grande, Sr. Vasconcelos!Vasconcelos – Deixe-me! estou furioso!Henriqueta – meu pai, é verdade?D. Maria – O senhor está tão perturbado!Vasconcelos – Se a senhora soubesse o que acabo de ouvir! Os maiores in-

sultos!Azevedo – Verdades bem duras, mas não insultos, senhor! não é meu costume.Vasconcelos – ah! O senhor está aqui?Eduardo – Sr. Vasconcelos!...Vasconcelos – Oh! não faz ideia do que este homem disse de mim. e se fosse só

de mim! Caluniou, injuriou atrozmente a minha filha!...Eduardo – Como, Sr. azevedo?Azevedo – Pergunte-lhe o que ouvi dele!Pedro (a alfredo) – intriga está fervendo só! Hoje sim! acaba-se tudo!Vasconcelos – e o que me dói, ainda mais, D. maria, é que todas essas injúrias

de que o senhor se fez eco, saem de sua casa!Pedro (a Carlotinha) – mentira!Eduardo – De nossa casa, Sr. Vasconcelos?Henriqueta – eu não creio, meu amigo.Vasconcelos – Tu não crês, porque não as ouviste, minha filha; senão havias de

ver que só amigos fingidos podiam servir-se da intimidade para, à sombra dela, urdirem semelhantes calúnias!

D. Maria – nunca pensei, meu Deus, passar por semelhante vergonha!...Eduardo – e eu, minha mãe, eu que sou responsável por todos esses escândalos!Azevedo – C’est ennuyeux, ça![Isso é tão entediante, importuno]

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Vasconcelos – Vamos, minha filha, deixemos para sempre esta casa onde nunca devíamos ter entrado!

Henriqueta – eduardo!...Eduardo – adeus, Henriqueta!Henriqueta – Carlotinha!...Carlotinha – ama-me! Tu ao menos não me farás chorar!Eduardo – Sou eu que a faço chorar, D. Carlotinha?Vasconcelos – Vem, vem, Henriqueta! não estamos bem neste lugar!Alfredo – É verdade, sofre-se muito aqui.Azevedo – Com efeito, ici fait chaud.[Aqui faz calor]Eduardo – a honra e a felicidade! Tudo perdido!D. Maria (chorando) – E tua mãe, meu filho!Pedro – e Pedro, senhor!Vasconcelos – Oh! Está quem podia confirmar o que eu disse.Azevedo – Justamente!Eduardo – ah!... escutem-me, senhores; depois me julgarão... É a nossa sociedade

brasileira a causa única de tudo quanto se acaba de passar.Alfredo – Como?Vasconcelos – Que quer dizer?Azevedo – Tem razão, começo a entender!Eduardo – Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio

familiar, do qual dependia o sossego e a tranquilidade das pessoas que nela viviam. nós, os brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das atenções da família! mas vem um dia, como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos santos, um jogo de criança. este demônio familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo.

Azevedo – É uma grande verdade.Vasconcelos – Tem toda a razão; a ele é que ouvi!Alfredo – Sim, não há dúvida.Carlotinha – eu adivinhava!...D. Maria – Como? Foste tu?Pedro – Pedro confessa, sim senhora.D. Maria – mas para quê?...Pedro – Para desmanchar o casamento de Sr. azevedo.

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Azevedo – Que tal!Vasconcelos – e para isso inventaste tudo o que me disseste?Pedro – e o que disse a Sr. azevedo. nhanhá Carlotinha nunca se importou

com ele.Azevedo – Assim, a flor?...Pedro – mentira tudo.Alfredo – e a carta?Pedro – nhanhá mandava a sinhá Henriqueta.Henriqueta – então é esta!Alfredo – mas a sobrescrita?Henriqueta – Uma brincadeira!Alfredo – Perdão, D. Carlotinha!Carlotinha – não! O que eu sofri!...Eduardo – Por que, minha irmã? Todos devemos perdoar-nos mutuamente; todos

somos culpados por havermos acreditado ou consentido no fato primeiro, que é a causa de tudo isto. O único inocente é aquele que não tem imputação, e que fez apenas uma travessura de criança, levado pelo instinto da amizade. Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (a Pedro) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão.)

D. Maria – Muito bem, meu filho! Adivinhaste o meu pensamento!Azevedo – mas agora, por simples curiosidade, diz-me, gamin, que interesse

tinhas em desfazer o meu casamento?Pedro – Sr. moço eduardo gosta de sinhá Henriqueta!Azevedo – ah!... bah!...Eduardo – Sim, meu amigo. eu amo Henriqueta e para mim esse casamento seria

uma desgraça; para o senhor era uma pequena questão de gosto e para seu pai um com-promisso de honra. Hoje mesmo pretendia solver essa obrigação. aqui está uma ordem sobre o Souto; o Sr. Vasconcelos nada lhe deve.

Vasconcelos – Como? Fico então seu devedor?Eduardo – Essa dívida é o dote de sua filha.Henriqueta – Oh! Que nobre coração!Eduardo – Quem mo deu?Henriqueta – Sou eu que sinto orgulho em lhe pertencer, eduardo.

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D. Maria – Mas, meu filho, dispões assim da tua pequena fortuna. O que te resta?Eduardo – minha mãe, uma esposa e uma irmã. a pobreza, o trabalho e a felicidade.Alfredo – esqueceu um irmão, eduardo.Eduardo – Tem razão!Azevedo – e um amigo quand même!Eduardo – Obrigado!Vasconcelos – a vista disto, D. maria, vou tratar de pôr a Josefa nos cobres!Azevedo – Decididamente volto a Paris, meus senhores!Pedro – Pedro vai ser cocheiro em casa de major!Eduardo – e agora, meus amigos, façamos votos para que o demônio familiar das

nossas casas desapareça um dia, deixando o nosso lar doméstico protegido por Deus e por esses anjos tutelares que, sob as formas de mães, de esposas e de irmãs, velarão sobre a felicidade de nossos filhos!...

A fala de eduardo é esclarecedora: pedro é o responsável por toda a mal-dade que acomete a família. pedro confessa ter dito mentiras a Vasconcelos, com o intuito de afastar Azevedo de Henriqueta. Também confessa ter urdido toda a trama envolvendo Carlotinha, Alfredo e Azevedo. A carta havia sido escrita por Carlotinha a Henriqueta. No envelope lia-se “Madame Azevedo”, mas ele escondeu a primeira palavra e mostrou o sobrescrito a Alfredo, dando a entender que a carta era endereçada a Azevedo.

Alfredo pede perdão a carlotinha, e o amor sincero acaba por triunfar. Eduardo aproveita a ocasião e quita a dívida de Vasconcelos com Azevedo, afirmando que o resgate da dívida torna-se o dote da noiva, com quem preten-de se casar. A mãe, entretanto, adverte o filho de que este ficará sem dinheiro. Eduardo, então, diz à mãe que a base da felicidade ele já possui, pois tem uma família afetuosa e um trabalho digno. Alfredo acrescenta que ele tem também um irmão com quem contar, e Azevedo afirma ser um amigo.

pedro recebe o que parece ser a pior das punições, a liberdade. Agora o moleque poderá ter o que tanto desejava, o emprego de cocheiro. Entretanto, diz Eduardo, Pedro, uma vez livre, deverá aprender a ter responsabilidades, porque será obrigado a responder pelos próprios atos.

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5. exeRCíCios

1.em O demônio familiar, de José de Alencar, o per-sonagem que dá título à peça é:a) eduardo. d) Vasconcelos.b) Alfredo. e) pedro.c) Azevedo.

texto para a questão 2

Eduardo – Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio familiar, do qual dependia o sossego e a tranquilidade das pessoas que nela viviam. nós, os brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das atenções da família! mas vem um dia, como hoje, em que ele, na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos santos, um jogo de criança. este demônio familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo.a) A quem Eduardo se refere como “demônio familiar”?b) Qual é o principal desejo do “demônio familiar”?c) Segundo Eduardo, o que o torna um “demônio familiar”?

3.No final da peça O demônio familiar, de José de Alencar, ocorre a união entre os pares românticos da peça. responda:a) Qual o artifício empregado pelo autor da peça para dificultar a união entre

os pares?b) Pode-se dizer que este artifício tem uma finalidade que transcende o aspecto

literário? Justifique sua resposta.

texto para a questão 4

ato iVem casa de Eduardo. Sala de visitas.Cena primeiraEduardo, Henriqueta, Carlotinha, Pedro

(Carlotinha na janela; Pedro sacudindo os tapetes.)Carlotinha (baixo, a Pedro) – não passará ainda hoje?

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Pedro – não sei, nhanhã.Carlotinha – está doente?... Zangado comigo?... Por quê?Pedro – não se importe mais com ele! Há tanto moço bonito! Sr. azevedo... (Pedro

vai colocar o tapete e sai.)

4.no fragmento anterior transcrito, a personagem carlotinha está preocupada com a ausência do seu amado. responda:a) Quem é o seu amado?b) Qual o motivo da ausência do rapaz?

texto para a questão 5

eduardo a Pedro:

Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão.) Ao entregar a carta de alforria a Pedro, Eduardo afirma que ela será, para o escravo agora liberto, uma punição.

a) Por que, segundo Eduardo, a carta de alforria será uma punição para Pedro?b) No contexto da peça, qual a visão de José de Alencar sobre a abolição da es-

cravidão?

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gabaRito1. e2. a) eduardo refere-se ao seu escravo pedro.b) o principal desejo de pedro é tornar-se

cocheiro.c) O que o torna um “demônio familiar” é o

fato de o escravo menosprezar todo o afeto que lhe é dedicado pelos seus senhores e agir sempre de acordo com interesses ines-crupulosos. pedro não consegue absorver a moral, o carinho e o afeto da família em que se encontra, agindo somente em função de uma ambição mesquinha, que é a de tornar--se cocheiro de amos ricos.

3.a) o artifício são as traquinagens do escravo

pedro, que, em nome do seu desejo de tornar-se cocheiro, procura aproximar seus senhores de pessoas ricas.

b) sim. As traquinagens de pedro o trans-formam no “demônio familiar”, capaz de comprometer a moralidade de uma família. o objetivo maior de Alencar parece ser uma defesa da abolição, não pelo absurdo da exploração do trabalho do negro, mas pelo fato de este só trazer malefícios para a família brasileira.

4.a) o amado de carlotinha é o moço Alfredo.b) Alfredo anda ausente por motivo de uma

traquinagem de pedro. este lhe mostrou uma carta escrita por carlotinha e destinada a Henriqueta. como gracejo, carlotinha havia escrito no envelope o nome do destinatário – Madame Azevedo. Pedro ocultou o primeiro nome do sobrescrito com o dedo, mostrando a Alfredo o nome de seu rival no amor, Azevedo, dizendo-lhe que a carta era destinada a ele.

5. a) Porque, uma vez livre, Pedro não contará

mais com a proteção de seu senhor, devendo responder pelos seus atos. livre, pedro terá que aprender sozinho os valores que não conseguiu absorver na convivência com uma família honesta.

b) No contexto da peça, Alencar vê a abolição como algo necessário para o bem-estar da família, pois os desejos mesquinhos dos escravos não condizem com a nobreza e a dignidade de uma família de “bem”. Sua visão é a de que o negro não merece ser escravo do branco, pois não sabe e não consegue entender os valores dignos que lhe são transmitidos pelos seus senhores.