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 1 Síntese Crítica da Obra Terra Sonâmbula  de Mia Couto (a partir dos modelos construtivistas e sistémicos) Discente: Ana Cristina Resende (090901055) Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto UC: Modelos Construtivistas e Sistémicos (MCS), 5ºsemestre Docentes: Professor Joaquim Coimbra e Professor Carlos Gonçalves Dezembro de 2011

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Síntese Crítica da ObraTerra Sonâmbula 

de

Mia Couto(a partir dos modelos construtivistas e sistémicos)

Discente: Ana Cristina Resende (090901055)

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do PortoUC: Modelos Construtivistas e Sistémicos (MCS), 5ºsemestre

Docentes: Professor Joaquim Coimbra e Professor Carlos GonçalvesDezembro de 2011

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Índice 

I.  Introdução 

II.   Análise de “ Terra Sonâmbula” 

  Resumo geral da obra 

  Integração da Perspetiva Construtivista 

  Integração da Perspetiva Sistémica 

III.  Conclusão 

IV. 

Referências Bibliográficas 

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Introdução

Com este trabalho pretende-se realizar uma síntese crítica da obra “Terra Sonâmbula”, de Mia

Couto com base nos modelos construtivistas e sistémicos. Por esta razão, proceder-se-á a uma análisedos segmentos da narrativa mais importantes afim de se compreender a utilidade destes modelos e, de seconceptualizar a realidade externa e interna das personagens e, consequentemente analisar o modo comocada uma delas se relaciona com os acontecimentos sucedidos na sua vida, nomeadamente a situação deguerra e a perda de alguém.

 Análise da Obra

Resumo geral da obra

“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada” (p.3). É através deste mote que a narrativa de “Terra

Sonâmbula” começa e, que as personagens principais começam a revelar-se. O cenário do romance é aguerra civil em Moçambique, que se prolongou desde a independência, em 1975, até 1992. É através daestrada que são apresentados o velho Tuahir e o jovem Muidinga. Este é um rapaz sem memória embusca da sua identidade que foi recolhido de um campo de refugiados pelo velho e relutante Tuahir. Asduas personagens caminham lado a lado com o intuito de fugir do morticínio causado pelas guerrilhasque lhes destruiu a base material de existência e a sua teia de relações familiares e sociais. Grande parteda ação desenrola-se no interior de um autocarro abandonado ( machimbombo ), incendiado, ainda comcorpos carbonizados dentro dele e que serve de abrigo para Tuahir e Muidinga. Quando estão a enterraros outros corpos, descobrem mais um junto à estrada que tem uma mala, onde são encontrados oscadernos que contam a história de Kindzu, o morto em questão.

 A partir daí acompanha-se duas histórias narradas paralelamente: (1) a referida viagem de Tuahir eMuindinga, escondidos num autocarro incendiado, fugindo da guerra civil devastadora; (2) a partir dosdiários encontrados conhecemos o percurso trágico de Kindzu, já morto nessa altura, que partiu embusca dos naparamas  (guerreiros tradicionais que combatem os senhores da guerra), após ter perdido

 várias figuras relevantes (e.g, pai, padre, irmão), deixando a sua mãe deprimida e ressentida por terperdido os restantes elementos da sua família e, o próprio Kindzu representar o único elemento que lhefaz recordar tudo o que perdeu. A postura de Kindzu muda ao conhecer Farida, mulher por quem seapaixona e, a respetiva trajetória de vida. Farida teve um filho (Gaspar) fruto de uma violação e, que lhefoi retirado desde a nascença pela Igreja “como se fosse encomenda de ninguém, um lapso da vida”.

São as histórias dos cadernos de Kindzu (contadas pelo rapaz ao velho em forma de  flasback ) queconstituem uma fonte de identidade para Tuahir e Muindinga dado que a atenção destes doispersonagens vira-se para a reconstrução do passado, enquanto procuram garantir a sua sobrevivência efuturo, acompanhados pela vida de um desconhecido, que lhes devolve o sonho e a força para viver.“Terra Sonâmbula” é sobretudo uma mensagem de esperança já que a terra, apesar da guerra, não estava

morta, ainda estava sonâmbula, imersa num grande sonho que se pode transpor para os doisprotagonistas: Tuahir que transmite a sabedoria adquirida com a experiência e Muindinga que representao futuro e a visão de alguém que nunca perdeu a esperança de encontrar a sua mãe, seguindo todos ospassos de Kindzu.

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Integração da Perspetiva Construtivista

 A perspetiva construtivista é baseada no pressuposto de que o ser humano cria e constróiativamente as suas realidades pessoais, ou seja, cada indivíduo possui um modelo representacional do

mundo. Este andaime de experiências das relações estruturais  torna-se numa referência a partir da qual oindivíduo atribui novos significados a uma nova experiência. Este andaime, em vez de ser apenas ummeio pelo qual a informação é filtrada, cria e restringe, ativamente, uma nova experiência e, issodetermina aquilo que o sujeito irá percecionar como realidade (Mahoney, 1988).

Esta conceção do ser humano, não como um descobridor da realidade, mas antes como umconstrutor de realidades pessoais leva a que a realidade interna seja vista “como fundamentalmente

derivada do modo pelo qual cada indivíduo sente emocionalmente o mundo, e não só como o concebede maneira racional.” (Abreu e Roso, 2003, pp.37). Deste modo, o construtivismo questiona a realidadecomo sendo exterior e estável, e a separação conceptual entre pensamento e sentimentos/ação humana(Mahoney, 1988). O fato do ser humano construir de forma ativa e participada a realidade e, ser mais um“artista do que um cientista”, leva a que sejamos “prisioneiros capturados na rede de nossas teorias e

expetati vas” (Guidano, 1994 in Abreu e Roso, 2003, p.38). Neste sentido, Muidinga, Tuahir e Kindzu,

constroem a sua própria realidade através das suas vivências e da interação com os outros (co-construções).

Muidinga, apesar de não ter memória do seu passado, está constantemente a especular sobre oparadeiro dos seus pais e sobre o que lhe aconteceu e, por isso questiona constantemente o velho Tuahirque não lhe responde. Por isso, Muidinga vai construindo a sua própria realidade a partir dos cadernos de Kindzu e, por isso chega a afirmar Estou a pensar eu sou Junhito (Junhito era irmão mais novo de Kindzu) e,depois percorre o caminho (até ao fim da narrativa) para chegar ao barco de Farida, pois pensa ser o seu

filho desaparecido, Gaspar. Após insistir com Tuahir, este diz-lhe que seus pais faleceram. Sim, eles foram mortos com balas de bandidos , porém o rapaz vira costas  Era como se já soubesse, tudo aquilo não constituísse novidade nenhuma. Ou quem sabe não acreditasse na verdade da revelação. E, como tal a partir desta afirmação vê-se que todas as fantasias que Muidinga vai tendo constituem uma defesa para que consiga encarar o seuquotidiano da forma mais positiva possível. Por isso, o construtivismo pretende perceber a “cognição

não como uma representação do mundo „lá fora‟, mas pelo contrário como um processo contínuo de

construir um mundo através da própria vida”  (Maturana & Varela, 1987) e, é exatamente isto orepresentado com a vida de Muindinga. Já o velho Tuahir reconstrói a realidade com base na suaexperiência amarga de vida e, tem para com Muindinga um dever de proteção que não passa sempre pelatransmissão de afeto direto, traduzindo-se numa dualidade de sentimentos para o rapaz, ou seja, se há

momentos em que lhe trata por tio, Tuahir diz-lhe que Não sou teu tio, sou teu pai porque afirma que É comose tivesses nascido naquele momento (em que lhe foi buscar no campo de refugiados), há outros em que nãodemonstra qualquer piedade e sentimentos pelo rapaz. Tuahir é um sábio das palavras e, por essa viatenta dar uma nova interpretação à realidade à sua volta dizendo O que faz andar a estrada? É o sonho.

 Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. 

 A personagem de Tuahir enquadra-se muito bem na conceção construtivista em que se dáprimazia ao conhecimento tácito, ou seja, os significados são as dimensões estruturantes que dão formae conteúdo ao que fazemos, sentimos e pensámos, organizando-se em estruturas e funcionando segundo

processos tácitos e, por isso “os significados serão construídos obedecendo a essa via de mão dupla, ouseja, extraindo dados do processamento concetual e do processamento vivencial.” (Abreu e Roso, 2003,

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pp.38). Toda a experiência de vida de Tuahir é posta ao serviço daquele penoso processo desobrevivência e, acrescenta ainda mensagens que têm a intenção de preparar o rapaz para enfrentar osseus medos. Kindzu com base no seu conhecimento concetual e no seu processamento vivencial, tentafazer sentido no mundo, como que aplicando uma auto-terapia a si próprio para fazer face ao sofrimentoque o assola e, como tal vai em busca de Gaspar em vão, sem rumo, com o intuito de devolver a vida àsua amada, já que não encontrava sentido na sua própria. E, por isso existe toda uma realidade que éconstruída por si que o leva a focalizar apenas nesse objetivo.

Em todas as personagens de Terra Sonâmbula assiste-se a uma agregação da emoção à ação e, porisso todas as realidades nele existentes são carregadas de vida e de significado “A conceção cognitivaconstrutivista considera as estruturas emocionais um dos alicerces mais importantes para que aedificação do conhecimento humano possa acontecer” e “Nesse sentido seria virtualmente impossívelconsiderar estruturas cognitivas de significado sem que se agregue, de uma maneira ou de outra, ofuncionamento emocional” (Abreu e Roso, 2003, pp.39). Por exemplo, Muindinga acredita com base noque leu nos cadernos que a sua mãe é Farida e, por isso sai em busca do navio onde ela está e, isto tem

uma grande componente emocional, visto que a manutenção dessa esperança diminui o sofrimentopatente neste rapaz.

 Ao longo da obra assistimos a várias manifestações de conhecimento popular ou crençaspopulares por parte de Tuahir, como Não faça essa cara, miúdo. Os falecidos se ofendem se lhes mostramos nojo ou Chorando assim você vai chamar os espíritos. Ou se cala ou lhe rebento a tristeza à porrada. Este fato indica uma daspremissas do construtivismo que afirma que não há conhecimento correto ou incorreto e, tudo dependeda perspetiva em que nos situamos, “  A experiência humana não é uma busca pela verdade, mas, ao invésdisso, uma infinita construção de significados.” (Gonçalves, 1994 in Abreu e Roso, 2003, pp.16).

No percurso de Tuahir e Muindinga, encontram-se com Siqueleto que é um velho alto, torto, usandosobre o corpo nu uma gabardina comprida, maior que o seu tamanho (este aparece quando os dois protagonistastinham caído numa armadilha e ficaram presos num buraco e, por isso pensavam que este homem seria asua salvação). Contudo, Siqueleto leva-os para a sua casa, dentro de uma rede de pesca com o intuito deenterrar-vos como a uma semente. Quando vocês saírem acima da terra, de cada florzinha vai nascer uma pessoa. Mesmonão sendo cientificamente possível acontecer isso e, por isso não ser considerado verdade pelas outraspessoas e, o próprio Muindinga afirmar repetidamente  Este velho é maluco. Endoidou . , para Siqueleto épossível ou quer acreditar que sim, porque desta maneira diminui a sua dor provocada pela solidão eisolamento social (provocado pela guerra), afirmando  Quero companhia . Ainda acredita que umadeterminada árvore é a dos seus antepassados e, por isso ordena que o rapaz escreva o nome dele naárvore para que fosse parteira de outros Siqueletos, em fecundação de si e, solta as duas personagens afirmando

que Agora podem-se ir embora. A aldeia vai continuar, já meu nome está no sangue da árvore. Perante estas referências das personagens pode- se afirmar que “O conhecimento, então, diferentemente das referências objetivistas, será compreendido

como fruto de uma organização pessoa l, arquitetada e organizada por cada pessoa.”  (Abreu e Roso, 2003, pp.37) e,por isso o conhecimento é um mecanismo adaptativo que nos permite encontrar um equilíbrio na nossarelação com o mundo, o mesmo se passando com as histórias de vida das personagens.

 A Metateoria Construtivista de Mahoney vem sintetizar tudo o que foi dito anteriormente,incluindo as caraterísticas das personagens e, por isso é importante referir os seus três pressupostosbásicos:

1.   A natureza proactiva dos processos cognitivos (o indivíduo seria criador das realidades a queresponde).

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2.   A estrutura nuclear da organização psicológica humana (os processos centrais/nuclearesfavoreceriam uma proteção para o questionamento e, consequentemente, a mudança elimitariam a variedade de detalhes que poderiam emergir dos níveis mais periféricos).

3.   A tendência para a auto-organização aquando do desenvolvimento psicológico (os sistemashumanos individuais organizar-se-iam de modo a protegerem e perpetuarem a sua integridade,aquando do desenvolvimento motivado pela sua diferenciação estrutural) (Mahoney, 1997).

Ou seja, a arquitetura pessoal de significados permite que o indivíduo leve consigo não uma cópiado mundo externo, mas uma representação ou "mapa do mundo" (que não é o mundo em si), masdesenhado a partir de sua teoria personificada de vida (Mahoney, 1998 in Abreu, Valle e Roso, 2001).Isto sucede-se com Siqueleto, personifica a vida humana através de uma sementee, espera que daí nasçam seres humanos, só para cumprir o papel da companhia.

Esta narrativa de Terra Sonâmbula relaciona-se em grande parte com as perspetivas narrativas(White & Epston) e, “ Viver narrativamente e partir, tal como D. Quixote, na nossa atitude de cavaleiros

andantes a exploração dessa aventura complexa que é fazer da vida conhecimento e devolver vida aoconhecimento.” (Goncalves, 2002, pp.23). Parece que toda a história de vida das personagens e os seusdiálogos se encaixam nos objetivos da psicoterapia narrativa (Gonçalves, 2002):

  Desconstrutivismo: libertar o cliente para um processo criativo e infindável de construçãode uma infinitude de realidades possíveis, tal como, Muindinga faz ao explorar as múltiplashipóteses para descobrir a sua mãe ou como Siqueleto que se baseia numa realidade paralelapara acalentar o seu sofrimento.

  Narratividade: fazer com que o cliente se abra a construção proactiva e multivocal daexperiência (criação de realidades), tal como, Kindzu que relata a sua experiência através da

escrita dos seus cadernos.  Conversação: a linguagem dos intervenientes como elementos que interferem no processo,

este é sem dúvida o aspeto mais saliente em toda a obra, onde as expressões populares e asabedoria contribuem para uma terapia grupal, onde Kindzu através dos diálogos mantidosem silêncio com os protagonistas os ajuda a acalentar a esperança no futuro.

Sabin sugere que a narrativa organiza “a nossa imaginação e fantasias, as nossas histórias não

contadas, os nossos planos, memórias e até mesmo os nossos sentimentos de amor e ódio”, (Gonçalves

e Gonçalves, 2007, pp.158) no espaço e no tempo. O elemento histórico, aqui desencadeador de toda a vida das personagens- a guerra civil- só pode ser compreendido se localizado no seu contexto e, se

percebermos qual o impacto que tem na vida das personagens. Kindzu, por exemplo, passou pelascircunstâncias sociais e políticas adversas, pelas tragédias no seio familiar, pela solidão que sente aopercorrer o caminho que escolheu na demanda de ajudar a acabar com a guerra e, com isto procuraformular-se a si e ao seu mundo de modo a conseguir continuar a viver.

Integração da Perspetiva SistémicaSegundo Mahoney (1988), a psicologia sistémica afasta-se da análise reducionista e das noções

causais unilaterais, para ir de encontro ao reconhecimento da complexidade dos sistemas orgânicos e dosfenómenos sociais, da inter-dependência estabelecida entre os sistemas ou subsistemas e dos processosde co-desenvolvimento que ocorrem ao longo do tempo. No caso de “Terra Sonâmbula”, as

personagens sofrem as consequências da guerra civil, que se estendem pela maioria dos contextos da sua

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 vida e, por isso Tuahir refere que  A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma.

Figura 1. Efeito da guerra civil nos diferentes subsistemas da narrativa de Terra Sonâmbula . 

Na perspetiva sistémica os problemas humanos deixam de ser compreendidos numa dimensãointrapessoal para alargar a sua compreensão aos sistemas mais próximos ou alargados onde o sujeito sedesenvolve, ou seja, não há problemas psicológicos mas dimensões psicológicas de problemas sociais,implicando uma compreensão dos problemas humanos do ponto de vista das diferentes dimensões dosujeito. Esta perspetiva apoia a ideia da partilha de responsabilidades entre o indivíduo e os contextos emque o indivíduo está inserido. Neste campo, não poderemos analisar a realidade de Tuahir, Muindinga eKindzu sem considerar o seu mundo social e a sua experiência anterior à guerra.

 Todos os elementos desta narrativa estão envolvidos numa estrutura familiar que éconcetualizada como sistema aberto, segundo Salvador Minuchin, “A família como sistema é um

conjunto de membros em interacção, ou seja, uma complexidade organizada de partes diferentes comdeterminados atributos, cuja função principal é promover o desenvolvimento biopsicossocial de todos

os seus membros bem como transmitir os padrões da cultura da família”. Como tal, como os sistemasnão se resumem apenas ao sistema familiar, podemos extrapolar este conteúdo para a relaçãoestabelecida entre Muidinga e Tuahir que tem todos elementos de uma relação familiar dado que para

 Tuahir ele é o pai do rapaz dado que considera que Muindinga nasceu no dia em que ele o encontrou , porqueteve que ensinar tudo do início (e.g., falar, andar, comer..) e, acrescenta-se também que “Todos e cada

um de nós tem família” … “No entanto, sentimento e conhecimento (pessoal e científico) fazem -nosencarar a família como um emaranhado de noções, questões e, mesmo de contradições e paradoxos.”

(Relvas, 1996, pp. 9).Nesta interacção familiar cada membro integra-se em diferentes subsistemas que constituem,

simultaneamente, todo e parte do sistema, ou seja, neste caso Muindinga tinha a sua história de vida

passada que pelo fato de não saber nada dela, leva a que seja uma constante no seu pensamento e, issointerage com a relação estabelecida com Tuahir que, quer que ele apague por completo as memórias para

Guerra civil

ConflitoGoverno-Rebeldes

Sociedadedestruída

Relaçõesfamiliarese sociais

destruídas

Muinding a, Tuahire Kindzusem redesde apoio

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se tornar adulto mais rapidamente de forma a se tornar mais apto para lidar com as adversidades da vida.Por seu turno, Tuahir com a sua experiência de vida amargurada transmite esse mesmo sentimento aorapaz, mas simultaneamente tenta transmitir algum conforto e conhecimento muito devido à lembrançada perda do seu filho primogénito. Embora de forma pouco afectiva, Tuahir assume o papel de pai dacriança moribunda que salva e que chama também de Muidinga, encarregando-se de o ajudar a encontraros pais e o seu passado esquecido.

Muidinga apropria-se do passado de Kindzu, o que lhe dá algum conforto na identificação queaos poucos vai nascendo e, assim o sonho é o espaço em que o lugar ideal se apresenta, assim como ohomem que deve habitá-lo. Desta forma, Kindzu representa um terceiro elemento nesta “família” que

embora estando ausente, é uma presença contínua na vida deles e, que por sua vez tem as suas relaçõesem que se verifica a eliminação total de certos sistemas, como o de educação (e.g. assassinato dePadre André que dirigia a educação de Kindzu) e o de trabalho (e.g. os pais de Kindzu deixam de tercondições trabalhar, devido à guerra), que inviabiliza o desenvolvimento normativo e a perspectiva defuturo destes jovens. Relata-se ainda a dissolução do sistema familiar de Kindzu, a partir do momento

em que desaparece o irmão deste, levando à morte do pai e à depressão da mãe, que ressente Kindzu, o pior dos seus filhos , afastando-o ao ponto de o fazer partir. Aqui neste retrato da vida de Kindzuidentificam-se os subsistemas: 

  Individual: Constituído pelas determinantes pessoais de Kindzu (e.g, personalidade,história de vida pessoal, familiar e social)

  Conjugal: É o encontro de duas memórias históricas, de duas culturas diferentestransportadas das famílias de origem para um novo sistema: é necessário integrar amemória histórica, o que passa pela explicitação e negociação. Neste caso existem os paisde Kindzu que mais tarde sofreu uma dissolução provocada pela morte do pai.

Mais tarde, surge na vida de Tuahir, Farida a mulher pela qual se apaixona e, nessemomento tem que haver a integração da memória histórica de cada um deles que acarretagrandes custos para ambos.

  Parental: Com o nascimento do primeiro filho do casal (pais de Kindzu). Estesubsistema tem como função fundamental o apoio ao crescimento das crianças com vistaà sua socialização e autonomia/ /individuação, promovendo o seu desenvolvimento anível das expetativas, da satisfação de necessidades, as regras eficazes de funcionamento,adequação de comportamentos, estilo de lidar com os problemas, capacidade denegociação, integração afetiva e social. Neste caso, é um meio sócio-económico pobreem que não existe a possibilidade de garantir todas as condições necessárias. 

  Fraternal: Constituído pelos irmãos de Kindzu que são uma fonte de preocupação parao próprio aquando da guerra civil que assola Moçambique dado que a mãe ficacompletamente transtornada e, para salvar o filho mais novo, Juanito, resolve-o trancarno galinheiro para que os rebeldes o achassem como uma galinha e, assim seria umaforma de o salvar. Kindzu tenta impedir a mãe de cometer tal ato, mas em vão. Segundo,Minuchin os irmãos é “o primeiro grupo de iguais que o ser humano conhece.” 

Podemos ainda considerar, que a relação de Muidinga com Tuahir representa uma novaconfiguração de família sob a forma de adopção, embora de uma forma informal, já que

se traduz num subsistema familiar improvisado, onde se observa uma dinâmica pouco tradicional nasociedade tribal, que se estabelece entre os dois quando é a criança que lê as histórias ao velho, Tuahir,

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que volta a sonhar e acreditar na vida. Por sua vez, Tuahir influencia a formação de Muidinga, não sómantendo-o o seguro, como iniciando-o no ritual de passagem para a vida adulta, com base noenfraquecimento do corpo e da memória, de forma a pôr de lado a sua infância para assumir o papel deadulto.

Culturalmente, a história narrada nos cadernos de Kindzu constituem um subsistemasimbólico dado que transformam a paisagem à sua volta, tornando-a com mais brilho e mais optimista.

 Todos os sistemas envolvidos nesta teia narrativa convergem dado que a história de Kindzutranscrita nos cadernos conduzem a uma alteração nos dois sujeitos que a lêem, modificando a suaforma de vivenciar o presente, abandonando o mochimbombo, tentando reconciliar o passado, o presente eo futuro a cada passo da conquista das suas vida.

Conclusão A análise de “Terra Sonâmbula” à luz das perspetivas construtivistas e sistémicas, revelou-se muito

interessante, na medida em que transformou a minha visão sobre a obra dado que deu azo a que fizesseuma nova interpretação da narrativa, integrando os elementos teóricos destes modelos. Foi umaoportunidade para perceber que muitas das obras literárias ficcionais que lemos durante a nossa vidapodem ser reinterpretadas com base nos modelos teóricos que vamos tomando conhecimento.

 Acrescento ainda que, a escrita de Mia Couto e a intensidade que é atribuída a cada personagemcontribuem para que sejamos transportados para as realidades daqueles protagonistas e, com base nasexpressões sábias e profundas, por eles proferidas, permitem que haja uma perfeita harmonia ecorrespondência entre o que os autores dos modelos defendem e a realidade desses sujeitos ao invés deexistir uma segmentação definida entre os dois lados. E, por isso existe um paralelismo com o que se

passa na prática psicológica dado que o que se pretende é uma interligação de conhecimentos que fluamde forma natural embora intencionalizada.Desta forma complementa-se uma visão mais centrada no indivíduo, dada através das perspectivas

construtivistas com uma visão mais abrangente de toda a realidade, através das perspectivas sistémicas e,desta forma assiste-se a um equilíbrio entre a dialéctica de construção individual e a construção sistémica,formando uma teia emaranhada entre as duas pontes.

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Referências Bibliográficas

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  Guidano, Vitorio (1991). The self process: toward a post racionalist cognitive therapy . New York: Tile

Guilford Press.

  Mahoney, M. (1988) Recent Developments in Cognitive Approaches to Counseling and Psychotherapy. 

Division of Counseling Psycology, Vol. 16, Nº2, 190-234

  Relvas, A. P. (1996). O ciclo vital da família. Perspectiva sistémica . Porto: Afrontamento

 Sampaio, D.(1985). Terapia familiar. Porto: Afrontamento