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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder
Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008
Mulher, professora, doente: uma análise de wit
Rafael Siqueira de Guimarães (Universidade Estadual do Centro-Oeste) Processo saúde-doença; Gênero; Corporalidade ST 59: Corpo, Gênero e Saúde: reconfigurações nas representações sociais de corpo e gênero no contexto pós-moderno
Introdução
O cinema é, muitas vezes, visto como uma forma de comunicação de massa, simplesmente
reproduzindo ideologias dominantes. Essa abordagem é muito comum em círculos de crítica de
cinema e em análises sociológicas a respeito; o filme é, então, considerado um produto de uma
indústria cinematográfica (MENEZES, 2001). Nessa concepção, claramente influenciada pela
sociologia da arte de T. W. Adorno, o cinema é compreendido como um meio para a reprodução da
ideologia, de forma massificada e sem criatividade, estando a serviço de uma estrutura maior,
sempre como uma reprodução de seus valores e suas idéias, a fim de fazer com que a massa se
identificasse com essas idéias, aceitando-as.
Já para Tarkovsky (1998), o cinema é resultado do que ele chama de “movimento do
espírito”. É uma arte capaz de expressar pensamento vivo, através do movimento das imagens, de
seus personagens, de suas histórias, não como movimento e extensão, mas como “humano”, um
movimento do espírito humano, ainda assim não no sentido racionalizado de tempo e pensamento,
mas de forma a abrir para as questões inconscientes, humanas, de lógica simbólica, mítica.
A perspectiva aqui utilizada passa a considerar que, através da compreensão dos elementos
simbólicos representados em um filme, é possível se realizar discussões a respeito de questões
humanas, pois a prática do “fazer cinema” passa por uma atividade essencialmente humana, que
busca desvelar questões que a esse homem preocupam.
Como ponto de partida para a análise de algumas questões, realizo a exposição das relações
do filme “Uma lição de vida” (WIT, 2001). O modo de ser da personagem principal, em sua relação
com o corpo, com seu processo de adoecimento e na contraposição com o modelo biomédico de
doença são tomados como referência para tal análise.
Esse filme de Mike Nichols (2001) tem como principal personagem Vivian Bearing
(interpretada por Emma Thompson). É uma professora de literatura que recebe a notícia que tem um
câncer adiantado no ovário e deve, imediatamente, se submeter a um tratamento experimental,
agressivo e longo. Para sua enfermidade não há cura, seu médico então a expõe a esse tratamento,
considerando como sendo a única atitude possível a ser tomada.
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Corpo, gênero, ciência e modelo biomédico
Segundo Citeli (2001), no decorrer da história da ciência, diferentes formas de dominação
masculina foram produzidas no campo científico a fim de naturalizar as diferenças sexuais e de
comportamento entre homens e mulheres, desde os primeiros estudos de Darwin sobre a evolução
das espécies, tirando do ser humano um status anteriormente dado a ele, devido às concepções
culturais da época. Para a autora, várias formas de questionamento deste conhecimento já se
apresentaram, mesmo antes dos chamados “estudos feministas” e, na atualidade, estudos pós-
modernos têm se dedicado a desmistificar o binômio sexo/gênero, produzido para explicar o sexo
como uma categoria anatômica/fisiológica e o gênero, como cultural/social.
Com isso, a autora quer identificar que o próprio conhecimento produzido pelas ciências
naturais, que distinguia homens e mulheres a partir de suas características físicas, transferindo esses
conhecimentos aos demais campos de estudo, eram também influenciados pelas características
culturais nas quais esses conhecimentos foram produzidos (CITELI, 2001). O mesmo tipo de
conhecimento sobre o binômio sexo/gênero produziu o modelo biomédico de tratamento das
doenças.
Segundo Helman (2003), por modelo médico entendemos aquele que concebe o processo
saúde/doença com a ênfase no sintoma (esse entendido como um sinal da doença), nas questões
bioquímicas e na saúde como ausência de uma enfermidade. Por conta dessa cientifização do
sistema de atendimento à saúde, as relações entre aquele que cuida e aquele que é cuidado são
relações distantes e desumanizadas, são relações materializadas. A doença, nesse contexto, é o foco
a ser tratado, a condição é que deve ser atacada.
No filme analisado, há uma representação desse modelo de atendimento ao paciente com
câncer. Vivian é submetida a um tratamento experimental, no qual a relação entre ela e os
profissionais de saúde se dá por meio da relação do profissional com a doença dela. Um de seus
médicos é um antigo colega na Universidade e o outro foi um ex-aluno seu. A relação deles com o
corpo de Vivian é uma relação desumanizada, desvinculando-se aquele tumor a ser tratado da
paciente. O reducionismo fica claro em todo o conjunto de relações entre médico – paciente. Todos
os dias, ao entrar no quarto de Vivian, os médicos fazem a mesma pergunta “Você se sente bem
hoje?”. O que significa, nesse modelo, sentir-se bem? O remédio está agindo, os sintomas
desaparecendo, o tumor diminuindo. Esse é o tipo de relação estabelecida pelo modelo biomédico,
reduzindo o ser aos sintomas. Vivian, em uma das passagens mais emocionantes do filme, questiona
o modelo da biomedicina. “Não é o câncer que está me fazendo mal, mas o tratamento que é
ofensivo à minha saúde”. O que é saúde? Saúde pode ser compreendida além desse modelo que
enfatiza o sintoma? Pode-se considerar a integralidade do homem?
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Ressignificações pelo adoecimento
Vivian é internada para o tratamento e o foco do filme é o cotidiano do hospital e as
relações de Vivian com a equipe médica; ela está muitas vezes sozinha, falando de si mesma, ou na
relação com os profissionais da saúde. Ao mesmo tempo que Vivian remete-se a memórias de sua
vida como professora, demonstrando sua impessoalidade racional para com seus alunos, ela vai, da
mesma forma, buscando racionalizar sua compreensão acerca de seu processo de adoecimento. Lida
com seu câncer da mesma forma com que lidava antes com seus alunos, da mesma forma com que
os médicos lidam com a sua condição. Isso coopera com as considerações de Dahlke (1999), a
doença então opera no sentido de levar Vivian a compreender seu próprio adoecimento e realizar a
interpretação, a parir do próprio padrão de seu adoecimento a crescer internamente, pois o padrão
“racionalizado” de Vivian vinha acontecendo em todas as suas relações humanas, na sua relação
com a velha professora, que certa vez a disse “vá e faça amigos, converse com as pessoas, vá se
divertir” e na relação com seus alunos, que eram tratados como seres que deveriam suportar sua
matéria, estar preparados o tempo todo, que deveriam seguir as regras. O médico residente que a
tratava também havia sido seu aluno e numa passagem lembrou que “todos ‘beijavam’ o chão que
ela pisava”, demonstrando a força de sua intelectualidade, o esquecimento com as relações humanas
que operava na vida de Vivian.
Ao abarcar a dimensão simbólica de seu processo de vida/morte, Vivian passa a entender de
maneira diferente esse processo, buscando compreender a partir de sua realidade percebida, através
dos significados dados por ela para o processo. Vivian então transcende seu corpo, mudando de
posicionamento em relação à sua condição (câncer).
Vivian, a personagem do filme em questão, lida com o seu adoecimento e com a
possibilidade de sua morte utilizando comportamentos desafiadores em relação aos profissionais,
como responder ironicamente às questões feitas por eles, se recusar a ir realizar exames, olhares
desmerecendo os médicos em situação de consulta clínica. O padrão, ou a forma como Vivian
compreende seu processo de adoecimento (DAHLKE, 1999) se dá no processo de racionalização
dos símbolos, feita por ela mesma, pela ironia, pela explicação meticulosa a respeito de seu
tratamento, muitas vezes olha para a câmera e explica, com detalhes, cada procedimento médico,
tratando como uma “coisa” aquilo que está vivendo. Ela transformou-se de sujeito (professora) em
objeto (enferma). Essa mudança de posição a faz ressignificar inclusive sua posição como mulher e
como professora, já que leva à compreensão de produtora/reprodutora de racionalizações
construídas a partir de binômios professora/alunos, saudável/doente, sujeito/objeto.
Essa forma de “luta heróica” da personagem é representada na forma pela qual ela passa a
lidar com o tratamento que lhe foi proposto. A ironia, o descaso, a representação de força e
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manutenção da forma de reagir ao que lhe é colocado fica extremamente claro. Muitas vezes
sozinha, ela dialoga com a câmera, dando respostas bruscas aos profissionais de saúde envolvidos
em seu tratamento, provocando, como se tivesse com uma espada, esses profissionais. Ela age pela
negação da morte, orientada pelo herói que está por trás de seu comportamento.
Ao vivenciar o tratamento, Vivian experiência cada vez mais a proximidade com a morte
evidente e com o insucesso de seu tratamento. A condição de lutadora, desafiadora dos profissionais
passa por uma mudança cíclica, pois Vivian se aproxima mais da enfermeira que cuida de seu
tratamento, passa a demonstrar mais proximidade em relação a ela.
A compreensão desses dois momentos não pode ser feita separadamente, como se fossem
situações “estanque”, mas devem ser entendidas como um campo de tensão entre os dois pólos. A
maneira com a qual Vivian lida com a questão ocorre de forma individual e única e não
universalizante. Segundo Oliveira (2001), a corporalidade não é:
Um locus, mas uma confluência da ordem natural, social e cosmológica reveladora de informações mais abrangentes sobre nós mesmos, nos são impressas no corpo para além de uma indagação sobre a biologia do corpo, numa ontologia do corpo, numa mitologia do corpo” (p. 634)
É pelo corpo de Vivian que perpassa essa mudança de evidências simbólicas. É através do
corpo que muda, que experiencia a proximidade da morte, que Vivian passa a (re) significar sua
própria compreensão de ciência, de tratamento, de saúde, de adoecimento, de ser professora e
mulher. Sua relação com o seu universo simbólico está ocorrendo, através de seu corpo, de sua
doença, e as tensões provenientes dessa relação são identificadas no sofrimento de Vivian. A
aceitação da morte (já descrita anteriormente por Kübler-Ross, 1995), passa a ser uma nova
configuração na sua forma de lidar com a doença, compreendendo-a como parte de um processo, no
qual Vivian não é mais a “grande professora”, detentora do saber sobre os outros, mestre de seus
alunos, mas é parte do todo, e que, sua vida e sua morte estão totalmente interligadas, num processo
único do ser.
O “tanto dentro quanto fora” deveria, nesse processo, ser vivenciado. E é exatamente na
contradição que está o grande dilema de sua doença, que não corresponde simbolicamente à eficácia
apresentada pelos médicos, que “cuidam” de seu tratamento. O câncer está sendo tratado e ela não
se sente tratada. O câncer é ela e ela é o câncer? Há um apartamento de ambos? A lógica cartesiana
visa a cura do câncer para o restabelecimento da saúde de Vivian (e para isso se vale de todo
qualquer procedimento, vários tipos de drogas, isolamento dos demais pacientes, controle dos
sintomas), enquanto que, na lógica simbólica de Vivian, esse tratamento é que seria o principal
responsável por seu desequilíbrio, pois ela precisaria ser tratada integralmente, deveria ser
compreendida como um ser, um todo e sua parte (câncer) é parte desse todo, é reflexo dele.
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Considerações finais
Vivian se relaciona com seu processo de adoecimento de diferentes formas simbólicas,
como já foi exposto, desde o início. Sua relação e sua forma de compreensão da doença, de seu
corpo, de sua morte, da forma como o tratamento está sendo realizado demonstram que não se pode
entender esse fenômeno com a racionalidade biomédica.
Existiria uma única cientificidade moderna? Esse modelo de tratamento e ação médica é, de
certa forma, colocado em dúvida no filme. Ao se contrapor à forma de tratamento que vem sendo
realizada, por meio de ironia, mas a mesmo tempo de submetendo a esse tratamento, a personagem
vive a tensão entre essas duas possibilidades. Ela não se aproxima da enfermeira (mulher) por sua
identificação de gênero, mas porque esta possibilita uma interlocução acerca de seu sofrimento
advindo de seu adoecimento, sofrimento causado muito mais pela racionalidade científica do que
pela própria doença. Racionalidade científica da qual Vivian, como professora, não esteve alheia,
pelo contrário, foi reprodutora, como professora.
O ser mulher, em sua história, era o ser professora. Ao mesmo tempo que Vivian não
reproduzia alguns padrões estabelecidos pela dominação masculina ao ser mulher (CITELI, 2001),
ela se identificava com a potência do ser mulher na dominação de mestre de seus alunos. Ao se
colocar na posição de estudada e não mais de estudiosa, percebe como as diferentes posições estão
convivendo ao mesmo tempo. Seu corpo é registro tanto de professora como de doente e, assim,
mulher, não fechada numa identidade fixa, mas conduzida num processo de conhecimento e de
auto-conhecimento.
A personagem Vivian vive, a todo momento, a tensão entre seu processo interior que “vive”
o adoecimento/tratamento, “o sentido do adoecer” (OLIVEIRA, 2001) e o objetivismo
predominante que “prova” a ela, o tempo todo, que seu tumor está sendo “curado” (OLIVEIRA,
2001). O que significa cura? O questionamento da personagem se dá a todo momento, na lógica
simbólica. Numa de suas últimas repostas à tão famigerada pergunta “Está tudo bem hoje?”, sua
reposta é “Eu não acredito”. Em que ela não acredita? Em sua condição? Em seu tratamento? Em
sua saúde? Ela demonstra que não aceita mais essa compreensão, esse modelo de relação. Seu corpo
foi reduzido a um tumor, o ser foi reduzido a uma pesquisa, sua saúde foi reduzida aos bons
resultados com os medicamentos. Não acredita na realidade objetiva apresentada pelos médicos,
pois sua compreensão simbólica a leva a vivenciar outra forma de adoecimento.
E saúde, o que significa para ela? Acreditar, simbólica e inconscientemente na relação do ser
com a sua dimensão simbólica não é uma forma de transcender, inclusive, à materialidade do
corpo? Colaboram com isso os depoimentos e estudos de Kübler-Ross (1995). Somos levados, pela
lógica do modelo biomédico, a acreditar que estar saudável é ter ausência de sintomas e que, se
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nosso corpo está se deteriorando materialmente, estamos no fim de nossa materialidade e que o fim
dessa materialidade é o fim do ser.
Ao propor que não seja feita a ressucitação de seu corpo, caso seu coração pare, ela rompe
definitivamente com o tratamento dado pelo modelo biomédico, com a razão objetiva imposta por
este. Aceitando seu processo de morrer, ela está aceitando sua relação simbólica com o mundo no
qual está inserida. E, como não poderia deixar de ser, como o produtor é produto e produzido ao
mesmo tempo, o filme mostra uma tentativa desesperada dos médicos para que Vivian seja
ressucitada no quarto. Apesar de sua escolha já ter sido feita, o mito da racionalidade científica
opera no modelo biomédico de saúde, a enfermeira-chefe conclama que “eles estão aqui para salvar
vidas”. Salvar vidas significa manter corpos funcionando, ela diz isso apresentando a opção da não-
ressucitação para Vivian.
Referências Bibliográficas
CIRLOT, J. E. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes, 1984.
CITELI, M. T. Fazendo diferenças: teorias sobre gênero, corpo e comportamento. Revista de Estudos Feministas, v. 9, n. 1, Florianópolis, 2001, p. 131-145.
DAHLKE, R. A doença como linguagem da alma. São Paulo: Cultrix, 1999.
HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. 4 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.
KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
MENEZES, P. Problematizando a “representação”: fundamentos sociológicos da relação entre cinema, real e sociedade. In: RAMOS, F. P.; MOURÃO, M. D.; CATANI, A.; GATTI, J. Estudos de cinema 2000 Socine. Porto Alegre: Sulina, 2000, p. 333-348.
OLIVEIRA, E. R. Eficácia simbólica de cura e razão analógica. Revista AntHropológicas, A. 6, v. 13, Série Imeginário, p. 607-638, Recife, 2001.
TARKOVSKY, A. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Filme
UMA LIÇÃO DE VIDA (Wit). Direção: Mike Nichols. Produção: Simon Rosanquet. Intérpretes: Emma Thompson, Christopher Lloyd, Eillen Atkins e outros. Roteiro: Mike Nichols e Emma Thompson. Música: Nic Ratner. Los Angeles: HBO Entreprises, 2001. 1 videocassete (99 min.), VHS,son. color. Produzido por Flash Star Home Video.