162
Os quatorze artigos que formam este segundo volume contemplam a reflexão teórica e metodológica, seja a reflexão aplicada a um objeto, seja ainda a articulação entre uma e outra — e buscam responder as perguntas norteadoras, quais sejam: 1. Quais são as especificidades de cada abordagem? Que interfa possui co m outras correntes e/ou disciplinas? Que objetos privilegia em suas pesquisas? 2. Que categorias, nas várias abordagens, têm-se mostrado mais produtivas na análise de discursos de diferentes gêneros, em domínios diversos? 3. Quais são as tendências mais recentes observadas em cada disciplina e quais são os ganhos (ou eventuais perdas) dessas "novas" tendências em relação às tendências anteriores? Com a coletânea de artigos apresentada neste segundo volume, esperamos te r complementado, de alguma forma, o volume anterior, dando ao leitor uma visão geral de algumas (outras) maneiras de se fazer "análise do discurso" hoje, nas universidades e centrosde pesquisa do Brasil e do exterior. ISBN 978.85.209.2 52 EDITORA NOVA FRONTEIRA ANALISES DO DISCURSO VOIUMEZ ORGANIZADORES Glaucia Muniz Proença Lara Ida Lúcia Machado Wander Emediato AUTORES Anne Hénault Antoine Auchlin Arnaldo Cortina Beth Brait Catherine Kerbrat-Orecchioni Christian Plantin Claude Chabrol Denize Elena Garcia da Silva Diana Lu z Pessoa de Barros Dylia Lysardo-Dias Emília Mendes Helena Nagamine Brandão Ida Lúcia Machado Janice Helena Chaves Marinho Mareei Burger Maria Leda Pinto Viviane Ramalho

Análise do Discurso Hoje - Proença; Machado; e Emediato (Orgs.)

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Os qua torze a r t igos que formam es t e s egundo vo lum e contemplam

a reflexão teórica e metodológica , seja a r e f lexão ap l ica d a a um

obj e to , se ja a i n d a a a r t icu lação ent re um a e outra — e buscam

r e sponde r as pe rguntas nor t eado ras , qua i s s e j am:

1. Quais sã o as esp ec i f ic id ad es de cada abordagem? Que interfa

possui co m outras correntes e/ou d i s c ip l ina s ? Q ue objetosp r i v i l e g i a em suas pesquisas?

2. Que categorias , nas várias abordagens, têm-se mostrado mais

produt ivas na a n á l i s e de d i scursos de d i fe ren t e s gêne ros, emd o m í n i o s diversos?

3. Quais são as tendências mais recentes observadas em cadad i s c i p l i na e qua i s s ão os ganho s (ou even tua i s pe rdas ) des sas

"novas" t endênc ia s em re l a ç ão à s t endên c ia s an t e r io re s?

C o m a cole t ânea de a r t igos apresen tada nes t e segundo vo lu me ,espe ramos te r c o m p l e m e n t a d o , d e a l g u m a f o r m a , o v o l u m e

ante r io r , dando ao l e i t o r uma v i são ge ra l de a l g u m a s (outras)mane i ra s de s e fazer "aná l i s e do d i scurso" ho j e , nas un ive rs idades

e cen t ros de pesqui sa d o Brasil e do exter ior .

I S B N 978.85.209.2 52

E D I T O R A

N O V AF R O N T E I R A

A N A L I S E SD O D I S C U R S O

VOIUMEZ

O R G A N I Z A D O R E S

Glaucia Muniz Proença LaraIda Lúcia Machad o

Wan d er Emed ia to

A U T O R E S

A nne Hénault

A ntoine A uchl inArna ldo Cortina

Beth Brai tCatherine Kerbrat-Orecchioni

Chr i s t i an P l an t inCla ude Cha bro lDenize Elena Garcia da Si lvaD iana Lu z Pessoa de Barros

Dylia Lysardo-DiasEmília Mendes

H elena N agamine B randãoId a Lúcia MachadoJ a n i c e H e l e n a Chaves Ma r inhoMaree i B urge rMa r i a Leda PintoViviane Ramalho

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A diversidade de modelos teóricos no campo

da Análisedo Discurso, be m como su a

aplicabilidade a distintos corpora apresentados

nesta obra, apontam formas múlti plas de

abordagem e leituras transversalizadas, o

que revela um vast íssimo campo disc ip l inar

em permanente movimento. Encontram-

se aqui contempladas algumas de suas

principais correntes, criticamente revistas

e discutidaspor autores e pesquisadores

brasileiros e estrangeiros, com reconhecido

transito acadêmico no cenário internacional ,

relativamente a suas áreas temáticas de

especialidade.

A leitura de A N Á L I S E S D O D I S C U R S O H O J E - v. 2

desperta, dentre outros, alguns questionamentos

bastante atuais, em termos dos desdobramentos

futuros desse e de outros marcos teóricos. Sãoeles: em que medida os campos disciplinares

não-convencionais — inclui-se

aí a Análise do Discurso — promovem,

de fato, os deslizamentosna s chamadas

fronteiras do conhecimento para buscar os

avanços pretendidos no domínio da ciência?

possível l idar com as múl t ip las dimensões da

complexidade de fenômenos e objetos — no

caso em tela, os discursos — sem transgredir

os princípios metodológicos estabelecidos de

man e i ra intradisciplinar ou até mesmo se m

comprometer sua sustentabilidade teórica? Que

tendências se identificam como predominantes

na AD hoje e quais são as perspectivas desse

campo teórico para dar conta das produções

discursivas qu e circulam e se proliferam no

mundo contemporâneo? Tanto a dialogicidade

interna da obra como a sua projeção para

outros textos e discursos permite desvelar

esses questionamentos de uma forma inédita,

profunda e, ao mesmo tempo, cuidadosa.

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D O D I S C U R S OVO L U M E S

O R G A N I Z A D O R E S

Glaucia M uniz Proença LaraId a Lúcia M achadoW an d er Emediato

4

AUTORES

A n n e Hénault

Antoine Auchlin

Arnaldo Cort inaBeth Brai t

Catherine Kerbrat-OrecchioniChristian Plantin

Claude Chabrol

Denize Elena Garcia da SilvaDiana Luz Pessoa de B arrosDylía Lysardo-DiasEmit ia MendesHelena Nag am i n e B ran d ãoIda Lúcia Machado

Janice Helena Chaves MarinhoMareei Burger

Maria Leda Pinto

Viviane Ram alho

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© 2008,b y Glauc ia Muniz Proença Lara, Id a LúciaM a c h a d o e Wander Emediato

Direitos de ediçãoda obra em língua portuguesa no Brasila dqui r idos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Todosos direitos reservados. Nenhuma parte desta obra podese r apropriada e estocada em sistema de banco de dadosou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja

eletrônico, de fotocópia, gravação etc., se m a permissãodo detentor do copirraite.

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE

LIVROS. RJA551 Análises do discurso hoje, volume 2 / Glauciav. 2 Muniz Proença Lara, Id a Lúcia Machado,Wander

Eme dia to (organizadores). - Rio de Janeiro :Nova Fronteira, 2008. - ( Lu cern a)

Inclui bibliografiaI S B N 978-85-209-2152-4

1 .Análise do discurso.2 . Linguagem e línguas.I. Lara, Glaucia Muniz Proença. II . Machado, Id aLúcia . III. Emediato,Wa nde r . IV Série.

CDD:401.41CDU:81'42

SUMARIO

Prefácio 7

A argumentação biface 13

Christian Plantín (GNR.S - Universidade deLyon II)

Semiótica e retórica: um diálogo produtivo 27

Diana Lu z Pessoa de Barres (USP/UPM/LEI)

Os livros mais vendidos: uma proposta de reconstitui cão

do ethos do leitor brasileiro contemporâneo 41

Arnaldo Cortina (FCL-UNESP/CAr)

Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy 69

Anne Hénault (Universidade de Paris IV — Sorbonne)

Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna 83

Antoine Auchlin (Universidade de Genebra)

Mareei Burger (Universidade de Lausanne)

Memória, linguagens, construção de sentidos 115

Beth Brait (PUC-SP/USP/CNPq)

Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro:

uma construção identitária 133

Helena Nagamine Brandão (USP)Maria Leda Pinto (UEMS)

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Análises do discurso hoje

Analise discursiva da parodização dos provérbios

na mídia impressa 157

Dylia Lysardo-Dias (UFSJ)

As palavras de uma Análise do Discurso 177

Ida Lúcia Machado ( U F M G )

Por um remodelamento das abordagens dos efeitos de real,

efeitos de f icção e efeitos de gênero 199

Emília Mendes ( U F M G )

Humor e mídia: definições, gêneros e cultura 221

Clauâe Chabrol (GRPC, Universidade de Paris III)

A construção mútua das identidades nos debates políticos na

televisão 235

CatherineKerbrat-Orecchioni

(Universidade de Lumière Lyon II)Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia 265

Denize Elena Gama da Silva (UnB)

Viviane Ramalho (UnB/UCB)

A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos 293

Janice Helena Chaves Marinho ( U F M G )

Sobre os organizadores e autores 313

PREFACIO

Mantemos aqui a proposta explicitada no primeiro volume, ou seja, a

de buscar apresentar para o leitor um painel diversificado de algumas

análises do discurso em desenvolvimento na atualidade e, ao mesmo

tempo, confrontá-lo com os diferentes corpora que vêm sendo estu-

dados pelos pesquisadores da área. Se algumas abordagens não fo ram,

mais uma vez, contempladas, nunca é demais repetir que não temos

a pretensão de exaustividade, dada a amplitude do nosso domínio de

investigação: o discurso.

Os quatorze artigos que formam este segundo volume contemplam

as mesmas vertentes do anterior — seja a reflexão teórica e metodoló-

gica, seja a reflexão aplicada a um objeto, seja ainda a articulação entre

um a e outra — e buscam responder às mesmas perguntas norteadoras,quais sejam: 1) Quais são as especificidades de cada abordagem? Que

in terfaces possui com outras correntes e/ou disciplinas? Que objetos

privilegia em suas pesquisas? 2) Que categorias, nas varias abordagens,

tem-se mostrado mais produtivas na análise de discursos de diferentes

gêneros, em domínios diversos (como o político, o religioso, o didáti-

co, o científico, entre outros)? 3) Quais são as tendências mais recentes

observadas em cada disciplina e quais são os ganhos (ou eventuais per-

das) dessas "novas" tendências em relação às tendências anteriores?

Dentro desse quadro, Christian Plantin, destacando a importância

da argumentação no/para o discurso, mas ao mesmo tempo consta-

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Análises do discurso hoje

tando a diversidade de estudos nesse domínio, faz dialogar as diferen-

tes correntes para estabelecer suas convergências e divergências, bem

como suas contribuições específ icas . Pontuando que a atividade ar-

gumentativa é uma atividade complexa, que implica a articulação de

saberes e comportamentos diversos e heterogêneos, o autor constata,

com pesar, que embora os programas, na França, proponham o ensino

da argumentação nos colégios e liceus, não existe no país nenhum

curso voltado para a ref lexão dos mestres, situação, diga-se de passa-

gem, bastante próxima da nossa.

A s contribuições de Diana Luz Pessoa de Barros,Arnaldo Corti-

na e Anne Hénault situam-se no domínio da Semiótica do Discurso.

Barros volta-se para o exame das relações de simbolização e semi-sim-

bolização que se instauram entre expressão e conteúdo na construção-

dos sentidos do texto. Analisando anúncios de instituições bancárias,

mostra como essas relações integram o fazer-persuasivo-discursivo doenunciador, o que comprova o diálogo produtivo que se estabelece

entre semiótica e retórica. Também articulando essas duas vertentes,

Cortina propõe construir o ethos do leitor brasileiro contemporâneo,

por meio do estabelecimento de uma lista dos livros mais vendidos no

Bras i l entre os anos 1966 e 2004, lista essa que a Semiótica Discursiva,

enquanto perspectiva teórico-metodológica utilizada, permite com-

preender como um texto passível de interpretação. Hénault, enfim,

parte de uma reflexão sobre as grandes etapas das recentes pesqui-

sa s em semiótica para examinar a dimensão d o sentir, a forte presença

emocional e empática nos escritos — mais especificamente, em duas

monografias sobre os pintores Giacometti e Goya — do poeta, ensaísta

e professor do Collège de France,Yves Bonnefoy.

Na articulação entre análise do discurso e ensino, o artigo de An-

toine Auchlin e Mareei Burger parte do princípio de que a retroinfor-

mação do aluno, quanto a suas produções e aos problemas de leitura

que elas podem desencadear, desempenham um papel essencial na sua

formação. Propõem, assim, uma abordagem do discurso centrada noestudo da competência discursiva, uma vez que ela deixa transparecer

Prefácio

os contornos de uma identidade singular: o autor dos erros (uzalunu),

que não se confunde com a pessoa do aluno propriamente dita.

N o âmbito do que denomina análise/ teoria díalógica do discurso, a

partir das contribuições dos trabalhos de Bakhtin e de seu Círculo,

Beth Brait apresenta algumas formas de produção do sentido em tex-

tos que mobilizam discursos verbais, visuais e verbo-visuais, tendo amemória e seus sujei tos como tema privilegiado. A autora comprova,

assim, através desse "exercício", que a vertente teórica escolhida, que

se insere no vasto conjunto de pesquisas incluídas sob o rótulo Análise

do Discurso, assume forma, perfil e consistência própria.

O artigo de Helena Nagamine Brandão & Maria Leda Pinto e o

de Dylia Lyzardo-Dias integram o que Dominique Maingueneau cha-

ma de "tendências francesas de análise do discurso". Brandão e Pinto

discutem o discurso do homem pantaneiro, da perspectiva discursiva e

da perspectiva de Lakoff eJohnson (2002) sobre a metáfora, compreen-

dida como um fenômeno de linguagem de valor cognitivo. Articulan-

do os conceitos metafóricos desses autores com os aspectos teóricos

da análise do discurso na abordagem das falas pantaneiras, as analistas

objetivam estruturar as f o r m a s de percepção de mundo e a atuação do

pantaneiro no seu cotidiano para delinear a identidade desse sujeito.

Já o texto de Lyzardo-Dias analisa a paroclização de provérbios por

jornais impressos como um fenômeno de reescrita e um caso de hete-

rogeneidade enunciativa.Trata-se, segundo a autora, de uma estratégiadiscursiva marcada pela insubordinação diante do convencional por

meio da inversão satírica de um enunciado culturalmente produzido,

o que implica a ré-configuração de universos de referência e de visões

de mundo convencionalizados.

Ida Lúcia Machado aborda a Semiolingüística enquanto teoria ana-

htico-discursiva, ressaltando suas bases lingüísticas, que vão de par comseus aspectos sociocríticosjá que tal teoria leva em conta o produtor

de determinados atos linguageiros, o local e a época em que tais atos

toram produzidos e com que finalidade (visada). Para ilustrar o que foi^to, a pesquisadora toma como exemplo uma canção italiana e suas

 

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Análises do discurso hoje

sucessivas versões para o francês e para o português. Ainda no quadro

teórico-metodológíco da Teoria Semiolingüística, Emília Mendes faz

urna releitura dos efeitos de real e dos efeitos de ficção, a partir de sua

definição na obra Langage et discours (1983), de Patrick Charaudeau,

incluindo ainda um terceiro elemento: o efeito de gênero, definido

na Grammaire du sens et de fexpression (1992) do mesmo autor. Nessareleitura, usa os instrumentos oferecidos pelo estágio atual da teoria,

buscando mostrar que esses "efeitos" podem auxiliar no estudo de di-

versos corpora, sejam eles de estatuto fac tual ou ficcional. Assumindo

contribuições de Patrick Charaudeau, mas também de outros estudio-

sos que se debruçaram sobre o humor (Anne Marie Houdebine, Guy

Lochard, Jean Claude Soulages, entre outros), Claude Chabrol busca

caracterizar o ato humorístico, tomando como corpus textos midiáti-

cos (caricaturas, anúncios publicitários) produzidos na Espanha e na

França.

No domínio da análise do discurso e, mais especificamente, no

da análise do "discurso em interação", Catherine Kerbrat-Orecchioni

analisa um debate político entre Nikolas Sarkozy, então ministro do

Interior, e Jean Marie Lê Pen, presidente do partido Front National

(de extrema direita), transmitido pelo canal de televisão France 2,para

mostrar como as noções de identidade (mais ampla) e de ethos (mais

restrita) "funcionam" e se constróem mutuamente nas trocas verbais.

Finalmente, duas análises do discurso que não haviam sido con-templadas no primeiro volume, marcam aqui sua presença. Trata-se da

Análise de Discurso Crítica (ADC) e do Modelo de Análise Modular

do discurso (MAM). A primeira vem representada no artigo de De-

nize Elena Garcia da Silva e Viviane Ramalho, o segundo no texto

de Janice Helena Chaves Marinho. Para situar a ADC na esteira dos

escudos do discurso, Silva e Ramalho apresentam, inicialmente, a traje-

tória dessa disciplina, marcada pelo privilégio dado à linguagem como

prática social e ao discurso como objeto historicamente produzido e

interpretado em termos de sua relação com as estruturas de poder e

com a ideologia. Em seguida, assumindo o diálogo que existe entre a

W

P r e f á c i o

(FAIRCLOUGH, 2003) e a Lingüística Sistêrnico-Funcional (HALLI-

D A Y , 1994), as autoras mostram sua aplicabilidade teórico-analítica em

textos que versam sobre a representação da pobreza nas ruas pela mídia

impressa e sobre o discurso da propaganda brasileira de medicamen-

tos.Já o artigo de Marinho, com base no MAM, segundo o qual é na

forma de organização relacionai que se estudam as relações textuais eo papel dos conectores na sinalização ou na determinação dessas rela-

ções, analisa o uso de conectores em dois gêneros textuais pertencen-

te s ao domínio jornalístico — o texto de opinião e a notícia.

Com a coletânea de artigos apresentada neste segundo volume,

esperamos ter complementado, de alguma forma, o volume anterior,

dando ao leitor uma visão geral de algumas (outras) maneiras de se fa-

zer "análise do discurso" hoje, nas universidades e centros de pesquisa

do Brasil e do exterior.

Os organizadores.

li

 

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A ARGUMENTAÇÃO BIFACE

Christian Plantin (CNRS - Universidade deLyon U)

Os estudos de argumentação têm sua origem em três disciplinas clássi-

cas: a retórica, a lógica e a dialética. Elas constituem uni fundo sempre

estimulante para a reflexão,já que o desenvolvimento das competên-

cias lingüísticas que elas se propõem a organizar — falar bem, racioci-

nar bem e dialogar bem — não perderam sua atualidade.

1. Diversidade e unidade

O ano de 1958 é urna data-chave: é a data do aparecimento de duas

obras "refundadoras": Lê s usages d e Targutnentation, de Stephen EToul-

min, e Lê traité de Y argumentation: I a nouvdle rhétorique, de Chaim Perel-

rcian e Lucie Olbrechts-Tyteca. Os estudos de argumentação foram emseguida estruturados e enriquecidos com novas contribuições: a nova

retórica, a nova dialética, a teoria da argumentação na língua, a teoria

da s falácias, a lógica informal, a lógica substancial, a lógica natural, até

° estudo do raciocínio "desconstruído". Cada urna dessas escolas situaa argumentação num espaço diferente da linguagem — na língua, no

^scurso, na comunicação, nas interações, etc. — e constrói, em con-

seqüência, o objeto, os métodos e os objetivos desse estudo de ma-

deira específ ica. Essas diferenças de perspectiva trazem conseqüênciaslmportantes sobre o que se deve entender por desenvolvimento das

ftipetencias argurnentativas: avaliação, organização do ensino teórico

 

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Análises do discurso hoje

ou prático, relação da argumentação com a demonstração, sua relação

com as emoções — em resumo, tudo o que se refere às "questões

vivas" nesse campo e aos resultados esperados no que tange à educa-

ção. Os efei tos um tanto maléficos dessa diversidade não devem ser

esquecidos; e foi preciso esperar a escola de Amsterdã para que fosse

introduzida, nos anos 1980, uma prática regular da discussão teóricaentre as diferentes visões.

Entretanto, numerosas práticas atuais, tanto no campo da pesquisa

quanto no do ensino, ainda estão marcadas por essa configuração em

guetos. Não é muito satisfatório resolver utilizar, separadamente, um

elemento escolhido aqui ou ali por sua comodidade imediata, sem se

preocupar com incompatibilidades ou redundâncias. Outra solução,

que tem certa eficiência imediata, consiste em aderir a uma visão da

argumentação, escolher "seu" autor e "seu" conceito, aprofundá-lo e

pô-lo em prática:porém um dia é preciso se interessar pelo que fazem

os outros. Há uns vinte anos, toda a argumentação estava compreen-

dida na língua, e o estudo dos conectores era o acesso obrigatório.

Mas os tempos mudaram. Perelman, cuja obra não tinha sido verda-

deiramente aprofundada nos anos 1970, voltou à moda nas ciências

humanas, enquanto Toulmin e Grize são os preferidos no campo das

ciências — e ainda não chegamos ao fi m da história.

É necessário levar em conta as contribuições das diversas correntes,

fazê-las dialogar para estabelecer suas convergências, reconhecer suasafirmações incompatíveis e suas contribuições específicas. Para isso,

partiremos do fa to de que a unção argumentativa, ou unção crítica, é uma

f u n ç ã o da linguagem que organiza as f u n ç õ e s primárias (exprime o

"eu", a impressão sobre o outro, descreve o mundo).A atividade argu-

mentativa é uma atividade de alto nível, que implica a coordenação de

saberes e comportamentos diversos e heterogêneos; não é algo simples,

como comer uma maçã, mas extremamente complexo, como dirigir

um automóvel.

Ela se situa num espaço intermediário, organizado por urna tensãoentre o trabalho enunciativo e o trabalho interacional. Um locutor

1 4

A argumentação biface

hábil constrói uma intervenção contínua, planificada, na qual encadeia

as boas razões e mostra um mundo coerente; e esse trabalho extrai seu

sentido da existência de um dizer outro, como num espelho, no qual

outras boas razões sustentam visões antagônicas, consideradas corno

não menos coerentes. O encontro hic et nunc desses discursos define

a situação argumentativa em que se trata não com o outro como orepresentamos, e sim corn o outro enquanto interlocutor que está pre-

sente e que fala, numa interação que constitui o momento de verdade da

argumentação, quando ter razão também é convencer o interlocutor

ou concordar com ele.

2. O pólo das boas razões

Argumentar é ligar proposições, constituir um discurso coerente, ba-

seado num elemento considerado como evidente (para os sentidos, para

a intuição intelectual ou moral), e dele fazer derivar uma proposição

segunda menos segura.É apoiar uma afirmação — a conclusão — sobre

uma boa razão — o argumento.

A s obras de Toulmin, assim como as de Perelman e Olbrechts-

Tyteca, dependem no essencial desse pólo das boas razões. Em ambos

os casos, deve-se procurar o paradigma do discurso racional no campo

do direito. Pode-se pensar que essa vontade de restituir urna dose de

"logos"ao discurso sociopolítico tenha sido motivada pela rejeição aosdiscursos totalitários nazistas e stalinistas.

O famoso modelo deToulmin é uma lógica substancial. É uma lógica

na medida em que sua estrutura de base é a de um silogismo jurídico

(os A são B, isto é um A, logo isto é um B). Afirma-se que tal ser possui

determinada característica (Harry nasceu nas Bermudas), que os seres

que possuem essa característica (nascer nas Bermudas) pertencem a

determinada categoria (ser de nacionalidade britânica) e conclui-se

que esse ser pertence à categoria considerada (Harry é de naciona-

lidade britânica). Toulmin põe assim no primeiro plano da atividade

argumentativa a atividade de categorizaçao: pensar é classificar.

15

 

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Análises do discurso hoje

Esse modelo faz intervir uma restrição: "essa conclusão é válida

salvo se... (ele mudou de nacionalidade)". Essa reserva corresponde a

um possível contra-discurso. Temos aí a estrutura dita de raciocínio por

ausênda:<s Aí é uma maior informação, se eu sei que Piu-piu é um pás-

saro, posso concluir que ele voa — a menos que me digam que ele é

um pingüim".

Desde Aristóteles, foram propostas diversas tipologias dos argu-

mentos. Perelman e Olbrechts-Tyteca se inscrevem nessa tradição, que

mostrou que a simples argumentação recorria a procedimentos muito

diversos para fundamentar suas conclusões: as estratégiasque utilizam

a definição,a analogia, a causa, os contrários,a pessoa, estão certamente

entre os mais usados.Um tipo de argumento (ou topos, pi. topot) é um

discurso genérico, uma matriz discursiva . No caso do argumento do -

"declive escorregadio", isso daria:"Não devemos tomar esse caminho,

pois, se começarmos, não saberemos mais como parar e seremos leva-

dos a aceitar o inadmissível"; essa forma gera, entre outras, a argumen-

tação concreta, ou entimema seguinte: "Não se deve legalizar o haxixe,

porque, se o fizermos, seremos levados a legalizar o crack". É curioso

constatar que freqüentemente pedimos emprestadas ao Tratado [Lê traité

d'argumentatíon] oposições no fundo pouco robustas teoricamente e

empiricamente pouco rentáveis (convencer/ persuadir, auditório universal/

particular, argumentar/ demonstrar) e que não fazemos caso de reflexões

mais técnicas, bastante elaboradas e muito fér teis , que ele consagra aostipos de argumentos que nos contentamos, no melhor dos casos, em

considerar como uma espécie de catálogo.

3. O pólo lógico-Iingüístico

A s propostas de novas teorias da argumentação não encontraram eco

na França dos anos 1970;Toulmin só foi traduzido em 1994. De fato, a

introdução do conceito no campo das ciências humanas é obra de Du-

crot (La preuve et lê dire, 1973, cap. XIII, "As escalas argumentativas") e

de Anscombre-Ducrot, numa obra complexa, com o título-programa

A argumentação biface

U Argumentation dam Ia langue (1983). Esse conceito de argumentação

não se situa mais do lado de uma pesquisa dos princípios de raciona-

lidade do discurso, mas numa reflexão sobre o sentido dos enuncia-

dos. Segundo Ducrot, esse sentido é dado pela intenção lingüística

do enunciador. O sentido de "ele é inteligente" é descritível como

a conjunção das conclusões a que esse enunciado pode servir, con-clusões que são assimiladas a prosseguimentos possíveis:por exemplo,

"é preciso contratá-lo", ou "ele pode resolver o problema", "ele verá

a armadilha", etc., (mas não teremos "ele é inteligente; não poderá

resolver esse problema"). Não são mais, como no caso de Toulmin,as

ligações entre elementos do real que fundamentam a argumentação,

mas as ligações, na língua, entre enunciados.Essa teoria da significação

produziu resultados muito interessantes sobre os conectores (mas, aliás,

etc.) e sobre os operadores argumentativos (quase, apenas, etc.). Sua

generalização se choca com certo número de dificuldades, mas ela

colocou no primeiro plano a noção de orientação, cu j a importância é

capital na argumentação.

A pa rtir do fa to de que os conectores trabalham as orientações, apli-

cações precipitadas concluíram que bastavam alguns conectores bem

colocados para construir uma argumentação. É inverter o problema.

Como veremos, o sentido argumentativo (orientação argumentativa)

é produzido por uma pergunta argumentativa, e o uso de conectores

só se compreende no âmbito de tal pergunta.No mesmo momento, Grize e a escola de Neuchâtel propuseram

um . modelo de lógica natural para a pesquisa dos aspectos cognitivos da

argumentação (GRIZE, De Ia logtque à l'argumentation, 1982). O discurso

constrói uma "esquematização", isto é, uma "iluminação" dos aconte-

cimentos.Todas as operações de construção do enunciado contribuem

para a construção dessa esquematização. Trata-se igualmente de uma

teoria generalizada que traduz bem a argumentação como constru-

ção de um ponto de vista. A abordagem diagonal da argumentação

acrescenta uma pergunta: o que acontece quando um ponto de vista

encontra um outro ponto de vista?

Í7

 

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Análises de discurso hoje

4. Um diálogo orientado por uma pergunta

Argumentar é dialogar com um interlocutor, isto é, encadear propo-

sições num discurso coerente, baseado em elementos compartilha-

dos (os argumentos) e deles fazer derivar urna proposição segunda (a

conclusão), que não é compartilhada, m as disputada. A argumentação

se situa na divergência dos discursos mantidos, por exemplo, sobre a

qualificação de um acontecimento: Quem é o responsável/ culpado?Quem lançou o dardo que matou a vítima durante o treinamento?

Foi a vítima que não respeitou as regras de segurança? Trata-se de um

cr ime? Ou de um acidente?; "Você roubou a mobilete?" vs."Não, to-

mei-a emprestada!": De que se trata na verdade? De um roubo ou de

um empréstimo? A essas perguntas, os protagonistas trazem respostas,

inconciliáveis. Porém não basta que afirmem: já que o outro diz outra

coisa, é preciso elaborar a af i rmação "seca", sustentá-la com um dis-curso, fornecer indícios, testemunhos orientados para um a ou outra

posição. E o conjunto dessa atividade que constitui a argumentação.O que devo acreditar, o que devo fazer? Enquanto todos vêem as

coisas do mesmo modo, fazem o mesmo sem dizer nada, não há pro-

blema; m as logo que os discursos se opuserem de forma construída

aparece uma pergunta argumenta t iva que torna manifesta u m a situa-ção de bloqueio (d e "estase") nos fluxos coordenados de linguageme de ação.

Argumentar é uma atividade biface que se exerce sobre um f u n d o

de tensão irredutível entre monólogo e diálogo, entre trabalho enun-

ciativo e trabalho interacional . O diálogo constitui o f u n d o : estamosno domínio do discutível. É uma realidade de ordem antropolingüís-

tica; é difícil imaginar um a sociedade se m pluralidade de interessesàs vezes contraditórios. A argumentação é um modo de tratar essas

divergências. Apenas um modo entre outros:por exemplo, o macho ou

a f êmea dominante pode. se encarregar do problema e resolvê-lo à sua

maneira. Para qu e haja argumentação, é preciso que se esteja situadon um campo d e sentido e que haja ao menos u m a pergunta comparti-

Í8

A argumentação biface

lhada, por bem ou por mal. Segue-se que um discurso não contradito

vale como a verdade.Esse ponto de partida permite situar um conjunto de noções clás-

sicas pouco levadas em conta pelos modelos centrados na argumen-

tação como encadeam ento monologal de proposições: por exemplo,

o peso da prova. Essa noção absolutamente fundamental remete irre-dutivelmente a dois opositores, a dois pontos de vista:um dominante;

o outro dominado e tentando se impor, e que deve não só "trazer",

m as também "fazer" suas provas. Poder-se-ia ainda citar a exigência de

univocidade da pergunta e as diferentes modalidades da pertinênciada resposta dada (petição de princípio, resposta fora do assunto). H á

argumentação antes dos argumentos.

5. Dialogismo, polifonia, intertextualidade

Fala-se de interação ou, em primeira aproximação, de diálogo, paradesignar situações de fala, na s quais os interlocutores estão fisicamente

em situação face a face, dispõem de igual direito à palavra, trocam oral-

mente, e de forma contínua, réplicas relativamente breves.A conversaé um exemplo de interação. Os conceitos de polifonia e de intertex-

tualidade permitem estender a concepção dialogada da argumentação

ao discurso monolocutor.

Bakhtin mostrou a presença do diálogo em qualquer discurso (pro-dução verbal desenvolvida, estruturada, ininterrupta, atribuída a u m

mesmo locutor-fonte):"a orientação dialógica do discurso é natural-

mente um fenômeno próprio a todo discurso" (Esthétique e t théorie

àu roman, 1978, p. 102). Essa tese do dialogismo inerente a todo dizere urna das aquisições em que se baseiam a análise do discurso, em

geral, e a do discurso argumentativo, em particular: "todo discurso é

dirigido para um a resposta, e não pode escapar da influência profundado discurso-réplica previsto" ( o p . cit.,p. 103).Todo discurso seria nã o

somente dialogai, mas polêmico. De qualquer maneira, Bakhtin inteirovai no sentido da superioridade do diálogo.

 

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Análises do discurso hoje

Essa realidade dialógica é fundamental para a teoria da argumenta-

ção na língua, que se baseia na natureza polifônica dos encadeamentos

de enunciados num mesmo discurso.O "foro íntimo"é aí visto como

um espaço dialógico, no qual coexiste um conjunto de proposições

orientadas, cada urna delas sendo atribuída a uma "voz" que é sua fon-

te: o enunciador. O locutor se situa em relação a essas vozes, isto é, ele

se identifica co m algumas e rejeita outras.Se nos reportamos à famosa

análise dos conectores (mas, por exemplo), vemos que o que aparece

na superfície como um monólogo baseia-se num verdadeiro diálogo

interior, que obedece a exigências gramaticais, libertado da exigência

do face a face, mas que permanece um discurso biface, articulando

argumentações e contra-argumentações.

A noção de intertextualidade, entendida como remetendo tanto ao-

texto oral quanto ao escrito, é retornada em argumentação na relação

discurso/ contra-discurso e, mais especificamente, pela noção de script

argumentativo: é o conjunto dos argumentos/ contra-argumentos li-

gados a uma pergunta. Constata-se, com efeito, que o conjunto das

proposições/ contra-proposíções ligadas a questões como a da legiti-

midade ética da clonagem apareceu completo quase imediatamente;

os sujeitos apenas repetem argumentos qu e estão dispersos no espaço

sociocomunicacional. Nessa concepção, a atividade argumentativa do

locutor consiste essencialmente em reformulações, adaptações, atuali-

zações de discursos já ditos. Estamos muito longe da "invenção".

Falar-se-á de modelo dialogai da argumentação para englobar, ao

mesmo tempo, tudo o que se relaciona ao discurso face a face, de um

lado, e de outro, o dialógico, isto é, o dizer outro, citado (o polifônicoe o intertextual).

6. Interações, debates, diálogos

A s conversas comuns sã o semeadas de contradições. Quando essas

contradições sã o ratificadas (levantadas por um ou outro dos parcei-ros), elas fazem emergir um a situação argumentativa. Consideremos

20

A argumentação biface

a troca seguinte: "O que vamos comer hoje à noite?" "Macarrão!"

"Outra vez? Já comemos macarrão no almoço!" "Justamente, temos

que acabar com ele!" Uma pergunta de teor informativo recebe sua

resposta: esta é rejeitada, apoiada numa boa razão, que repousa sobre

um princípio dietético de variedade na alimentação; esse argumento é

devolvido pelo advérbio justamente, em favor da conclusão oposta(va-mos comer), em virtude de um outro princípio de economia doméstica:

não se joga comida fora. Conflito sobre os princípios, confrontação

do s discursos, inversão da s orientações, toda a problemática da argu-

mentação se encontra nesse pequeno exemplo de interação banal.

O estudo das interações verbais dispõe de um conjunto de instru-

m e n t o s bem ajus tados; el e supõe a constituição de c o r p o r a gravados

(em vídeo ou em áudio) e transcritos,que constituem dados estáveise

transmissíveis.Todas as interações não são argumentativas,mas o estudo

da argumentação no diálogo não pode deixar de levar em considera-

ção os fenômenos interacionais. Por exemplo, se nos interessamos pela

maneira como o professor escuta ou não escuta as argumentações dos

alunos, ou o que ele realmente escuta de seus argumentos, ou se escuta

alguma coisa (e reciprocamente), é preciso necessariamente levar em

conta o fato de que se trata de um dizer em interação.

Pode-se falar de diálogo para situações de interação em que os in-

terlocutores, seja de comum acordo, seja seguindo a injunção de urna

norma social, respeitam um certo número de regras.A Nova Dialéticada Escola de Amsterdã (VAN E E M E R E N e GROOTENDORST, 1996) se in-

teressa pelos diálogos argumentativos em que os interlocutores devem

respei tar regras explícitas, tendendo a maximizar o rendimento do diá-

logo: os participantes exprimem livremente suas opiniões e suas obje-

ÇÕes; nã o falam fora do assunto; levam em conta os dizeres do outro;

estão dispostos a renunciar à sua primeira posição e a adotar o ponto

de vista do outro, etc. O diálogo argumentativo é visto como um meio

de construção do consenso.

A argumentação procura e evita o diálogo. Por um lado, argumen-ta r é construir o discurso orientado para a af i rm ação de urna con-

 

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Análises do discurso hoje

clusão; por outro, é confrontar esse discurso com um outro discurso

igualmente planejado, mas que não c onclui a mesma coisa, ou propô-

lo a alguém do q ual ignoramos o que ele vai dizer.

O debate é um dos lugares da a rgumentação para os quais devemos

mobilizar os recursos da análise da s in te rações . N o caso da sala de aula ,

interessar-nos-emosf por exemplo, pelos modos de re tomada do dis-curso, pelas formas de expressão do acordo e dos desaco rdos (cada umquer leg i t imamente preservar sua face e sua identidade), pelos modos

de afirm ação das conclusões, pela repartição dos pap éis argumentativos

e interacionais, pelos modos de aparição , de fragm entaç ão e de deriva-

ção das questões, pelos t ipos de argum entos introduzidos, pelas aliançase adesões, pelas formas de concessões, etc. Existe aí um imenso campopara a exploração empírica.

A argumentação é uma atividade onerosa , tanto na sua dimensão cog-

nitiva quanto na sua dimensão relacionai. Manter uma posição é man-te r uma face, uma identidade, uma diferença. O diálogo argumentativo

orientado para o consensual supõe que se esteja pronto ou que seja possí-vel renunciar a essa diferença,o que nem sempre é o caso. O debate podeconduzir à imobilidade, e até mesmo ao reforço das posições que ele pre-

tendia precisamente fazer evoluir. M udar de opinião, alinhar-se pela po-

sição do outro, é sempre submeter-se, reconhecer que se enganou, logo

perder um pouco a face, renunciar a esse fragmento de identidade que

estava ligado à posição repudiada. Duas conseqüências: não há argumentose m emoç ão; é preciso levar em conta as "condições de disputabilidade"

de urna questão em tal ou qual grupo, em tal ou qual momento.

N em todos os diálogos argumentativos respeitam as regras deorientaç ão para o consenso: líderes políticos de campos opostos, às

vésperas de uma eleição, não renunciam a seus pontos de vista ori-

ginais ao termo de um debate em que se enf rentam. Estão presos

num paradoxo, em que cada um deve apresentar ao mesmo tempo

argumentos t idos como aceitáveis por todos e af i rmar uma posição

bem particular. Poder-se-ia falar de diálogo orientado para o aprofun-damento da s diferenças.

22

A argumentação biface

As situações de trabalho colaborativo, na sala de aula ou fora dela,

põem em jogo outra si tuação de argumentação em interação. Com

efeito, apenas se argumenta nos negócios humanos em geral (polít ica,

filosofia, direito, etc.), sobre o m o d o dissertativo e segundo o modelo

ideal ejamais atingido da demonstração lógica elementar . Argumenta-

se em ambientes materiais onde o sentido da argumentação esta sem-pre ligado a projetos, objetos e ações. Os trabalhos práticos de ciências

propõem assim situações argumentativas quase experimentais, em que

se pode observar como se trabalha, paralelamente, a linguagem e os

objetos, com fins de construção dos saberes.

7. O que é uma boa argumentação?

"E aquela com que eu concordo"; a a rgumentação só convence os

convencidos. Se considerarmos a di f icu ldade encont rada quando setrata de rejeitar um m au argumento para um a conclusão aceita e deaceitar uni bom argumento para uma conclusão rejeitada, pode m os ser

tentados po r essa resposta um tanto ráp ida .

A cont r ibuição fundamenta l da teor ia das falácias — isto é , das pa-lavras enganosas —, t ão mal compreendida na F rança , é introduzir na

crítica a avaliação da s formas argumentativas. Aprender a argumentaré aprender a cri t icar os argumentos, tanto os seus quanto os dos ou-

tros. Essa problemática foi reatualizada pela obra de Hamblin, Faüades(1971, não t raduzida em francês) . Dela pode mo s reter que a crí t icatende a eliminar os discursos ambíguos, impõe o respe i to a um méto-

do n.o t ra tamento dos objetos e de suas relações, o todo levando em

conta as condições pragmáticas da aceitabilidade da s argumentações .

Num segundo nível, a avaliação pode igualmente basear-se numa

hierarquia intrínseca dos argum entos. Nesse caso, consideraremos queum a argumentação baseada na d e f i n i ç ã o (que expr ime a natureza do

°Rjeto tratado; "para argu me ntar é preciso sab er do que se fala") ou

numa re lação causai será in t r insecamente melhor que as a r g u m e n t a -ções baseadas no prestígio do locutor o u no da fon te citada por ele (essa

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Análises do discurso hoje

preferência supõe que definição e relação causai foram estabelecidas

corretamente, o que é precisamente o objetivo da crítica de primeiro

nível).

Podemos enfim ampliar o problema e adotar uma perspectiva dia-

lética: uma boa argumentação é uma argumentação que foi analisada

de modo contraditório. A avaliaçãonão se refere mais a um episódiodiscursivo, mas ao próprio discurso e, em seguida, ao debate no qual

ele se situa. O corolário é que uma posição é considerada legítima se

fo i submetida ao processo de discussão considerado normal pelo gru-

po. Numa última etapa, poder-se-ia dizer que um bom argumento é

um argumento que sai vivo de uma boa discussão: seja porque é reto-

mado como fundando um a conclusão à qual se adere, seja porque fo i

julgado digno de uma refutaçào ou de uma concessão.

8. Perspectivas

Não se pode opor tipos ou "módulos" narrativo/ descritivo/ argu-

mentativo pela simples razão de que, num texto argumentativo, podem

se r encontrados uma narração, uma descrição ou um retrato argumen-

tativamente orientados no sentido de um ponto de vista, em oposição

a outro ponto de vista. Argumentar é operar derivações (ou in fe rên-

cias) num fundo de contradição. Além disso, deve-se caracterizar os

discursos não como sendo ou não argumentativos, mas como o sendomais ou menos. O lugar dado à palavra do outro é um elemento de-

terminante do grau de argumentatividade de um texto, que corres-

ponde a um traço, um descritor utilizável para a descrição dos gêneros

discursivos.

Se quisermos opor a argumentação a alguma coisa, é preciso con-

trastá-la com discursos de revelação ou de intuição, afirmando dire-

tamente o dever e a verdade (não dialogais, não inferidos); ou ainda,

como o faz Pontalis (En marge desjours, Gallimard) opor "o pensamen-

to sonhante" ao "pensamento discursivo, argumentado, amarrado ao sa-

ber, que só quer se jus tif icar e não consente em se contradizer".

24

A argumentação biface

O lugar-comum que liga a argumentação à persuasão deve ser re-

visto. Se persuadir é mudar as representações do interlocutor, é a coi-

sa mais fácil do mundo, e nào é absolutamente apanágio da retórica

argumentat iva . Dizer que já é meio-dia e cinco a alguém que pensa

qu e ainda não é meio-dia pode mudar suas representações de modo

dramático, se ele devia pegar um trem às doze e três. O estudo dos ins-

trumentos efetivos da persuasão (discursivosou não) e a medida de sua

eficácia são do domínio da psicologia, qu e pouco se preocupa com as

problemáticas da argumentação. Se estivermos seriamente interessados

na persuasão, é preciso integrar ao campo a conversão, a religiosa assim

como a política.

Os modelos do monólogo argumentativo só permitem levar em

conta a intenção de persuadir. Acompanham um modelo unidírecio-

nal da persuasão em que um persuadido é o alvo daquele que persuade

e que gostaria bastante de fazê-lo adotar seu ponto de vista. Os meca-nismos da persuasão postulados repousam infine sobre a identificação

do persuadido com aquele que persuade. Os modelos do diálogo são

bidirecionais e enfatizam os mecanismosde co-construção da s crenças

ou das decisões. Encontra-se aqui a tensão entre os dois pólos da ação

argumentativa.

Pedimos às vezes a juda à argumentação, como a urna bóia à qual se

tenta atrelar a formação do indivíduo e do cidadão. Muitas considera-

ções ainda devem temperar o otimismo dessa ideologiaeducat iva.

Pri-

meiramente, a argumentação não é forçosamente uma alternativa ao

us o d a força: a História mostra que os dois se combinam muito bem.

Em segundo lugar, a argumentação trabalha na oposição (tanto do que

se deve pensar como do que convém fazer) , que ela pode contribuir

para aprofundar ou resolver. Em terceiro lugar, é uma grande utopia

pensar que poderemos um dia esvaziar, com a colherinha da crítica, o

oceano da ignorância e da desonestidade. Em quarto lugar, dizer queaargumentaçâo repousa sobre um conjunto de "acordos prévios" ( P E -

R . E L M A N e OLBRECHTS-TYTECA) é dizer que ela func iona bem no seiounia comunidade de crenças e dar-se ao menos a metade da solução

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Análises do discurso hoje

do problema que se pretende resolver. Faltam-nos estudos sobre os

casos de desacordos radicais. A argumentação deve renunciar ao debateintercomunitãrio para se limitar ao intracomunitário?

Os programas prevêem o ensino da argumentação nos colégios e

liceus. Entretanto, não tenho conhecimento de que exista na França

nenhum curso estruturado propondo um volume suficiente de ensinoda s bases indispensáveis à reflexão do s mestres.

Referências

PLANTIN, Christian. L'argumentation. Paris: Seuil, 1996. (Coll.

Mémo)

- L'argumentation, histoire, théories,perspectives. Paris: PUF, 2005.

(Coll. Que sais-je?)

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S E M I Ó T I C A E RETÓRICA: UMD I Á L O G O PRODUTIVO

Diana Lu z Pessoa de Barros (USP/UPM/LEI)

1. Considerações iniciais

O s diálogos entre semiótica e retórica tê m sido muito produtivos, seja

no tratamento das questões discursivas de persuasão e argumentação,c o m o s contratos fiduciários, a interação entre sujeitos e a construçãoda identidade ou do ethos do enunciador, seja no exame das figuras de

conteúdo e de expressão, com as relações entre temas e figuras e entre

expressão e conteúdo. Neste artigo serão apresentados alguns resul-tados de nossas reflexões sobre as relações ditas de "motivação" qu e

se estabelecem entre expressão e conteúdo. Serão examinadas quatroquestões principais: o tratamento dado ao plano da expressão nos es-

tudos sobre a linguagem; as conceituações de simbolização e de semi-

simbolização; os diferentes tipos de semi-simbolismo; os papéis do s

procedimentos de simbolização e de semi-simbolização e da relação

entre eles na construção do s sentidos. A descrição das estratégias desimbolização e de semi-simbolização põe em jogo princípios teóricose ferramentas metodológicas da semiótica discursiva francesa, perspec-tiva teórica adotada neste trabalho, e tem por objetivo último a análise

das relaçõesentre a motivação na linguagem e os sentidos na sociedadee na cultura.

 

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Análises do discurso hoje Semiótica e retórica: um diálogo produtivo

2. O plano da expressão nos estudos da linguagem

O exame dos significantes e o dos significados estiveram, até recente-

mente, separados no quadro dos estudos lingüísticos.

Se a lingüística, no seu início, com disciplinas como a fonética e

a fonologia, privilegiou o estudo dos significantes em relação ao das

estruturas semânticas, a partir dos anos 1960, os lingüistas, sobretudo

aqueles que se interessaram pelo texto e pelo discurso, se debruçaram

sobre questões de significação e sentido. Por outro lado, os especialistas

em literatura já tinham conseguido, desde a primeira metade do século

XX, um equilíbrio melhor no exame da expressão e do conteúdo dos

objetos literários, graças, entre ou t ra s razões, à contribuição dos estu-

dos retóricos e estilísticos.

O aparecimento e a consolidação dos estudos sobre o texto e o

discurso, ao favorecer a abordagem dos problemas de significação ede sentido, trouxeram novas interrogações e outras direções ao exa-

me do plano do significante lingüístico e recuperaram também o

diálogo com a retórica. Essa mudança deveu-se, antes de mais nada,

ao estabelecimento de uma distinção clara entre o significante dos

signos (entendidos como lexemas) e o plano da expressão dos textos,

de que se ocupam os especialistas do texto e do discurso. Operou-se,

assim, uma primeira escolha sobre a dimensão e a natureza do plano

da expressão. Houve mudança de ponto de vista, pois o plano da

expressão deixou de ser concebido apenas como significante oposto

ao significado,no interior do signo, e passou a ser pensado também

como o conjunto expressivo dos textos-enunciados de diferentes ti-

pos. Preparou-se assim o terreno para uma nova reflexão sobre a

expressão. Foi também revelada a precariedade dos estudos até então

existentes sobre o plano da expressão, pois se a fonética e a fonologia

se encontravam bastante bem desenvolvidas, os estudos sobre o plano

da expressão dos textos eram, e ainda são, pouco numerosos, pouco

sistematizados e dirigidos pontualmente a questõesespecíf icas,

em

quadros teóricos variados.

28

Nossas preocupações e os resultados ainda incipientes que aqui

apresentaremos inserem-se nesse quadro: o do exame do plano da ex-

pressão dos textos e das relações de construção do sentido tecidas en-

tre os dois planos da linguagem, o da expressão e o do conteúdo, nos

termos de Hjelmslev (1968).

Na tradição saussuriana, ninguém ignora que a f u n ç ã o maior,

primordial do plano da expressão é a de "fazer passar", "expressar"

conteúdos com os quais mantém relações arbitrárias. No entanto, é

também verdade que relações novas e motivadas podem-se estabe-

lecer entre expressão e conteúdo. A estilística, a retórica, os estudos

literários procuram há muito tempo aprofundar essas questões. No

âmbito das teorias do texto e do discurso, a semiótica tem obtido

bons resultados no exame do plano da expressão, nas manifestações

textuais não apenas verbais, mas também na pintura, na música, nos

textos sincréticos em geral.Para a semiótica, as relações novas entre expressão e conteúdo de-

correm dos sistemas simbólicos e semi-simbólicos. Esses sistemas po-

dem intervir nos textos "poéticos" de qualquer tipo (poesia e outros

textos literários, bale, pintura, fo tografia , etc.) e têm por função desfa-

ze r a relação já estabelecida entre expressão e conteúdo e entre o tex-

to e a "realidade", para estabelecer novas perspectivas, susceptíveis de

refundir ou de refazer o "real, e pa ra instalar a verdade textual de um

mundo sensorial, corporal — formado de sons, cores, f o r m a s , cheiros1— , redesenhado pelo texto.

•* • Simbolisníos e semí-simbolismos: conceituação

s procedimentos semi-simbólicos e simbólicos ocorrem em qual-

quer tipo de texto, mas foram analisados, sobretudo, pelos senlioticistasd° visual e por Jean-Marie Floch, em particular, a partir dos estudos

ae Hjelmslev (1968) sobre sistemas simbólicos. O conceito de semi-

^bohsmo assinala, em semiótica, a relação entre uma categoria (umae'açao) da expressão e uma categoria do conteúdo, e diferencia-se,

29

 

Semió t ica e retórica: um diálogo produtivo

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Análises do discurso hoje

assim, dos sistemas simbólicos de Hjelsmelv, em que há relação termo

a termo entre expressão e conteúdo.

Floch (1985, p. 15-16), para definir o semi-simbolismo, retoma

uma passagem de Lévi-Strauss em que o antropólogo diz não estar

de acordo com Mallarmé, que considera impróprios os nomes fran-

ceses jour, para dia, e nuit,para noite, pelo fa t o dejour (dia) empregar

sons graves e nuit (noite), sons agudos. Segundo o poeta, deveria

ocorrer o contrário, porque a relação com o plano do conteúdo é

culturalmente abusiva: sonoridade grave d e jour vs . sonoridade aguda d e

nuit estão em correlação, no plano do conteúdo, com claridade/ vida

vs. obscuridade/ morte . Lévi-Strauss não vê nisso nenhum problema,

pois, para ele, os sons graves de jour estão relacionados com a con-

tinuidade ou a extensão do dia e da luz, interrompidos pela noite-

aguda, pontual, intensa. São, para os dois pensadores, sistemas semi-

simbólicos diferentes.

Vejamos um exemplo de sistema simbólico e semi-simbólico:

SistemasH

- conteúdo

rexpressãosimbólico:—

- conteúdo

branco

pa z

—semi-simbólico:—Texpressão claro/ pontiagudo vs. escuro/ arredondado

vida vs. morte

(em Os girassóis, de Van Gogh)

Os dois tipos de sistemas criam relações"motivadas" entre expressão

e conteúdo, fortemente sensoriais e corporais, e estão fundamentadas

sobre a tensividade que sobredetermina os termos dos dois planos: no

símbolo, o branco, da expressão, e a paz, do conteúdof são determinados

pela extensão ou como termos extensos; no sistema semi-simbólico, o

amarelo escuro e as formas arredondadas, da expressão, e a morte, no con-

teúdo, são determinados como termos extensos, e o amarelo claro e as

formas agudas, assim como a vida , como termos intensos. Em outras pa-lavras, a natureza morta deVan Gogh trata do caráter transitório e pas-

30

sageiro da vida e de uma morte que dura. Outros textos podem mos-

trar, serni-simbolicamente, o acontecimento extraordinário, pontual da

morte em uma vida que dura.Veja-se, por exemplo, Fita verde no cabelo,

de Guimarães Rosa (1985). A relação com a tensividade permite não

só o estabelecimento das relações simbólicas e semi-simbólicas entre

expressão e conteúdo, como também o exame dessas relações em um

patamar mais afastado do da substância da expressão e do conteúdo.

Apontadas as semelhanças entre eles, é preciso agora diferenciar os

sistemas simbólicos e semi-simbólicos.

Nos sistemas simbólicos, a relação entre expressão e conteúdo é

culturalmente determinada e perpassa diferentes textos (a relação en-

tre branco e paz, por exemplo). Já nos sistemas semi-simbólicos, põe-

se em xeque nosso modo culturalmente estabelecido de sentir e de

conhecer o inundo e cria-se uma nova verdade e uma outra sensação

desse mundo, em que, por exemplo, a claridade e as ormas agudas ligam-se à v ida, e a obscuridade e as ormas arredondadas, à morte. O mundo é

refeito, sobretudo na dimensão do sensível, pelo texto que constrói os

semi-simbolismos.

São apresentados a seguir alguns exemplos extraídos de anúncios

publicitários de bancos, em relação ao cromatismo, à cor.

1) simbolismo: cores simbólicas da bandeira (azul/ amarelo) nos

anúncios do Banco do Brasil;

2) semi-simbolismo: variação de tonalidade (anúncios do Banco

do Brasil):

_ _ amarelo quente

^cumplicidade, proximidade

Em anúncios decrédito,

para mostrar o que o

banco pode fazer pelo

cliente.

vs .

vs.

azul frio

distância, seriedade, competência

Em anúncios de investimentos,

para persuadi r o cliente que confiase u dinheiro ao banco de que ele

é sério e c o mp e t e n t e e garante os

invest imentos.

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Análises do discurso hoje Semiót ica e retórica: um diá logo produtivo

3) semi-simbolismo: variação de saturação das cores e de tonalidade

(anúncios do Banco do Brasil):

co r quente e escura

cumplicidade, agressividade,

proximidade

Em anúnc ios de patrocínio

do esporte.

vs.

vs.

cor fria e clara

ser iedade, competência,

sofisticação, elegância,

distanciamentoEm anúncios dirigidos apessoa

jurídica, sobretudo a grandes

empresas.

4) semi-simbolismo:variação de tonalidade (anúncios do Bradesco):

vermelho quente

(de sua identidade visual)

novidade, agressividade,modernidade

vs.

vs.

cores frias e escuras (marrom,

cinza, preto, verde ou azul escuros)

seriedade, competência,personalização, sofisticação

5) semi-simbolismo: variação de tonalidade (anúncios do I taú ) :

laranja

simplicidade, facilidade,

descompíicaçào

vs.

vs.

outras cores (d e outros bancos)

complicação, dificuldade,

complexidade

4. Tipos de semi-simbolismos

Há diferentes tipos de semi-simbolismos, seguindo três variáveis: as

unidades do plano do conteúdo, em correlação; a dimensão no texto;

as unidades do plano da expressão.

O primeiro critério de classificação,o do tipo de conteúdo, distin-

gue os semi-simbolismos cujas categorias do conteúdo são genéricas

e abstratas dos que têm conteúdo passional e contratual. O primeiro

caso caracteriza os textos poéticos, sejam eles verbais, visuais , gestuais,etc. (Os girassóis deVan Gogh, por exemplo) ou os que produzem al-

32

uns efeitos poéticos (anúncios de banco, como os do Itaú com a cor

laranja). O segundo caso define, sobretudo, os textos conversacionais

e as canções. Os textos falados, graças aos diferentes recursos e proce-

dimentos utilizados — as pausas, as interrupções, os prolongamentos

sonoros — combinam e alternam aspectualmente continuidade e des-

continuidade, aceleração e desaceleração. Cada pausa ou interrupção é

seguida de uma duração pela repetição ou pela paráfrase, cada prolon-

gamento sonoro de vogai, de uma correção pontual, e assim por diante.

A fala se constrói em jatos. Essa organização da expressão sonora cor-

relaciona-se, por sua vez, com organizações do plano do conteúdo, no

caso, de sua estruturação contratual e passional, construindo assim um

sis tema semi-simbólico que recobre o texto inteiramente. O arranjo

da expressão sonora entre pontualidades e durações, acelerações e desa-

celerações homologa-se, no plano do conteúdo, às relações contratuais

e de ruptura de contrato, e às relações afetivas e passionais de aproxima-ção interessada e de distanciamento desapaixonado que caracterizam

a cooperação e a interação entre sujei tos , definidoras da conversação

(BARROS, 1995 e 1998). Os procedimentos de expressão da conversa-

çã o ligam-se assim à organização interacional do conteúdo, ou seja, às

relações de envolvimento interpessoal, inclusive passionais ou afetivas.

Na conversação, fabricam-se, com o semi-simbolismo, efeitos de envol-

vimento emocional, enquanto na poesia, com os recursos semi-simbó-

licos, refaz-se o mundo ou o saber sobre ele. Começam a aparecer as

aproximações e as diferenças entre a afinidade afetiva e emocional da

conversação e o envolvimento estético da poesia.

O segundo critério de classificação do semi-simbolismo é o de sua

extensão no interior do texto. O semi-simbolismo pode estar locali-zado, circunscrito, como nos textos poéticos, ou estender-se em toda a

d imensão do texto, como nos textos conversacionais.

O terceiro e último critério de classificação do semi-simbolismo é0 do s tipos de plano da expressão: sincrético ou não-sincrético.O pla-n

°da expressão é dito sincrético quando sua forma é preenchida porSubstâncias diferentes (sonoras, visuais, etc.). Em função da complexi-

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Análises do discurso hoje Semiótica e retórica: um diálogo produtivo

dade de seu plano da expressão, os textos sincréticos podem engendrar

dois tipos de sistemas semi-simbólicos:o primeiro, em que a categoria

do plano da expressão é construída de termos que têm substâncias

diferentes, como por exemplo, traços sonoros e cromáticos, postos em

correlação, em conjunto, com uma categoria do conteúdo; o segundo,

em que os termos formados por substâncias diferentes sincretizadas no

texto estão em correlação, separadamente, com categorias do conteú-

do. Os anúncios publicitários são textos sincréticos, mas produzem, em

geral, semi-simbolismos do segundo tipo. Na publicidade da imprensa

escrita, por exemplo, os semi-simbolismos são, sobretudo, visuais, al-

gumas vezes sonoros, mas sempre separados. Os anúncios publici tários

dão ao verbal um papel principalmente racional e, por isso, raramente

exploram a sonoridade da expressão verbal. Atribuem ao visual, poj

su a vez, uma função fortemente sensorial e afet iva. Daí a preferência

pelo semi-simbolismo visual nos anúncios publicitários, em geral, enos de instituições bancárias, em particular.

5. Gradações entre o simbolismo e o semi-simbolismo

Se há textos, raros, em que não ocorrem relações novas entre expressão

e conteúdo, em que a expressão cumpre apenas seu papel de expressar

conteúdos, na maior parte deles são encontradas relações motivadas

entre expressão e conteúdo, de dois tipos: simbólicas e semi-simbólicas.

Em outras palavras, as relações motivadas que se estabelecem entre ex-

pressão e conteúdo vão desde a novidade poética do semi-simbolismo

próprio de cada texto até o simbolismo culturalmente estabelecido,

que perpassa diferentes textos e que estabelece, termo a termo, e não

mais categoria com categoria, a relação da expressão com o conteúdo.

Entre esses pólos extremos, há graus, pois nada é completamente novo

ou completamente estereotipado, e produz-se sempre um vaivém en-

tre a novidade e a estereotípia.

Nossa hipótese é a seguinte: a correlação textual entre uma ca-tegoria da expressão e uma categoria do conteúdo, que caracteriza

34

semi-simbolismo, é condição de sua novidade e poeticidade, mas

uso freqüente, a reiteração e a aceitação cultural podem levar ao

apaeamento de um dos termos postos em relação, tanto no plano

da expressão quanto no do conteúdo, e produzir o efeito simbólico

contrário, o de estereotípia. É o que acontece, por exemplo, na re-

l ação entre um certo tipo de papel (mais grosso, mais liso, etc.}, noplano da expressão, e o efeito de sof i s t i cação , elegância, no plano

do conteúdo. Tudo indica que houve um sistema semi-simbólico

primeiro, papel grosso e liso vs.papelfino e áspero correlacionado co m

sofisticação, elegância, refinamento vs . vulgaridade, deselegânàa, grosseria,

que foi reiterado e aceito na cultura e que se tornou símbolo em

uni dado momento, podendo então prescindir de um dos termos da

categoria.

O semi-símbolo torna-se então um símbolo, e a novidade poéti-

ca do texto cede espaço ao lugar-comum da cultura. Essas mudanças

ocorrem aos pouquinhos e produzem textos que apresentam graus

intermediários entre o semi-simbolismo e o simbolismo. Os textos

transformam relações semi-simbólicas em relações simbólicas e vice-

versa, conforme o efei to que querem produzir. Se o semi-simbolismo

constrói formas novas de sentir o mundo, criando relações sensoriais

novas com os objetos, razões diversas de uso (a repetição, sobretudo),

em um momento histórico e em uma dada cultura, f azem dele um

sistema de símbolos.Transforma-se a novidade em estereotipia e passatambém a ser outro o papel da relação, agora simbólica, entre expressão

e conteúdo nos textos: o de apontar os valores da sociedade, os mitos da

vida quotidiana, como foi dito por Roland Barthes.

A publicidade emprega bastante bem os dois procedimentos, o de

serrü-simbolização e a sua transformação em simbolização ou, ao con-Crário, o uso de símbolos e sua ressemantização como semi-símbolos.

Serão retomados os exemplos já apresentados do uso das cores em

Propagandas de banco. Nesses anúncios, tanto se criam, com as cores,

semi-símbolos, que são transformados em símbolos, quanto se reto-símbolos da cultura, que são mudados em semi-símbolos.

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Análises do discurso hoje

O Bradesco, por exemplo, emprega o sistema semi-simbólico já

apontado com o vermelho vs. outras cores. A cor vermelha, porém, é

usada pelo banco também simbolicamente — em anúncio do Dia dos

Namorados, para significarpaixão, caso em que já se apagou a relação

categoria] em favor de uma relação termo a termo — ou, mais fre-

qüentemente, a meio caminho entre o semi-símbolo e o símbolo, aorelacionar o traço quente de sua cor identitária com a identidade, no

plano do conteúdo, de banco novo, moderno, agressivo, jovem.A ca-

tegoria da expressão quente vs.frio, correlacionada a do conteúdo novo,

jovem, moderno vs, antigo, conservador, tem já um certo grau de estereo-

típia cultural simbólica, mas ainda não se apagou nenhum dos termos

da correlação semi-simbólica.

Já o Banco do Brasil faz, em geral, o caminho inverso:o azul e oama-

relo de seus anúncios são simbólicos (ou meta-simbólicos,pois remetem

à bandeira, símbolo da pátria) e próprios de banco nacional e/ou esta-

tal. Nos últimos governos, porém, o banco procurou afastar-se de seu

caráter nacional e, sobretudo, estatal. Para tanto usou traços cromáticos

diferentes no azul e no amarelo e criou, assim, a partir dos símbolos, no-

vos semi-simbousmos:azul quente vs. azul rio, correlacionados com cum-

pliddade, envolvimento vs . distanciamento educado e elegante (anúncios para

pessoa física vs. jurídica);amarelo quente vs. azul fr io, correlacionado com

envolvimento d o banco co m o cliente (amarelo, em anúncio de crédito) vs .

seriedade, competência (azul, em anúncio de investimento), claro vs. escuro,para efeitos de sofisticação, elegância ou de seriedade, competência. Criaram-se

os serni-simbolismos a partir de cores simbólicas. No inicio do Governo

Lula houve a retomada do sentimento de nação, e o Banco do Brasil,

assim como outros bancos, recuperou e reforçou seu caráter de banco

nacional e estatal, e,conseqüentemente, suas cores simbólicas.

O Itaú, por sua vez, usou as cores azul/ laranja/ amarelo de forma

parecida com o Bradesco (quente vs. fr io, correlacionado com banco

moderno, ágil vs. banco antiquado, emperrado). Além disso, construiu , nos

seus textos, uni sistema semi-simbólico novo que pouco a pouco setransforma e leva à estereotipia simbólica:

36

Semiótica e retórica: um diá logo produtivo

laranja

descomplicação

facilitação, simplificação

realidade

vs.

vs.

vs.

vs.

outras cores

compl icação

dificultação

irrealidade

Esse semi-simbolismo usado, em um primeiro momento, em anún-

cios de banco na internet, foi-se "engessando", com a finalidade de se

tornar um símbolo do banco (um banco descomplicado, simples) e,

quem sabe, mais tarde, um símbolo na nossa cultura. Aparece, atual-

mente, em outros tipos de anúncios e em outras situações.

Em. síntese, os resultados desses primeiros estudos mostram que os

sistemas semi-simbólicos produzem efeitos de poeticidade e, levados

às últimas instâncias, fazem do texto um objeto que dá prazer estético.

Já os símbolos tornam palpáveis, tangíveis conteúdos culturalmente

estabelecidos e, levados às últimas conseqüências, expõem ou apontam

os valores da sociedade.

Vale a pena, ainda, examinar o jogo textual de transformações ou

de passagens entre o semi-simbólico e o simbólico, entre a novidade

poética e estética e as determinações culturais, pois, ao tratar dessas

questões também no plano da expressão e por meio dos simbolismos

e dos semi-simbolismos, teremos, sem dúvida, ganhos teóricos e me-

todológicos no exame dos textos e saberemos mais sobre a construção

dos sentidos na sociedade.

« • Considerações finais: figuras da expressão e figuras do

conteúdo

srelações simbólicas e as semi-simbólicas produzem figuras da ex-

Pressao (GARROS, 1988), como as descritas ac ima.As figuras da expres-

° são diferentes das figuras do conteúdo, em que, na perspectiva da

"^otica francesa, se relacionam as isotopias figurativas do discurso.questões para novos estudos. Faremos, aqui, para concluir, apenas

37

 

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Análises do discurso hojeSemiótica e retórica: um diálogo produtivo

d u a s observações sobre as relações entre f iguras da expressão e figuras

do conteúdo:

1 ) a de que as figuras do conteúdo nào são, no quadro teórico es-

colhido, "figuras de palavras", mas de texto inteiro (são, por exemplo,

metáforas de texto inteiro, produzidas pela relação entre duas isotopias

figurativas);2 ) embora as figuras do conteúdo e as da expressão sejam responsá-

veis pelos efeitos sensoriais dos textos e pelas relações corporais entre

enunciador e enunciatário, têm elas papéis diferentes na construção

dos sentidos.

Greimas, em "Conditions d'une sémiotique du monde naturel"

(1970, p. 52-56), afirma que o plano da expressão (a forma da expres-

são) do mundo natural torna-se plano do conteúdo (forma do con-

teúdo figurativo) das línguas naturais. Disso resulta, segundo o autor,

que: "a) a correlação entre o mundo sensível e a linguagem natural

deve ser buscada não no nível das palavras e das coisas, mas no das

unidades elementares de sua articulação; b) o mundo sensível está ime-

diatamente presente até mesmo na forma lingüística e participa de sua

constituição, oferecendo-lhe uma dimensão da significação que, em

outros estudos, chamamos de semíológica."1 (p. 56; tradução nossa).

Com as relações entre duas semióticas, a do mundo natural e a das

línguas naturais, a semiótica propõe uma outra perspectiva de exame

da referência e explica o papel das figuras de conteúdo na construçãodos sentidos dos textos.

A s figuras do plano do conteúdo constroem-se, dessa forma, com

conteúdos já transformados, decorrentes do plano da expressãode uma

outra semiótica. São relações de conteúdo, que produzem os efeitos de

sentido de sensorialidade"de papel", de "linguagem", e de poeticidade

1 a) Ia corrélation entre lê monde sensible et lê langage naturel est à rechercher non auniveau dês mots et dê s choses mais à celui dê s imites élémentaires de leur articulation;

b) lê monde sensible est irnmédiatemenc p résen t jusque dans Ia forme linguistique etparticipe à sã constituition, en lu i ofifrant un e dimension de Ia signrficat ion que nousavons ailleurs appelée sémiologíque (p . 56).

38

em seu sentido mais cabal. Já as figuras da expressão estabelecem rela-

ções motivadas entre a expressão e o conteúdo de uma mesma semió-

tica e criam efeitos de novidade e de estereotipia cultural na leitura do

mundo. São outras figuras e novas relações com a retórica.

Referências

BARROS, D.L.P. de."Problemas de expressão: figuras de expressão".

In: Significação, 6,1988, p. 5-12.

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zação". In: Língua e literatura, 21,1995, p. 67-76.

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PPüETI, Dino. Estudos de língua falada: variações e confrontos. Sã o Pau-

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FIORINJosé Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo, Atica, 1988.FLOCH,Jean-Marie. Petites mythologies de l'oeil et de Fesprit. Paris,Ams-

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FONTANILLEJacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação.

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GP-JEIMAS, Algirdas Julien. De Yimperfecüon. Paris: Pierre Fanlac,

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. "Conditions d'une sémiotique du monde naturel". In:

GREIMAS,AJ.Du sens. Essais sémiotiques. Paris:Seuil, 1970, p. 49-91.

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GUIMARÃES ROSAJoão."Fita verde no cabelo". In : Ave, Palavra. 3.

ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

HjELMSLEV, Louis. Prolégomènes à une théorie d u langage.Paris: Minuit,

1968.

 

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OS LIVROS MAIS VENDIDOS: U M APROPOSTA DE RECONSTITUIÇÃODO ETH OS DO LEITOR BRASILEIROCONTEMPORÂNEO

Arnaldo Cortina (FCL-UNESP/CAr)

1. Introdução

N as sociedades humanas a comunicação é um processo central e deter-minante, pois é a partir dela que as relações se instauram.Isso nã o signi-

fica desconsiderar os fatores econômicos que estão na base das relações

sociopolíticas da s diferentes sociedades do planeta, como be m mostramos estudos er n sociologia e economia, mas é possível entender qu e esses

mesmos fatores sãodeterminados por e, ao mesmo tempo, determinam

diferentes processos e veículos de comunicação. A semiótica, por tan to ,entendida como urna teoria qu e pretende explicitar "a s condições da

apreensão e da produção do sentido" ( G K E I M A S ; COURTÉS, [s/d], p. 415),revela-se como um instrumento importante para a compreensão e para

a expl icação de diferentes manifestações da comunicação humana.

O desenvolvimento doprojeto semiótico iniciado nosanos 1960 por

Greirnas voltou-se primeiramente para o desvendamento do sentidono texto escrito, no princípio o literário, depois o religioso, o político,°jurídico, etc. Buscou-se, assim, descrever a estrutura da significação

de uma unidade maior que a da frase, o que significou uma expansãodo s estudos de semântica que eram realizados at é então. C o m o avanço

° projeto, verificou-se que a concepção de texto poderia alargar-semais, urna vez que não se restringia mais apenas à modalidade

 

Análises d o discurso hoje i_Jí livros f J if i i

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escrita. A partir de então, o projeto semíótico buscou verificar sua

proposta metodológica em diferentes veículos de produção de sentido,

o que propiciou uma gama de trabalhos voltados para o estudo da pin-

tura, da escultura, da propaganda, do cinema, da música, etc.

Ocorre, porém, que esses estudos inicialmente procuravam examinar

um objeto específico, isto é, um quadro,um a escultura, um a propaganda,

etc., com o objetivo de descrever as relações de sentido ali presentes, Oque se pretende agora examinar é uma dimensão mais vasta do con-

ceito de texto, isto é, uma vez que o arcabouço teórico-metodológico

da semiótica revela-se como um sistema econômico e preciso, pode-se

chegar a examinar, então, um conjunto de textos na sua totalidade.

O propósito de que a teoria semiótica não se restringia ao exame de

um texto literário, ou propriamente narrativo, já se encontra manifesta-

do em Greimas (1983), quando o autor publica seu texto "La soupe au

pistou ou Ia construction d'un objet de valeur". Nesse texto, Greimas

mostrará a eficácia do modelo semiótico para a análise de um texto tã odistinto daquele que era normalmente utilizado pelo grupo de semioti-

cistas, como a receita de cozinha. Embora esse tenha sido um exercício

importante para colocar em ação as ferramentas do modelo semiótico

para a depreensão do sentido, o trabalho de Greimas (1983) voltou-se,

uma vez mais, para a unidade textual e não para a noção de conjunto.

Nosso propósito será examinar um outro suporte de comunicação

que pode parecer também inusitado, tal como foi a receita de cozinha

analisada por Greimas nos anos 1980. Diferentemente do texto de

análise do trabalho de Greimas. o que procuraremos interpretar aqui é

uma lista de livros mais vendidos no Brasil, entre os anos 1966 e 2004.

Nosso propósito será examinar essa lista para chegar à cons t rução deum possível perfil do leitor brasileiro contemporâneo. Para realizar essa

tarefa, portanto, partiremos da discussãodo princípio de totalidade e,

para chegar a esse perfil de leitor, discutiremos a noção de ef/ior.Antes,

porém, cabe uma explicação rápida de como chegamos à lista dos li-

vros mais vendidos, que aparece em anexo no final deste texto.

O levantamento dos ciados para estabelecer o gráfico l, em anexo,

fo i realizado por meio do registro das listas de livros mais vendidos,

42

rmblicadas em dois jornais brasileiros. O primeiro jornal, fon te da pes-

auisa, foi o Leia, periódico mensal que circulou no território nacional

durante o período de abril de 1978 a setembro de 1991.0 segundo, foi

o J o r n a l d o Brasil, diário carioca qu e publicou listas do s livros mais ven-

didos no Brasil a partir de 1966 até o mês de dezembro de 2004, data

em que encerramos o levantamento de dados. Como o segundo jornal

interrompeu a publicação das listas dos mais vendidos durante o perío-do de fevereiro de 1976 a abril de 1984, propusemos uma fusão dos

dados dos dois jornais de forma a cobrir um período que compreende

os anos de 1966 até 2004. A descrição desses dados por meio de um

agrupamento temático aparece na tabela l, também em anexo.

2. Conceito de totalidade em análise

N o volume 72 da Acte sétnioíique, de 1986, fo i publicado o artigo de

Viggo Brondal, intitulado Omnís et tõtus, qu e havia aparecido na ActaJutlandica, em 1937. Partindo da observação do latim, segundo Brondal

(1986), para examinar o conceito de totalidade devem-se levar er n con-

sideração as noções de integralidade (tõtus), de universalidade (omnis),

de distributividade ou iteratividade (quisqué) ou de generalidade (quis-

<jHíim).Em inglês, por seu turno, o pronome quisque assume duas fo rm as

diferentes: e . v e r y e each, que têm situações de uso próprias.Seu texto, po -r é m , ir á centrar-se na oposição entre tõtus e omnis, uma vez que, na s lín-

guas ocidentais, essa diferença do latim se perdeu. Para Brondal (1986,

p - 12-13), "o s termos mais gerais qu e designam a totalidade são, emnossas línguas,os pronomes indefinidos: enquanto pronomes, designam

objetos puros (isto é, sem qualidade), enquanto indefinidos, destacam o

caráter indeterminado ou quantitativo desses objetos".1

O exame, portanto, da chamada categoria dos indefinidos latinos

destaca três séries distintas e m q u e eles se distribuem. A primeira,cnarnada integral, compreende as formas: ümis (um), solus (só) e tõtus

' To d as as citações do texto de Brondal (1986) aqui apresentadas foram por nós tra-duzidas.

 

sinatises ao aiscursa noje

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(todo, tudo); a segunda, denominada numérica, rièmo (ninguém) [com

o neutro nihil (nada)], quis (um), alius (outro) e omnis (todo, tudo);

a terceira, designada como constitutiva ou estática, üttus (nenhum) equidatn (algum).

Por meio de urna série de relações estabelecidas entre essas diferen-

tes formas do latim para expressar a idéia de totalidade e, em oposição

a ela, a de unidade, Brondal (1986) chega à seguinte distinção entre asformas tatus e omnis:

Tatus, termo integral correlativo a ütius [...], exprime uma to ta l idade

como negação da unidade independente. Ac e n t u a a absorção do s indiví-

duos isolados n u m a massa indivisível . U m todo nesse sentido é tomado

como um bloco inteiro em que as partes são indistintas ou dominadas.

Omnis, termo numérico, correlativo a nêttío [...], designa, ao contrário",

um a totalidade mais nuanç ada ou diferenciada. Exprime a reunião de

indivíduos nu m grupo ou com un idade . As partes que o compõem sã oreconhecidas, por um lado, como reais, por outro, como formando um

conjunto, (p. 15)

De acordo com o levantamento etimológico apresentado por

Brondal (op. dt., p. 17), o sentido específico da raiz nominal dos dois

termos em questão constrói-se da seguinte forma: totus, "termo culmi-

nante da série integral, expressão da coerência ou da indívisibilidade

de um corpo, originou-se de um substantivo que destaca justamente

a solidariedade quer política [civilização], quer étnica [povo]"; omnis ,

por sua vez, "termo culminante de uma construção aritmética, ex-

pressão de um conjunto ordenado, originou-se do próprio nome do

homem: ser ao mesmo tempo social e racional".

Seguindo, portanto, as proposições de Brondal (1986), chega-se à

constatação de que o conceito de totalidade, expresso por tõtus, opõe-

se ao de unidade, expresso por ünus, enquanto a noção de totalidade

expressa por omnis tem como oposição tièmo.

Ao se referir ao texto de Brondal, Greimas irá observar que o es-

tudo realizado pelo autor não se restringe apenas aos chamados pro-

44

nomes indefinidos, mas inclui também os determinativos. Acrescenta

ainda que, "ao se referir à substância semântica, pode-se então dizer,

com Brondal, que os quantitativos (ou indefinidos) recobrem, articu-

lando-o e estruturando-o, o campo nocional de totalidade" (GREIMAS,

1986, p. 21). Por esse motivo irá afirmar, no f ina l de seu texto, que,

p a ra descrever a noção de totalidade na língua (pelo menos a francesa

a que ele se refere), o termo mais adequado é "quantitativos" e nãoindefinidos, como propõe Brondal (1986).

Greimas (1981), quando procura definir o actante coletivo, também

aborda a noção de totalidade e a contrapõe à de unidade. Esse actante

desempenha um papel no nível da semântica discursiva, uma vez que

compreende o processo de figurativização, e reúne diferentes unidades

para constituir um conjunto. Segundo o autor, há duas espécies de ac-

tantes coletivos: os sintagmáticos e os paradigmáticos. Para exemplificar o

primeiro tipo, Greimas (1981, p. 85) dá o exemplo da Renault na medida

em que, enquanto definidos pelo conjunto de suas funções, "diferentesatores (engenheiros, contramestres, operários especializados, etc.) substi-

tuem-se progressivamente uns aos outros para, executando um programa

único, produzir o objeto-automóvel".Para exemplificar o tipo sintagmá-

tico, refere-se a uma turma, ou classe, do último ano do colégio. Nesse

caso, os atores individuais que compõem esse actante (turma da escola)

correspondem a uma totalidade que é parte de uma totalidade maior

(o colégio, por exemplo), ao mesmo tempo em que é constituído por

atores-indivíduos que estão agrupados, obedecendo-se a um critério es-

pecífico, quer seja sua função, quer sejam suasqualificações.Nos dizeres de Greimas (1981), a estrutura do actante coletivo

pode ser assim descrita:

S uponham os qu e exista de início um a coleção qualquer de ind iv íduos

discretos caracterizados como unidades (U),pelo fato de serem descontí-

n u o s , e como integrais (i),po r possuírem, os traços de individuação. Para

qu e esses indivíduos-atores possam se r considerados como pertencentes a

um actante coletivo representando uma nova totalidade (T),que chama-

remos partitiva (p),isto é, um todo do qual ser iam par tes , é preciso que,

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embora subsistindo como unidades (U), eles abandonem sua integridade

(i), para serem considerados apenas como partitivos (p), isto é, como indi-

víduos dos quais sejam levadas em consideraçãoapenas as determinações

que eles compartilham com o conjunto de seus congêneres, pertencentes

à mesma coleção, (p. 86)

Essa descrição da constituição do actante coletivo segundo Grei-m as (1981) pode ser representada pela seguinte disposição do quadra-

do semiótico, tal como aparece à página 86 de seu texto:

Observando a configuração acima do quadrado semiótico pode-se

perceber que, para se constituir enquanto uma totalidade parcial (Tp),

porque representa o conjunto (T),formado por diferentes partes (p), o

actante deve partir de sua configuração enquanto unidade individual

(Ui) e assumir a disposição de uma unidade partitiva (Up), sua posi-

ção negativa. A partir dessa assunção, atingirá a posição imediatamente

complementar, qual seja, a da totalidade parcial (Tp).

Ao examinar essa questão aqui apresentada,Discini (2003, p. 33) irá

contrapor a esquematização proposta por Greimas (1981) à descrição

do sistema pronominal do latim de Brondal (l986), para retomar a dis-cussão sobre a noção de totalidade. Dessa forma, interpreta da seguinte

forma o quadrado semiótico de Greimas (1981):

Tp (unus)

Up (tõtus)

Nessa representação, portanto, a unidade integral, que é individua-

lizada, nêmo (nada), nega a si mesma e afirma se u caráter partitivo,

46

(todo) e esse último, por sua vez, implica a totalidade que suas

pr0priedades pressupõem logicamente, isto é, sua totalidade partitiva,

flrtití(um).Ao confrontar essa esquematização com o conceito de estilo cons-

truído em seu trabalho, Discini (op. aí., p. 34) dará um novo formato

a esse esquema proposto por Greimas (1981) para, uma vez mais, rela-

cioná-lo com a proposta de Brondal (1986).

U p (nemo)

Tp (omnis)

U  (unus)

Ti (tõtus)

Nesse novo esquema proposto pela autora, a unidade partitiva

(riêmo) opõe-se à unidade integral (ünus), enquanto a negação da uni-

dade partitiva é a totalidade integral (tõtus} e a negação da unidadeindividual é a totalidade partitiva (omnis). A totalidade integral pres-

supõe a unidade integral e vice-versa; a totalidade partitiva pressupõe

a unidade partitiva e vice-versa. Para construir seu conceito de estilo

Discini (op. dt.,p. 34-35) afirma o seguinte:

O Ünus pressupõe o tõtus, o "bloco inteiro", a totalidade integral, a qual

"destaca a absorção do s indivíduos isolados numa massa indivisível". Estilo

é, então, totalidade, enquanto unidade integral (unus) e enquanto totalida-

de integral (tõtus), sendo que um termo pressupõe outro, numa relação de

interdependência.É o recorte do leitor que decide o que é considerado

unus ou tõtus. [...]

O tõtus supõe o mais-de-um, mas considerado do ponto de vista da se-

melhança, q ue implica um efeito de unidade [...]. Omnis implica um a

totalidade, mas não levando em conta a semelhança. É uma totalidade nu-

mérica [...]. O íõíws,"onde as partes são indistintas ou dominadas",é uni-

ficado, em estilo, por uma recorrência de um modo de dizer, que emerge

da recorrência de um dito. Desse eixo, tõtus/ TÍ«ns desponta o efeito de

individuação, base do estilo. Desse eixo desponta o ethos constituinte doe f e i t o de sujeito de uma totalidade.

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Com o intuito de traçar, portanto, o perfil do leitor brasileiro con-

temporâneo, examinaremos exatamente o eixo tatus/ ünus, tal como

foi proposto por Discíni (2003).A totalidade integral, que corresponde

à lista dos livros mais consumidos por esse público durante o período

de 1966 a 2004, determinará a configuração desse sujeito-leitor con-

temporâneo, a un idade integral. Dessa forma, procuraremos recons-

tituir o ethos do leitor brasileiro da c ontemporancidade. Para tratarpropriamente dessa questão, vale a pena retomar a concepção de texto

e discurso para a semiótica, uma vez que as listas dos livros mais con-

sumidos serão tomadas como um texto para análise.

3. Ethos e pathos na visão da semiótica

Uma vez que a semiótica desloca suas preocupações com a questão do-

significado, própria da denominada perspectiva semiológica com que

ela se confunde inicialmente, e passa a privilegiar o sentido, quandotrabalha com uma extensão lingüística superior à da frase, precisa de-

senvolver um método para o tratamento de seu objeto.

Quando dizemos que a semiótica, ao investigar o sentido, propõe

ir além da frase significa dizer que privilegia, inicialmente, uma outra

dimensão lingüística, qual se ja , o texto. Assim, podemos dizer que, ao

tomar o texto como seu objeto, a atitude da semiótica será a de "des-

crever e explicar o que o texto diz e como e le fa z para dizer o que diz"

(BARROS, 1990, p. 7; grifos-da autora). O texto, por sua vez, deve ser

compreendido, segundo a perspectiva semiótica, como um "objeto designificação" ou como um "objeto de comunicação", Esses conceitos

são assim caracterizados por Barras (1990, p. 7):

A primeira concepção de texto, entendido como o b j e t o d e s i g n i f i c a ç ã o , fa z

que seu estudo se co n f u n d a c o m o exame do s pr oced im en tos e mecanis-

m os que o est ru turam, que o t ecem como um "todo de sentido". [...] A

segunda caracter ização de texto não mais o t om a como o b j e t o de s i g n i f i c a -

ç ã o , m as como o b j e t o de comunicação entre dois sujeitos . Assirn concebido, o

texto encontra se u lugar entre os objetos culturais, inserido n u m a socie-dade (de classes) e determinado po r fo rm aç ões ideológicas específicas.

48

Ao trabalhar com o conceito de texto segundo a perspectiva dos es-

tudos semióticos, estaremos sempre levando em consideração tanto sua

cUm ensão significativa quanto a comunicativa, uma vez que elas estão

sempre interligadas, porque não se pode falar em significação se ela não

é decorrente de uma interlocução. Mesmo que examinemos um texto

escrito, cuja aparência é a de ser oriundo apenas do sujeito produtor, seu

dizer só adquire sentido na medida em que é dirigido a um outro sujeito

q u e , pelo fato de ser o destinatário da mensagem, nele interfere.Ao ana-

lisar um conjunto de ciados dos livros mais lidos ao longo do período da

pesquisa, destacaremos a segunda dimensão em relação à primeira.

O sentido de um texto, segundo a semiótica, constitui-se por meio

de uma sucessão de níveis, concebidos a partir de seu plano do conteú-

do, que compreende o discursivo, nível mais superficial, mais próxi-

mo da manifestação textual; o narrativo, nível intermediário, que com-

preende a busca do sujeito pelo objeto; e o nível fundamental, que

abarca as oposições semânticas mínimas a partir das quais o discurso se

manifesta. A essa maneira de descrever a produção do sentido no texto,

a semiótica dá o nome de percurso gerativo de sentido.

Ao invés de reproduzir mecanicamente a arquitetura do percurso

gerativo de sentido, sua utilização torna-se mais fecunda quando se

atribui uma maior mobilidade à relação entre seus diferentes níveis

de constituição. Devem-se prever, durante a análise, a articulação sin-

tático-semàntica de cada um dos níveis e a inter-relação dos próprios

níveis entre si.Assim,

as isotopiastemático-figurativas

articuladas no

discurso pela instância da enunciação, no nível discursivo, refletem as

relações de busca do sujeito pelo objeto, no nível narrativo, que, por

su a vez, são determinadas pelas oposições semânticas mínimas do nível

lundamental. Entender o percurso gerativo de forma dinâmica e nãoestatica é unia maneira de tornar as anál i ses de textos mais produtivase de assumir a mobilidade dos sentidos.

No que diz respeito às formas de produção do efeito de sentidono nível discursivo, a semiótica, sob a influência dos estudos de Ben-

v

eniste (1976), identifica as projeções de pessoa, espaço e tempo en-1uanto forma de manifestação da enunciação. Assim, todo discurso, ao

 

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se r acionado, projeta um eu, um aqui e um agora que correspondem às

instâncias básicas da enunciação. O eu é conseqüência do ato de dizer,

ou seja, sempre que o discurso se manifes ta é porque ele é o resultado

de um ato enunciativo. Mesmo que se faça uma asserção genérica,

como "A água é formada por dois átomos de hidrogênio e um de

oxigênio", existe um sujeito da enunciação nela pressuposto, que , no

caso do exemplo apresentado, corresponderia a:"Eu digo que a água éf o r m a d a por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio."Não existe

enunciado que não seja o resultado de uma enunciação.

Entendido o discurso enquanto manifestação de linguagem, o su-

jeito que enuncia, o enunciador, é uma imagem de sujeito por ele

construída, ao mesmo tempo em que o enunciatário também o é.

Essas duas instâncias de discurso sustentam o jogo persuasivo que seconstrói no discurso.

Aristóteles ([s/d], p. 33-34}, em sua Arte retórica, dizia:

Obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral, quando o discurso

procede de maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de

confiança. As pessoas de bem inspiram conf iança mais eficazmente e mais

rapidamente em todos os assuntos, de um modo geral; mas nas questões

em que não há possibilidade de obter certeza e que se prestam a dúvida,

essa confiança reveste particular importância. É preciso também que este

resultado seja obtido pelo discurso sem que intervenha qualquer pre-

conceito favorável ao caráter do orador. [...] Obtém-se a persuasão nosouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma paixão, porque os juí-

zo s que proferimos variam, consoante experimentamos aflição ou alegria,

amizade ou ódio. [...] Enfim, é pelo discurso que persuadimos, sempre

qu e demonstramos a verdade ou o que parece ser a verdade, de acordo

com o que, sobre cada assunto, é suscetível de persuadir.

N a passagem acima reproduzida, Aristóteles fala da s três provas for-

necidas pelo discurso para se produzir o efeito persuasivo, próprio

da arte retórica. A primeira diz respeito ao enunciador, a segunda aoenunciatário e a terceira ao próprio discurso, na medida em que é

50

n r o d u t o de um processo constitutivo de verossimilhança. O que o

estagirita já disse em sua Arte retórica é o que a semiótica procura

demonstrar, segundo sua concepção de enunciador e enunciatário en-

quanto construções de imagens do autor e do leitor no próprio texto

com o objetivo de tornar o discurso verossímil.

Essa afirmação de Aristóteles de que a persuasão do ouvinte é obtida

pela capacidadeque o discurso tem de nele instaurar a paixão é a base denossa proposta para o estudo sobre os livros mais consumidos pelo leitor

brasileiro de 1966 a 2004. A paixão, segundo a semiótica, é um efeito

produzido, em um primeiro momento, por meio do processo de moda-

lização. Assim, a adesão de um leitor ao discurso veiculado por um texto

é resultado da instauração de um querer sobre o ser do enunciatário. De

certa forma, o público que consome determinada obra é impulsionado

po r esse querer, que tem por objetivo preencher duas funções: por um

lado, o leitor quer estar informado sobre alguma coisa, o que, no caso

do s livros mais vendidos, corresponderia a estar inserido no universo de

conhecimento dosleitores que lêem o que o mercado editorial publica;

po r outro lado, esse movimento de leitura pode-se dar por identificação,

ou seja, o leitor lê aquilo qu e julga ser sua própria verdade ou , arriscando

mais ainda, aquilo que ele deseja ouvir (ler) para reafirmar su a verdade.

Na medida, porém, em que os actantessãoposições enunciativas, ao

se constituir o texto, o actante passa a ser investido de um componente

teniático-figurativo que o torna um ator.Ele corresponde, portanto, ao

enunciador e ao enunciatário do discurso. O enunciador do texto é seuautor, e o enunciatário, seu leitor. Cabe dizer, porém, que autor e leitorsao entendidos aqui como simulacros e não como seres do mundo real.

Isso significa dizer que o enunciador é a imagem de autor construída

Pelo discurso, da mesma forma que o enunciatário é a imagem deleitor, construída pelo enunciador, com o objetivo de determinar o su-

Jei to para quem ele dirige o seu dizer. É nesse sentido, portanto, que se

z que o enunciatário é a outra face do sujeito da enunciação, uma vez

9

u

e dois enunciadores estão manifestos, o Enunciado^ (o enunciadorPropr iamente dito) e o Enunciador (o enunciatário).

51

 

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A semiótica, no entanto, além de reconhecer no texto essas duasfo rm as de manifestação do autor e do leitor, identifica nesse mesmoobje to semiótico ainda a realização do narrador, do narratário, do in-

terlocutor e do interlocutário. Qual é, porém, a diferença entre eles?Se recuperarmos a distinção entre totalidade e unidade apresentada noitem anterior, diríamos que enunciador e enunciatário dizem respeito

a total idades, isto é, remetem ao autor, instância englobante de umaobra, e seu leitor, o sujeito com quem dialoga. Já a distinção entren a r r a d o r e narratário centra-se na unidade, pois o narrador é a formaespecífica como o enunciador pode manifestar-se em um discursoparticular e o narratário é o sujeito particular a quem ele se dirige.

Quando, no interior do texto, o enunciador projeta outros atores, as

personagens, por exemplo, a quem dá a voz em discurso direto, mate-

rializam-se as figuras do interlocutor e do interlocutário.Retomando uma vez mais a perspectiva retórica deAristóteles an-

teriormente referida, identifica-se em sua proposta que o efeito per-suasivo do discurso assenta-se na inter-relaçao entre o orador e seu

auditório. Isso significa admitir que a força persuasiva do discurso re -

side na capacidade que o orador deve ter para moldar seu discurso,de

acordo com o público a quem ele se dirige. Ao abordar o estilo como

o recurso utilizado pelo orador para exprimir o conteúdo que deseja

transmitir a seu auditório, Aristóteles ([s/d], p. 187) afirma:

[...] há un a estilo apropriado a cada gênero e a cada disposição. Entendo

por gênero as diferentes idades: crianças, homem, velho; o sexo: mulher

ou homem; a nação: lacônio ou tessálio. A s disposições são as maneiras de

ser que dão à vida tal ou tal caráter, pois a vida do s indivíduos nã o ostenta

sempre tal ou ta l qualidade, devido a urna disposição qualquer. Portanto,

se o orador emprega as palavras que são próprias da disposição, exprimirá

o caráter . Pois um rústico e uma pessoa culta não podem empregar as

mes mas palavras nem da mesma maneira.

Além de levar em consideração o tipo de público a quem se dirige,

Aristóteles va i mais longe e af i rm a que, ao construir su a argumenta-

52

C5O o orador deve "prever as censuras de outrem", pois, assim fazen-do, garantirá ainda o efeito de verossimilhança, que é decisivo para o

estabelecimento da persuasão, na medida em que o ouvinte passa a

acreditar na verdade do que é dito. Nas palavras deAristóteles: "o que

el e [o orador] diz parece então ser verdade, visto que tem consciênciado q u e faz" (p . 187).

O que se percebe, então,já nas proposições do estagirita, na Anti-güidade Clássica, é o caráter constitutivo do enunciatário como ele-mento presente no ato enunciativo, à maneira como vimos defenden-

do aqui no âmbito da proposta semiótica. Além disso, ao argumentarsobre o caráter dialógico do discurso, razão pela qual af i rm a que a

retórica mantém uma relação com a dialética2, Aristóteles afirma o

pr incíp io passional da argumentação presente em todo texto. Uma

ve z que, para ele, a defesa do ponto de vista do orador e sua relação

com o auditório baseiam-se na construção de provas, afirma qu e essasprovas são de três tipos, residindo cada uma delas ora no caráter moral

do orador, ora nas disposições criadas nos ouvintes e ora no próprio

discurso. O caráter passional está presente, portanto, no terceiro tipo

de prova de que se vale o orador/ enunciador. "Obtém-se a persuasãonos ouvintes, quando o discurso os leva a sentir uma paixão, porque os

ju í zos que proferimos variam, consoante experimentamos aflição oualegria, amizade ou ódio" (p.33).

Partindo dessa mesma consideração de Aristóteles, Fiorin (2004b)

ir a afirmar que no ato de comunicação estão envolvidos, portanto,três elementos: o ethos, o pathos e o íogos. O primeiro diz respeito ao

enunciador do discurso, ou, como já foi apontado anteriormente, à

imagem de autor que o texto constrói ao estabelecer o ato enuncia-

tivo. O pathos,por sua vez, diz respeito ao enunciatário, entendido

corno "o estado de espírito do auditório" e "a disposição do sujeito

osentido em que é empregado o termo "dialética", na Arte retórica, é o de que a

nseituiçao dos argumentos do discurso se dá por meio do diálogo, uma vez que a

Jencia do raciocínio lógico está fundamentada em idéias prováveis que, por essaa°.sã o passíveis de sofrer uma refu tação .

53

 

Análises do discurso hoje Os livros mais vendidos...

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pa ra ser isto ou aquilo", conforme considera Fiorin (2004b, p. 71). O

conceito de pathos tem a ver, então, com a imagem do leitor que se

instaura quando o enunciador constrói o seu dizer, e não com o leitor

real que se dispõe a ler um texto, conforme também já foi apontado

mais acima. Nesse sentido, podemos dizer que um texto é sancionado

positivamente pelo leitor na medida em que seja capaz de provocar a

adesão passional. O logos, por f im, refere-se ao próprio discurso, isto é,

aos recursos de que pode se valer para construir sua argumentação.

4. O ethos do leitor brasileiro contemporâneo

Com o intuito de recuperar os pressupostos da semiótica acima apre-

sentados para o tratamento das questões relativas ao processo de pró-,

dução do texto, valer-nos-emos do corpus desta pesquisa para realizar

um exercício interpretativo dos dados mostrados pela relação das obrasque aparecem na tabela l, em anexo. Ressalte-se, uma vez mais, que

não descreveremos o corpus da pesquisa. Pretendemos aqui reconstituir

o ethos do leitor brasileiro contemporâneo a partir de uma leitura es-

pecífica da referida tabela.

Além disso, ainda neste item, examinaremos mais detidamente as

manifestações discursivas em dois dos livros indicados como os mais li-

dos pelo público brasileiro durante o período de 1966 a 2004, segundo

o mesmo gráfico. Além de tornar mais claro o que foi anteriormente

apresentado, pretendemos mostrar que os conceitos desenvolvidos pela

semiótica para o exame da constituição discursiva do texto não se

resumem a uma simples questão terminológica, como querem fazer

entender aqueles que a acusam de hermetismo teórico.

Observando, portanto, a tabela l, percebe-se que as obras ali elen-

cadas estão distribuídas nas seguintes categorias: auto-ajuda, memória,

ação/ intriga, humor, fantasia e didatismo histórico-filosófico. Enquan-

to na categoria de auto-ajuda aparecem 13 livros mais vendidos, nas

demais a variação do número de obras classificadas é bastante pequena,duas para memória, para fantasia e para didatismo histórico-filosófico e

54

uma para ação/ intriga e para humor. O que esse texto nos diz é que o

conjunto de hábitos, portanto, o ethos do enunciatário brasileiro é vol-

tado para os livros que abordem questões ligadas mais, por exemplo, a

ternas individuais que a temas sociais. Utilizamos aqui o termo ethos do

enunciatário porque, na medida em que a tabela l registra a preferência

do s leitores contemporâneos brasileiros, o que está nele realizado é o

discurso desse actante coletivo, isto é, ele torna-se um enunciador. Mas

o exame dos dados dessa lista certamente conduzirá ao pathos do enun-

ciatário, na medida em que poderemos perceber quais os sentimentos

que impulsionam o leitor a realizar suas escolhas de leitura.

Em verdade, dos 21 que aparecem na lista, apenas quatro deles per-

tencem ao universo da temática social, que são Olga e Estação Ca-

randiru, da categoria de memória, e O mundo de Sofia e A viagem do

descobrimento, da categoria do didatismo histórico-filosófico, embora

se possa ressaltar o caráter individualizante das duas obras de memóriaque aparecem no gráfico em análise.

Pode-se, então, observar, em termos de porcentagens, que 60% dos

livros mais lidos pelo leitor brasileiro contemporâneo pertencem à

categoria de auto-ajuda, enquanto os restantes 40% estão distribuídos

entre as outras cinco categorias levantadas, na seguinte proporção: 10%

didatismo histórico-filosófico, 10% fantasia, 10% memória, 5% ação/

intriga e 5% humor.

Levando em consideração a proporção acima referida, verificamos

que, segundo a tabela l em anexo, 17,dentre os livros distribuídos en-

tre as categorias de auto-ajuda, ação/ intriga, fantasia e humor, tratam

de temas mais voltados para questões individuais, enquanto os quatro

°utros, distribuídos entre as categorias de didatismo histórico-filosó-ç

ico e memória, abordam temas mais coletivos. A partir dessa consta-a?ao, portanto, o quadro acima assume a seguinte configuração: 81%

°s textos tratam da temática individual e 19%, da temática coletiva.

vJ s livros das categorias de memória e didatismo histórico-filosófi-

° > Olga, Estação Carandiru, O mundo d e Sofia e A viagem do descobrimen-> discutem, respectivamente, a perseguição ao s judeus pelo regime

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nazista alemão durante a Segunda Grande Guerra, a condição de vida

dos presidiários do Carandiru em São Paulo, a recomposição didática

da história da filosofia do mundo Ocidental e uma versão do desco-

brimento do Brasil que contradiz a que considerou a descoberta um

acaso. Portanto, o que se conclui é que o leitor brasileiro volta-se para

esse tipo de leitura modalizado pelo querer-saber.

Por outro lado, o que os leitores buscam nos livros das categorias

de ação/ intriga, humor e fantasia refere-se a um saber que não é da

ordem da aquisição de conhecimento, mas sim ao de uma realidadedistinta daquela em que vivem, portanto um deslocamento do tempo

real para o da imaginação.

Dentre os livros da categoria de auto-ajuda, o que se identifica é

um a subdivisão das 17 obras em subcategorias que se manifestam na

seguinte proporção: autoconhecimento, 39%; misticismo e esoterismo,

23%; individualidade e sexualidade, 15%; mundo dos negócios, 15%;crenças, 8% .

"Autoconhecimento", que envolve cinco diferentes livros, e "mis-

ticismo e esoterismo", com três livros, correspondem a 62% das pre-

ferências do s leitores na categoria de auto-ajuda. "Individualidade e

sexualidade" e "mundo dos negócios", cada uma com dois livros, cor-

respondem, juntas, a 30% das buscas do s leitores, sobrando 8%, com

apenas urna obra, para "crença".

A diferença entre "autoconhecimento" e "misticismo e esoteris-

mo", alérn do fato de o primeiro ser constituído por livros de não-fic-

ção e o segundo , por livros de ficção, configura-se a partir de subtemas

da individualidade. Os livros de "autoconhecimento" oferecem saberes

a partir dos quais os leitores poderão chegar à cura de suas doenças,

conquistar sucesso pessoal e/ou profissional, adquiri r maior capaci-

d a d e comunicativa e atingir um estado pleno de felicidade consigo

mesmos e com as pessoas que os cercam. Os livros de "misticismo e

esoterismo" discutem a crença em elementos não naturais, tais como

energia das pedras, anjos, bruxas, etc., como forma de adquirir maiorespiritualidade e, conseqüentemente, maior felicidade.

56

Os dois livros do subtema de "individualidade e sexualidade" pro-

curam discutir, a partir de duas posturas diferentes — u m a mais passio-

na l outra mais prática — a busca do prazer sexual. A s obras relativas a

"inundo dos negócios" dirigem-se a um público que gerencia empresas,

pre tendendo mostrar formas de melhor administrar os negócios. O úni-

co livro de "crenças"corresponde à reprodução e à afirmação do pensa-

mento da Igreja Católica como forma de atingir o equilíbrio espiritual.

Percebe-se, portanto, po r essa apresentação da s listas do s livros mais

consumidos pelo público brasileiro, no período de 1966 a 2004, que

o ethos desse ator chamado leitor constrói-se a partir da afirmação do

individual, da preocupação com as questões qu e tocam mais especi-

ficamente o bem-estar físico, econômico e espiritual do ser humano.

Pode-se dizer, ainda, que esse leitor é aquele que procura no que lê uma

resposta a problemas de ordem mais prática e particular do que àqueles

qu e dizem respeito às grandes temáticas coletivas. Se a felicidade ouo bem-estar chegam a ser propostos para uma coletividade, isso é en-

tendido corno um a soma particular de estados de diferentes sujeitos e

não como um estado coletivo. O exame do ethos desse leitor brasileiro

contemporâneo parece captar um reflexo de nossa sociedade capitalista,

em que o consumo e, em decorrência disso, a estabilidade econômica

são elementos decisivos em seu comportamento. Se se observa a preo-

cupação do leitor com o lado humano e espiritual, isso é pensado em

decorrência de uma adequação ao sistema socioeconômico em que ele

está inserido e não especificamente po r causa de urna pré-determina-

Cão. Queremos dizer, co m isso, que o leitor brasileiro do s últimos anos

e menos modalizado pelo dever-ser e mais pelo poder-ser.

Para concluir esse exame do s constituintes subjetivos do s livros

eleitos pelos leitores brasileiros, será observada mais especificamente a

conf iguração discursiva de dois dos textos mais lidos durante o perío-

do da pesquisa. Demonstraremos, a título de exemplo, como se ma-

rufestam os enunciadores nas duas obras escolhidas e em que medida

instaura-se os efeitos de subjetividade e de objetividade em cada umdeles. Nesse sentido, portanto, não estabeleceremos o ethos do enun-

57

 

Análises do discurso hoje O s livros mais vend idos. . .

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ciador, mas a forma como ele se projeta no interior do discurso. Para

tanto, reproduzimos os seguintes trechos:

(1 ) O rapaz chamava-se Santiago. Estava começando a escurecer quando

chegou com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto

tinha despencado há muito tempo, e um enorme sicômoro havia crescido

no local que antes abrigava a sacristia.

Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem pela

porta em ruínas, e então colocou algumas tábuas de modo que elas não

pudessem fu g i r durante a noite. Não haviam (sic) lobos naquela região,

mas certa vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo

o dia seguinte procurando a ovelha desgarrada.

Forrou o chão com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de -

ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, de que precisava co-

meçar a ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram tra-vesseiros mais confortáveis durante a noite.

Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as estre-

las brilhavam através do teto semidestruído.

"Queria dormir um pouco mais", pensou ele.Tivera o mesmo sonho da se-

mana passada,e outra vez acordara antes do final. (COELHO, 2001, p. 21-22)

(2 ) A grande desvantagem de ter apenas 28 anos é não ter tido tempo de

acumular dezenas de histórias e "causos"pr a contar. Para contar histórias com

essa idade é preciso vasculhar os primeiros anos de vida. E preencher um ca-

pítulo inteiro com quedas de triciclo e primeiros beijos não vai ser fácil.

Porém, quem compra um livro acha que tem o direito de ouvir detalhes

picantes, lados obscuros e impropriedades variadas. Farei o possível para

agradar.

Lendo o livro do lacocca, f i q u e i com vontade de ser um pobre imigrante

italiano para dar a volta por cima, despejando rancor e bílis em cima do

mundo malvado.Já o Akio Morita me fez querer ter nascido no Oriente

para poder andar a 180 quilômetros por hora com cara de quem está par-ticipando de uma cerimônia de chá.

58

Enfim, não vai dar para partir de nenhum empurrão ambiental como

estes. Vou ter que me ater a fatos bem menos cinematográficos, e difi-

cilmente o leitor fará uso do lencinho que preparou para as passagens

emotivas. (SEMLER, 1988, p. 15)

O trecho (1) corresponde aos primeiros parágrafos da primei-

ra parte da narrativa de O alquimista, de Paulo Coelho. Nesse trecho

percebe-se que o enunciador manifesta-se na forma de um narrador

qu e não se materializa por meio do pronome pessoal eu;diferente-

mente, há um sujeito que narra e que se refere aos fatos narrados

segundo a forma da terceira pessoa, o ele. Assim, o sujeito qu e realiza

determinadas ações expressas pela narrativa, a personagem Santiago, é

um sujeito que não corresponde ao narrador que conta a história; ele é

o sujeito de referência do enunciador.Ao mesmo tempo, o espaço em

qu e ocorrem os fatos narrados é um espaço do lá , distinto do aqui doenunciador; o tempo da narrativa é o do então,manifestado lingüistica-

mente pelo pretérito imperfeito e pelo pretérito perfeito 23, segundo

proposta de Fiorin (1996), distinto do agora do enunciador.

O narrador manifestado no enunciado dirige-se a um narratá-

rio, projeção discursiva da imagem que o enunciador constrói de seu

enunciatãho, que, no caso de (1), não é materializado por meio de

um pronome ou substantivo. O narratário, para quem o enunciador se

dirige, corresponde também a uma terceira pessoa, o "ele".Por meio desses procedimentos discursivos, pode-se perceber o

efeito de objetividade presente nessa narrativa que pretende recons-

truir um espaço mítico próprio das lendas e das fábulas. Essa é a forma

raais a d e q u a d a para a construção de urna verdade que não pode se r

atr ibuída a um sujeito individual, mas s im a fatos que parecem, se r

contados por si próprios.

Segundo Fiorin (1996), o pretéritoperfeito 1 corresponde à forma verbal que indicaante r ior idade em relação ao momentoda enunciação, enquan to o pretéritoperfeito 2 ,3 qu e assinala concomitância em relação a um marco temporaf pretérito.

59

 

Análises do discurso hoje Os livros mais vendidos...

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Quais são os índices apresentados pelo enunciado que remetem à

maneira como a narrativa constrói a imagem de seu narratário? A re-

ferência ao pastor e suas ovelhas é um primeiro índice de remissão ao

contexto dos discursos fabulares.Além disso, há uma expressão manifes-

tada no enunciado que recupera implicitamente uma passagem bíblica:

"ovelha desgarrada". A referência a essa expressão retoma indiretamen-

te a parábola bíblica da volta do filho pródigo. Portanto, infere-se disso

que o suje ito a quem o narrador se dirige é alguém que, espera-se, possa

reconhecer esse interdiscurso; portanto é um destinatário com quem

compartilha um conhecimento sobre o texto bíblico. O ambiente em

que se dá a cena narrada é o interior de uma velha igreja abandonada,

o que também remete ao universo do vocabulário cristão.

Outro elemento presente nessa cena de início da narrativa é o "si-

cômoro". Essa escolha vocabular do suje ito da narrativa pode ter como

propósito chamar a atenção do narratário para esse objeto, cujo nomeé incomum, ou então impressionar pela erudição, isto é, pela constru-

ção da imagem de um suje ito narrador sábio, pois ao invés de usa r o

termo mais popular, "figueira", fa z uso da forma mais científica, pois

remete ao nome de classificação da plantaJíotf sycomoms. Acreditamos

que essa segunda hipótese este ja , de antemão, descartada, já que um

narrador que pretende mostrar erudição não cometeria um erro de

concordância no parágrafo logo abaixo, ao construir uma frase com o

verbo "haver". Parece, então, que o uso do termo desconhecido serve

para apontar algo para o narratário, porque o final da narrativa irá reto-

mar exatamente essa mesma igre ja abandonada e essa mesma figueira

que aparecem na cena de abertura, pois o tesouro que o pastor queria

encontrar em um lugar tão distante estava escondido ali, naquele mes-

mo lugar, debaixo daquela figueira. Outra característica da tabula ou

da parábola é sua circularidade narrativa.

Um elemento que poderia ser chamado metalingüístico é a refe-

rência que a narrativa faz ao próprio livro, enquanto objeto material,

quando, no contexto da história, o herói é um leitor que usa o livrocorno travesseiro para dormir. É uma imagem um tanto esdrúxula,mas

60

está manifestada no texto. Por f im, mais um índice da imagem que o

narrador faz de seu narratário pode ser detectado no último período

Jo último parágrafo acima reproduzido: "Tivera o mesmo sonho da

semana passada, e outra vez acordara antes do final." À medida que a

história vai sendo narrada, percebe-se que o sonho é um elemento

mítico, pois o que Santiago sonhava repetidamente era exatamenteum aviso de uma força oculta que o chamava para sua"Lenda Pessoal",

grafada em maiúsculas no próprio texto.

O narratário construído, portanto, pelo texto de Paulo Coelho, é

um sujeito de discurso que manife s ta um pathos de enunciatário com

quem o ethos do enunciador dialoga. O leitor da obra de Paulo Coe-

lho identifica-se com esse ethos e, por esse motivo, escolhe ler suas

obras . Em termos de uma narrativização do discurso, diríamos que o

enunciatário aceita o contrato proposto pelo enunciador, na medida

em que assume como seus os valores manifestados na narrativa, o que

constitui uma sanção positiva do f azer do enunciador.

O trecho (2), que corresponde aos primeiros parágrafos do pri-

meiro capítulo, intitulado "Memórias de um velhinho de 28 anos", do

livro Virando a própria mesa, de Ricardo Semler, apresenta, por sua vez,

um enunciador que se projeta no enunciado na f o r m a de uni narrador

em primeira pessoa. O enunciado é fruto da manife s ta ção de urn eu

que conta determinados fatos em que está envolvido. O espaço do

enunciado é o espaço do aqui, aquele em que se coloca presentementeo enunciador, e o tempo, por sua vez, é o do agora.A partir de seu pre-

sente ele pode referir-se a fatos anteriores, concomitantes ou posterio-

res. Em (2) podemos constatar o uso do presente e do f u tu r o do pre-

sente para indicar, respectivamente, a concomitância e a posterioridade

relativas ao tempo da enunciação. Ao reconstituir suas experiências emenipresas brasile iras, o enunciador utilizar-se-á, também, da forma do

pretérito perfeito l, segundo proposta de Fiorin (1996), para indicar aanterioridade em relação ao tempo da enunciação.

Além de ser a abertura da narrativa, momento em que o narradorapresenta-se para o narratário, quando se instaura, portanto, o contra-

 

Análises do discurso hojeOs livros mais vendidos...

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to entre os dois sujeitos , o que se pode observar, ainda em (2), é que

o narratário está manifestado no enunciado por meio do sintagma

oracional "quem compra um livro".Ao construir essa expressão, o dis-

curso materializa uma figura de leitor e, no caso do texto em questão,

chega a fazer referência à própria crença desse sujeito:"[...] acha que

tem o direito de ouvir detalhes picantes, lados obscuros e improprie-

dades variadas." Numa forma dialógica, o narrador responde à crença

do narratário com o enunciado "Farei o possível para agradar", que se

refere à suaprópria performance enquanto ator responsável por deter-

minados acontecimentos que configuram a história narrada no livro.

Ao se referir a outros dois textos de memórias que se identificam

com a subcategoria de "mundo dos negócios" em que esse texto foi

por nós classificado, o narrador remete a um universo de conhecimento.

de seu narratário, o que, pela intertextualidade estabelecida, deve ser a

de um homem de negócios também. Ao se reportar ao livro de lacoccaem co-autoria comWilliam Novak, lacocca. U ma autobiografia, que,jun-

tamente com ele, aparece na lista dos mais vendidos da década de 1980,

o narrador instaura uma identidade temática, mas aponta uma diferença

de enfoque, ao afirmar que o dizer de lacocca está carregado de "rancor

e bílis em cima do mundo malvado". As escolhas lexicais do narrador

para caracterizar se u concorrente são as de uma pessoa que usa uma

linguagem mais descontraída, menos formal, traço que também remete

à identificação do narrador com seu narratário durante o desenrolar de

toda a história. Sua referência à obra de Akio Morita, Made inJapan.AkíoMonta e a Sony, também bastante vendida na década de 1980, embora

não apareça no grafico l, é outra forma de identificação temática e de

distinção de enfoque, quando se refere ao comportamento de playboy do

autor japonês, em uma construção como:"andar a 180 quilômetros por

hora com cara de quem está participando de uma cerimônia de chá".

Akio Morita foi um dos criadores da Sony, responsável pelo lançamento

mundial de produtos de alta tecnologia, que se tornou um símbolo do

Japão moderno. Sua autobiografia é considerada um clássico da litera-

tura mundial de business que, ao mesmo tempo, veicula a idéia de que aforça de vontade é a base de uma carreirabem-sucedida.

62

por meio dessas referências, o narrador constrói sua identidade, que

consiste em se afirmar, ao mesmo tempo, como um jovem e como um

jnpresário brasileiro, características que podem ser identificadas em

se u próprio discurso.

i S T o último parágrafo do trecho de Semler acima reproduzido, o

narratár io é novamente materializado no enunciado, agora por meio

do substantivo "leitor": "Vou ter que me ater a fatos bem menos cine-

matográf icos, e dificilmente o leitor fará uso do lencinho que preparou

para as passagens emotivas" (grifo nosso).E essa irônica referência ao

leitor configura-o por meio do estereótipo de leitor de romances, do

qual o dizer do narrador quer se distanciar.

Curiosamente, é preciso apontar, o livro de Ricardo Semler não

pretende ser uma narrativa ficcional como o de Paulo Coelho.A pro-

posta de Virando a própria mesa é de produzir um a análise da relação

empregado/ patrão em empresas brasileiras, para defender a idéia deque a postura de um relacionamento mais dinâmico e mais aberto

po r parte do empresário é economicamente mais eficiente do que a

do empresário que se distancia de seu operário, porque dele desconfia

sempre. Talvez o sucesso desse livro venha exatamente dessa caracte-

rística, qual seja, a de abordar subjetivamente um tema que, aparente-

mente, merece um tratamento mais objetivo. Seu tom de "memória-

crítica" acaba criando uma empatia com seu enunciatário, que passa

a acreditar no que lê, pois interpreta o que ali é colocado segundo

°s padrões da "experiência" (porque o narrador fala do lugar de um

sujeito que viveu as situações de relação patrão/ empregado em em-

presas) e da "sinceridade" (porque o narrador atribui a seu relato um

tom de descontraçao e de espontaneidade).

Embora não tenhamos esgotado a discussão sobre a questão teó-ri ca da semiótica em foco neste trabalho, pudemos mostrar as basesa

partir das quais propomos construir o perfil do leitor brasileiro entrea década de 1960 e a de 2000. A constituição desse perfi l organiza-

se, então, a partir do exame da s formas de configuração do pathos doeruinciatãrio em relação a seu outro, o ethos do enunciador.

 

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Compreendida a constituição do ethos corno urna imagem do au-

tor, isto é, "um autor discursivo, um autor implícito" (Fiorin, 2004b,

p. 120) e a do pathos "como a imagem que o enuncíador tem do seu

auditório" (Fiorin, 2004a, p. 71), verificamos como a conformação do

leitor brasileiro contemporâneo está manifestada nas listas dos livros

mais vendidos no Brasil durante o período de 1966 a 2004. Nesse

sentido, porém, os conceitos de ethos e de pathos são intercambíáveis.

Quando examinamos como os textos que aparecem nas listas dos m a i s

vendidos constituem seus leitores, foca l i zamos o pathos; quando, por

outro lado, observamos o perfil que as listas, entendidas como um

discurso, constróem, do leitor brasileiro contemporâneo, evidenciamos

se u ethos.

5. Considerações finais

O que o exame do gráf i co l e da tabela l revela, conforme procura-

mos mostrar nos itens anteriores,é a grande incidência dos textos de

auto-ajuda na preferência do leitor brasileiro contemporâneo. Dessa

forma, o que se pode concluir é que a alta porcentagem desse tipo

de texto nas escolhas do leitor deve-se ao fato de que, na sociedade de

consumo dos dias de hoje, acentua-se o individualismo em detri-

mento do coletivo. Nesse sentido, portanto, a presença do traço da

individualidade é uma característica central na constituição do ethos

desse leitor.

Segundo alguns estudos que trataram das questões das sociedades

modernas, ou pós-modernas, o crescimento do individualismo leva os

sujei tos a um sentimento de falta. Como os princípios das instituições

e da tradição religiosa são cada vez mais questionados e colocados em

xeque, os indivíduos buscam uma alternativa para o que se poderia

chamar seu "estado de crença". Como não pode mais apoiar-se nas

certezas da tradição, o homem contemporâneo passa a apreender a

realidade que o cerca em função do segredo, do engodo, do mistério,do incompreensível, etc. Esse destronamento dos valores será, então,

64

responsável pela perda de sentido das grandes narrativas e, conseqüen-

temente, o impulsionador das narrativas místicas, esotéricas e das di-

ferentes situações propiciadoras da auto-ajuda, que não se limitam aos

livros, pois essa perda se mani fes ta em outros meios de comunicação.

Nesse sentido, portanto, o livro é um bem de consumo, da mesma

forma que a temática de que trata também o é.

Para retomar a discussão sobre as noções de totalidade e de unidade

com que iniciamos este trabalho, poderíamos dizer que a caracterís-

tica do individualismo que reconhecemos como constitutiva do ethos

do leitor brasileiro contemporâneo não aponta, porém, para o ünus

brondaliano, mas sim para o conceito da totalidade em que podem

se r reconhecidas cada uma das partes do conjunto, o que correspon-

de à concepção do pronome latino omnis apontada por Brondal. Essa

parece ser a posição de Fiorin (1997), quando, ao analisar adiferença

entre íõtus e omnis na cultura contemporânea, afirma que "a diversida-

de caracteriza o fõtus, pois ganha ela sentido pela articulação com uma

totalidade. Já a característica do omnis é a fragmentaçãodas partes que

a compõem. Ora, a cultura contemporânea nega um processo de tota-

l ização e constrói, se me permitem o bárbaro neologismo, um processo

de omnização, de universalização".

Nesse sentido, o que propomos, então, é que o esquema utilizado

por Discini (2003) para explicar o conceito de totalidade ligado à

noção de estilo, tal como foi apresentado no item l deste trabalho,deva sofrer uma modificação e, dessa forma, explicar em que medida

a totalidade passa a ser entendida nesse processo de caracterização do

leitor contemporâneo brasileiro, que é um consumidor das obras que

discutem questões não mais coletivas, mas individuais. O quadrado

serniótico poderia, então, apresentar-se da seguinte forma:

Tp (omnis)

lU p (nemo)

65

 

Anál ises do discurso hojeOs livros mais vendidos.. .

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A t o t a l idade integral (totus) é negada,constituindo-se como unida-

de parc ia l (nêmo), conceito complementar da totalidade parcial (omnis).

Dessa forma, portanto, poderíamos caracterizar o processo de "omni-

zação", de univer sa l i zação , apontado por Fiorin (1997).

Referências

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de Carvalho. Rio de Janeiro:Tecnoprint, [s/d].

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica d o texto. São Paulo:

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BRONDAL.Viggo."Omnis et totus". ln:Actes sétniotiques. Documents.

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FIORIN, José L u i z . As astúcias d a enunciarão. As categorias de pessoa,

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Nacional da ANPOLL, realizado na UNICAMP, em Campinas, SP,

de 28 a 30 de maio de 1997 — http://www.unicamp.br/-anpoll/

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CHEZAN, Renata Coelho (orgs .) . Razões e sensibilidades. A semió-

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GREIMAS,Algirdas Julien. Semiótica e ciências sociais. Trad. Álvaro Lo-

rencini e Sandra Nitrini. São Paulo:Cultrix, 1981.

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"Analyse du contenu. Comment definir lês indéfinis?" In:

Actes sétniotiques. Documents.VIII, 72, 1986, p. 19-33.

; COURTÉSJoseph. Dicionário d e semió tica .Trud.Alceu Dias

Lima e t ai. São Paulo: Cultrix, [s/d],

Anexos

59

40

38

34 3433 33 31

30 30 29 2928

2624 24 24

23 23 22 22

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Gráfico l - Livros mais vendidos no Brasi l entre 1966 e 2004

1. Auto-ajuda

Nome do livro Nome do autor

1 • 1 .Autoc onhe cimento

(8) V o c ê pode c u r a r sua vida

P) O s u c e s s o não o c o r r e por a c a s o

(13) Inteligência emocional

O í > ) Comunicação global

_(20)_/1 me da felicidade

Louise Ha y

Lair Ribeiro

Daniel Goleman

Lair Ribeiro

Dalai L a ma / Howa rd Cude r

Década

1990

1990

1990

1990

2000

J 2. Misticismo e esoterismo

67

 

Anál ises do discurso hoje

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(1) O alquimista

(5) Brida

(1 1} A p r o f e c i a celestina

Paulo Coelho

Paulo Coelho

James Redfield

1990

1990

1990

1 .3. Individualidade e sexualidade

(6) A insustentável leveza do ser

(18) 203 maneiras de enlouquecer um homem na cama

Milan Kundera

Olivia St. Claire

1980

1990

1.4.Mundo dosnegócios

(2) Virando a própria mesa

(17) íacoaa. Uma a u t o b i o g r a f i a

Ricardo Semler

Le e lacocca/William Novak

1980/90

1980

1 .5. Crenças

(19) Minutos de sabedoria Carlos Torres Pastorino 1990

2. Memória

Nome do livro

(12) C%

(21) Estação Carandím

Nome do autor

Fernando Moraes

DraurioVarella

Década

1980

2000

3. Ação e intriga

Nome do livro

(10) O p e r a ç ã o c a v a l o d e T r ó i a

Nome do autor Década

J.J .Benkez 1980

4. Humor

Nome do livro

(4) As mentiras que os homens contam

Nome do autor

Luis Fer n an d o Verissinio

Década

2000

5. Fantasia

Nome do livro

(7) As brumas deAvalon

(14) Harry Potler e a pedra ilosofal

Nome do autor

Marion Zimmer Bradley

J. K . Rowling

Década

1980

2000

6. Didatismo histórico-fílosófico

Nome do livro

(3) O mundo d e S o f i a

(15) A viagem do descobrimento

Nome do autor

Jostein Gaarder

Eduardo Bueno

Década

1990

1990

Tabela l — Distribuição dos livros mais vendidos em diferentes categorias, segundo

a ordem em qu e aparecem no gráfico ?

DIZER (E NÃO DIZER) YVESBONNEFOY1

Anne Hénault (Universidade de Paris IV- Sorbonne)

Muitos textos de Yves Bonnefoy (e principalmente as monografias

qu e ele consagrou a um certo número de autores2) podem contribuir

para o progresso dos conhecimentos nas ciências da linguagem, e, mais

especif icamente, na semiótica. Sabe-se qu e essa disciplina exclui desuas problemáticas a dimensão psicológica. Ela está também muito dis-

tante dos questionamentos naturais que suscitariam a força de em par ia

qu e poderia v ir desses textos e o fato de eles provocarem, em cada

leitor, a sensação de que fo ram para ele concebidos. A semiótica não

pode se contentar em caracterizar tais atos de linguagem como metexis

68

1 O presente artigo é resultado da tradução da segunda parte de uma comunicação

intitulada:"Dire (et ne pá s dire)Yves Bonnefoy", que foi apresentada pela autora numdos famosos Colóquios de Cerisy (F ra nça ) , realizado de 23 a 30 de agosto de 2006.Tal

colóquio teve como tema: "Yves Bonnefoy, poesia, pesquisa e conhecimentos". Cabe

esclarecer queYves Bonnefoy (nascido em 24 de junho de 1923) é um nome de desta-

que na França.Atua no campo da poesia contemporânea, escreve como ensaísta, exerce

atividades editoriais no âmbito das ciências humanas e produz trabalhos na área de his-

tória da arte, sem contar seus ensinamentos no renomado Collège de France. (N. O.)2 Refiro-me essencialmente ao Prefacio do catálogo Chillida (Paris: Galerie Lelong,1990, p- 3-18), a Giacotnett. Biographie â'une oeuvre (1991); a Remarques sur lê âessin (Pa-

ris: Mercure de France, 1993); a Goya (Bordeaux: William Blake & Co. Edit, 2006) e

também aos diferences estudos consagrados a Baudekire, entre os quais os que foram

Primeiramente apresentados na Bibliothèque Nationale de France (Conferência DelD"ca, 2000 e 2003): Baudelaire: Ia tentation de 1'oubli (BNF, 2000) e Lê poete et "leflot

dês multitudes" (BNF, 2003).

 

Análises do discurso hoje Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy

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(presença calorosa e assumida, num a iden tif icação do "eu" com o Ou-

tro, no mais profundo e no mais angustiante de sua condição mortal)

em oposição a mimesis (pura "representação" distanciada, marcada pelanegatividade inerente à linguagem3).

A semiótica, quando com eçou a se interessar pelo sensível, deu-se

por objet ivo a bordar e t ratar a expressão das paixões, domínio de elei-

ção da psicologia, por meio de cálculos de sentido mais formais, feitosa partir de análises (estritamente gramaticais) do plano da expressão

dos textos. O texto, qualquer que seja o signif icante (verbal, pictural,

musical, fotográfico, etc.) é uni espaço fechado, do qual a semiótica se

proíbe sair e do q u a l ela não deve deixar de l ado nenhum elemento

consti tut ivo. É apenas a esse preço que se pode começar a situar os

esquematisníos de expressão mais profundos e , portanto, mais signifi- .cativos.

Nessa perspectiva, diferentes momentos de expressão em que aescrita chega a guardar algumas marcas, insignificadas, m as indiscuti-

velmente presentes, de uma intensidade emocional sentida4, puderam

começar a ser descritos, de modo sistemático e segundo procedimen-

to s explícitos. A té então a lingüística considerava qu e essas marcas só

eram perceptíveis no oral, na presença efetiva de um locutor empre-

gando unia linguagem corporal espontânea (feita de mímicas, de ges-

to s ou de variações do tom e da cadência da voz) , que acompanhava

su a l inguagem puramente'verbal. Em contrapart ida, a semiótica pôde

formular a hipótese de que seria preciso procurar marcas também naescrita (ainda que fossem de outra natureza) . F oi nesse espírito que se

iniciou a observação de tais modulações da escr i ta, modulações an -tropológicas e não estilísticas, vistas, por um lado, em d o c u m e n t o s de

arquivos do século XVII (bastante discretos e pouco eloqüentes sobrea real experiência vivida dos en unciado res) , e , por outro lado, apreen-

3 O jargão semiótica emprega aqui a metáfora mecânica da"debreagem enunciativa".

4 E, de algum modo, conservada e s e m pre presente no discurso, a um ponto tal quepode c on t a g i a r pela sua presença .

70

em momentos de expressão pessoal de um dos primeiros textos

publ icados por F r e u d .Essas duas séries tão diferentes de documentos demonstraram que

é possível que a escri ta t raga a marca de um a com unicação absolu-

tamente primit iva, quase corporal, por parte do enunciador; e pu-

dernos assim com eçar a explicar a ef iciência de ta is marcas, no que

di z respeito ao contágio emocional3. São precisamente essas tentativasanteriores que devem nos inci tar hoje a i r buscar , nas publicações deY v e s B o n n e f o y — descritas por todos como portadoras de uma fo r te

presença emocional e , portanto, perfei tamen te em páticas —, índices

ou verif icações da gramática profunda do discurso apaixonado (isto

é, o discurso realmente carregado de afetividade e de discriminações

sensoriais e sensíveis, registradas de tal modo que parecessem ter sido

realmente vividas) .

Para isso, é necessário mudar de papel e, ao invés de procurar nãodizer o que se apropr ia da substancia d o conteúdo do s escri tos de YvesBonnefoy , deve-se lançar à comunidade dos pesquisadores em ciências

da l inguagem um convite para explicitar radicalmente o que caracter i-

za z forma d o conteúdo desses escri tos empáticos.Trata-se de uma tarefa

de longo fôlego, cujo programa podemos esboçar apenas sumariamen-

te . Dois textos, sobretudo, vão nos interessar aqui , Giacom ett i e Goya ft;

m as antes de começar a abordá-los, seria útil lembrar as grande s etapas

da s recentes pesquisas nesse campo. Isso permit ir ia contextualizar os

ques t ionamentos aos quais devem se r submetidas as supraci tadas m o-

nografias.

Se é verdade que a primeira semiótica (1964-1979) deve grande

par t e de suas descobertas iniciais em narratologia à desconsideração

Trata-se de nossa obra Lê Pouvoir comme passion (1994), consagrada aos jovens "tecno-

cratas" da época de L uís XIII; e de um art igo que se refere ao caso de Miss Lucy, nos

Estudos sobre a histeria em Freud (ver Anne Hénault, 2002, p. 255-276).

Nessa mesma perspect iva , eu gostaria de questionar t a m bé m o pequeno texto incan-

descente que L'Improbab!e consagra ao biógrafo de Sade, descobridor da correspon-

dência do a u t o r dejusttne: Gilbert Lely.

11

 

Análises do discurso hoje Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy

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dos componentes psicológicos da personagem, em benefício de uma

abordagem puramente relacionai e sintáxica da trama narrativa das

histórias, também é verdade que, desde os anos 1977-1980, pesquisas

inspiradas na fenomenologia foram feitas em direção às "paixões" pro-

priamente ditas. Na época, a palavra não era "politicamente correta", e

a Escola de Paris foi intimada a explicar essa escolha.Ela respondeu em

termos bastante cartesianos que, se a narratologia primeira tinha che-gado a explicar a maneira pela qua l a linguagem apreende, fragmenta,

discretiza de maneira regular, e figura esquematicamente os processos-

chave através da Ação humana (assim como as transformações que dela

resultam), a semiótica da Paixão teria que descrever a maneira pela qual

a linguagem apreende e f igura realmente (isto é, universalmente, fora

dos procedimentos oferecidos pela retórica que permanecem relativos

a uma dada cultura) as modulações passionais, as sensações internas e

contínuas provenientes dos humores e dos estados de espírito que sãoa transcrição primeira do que o sujeito humano sofre e somatiza, a

maior parte das vezes fora da linguagem. Nessa problemática /Paixão/

torna-se o termo a ser oposto categoricamente a /Ação/.

Sempre em conseqüência de preocupações com procedimentos e

métodos, os dez primeiros anos dessa pesquisa coletiva foram consa-

grados à análise de /paixões-lexemas/ como a cólera, a nostalgia, a ava-

reza, cada uma aparecendo como o roteiro de um pequeno romance

estereotipado. Essa pesquisa só pôde começar a se libertar do entra-

ve lexemático quando foi possível reunir um número suficiente de

documentos (no caso, não escritos l iterários, mas arquivos políticos

autênticos do ano de 1622) para mostrar que não há necessidade de

encontrar, no discurso escrito, uma temática passional explícita (e me-

nos ainda seu léxico) para poder provar que um texto foi escrito sob

o império da paixão. O processamento cruzado de todos esses textos

(aparentemente frios e totalmente indenes da menor expressão inten-

cional do nível passional) provou que existia, em sua trama, o aflorar

do sentir que realmente constituía o seu sentido latente e ef icaz. Para

textos desse gênero, cu j a existência talvez fosse esperada por ele, mas

72

que ele não pudera descobrir (referimo-nos aqui a textos isentos de

qualquer pretensão retórica ou literária), A.J. Greimas tinha for jado a

expressão tão pesada quanto saborosa de "textos perfumados por odo-

re s proprioceptivos": textos nos quais transpirava de algum modo o

cheiro do corpo de uma pessoa concreta e particular, segundo a espe-

cificidade de seus ritmos vitais — textos habitados por um corpo real

e por urna sensibilidade ainda mais eficiente e decifrável ao procurar

tão bem se dissimular.

A dimensão do sentir7 consiste nessa invasão do passional, ou pelo

menos do emocional e do somático, num discurso que não procura

dizer tal dimensão, mas que, na realidade, se vê obrigado a exprimi-la,

por nela confiar inteiramente: como esquema de apreciação da situa-

ção, de ajustamento ao real e, finalmente, de decisão axiológica para se

si tuar em seu ârnago. O sentir, ao que parece, só pode dizer a verdade:

el e é cúmplice dos arcanos da vida.A dimensão do sentir seria, então, na escrita, da mesma ordem que

esse "supra-segmental" de que falam os lingüistas para o oral: um conjun-

to de sinais quase corporais, postos em funcionamento de modo instin-

tivo, fracamente controlados, mas altamente significativos e quase sempre

autênticos, a ponto de fundar testes de veridicção realmente sérios.

Os desenvolvimentos da semiótica são fortemente limitados p e l a

aparelhagem gnosiológica, teórica e metodológica que atesta sua ob-

jetividade. É por isso que essa primeira pesquisa sobre o sentir, que

resultou na obra Lê Pouvoir comme passion é ainda bastante tímida — e

provavelmente decepcionante — se a compararmos às imensas mono-

grafias que Yves Bonnefoy consagrou, de fato, ao sentir de Giacomettie de Goya em relação às etapas de construção de suas verdades e de

suas obras. Porém, penso que esses escritos, mais livres que os nossos,

O termo em francês é " 'éprouver\ que aqui optamos por traduzir como "sentir". (N.O.)

73

 

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são susceptíveis de solucionar alguns impasses nos quais a semiótica,

em seus desenvolvimentos recentes8, correu o risco de se f echar .

Nas monografias citadas (e em muitas outras, certamente), Yves

Bonnefoy aborda profundamente a observação e a descrição de um

dos funcionamentos mais enigmáticos e mais cruciais do sentir: o que

aparece como uma das chaves, talvez mesmo a chave da inteligência

soberana, ativa em todas as grandes sínteses — sejam elas da ordem da

ciência, da arte ou da decisão política e estratégica (no sentido mais

lato). Essas sínteses parecem só poder intervir quando todas as faculda-

des de um ser que sente (espírito conceptual e corpo próprio, cérebro

direito e cérebro esquerdo, pensamento conceituai e estar-no-mundo

global, ou presença) estão mobilizadas na extrema atenção de uma ta-

refa capital a cumprir. Por suas monografias,Yves Bonnefoy tornou-se .

capaz de observar e de mostrar o modo como se operam essas sínteses,

esses surgimentos de sentido social que são as grandes obras (o u também asgrandes decisões políticas). Fica bem evidente que é nesse ponto que

deveríamos procurar as mais importantes esquematizações do devir,

e não apenas nos termos — no fundo sadianos — da circulação dos

objetos de valor entre sujeitos, antes de tudo invejosos9.

O verdadeiro devir reside nesses surgimentos, cuja emergência Yves

Bonnefoy se aplica a descrever em termos mais precisos, mais bem do-

cumentados e irrefutáveis. Assim, el e mostra como situar e designar o

processo de emergência10, o suplemento qualificativo ou ontológico que

toda verdadeira criação representa. Este me parece ser um ponto fun-

damental, a ser destacado no colóquio Poesia e Saberes: as "Biografias das

Obras", às quais Yves Bonnefoy se dedicou nesses últimos vinte anos

e que devem ser incorporadas ao dossiê de um estudo sistemático da

8 Ou seja , desde a morte de Creimas em 1992 (ou melhor, desde 1986, segundo alguns

membros da Escola de Paris , pois os últimos anos da vida do grande pesquisador foram

tomados por uma longa doença).9 É dessa maneira esclarecedora, mas mínima, que o devir foi inicialmente tratado pela

semiótica da ação; e, acé o momento, a semiótica das paixões não o elaborou melhor.10 Lembro aqui os trabalhos mais recentes de John Searle.

74

imaginação cientifica (lembro particularmente aqui os trabalhos de Gerald

Holton) .Constataremos, além disso, que, graças a essas pesquisas e através de

verif icações concretas, as idéias deYves Bonnefoy podem juntar-se à

etapa final do pensamento de Merleau-Ponty, ou se ja , às conclusões

a que esse filósofo chegou em La prose du monde, Signes, Lê visible e t

rinvisiUe, ou em seus Cursos no Collège de France. O esclarecimento

de certos momentos de verdade dos artistas que Bonnefoy estuda vai

encontrar eco nas palavras do filósofo:"Para a consciência, não há dife-

rença entre o ato de se atingir e o ato de se exprimir" (MERLEAU-PONTI,

1969, p. 26), ou ainda:4'Não somos nós que falamos, é a verdade que se

fala no fundo da palavra." (MERLEAU-PONTI, 1964, p. 239).

As grandes biograf ias de obras elaboradas porYves Bonnefoy ofere-

cem um corpus11 inesperado para a pesquisa no campo da semiótica das

paixões, particularmente no que diz respeito ao sentir da criação, quedeveria ser analisado paralelamente com o sentir da ambição ou com

o sentir do "amor romântico" (segundo a expressão er n voga hoje em

dia nas ciências humanas; os biólogos falam de "infatuação"). No que

concerne ao sentir da criação, o Giacometti e o Goya se esclarecem mu-

tuamente. Ambos se desenvolvem segundo urn esquema narrativo que

respeita a ordem cronológica, como uma espécie de roteiro em que os

elementos cruciais de uma vida, na medida em que podem ser conhe-

cidos, funcionam como revelações, provadas visualmente (no caso das

ar tes plást icas) por avanços consideráveis, tanto na ordem da expressão

quanto na ordem do conhecimento de si.

Poder-se-á pensar talvez que "o filme" seja ainda mais surpreenden-

te no Goya, tão condensado e tão narrativo. Três provas picturais maio-

re s esclarecem a procura de si mesmo como descoberta do verdadeiro:

1) O primeiro auto-retrato pintado após o grave problema de saúde

do artista e o início da sua experiência de surdez em 1.795-

1797.

75

 

Análises do discurso hoje Dizer (e não dizer) Yves Bonnefoy

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2) O inacreditável ex-voto dedicado às qualidades de compaixão

do Doutor Arieta no quadro de 1820: Goya soigné par lê âocteur

Arieta [Goya tratado pelo Doutor Arieta], pintado logo após a

segunda doença (gravíssima) de Goya e usado na capa da obra.

3 ) Enf im, Lê Chien [O Cão], uma das m ais importantes "pintu-

ra s negras" da Quinta dei Sordo, que Yves Bonnefoy analisa de

modo verdadeiramente semiótico e demonstrativo, abordandosucessivamente12 :

- o nível dos significantes, com um estudo dasvariações na opo-

sição primeiro plano versus plano de fundo , no universo da

pintura clássica, assim como na s primeiras obras do pintor,

menos expressivas;

— e o nível dos significados,, com uma segunda categoria explica- -

tiva, tomando como argumento a ausência ou a presença da

relação su je i to / objeto (investida do semantismo predador/presa) .

A o final dessas três etapas, cada um a apoiada numa prova material

incontestável , Yves Bonnefoy depreende o sentido da progressão de

Goya na conquista de sua expressão própria: co m essas três obras (à s

quais seria conveniente acrescentar Caprices [Caprichos] e o conjunto

da s pinturas negras) passamos do "quase nada" do s clichês idílicos da s

tapeçar ias ao "absolutamente tudo" do Ser como presença.

Para progredir no conhecimento semiótico de urna gramática pro-

funda do sentir [d e l'éprouver\t seria conveniente comparar termo a

termo as duas biografias e tentar, de algum modo, uma montagem

paralela do s dois "filmes". O conjunto de Giacometti e, sobretudo, as

páginas 353-412 são escandidas de uma maneira comparável à que

acabamos de evocar, por revelações eruditas que se vêem imediata-

12 Consultar sobre esse método o conjunto dos trabalhos de Jean-Marie Flocb, publi-

cados pela Presse Universitaire de France, especialmente os três estudos retomados porAnne Hénault (org.) Questions de Sémiologie, p. 103-169.

76

inente transcritas e provadas por modificações radicais de expressão:

estas se traduzem em obras inesperadas, rompendo com as fo rm as ex -

pressivas precedentes. Através de suas anál ises,Y ves Bonnefoy teria sido

levado a encontrar as leis quase matemáticas de uma expressão rigoro-

sa, como elas se exprimem em Leíbniz (1942, p. 216):"Uma coisa ex -

prime outra (em minha linguagem) quando há uma relação constante

e regulada entre o que se pode dizer de uma e de outra. É assim queuma projeção de perspectiva exprime o seu geometral." Não se pode

exprimir de forma melhor a relação necessária que a ciência (matemá-

tica, física ou química), mas também o conhecimento artístico, registra

entre um fato verificado e sua expressão.

A temática maior desse encadeamento de revelações vitais em Goya

é a de uma experiência da compaixão que consegue progressivamente

levar o pintor ao seu ser verdadeiro, todo feito de humanidade. Ao

contrário, o encaminhamento iniciático de Giacometti compreende,em primeiro lugar, a aceitação de uma disponibilidade em relação à in-

fluência do acaso em sua vida e er n su a criação13 (Cotnposition avec t r o i s

f igures et un e tête [Composição co m três f iguras e u m a cabeça], 1950);

em segundo lugar, inextricavelmente ligado ao primeiro, a aceitação

do amor do Outro em sua f ini tude e em seu caráter mortal (seu "O

que jamais será visto duas vezes"): dom, sentido de partilha, confiança

invadem o humor de Giacometti e conduzem sua arte ao apogeu14.

Em terceiro lugar, a experiência se amplia e se f o r m u l a na própria

linguagem da mística, enquanto su a expressão artística se revela cornouma espécie de saber cumulativo cientificamente verdadeiro15.

Sem poder imaginar apresentar atualmente uma descoberta semió-

tica consolidada, decorrente dessas montagens paralelas, pode-se ao

m e n o s reter um primeiro esquema, extraído desses dois percursos ini-

ciáticos da criação artística maior; pois esses encaminhamentos, qu e

13 Giacometti, p. 349-353.

14 Ibidetn, p. 369-372.15 Stidetn, p. 382-390

7 7

 

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diferem tematicamente na sua experiência de vida singular, são, noen tan to , semelhantes em sua síntese axiológica:

1 ) U m a fidelidade absoluta, a qualquer preço, ligada à sua própriaverdade1 6.

2 ) U m a aptidão para sair de seu "egotismo"e viver a transitividade(a interação com o Outro).

3 ) Uma verdadeira permeabilidade aos grandes acontecimentos da

vida pessoal (importância determinante dos problemas de saú-

de em ambos os casos) e da vida coletiva (guerra, decadência

política para Goya; acasos objetivos, sof r im entos e encontrosdecisivos na Paris daqueles anos para Giacometti).

4) Uma capacidade para ir até o fi m do que é enfrentado no mo-mento.

5) Uma disponibilidade ao surgimento do desejo de realizaro que,

at é então impensável, torna-se de repente indispensável .

Todo um conjunto de competências (entre as quais a veridicção, a

mobilidade e a disponibilidade interiores, a concentração, a capacidade

de am ar) vê-se assim mobilizado de maneira comparável nos dois casos

— o todo determinando um saber-ser da "descoberta" artística (logo,historicamente determinada, e tão necessária quanto a descoberta

científica). Desse modo, Goya, Giacometti e todos os pesquisadores

de sentido assumem a expressão coletiva como individual do que era

para viver em seu tempo, em seu espaço, em seu ambiente social. Aevolução de sua linguagem plástica t em a mesma autenticidade que ada "língua natural" que partilham com seus concidadãos.

De um ponto de vista filosófico (especialmente o de Merleau-Pon-

ty), a busca da expressão semelhante àquela q u e Yv e s B o n n e f o y usou

para analisar a escansão é uma ação singular de revelação de verdades

16Goya, Lê s peintures noires, p. 64. "Goya se recusando a Goya? Goya se retirando de

su a verdade? Mas o que é essa verdade senão a visão que se impusera a ele, tanto pelocorpo quanto pelo espírito na época dos 'Caprices' [-..]."

78

históricas:"Longe de a expressãoser a obra da consciência, esta aparece

de preferência como o horizonte de uma expressão que é em primeiro

lugar anônima e,finalmente, fato do mundo mais do que do espírito".

Deixando-se captar por um fragmento de si mesmo, o mundo atinge

um novo modo de manifestação ( B A R B A R A S , 1998, p. 195), o que, na s

própr ias palavras de Merleau-Ponty, assim se exprimia: "Não sornos nó s

qu e falamos, é a verdade que fala a si mesma no fundo da palavra". 17

De um ponto de vista semiótico, o que reterá nossa atenção não é a

singularidade e a adequação histórica da expressão, mas,ao contrário, o

caráter comparável da energéia, dos processos que permitem su a emer-

gência — caráter aparentemente generalizante e a-temporal: aquilo

que, se repetindo, desenha ao mesmo tempo o roteiro específico de

emergência dessas novas significações e a gramática previsível de um

ta l roteiro. Teríamos aí uma forma recorrente, pouco sensível às varia-

ções culturais — isto é, o exato objeto do saber semiótico, aquele quefunda e delimita su a existência enquanto disciplina de tipo científico.

Tudo leva a crer que esse esquema do sentir na s grandes buscas vitais

(logo, na expressão artística) é dotado de uma profundidade antropoló-

gica comparável à do esquema narrativo. O desafio de procurar extrair

esse esquema dos resultados obtidos nas monografias deYves Bonnefoy

(pela comparação sistemática do s acasos da s vidas, consideradas junta-

mente com os progressos na expressão do s quais esses acasos parecem

te r sido o motor) é certamente nienos arriscado que o de Freud, ao ve-

rificar suas observações sobre a essência do sonho a partir de Gradiva, oromance deJensen. Entretanto, a resposta que ele acreditou ter que dar

a seus detratores pode se r transposta para o campo da semiótica:"[...]

há muito menos de liberdade e de arbitrariedade na vida psíquica do

que estamos inclinados a admitir; talvez não haja nenhuma [...]. O que

chamamos a c a s o no mundo exterior reduz-se a leis; o que chamamos

arbitrário na vida psíquica também repousa sobre leis, mesmo se agora só0pressintamos obscuramente" (FREUD, 1986,1991).

visibte et 1'invisible, p. 239.

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O propósito de uma pesquisa como a da semiótica do sensível pode

parecer bem austero se comparado a uma leitura menos inquiridora

da s biografias artísticas.Todavia, os progressos que esperamos ver e rea-

lizar graças a tal análise receberam, de antemão, sua legitimação graças

à pena de "pesquisadores do sentido", comoValéry e Cassirer.

Não há dúvida de que há presciência e antecipação em sustentar,

como o fazValéry em seus Cahiers, a seguinte idéia: "A antiga retórica

considerava ornamentos e artifícios essas figuras e essas relações que

[...] os progressos da análise verão uni dia corno efei tos de propriedades

pro fundas , ou o que se poderia chamar: sensibilidade formal". Há uma

pista de pesquisa extremamente contemporânea a deduzir de algumas

afirmações como esta, de Ernest Cassirer: "A intuição não é extensa,

mas concentrada. Reduz-se de alguma forma a um ponto. E apenas

nessa concentração que é encontrado e valorizado esse momento no

qual se acentua a significação" (CASSIRER, 1989, p. 113). Claude Zíl-berberg infere dessas visões verdadeiramente antecipatórias unia idéia

que, ainda hoje, situa-se na extrema vanguarda dapesquisa semiótica: "A

partir do momento em que a prosódia encontra um lugar na teoria,

a separação entre plano do conteúdo e plano da expressão tende a se

inverter: a prosódia torna-se plano do conteúdo, e a significação, plano

da expressão".18 Esses dois pensamentos, de Cassirer e de Claude Zil-

berberg, resumem e sintetizam o conjunto de minha proposta nos seus

dois componentes (provisoriamente) distintos.

É por isso que se pode afirmar que os fascinantes romances de pen-

samento que são esses estudos/ retratos da criação artística elaborados

porYves Bonnefoy contêm um procedimento suscetível de oferecer

aos pesquisadores numerosos exemplos desses falares da significação,

dessas prosodisaçòes do conteúdo e, logo, desse material rigoroso de

onde poderia originar-sef num fu turo próximo, uma descoberta rele-

vante para as ciências da linguagem.

1Claude Zilberberg, art. cie. in Langages, n. 137, p. 137, nota 4.

Referências

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sur Ia phtlosophie de Merleau-Ponty. Renaud Barbaras (éd.). Paris:

Vrin, 1998.

CASSIRER, Ernest. Langage et mythe. Paris: Minuit, 1989.

FREUD, Sigmund. Lê Delire et te revê, dans "L a Gradiva dejersen".Trad. Paule Arbex et Rose-Marie Zeidin. Paris: G allimard, 1986,

réédk."Folio/essais" 1991.

HÉNAULT,Anne. Lê Pouvoir comme passion. Paris: PUF, 1994.

."Pour une lecture sémiotique dês modulations passionnelles

du discours". In: ANIS, J.; ESKÉNAZI, A. e JEANDILLOU,J.F.

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sies. L. Prenant (éd.). Paris: Garnier, 1942.

MERLEAU-PONTY.Maurice.Ldprose íf w monde.Claude Lefo r t (éd.).

Paris: Gallimard, 1969.

. Lê visible et Tinvisible. Claude Lefort (éd.). Paris: Gallimard.

CoU"Tel",1979 [1964].

80

 

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U Z A L U N U : ANALISE DO DISCURSO EENSINO DE LÍNGUA MATERNA1'2

Antoine Auchlin (Universidade d e Genebra)

Mareei Burger (Univers idade de Lausanne)

1. Introdução

í.í.Análise ao discurso e ensino de l íngua materna

A expressão genérica "análise do discurso" (AD) tem.urna extensão pro-

blemática e sujeita à caução, fato para o qual chamamos a atenção no

momento de nossa conferência. Sem nos dissipar nos amálgamas vagos

e fáceis, gostaríamos de interpelar alguns de nossos colegas que, sob um

ou outro ângulo, adotam discursos como sua matéria-prima. Se, para

nós, de um lado, AD tem como protótipo o percurso que melhor co-

nhecemos e que é praticado em Genebra — compreendendo desde os

princípios das estruturas hierárquicas (ROULET et ai, 1985) até os refina-

mentos atuais do modelo em termos modulares (ROULET, 1999) — de

°utro, nossas observações se direcionam igualmente a outras abordagens

da s grandes massas verbais. Incluímos aqui também as posições que su-

pÕern que o discurso não constitui um fato passível de estudo cientí-

'•-onferência apresentada no III Encont ro Franco-brasi leiro de Análise do Discu rso' Análise do Discurso e Ensino de Língua M aterna . U F R J , de 13 a 15 de ou tubroe 1999. Até a finalização desta t radução, o original em francês ainda não havia sido

Texto traduzido por Emília Mendes (PRODOC/CAPES - U F M G ) .

 

Análises do discurso hoje Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna

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f ico próprio (REBOUL e MOESCHLER., 1998; ver SIMON, 1999). Em outras

palavras, interessam-nos, de urna maneira geral, todas as abordagens que

chamam a atenção para o manejo de unidades verbais mais complexas

que a frase e que se subscrevem, de uma forma ou de outra, no mito

objetivista, retomando os termos de Lakoff e Johnson (1980).

Particularmente, somos solidários à petição de pr incípio de acordo

com a qual nada deve ser ignorado do "contexto real"de produção do

discurso, posição também tornada pública, aqui mesmo, pelas contri-

buições de J.-P. Bronckart, P. Charaudeau ou de D. Maingueneau. En-

tretanto, em nosso ponto de vista,"o contexto real" compreende tanto

os dados que o próprio pesquisador explora num texto e faz emergir

um discurso, quan to os dados que desencadeiam uma experiência lin-

guageira malsucedida. Em outros termos, a própria experiência da lei--

tura do pesquisador-analista-do-discurso é parte integrante do que ele

compreende por "discurso".A propensão objetivista não quer saber denada disso e se obstina em considerar que o discurso "está no" texto,

no suporte,no próprio material. Para nós,o discurso — e o que é con-

veniente analisar como tal — é a própria experienàação que se organiza em

razão de um tratamento de unidades lingüísticas em cadeia.

Quanto ao "ensino da língua materna" (ELM), seria possível tratar

disso de maneira tão genérica? Nosso ponto de partida foi o ensino da

escrita para adultos escolarizados (STROUMZA, 1996; AUCHLIN, 1996b;

STROUMZA; AUCHLIN, 1997). Nesse quadro, nós nos perguntávamos

como tirar o máximo proveito do que os alunos revelam a respeito

do estado de sua habilidade redacional (o "manifesto pelo aluno" de

B. Delforce) e, mais particularmente, o que, neste estado particular da

habilidade, pode ser considerado responsável pela ocorrência de ele-

mentos que desencadeiam pequenas infelicidades. É desse ponto que

emerge a problemática do diagnóstico da competência discursiva.Sob

essa forma, tal questionamento não tem nada de específico nesta situa-

ção part icular, mesmo se ele foi tornado possível por esta mesma si-

tuação. Nossas observações, em sua generalidade, concernem assim a

toda situação de ELM.

84

A distribuição e o nível do saber escrever (a literacia) em meio à

população aparecem freqüentemente superestimados. Seriam eles o

efeito de uma vontade coletiva de dissimular um erro julgado vergo-

nhoso, ou de uma vontade de classe social de guardar de forma egoísta

o segredo desse poderoso vetor de distinção social que constitui o

saber escrever? Seja qual for o caso, os analistas do discurso podem

se tornar cúmplices dessa dissimulação, seguindo a interpretação da

caução social "fazer ciência" à qual alguns aderem. É preciso conside-

rar que o essencial do que deve ser escrito — "o discurso" — é uma

construção da qual o pesquisador teve que participar como leitor— e

que não existiria sem esta participação. Ele não pode dar conta inteira-

mente de seu objeto negando a existência de sua própria experiência,

o que, no entanto, é exigido pelo cânone epistemológico positivista.

Essa interpretação do contrato científico conduz o pesquisador a se

pronunciar somente sobre as coisas que já são reputadas passíveis dese r objetivamente verdadeiras ou falsas, independentemente das par-

ticularidades do observador. No que concerne aos fatos da "realidade

de segunda ordem" ( W A T Z L A W I C K , 1991) como "o discurso", pode-se

dizer que esse fa to restringe o campo de investigação científica, e, pior,

que condena os pesquisadores a negar sistematicamente as característi-

ca s mais imediatamente evidentes de sua matéria-prima.3

Í.2. "D o erro apequena infelicidade textual"

Toda pessoa que ensina a escrita em língua materna confronta-se coma questão dos "erros". Como "coisa que advém", um erro é uma expe-

riência textual observável, geralmente malsucedida e "irruptiva". Noentanto, a noção de erro é enganosa: é muito restritiva na sua extensão

(algumas infelicidades textuais não são erros no sentido de infração aUrna convenção ou norma); e, por outro lado, localiza univocarnente a

infelicidade no produto verbal, um dos pressupostos maiores que nós

Sobre esta questão, consultar Núnez,1997.

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gostaríamos de evitar . Preferimos a noção de "pequena infelicidadetextual" ( S T R O U M Z A ; A U C H L I N , 1997), mais descrit iva, men os carregada

de pressupostos quanto à localização e à responsabilidade do evento de

leitura irruptivo, e que, sobretudo, dá acesso a u m c o n j u n t o de estraté-

gias de remediação bem mais vasto.

Esta posição se distingue da idéia muito disseminada de que em ma-

téria de texto as infelicidades são imputáveis a uma gramática p rópria aoaluno ( R E I C H L E R - B É G U E L I N , 1992). Como esta autora, pensamos que na

"correção" o problema maior do professor deve se r "restabelecer-se" da

ocorrência de um problema e ir em direção às condições m ais gerais que

o tornaram possível por p arte de um aluno em particular . Mas o alvo vi-sado por este percurso não é a descrição de uma gramática. É , sobretudo,

a compreensão da s condições sob as quais a competência discursiva que-

produziu este texto pôde obter se u acordo interior co m determinado

material verbal; mater ial do qual se pensa ter desencadeado uma experiên-cia de leitura m alsucedida no corretor ( ST R O U M Z A ; A U C H L I N , 1997).

N a situação didática "ensinar-aprender a escrever", as infelicida-

de s t ex tua is são freqüentes. A incum bência pedagógica do professor é

possibilitar ao aluno evitá-las, o que supõe que ele compreenda, pelo

menos um pouco, do que se trata essa tarefa.

1.3. A identidade, o externo e o interno

Essas exper iênc ias verbais malsucedidas caracterizam-se, para quemdeve com preender o seu própr io func ion amen to , pe la emergência de

um a cer ta instância d e discurso parasita, qu e toma para si a responsabi-

l idade da ocorrência do material que as suscita — já que o leitor asi m p u t a a esta instância. Batizam os ta l instância de uzalunu4.

4 Os autorüs cr iaram a f o r m a "zélève", que corresponderia à junção, na l íngua oral, de

"Lês eleves" (os a l unos ) . Na t r a duçã o , a c ons e l ho dos próprios autores , adaptamos o

conceito pa ra o por t uguê s . Daí a fo rm a uzahmu (u s a da como substantivo masculinos ingular) , que seria o correspondente ora l de "os alunos". (N.T.)

86

Nós nos interessamos exatamente por: (a) tal ident idade par t icu lar

emana do aluno, mas que não é vista por ele; (b) essa identidade

n ue o professor vê e gostaria de mostrar ao a l u n o ; (c ) esse fantasma

bem real entre o professor e o aluno. Em um pr imei ro momento ,abordaremos essa ident idade em t e r m o s de pol i fonia e de competênc ia

discursiva, ou seja,"do interior" de seus própr ios m ecanismos. Em um

segundo momento, nós examinaremos as condições e determinaçõespsicossociais que permi tem a emergência do uzalunu e que , enquanto

cláusulas virtuais de um contra to didático específico, dirigem even-

tualmente o t r a t a m e n t o a ser aplicado. A identidade é aqu i vista do

exterior, sob o âng ulo de suas determinações sócio-históricas.

2. Uma ou duas coisas que a análise do discurso ensina ao

professor de redação em língua materna

A tendên cia uti l i tarista habitual que r que as disciplinas aplicadas tirem

part ido do trabalho das disciplinas-mães "fundamen ta is" . Em maté r ia

de discurso, é sobre tudo o inverso qu e deveria se produzir . Consi-

derando m i n i m a m e n t e os dados provenientes do ensino da escrita, a

análise deve tomar conhecim ento de a lguns fatos5.

2.7. Imprevisibil idade aumentada

Uma das possibil idades dessa ocorrência concerne à questão da criati-

vidade discursiva. Por criatividade discursiva designamos o seguinte fato:

part indo de um ponto do encadeamento d iscurs ivo Px que segue umenunciado Ex, os encadeam entos possíveis, emb ora restri tivos, são im-

previsíveis. Não podemos predizer as característ icas do enunciado Ey

segue Ex. Supom os, em gera l impl ic i tamente , esta imprevisibilida-

-Entre eles, alguns originam-se do "custo teórico" (no sentido de Ducrot, 1980) de

blpóteses c o l oc a das i nde pe nde n t e m e n t e . É no t a da m e n t e o caso da apl icação que seráeita a qu i da noção de "polifonia" de Ducrot.

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de no interior do quadro da língua ou do "possível da língua" (MILNER,

1989) na qual dá o discurso.

Em situação de aprendizagem, esta garantia evidentemente não é

adquirida, e a imprevisibilidade discursiva aumenta. Isso se dá pelo sim-

ples fato de que as restrições lingüísticas convencionais podem não ser

respeitadas e, sobretudo,porque se u desrespeito, evando-se e m consideração um

contrato de comunicação didático particular, é parte integrante do sentido próprio

do discurso. Num sentido inverso, esta dilatação do conjun to aberto dos

possíveis é contrabalançada pelo fato de que, desde que identifiquemos

as características próprias ao funcionamento da competência discursiva

de determinado aluno de redação, cada encadeamento é uma possibi-

lidade de formular e de verificar uma ou outra hipótese concernente

a este funcionamento.6 Dito de outra forma, o volume das prediçÕes-

aumenta e, por isso, a imprevisibilidade desse princípio diminui. Toda

a questão está na maneira de compreender, de analisar e de tratar osdeslocamentos ocorridos.

2.2. Experiendação e apreciação

Assim, a análise do discurso deve notar que, no âmbito do ensino da

escrita, a dimensão hedônico-apreciativa do tratamento do discurso é

incontornável.7 No entanto, uma consideração adequada da dimensão

apreciativa na qual se desenrola a compreensão dos textos é, confor-

me pensamos, incompatível com a postura objetivista que caracteriza

a tradição epistemológica descritiva em matéria de linguagem. Desde

6 Isso faz parte, na realidade dos fatos, do conhecimento de base que cada professoradquire de seus alunos. A questão é permitir-lhe explicitar e desdobrar utí lmente esseconhecimento qu e permanece muito freqüentemente pré-teórico e intui t ivo e, porisso, pouc o operacionalizável.7 Alguns psicólogos cognitivistas ocuparn-se de descrever os processos redacionais enotam, recentemente, a existência e a importância disso ( H A Y E S , 1996; G R A B O W S K Y ,

1996); mas o t ra t amento qu e propõem interessa-se mais pela estrutura de "cabeamen-to" do que pelas característ icas dos dados l inguageiros, com a exceção notável dostrabalhos de C. Berei ter e M. Scardamaglia .

gaussure, esta postura se contenta em se professar "não normativa" e

"não prescritiva", tentando excluir toda intervenção pessoal subjetiva

dos pesquisadores em sua pesquisa. Isso não é possível:seja porque os

pesquisadores renunciam a tratar do discurso, seja porque aceitam que,

para que haja discurso, é preciso que tenham passado por ele. O que

quer que seja dito por tais pesquisadores sobre a questão, ao lerem um

texto, eles se entregam a uma determinada experienciação através desu a compreensão, de seu prazer, de seu julgamento. O discurso é esta

experienciação. Se deixa traços, mundanos ou linguageiros (texto im-

presso ou suporte de dados em áudio), são estes traços que são o produ-

to ou o resultado do discurso (não é o discurso que é um "produto")8.

Tanto lingüistas, analistas de discursos quanto professores se con-

frontam com o dado empírico "existem textos malfeitos", e isso não

ocorre exclusivamente nos trabalhos dos alunos. Entretanto, somente

osprofessores

são os supostos encarregados da correção, por razõesrelativas às particularidades do contrato de comunicação didático (cf

abaixo).A análise do discurso mostra que está em cima do muro quan-

to à sua concepção da natureza fenomenal dos "erros-em-discurso".

Tal concepção deve ser retomada no âmbito de uma visão geral do

que é o discurso e ser suscetível de ser acolhida sem distorção.

2.3. U m a conseqüência

A consideraçãodo real linguageiro como "imperfeito" permite, por ou-

tro lado, enriquecer a noção de polifonia de locutores utilizada por

Ducrot (1984) para caracterizar o discurso relatado no estilo indireto.

•kssa forma de polifonia deve ser reconsiderada como um exemplo

particular em meio a outros possíveis: no discurso rela tado no estilo

^reto, a co-presença de dois locutores aparece de fato como uma

variedade de polifonia sinfônica. Se nós a compararmos com a que se

Cf .Auchl in , 1998.

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pode efetuar no discurso do aluno, nós qualificaremos esta última de

"cacofônica"9.

Por todas essas razões, a análise do discurso deve agir partindo da

evidência de que a identidade dos agentes de discurso, dos alunos de

redação, possui duas faces: (a) é ao mesmo tempo plástica, na medida

em que o professor, que visa a agir sobre ela para transformá-la, deve

inicialmente construí-la; e (b) é também lábil , no sentido de que não

pode ser ancorada ontologicamente no mundo, na medida em que ela

somente é o que é em razão da atenção e da perspicácia que lhe con-

sagra o professor.Trata-se de uma identidade passageira.

3. Polifonias sinfônica e cacofônica

Em um artigo no qual falávamos da "estranha polifonia" do texto de

alunos de redação, nós, Stroumza e Auchlin, sustentávamos a idéia de que,em tais textos, as pequenas infelicidades emergem dos fatos de linguagem

que pertencem ao que é mostrado pelo texto e podem ser pensados

como o produto de uma instância de fala em vários pontos comparável

ao locutor enquanto tal (L) da teoria polifonica de Ducrot (1984).

É locutor (L) para Ducrot o ser que, de acordo com o enunciado,

toma a responsabilidade de sua enunciação. Um locutor é um ser in-

tensional (com um s), uma instância que somente se constitui em razão

do que ela opera.

O discurso relatado direto é o caso de polifonia que mais se asse-

melha ao que nos interessa aqui: trata-se de wa**. polifonia de locutores:

(1 ) Júlio": "Pedroy mes disse: 'na minha y opinião, o tempo estará bom'."

O enunciado complexo (1) é uma construção polifônica que mos-

tra dois locutores enquanto tais: o primeiro, "Júlio" que é responsável

9 Esta idéia é apresentada de uma f o r m a um pouco di fe ren t e e m S t r o u m z a ; A u c h li n ,1997.

90

nela enunciação de todo o enunciado; o segundo, o locutor "Pedro"

aue, por sua vez, desdobra-se em duas formas: está presente como ser do

mundo, representado na predicação "Pedro disse...", e como locutor en-

quanto tal pela enunciação de "na minha opinião,...", que o apresenta

corno seu responsável.

Após um dado enunciado complexo, duas grandes classes de enca-

deamentos são possíveis. As primeiras classes Ducrot nomeia "polifo-nia", quando encadeamos o conteúdo do discurso imputado ao locu-

tor reportado (e,de alguma forma, admitimos sua autoridade). É o que

acontece em (T), na seqüência de (1):

(!') Fa ça mo s então nosso p iquenique .

A outra classe de encadeamentos é ilustrada por (l"):

(l") Coitadodo Pierre, está sempre otimista.

Ducrot nomeia "discurso relatado" essa maneira de encadear, não

sobre o que fala o locutor reportado, mas sobre a própria enunciação

que lhe é imputada, ou a esta ou àquela de suas características10.

Nossa hipótese é a de que os objetos textuais desencadeiam uma

ruptura da continuidade da experiência de leitura, uma pequena in-

felicidade textual. Estas infelicidades podem ser imputadas ao próprio

autor, agente intensional designado pelo "erro" como seu responsável,ou em todo caso, construído a partir dele como assumindo a respon-

sabilidade de sua ocorrência.

Esta instância, de acordo com o que pensamos, é por vários pontos

de vista assimilável a um locutor. Dos diferentes argumentos invocados

Por Stroumza e Auchlin, retenhamos aqui o do encadeamento discur-

-E exatamente o mesmo caso ilustrativo, fora da relação de discurso, da réplica, opostaa r

esposta ( G O F F M A N , 1973 e M O E S C H L E R , 1982); em a lgumas das perspectivas tais enca-eamentos, oblíquos, são casos marcados ,

 

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sivo: se o locutor é um ser que, de acordo com o sentido do enunciado,

é responsável por sua enunc iaçao e se, de outro lado, o que nomeamos

o sentido de um enunciado reside nos encadeamentos nos quais este

pode se instaurar, então, na medida em que os "erros" dão lugar a en-

cadeamentos, eles devem ser considerados corno a ação de um locutor.

Ora, o diálogo pedagógico se constrói realmente sobre este modo de

encadeamento, do mesmo modo, oblíquo:

(2 ) Várias ações individuais deveriam autorizar urna diminuição da pro-

pensão à construção do mal-entendido, (trabalho universitário)

(2 ' ) Professor (n a margem): Fale isso para si mesmo!

A partir de (2) é bem possível ter uma seqüência como (2'), o n d e -o sarcasmo não deixa de apresentar as características que nós pontua-

mos, que são: de uma parte, "encadear de maneira oblíqua sobre olocutor agente do "erro" e, de outra, endereçar-lhe indiretamente uma

sugestão sobre o assunto. É em razão destas afinidades com o quadro

pedagógico que nós nomeamos este locutor de uzalunu.A sobrecom-

plexidade redacional de (2), que é urna característica do que é mos-

trado, é seguramente o meio de expressão do uzalunu. Através desta

sobre complexidade, o uzalunu realiza perfòrmativamente seu objetivo

expressivo, que é o de fazer par t i lha r com o leitor seu próprio esforço

mental ou, em todo caso, de fazer do leitor uma testemunha disso.11

Um traço distingue estes casos do discurso relatado direto ordiná-

rio: a natureza da relação que empreendem os locutores "co-presen-

tes". Nos dois casos standards da "polifonia" e do "discurso relatado", as

vozes dos locutores, relatante e relatado, completam-se, imbricam-se,

levam em consideração tanto um a quanto a outra, e sua ligação, amigá-

ve l ou não, é sinfônica. Ao contrario, o uzalunu ("co-locutor") mantém

11 Mas se o leitor pode testemunhar, esforço que ele deve fazer po r si próprio e que

pode ir além do que o redator poderia imaginar ou esperar, esse leitor teria que, alémdisso, buscar urna alternativa de formulação.

92

rorcosamente com o locutor intencionado oficial uma relação c a c o f ô -

ftica- Esta cacofonia tem sempre o efeito de enviesar ou cobrir, parcial

otl totalmente, a voz do locutor oficial12 .Nessa perspectiva, (2) é um caso totalmente excepcional: a mise-en-

dí» im e"au to-denega t iva" que ele apresenta, em razão de seu conteúdo,

torna a cacofonia fortuitamente muito harmoniosa. Para tanto, a rela-

ção entre estes dois locutores não é menos constitutivamente cacofô-nica — e ela não age a favor da credibilidade do locutor oficial.

O exemplo (3) abaixo também não é tão bem-sucedido:

(3 ) Saber escrever, saber falar ou saber falar, saber escrever, qual é destes

dois saberes o que devemos adquirir primeiro?

De acordo com os processos naturais, a primeira coisa que uma criança

faz, ao nascer, é emitir sons.

Neste caso, respeitemos a natureza e aprendamos a falar antes de escrever.

Estes saberes são, em seguida, consolidados ou aprendidos na escola. [...]

(Início de texto, trabalho universitário)

Este exemplo ilustra a complexidade da organização linguageira

pela qual se instala a cacofonia . Vemos nela, em particular, um a ins-

tância de fala ligada a uma preocupação de exaustividade, desejosa

do absoluto rigor do silogismo, e preocupada em "amarrar" sua tese

fundamentando-a sobre um raciocínio. É o que "faz" o locutor ofi-

cial; é também, muito provavelmente, a representação que o aluno-

Nós afirmamos,em nossa exposição, que as manifestações do uzalunu correspon-

diam a um efeito de ethos "e m negativo" ( A U C H L I N , no prelo). D e fato, esta posição1130 é defensáveljá que o descrédito resultante da presença do uzalunu afeta o locutor

°ricial (sua credibilidade ou sua audibilidade). É preciso concluir disso que é a ca-cofonia ela própria a co-presença de dois locutores nã o harmonizados sobre a cena

'"Scuísiva, e não uzalunu sozinho, que é o responsável por esce ethos negativo. Pode-setlra

r partido do que concerne à compreensão do efeito de ethos: ele não emerge doIo

cutor", mas sobretudo da maneira pela qual é ocupada a cena do discurso, isto é, ocaiUpo acionai dos intérpretes experienciadores.

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redator empírico faz de seu texto (talvez porque fosse o seu texto13,

m as é possível que este aluno -redator talvez n ão notasse muitas dessas

características de mesma ordem em um texto de outra pessoa). N o

en tan to , um leitor, um pouco mais sensível às condições d e execu ção

d o raciocínio lógico, constrói u m locutor diferente na sua experiênciado texto, um uzalunu, que mostra que ele se satisfaz com aparências

verbais superficiais par a conduzir seu discurso, insti tuindo uma relaçãomágica e encanta tór ia na s palavras, etc.

D e tais esboços de análise, o que é preciso reter é a necessidade,para o professor, de construir para si próprio uma representação, ou

melhor , uma percepção in te rna e íntima do universo do redator en-

q u a n t o tal. Uma f iguração como esta aproxima-se do que n o m e a m o sdiagnóstico da competência discursiva.

4. A competência discursiva e seu diagnóstico

A defrontaçao, por par te do professor, com p r o b l e m a s de lei tura

("pequenas intelicidades textuais") nos textos de alunos deve se r vis-ta como um recurso potenc ia l a serv iço destes ú l timos, recurso este

que o professor deve explorar . Mas, para permitir aos alunos t irar

proveito de seus "erros", o professor deve tratá-los de maneira espe-

cífica. Para M.-J. Reichler-Béguelin, o p r o b l e m a m a i o r do professoré c o m p r e e n d e r como o a luno pôde cometer o erro que c o m e t e u ,

d e acordo co m qual "gramática" implícita e le agiu . A ssim como estaa u t o r a , su p o m o s q u e seja possíve l " res tabe lecer" , por indução , u maocorrê ncia singu lar das prop riedade s reiteráveis em direção a um

pr incíp io causai mais geral; e, por outro lado, supomos que este aces-

so seja uma condição para um t raba lho pedagógico pre tendido , paraumfeedback "cirúrgico"14.

13 A "propriocepção" textual é um ci rcui to manifestamente extenso para se instalar.

Ver a diferença colocada por Ricardou (1978) entre a releitura e '"redescobertas".14 Como dizem os militares-cínicos.

94

Se o contrato didático fornece um quadro que consti tui uma con-

dição necessária para este exercício, ele não é urna condição suf ic ien te :

existência de um contrato não revela n ada sobre a maneira de o reali-

zar. Como c o m p r e e n d e r e in te rpre ta r as p e q u e n a s infelicidades, como

cOrnpreender o discurso do uzalunu, e como, a partir disso, articular

o retorno didático de maneira útil? É uma questão de postura e de

estratégia da par te do professor.A relação didática, desse ponto de vista, tem pontos comun s com

outras relações de ajuda, como as psicoterapias, por exemplo. O fato éconhecido pelos terapeu tas sisteniaticistas com o n o m e de "paradoxo

da relação terapêutica" e se enuncia dessa forma: "Como ajudar alguém

a nã o necessitar de ajuda?" Além de ser relações inegáveis, sã o relações

qu e mobilizam, na pessoa auxiliada, uma parte dela mesma que eladesconhece e da qual ela deseja, ou se supõe que ela deseje, o desapare-

cimento — o "eu" nevrálgico, ou o uzalunu^.O "paradoxo do profes-

sor", nessa perspectiva, con siste em como o professor — para permitirao aluno fazer desaparecer o uzalunu — deve, num primeiro momento,

procurar torná-lo o mais tangível e o mais manifesto possível.No que concerne à na tureza da re lação pedagógica, nós postula-

mos , seguindo o pensamento de W. James, que o m e l h o r que um pro-fessor pode fazer po r seus alunos é torná-los mestres de suas escolhas,

isto é, responsáveis — o que nós chamamos de "ideal jamesiano".Estaquestão é essencial quando ensinamos a escrita: os alunos, em alguns

pontos, têm um desejo muito forte de desposar esti los, de se deixar"uir nas identidades pré-formadas, que eles habitarão tanto bem quan -to mal, descobrindo um uzalunu para mascarar um outro; é o estadocoquete do "preparado para escrever", do qual (2) e (3) acima são

excelentes i lustrações.T alvez seja um a e tapa impor tante na maturaçãocompetência discursiva na forma escrita (vide os diferentes estados

at}uisicionais descritos por B ereiter, 1980), mas isto não é segu ram ente~ ~ ~ ~ e felizmente — o estado terminal de maturação . A ot imização pe -

•se que o uzalunu é um colega do l'étourdit/ aturdido de J. Lacan.

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dagógica consiste em remeter os alunos a si mesmos — a ferramenta

e a mediação a serviço dessa otimização é o que nós chamamos de0

"espelho experto".

A postura do "espelho experto" ( S T R O U M Z A ; A U C H L I N , 1997) decor-

re desta otimização pedagógica, visando a fazer advir um a pessoa qu e

escolhe o que ela faz, dominando, ou pelo menos, respondendo por

suas escolhas. No que concerne ao professor de redação, isso consisteem permitir à pessoa ver e perceber o que ela faz, isto é, remeter-lhe

a um a imagem tã o explícita quanto possível da s tantas experiências de

leitura possíveis de seu texto. Fazer o contraste, de um lado, do que

compreendemos que o aluno quis dizer com,de outro lado, o que com-

preendemos que ele diz e que vem do uzalunu. Isso já será um efeitode "espelho experto".

Se retornarmos ao s exemplos (2) e (3) acima, o que nos interessa

é o fato de que seus redatores obtiveram seu acordo interior imple-

mentando um dispositivo linguageiro virtualmente cacofônico, isto é,

permitindo a emergência e a ident i f icação de dois locutores distintos:

um locutor oficial e um uzalunu, em relação cacofônica. Esta pro-

dução virtualmente cacofônica é constitutiva e específica do modo

de funcionamento destas competências discursivas. Estes modos de

func ionamento são típificáveis (recorrentes em espécie). Portanto, eles

podem ser estudados tanto do ponto de vista "clínico", visando a des-

crever cada caso em sua singularidade, quanto do ponto de vista "pa-

tológico", buscando retirar ligações e generalizações de um conjuntode casos clínicos. Como praticante, o professor é evidentemente con-

cernido pelo aspecto clinico. A última questão que nos interessará será

a de saber como as hipóteses diagnosticas se formam e se estabilizam

no diálogo didático, como o professor pode, no fim das contas, colocar

legitimamente sua intuição em proveito do aluno.

A identificação do uzalunu é objeto próprio do diagnóstico da com-

petência discursiva: o diagnóstico consiste em revelar as característi-

ca s particulares do funcionamento de uma ou de outra competência

discursiva, a maneira e as condições sob as quais el a atinge se u estado

96

je equilíbrio ou acordo interior com o material textual que produz,

virtualmente cacofônico. Enquanto diagnóstico de uma competência

Discursiva, o professor supõe um a certa visão, algumas hipóteses-qua-

dro sobre a natureza e o funcionamento da competência discursiva16.

Para nós, a competência discursiva não se assemelha à reunião cumu-

lativa de domínios de conhecimentos distintos de pesquisadores inspirados

pela competência de comunicação de Hymes (1984), os mais ativosem matéria de didática e ensino de línguas. A nosso ver, a competência

discursiva é nossa condição de seres equipados de linguagem, de f o r m a

que nós podemos tratar da s seqüências de enunciados como pertencen-

do à esfera do vivido e fazer um a certa experienciaçao específica disso.

É bem essa experienciaçao, e ela somente, que é conveniente nomear

"discurso" e não as seqüências verbais qu e alimentam a competência

discursiva, sobre as quais projetamos, erradamente, propriedades de sua

experienciaçao. Por isso, recusamos igualmente a tese (freqüentemente

julgada à revelia como implícita por pesquisadores) segundo a qual po-

demos dar conta do discurso restituindo"sua interpretação".

O funcionamento da competência discursiva consiste: (a) em ajus-

ta r permanentemente um ser-fora-da-fala, sujei to falante (em um sen-

tido próximo daquele de Ducrot) e um ser-de-fala, uni locutor; (b) em

ajustar entre eles um estado de equilíbrio nomeado "acordo interior",

so b a forma de um sistema auto-regulado (sistema termodinâmico). A s

propriedades dos objetos verbais apresentados, o texto do discurso, são

aquelas pelas quais o sistema (a competência) "s e auto-regula", ajustaas necessidades expressivas do sujeito falante às contingências dos lo-

cutores possíveis e obtém, assim, por si só, seu acordo interior.17

Fazer o diagnóstico de uma competência discursiva operacionaliza,

concretamente, um componente empático, a percepção em ação

mundo de regulação próprio a um dado aluno de redação. Trata-se

tentar sentir, do interior, como o aluno de redação pôde obter seu

- h

^ o componente propriamente dedutivo do diagnóstico.Para mais detalhes: Auchlin, 1996a, 1996b e Stroumza;Auchlin, 1997.

91

 

Análises do discurso hoje Uzalunu: Análise do Discurso e ensino de língua materna

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acordo interior pelo texto; de perceber sob quais condições este texto

pôde ser satisfatório para ele. Esta percepção em ação é uma condição

da operacionalização do componente indutivo do diagnóstico, que

consiste em formar hipóteses a partir desta percepção. Acessoriamente,

a abordagem aqui é sistêmica ao postular que é o mesmo dispositivo,

uma competência discursiva, que é o objeto visado pelo diagnóstico e

o próprio meio deste diagnóstico.Um estudante, em uma cópia de exame, ortografa a palavra êxito

como "hêxito". O que podemos compreender disso? Além do erro

ortográfico, é a diferença ortográfica que é levada em consideração pelo

uzalunu, que é o seu próprio trabalho. É preciso compreender essa

forma como um sintoma para buscar outras eventuais manifestações da

"mesma patologia". Estas manifestações não seriam, necessariamente,

ortográficas, mas teriam a ver com as razões que tivessem presidido a

emergência dessa forma, logo, tendo uma relação com o propósito do

uzalunu. Qual é este propósito? O uzalunu mostra que ele torna com-

plexa uma forma de origem simples, convertendo-a em uma forma

não atestada. Isso pode (entre outras coisas) tanto servir para tornar

público um desejo de se fazer conhecedor, quanto ser um pedido de

reconhecimento quanto a sua pertença — pretendido pelo próprio

desejo de se tornar público — à comunidade daqueles que sabem (ou

que têm acesso às coisas complicadas).

5. Estatuto do uzalunu

De tais considerações, deduz-se que o estatuto do uzalunu é comple-

xo, compósito ou ainda heterogêneo, a começar pelo local onde se

localiza. De fato, o uzalunu emerge da conjunção de duas dimensões

do discurso.

O uzalunu comporta uma dimensão linguageira dada pelos enun-

ciados de um texto, exemplificada aqui pelo neologismo hêxito. A

identidade do uzalunu é assim, tribu tária desse neologismo: em outras

palavras, se não há hêxito (com h), não haverá uzalunu.

98

Jvlas a identidade do uzalunu também depende de uma segunda

dimensão do discurso que nós nomearemos psicossocial. Ela considera

que o discurso é plenamente significante, levando-se em conta a rela-

ção de comunicação instaurada entre as instâncias empíricas, ou se ja ,

em carne e osso.

Com efeito, o discurso cons trói expectativas em função dos sujei-

tos da comunicação, bem como finalidades práticas- Em nosso caso, aidentidade do uzalunu é dependente de uma relação de troca especí-

fica entre um aluno e um professor.De modo mais específico, é mais

relativa ao aluno: ou seja, se não há aluno, não haverá uzalunu.

O uzalunu constitui, a partir e fundamentalmente desse ponto, uma

instância compósita na medida em que advém do encontro entre o

uso da l inguagem e o uso de uma situação de comunicação c u jo s traços sã o

respectivamente: unidades lingüísticas e desempenho de papéis psicossodais.

Tornemos estes pontos mais precisos.

6. Discurso e polifonia

De certa forma, podemos sustentar que o discurso é o produto de uma

atividade.Enquanto tal, o discurso deixa, então, duas espécies de traços:

Hnguageiros e psicossociais. Tanto uns quanto os outros constituem o

discurso e manifestam, numa problemática da identidade, uma mesma

realidade polifônica dossujeitos.

6.í. Polifonia linguageira

Na ótica de um lingüista como Ducrot, um enunciado é polifônico

quando identificamos nele uma superposição de vozes associadas a

instâncias diferentes. Assim, o enunciado seguinte é polifônico no pla-

no linguageiro.

(4) "Você declarou: vo u pendurar as chuteiras! Eu não acredito nisso!"

99

 

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D e fato, percebemos fac ilmente que as palavras remetem à imagem

de dois sujeitos: o sujeito EU-1 que traz um j u lgamento profer indo

"Eu não acredito nisso!", e que apoia este julgam ento sobre palavras

enunciadas por outra pessoa, um EU-2 que teria proferido "Vou pen du-

rar as chuteiras!". Assim, as marcas de pessoa remetem u n i f o r m e m e n t e

a duas instâncias diferentes, pois EU-1 nào poder ia se r responsável

pela declaração atribuída como sendo tes temunho das marcas de umdiscurso reportado "você declarou", ao contrário de EU-2.

Podemos ainda detalhar esta estrutura polifônica distinguindo <su-

jei to que reporta> as palavras de um <outro sujeito> para se definir, em

último lugar, com o um <su j eito de opinião>.Esta é, aproximadamente, aimagem da enunciação dada pelas palavras. Mas esta imagem seria incom-

pleta se não levarmos em conta a vertente psicossocial da enunciação.

6.2. Polifonia psicossocial

Consideremos que o enunciado (4 ) seja dito por um jornalista quetem como objetivo suscitar uma reação por parte de seu convidado,uma estrela do fute bol . As palavras participam então de um a situação

do tipo "entrevista midiática" que manifesta uma out ra forma de poli-

fonia dos sujeitos. Não é mais a dimensão do DIZER que é priorida-

de,mas uma dimensão mais englobante do SER e do FAZER.

Num quadro midiático, o sujeito que diz; "Você d eclarou: vou p e n -

durar as chuteiras! Eu não acredito nisso!" não é o centro de interesseda com unicação : ele não é a estrela, e sim o outro. Este outro, precisa-mente, trata de coletar o discurso para torná-lo público. A expectativada comu nicação midiática faz do e ntrevistador um avalista de seu con-

vidado. Mas, ao m esmo tempo, o entrevistador, a serviço de seu convi-

dado, é também um jornalista: isto é , uma instância de retransmissão

que in forma ao seu público o que se passa no m u n d o . O jornalistaopera, assim, a serviço de seu público.

Nesse sentido, um enunciado "Você declarou: vou pendurar aschuteiras! Eu não acredito nisso!" manifesta uma polifonia da identi-

10 0

dade psicossocial do s sujeitos. Ele realiza, localmente, um objetivo de

cc , rnunicação (suscitar um a reação) que se explica, globalmente, pela

atividade de entrevistar (solicitar o discurso do outro) . Esta atividade

específica é legit ima pe la per tença do entrevistador à categoria socio-

profissional dos jorna listas. Dito de o utra form a, o sujeito psicossocial

compor ta t rês ident idades independentes umas das out ras , mas en-

gajadas, ao mesmo tempo, por seu discurso: ser um jornalista, ser umentrevistador, ser aquele que suscita uma reação .

7. Contratos de comunicação

Em resumo, o discurso dá uma imagem duplamente polifônica da

enunciação no plano linguageiro e no plano psicossocial . Efetivamen-

te, no registro m usical, dup licar a pluralidade das vozes é visualizar q ue

a sinfonia do discurso não se orquestra sem mostrar dificuldades. Po-demos, até mesmo, temer uma c erta propensão à caco fonia discursiva.Ora, o enunciado do jornalista não soa falso: apesar das — ou graçasàs — instâncias múltiplas que aí se operam. El e soa, sobretudo, preciso.

Desse fato advém a hipótese da s cognições (dos saberes e das habili-

dades) socialmente co nstruídas e parti lhadas que to rnam o discurso ao

mesmo tempo interpretável e aceitável.Estas cognições determinam e explicam a polifonia generalizada

do s discursos. M ais precisamente, elas testemun ham um quadro de ex-

pectativas, ou um cont ra to de comunicação 18 . De nossa parte, postula-dos a hipótese de que os sentimento s de felicidade ou de infelicidade,

de cacofonia ou de harmonia no d iscurso dependem dos modos de

Wianifestação de um dado cont ra to . Consideremos dois exemplos quetesternunham respectivamente um pequeno sucesso e uma p e q u e n all>felicidade de comunicação .

Ve r as noções mais ou menos idênticas de "sentido da es t rutura social" (CICOUREL,19

?9),"horizonte de saberes" (HABERMAS, 1987), ou "cognição social" (SHOTTER; CER-) SHOTTER71994).

ÍOí

 

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7.1. Pequena felicidade d e comunicação

Na rua, um passante A interpela uni outro passante B

(5) Na rua, A d iz a B :

A: "Com licença, você pode me dizer que horas são, por favor?"

Dizendo isso, o passante fa z claramente três coisas. Inicialmente,

usando "com licença", ele constrói linguageiramente um <sujeito que

intervém sobre o território do outro> e testemunha, assim, a consciên-

ci a que ele tem da face do outro (n o sentido de G O F F M A N , 1973). Em

seguida, com "você pode me dizer que horas são?", o passante constrói

linguageiramente um <sujeito que questiona> — com uma questão

marcada corno tal no plano sintático e lexical. Enfim, com "por favor",

o passante constrói linguageiramente um <sujeito que pede> — a lo-

c u ç ã o "por favor" levando a considerar a questão como uma demanda

de fazer.

Assim, o passante A elabora uma proposição de relação social, isto

é, uma proposição de troca entre dois sujeitos, o que supõe, ao mes-

mo tempo, um mecanismo de a jus t amento , isto é, um contrato e uma

avaliação positiva ou negativa da troca. Com efeito, a reação do outro

passante B e a réplica seguinte correspondem, termo a termo, ao con-

trato de troca;

(6) O outro passante B, respondendo:

B:"Não tem de quê. Sim. São exatamente nove horas."

Dizendo,"Não tem de quê", B reage, efetivamente, à idéia da ofen-

sa territorial. Dizendo, em seguida, "sim", ele responde literalmente

à questão de A. Por fim, dizendo "São exatamente nove horas", B dá

um a seqüência favorável ao pedido de A e a troca pode se fechar.

Isso no s leva às duas considerações seguintes:a primeira recai sobre a

ligação entre as duas identidades psicossocial e linguageira do s sujeitos.

102

por sua troca, cada faceta pertinente do s sujeitos psicossociais é traduzida

em palavras. O que eles fazem e o que eles são é fortemente manifestado.

pito de outra forma, as palavras aqui sã o suficientes para dizer o contra-

to , ou se o preferirmos, o contrato e as palavras se interpõem.A segunda

consideração recai sobre a construção da relação com a produção nesta

troca. Observamos que o que é proposto por um é aceito pelo outro.

As palavras do discurso refletem este estado, elas revelam a construçãodo contrato de troca. Em suma, o sentimento de uma comunicação

rotineira bem-sucedida parece estar ligado ao fato de os sujeitos se con-

tentarem com uma construção local de uni contrato de troca.

7.2. Pequena infelicidade de comunicação

O exemplo autêntico que segue é totalmente contrário ao anterior.

Jean-Pierre Papin, jogador, estrela do futebol francês, é entrevistadopor Hughes Delatte, um falso aprendiz de jornalista.

(7) Delatte: "Jean-Pierre Papin... Bom dia!"

Papin: "Bom dia!"

Delatte: "Você é jovem, esportivo, rico, célebre, pai de família,

o que falta "ainda no seu pdímarès?"19

Papin: "Não muitas coisas!?"

Delatte: "Veneza, talvez?"

Papin: "Ah! Eu já fui lá..." <sorriso uni pouco constrangido>

Delatte: "Você já foi, oh" (silêncio um pouco constrangido).

"Bom!"

A troca começa pelos cumprimentos usuais, depois se encadeiacom uma questão do jornalista:

(8) "Você é jovem, esportivo, rico, célebre, pai de família, o que falta

ainda no seu palmarès?"

O termo palmarès significa "quadro de medalhas". {N.T.)

103

 

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Esta questão parece embaraçar o convidado, como se alguma coisa

de cacofônico aflorasse ali . Este s entime nto difuso deve-se, sem d úvida,

ao fato de associar os traços "rico e célebre"com o t raço "pai de famí-

lia" na lista das qualidades do convidado; m as também na f o r m u l a çã o

inábil de um pressuposto: o que falta pressupõe que realmente "algumacoisa falta a você".

Dito isso, o convidado aceita esse quadro de troca, ele respondevalidando o pressuposto. E sua resposta, embora mínima, é correta:

Papin: "Não muitas coisas!?"

Delatte: "Veneza, talvez?"

Papin: "Ah! Eu já fui lá..." <sorr i so um pouco const rangido>Delatte: "Você já foi , oh" (silêncio um pouco const rangido)

"Bom!"

que mostra que o apresentador esperava algo mais. D e fato, el e remete

seu convidado a um lugar comum. O convidado persiste e o entrevis-tador fecha a troca.

Parece-no s ter aqui a impressão de u ma troca ma lsucedida, apesarde uma est ru tura comple ta como, precedentem ente , na t roca en t re os

dois passantes; apesar tam bém de um a boa von tade rec íproca . C omefeito, coloca-se uma questão e responde-se a e la ; depois pede-se

uma conf i rm ação que é dada . A infe l ic idade com unicac ional não é ,

pois, totalmente dada pelas palavras. Este sentimento de infelicidade,se o admit imos, provém de um flutuamento no plano da s i tuação ,isto é, das ident idades psicossoc ia is do s sujei tos e, mais prec isamen-

te , da manei ra pe la qua l os parce i ros se def inem um em re lação aoout ro .

Assim, a pequena infelicidade localiza-se, inicialmente, no fato deo jorna l i s ta não conseguir se fazer reconhecer corno entrevistador. S esu a pergunta parece inesperada , é p o r q u e ela iludiu as expectativas:

existem boas e más perguntas de en trevistadores. A peq uena infelici-dade se dá na seqüência em que o jorna l i s ta não sabe chamar a a ten-

104

cã o de seu convidado. Existem maneiras e maneiras de se chamar a

atenção, de onde advérn a idéia de um contrato tácito que se encontra

aqui , sobretudo, mal circunscrito, provocan do uma espécie de espanto

respectivo diante dos assuntos propostos.Em resumo, nós sustentamos que todo d iscurso se compreende

levando-se em consideração um contrato pertinente que se manifesta

de diversas formas, de acordo com o que se tem como preferência,palavras ou ações de papéis desempenhados pelos sujeitos.

S. Contrato didático

Podemos definir esquematicamente a relação entre um aluno e um

professor. Como todo contrato de comunicação , ela supõe convencio-

nalmente três parâmetros:

a) \xmzjinaUaade ou um objetivo,b) por conseqüência, meios para atingir o o bjetivo,

c) e, enf im, conseqüências previsíveis da troca.

A finalidade da troca didática,qualquer que seja a sua p articularidade,

no s parece ser globalmente F A Z E R CONHECER, isto é, comu nicar saberes

a alguém que não dispõe deles, ou que dispõe de maneira lacunar. 20

Isso implica, em todos os casos, a idéia de um saber de referência, que

constitui o objetivo da troca e que funda a didaticidade da comunicação,

para retomar o termo de Beacco e Moirand (Langages, n. 117,1995).Os

meios da troca são, entre outros, atividades como "ensinar" ou "avaliar

conhecimentos", ou ainda "testemu nhar seu interesse em aprender" oufazer aprender". Enfim , as conseq üências da troca didática, ou se o pre-

ferirmos, das expectativas, é a operacionalização possível em contextos

didáticos do s conhecimentos adquiridos pela t r o c a didática.

que não se limita a uma transmissão mecanicista (conhecimento), mas implica, dedecisiva, uma consciência reflexiva: um co-nascimento.

Í05

 

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Uma das especificidades da comunicação didática então não é ser-

vir para seu próprio fim, mas testar, simular, encenar saberes e habilida-

des cujas expectativas estão em outra esíera. Nesse sentido, o contrato

didático se define pelo fato de considerar outros contratos cujas ex-

pectativas estão temporariamente neutralizadas. A troca didática tor-

na-se então o local a partir do qual se interroga a lógica contratual de

outros discursos, para apropriar-se disso conforme suas necessidades e

para, em seguida, melhor explorá-lo.

A troca didática apresenta, assim, por definição, uma forte propen-

sã o à cacofonia.Em virtude do contrato, esta não deveria ser vexatória

nem para o aluno nem para o professor. Sua relação implica, de fato,

produzir a cacofonia, desalojá-la, explicá-la. Chamar a atenção sobre

esta dimensão do contrato é, em suma, conjurar antecipadamente os -

estigmas que o uzalunu poderia vir a sofrer.

No entanto, nada impede que a cacofonia seja dolorosamentevivida. Se o uzalunu é "inocente" no quadro didático, ele se torna

"faltoso", por vezes de maneira vergonhosa, em todos os contex-

tos fu tu ros nos quais ele arrisca se manifestar e cu j as expectativas

p a r a a pessoa são totalmente diferentes. Dessa circunstância origina-

se o paradoxo do aluno. Em situação didática, ele pode e mesmo

deve cometer erros para evitar cometê-los em outros momentos.

Ao mesmo tempo, sua angústia cresce com a idéia de se mostrar e

de se aceitar como o uzalunu que ele talvez seja ou que se supõe

que ele seja.

8. l.Identidades e papéis na troca didática

Para limitar a abrangência desse paradoxo, o contrato da troca didática

deve estabelecer contornos muito fechados. Consideremos o esquema

abaixo que sintetiza tanto as identidades do aluno e do professor quan-

to seus desempenhos de papéis, compreendidos como comportamen-tos esperados e recorrentes.

106

]) Identidades e papéis em uma troca didática

T R O C A D I D Á T I C A

Professor(Atividadede comunicação)

i

"Ser detentor dediploma"(Pré-condiçãosocial)

AIu n o-aprendiz(Atividade de comunicação)

t

"Estado d s saber lacunar"(Pre-condição social)

1ENT1

D

Ilustrando, podemos sustentar que a troca entre professor e aluno im-

plique, para o primeiro, pré-requisitos sociais, como o fato de ser habi-

litado a ensinar, por exemplo, possuindo um diploma e, pa ra o segun-

do , ainda não dispor dos conhecimentos a ser adquiridos. Com efeito,

° uzalunu resulta de uma constatação endereçada por uma instância

autorizada a constatar: sto é, o professor. Esta constatação se direciona

Para um a instância a priori incapaz de conduzir esta verificaçãopor si

P

r

opria, isto é, o aluno. Estes parecem ser os limites mais englobantesua troca didática e estão ilustrados pelos retângulos superior e inferior

10 7

 

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do esquema. Nós postulamos a hipótese de que eles sustentam impli-

citamente os enunciados e marcam os limites além dos quais a troca

cessa de ser didática.

Os desempenhos de papéis ilustrados pelos círculos do esquema

sã o os elementos que asseguram explicitamente a coordenação da tro-

ca didática. Os papéis colocam ern relação direta o professor e o aluno

em função das fases precisas da atividade didática.Assim, um a fase deensino supõe a atenção do aluno; uma fase de avaliação supõe corre-

lativamente que o aluno manifeste saberes e habilidades (e, portanto,

uzalunus). Os papéis constituem, a partir disso, retomadas estáveis que

permitem verificar a relação didática e tornar exatas as expectativas

dos uzalunus.Nesse sentido, os textos e os enunciados se produzem e

se interpretam sempre no quadro dos papéis específicos.

8.2. Níveis de enunáação na troca didática

Conseqüentemente, todo discurso constrói uni contexto enunciativo

em três níveis: (a ) a. atividade de comunicação globalmente em curso

constitui um primeiro nível de enunciação, o âmbito mais engloban-

te; (b) os desempenhos de papéis que constituem, efetivamente, fases

pontuais da atividade global fundam um segundo nível; e, enfim, (c)

os enunciados, que manifestam a dimensão linguageira da atividade

de comunicação, constituem o terceiro nível da enunciaçào intervin-

do localmente. Podemos representar este três níveis de engajamentoenunciativo da seguinte forma:

2) Níveis de engajamento enunciativo

1 . { N Í V E L G L O B A L D A A T I V I D A D E }

2. { (nível da s fases da atividade: desempenho de papéis ) }

3. { ( [ NÍVEL LOCAL DOS ENUNCIADOS ] ) }

108

Em um tal quadro, uma palavra como hêxito constrói, de imediato,

um contexto de interpretação com três desdobramentos. Estes f u n d a m

a legibilidade dos enunciados no sentido de que funcionam como

marcas da intencionalidade em atividade convencionadas em um qua-

dro de comunicação. Assim, eles constróem em conjunto o formato da

pertinência dos enunciados. Nesse sentido, hêxito participa da constru-

ção de sua interpretabilidade sobre uni modo específico que podemos,brevemente, descrever.

3 ) Nível global da atividade

{ N Í V E L G L O B A L D A A T I V I D A D E }

— relação entre um EU professor e EUs alunos.

Inicialmente, hêxito somente manifesta um uzalunu porque o atri-

buímos a um aluno na sua relação com um professor: isto é, apreende-

mos a manifestação linguageira do uzalunu em um nível global.

4) Nível pontual das ases da atividade

{ (nível das fases da atividade: desempenho de papéis ) }

— relação entre um EU avaliador e EUs mostrando suas habilidade s.

Em seguida, hêxito somente manifesta um uzalunu porque o atri-

buímos a um aluno no papel em que este supostamente mostra com-

petências específicas: por exemplo, ortográficas. Em outros termos,

localizamos o uzalunu, mais precisamente no interior do dispositivo

enunciativo, como um elemento pertinente de um desempenho de

papel.

109

 

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5) Nível local aos enunciados como traços da atividade

{ ( [ N I V E L L O C A L D O S E N U N C I A D O S ] ) }

= relação entre as marcas lingüísticas d e "Eu"

"hlxito"

"Você escreveu 'hêxito'!"

Enfim, hêxito somente manifesta um uzalunu porque sua aparição

fo i notada pelo professor:um traço material e linguageiro é marcado e

comentado, o que supõe uma ocorrência pontual e preambular, assim

corno sua inscrição nos dois outros níveis de enunciação.

9. Expectativas ídentítárias do uzalunu

Se a materialidade hêxito permanece uniforme em qualquer que seja

o contexto, logo, suas expectativas comunicacionais são variadas. Elasnão desencadeiam, forçosamente, uma construção de uma identidade

de uzalunu, nem a estigmatizam — quando aparece — associando-lhe

irremediavelmente conotações negativas. As expectativas ídentitárias

do uzalunu dependem assim, amplamente, do desempenho do papel

que as faz advir e do seu reconhecimento. Podemos evocar rapida-

mente três casos ilustrativos.

9.1.O bom uzalunu

O uzalunu somente aparece como tal na seguinte configuração:o res-

ponsável pela enunciação é a entidade polifônica "aluno" considerada

em seu papel de "mostrar saberes e habilidades" e, mais precisamen-

te ainda, competências avaliadas sob a medida de normas evidentes,

como as normas ortográficas.

6) Em ase da atividade AVALIAR; competências ortográficas (escrever correto)

{EU -ALUNO (EU - papel "mostrar competências" [EU - "hê-

xito" ] ) }

110

Nesta configuração, concebe-se que hêxito seja o objeto do a jus ta -

mento e de uma avaliação negativa pelo professor. Nessa perspectiva,

a constatação do erro não é vexatória para EU-ALUNO, ou pelo menos

não o deveria ser. De fato, o aluno realiza as expectativas do contrato

didático: o uzalunu se manifesta para ser corrigido e,por conseqüência,

não engaja nenhuma expectativa identitária marcada.

9.2. O uzalunu virtual

Ao contrario, podemos visualizar, sempre nesta configuração, que um

uzalunu pode não ser identificado e que isso possa ser virtualmente

vexatório para o professor. Nesse caso, pode até mesmo ter sua credi-

bilidade comprometida, caso um olho atento externo venha observar-

lhe o esquecimento da correção. Esquecer o uzalunu é negá-lo. E isso

eqüivale a pontuar uma falha na relação didática, construindo uma

identidade "inesperada" do professor.

9.3. O uzalunu autônomo

Enfim, mostrar o uzalunu, mas lhe imputar um julgamento positivo,

só é possível se visualizarmos um desempenho de papel inesperado

por parte do professor. Isso implica, por exemplo, passar ou, sobretu-

do, transitar por uma fase de atividade "avaliar outra coisa que não a

ortografia". Assim, o professor valoriza a imagem do ALUNO apesar de

— ou graças a — seu erro. Por conseqüência, o uzalunu é reconsidera-do a partir de um lugar ou perspectiva diferente, e este distanciamento

enunciativo é, sem dúvidas, salutar. Na realidade, podemos pensar que

a utopia didática consiste em libertar a relação do aluno com seus uza-

lunus, tornando-a autônoma.

10. Conclusão

Na busca do ideal jamesiano — tornar o aluno responsávelpor si mesmo~ ~ — o professor, que tem a tendência a impedir os erros "para não os ver

1 1 1

 

Análises da discurso hoje Uzalunu: Análise ao Discurso e ensino de l íngua materna

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mais", deve, ao contrário, dar ouvidos àsvozes dos uzalunus, para, tendo-

as ouvido, devolvê-las para seus responsáveis. Este desempenho do papel

da escutadascacofonias pede uma atenção de maestro de orquestra, meio

focalizada, meio flutuante. Ela é inesperada, já que é pouco praticada, e

não pertence ao repertório daspráticas sociais de base. Neste caso,não é

somente a responsabilidade dos professores que está engajada.

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Análises do discurso hoje

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MEMÓRIA, LINGUAGENS,CONSTRUÇÃO D E SENTIDOS

1 14

Beth Braít (PU C-SP/USP/CNPq)

"E o senhor, como se chama?"

"Espere, está na ponta da língua''

Tudo começou assim.{UMBERTO Eco)

1. Considerações indispensáveis

Sem insistir na discussão de determinados conceitos sugeridos pelos

trabalhos de Bakhtin e seu Círculo, este texto procurará, pela leitura

do c o r p u s selecionado, utilizar sugestões teóricas que marcam o queho je se pode denominar análise/ teoria dialogica do discurso. Dentre essas

sugestões destacam-se: a) a multiplicidade de discursos qu e constituemum texto ou um conjunto d e textos e que se modif icam, se alteram ou

subvertem suas relações, po r força da mudança de esfera de circulação;

b) as r e l a ç õ e s dialógicas como objeto de uma disciplina interdisciplinar,

denominada por Bakhtin metalingüística ou translingüística, e que hoje

Pode se r tomada como embrião da análise/ teoria dialogica do discur-s°; c) o pressuposto teórico-rnetodológico de que as r e l a ç õ e s âialógicasSe estabelecem a partir do ponto de vista assumido por um sujei to;

 

Análises do discurso hoje Memória, l inguagens, construção de sen t idos

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d) as conseqüências teórico-metodológicas de que as relações dialógicas

não são dadas, não estando, portanto, jamais prontas e acabadas num

determinado objeto de pesquisa, mas sempre estabelecidas a partir de

um ponto de vista; e) o papel das linguagens e dos sujei tos na cons-

trução dos sentidos; f) a concepção de texto, independentemente da

natureza de seus planos de expressão, como assinatura de um sujei to,

individual ou coletivo, que mobiliza discursos históricos, sociais e cul-turais para constituí-lo e constituir-se.

Considerando esses aspectos, o objetivo deste texto é apresentar

algumas formas de produção do sentido em textos que mobilizam dis-

cursos verbais, visuais e verbo-visuais, tendo a memória e seus sujei tos

como tema privilegiado. Para tanto, a perspectiva escolhida é a análise/

teoria dialógica do discurso, vertente que, no vasto conjunto da s pesquisas,

incluídas sob a denominação análise d o discurso, assume forma, perfil e

consistência própria.

2. Aproximação de uma análise/ teoria dialógíca do

discurso

Em linhas gerais e sem estabelecer uma definição fechada, uma vez que

esse fechamento significaria uma contradição em relação aos termos

que postulam a análise/ teoria dialógica do discurso, é possível expli-

citar seu embasamento constitutivo como sendo a indissolúvel relação

existente entre língua, linguagens, história e sujeitos. E é essa condiçãosubstantiva que a fa z enfrentar os estudos da linguagem como lugares

de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável,

e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias

dominantes em determinadas épocas. A concepção de linguagem, de

construção e produção de sentidos está necessariamente apoiada nas

relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados.

Nessa perspectiva, os estudos da linguagem são concebidos como formu-

lações em que o conhecimento é produzido e recebido em contextos

históricos e culturais específicos, pautando-se o pesquisador, necessa-

116

ríamente, por uma ética que tem na linguagem, e em suas implicações

na s atividades humanas, seu objetivo primeiro. Sob esse prisma, as ati-

vidades artísticas, intelectuais, acadêmicas, etc. são enfrentadas como

estando sempre atravessadas por idiossincrasias, singularidades, que têm

a ver com sua natureza e com o ponto de vista que as focal iza.

Essa perspectiva, ao mesmo tempo teórica e analítica, origina-se e

firma-se de maneira curiosa. Sem que tivesse sido proposta formalmen-te e sem a historicidade consagrada à Análise do Discurso Francesa, por

exemplo, instaura-se a partir das obras escritas por Bakhtin e seu Cír-

culo e, mais especificamente, pela maneira como essas obras foram sen-

do conhecidas, lidas e interpretadas nas últimas décadas. É importante

considerar que nos anos 1990 o pensamento e os escritos bakhtinianos

passam a ser reconhecidos e explicitados como produto de trabalhos de

vários autores, aí incluídos Mikhail Bakhtin (1895-1975),Matvei Isae-

vich Kagan (1889-1937); Pavel Nikolaevich Medvedev (1891-1938);

Lev Vasilievich Pumpianskii (1891-1940); Ivan Ivanovich Sollertinskii

(1902-1944);Valentin NikolaevichVoloshinov (1895-1936) e outros.

Independentemente do peso intelectual e das especialidades de cada

um dos membros dessa verdadeira e s f e r a intelectual denominada poste-

riormente Círculo de Bakhtin, a abundância temática e reflexiva carac-

terizada pelo amplo leque formado pelos escritos desses autores expõe

uma filosofia da linguagem que polemiza, no momento de sua pro-

dução, com a lingüística, com a psicanálise, com a teoria literária e, de

maneira mais específica, com as culturas e ideologias marcantes naquelemomento. Hoje, graças ao poderoso arcabouço de conceitos e reflexões

representado pelo conjunto dos textos, for tes elos são estabelecidos com

várias áreas do conhecimento, caso da antropologia, dos estudos da lin-

guagem em geral, da historiografia, das teorias políticas, etc.

É nesse multifacetado panorama que a análise/ teoria dialógica do

discurso1 surgiu, estabelecendo diálogo com outras perspectivas enun-

Para mais detalhes, consultar Brait, B. "Análise e teoria do discurso". In: Bakhtin:°utros conceitos-chave. Sã o Paulo: Contexto, 2006.p. 9-31.

117

 

Análises do discurso hoje Memória, l inguagens, construção de sentidos

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ciativas e discursivas, e, mais fortemente, com aquelas que têm no su-

jeito histórico, social, múltiplo, o centro de suas preocupações e que

entendem a linguagem como constitutiva desses sujeitos.

3. Memória: língua e linguagens costurando sentidos

O arcabouço advindo dos trabalhos de Bakhtin e seu Círculo pode,

com adaptações que dizem respeito às singularidades das linguagens

escolhidas para análise e interpretação, oferecer elementos para a leitura

do verbal, como tradicionalmente os trabalhos têm sido entendidos, e

do visual, como fica sugerido em vários textos de alguns dos autores.

Para este texto, e de acordo com pesqui sa em andamento, a hipótese

principal é a de que, em determinados textos, a articulação entre os ele-

mentos verbais e visuais forma um todo indissolúvel, cuja unidade exi-

ge do analista o reconhecimento dessa particularidade e a utilização demetodologia e fundamentação teórica compatíveis com essa realidade.

Para discutir e enfrentar essa hipótese, recorro a três publicações

que, de diferentes formas, possibilitam a compreensão da memória

como construção em que um suje ito , individual ou coletivo, atribui

sentido à própria existência ou a um ou mais aspectos da vida cole-

tiva, do universo em que se insere, da instância espaço-temporal em

que se coloca para se compreender e compreender o mundo. Essa

concepção, como não poderia deixar de ser, está diretamente ligada à

linguagem enquanto constitutiva do homem e de todas as atividadesque ele desenvolve, pratica e que, necessariamente, o constituem. Esse

conceito de linguagem, por sua vez, implicando memória e implicado

em memória, envolve tanto a língua, enquanto manifestação verbal,

isto é, manifestação oral e escrita da linguagem, como as demais mani-

festações, de cunho visual e mesmo verbo-visual.

As obras escolhidas como corpus deste trabalho nào têm caráter teó-

rico ou científico, no sentido de discutir objetivamente um conceito

de memória. Na verdade, são produções estéticas, de di f eren tes gêneros,

que mobilizam a questão da memória, das memórias, daslembranças,

1 18

do s esquecimentos, em relação direta com a língua, com as produções

visuais, verbo-visuais e com a linguagem em geral, expondo, de manei-

ra contundente, a construção de sentidos, de sujei tos e de identidades.

Os trechos delas destacados e aqui apresentados reforçam os estreitos

laços que unem memória e língua, memória e outras linguagens.

3.i.A misteriosa chama da rainha Loana. Romance ilustrado,de

Umberto Eco

A primeira obra escolhida é A misteriosa chama d a minha Loana. Romance

ilustrado, de autoria do italiano Umberto Eco, que teve sua primeira edi-

ção em 2004/ Milão, e tradução brasileira, de Eliana Aguiar, em 2005.

Esse romance, cujo gênero fica definido na segunda parte do título

— "romance ilustrado" —, é, por assim dizer, um texto híbrido em que

há uma confluência entre a narrativa verbal e a narrativa visual, de for-

ma a promover uma forte e inegável interdependência dos dois planos

de expressão. Isso significa que o visual, em lugar de funcionar como

mera ilustração para o verbal, como poderia sugerir uma leitura super-

ficial da segunda parte do título, participa ativamente da construção de

sentidos e de efeitos de sentidos. O escritor lança mão desse privilegia-

do recurso, que parece abranger uma gama muito grande de linguagens

e,portanto, apresentar-se como suficiente para satisfazer plenamente as

necessidades de informação dos sujeitos, com a finalidade de montar

uma história em que, ironicamente, o protagonista é alguém que acordauni determinado dia e descobre que perdeu a memória.

Curiosamente, não toda a memória. Ele perdeu a memória afeti-

va , a memória ligada à sua identidade civil, às pessoas próximas, à sua

história pessoal. Restou-lhe, entretanto, uma memória viva, atuante,

constituída pelas leituras feitas durante essa vida da qual ele não conse-

gue se lembrar. E essa memória cultural, artística e,mais especialmente,

literária, começa a falar por ele, sem que ele tenha controle sobre ela,

sem que ele a evoque conscientemente. A qualquer pergunta, a qual-

quer tentativa de responder quem é, de demonstrar conhecimento

119

 

Análises do discurso hoje Memória, l inguagens, construção de sentidos

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a respeito da s pessoas que o rodeiam, el e profere citações, paráfrases,

trechos de obras, falas de personagens . Esse mundo li terário, ficcional,fala por ele, como se fosse ele, assumindo-se como o que resta dele. E,

durante toda narrativa, o protagonista sai em busca desses textos vivos

que , como cacos de um mosaico, precisam ser remontados.

O começo dessa situação de sof r imento , que necessariamente im-

pulsiona o protagonista a fazer um esforço doloroso para reconsti tuirsu a mem ória , se reconstituir e dar sentido a si mesmo, aparece no tre-

cho inicial do primeiro capítulo da primeira parte. E j us tamente esse

trecho que está aqui recortado, an tes mesmo da articulação com o vi-

sual, e que foi escolhido pela sua condição privilegiada e expressiva nosentido de se colocar como momento inaugural, fundador, primeiro,

em que as relações entre língua e memória se expõem como busca da

construção dos sentidos que referendam um sujeito, ou seja, o sujeitoperdido em bu sca do qual se mobiliza a narrativa toda.

"E o senhor, como se chama?"

"Espere, está na ponta da l íngua"

Tudo começou assim.

{ECO, 2005, p. 9)

Nessas frases iniciais do romance, a questão da identidade se colo-

ca lingüisticamente como memória/ esquecimento, por meio de um

breve diálogo entre dois interlocutores e que é finalizado por umaterceira voz: a do narrador. Há uma in te r rogação que vem de um

dos interlocutores. Há uma resposta a essa interrogação que se coloca

como esquecimento e que se reveste de uma entonação de súplica,dada pelo verbo esperar, no im perativo, e pela expressão "está na pontada língua". Esse outro interlocutor, que em breve o leitor saberá que

é o protagonista, afirma a possibil idade da resposta, do conteúdo daidentidade, por meio da língua, mas não chega a ela. A asserçâo donarrador — "Tudo começou ass im" — completa o conjunto , que se

oferece como início, começo, ato inaugural .

12 0

Se , por um lado, há uma inegável intertextualidade com "no co-

m e ç o era o verbo", que evoca uma memória bíblica para dar sentido

ao homem , para s i tuar miticamente a vida, há também a ausência do

nome, da designação da pessoa, de sua prova primeira de identidade,

aspecto qu e marca l ingüisticamente a falta, a ausência, a fratura desse

sujeito. Esse nome é buscado, desesperadamente, por meio da expres-

sã o "está na p onta da língua". Essa expressão é cur iosa porq ue func io-na como ponto de partida para a compreensão do protagonista e do

romance como um todo . Seu significado, como se sabe, está ligado a

"muito bem estudado, decorado, aprendido", l igando a expressão à

vida do apren dizado, da escola, de um significado dominado que deve-

ria vir de pronto , de imediato. Entretanto, embo ra l igado a um conhe-

cimento e tendo o verbo estar no presente, refere-se a uma ausência,algo que já esteve, que deveria estar, que provavelmente estará, mas que

não se concretiza nesse momento: está na ponta da Kngua, pronto para

sair, rnas não se c o n su m a .P or outro lado, e de forma complementar, a expressão pode ser

compreendida de uma outra manei ra . S e a ponta da língua fo r tomada

metaforicamente como fio, aí ela funcionará como elo, como cordão

(umbilical?) qu e será puxado pelo sujeito para chegar ao nome, para

exibir o nome, a designação, a identidade, a me mó ria.

E é a essa ponta exposta da língua, que esconde muito mais do

qu e mo stra, que o protago nista vai se agarrar e, como herói do avesso,

vai re tornar ao s espaços de sua infância, de sua adolescência para, no ssótãos, nas prateleiras, socorrer-se das linguagens, caso dos livros, dis-cos, publicidades, revistas, etc . , com o o bjetivo de moldar peça s e, comelas, re-significar sua existência, traçar sua memória. E aí o caminho

da l íngua, das leituras, mesm o não sendo o único, consti tui-se comoum começo adâmico, como uni reencont ro com o que, tendo sido e

existido, não existia mais no nível da consciência. Para adentrar o rei-n°da significância ele tem, necessariamente, de buscar seus t emas via

l inguagens que o const i tu í ram, recuperando, pelo reconhecimento da

, a sua identidade.

12 1

 

Análises do discurso hoje ._./'

Memória, linguagens, construção de sentidos

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3.2. Istambul. Memória e cidade, de Orhan Pamuk

A segunda obra escolhida é Istambul Memória e cidade, de autoria do

turco Orhan Pamuk, que teve a primeira edição em 2003 e a tradução

brasileira, de Sérgio Flaksman, feita a partir da edição inglesa, em 2007.

Esse livro é uma autobiografia ilustrada com fotos e alguns dese-

nhos, que se confunde com uma espécie de biografia da cidade deIstambul. A memória que impulsiona a narrativa se constrói na in-

t e r secçào das identidades su je i to / cidade, oriente/ ocidente, sentidos

perdidos/ simulados/ reconstruídos.

E é justamente essa característica híbrida que aproxima essa obra do

romance de Eco.Também aqui, a construção da memória se dá a partir

do recurso às linguagens verbal e visual, como uma indicação de que o

mundo chega, e se vai,po r meio desses dois planos de expressãoe, não

raras vezes, por meio da articulação indissolúvel de ambos. Esse texto,

mais declaradamente autobiográfico que o de Eco, coloca o foco emlugares sociais e afetivos naturalmente diferentes, na medida em quetrata de outro sujeito, outros espaços, outra cultura. Entretanto, o trecho

escolhido, como o anterior, estabelece uma significativa relação entre

l íngua e memória. A língua turca, enquanto sistema lingüístico, prevê

formas diferentes de sistematizar e mobilizar a memória, possibilitando

ao s falantes usar tempos verbais qu e distinguem o que foi visto, teste-

munhado, daquilo que foi ouvido a partir de relato de outras pessoas.

Em turco, temos um tempo verbal específico que nos permite distinguir

o que ouvimos dizer daquilo que vimos com os próprios olhos; quando

relatamos sonhos, contos de fadas ou fatos do passado que nào podemos

ter testemunhado, é esse o tempo que usamos. É uma distinção muito

útil quando "rememoramos" as nossas primeiras experiências de vida, o

berço em que dormimos, o carrinho de bebê em que éramos empurrados,

nossos primeiros passos, tudo da maneira como nos foi contado pelos pais,

histórias que ouvimos com a mesma atenção arrebatada que poderíamos

dar a algum relato brilhante de outra pessoa. E uma sensação tão agra-dável quanto a de nos ver a nós mesmos em sonho, mas pagamos por ela

322

um preço elevado. Depois que se gravam em nossos espíritos, os relatos

alheios sobre o que fizemos passam a contar mais do que as coisas de que

nó s mesmos no s lembramos. ( P A M U K , 2007, p. 16)

É curioso como o autor demonstra, nesse trecho, a funcionalidade

desses diferentes tempos verbais que reconstituem o passado, distin-

guindo vivido de ouvido. É por meio desse recurso lingüístico que o

indivíduo pode falar de si mesmo pela via de um desdobramento,

posicionando-se no lugar de quem olha e de quem é olhado.Ao mes-

mo tempo em que constata essa riqueza da língua e a importância

para a precisão de referênciasda memória, sinaliza uma conseqüência

perver sa . P or força da relação língua-memória proporcionada por essa

duplicidade temporal, a sedução do s discursos ouvidos ganha espaço

em relação ao s eventos vividos e passa a ocupar um lugar maior, desobreposição. Num certo sentido, essa reflexão sobre a relação língua-

memória está diretamente ligada à narrativa que ele está construindo.Nela, como na de Umberto Eco, a memória é reconstruída ou, mais

especif icamente, construída com muita pesquisa, envolvendo mais coi-

sas ouvidas e lidas do que coisas vividas e hipoteticamente guardadas

em uma memória virtual e pronta a aparecer e fazer sentido.

Isso não significa que a memória seja somente construção de sen-

tidos por oposição a vivências. De fato a memória implica, como não

poderia deixar de ser, coisas vividas e prenhes de sentido. Entretanto, aforça da língua e, nesse caso, a especificidade da língua turca qu e pode

distinguir, para efeito de memória, o que foi vivido do que foi ouvido,acaba por constituir-se como uma forma não apenas de construção,

m as de fragmentação/ multiplicação do próprio sujeito. Isso, de certa

forma, corrobora a idéia bakhtiniana de que o eu se constitui no nós,

a partir dos outros e somente com os outros. Idéia central para o pen-

samento dialógico: o eu,de diferentes e complexas formas, constitui a

su a individualidade, as suas identidades, a partir dos outros e da manei-

ra como esses outros atuam lingüística e discursivamente nos diferentes

planos de sua existência. Isso está em Pamuk e está em Eco. Nas duas

narrativas, entretanto, o constituir-se pelo outro significa, precisamente

12 3

 

Análises do discurso hoje Memória, linguagens, construção de sentidos

2

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como no pensamento bakhtiniano, não um assujeitamento, mas uma

imensa luta responsiva, estridente, para fazer o eu ser uma entre as t an -

ta s vozes que constituem a polifonia da existência.

3.3. Mani-Oca (Maison de Mani)

O terceiro texto escolhido para discutir as relações memória, lingua-gens, construção de sentidos é uma versão f rancesa da lenda sobre o

nascimento da mandioca, que se encontra na obra Legendes, croyances

et talismans dê s indiens de . 1'Amazone/ Lendas, crenças e talismãs dos ín-

dios doAmazonas, publicada pela primeira vez em Paris em 1923 , em

f r ancês , com adaptações dos textos fei tas pelo f rancês P . -L . Duchartre

e i lu s t r aç ões do artista pernambucano Vicente do Rego Monteiro.

O pesquisador brasileiro Jorge Schwartz fez reaparecer essa obra em

2005, agora com tradução da pesquisadora e tradutora Regina Salga-do, numa edição-caixa intitulada Do Amazonas a Paris. Aí se encon-

tram edições fac-similares de Legendes croyances e t talismans dê s indiens

de l'Amazone e Quelques visages d e Paris, com as traduções e os respec-

tivos comentários.

MANI-OCA

12 4

MANI-OCA (Maison de M ani )

11 y a longemps Ia filie d ' un tuchaua (chef) devin t ence in te .

Lê tuchaua volai t punir 1 'aniant de sã filie.

Mais devant lês priè res conime lê s m enaces Ia j e u n e f i U e restait insensible,

disant qu'elle n1 avait jama is connu l'homme.

Lê chef avait decide de Ia tue r quand i] lu i vint un songe .

Un homme tout blanc lu i apparu t et lui dit:

"Ne tue pá s tá filie ca r elle es t innocente; elle n'a jamais connu

1'homme".

N e u f m o i s après Ia v ie rge accou cha d'une filie d'une rare beau té ,m ais elle

était tout à fait blanche .

C e fai t causa une grande surpr ise, non seulement dans sã t r ibu mais dans

lês t r ibus vois ines qui vcnaien t p o u r Ia regarder .

La petite filie reçu lê nom de Mani. E lle marcha et parla de três boniie

heure .Une année après sã naissance e l le m ouru t sans avoir été rnalade et sans

avoir ressenti aucune souíFrance.

Elle fut enterrée dans sã propre hu t te . Tous lê s jours on découvra i t et on

arrosait I a sépulture, selon lê coutume.

A u bout de quelque temps une plante tout à fait i n c o n n u e poussa en ce t

endroit et pour cette raison per s onne n'osa 1 'arracher .

La plante poussa, fleurit et donna dc s fruits . Lê s oiseaux qui en m a n g e -

aient , aussi tôt devenaient ivres.

Puis il arr iva qu e Ia t e r r e se f end i t .

AJors on put reconnaitre dans Ia r ac ine , toute blanche dans k terre, lê

corps même d e Mani.

Ainsi lês hommes on t appris à ma n g e r lê m anioc , appelé de cette façon

parce qu e Ia racine es t Ia d e me u re de Mani .

2 Imagem: SCHWARTZ, J. (org.). Do Amazonas a Paris. As lendas indígenas de Vicente

ao R eg o Monteiro. Edição fac-similar. T radução e notas Regina Salgado Campos. São

Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial, 2005.

125

 

Análises do discurso hoje Memória, l inguagens, construção de sen t idos

A terra afinal fendeu-se, cavaram-na e ju lgaram reconhecer no fru to que

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Embora não h a j a menção, o texto francês foi, certamente, baseado

no texto registrado por Couto de Magalhães (1837-1898) em O Se/-

va gem , obra escrita a pedido de D. Pedro II para figurar na Exposição de

Filadélfia, em 1876. É um tratado sobre o idioma, os usos, os costumes

e os mitos dos índios brasileiros. Foi recuperado, mais tarde, por Câ-

mara Cascudo e aparece no Dicionário ao Folclore Brasileiro. 4. ed. São

Paulo: Global Editorial, 2005, p. 357, e, na versão de 2005, ReginaSalgado transcreve indicando essas mesmas fontes.

MANI-OCA (Casa de Mani)

Em tempos idos, apareceu grávida a filha dum selvagem, que residia nas

imediações do lugar em que está hoje a cidade de Santarém.

O chefe quis punir no a u t o r da desonra de sua filha a ofensa qu e sofrerá

seu orgulho e, para saber quem el e era, empregou debalde rogos, ameaças

e por fi m castigos severos.

Tanto diante dos rogos corno diante dos castigos a moça p e rma n e c e u

inflexível, dizendoque nunca tinha tido relação com homem algum.

O chefe tinha deliberado matá-la, quando lhe apareceu em sonho um

homem branco , que lhe disse que não matasse a moça, porque el a efetiva-

mente era inocente, e não tinha t ido relação com homem.

Passados os nove meses, ela deu à lu z um a menina l indíssima e branca,

causando este último fato a surpresa não só da tribo como das nações

vizinhas, qu e vieramvisitar a criança , para ve r aquela nova e desconhecidaraça.

A c r ianç a , q ue teve o nome de Mani e que andava e falava precocemente,

morreu ao cabo de um ano,sem ter adoecido e sem dar mostras de dor.

F oi el a en terrada dentro da própria casa, descobrindo-se e regando-se

diariamente a sepul tura , segundo o costume do povo.

A o cabo de algum t em po , brotou da cova uma planta que, por ser inteira-

mente desconhecida , deixaram de arrancar . Cresceu, floresceu e deu fru-

tos. Os pássaros que comeram os f rutos se e mb r i a g a ra m, e este fenômeno,

desconhecido dos índios, aumentou-lhes a superstição pela planta.

Í26

encontraram o corpo de Mani.

Comeram-no e assim aprenderam a usar a mandioca.

O fruto recebeu o nome de Mani-oca que quer dizer: casa ou transfor-

ma çã o de Mani.

O percurso dessa memória coletiva representada pela lenda é bas-tante curioso. Recuperando o rastro desses registros, tem-se, inicial-

mente, a passagem da oralidade primitiva para a escrita portuguesa,

processo realizado por um pesquisador que, no século XIX, ouviu

o indígena, registrou sua fala, traduziu para o português e conseguiu

imprimir em letras de forma, perpetuando o relato, a memória de um

povo. O objetivo de registro indica tripla preocupação: transforma-

ção da oralidade constitutiva da cultura em questão em escrita que

a perpetuasse; preservação da identidade e da memória de um povo;

divulgação de narrativas que dão sentido ao universo dos indígenas

brasileiros, projetando-os para além de suas fronteiras.

Essa passagem do oral para o escrito, implicando o contato de duas

línguas, de forma que urna se transforma em outra, necessariamente

incorpora e fa z circular diferentes discursos, construindo diferentes

sentidos e produzindo diferentes memórias, especialmente se forem

consideradas as diferentes esferas de produção, circulação, recepção aí

implicadas.Aquilo que estava muito próximo do mito transforma-se,

pelo registro etnográfico, em dimensão histórica, antropológica, pas-sando de narrativa com funções sociais, culturais, a lenda registrada.

Um outro gênero, um outro funcionamento. O mesmo vai se dar com

° registro etnográfico em português ao ser passado para a língua fran-

cesa com desenhos de Rego Monteiro.

O efeito da dimensão verbo-visual construída para abrigar a nar-

rativa, associando a língua f r ancesa a desenhos de um artista brasileiro,

pernambucano, residente na Cidade Luz naquele momento, é a inte-

gral re-significação da lenda, nurna atitude explicitamente antropofa-

ã^a. Se o ponto de vista indígena é intensificado, fazendo novamente

127

 

Análises do discurso hoje

dialogar mito e arte, outros discursos passam a constituir esse texto

Memória, linguagens, construção < te sentidos

f incadas no universo indígena, conseqüência de sua visceral ligação

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verbo-visual, mostrando o viés da língua estrangeira qu e enuncia a

narrat iva, o cosmopolitismo da linguagem visual e, conseqüentemente

um conjunto de assinaturas que transitam do mito à arte, de um tempo

imemorial à virada do século XIX para o XX, com os traços caracte-

rísticos da vanguarda, da s artes européias.

A verbo-visualizaçãoantropofagica

concretiza-se por meio de vo-

ze s de diferentes fontes, cuja materialidade, lingüística e visual, sinaliza

lugares discursivos, sociais, culturais e artísticos, que apontam para além

daqueles explicitados como sendo a América, de onde a lenda é ori-

ginária , e a França, pátria da língua em que a lenda fo i traduzida. H á,

pelo efeito do conjunto,uma espécie de plurilingüismo verbo-visual,

o qual vai gerando uma multiplicidade de sentidos e efeitos de sentido

que vão muito além da tradução de uma língua para outra e da riqueza

da ilustração dedicada à lenda. É o conjunto que se oferece como um

complexo de vozes, de discursos que fazem circular imaginários e for-m as de traze-los para dentro do texto, fazendo-os circular em direção

a um a recepção múltipla.

U m d o s elementos qu e possibilita essa afirmação, essa apreensão

da lenda sob um prisma inusitado, que preserva sua identidade e, ao

mesmo tempo, revela a alteridade que a enuncia, é a condição do

i lust rador , artista situado em diferentes lugares geográficos, culturais

e estéticos, sujeito múltiplo que imprime sua voz por meio do texto

visual que redimensiona a leitura da lenda. El e deixa su a assinaturaa

partir de um ponto de vista estético-cultural que, curiosamente, não é

exclusivamente brasileiro ou ficticiamente indígena. Isso se deve nã oapenas à sua privilegiada condição de artista, mas de artista brasileiro

que foi para a França pela primeira vez aos 11 anos, que circulou entre

Paris, Recife e Rio de Janeiro inúmeras vezes, vivenciando, portanto,

a língua francesa e a língua portuguesa, assim como as duas culturas

— a européia e a brasileira —, des f ru tando e participando dos movi-

mentos artísticosque caracterizam as primeiras décadas do século XX -

Acrescente-se a isso tudo a explícita valorização das raízes brasileiras

12 8

com a pátria de origem, mas também com o tema do primitivo tão caro

às vanguardas artísticas da s primeiras duas décadas do século XX.

Observando-se a ilustração com cuidado, embora a reprodução dei-

xe muito a desejar, é possível detectar traços qu e revelam alguns do s

discursos advindos de diferentes culturas e diferentes práticas discursivas

e sociais, os quais atravessam essa complexa emmciação, configurando

um enunciador pluricultural, plurilíngüe, que imprime sua visão múl-

tipla à representação do universo do indígena brasileiro. Não é difícil

identificar, por exemplo, a presença de ornatos geométricos, máscaras,

figuras humanas e animais esquematizados de origem indígena e que

constituem elementos essenciaisàs cenas apresentadas.Também fica pa-

tente a marca marajoara 3 nas máscaras,na disposição de braços e pernas

das figuras, no detalhe dos dedos das mãos e dos pés, simetricamente

dispostos e ressaltados, nos círculos que envolvem a rótula dosjoelhos,

no s arabescos, na rígida estrutura geométrica da fauna, na s tonalidades.A o mesmo tempo em que se explicita o aproveitamento de formas

e cores características da arte indígena, da sensibilidade estética do ha-

bitante da Amazônia, como estratégia de recolocar em circulação dis-

cursos que identificam o universo retratado, outros discursos circulam,

integrados ao primeiro, fazendo presentes vozes advindas de outros

universos. Esse é o caso, por exemplo, da tonalidade oriental. O evi-

dente discurso visual oriental está indiciado nos corpos e semblantes,

na figurativização dos índios, materializado pelo graf ismo japonês, pela

estamparia japonesa dos séculos XVIII e XIX. Não se pode deixar de

notar, ainda, a presença de ao menos mais um discurso, de mais urna

vo z estética que se mistura às demais: a presença da estética Art Nou-

veau, estilo decorativo, por assim dizer, compreendido entre o final do

século XIX e os anos 1920.

Termo que designa estilo de ornamentação inspirado nos motivos indígenas da i lhade Marajó, situada no estado do Pará, mais precisamente na fo z do rio Amazonas [tupi

12 9

 

Análises do discurso hoje Memória, l inguagens, construção de sentidos

Portanto, além da plasticidade, da beleza, do valor antropológico e

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cultural, esse belíssimo texto verbo-visual aparece como um raro mo-

mento em que a voz do chamado primitivo, de seu olhar sobre o mun-

do, é acolhida pelo dito civilizado como uma voz forte, que merece

figurar como memória de um povo. Mas essa acolhida, essa memória,

como nos textos de Eco e Pamuk, é construída a partir de um diálo-

go com outras vozes. Pela força das linguagens que concretizam esse

enunciado verbo-visualmente elaborado, o cruzamento de diferentes

práticas discursivas e a presença de diferentes olhares sobre o mundo

tornam essa lenda e sua ilustração o testemunho de um acontecimento

discursivo multicultural. Esse texto, prenhe de vozes oriundas de dife-

rentes lugares, desnuda os traços de um sujeito múltiplo e de um lugar

complexo por meio do qual o indígena, o primitivo, é apreendido e

expresso.

O resultado é um conjunto de discursos que faz a riqueza dessa

lenda e das demais que compõem a obra Legendes. Ao enunciar a lendaem francês com uma ilustração que fala com a narrativa e dela torna-

se protagonista, Vicente do Rego Monteiro faz presentes universos

distantes, aproximando-os, fazendo-os dialogar e fazendo-os produzir

novos diálogos. De um lado a riqueza que advém do universo tido

como primitivo, que é o do indígena da Amazônia, de seu imaginário

dado pelo verbal e pela originalidade de um visual propiciado pelas

artes indígenas. De outro, e sem opacificar o primeiro, as formas dos

discursos das vanguardas produzidas na Europa e já em circulação no

Brasil modernista.

Num único texto verbo-visual, a memória múltipla, plurilíngüe,

resgata um magnífico percurso que vai do mito à arte, contando,

pela lenda da nossa prosaica mandioca, nosso aipim, nossa mani-oca,

a história de diferentes povos, diferentes culturas, diferentes mo-

mentos, resumidos na articulação de linguagens portadoras de ricos

discursos. Entre o vivido, o ouvido e o construído perpetuam-se

riquezas que apontam para a idéia de que no começo estão sempi"e

as linguagens.

í3 0

4. Brevíssimas e provisórias considerações finais

Para finalizar provisoriamente esta reflexão, recorro a uni texto do

jovem escritor, filósofo e crítico literário francês, François Poirié, nas-

cido em 1962 e grande estudioso da obra do f i lósofo Emrnanuel Lé-

vinas, que parece dialogar com o que tentei apresentar neste trabalho.

Centrado nas especificidades do pensamento de Lévinas, ele apresentacategorias e concepções fi losóficas que, numa certa medida e sob um

certo ponto de vista, podem propiciar o estabelecimento de relações

âialógicas com a análise/ teoria dialógica do discurso.

Se uma metafísica busca edificar-se, ela e n c o n t ra rá — entre outras ba-

lizas — o Sujeito, ou seja, o pensamento, ou a inda o Eu. Se uma ética

quer se fundar , é do Sujeito, dos sujei tos , dos su je i tos-ob je tos que e la

partirá, que ela falará. Emrnanuel Lévinas sabe muito be m disso, ele se

interrogou longamente, de uma nova maneira e audaciosa, sobre este

nascimento — difícil — de um Sujeito, metafís ico e moral.Nascimen-

to ? Seria a palavra correta? Não seria mais uma resp landecência , uma luz

mais potente que a noite repentina, e que é o desvelamento do Sujeito, a

apar ição do Sendo [étant]? U m a eclosão, no meio do há (il y a) anônimo

e impessoal , no meio do ser geral, a apar ição de um Sujeito , a exibição

de um ser individualizado. Milagre e mistério desse advento. ( P O I R I É ,

2007, p. 15-16)

Referências

BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto,

2006.

B R A N D I S T , C r a i g ; S H E P H E R D , D a v i s ; T I H A N O V , G a i í n ( e d s . ) .The Bakhtin Circle. In the Mastefs Absence. Manchester/New York:

Manchester University Press, 2004.

CASCUDO, Câmara. Dicionário ao Folclore Brasileiro. 4. ed. São Paulo:

Global Editorial, 2005.

1 3 1

 

Análises do discurso hoje

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ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana. Trad. Eliana Aguiar.

Rio deJaneiro/São Paulo: Record, 2005.

MONTEIRO,V. do R. (Ilustrador) (1923) - Legendes, croyances et talis-

mans dê s indiens de rAmazone. Adaptations de PL. Duchartre. Illus-

trations deV. de Rego Monteiro. Paris, Editions Tolmer e Quelques

visages de Paris.Paris: ImprimerieJuan Dura, 1925.In: SCHWARTZ,

J. (org.). Do Amazonas a Paris. As lendas indígenas de Vicente do RegoMonteiro. Edição fac-simüar. Trad. e notas Regina Salgado Campos.

São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial, 2005.

PAMUK, Orhan. Istambul. Memória e ádade.Ttí id . Sérgio Flaksman.São

Paulo: Companhia das Letras, 2007.

POIRIE, François. Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevistas.Tmâ.J. Guins-

burg, Márcio H. de Godoy eThiago Blumenthal. São Paulo: Pers-

pectiva, 2007.

132

DISCURSO E METÁFORA N A FALA

DO HOMEM P A N T A N E I R O : UMACONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

Helena Nagamíne Brandão (USP)Maria Leda Pinto (UEMS)

1. Introdução

Este artigo toma como objeto de estudo o discurso do homem panta-

neiro, tendo como ponto de partida a perspectiva discursiva e a perspec-

tiva de Lakoff e Johnson (2002) sobre a metáfora, compreendida corno

um fenômeno de linguagem de valor cognitivo. Para a concretização da

pesquisa, estabelecemos dois objetivos: compreender a metáfora enquan-

to processo cognitivo de construção do sentido e buscar nas histórias de

vida relatadas pelos próprios pantaneiros representações e imagens dis-

cursiva e metaforicamente construídas de si e de seu cotidiano.

Para alcançar esses objetivos, buscamos na perspectiva teórica es-

colhida os fundamentos para a análise das histórias de vida dos panta-

neiros que compõem o corpus da pesquisa', constituído por narrativas

de quatro peões pantaneiros, todos nascidos no Pantanal. Esses pan-

taneiros já desempenharam quase todos — senão todos — os tipos

de trabalhos desenvolvidos nas f azendas pantaneiras. Alguns aspectos

Esse corpus foi coletado e analisado por Maria Leda Pinto em sua tese de Doutorado

Discurso e cotidiano: histórias de vida em depoimentos depantaneiros, defendida na USP em, sob orientação da Profa. Helena H.N. Brandão.

 

Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: um a construção identitaría

giões se caracterizam, principalmente, pela vegetação, pelo tipo de solo e

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justificam essa opção. O primeiro deles se deve ao fato de que o peão

está sempre na fazenda, sendo mais fácil dialogar com ele do que com

o patrão que, em tempos de modernidade e novas tecnologias, passa

a maior parte do seu tempo nas grandes cidades. A segunda razão é

decorrente da primeira, visto que, se o peão é quem realmente vive e

convive na região, é ele que tem o que falar sobre a região e sobresua

atuação enquanto sujei to que age nesse contexto.A coleta dos dados se realizou por meio de um roteiro que, elabo-

rado com base nos objetivos estabelecidos para o trabalho, chamamos

de Roteiro de conversa com os pantaneiros. Esse contato c o m o pantanei-

ro f icou subdividido em três blocos em que buscamos coletar dados

pessoais, dados sobre o trabalho que executam e dados sobre como se

situam e/ou atuam nesse espaço.

Antes, porém, de analisar esses discursos, julgamos necessário for-

necer elementos esclarecedores sobre o contexto pantaneiro e tecer

algumas considerações sobre os pressupostos teóricos que fundamen-tam a análise.

2. No Pantanal, o pantaneiro

Estudar o cotidiano e as representações do homem pantaneiro pressupõe

perceber esse homem nas suas relações com o espaço em que vive e atua.

Isso implica, no nosso entender, conhecer um pouco da história do pró-

prio espaço investigado: o Pantanal. Essa planície se constitui em um con-

junto de vários ecossistemas, pois "é o resultado da influência das regiõesfitogeográficas da Amazônia, ao Norte; dos Cerrados, a Leste; do Chaco,

a Oeste e, da Mata Adântica, a Sudeste" (MORAES, 2004, p. 6). Segundo os

pesquisadores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária),

o Pantanal ainda se encontra em processo de formação, isto é, de sedimen-

tação (quaternária), oriunda dos rios da Bacia do Alto Paraguai.

A biodiversidade da região possibilita a caracterização de duas áreas

diferentes: o Pantanal Alto, que compreende as regiões mais altas, ondeas

enchentes são menos freqüentes, e o Pantanal Baixo, formado pelas partes

baixas e depressões e, por isso, sujeito a inundações periódicas. Essas re"

pelas duas estações que predominam no Pantanal: a da seca e a das águas.

No período da seca os campos geralmente são cobertos por gramí-

neas e vegetação de cerrado. No período das águas,a vegetação varia

de acordo com o tipo de solo e de inundação, predominando espé-

cies de cerrados nas terras arenosas do Pantanal Alto e de gramíneas

na s terras argilosas do Pantanal Baixo.

Essas duas áreas compreendem, na realidade, vários pantanais que,

de acordo com Nogueira (1989, p. 26), são resultantes da intrincada

rede hidrográfica, formada pelo rio Paraguai e seus tributários, que

condicionam a vegetação, a f auna , as condições do solo e a vida do

homem que as habita.

Essas sub-regiões — de paisagens diferenciadas, tanto no que se refere

ao s aspectos naturais, quanto à forma de ocupação humana — apresen-

ta m diferentes classificações defendidas por historiadores e estudiosos do

Pantanal, bem como por projetos governamentais. Os pantaneiros,porsua vez, estabelecem a sua classificação. Para eles existem os pantanais do

Rd o Negro, do Aquidauana, do Miranda, do Abobral, do Apa, do Tereré

e do Jacadigo, levando-se em conta, em quase todos, o papel exercido

pelos rios (NOGUEIRA, 1989, p. 26). Entretanto, a divisão rnais conhecida

e/ou citada é a seguinte: Pantanal do Aquidauana, do Paraguai, de Nhe-

colândia, do Abobral, do Miranda, do Nabileque e do Paiaguás.

O Pantanal apresenta dois aspectos importantes para a sua caracteri-

zação: o isolamento em relação às grandes metrópoles do país e a pro-

ximidade com dois países latinos (Bolívia e Paraguai), com os quais temconvivido intensamente. Segundo Nogueira (1990, p. 21), o resultado

desse relacionamento foi a assimilação de muitos hábitos e costumes pa-

raguaio-guaranis, hoje integrados ao cotidiano do homem pantaneiro.

Esse pantaneiro2 que há muitos anos habita o Pantanal aprendeua conviver com um mundo inundado, úmido ou seco. É um homem

Entende-se, portanto, por homem pantaneiro, neste contexto,o elemento nativo do" antanal ou aquele qu e nele vive há mais de vinte anos , compart i lhando hábitos ecostumes típicos da região, assimilados pela força do convívio diário com os mesmos(Cf. N O G U E I R A , 1989, p. 31).

13 4135

 

Análisesdo discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: um a construção identitària

simples, calmo que, mesmo acostumado à solidão e ao isolamento, não

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deixa de lado a solidariedade: está sempre pronto a receber, a informar,a servir de guia, a explicar sobre animais e águas e a contar seus "cau-

sos". Parodiando Euclides da Cunha, podemos dizer que o pantaneiro"é antes de tudo um forte", pois, atuando e m u m a área cheia de adver-sidades, está integrado a esse contexto e, apesar das vicissitudes que temqu e enfrentar, é feliz. Com seu chapéu de palha de abas largas na cabeça

(o de feltro não é apropriado para as altas temperaturas do verão panta-neiro), calças eans surradas, camisa ou camiseta de mangas curtas e fa-cã o no cinturão, trabalhacom o gado, sempre montado em seu cavalo.

Conhecedor da região, o pantaneiro sabe os perigos que enfrenta,

m as sabe também respeitar esse espaço e preservá-lo. Desenvolve um

ritmo próprio de trabalho e cria suas próprias ferramentas. Ligadoprincipalmente às atividades da pecuária, que são predominantes no

Pantanal , tanto do ponto de vista hístórico-cultural, quanto socioeco-

nômico, o pantaneiro desempenha várias funções inerentes à lida co mo gado, que vão de peão ou vaqueiro a gerente ou capataz.Atualmente,c o m o desenvolvimento do ecoturismo na região, começam a surgiroutras funções, como a de guia turístico e a de motorista-safari .

Por tanto , analisar a linguagem do pantaneiro a partir desse contex-

to é, no nosso entender, ter a possibilidade de conhecer esse falante,

su a identidade discursiva,as representações que tem de si mesmo e doespaço em que vive e atua. _

3. Metáfora: de ornamento retórico a mecanismo discursivo

de valor cognitivo

O estudo dos fenômenos metafóricos tem despertado a atenção dos

estudiosos da linguagem desde a Antigüidade. Nesse sentido, Aristóte-

les, em suas reflexões sobre a teoria da metáfora3 , que vkia a ser desig-

3 Metáfora: vem do grego metaphorá que significa transporte, transferência, mudança. Na

Poética (cap. XXI), Aristóteles considera que a metáfora "consiste no transportar para

13 6

nada pelos teóricos de teoria substitutiva, concebe a metáfora como o

deslocamento de um termo pertencente a um domínio para outro. É

urna operação em que se tira a palavra de um lugar que lhe é próprio

e a introduz em outro que lhe é estranho, a partir d e u m a relação de

semelhança existente ou intuída entre os dois termos.

Essa abordagem inspirou o tratamento da metáfora por séculos e

baseia-se essencialmente em duas percepções do uso da linguagem:a) a percepção que distingue o sentido literal do sentido figurativo,

isto é, uma palavra em seu sentido próprio, literal é substituída por

outra em sentido figurado;b) a percepção de que um termo metafórico remete sempre a u m a

comparação entre dois ou mais objetos, isto é, a substituição de um

termo por outro só é possível porque existe uma relação de similari-

dade entre os objetos comparados.

Dividindo as figuras em três grupos distintos, conforme a lógicaqu e presidia a relação entre os sentidos próprio e figurado, a retóri-

ca antiga reconhecia a seguinte classificação: os tropos4, as figuras de

pensamento e as figuras de palavras. Descritos como figuras que impli-

cavam um a nova significação da s palavras, diferente da usual,os tropos,

de acordo com a relação que estabeleciam entre o sentido original e o

novo, compreendiam: a metáfora, a metonímia, a sinédoque, a ironia,constituindo-se a primeira (a metáfora) numa da s suas formas básicas.

Para os antigos, as figuras de pensamento e as figuras de palavras

distinguiam-se segundo "a crença de que pensamentos e palavras cons-tituíam entidades autônomas na formulação da linguagem". A f i r m a -

va-se que o pensamento é anterior à sua expressão através da palavraou, na descrição de Quintiliano: "Assim como na ordem da natureza

primeiro é conceber as idéias para então enunciá-las: assim devemos

urna coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero

ou da espécie de um para a espécie de outro ou por analogia".Tropo é termo derivado do grego e significa desvio , implicando a idéia de mudança

de sentido da palavra — d o literal para o figurado — entendendo-se o literal como ouso normal e o figurado como desvio.

137

 

Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: ama construção iâeníitaria

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t ratar primeiro das figuras, que pertencem aos pensamentos" para de-

pois tratar da s figuras de palavras. ( B R A N D Ã O , 1989, p. 22).

Outro aspecto a observar é o fato de que a conceituação tradicional

de metáfora está focalizada no nome ou palavra, isto é, na metáfora, o

objeto de transformação ou deslocamento é a palavra — substitui-se

um a palavra p or outra.

Outra observação a ser feita di z respeito ao fato de que, desdeAristóteles até os autores clássicos subseqüentes como Cícero, Horácio,

Longino, Quintiliano, reconhecia-se o princípio do ornamento como

característica da linguagem figurativa da qual a metáfora representava

a principal f o r m a de embelezamento. Opunha-se, então, a linguagem

poética, literária, retórica (ornamentada) à linguagem científica (não

ornamentada) que, pela exigência da objetividade,não podia fazer uso

de metáforas.

A s pesquisas sobre a metáfora atravessaram mais de vinte séculossob a influência poderosa dessa dicotomia sentido literal vs. senti-

do figurado, adquirindo em diferentes momentos outras designações

tais como: sentido próprio vs. sentido acrescentado, sentido central

vs . marginal, sentido essencial vs. acessório, sentido original vs. desvio

de sentido, denotação vs , conotação, segundo as novas t endênc ias , as

novas vertentes de estudos da linguagem que vão surgindo ao longo

da história.

Com essa longa tradição sedimentada na memória discursiva da

nossa cultura ocidental, ainda hoje, ao se falar em metáfora, é comumpensarmos imediatamente no texto literário, em especial,no seu sen-

tido poético, já que ela foi considerada, por muito tempo, corno um

recurso estilístico essencialmente da linguagem poética, co m função

de ornamento. Mesmo para algumas das abordagens relativamente

mais recentes, a metáfora não tem passado de desvio de um sentido

anterior ou, em outro aspecto, como sentido conotado, t ransformado,

além de indesejável no discurso científico e filosófico, já que apenas

a linguagem literal seria adequada à busca das verdades objetivas (AI."

M E I D A , 2005). Por outro lado, nos últimos trinta anos, te m surgido urna

ciências cognitivas, da semântica e da pragmática, que têm provocado

um a mudança de paradigma.

Uma das intervenções teóricas de maior repercussão em relação

a uma nova visão do papel da metáfora na linguagem ocorreu no

âmbito de uma área de estudos que vem se caracterizando como Lin-

güística Cognitiva, com a publicação, em 1980, da obra de L a k o f f eJ o h n s o n , intitulada Metaphors We Live By, traduzida para o português

com o título Metáforas da vida cotidiana (2002), qu e focaliza a metáfora

so b o aspecto conceituai e investiga sua influência na estruturação do

pensamento. Segundo Lakorf e Johnson, o "conceito metafórico" es-

t rutura o pensamento e a ação humana:

[...] a maioria das pessoas acha que pode viver perfeitamente bem sem a

metáfora. Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na

vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento

e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não

só pensamos mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por

natureza. (2002, p. 45)

Para os autores,a metáfora é definida corno um processo cognitivo

própr io do sistema conceituai humano, diferente, portanto, da con-

cepção que a estudava apenas como uma figura de linguagem. Nes-

se sentido, a formação dos conceitos é orgânica, já que constitui umprincípio estruturante de natureza psicof is iológica. Esses conceitos di-rigem nossos pensamentos, mas não só isso: regem as nossas atividades

cot idianas até nas questões mais banais , exercendo um papel centralna def in ição de nossa realidade cotidiana, de nossas experiências. "Elesestruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no

ftiundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas"( L A K O F FeJONHSON, 2002, p. 45-46).

Para exemplificar o conceito metafórico, os autores partem do

conceito de D I S C U S S Ã O po r meio da metáfora conceptual D I S C U S S Ã O

13 8 13 9

 

Análises do discurso hoje Discurso e metáfora nafala do homempantaneiro: um a construção ideníítaria

É GUERRA, presente em nossa vida cotidiana em um sem-número de pia base de metáforas ontológicas, ou seja, a maneira de concebermos

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expressões, tais como:

Seus argumentos sã o indefensáveis. (Your daíms are índefensible.)

Suas críticas foram direto ao alvo. (His critiàsms were r ight on target.)

Destruí sua argumentação. (I demolished his argument]

Como podemos ver, embora não exista uma batalha física ou ver-

bal que esteja na base da estrutura de uma discussão, é assim que aconcebemos em nossa cultura. Por isso, para os autores, "a essência

da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em termos de

outra" (p. 47-48).

Diante dessas considerações, podemos dizer que a grande importân-

cia do trabalho desses dois estudiosos está no fato de que concebem a

metáfora de forma muito mais abrangente do que as abordagens ante- -riores, isto é, concebem-na como constitutiva da experiência humana,

sendo "vista como parte da experiência cotidiana do uso da língua, que

estrutura o pensamento e a ação humana" (IOANILHO, 1995, p. 39).

Em sua teoria, Lakoff eJohnson (2002, p. 59, 76,133) estabelecem

uma classificação dos conceitos metafóricos, agrupandos-os em três

grandes classes, a saber;

2. Metáforas estruturais — são aquelas nas quais "um conceito é es-

truturado metaforicamente em termos de outro". É o caso da metáfo-

ra DISCUSSÃO É GUERRA, em que o conceito DISCUSSÃO é definido em

termos do conceito GUERRA.2. Metáforas orientaáonais ou espadais — são as metáforas que, dife-

rentemente das primeiras, "organizam todo um sistema de conceitos

em relação a outro". Essas metáforas recebem esse nome porque a

maioria delas tem a ver com a orientação espacial como, por exemplo:

F E L I Z ÉPARA CIMA, que possibilita expressões como "Estou me sentindo

para cima hoje" (Tmfeeling up today}.

3. Metáforas ontológicas — essas metáforas surgem de nossa experiência

com substâncias e objetos físicos. Segundo os autores, "as experiências

que vivenciamos (especialmente com o nosso corpo) fornecem uma am-

1 40

eventos, atividades, emoções, idéias... como entidadese substâncias".Um

exemplo é a metáfora A MENTE É U MA MÁQUINA, de onde surge a expressão

"Estou um pouco enferrujado hoje." (T m a little rusty today.). Para Lakoff

e Johnson, a personificação seria uma metáfora ontológica, já que nos

possibilita compreender muitas experiências relativas a entidades não-

humanas como humanas. Assim "a personificação é, pois, uma categoriageral que cobre uma enorme gama de metáforas, cada uma selecionando

aspectos diferentes de uma pessoa ou modos diferentes de considerá-la"

(p . 88). U m d o s exemplos dados é a metáfora A INFLAÇÃO É U M ADVER-

SÁRIO, que sejustifica cotidianamente em expressões do tipo "A inflação

roubou as minhas economias" (Inflation hás robbed m e ofmy samngs.).

Os autores propõem, com sua teoria, que os conceitos metafóricos

decorrem da própria experiência humana, que manifesta uni sistema

conceptual subjacente à linguagem.

A ênfase dada por Lakoff e Johnson à busca por processos cogniti-

vos universais, em especial o estudo das metáforas orientacionais, pode

possibilitar-lhes uma imagem de cognitivistas não inclinados a uma

abordagem sociocultural. Entretan to, eles nos permitam intuir que têm

consciência da importância da relação entre metáfora e cultura quando

discutem o fundamento das metáforas estruturais. Segundo os autores:

As metáforas T R A B A L H O á UM RECURSO e T E M P O É UM RECURSO não sãouniversais. Elas emergiram em nossa cultura devido à manei ra como con-

cebemos o trabalho, à nossa paixão pela quantif icação e à nossa obsessão

po r fins específicos. Essas metáforas enfatizam aqueles aspectos do trabalho

e do tempo que têm importância central em nossa cultura. (2002, p. 140)

Dessa maneira, é possível inferir que os autores demonstram a im-

portância do aspecto cultural, quando explicitam que as metáforas es-

truturam o pensamento humano. De acordo com Almeida (2005, p. 3)

esse estudo deixa:

141

 

Análises do discurso hoje

[...] subentendido qu e cada cultura tende a estruturar suas próprias formas

Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: um a construção iaentitana

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de pensar e agir no mundo, e que essas formas só coincidirão com as de

outras culturas devido a fatores que vão do mero acaso até a fatores sócio-

histór icos, como o intercâmbio cultural .

Além de Lakoff e Johnson no s possibilitarem essa leitura do s fenô-

menos metafóricos, Zanotto {2002, p. 32) cita Gibbs (1999) como umdo s estudiosos qu e defende urna abordagem sociocultural da metáfora:

Para o autor, não há necessidade de se estabelecer urna distinção rígida

entre metáfora conceptual e cultural. E, nesse ponto, Gibbs apela para a

abordagem sociocultural da cognição, na linha de Vygotsky, Leontiev e

Luria, segundo a qual as teorias da cognição nã o deveriam insistir que as

es tru turas cognitivas estão "na cabeça", mas deveriam reconhecer quão

"abrangente" ou "distribuída" no mundo a cognição pode ser.

Essa perspectiva mais abrangente da metáfora possibilita outros

avanços nos estudos desse fenômeno lingüístico, como, por exemplo, o

fato de que não dá para conceber a metáfora restrita à palavra. Segundo

Coracini (1991, p. 135),"as palavras não têm sentido próprio definido:

seu sentido é sempre contextual", já que sua natureza é polissêmica.

Portanto, entendemos que o efeito de sentido de uma metáfora é cons-

truído no contexto do texto. Conforme Zanotto (1998, p. 121):

Toda comunicação realizada em determinado meio sociocultural se de-

senvolve dentro de uma problemática da alteridade: o sujeito falante só se

define e só se comunica quando se dirige a um outro; assim, esse"outro"

está inserido nos projetos de fala do sujeito falante, o que nos conduz aos

conce i tos bakhtinianos que consideram o ato de linguagem como funda-

mentalmente dialógico.

Para a Análise do discurso, o sentido literal, a unidade do sentido

é urna ilusão. Além disso, se contrariamente à concepção objetivista

142

— que defende a transparência da linguagem e a sua unidade — en-

tendemos que o domínio da linguagem é o da opacidade e o da não-

t ransparência, podemos concluir que o sentido literal é um efeito de

sentido.

[...] a incompletude é uma propriedade do sujeito (e do sentido), e o

desejo de completude é que permite, ao mesmo tempo, o sentimento de

identidade, assim como, paralelamente, o efeito de literalidade (unidade)

no domínio do sentido: o sujeito se lança no seu sentido (paradoxalmente

universal) , o que lhe dá o sentimento de que este sentido é uno. (ORLANDI,

2002, p. 81)

Além disso, as pesquisas lingüísticas na perspectiva discursiva têm

proposto uma ruptura com a idéia de uma linguagem pronta e aca-

bada, sem a mediação do sujeito sócio-historicamente situado que a

utiliza. Dessa forma, a partir do momento em que a linguagem não é

vista como uma mera representação da realidade, mas sim como uma

atividade histórica e social de sujeitos que, pelo discurso, constróem

essa realidade, a oposição entre linguagem literal e metáfora — en-

tendida unicamente como ornamento lingüístico — começa a perder

força. Segundo Almeida (2005, p. 2) :

Isto se dá porque agora não se considera mais que exista unia linguagem

objetiva, capaz de representar fielmente a realidade. N e m a linguagem figu-

rada é vista mais como mero ornamento, já que as imagens evocadas por ela

fazem parte do s conceitos verbalizados.Em outras palavras,se uma metáfora

apresenta um determinado domínio em termos de outro, não temos aí uma

mera comparação, mas sim a cr iação de uma maneira de compreender o

primeiro, qu e transfere para el e característicasdo segundo, as quais passama

ser elementos constitutivos de nossa visão sobre aquele assunto.

Tendo em vista essas considerações sobre o sentido literal e os

aspectos socioculturais, acreditamos que não haja incompatibilidade

14 3

 

Anál ises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: um a construção iáentitària

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teórica entre o que preconizam os estudos de base cognitiva sobre

a metáfora de Lakoff e Johnson e os pressupostos da Análise do dis-

curso; para nós a Análise do discurso se enriquece com esse diálogo

interdisciplinar, pois pode encontrar nessa abordagem um dispositivo

metodológico de grande auxílio analítico.

4. Como diz e o que diz o pantaneiro

Nos quatro discursos coletados, fizemos um recorte e, de acordo com

a abordagem desenvolvida pelos autores da obra Metáforas da vida co-

tidiana, destacamos algumas metáforas cuja presença se fez notar de

forma mais marcante, para verificar de que modo a linguagem dos

sujeitos da pesquisa estrutura sua maneira de perceber a si e o mundo,

de pensar e de agir sobre ele. Destacamos três conceitos relativos a

trabalho, felicidadee o que é

viver. Esses conceitosse

materializaram

lingüisticamentepor meio das seguintes metáforas conceituais: TRABA-

LHO É RECURSO, TRABALHO É SOFRIMENTO, TRABALHO É PRAZER, VIVER É

APRENDER, FELICIDADE É VIVER BEM.

Para analisar cada uma dessas metáforas conceituais, rastreamos nos

depoimentos as expressões lingüísticas metafóricas5 que concorrem

para a construção de cada conceito metafórico:

A ) TRABALHO É RECURSO (d e sobrevivência)6

1 } [...] você trabaia lá...por causa da sobrevivência você trabaia tem a

FARTURA (Dl-linhas 78-79)

3 Estamos entendendo expressões lingüísticas metafóricas de forma alargada, isto é, todasas formas que expressam uma compreensãoe uma experienciação de uma coisa em

termos de outra. (Cf. L A K O F F e JOHNSON, 2002, p. 48)6 A s transcrições da s falas do s pantaneiros obedeceram ao quadro de NORMAS P A R A

TRANSCRIÇÃO do projeto NURC/SP.As variações de uso — por exemplo:"as vêis"/

"às vezes" — devem-se ao fato de que, em dados momentos, esses pantaneiros, sen-

tindo-se mais à vontade, falaram de suas vidas com mais espontaneidade; em outros

momentos, no entanto, conscientes de que estavam sendo entrevistados, procuraramutilizar a variedade culta da língua.

Í44

2) [...] a gente foi mora com a vó... minha vó era uma gaúcha MU I -

to trabalhadeira... Muito dinâmica...junto todo mundo num lugar só...

aprendemos muita coisa com ela... ajudávamos ela fazer flores (sabe?)...

pr a pode ganha o pão. (D2-linha 9)

3) [...] os guRi... fomos criado com o papai... e trabalhando... desde

dez anos... oito anos a gente trabalho duro mesmo... fazia de tudo... fazia

de tudo (na vida)... {D2~linhas 14-16)4) [...] nada segura NÓ/S. . . se você vem com trator bem... se não

vem... você vem a pé... ocê vem por dentro d'água... rasgando água

pela cintura... espantando jacaré...sucuri... mas você vem emBORA...por

quê? porque você é CRiado e nascido ALI.. . você não tem medo da-

quilo ali... né? você não tem medo... você tá vendo na sua frente três...

quatro jacaré... você vai pra cima deles... eles que tem que saí de você

né? (D2-linha 31)

5) [...] morei lá... uns deis anos... na fazenda São José [...] comecei a

enxerga e a... querer m u da r de vida... né? [...] aí o E. me levou... pró Pe-

qui... aí eujá fui ser capataz mais evoluído, né! Mais... melhorado. Ai passei

a gerente... mas fazia tudo... gerente e capataz naquele tempo e pião

tudo era uma coisa só... trabalhava que só um condenado.. . né?... a gente

trabalhava pra mostra serviço... e tinha ambição d e querer se gente... hoje em

dia é difícil... né?... pião ninguém quê se gente... quê se/qué ganha do

patrão... quê por o patrão na justiça eh:::... eh não... não quê nada... ele

quê só isso... só prejudica a quem dá pra ele a mão que mata a fome dos

filho dele também... né? (D2-linhas 64-75)6) [...] ele é caboclo... trabalha desde criança e você pra cê... você

dá conta d o recado... você te m que... nã o pode se r muitoJ inínho não... você

te m au e ser meio grosso mesmo... porque senão você... éh... éh::... senão

você apalpa e n ão vai... (D2-linhas 253-256)

B) T R A B A L H O É S O F R I M E N T O

1 ) [...] dos treze até os dezessete ano... eu trabaiei no... no campo...

rnas não... nunca tive acidente no campo... aí eu larguei de trabaia

no campo e passei a trabaia com trator... aí minha vida foi só trabaia no

145

 

Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na al a do homempantaneiro: um a construção identitária

quatro hora desacordado... essa é uma das dificuldade e o perigo que

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Pantanal com trator... éh:::..puxâ CARga... leva CARga... duma f azenda

pra otra... as vêis... a gente trabaiava o dono da fazenda tinha duas . . .

três f azenda . . . então... a gente tinha que locomove de uma pras otra pra

levar CARga, né? são m ant iME Nto . . . as vêis arame... éh material... que

as vêis tava construindo e a gente tinha que levar... e daí que a gente

começava a sofrer M A I S que a vida de campero. (Dl-linhas 5-13)

2 ) [...] então depois que você aprende nos lugar bom... aí você co-meça a: : . . . dirigir também nos lugar difícil... pra vê se você tem capa-

cidade de fazê o serviço que ele (o capataz) fez . . . então você já aprende

sofrendo... você já aprende trabaiando em cima daquilo ali que você

aprende... né? então hoje... você passa num lugar difícil... [...] não vai

deixar o trator na estrada... você vai vim com ele...você vai desatolar...

ocê vai sofre até você voltar aquele trator pra trás... [...] e isso que ele

(o capataz) num a j uda muito... você se vira... porque todas as vezes que

cai numa dificuldade... e o próprio cara que é profissional... tira você...

você jamais vai aprende... tá entendeno? [...] se ele f izer . . . você não tá

aprendeno... né? então... ele vai deixa você sofre um pouco... que é pra

você aprende... pra vê se você tem paciência... se você não é nervoso...

que as vêis a pessoa começa mexe fica muito nervoso... eleja larga de

mão... pega o caminho e vai embora e a... sua máquina f i cou pra trás...

(Dl-linhas 133-134)

3 ) [...] pra onde eu cheguei hoje... eu passei po r muita dificuldade

dentro do Pantanal... que antigamente era muito difícil... pra... pru

senhores vê... antigamente não existia condução... a condução nossano Pantanal era carreta de boi que era (cangado)... do Pantanal a Aqui-

dauana nóisgastava um a semana viajando... éh:: naquele batidão.. . devaga-

zinho... então era uma semana de viagem pra ir já... ia base de:: oito...

dez carreta em (cordoadas)... ia fazê a compra... pra... passa o ano... era

compra de ano... então... eles gastava semana en joava de anda em cima

da carreta ia de a pé... burro de carga... ou ( ) aí montava de novo... í : : . . .

só água naquele mundo. (D4-linhas 81-90)

4) [...] e continuei a vida no campo de novo... de campero... aí

levei uma (rodada) se quebrei tudo... quase morri... foi/ fiquei vinte e

146

a/o campero passa... igual... tem o Seu R. aqui... que trabalha conosco

aqui... que toma conta do gado... então ele éh:: o trab... o trabalho dele

é arriscado... que no momento que ele tá correndo atrás duma (vaca)

el e pode leva um a rodada... sozinho... se quebra ou enganchá no (arruo) sair

dipindurado sozinho... aí vai... vai a morte... né? (D4-linhas 37-45)

C) TRABALHO É PRAZER

1 ) [...] qualquer f azenda que eu trabalhei... eu chega eu só bem

recebido... porque nunca briguei com ninguém né? nunca saí de mal

com ninguém... então se num vai dá certo aquele um/negócio se pega

pede a conta e vai embora... pra num fica intrigando com os outros...

vai embora... então... briga num dá camisa pra ninguém.. . [...] aqui é tudo

muito bom...bom...aqui é tudo muito bom...bom...tudo mundo trata

um cum o outro brincando... num... num.,, manhece ninguém brabo com

ninguém... desde a hora que a gente se levanta cedo aqui um brincando

com o outro... tirando sarro e vai indo... é até de noite... eles vão fazê o

serviço deles ali. . . eu pego vô fazê o meu... (D3-linhas 126-129)

2 ) [...] pra mim é importante... importante pra f azenda né? éh... eu

comecei a mexe com o negócio de turismo aí... i é importante pr a fazenda

né?! . . . i é importante pra mim também porque... que eu fico mexendo

cum eles (os turistas) e eu quero que a pessoa então... ele sai... ele sai

daqui contente... sai sastisfeito.. . né? nóis trata bem eles... (D3-linhas

199-203)3) [...] vivo bem... graças a Deus... tenho ainda saúde pra trabalha

( tá) . . . trabalho... o que eu posso fazê . . . até eu fico inquieto... quando eu

tenho que... eu to à toa... não sei fica à toa... éh::... eu quero... quero

agir...quero/quero saí... enfim...éh ... mexe o doce... né ? como falam... te m

qu e mexe o doce senão nã o vai... [...] a gente/ eu trabaio demais... eu...

tudo o que eu pego eu quero fazê e vence... eu não fico apalpando... eu

quero... quero mostra serviço... at é hoje eu ainda faço assim. . . eu não sei

esconde da/das coisas... eu quero mostra serviço né? e tudo o que eu f aç o . . .

eu f aço com amor... (D2-linhas 219-234)

7 4 7

 

Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: um a construção iden t í taria

4) [...] o melhor emprego é de fazenda... o cara... que se... se ele soube sentido concreto, significando mantimento, arame, material de cons-

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se tive ambição de ter alguma coisa, ele tem... porque é só ele econo-

miza... ganha ele ganha bem...coMida ele tem todo mês o patrão leva...

carne ele tem na fazenda, ele não vaipráfrente porque ele não quer...

moradia, água,luz... não paga nada... (D2-linhas 47-50)

5) [...] as responsabilidade que eu tenho... que eu uso aqui dentro da

empresa e com grande carinho... éh:: o que eu sinto do... daqui doPantanal nosso... queu... queu gosto muito de convive no dia-a-dia aqui

dentro do Pantanal... porque é um lugar gostoso... (D4-linhas 123-126)

6) [...] e nesse meio tempo eu adquiri também umas tropas e co-

mecei a viajÁ.. . comitiva... éh:: eu achei que ia dá dinheiro.. . mas não

dá... dá sopra come. . . comitiva não dá dinheiro... ela dá/éh um trabalho

muito cansativo... muito sacrificado... né? a senhora já penso você viaja

aí sessenta... setenta dias no lombo do burro i comendo aquela comi-

da... passando mau tempo... chuva... é gostoso... é bom... é divertido

que você vai cada dia num lugar... mas é sacrificoso... quem num tem

opinião num vai (D2-linhas 134-141)

Analisando os fragmentos selecionados, podemos dizer que em

relação à conceituação metafórica do T R A B A L H O , o discurso do pan-

taneiro aponta para a construção de três efeitos de sentido sobre essa

experiência:

- o trabalho é caracterizado por expressões metafóricas da área

semântica que o mostram como um recurso sacrificoso (trabalho durome s mo , trabalhava que só um condenado), desafiante pelos obstáculos a

serem enfrentados (rasgando água pela cintura), indispensável para a so-

brevivência ao prover as necessidades cotidianas (ganha opão) e ao pos-

sibilitar a visão de um futuro melhor (comecei a enxerga e a querer mu d a r

de vida... querer ser gente);

- o trabalho é caracterizado por expressões metafóricas da área

semântica do sofrimento em decorrência das atividades executadas:

trabalho intenso e duro (minha vida foi só trabaiá puxando carga, levando

carga; ressalte-se aqui a ambivalência do termo metafórico c a r g a : no

14 8

trução, e no sentido mais abstrato, significando o peso do trabalho e da

vida qu e levou); necessidade de ser persistente para dar conta do recado,

nã o largar mão para pegar o caminho, virar-se quando cair em dificuldade; ne-

cessidade de ser meio grosso e não mui to Jin inho senão só apalpa e não vai;

- entretanto, paradoxalmente, apesar das dificuldades o trabalho

também é conceituado como prazer. Na fala do pantaneiro, há sem-pre essa polarização, essa tensão entre o trabalho dificultoso, pesado,

intenso e o prazer que ele propicia pelo bom humor das pessoas(num

manhece ninguém brabo), pela boa convivência entre colegas, patrão e

turistas/visitantes ( f i c o mexendo cu m eles — os turistas), fazendo de tudo

para mexer o doce e com amor para most rar serviço para o patrão.

D) VIVER ÉAPRENDER

1) [...] éh um aprendiZADO. . . tudo que você aprende no Pantanal é

um aprendizado... porque se você não aprende...você num V I V E . . . você

não vive MES MO. . . (Dl-linhas 141-143)

2) [...] a gente aprendeu a vive... tá aprendendo.. . continua aprendendo.. .

porque tudo... cada dia tem uma coisa diferente... né? porque cada

pessoa tem uma maneira de pensa... e uma coisa pra... te ensina... né?

tem muito sabidão aí... que fala"ah... eu sei tudo" porque ganho tudo

de mão beijada... né? ou herdou de alguém... eu quero vê o caboclo

começa du nada... né? (D2-linhas 262-267)

3) [...] conforme a gente vem aprendeno de tratorista... então...vocêvai aprendeno... você vai aprendeno... você vai aprendeno e vaisubino. . .

né ? vaisubino. . . — então na Caimã... eu já entrei como encarregado de

máquina... daí eu comandava dezesseis tratorista... eu comandava lá...

tudo éh::... tudo era por minha conta... então... eu num precisava í no

gerente pra saber se eles podia pega um dia... se eles... precisava de um

dia de forga... eles num precisava í no gerente... eles podia vim ni mim

né? se eles precisassedum dia... (Dl-linhas 223-230)

4) [...] mas::., a gente tem que (caça jeito) pra fazer as coisa bem

feito... pra você pode sub i na vida... se você num fizé bem feito e com

i49

 

Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na al a do homempaníaneiro: um a construção iden t i tária

tranqüilidade... você num sobe nunca na vida... nunca... nunca... nunca...

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Pl-linhas 237-240)

5) [...] aí tem que existir muita paciência... tranqüilidade... pra você

consegui leva aquele que oi posto pra você até no destino final... né? tem que

dá um jeito de se leva lá... então a gente::... cada lugar que a gente

trabaia... em todas as fazendas. . . cada um gerente... cada um capataz

tem seu modo de lidar... tá entendeno? aqui um lida dum jeito [...]então você vai se habituano...a CAda tipo de fazenda é um tipo de... de

mandato... né? cada tipo de fazenda... você trabaia com tipo de pessoa

diferente... ocê tá entendeno? [...] então tudo você vai aprendeno con-

forme os... os líder da cabeça... que é o capataz... se não tem o gerente

é o capataz... se tem o gerente... primeiro é o gerente... (Dl-linhas

167-182)

6) [...] até você acha urn meio de você tira a condução que você

atolou... pra pode vim embora... né? então... é onde você vaipegano

média cospatrão.. . (Dl-linhas 155-157)

Vivendo num espaço geográfico marcado pelas dificuldades do cli-

ma e da natureza e pela imensidão das longas distâncias onde tudo

está por ser desbravado, o discurso do pantaneiro conceitua viver pela

relação metafórica viver é aprender, em que podemos destacar a sua

percepção de que:

— a vida no Pantanal é eterna aprendizagem: a gen te aprendeu a vive...

tá aprendendo.. . continua aprendendo — as repetições/ os paraleHsmossintáticos, reforçados gramaticalmente pelos verbos no tempo passado,

presente e prospectivo, têm caráter metafórico na medida em que su-

gerem a imagem de uma ação que se estende ao longo da vida;

— a aprendizagem é uma construção: é começa du nada e nã o ga n ha

tudo de mão beijada;

— a aprendizagem (fazê as coisas bem feito) é promoção, é mudança

de patamar na escala de poder ou na relação com o patrão (agente vai

aprendeno.. . vaisubíno. . . né?— de novo aqui a repetição/ o paralelismo

sintático).

15 0

1) [...] o Pantanal éh bom... éh bom... mas a dificuldade lá não é

fácil... não é fácil mesmo... mas tem pessoas...lá dentro que::... se você

dê uma vida melhor pra ele... pra fora. . . ele não sai.. . ele NÃO acostu-

ma... que eleja nasceu e criou em cima daquilo ali... a dificuldade pra

ele... éh só afeliddade dele... (Dl-linhas 63-68)

2) [...] éh:: o que eu sinto do... daqui do Pantanal nosso... queu...queu gosto muito de convive no dia-a-dia aqui dentro do Pantanal...

porque é um lugar gostoso... é um arpuro que a gente respira todos os

dias...(D4-linhas 124-127)

3) [...] eu acho que a felicidade da gente... é vive bem... né? você

vive bem... você sé uma pessoa boa... né? se você num seje muito

ingnorante com as pessoa... você trata todo mundo bem... aspessoa te

trata bem... acho que aí é a felicidade de você... então... toda vez que

você recebe... você recebe bem... você chega numa casa... você é mui-to recebido... então... éh::: a felicidade... porque a partir do momento

qu e você seja uma pessoa fechada.. . né? que não se dá com todo mundo. . .

você:: éh::: dificilmente vai té felicidade... você recebe uma pessoa

alegre na sua casa né? (Dl-linhas 248-257)

4) [...] n um t em t empo ruim pra mim... eu tandu muntado nu m cavalo...

eu to satisfeito... éh::... considero isso afeliddade.. . eu acho que a felici-

dade da gente... é vive bem... né? té lugar pra você na velhice... de...

se r amparado pelo menos té uma casa... té a família junto... num é?

(D2-linhas 238-242)5) [...] eu queria éh té condições de fazer ela sé o que ela quê...

tá entendeno? isso é meu sonho... né? aonde você as vêis passa mais

dificuldade... pra poder dá felicidade prós seus filhos... tá entendeno?

E U . . . j á to no f im da p icada . . . né? mas queria dá::: a felicidade prós meus

filho... né? (Dl-linhas 496-499)

6) [...] ainda tem um monte de fazenda que num tem/tem pessoa

aí que tem dez... doze ano que trabaia na fazenda e num existe cum

carteira assinada...não tem ainda...né? por quê? porque eles num liga...

eles acha que aquilo ali pra eles éh uma felicidade... eles num pensam

15 1

 

Análises da discurso hoje Discurso e m e t á f o r a na ala do homem pantaneiro: um a construção identitária

e a si mesmo por meio de relações opositivas tensas e contraditórias,

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o se ele pra ele tá

ele nã o pensa no amanhã pra eles... né? eles acham que xoda vida eles

va i manter e sobreviver no Pantanal... né? eles num vê a velhice deles...

(Dl-linhas 372-379)

Enfim, como o pantaneiro concebe a idéia de felicidade? Como

vimos nas expressões metafóricas assinaladas acima, seu conceito de

felicidade dele é atravessado pela m esma tensão anteriormente apon-tada na relação trabalho d i f i c u l t o s o m as prazeroso, aqui agora expressa na

formulação a d i f i c u l d a d e pra ele. ..éh só a elicidade dele... em que uma ação

(ser feliz) é experienciada em termo s de outra (enfrentar dificuldades).

A ssim, seu sistema conceituai de felicidade está assentado em expe-

riências concretas de seu dia-a-dia em que ser feliz é viver num lugar

gostoso (apreensão metafórica do espaço por meio de uma experiência

gustativa em vez da visual); ser feliz é ser receptivo ao outro, ser hos-

pitaleiro e nã o sé um a pessoa fechada; ser feliz é pensa não apenas no hoje,mas também no amanhã .

5. Conclusão

É tempo de terminar o texto. Teceremos apenas um breve comen-

tário qu e pretende ser uma resposta mais explícita à parte do título

que remete à questão da construção identitária. De que maneira essa

compreensão da metáfora como conceito que estrutura nossa maneira

de perceber, pensar e agir cotidianamente contribui para a construçãoidentitária do sujeito, como no caso dos discursos dos pantaneiros?

A o mostrar como os conceitos metafóricos de T R A B A L H O , F E L I C I D A -

D E e V I V E R emergiram em suas falas e estruturam suas formas de per-

cepção do mundo e sua atuação no cotidiano pantane iro, acreditamos

que a identidade desse sujeito foi se delineando e se mostrando aosolhos do leitor.

É um trabalhador que muitas vezes não tem o seu próprio espaço

para morar, não tem muitas possibilidades e opções de lazer; que traba-lha duro, mas gosta do lugar. Esse pantaneiro apresenta-nos o Pantanal

i52

como mostramos nas construções metafóricas do universo semântico

de T R A B A L H O É R E C U R S O , T R A B A L H O É P R A Z E R , V I V E R É A P R E N D E R , F E L I -

CIDADE É V I V E R B E M , mas, em contrapartida, T R A B A L H O É S O F R I M E N T O .

Nossa análise procurou voltar-se para o "exterior" lingüístico das

histórias de vida desses pantaneiros, buscando apreender as condições

sócio-históricas de sua produção ( B R A N D Ã O , 1994) e a constiuição de

uma identidade que se constrói na contradição em que ele mesmovive: o Pantanal é difícil, mas é bom;"eu vivo aqui , mas não quero isto

para os meus filhos". Décadas atrás, como migrante ou descendente

de migrantes, ele escolheu v iver no P antanal e, com certeza, queri a os

filhos vivendo lá também, mas as mudanças econômicas e sociais que

foram alterando a vida no espaço pantaneiro foram, paralelamente,

transformando o peão pantaneiro. A s transform ações pelas quais teve/

tem de passar como trabalhador — que tem de aprender sempre para

poder sobreviver — fazem-no ter novos sonhos (porexemplo, estudaros filhos), assumir novos papéis, novas profissões. Profissões essas que

o fazem ver um mundo diferente daquele "mundo do trabalho" em

que sempre viveu: a chegada da televisão, da internet, do celular, do

transporte do gado que hoje é feito por meios muito mais rápidos

do que as comitivas boiadeiras que gastavam dias, semanas, meses a fio,

transportando o gado.O conhecimento de outras possibilidades de vida: a facilidade

maior de vir à cidade, por estradas hojeasfaltadas

com pontes sobre osrios que antes tinham de ser atravessados a nado ou rasgando água pela

cintura, muda os gostos, as visões de mundo, os desejos do homem pan-

taneiro. Desse modo, as histórias de vida desses peões, que com põem o

corpus desta análise, explicitam astensões e contradições que emergem,

como observa M ishler (2002, p. 111), "dos diversos mundos sociais

nos quais simultaneamente somos atores e respondemos às ações dos

outros". É possível afirmar que a identidade desses hom ens se constrói

a partir de dois eixos principais de interação com seus interlocutores:

o contexto cultural e socioeconômico mais amplo de seu trabalho de

Í53

 

Análises do discurso hoje Discurso e metáfora na fala do homem pantaneiro: um a construção identitáría

peão no espaço pantaneiro e da convivência com os países vizinhos Liliana C . (orgs.). Identidades: recortes mult i e ínterdisciplinares. Cam-

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e o contexto imediato que compreende suas relações familiares, de

amizade e a relação com o patrão.

Trata-se, portanto, de uma identidade não totalmente acabada, ple-

na, completa, mas "em processo" que, como diz Hall (2004), vai sendo

construída, "formada e transformada", na medida em que o próprio

contexto pantaneiro vai se transformando e novas experiências vãosendo vivenciadas no entrelaçamento entre linguagem e vida.

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A N A L I S E D I S C U R S I V A DA

PARODIZAÇÃO DOS PROVÉRBIOSNAM Í D I A IMPRESSA

Dylia Lysardo-Dias (UFSJ)

Os provérbios são expressões cristalizadas na sua forma e no seu con-

teúdo que traduzem valores morais e comportamentos tidos como

desejáveis, o que lhes conferem um inegável caráter ideológico. Sendo

parte da tradição de uma coletividade, eles registram a mentalidade

de um povo e deixam entrever um suposto consenso sobre o agir/

pensar no cotidiano das relações sociais.As verdades atemporais que

expressam estão impregnadas de um tom moral e didático e se fazem

presentes em diferentes produções escritas, ainda que os provérbios

sejam tradicionalmente associadosà oralidade.

M as o provérbio não se restringe a uma ocorrência dalínguae a um

elemento de ordem cultural: ele é um acontecimento discursivo que

coloca em jogo aspotencialidades de um dizer socialmente instituído.

A soma do sentido de cada termo que o compõe pouco tem a vercom o significado que assumena totalidade da prática enunciativa. Daí

nosso interesse em refletir sobre o provérbio corno uma ocorrência

sociocomunicativa na qual uma estrutura padronizada é projetada em

diferentes contextos de interação, determina certas relaçõesdiscursivase, conseqüentemente, interfere na configuraçãopersuasiva textual.

O discurso da informação, por exemplo, cuja própria gênese encon-

tra-se calcada na novidade, mobiliza os provérbios no intuito não só de

estabelecer uma proximidade com o público-alvo, como também de ex-

plorar a economia cognitiva de uma formulação lingüística jáconhecida

 

Análises do discurso hoje

Análise discursiva da parodizaçao dos provérbios na m ídia im pressa

e codificada corri valor de evidência cultural. Essa presença do provérbioter uma conotação paródica quando resultar em uma versão intertex-

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revela a inserção da vox populi , urna vez que sua enunciação é atribuída a

toda uma coletividade que, através dele, expressa uma "verdade imemo-

rial". Nesse sentido, a cada re-enunciação, essa verdade é reelaborada e

atualizada, contribuindo para a perpetuação do provérbio.

Entretanto esse processo de reelaboração inerente à enunciação

proverbial pode configurar-se como um mecanismo de transformação,quando o provérbio é submetido a um trabalho de recriação:a fórmula

fixa proverbial é alterada para dar origem a uma outra fórmula que,

mesmo sendo nova, apresenta características da formulação proverbial

que lhe deu origem. Esse procedimento, definido por Grésillon e Main-

gueneau (1984) como um desvio 1, consiste, segundo os referidos autores,

em produzir um enunciado com as marcas lingüísticas próprias do pro-

vérbio, mas que, efetivamente,não pertença ao estoque dos enunciados

reconhecidos como tal. É uma espécie de pseudo-provérbio que busca

assimilar a força argumentativa e o poder de sabedoria inquestionável

de um dizer conciso, socialmente instituído e historicamente legitima-

do. Parece-nos que a denominação desvio para esse procedimento está

relacionada ao que ele pode resultar em termos de afastamento entre o

provérbio dito original e sua versão transformada.Isso quer dizer que a

formulação convencional do provérbio é reorientada para outra forma

de compreensão, que pode ser mais ou menos semelhante àquela já tra-

dicional, mas que apresentará sempre um grau de familiaridade.

Esse procedimento de transformação é por nós concebido comoum trabalho de reescrita do provérbio no qual um dizer-já-consagra-

do serve de base para a produção de um dizer, digamos, inédito.A nova

versão do provérbio não representa a descaracterizaçao de um dizer

convencional, já que resulta de uma reformulação de um enunciado

estabilizado socialmente tendo em vista urna demanda sociocomuni-

cativa específica e particular. Essa reescrita do já-dito proverbial pode

1 Détournement, no original em francês, e desvio na sua tradução consagrada para oportuguês.

tual marcada pelo deslocamento formal e/ou temático. Nesse sentido,

estaríamos nos distanciando de uma concepção tradicional da paródia

como imitação burlesca, para concebê-la como um fenômeno relativo

a um processo de diálogo intertextual ( F Á V E R O , 1994)2.Assim, a paró-

di a é, como nos sugere Machado (1999b), uma prática discursiva que

se configura como um caso de heterogeneidade enunciativajá que há

o dialogo entre discursos de diferentes ordens: "o dito conhecido" e

o "dito novo". Não se trata de uma fusão, mas de um cruzamento de

vozes, no qual se reconhece e se distingue um enunciado-fonte e um

enunciado produzido a partir dele.

É sob essa perspectiva que analisaremosa recriação de provérbios

em algumas notícias veiculadas em jornal impresso, focalizando tal fe-

nômeno como um trabalho de reelaboração de um dizer tradicional

que produz um outro dizer. Como os provérbios se inscrevem nos

sistemas simbólicos que regem a vida de um grupo social, a reescritadeles implica a reconfiguraçao de universos de referência e de visões

de mundo convencionalizadas. Postulamos que a parodizaçao do pro-

vérbio não se resume a um trabalho de deformação ou de produção

de uma caricatura, mas configura-se como uma estratégia discursiva

marcada pela insubordinação diante do convencional, por meio da in-

versão satírica de um enunciado cultural.De alguma forma , o suje i to

enunciador do provérbio revela um ethos subversivo ao transgredir o

senso comum e romper com um automatismo inscrito na língua.

1. Deslocamento do senso comum

Consideremos a notícia (NI), veiculada no jornal Estado de M i n a s , de

30junho de 1999, na coluna "Interesse Público", cujo título é A ocasião

ao

158

2 O próprio termo paródia significa, na suaetimologia, "canto paralelo" ( p a r a -"wlado de" + ode - "canto") deixando subentendida a inter-relação entre diferentes

textos.

159

 

Análises do discurso HojeAnálise discursiva da parodização do s provérb ios na mídia impressa

faz oprojeto e o tema, a proposição de uma lei que obriga os hospitais a

não deixarem os pacientes esperando mais do que trinta minutos.to de surpresa, que, por sua vez, atua como elemento capaz de captar a

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O enunciado A ocasião faz oprojeto pode ser tomado como produto

da substituição do termo "ladrão" do provérbio A ocasião az o ladrão pelo

termo "projeto": a troca lexical preserva a similaridade entre o enunciado

"original", o provérbio-fonte, e o enunciado derivado, o titulo paródico.

Trata-se de uma parodização do provérbio A ocasião faz o ladrão, que é

recriado e tomado como título da notícia. O título faz referência ao

oportunismo indicado pelo provérbio por meio de um deslocamento

para o relato de um fato político: tendo em vista a aprovação de uma lei

que obriga os bancos a atender seus clientes em 15 minutos, Geraldo

Félix, o vereador da cidade de Belo Horizonte, elaborou um projeto de

lei limitando o atendimento nos hospitais e postos de saúde municipais

em trinta minutos. Assim, o conceito expresso genérica e atemporal-

mente pelo provérbio é orientado para um fato situado no "aqui" e

"agora" de uma informação jornalística em particular.É interessante notar que a formatação evidencia essa reorientação

na medida em que o corpo do texto da notícia está subdividido em

dois tópicos: o primeiro, intitulado "o CAS O" , dedica-se à exposição

dos acontecimentos; o segundo, intitulado " C O M E N T Á R I O " , centra-se

na análise das implicações e dos desdobramentos dos fatos acima des-

critos. É esse segundo tópico que explicita como o provérbio se rela-

ciona com os fatos relatados pela notícia.

A alteração lexical que resultou na versão paródica incidiu so-

bre o último termo do provérbio-fonte que lhe serviu de base. Ou

seja, inicialmente, o enunciado-título apresentava todos os indícios de

que ele evocaria a versão original do provérbio, o que desencadeou

a expectativa da citação do provérbio na sua versão convencional. Ao

inovar justamente no termo final, o sujeito-jornalísta surpreende o

sujeito-leitor propondo-lhe uma versão paródica, versão que rompe

de maneira inusitada com a formulação que ele, sujeito pertencente a

um grupo social que partilha certas referências culturais, teria na sua

memória. Sob esse aspecto, o procedimento paródico produz um efei-

160

atenção e motivar a leitura da globalidade da notícia.

Do ponto de vista cognitivo, essa leitura da seqüência da notícia mo-

biliza as representações evocadas tanto pelo provérbio-fonte, quanto pela

sua versão derivada. Logo, o novo-saber que a notícia apresentajá é, desde

o título (e pelo título), incorporada a um saber que os sujeitos-leitores

(supostamente) já possuem, o que representa um elemento facilitador

para a assimilação desse "novo saber". Ao manter um forte paralelismo

com o provérbio-fonte que lhe serviu de base, o título da notícia (NI)

não perde de vista o enunciado-fonte, o que garante, de certa forma,

que ele seja reconhecido na versão paródica. Essa versão apresenta uma

substituição lexical na qual o termo introduzido remete ao universo da

notícia.Assim, a versão derivada opera uma transformação do provérbio-

fonte, visando a uma adequação contextual deste,ou seja, a idéia genérica

que ele expressa é orientada para um acontecimento específico.

Outro caso parecido acontece na notícia (N2) intitulada MPBg a n h ametaleiro e veiculada no Jornal do Brasil, em 06 de novembro de 1999,

na coluna "Supersônicas". O texto começa com a expressão Ca sa de

marceneiro, espeto de me t a l e seu conteúdo informativo diz respeito ao

fato de Francisco Faria, filho de pais cantores de dois diferentes gru-

pos de música popular brasileira, cantar e liderar uma banda de heavy

m e ta l há cinco anos. Segundo a notícia, Francisco agora teria aceitado

convite para cantar com cantores de MPB, rendendo-se a uma música

mais tradicional.E possível reconhecer no enunciado C asa de marcene i -

ro, espeto de me t a l um a nova versão do provérbio C asa de erreiro, espeto

de pau,versão esta obtida através da seguinte inversão:

Casa de ferreiro, espeto de pau

Casa de marcenei ro , espeto de metal

Nesta inversão, a associação casa do erreiro/ espeto d e pa u do provér-

bio-fonte é substituída pela associação casa de marceneiro/ espeto de me ta l .

1 6 1

 

Análises do discurso hojeAnálise discursiva da parodização dos provérbios na mí d i a impressa

A denominação do conceito de contra-senso do provérbio-fonte é O procedimento formal de substituição de um termo por outro

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mantida no provérbio derivado, através do paralelismo da inversão: a

incoerência no fato de o espeto na casa do ferreiro ser de pau é similar

ao fato de o espeto na casa do marceneiro ser de metal.

Como o título MPBganha metaleiro refere-se à presença de um novo

metaleiro no cenário musical,a versão paródica do provérbio Casa de mar -

ceneiro, espeto de metal, primeiro enunciado do corpo do texto da notícia,retoma essa referência, propondo um jogo de palavras capaz de indicar

como o contra-senso expresso pelo provérbio-fonte se aplica ao fato des-

crito pelo título. A versão paródica, mesmo quando apresentada como

primeiro enunciado do corpo do texto da notícia,sevolta para a inscrição

do universo da notícia no universo conceituai da fórmula proverbial.

Dessa maneira,o provérbio é moldado pelo contexto da notícia atra-

vés de um movimento de reescrita que explora o jogo de palavras já

proposto pelo provérbio-fonte Casa de erreiro, espeto de pa u e constitui

um procedimento paródico centrado na recontextualização de um para-

digma: o paradigma de contra-senso convencionalizado e sintagmatiza-

do pelo provérbio. A dimensão atrativa desse procedimento advém não

apenas do que ele propõe como algo inédito e surpreendente, mas tam-

bém da sua feição cômica: a versão paródica, ao ser reconhecida como

tal,pressupõe a"deformação" da representação cristalizadado provérbio,

representação inscrita na língua e na cultura. O status e o prestígio de

verdade absoluta do provérbio são, de certa forma, desestabilizados.

O s enunciados A ocasião f a z o projeto, da notícia (NI) e Casa de mar-ceneiro, espeto de metal , da notícia (N2), resultam de um trabalho paródico

marcado pelo deslocamento de uma fórmula convencional, o provérbio,

para uma outra situação, o que demanda o ajustamento desse outro mo-

delo ao seu universo referencial. Nesse deslocamento do senso comum,

a versão derivada do provérbio projeta o conceito que este último deno-

mina para o contexto da notícia através da inserçãode termos capazes de

sinalizar essa relação.Por isso, a formulação paródica representa a síntese

dessa projeção, caracterizando-se como um mecanismo de reorientação

do conceito proverbial para uma circunstância em particular.

16 2

na notícia (NI) e a inversão lexical na notícia (N2) representam mui-

to mais que a alteração de uma fórmula fixa: trata-se, na verdade, de

uma reconfiguraçao da "realidade", cuja visão convencional proposta

pelo provérbio é alterada sem ser, de todo, apagada. Formas ritualizadas

de comportamento e expressões convencionalizadas evocam um agir

institucionalizado que compõe um conhecimento mínimo necessário

dos padrões de conduta regulares que, em última instância, levam a

uma previsão de atuação social (cf. L A R A I A , 2001). Como os provérbios

fazem parte da tradição cultural, a reescrita paródica deles impõe uma

alteração na lógica já preestabelecida quando os valores e idéias são

contestados. Entretanto, ao se propor que "a ocasião faz o projeto" e que

em"casa de marceneiro, espeto de m e ta l", subverte-se o universo contex-

tual sem alterar os conceitos de oportunismo, expresso por "a ocasião

faz o ladrão", e de contra-senso, expresso por "casa de ferreiro, espeto

de pau". Tais conceitos são transpostos para um processo enunciativoespecífico a partir do qual eles serão ressignificados.

Vale notar ainda que através da fórmula proverbial paródica em

(NI) e (N2) é possível reconhecer a formulação tradicional do provér-

bio, o que confere à parodização um caráter de fenômeno polifonico:

ela encerra um diálogo entre a vox populi do provérbio e a voz de

um sujeito-parodiador. Essas vozes co-habitam o provérbio paródi-

co por meio dessa duplicidade enunciativa que lhe é inerente, urna

vez que ele evoca necessariamente o provérbio-fonte. A proximidade

entre a versão derivada e a versão "original" do provérbio permite o

reconhecimento desta naquela devido à similaridade que essas versões

guardam entre si, o que cria um efeito de duplicidade.Tal similaridade

busca, no entender de Maingueneau (1998), a captação dogênero pro-

verbiaP, sobretudo no título, uma vez que ele absorveria algumas das

características mais marcantes do provérbio, aquelas mais eficientes do

3 O referido autor analisa o mesmo f enômeno. Entretanto, aborda a relação entre o

provérbio e o slogan publicitário.

Í 63

 

Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização do s provérbios na mídia impressa

ponto de vista comunicacional. Ao captar o gênero proverbial, a no- Percurso 2:

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tícia assimila e reelabora seu modelo já institucionalizado, de forma a

adequá-lo ao mundo que ela constrói e veicula.

2. Abreviaçãoparódica da fórmula proverbial

A notícia (N3), intitulada No t ime dos out ros é r e f r e s c o e veiculada peloJornal ao Brasil , de 10 março de 1999, no caderno "Esportes", comenta

o fato de torcidas rivais irem ao estádio em jogo de rodada dupla para

torcer contra os tradicionais rivais de seus times, citando casais que

farão isso no jogo entre Fluminense e Lagartense, primeira partida, e

Flamengo vs.Botafogo da Paraíba, partida seguinte.

O provérbio Pimenta no s olhos ao s outros é r e f r e s c o pode ser reconhecido

no que seriaa sua versão paródica: o enunciado No t ime dosoutros é r e f r e s c o .

Esse trabalho de recriação da fórmula proverbial compreendeu a supres-

são do termo "p imenta" e a substituiçãoda expressão"nosolhos dosoutros"

pela expressão"no t ime dosout ros". Assim, do ponto de vista formal, tais

alterações mantêm o parâmetro instituído pela fórmula proverbial, per-

mitindo que a versão derivada deixe entrever seu enunciado-fonte. Em

termos de processos de constituição, esse trabalho de parodização pode

ser visualizado através de dois esquemas, cada um apresentando um per-

curso diferente,mas ambos gerando o mesmo título paródico:

Percurso 1:Provérbio

Provérbio abreviadoProvérbio abreviado parodiado

Pimenta nos olhos dos outros é r e f r e s c o

Nos olhos dos outros é r e f r e s c o

N o t ime do s outros é r e f r e s c o *

4 Vale notar que o provérbio Pimenta tios olhos do s outros é r e f r e s c o tem outras versões,

dentre as quais destacamos Pimenta no rabo do s outros é r e f r e s c o . Tendo em vista essaúltima versão, o termo substituído seria justamente aquele relacionado a um registro

de linguagem vulgar, não compatível com o registro de linguagem vigente no Jornal

do Brasil .

Í 64

Provérbio

Provérbio parodiadoProvérbio parodiado abreviado

Pimenta nos olhos do s outros é r e f r e s c o

Pimenta no t ime do s outros é r e f r e s c o

No t ime dos outros é r e f r e s c o

A diferença entre esses dois procedimentos é que, no primeiro, o

trabalho de parodização foi efetuado na versão abreviada do provérbio

e, no segundo, a parodização incidiu sobre a íntegra da formulação

proverbial original e foi, em seguida, abreviada. Entretanto, indepen-

dentemente da ordem das operações, o que é significativo é o que se

produziu como versão inédita de um dizer cristalizado e os efeitos de

sentido que esse novo dizer assume ern um dado contexto. Quando

um sujeito-parodiador recria um provérbio através da alteração da sua

formulação, ele o faz em conformidade com seus objetivos comuni-

cativos: a quem ele se dirige, com quais propósitos e dentro de qual

contexto de interação. Do ponto de vista discursivo, o interesse susci-tado pela analise do trabalho paródico reside na possibilidade de des-

vendar as relações interacionais que caracterizam esse jogo entre visão

de mundo estabilizada e visão de mundo inovadora, proposta pelo uni-

verso midiátãco. Os aspectos formais são índices materiais desse jogo.

Retomemos o título No t ime dos out ros é refresco, da notícia (N3),

tendo em vista o provérbio-fonte Pime n ta no s olhos do s out ros é refresco,

que lhe serviu de base. No que diz respeito à presença do termo "no

time", trata-se da inserção de um termo que indica o universo refe-rencial da notícia, inscrevendo esse universo na formulação proverbial.

Em outros termos, opera-se um deslocamento do conceito que o pro-

vérbio representa para o caso do futebol, especificamente, a rivalidade

das torcidas dos times profissionais da cidade do Rio de Janeiro.

Nesse sentido, o título representa uma antecipação do que será

tratado no corpo do texto da notícia. Como o provérbio Pimenta nos

olhos dos out ros é r e f r e s c o , abreviado ou não, denomina o conceito de

falta de solidariedade, ele se ajusta ao fato relatado pela notícia: o com-

portamento das torcidas de futebol que vão aproveitar uma rodada

16 5

 

Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios na mídia impressa

dupla no Maracanã para torcer contra (secar, conforme o texto) o

tradicionalmente rival.comunicação centrada na retomada de um universo referencial julga-

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Pode-se notar que o título paródico não apenas desloca um con-

ceito consensualmente admitido, como também o apresenta de forma

condensada. Considerando a relação: maior conteúdo proposicional/

menos palavras (ser breve e objetivo), que orienta a configuração da

notícia, o título paródico é altamente eficiente, já que consegue dizer

muito em pouco espaço, o que, diga-se de passagem, em nada compro-

mete sua outra função de atrair a atenção do público-leitor.

Mas a notícia (N3) apresenta, no corpo do seu texto, outro pró-

vérbio-paródico: Roupa suja se lava no M a ra ca n ã . Como o assunto da

notícia é o comportamento das torcidas em uma dada partida de fute-

bol, ern um dado estádio, a troca do termo "casa" do provérbio-fonte

Roupa suja se lava em casa pelo termo "Maracanã" faz jus a essa temática.

O termo introduzido refere-se ao local onde o esperado encontro que

está sendo relatado vai acontecer. Como o enunciado paródico estáno meio do texto, a referência ao Maracanã não é de todo inesperada,

pois já houve um relato anterior relacionado a esse local. Além disso,

o termo "Maracanã" na página de esportes de um jornal editado na

cidade no Rio de Janeiro já é familiar e, de certa forma, esperado, uma

vez que ele denomina o estádio de futebol mais famoso da referida

cidade, e até mesmo do Brasil.

Essa substituição do termo- "casa" pelo termo "Maracanã" tem um

outro efeito, além desse efeito referencial: se, no provérbio-fonte,'Vrt5íi"

é usado como um termo genérico para fazer referência ao espaço de

convivência mais íntima, no provérbio paródico o termo "Maracanã"

designa um lugar público por excelência, mas que não deixa de ser

específico no que diz respeito ao encontro das torcidas dos times de

futebol. Ass im, a descrição prescrita pelo provérbio refere-se ao âmbito

do estádio do Maracanã: lá é lugar propício para que as torcidas mani-festem sua rivalidade.

A presença de dois provérbios paródicos em uma mesma notícia,

como acontece em (N3), pode ser vista tanto como uma estratégia de

i 66

do partilhado com os sujeitos-leitores quanto como um mecanismo

de reelaboraçào de representações estereotipadas. No primeiro caso,

parece-nos que o sujeito-jornalista recorre à imagem que ele tem do

seu público-leitor, tentando aproximar-se dele através de enunciados

já familiares; sendo o futebol o esporte mais popular no Brasil, nada

mais coerente do que falar dele através de enunciados igualmente po-

pulares, logo, mais próximos, mais acessíveis ao leitor projetado como

leitor da página de esportes. No segundo caso, tratar-se-ia da constru-

ção de um "saber inédito" através da recriação de saberes amplamente

difundidos; o "novo saber" é apresentado explicitamente como uma

releitura de um saber já assimilado. Em ambos os casos, fica evidencia-

da a heterogeneidade discursiva.

Vejamos, na seqüência, outra notícia cujo título é o resultado de

uma criação paródica igualmente baseada na abreviação do provérbio.

Trata-se da notícia (N4) intitulada Filho de bacalhau. . . e veiculada no

Jornal do Brasil, de 12 dezembro de 1999, no caderno "Esportes", que

aborda o fato de o filho de um dirigente esportivo do time do Vasco

da Gama estar assumindo o comando de esporte olímpico da mesma

equipe.

O título da notícia é composto por um termo que pode ser asso-

ciado ao termo inicial do provérbio Filho depe i xe , peix inho é.Assim, a

expressão "Filho depeixe" é compreendida como uma forma abreviada

do provérbio, formaesta usada

parafazer

referência ao conceito de

hereditariedade que o provérbio denomina. Como explicar a subs-

tituição do termo "peixe" pelo termo "bacalhau"'? Trata-se apenas da

substituição de um nome genérico por um nome designativo de urna

espécie emparticular?

Ora, uma referência a "bacalhau" na página de esportes de um jornal

editado na cidade do Rio de Janeiro pode ser associada ao time de fu-

tebol profissional doVasco da Gama, cuja origem portuguesa motivou

essa relação: é um conhecimento de mundo ligado ao universo do fu-

tebol carioca. Isso quer dizer que, para os leitores da página de espor-

167

 

Análisesdo discurso

hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios na mídia impressa

tes, essa referência é dada como codificada, sendo uma denominação ver, uma indicação dessa possibilidade, deixando em aberto a confir-

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do time do Vasco da Gama. Articulando a codificação do provérbio à

codificação dessa referência, o título Filho de bacalhau pode ser visto

como resultado de um trabalho de parodização duplamente funcional.

Primeiro, porque esse trabalho produziu um título bem sintético: três

palavras apenas têm o potencial de evocar o conceito que o provérbio

denomina. Segundo, porque esse mesmo título tem a propriedade desinalizar a projeção do conceito de hereditariedade denominado pelo

provérbio para a situação do Vasco da Gama.

Do ponto de vista da instância de produção, o trabalho de parodi-

zação apoiou-se tanto na codificação do provérbio, quanto na conven-

cionalização da polissemia do termo "baca lhau" . O sujeito-parodiador

aposta na capacidade inferencial dos sujeitos-interpretantes, contando

que eles serão capazes de resgatar essa relação de similaridade entre o

enunciado proverbial e o enunciado-título:

Filho de peixe peixinho é

*ilho de bacalhau b a ca lha u z in ho é

Filho de peixe

+

Filho de bacalhau

Assim, a síntese que caracteriza o enunciado Filho âe bacalhau é

justificável na medida que tal enunciado consegue ter uma carga in-

formacional compatível com sua função de título, além de ser capaz de

atrair a atenção pela sua originalidade.É interessante notar certo tom irônico nesse título, já que a relação

de hereditariedade natural e inevitável expressa pelo provérbio é trans-

posta para a relação entre Eurico Miranda, famoso dirigente doVasco

da Gama, e seu filho, Mário Miranda, o jovem superintendente de

esportes olímpicos do mesmo clube. O título comportaria uma insi-

nuação de que o fato de o filho estar no comando da equipe olímpica

deve-se ao seu vínculo familiar com o dirigente do clube do Vasco

da Gama. Nesse sentido, sua competência administrativa estaria sendo

questionada. As reticências que acompanham o título seriam, a nosso

í6 8

mação da inevitável carga hereditária. Sob esse aspecto, cabe ao sujei-

to-leitor deduzir se Mário Miranda herdará também do pai o estilo

autoritário que lhe é característico e famoso no mundo do futebol.

A citação parcial do provérbio paródico ou a parodização da for-

mulação proverbial abreviada tem o mérito de envolver o sujeito-in-

terpretante que, dessa forma, é convocado não apenas a reconhecer na

versão derivada a versão original do provérbio, como também a com-

pletar o segmento paródico, tendo a possibilidade de seguir ou não

o conceito prescrito pela sabedoria proverbial. Mas a citação parcial

(a parodização incide sobre a forma abreviada do provérbio) remete

ainda à força da convencionalização: o provérbio encerra urn topos na

sua forma mais cristalizada, devido ao seu s ta tus de evidência cultural e

pelo seu caráter de premissa coletivamente partilhada.

3. Outros movimentosde parodização

Na notícia (N5), intitulada M a i s vale uma camis inha usada corretamente do

que duas e veiculada no jornal Folha de São Paulo , de 15 novembro de

1999, no caderno "Folhateen", temos outro tipo de parodizaçãoem um

texto opinativo no qual a jornalista/ psicóloga responde a urna dúvida

sobre a vida sexual de um adolescente. Pode-se reconhecer no título a

referência ao provérbio M a i s vale u m pássaro n a m ão qu e dois voando, ape-

sar das alterações que esse título apresenta em relação ao seu enuncia-do-fonte. Entretanto, tais alterações resguardam a estrutura proverbial já

conhecida "mais vale um l ...l do que dois" . A elaboração paródica que

resultou no título M a i s vale u m a camis inha usada corretamente do que duas

pautou-se na retomada de uma estrutura já estigmatizada na qual foram

inseridos termos relativos ao tema da coluna-resposta da enunciadora-

jornalista. A idéia de escolha prescrita pelo provérbio é mantida, sendo

ela deslocada para o universo referencial da coluna.

O título de (N5) sintetiza a aplicação dessa idéia no contexto sexual,

mais especificamente, no que se refere ao comportamento dos jovens

169

 

Análises do discurso hoje Análise discursiva da parodização dos provérbios t ia mídia impressa

e adolescentes, pois a coluna é endereçada a esse tipo de público. Aliás , Nesse sentido, o título M a i s vale u m a camisinha usada corretamente do

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a coluna fazparte de um suplemento semanal, cujo nome "Folhateen"

já indica o seu público-alvo: o termo "Folha" remete ao jornal Folha de

São Paulo e o termo em inglês "teen" remete à adolescência. O caráter

prescritivo do provérbio-fonte ajusta-se à proposta da coluna escrita

pela jornalista-psicóloga Rosely Sayão: orientar a conduta dos jovens

através de respostasaos questionamentos por eles enviados. Nesse sen-tido, o título-provérbio da sua coluna-respostaM a i s vale uma camisinha

usada corretamente do que duas apresenta, ao mesmo tempo, a prescrição

sucinta de um comportamento desejável e um conselho imbuído da

sabedoria e da credibilidade associadas às fórmulas proverbiais. Dessa

maneira, o provérbio paródico (i) capta a atenção dos sujeitos-leitores

por constituir-se como uma pseudo-fórmula proverbial; (ii) sintetiza

o tema da notícia, projetando o conceito de previdência denominado

pelo provérbio no contexto de uma informação jornalística específica;

e {iii) prescreve um comportamento desejável através de um conselhoprático para os jovens leitores.

Apresentado sob a forma de provérbio-parodiado, esse conselho é

formulado como um trocadilho bem-humorado, o que favorece sua

memorização e, certamente, lhe confere menos formalidade do que

aquela que tradicionalmente caracteriza as intervenções de um espe-

cialista quando este é chamado a opinar sobre o assunto de seu conhe-

cimento. Sob esse aspecto, a linguagem da psicóloga-jornalista assume

o mesmo tom coloquial da linguagem do público jovem ao qual sedirige, permitindo-lhe abordar um assunto de relativa gravidade de

maneira objetiva,mas descontraída.

Portanto, o trabalho de parodizaçào, ao dessacralizar uma fórmula

fixa que goza de amplo prestígio social através da troca de seus itens

lexicais, revela sua intencionalidade lúdica de alterar fórmulas fixas,

conhecidas e valorizadas justamente pela sua dimensão convencional.

Ao romper com essa convencionalidade e com a relativa rigidez de

ta is fórmulas, esse trabalho busca efeitos de sentido compatíveis com a

proposta comunicativa do gênero no qual está inserido.

Í70

qu e duas apresenta um saber supostamente desconhecido do público

leitor ao qual se endereça, conforme a proposta do discurso informa-

tivo jornalístico, e o faz de maneira atraente, j á que ele apresenta uma

versão "inédita" de um provérbio. Tal versão promove o ajustamento

do provérbio ao contexto da informação jornalística, integrando seu

conceito ao relato que a notícia apresenta. Esse ajustamento é feito

através de alterações que, ao mesmo tempo, recriam o provérbio e

mantêm sua formulação de base, já que, como dissemos, é possível

reconhecer o provérbio nessa sua versão inédita.

Vejamos, finalmente, a notícia (N6) intitulada ídolo posto, ídolo assal-

tado: R. $ 2,50 na conta e veiculada na Folha de São Paulo, de 19 outubro

de 1999, no caderno "Cotidiano". O título é um enunciado derivado

do provérbio "Rei pos to , reimorto": desse provérbio-base, o título con-

serva a estrutura marcada pelo paralelismo, mas efetua uma substitui-

ção lexical e acrescenta a expressão "R$ 2,50 na conta". Todas essasmudanças buscam, conforme já afirmamos, incorporar ao provérbio os

elementos referenciais da notícia, de forma que ele torne-se um título

eficiente. Dessa maneira, o título-provérbio "ídolo pos to , ídolo assaltado:

R$ 2,50 na conta" associa o conceito denominado pelo provérbio-

fonte (o conceito de substituição imediata) com os fatos que a notícia

relata: os recentes assaltos a pessoas famosas e a proposta do governo

do estado de São Paulo de instituir a cobrança de uma taxa de R$ 2,50

para f inanciar a segurança pública.

Comparando o título ídolo posto, ídolo assaltado: R$ 2,50 na contacom a versãío original do provérbio, Rei morto, rei posto, podemos notar

que o termo "rei"do provérbio-fonte foi substituído pelo termo "ído-

lo" no sentido de fazer uma referência genérica aos artistas, modelos e

jogadores de futebol a que se refere a notícia. O prestígio social dessas

personalidades é tomado como similar ao s tatus até então desfrutado

pelos monarcas. Uma outra substituição é aquela do termo "mor to" pelo

termo "assaltado": os ídolos citados fazem parte de uma lista de vítimas

de recentes assaltos.Assim como os reis se sucediam no poder, os ídolos

(até eles!) se sucedem como vítimas de assalto: segundo a notícia (N6),

Í7Í

 

Análises do discurso hojeAnálise discursiva da parodização do s provérb ios na mídia impressa

à exceção de Pele (o propalado Rei do Futebol que, tão logo foi re- vos termos inseridos rem etam ao universo referencial da notícia. Dessa

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conhecido pelos assaltantes, foi liberado), as outras pessoas famosas não

escaparam da violência urbana. M as essa sucessão de assaltos pode ter

um a conseqüência: a cobrança de uma taxa de R$ 2,50 para custear a

segurança pública. Se o processo sucessório dos reis não tinha nenhu m

ônus, essa sucessãode assaltos a pessoas com um poder aquisitivo relati-

vamente alto pode resultar em ônus para o contribuinte.O provérbio Re i morto, re iposto é não apenas deslocado para o uni-

verso da notícia, como tem também ampliada a sua carga referencial. Isso

porque a verdade imemorial do provérbio-fonte é acrescida de elemen-

tos não apenas inesperados, mas, sobretudo, típicos de uma sociedademoderna e urbana, aquela retratada pela info rmação ornalística. O tra-

balho paródico que resultou no título ídolo posto, ídolo assaltado: R$ 2,50

na conta promove um a oposição entre o universo tradicional retratado

pelo provérbio-fonte e o universo contemporâneo retratado por esse tí-

tulo. Trata-se de uma oposição entre o padrão estabelecido pela monar-quia e o criado pela violência urbana atual: essas duas visões de mund o

estão inscritas no título-paródico como duas realidades diferentes, mastambém similares, á que u rna foi construída com base na outra.

S ob essa perspectiva, a dimensão folclórica do provérbio-fonte

contrasta, de alguma maneira, com a dimensão efêmera da versão-

derivada, uma vez que essa última não se tornou unia representação

pública cristalizada. O aspecto cômico da formulação paródica refere-

se ao que ela apresenta em termos de distorção do modelo tradicionaldo provérbio-fonte. Isso porque o título ídolo posto, ídolo assaltado: R$

2,50 na conta apresenta uma outra concepção do processo de substi-tuição, concepção esta construída a partir de referências a fatos da vidacotidiana que em nada lembram o glamour da monarquia.

4. Considerações finais

A parodização do provérbio pode fazer apelo à substituição, à supres-

são e/ou à expansão de seus itens lexicais no propósito de que os no-

17 2

maneira, o trabalho paródico rompe o sentido global do provérbio e

procede a um deslocamento do conceito que ele denomina para o

contexto específico de uma informação jornalística. O título-paródico

encerra, assim, um a síntese do tema da notícia, além de captar a aten-

ção dos sujeitos-leitores, que são surpreendidos por uma fórmula que

lhes soa familiar, mas que tem algo de inédita.O processo de parodização insere no provérbio-fonte elementos

referenciais da notícia de forma que a "nova" versão condense sua

carga mformacional. Conseqüentemente, o sentido sintagmatizadodo provérbio é orientado para o contexto específico da notícia. S ob

esse ângulo, como afirma Sant'Anna (1985), a paródia é um efeito

de deslocamento: ela estabelece uma diferença entre os textos, opon-

do a visão convencional do provérbio-fonte à visão "atual" do pro-

vérbio paródico. Mas o provérbio-paródico não anula nem destrói o

provérbio-fonte; ao contrário, evoca-o porque os efeitos da paródiadependem do reconhecimento do texto que lhe serviu de base. Ao

provérbio-paródico subjaz o provérbio-fonte, ou seja, nele dialogam

polifonicarnente uma versão convencional e uma versão m oderna do

provérbio, o "dito velho" do provérbio-fonte e o "dito novo" do pro-

vérbio paródico.No que se refere aos mecanismos de transformação dos provérbios

em títulos de notícia via trabalho paródico, consideram os tratar-se de

um procedimento que permite ao gênero proverbial ser incorporadoa um outro gênero, a notícia. O provérbio é adequado à intencionali-

dade do gênero para o qual migrou, gênero que o molda segundo sua

proposta com unicativa. Dessa mane ira, ele revela sua face camaleônica,

já que se adapta a uma demanda situacional, assimilando um a formu-

lação conveniente a essa demanda.Deve-se ressaltar ainda que os títulos paródicos, para que funcio-

ne m como ta is, dep endem da percepção desse trabalho de recriação:

o sujeito-leitor deve recuperar no título paródico o provérbio que lhe

serviu de modelo de construção. Cabe à instância de produção, deixar

173

 

Análises do discurso hoje

indícios suficientes na versão derivada para que se reconheça nela o

Análise discursiva da parodizaçao dos provérbios na mídia impressa

homogeneiza e uniformiza, parodiá-lo é uma forma de transgressão,

ainda que a sabedoria popular que ele expressa não esteja sendo sub-

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provérbio-fonte sob pena de não se obterem os efeitos paródicos.

No que diz respeito ao aspecto lúdico, a paródia promove um jogo

entre o sentido composicional e o sentido não-composicional através

da substituição e da introdução de novos itens lexicais. Explorando

a polissernia dos termos e as possibilidades cômicas de associação de

palavras de mesmo campo semântico, esse jogo rompe com o sentido

sintagmatizado do provérbio, sem romper com o modelo de composi-

ção que ele oferece.Assim sendo, o efeito cômico do trabalho paródico

é obtido não apenas pelo rompimento inesperado do automatísmo de

uma expressão já cristalizada, mas também pelo que esse rompimento

representa em termos de banalização de um modelo tradicionalmenteinstituído.

Sob essa aura cômica, a paródia tem uma feição subversiva porque

propõe uma visão diferente daquela já institucionalizada pelo senso

comum. Há, de alguma forma, um questionamento da autoridade e dalegitimidade do discurso-fonte, o que confere à paródia uma dimensão

polêmica, já que, ao recriar, ela desconstrói um discurso já instaurado.

No caso do provérbio, essa desconstrução assume um caráter de dessa-

cralização, pois a verdade absoluta do provérbio é desestabilizada para

dar lugar a uma verdade circunstancial. Qualquer que seja sua configu-

ração material, a paródia tem um valor de provocação na medida em

que promove a ruptura da rnecanicidade que rege o funcionamento

da linguagem, em geral, e das fórmulas fixas, em particular.Seu caráter

revolucionário deve-se ao questionamento do sentido sintagmatizado

pela fórmula proverbial.

Portanto, a paródia comporta em si um aspecto de destruição e

de construção: o discurso-fonte é desfeito, mas um "novo" discurso é

elaborado; ela configura-se como um processo de transformação que

dá origem a um discurso que não nega sua origem, mas vai contestá-la

por meio da desestabilização de imagens já incorporadas ao imagi-

nário coletivo e de uma certa atitude de inconforrnismo diante do

preestabelecido. Como o provérbio, pelo seu caráter de dizer cultural,

174

vertida no seu conteúdo. O que está em jogo é, de certa forma, uma

tradição cultural ou, pelo menos, a visão de mundo que ela instituiu e

que foi sendo perpetuada. Como gênero folclórico, ele comporta co-

nhecimento moral e instruções práticas que funcionam como "estraté-

gias para situação" (OB E L KE V I C H , 1997) ancoradas no senso comum.

Enquanto produção coletiva, o provérbio depende do seu uso e,

por mais paradoxal que possa parecer, sua versão parodiada acaba por

fortalecê-lo, já que ela deixa subentendida suaversão primeira. O pro-

vérbio existe porque um grupo social dele se apropriou; sua sobrevi-

vência depende da sua circulação/ difusão contínua, seja na sua for-

mulação original, seja como objeto de uma reescrita,seja, ainda, na sua

integralidade ou na sua forma abreviada.

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176

A S PALAVRAS D E UM A A N Á L I S E DODISCURSO

Id a Lúcia M achado ( U F M G )

A análise do discurso sobre a qual gostaríamos de falar é aquela que ficou

conhecida (sobretudo no Brasil) como Semiolingüística: trata-se de uma teo-

ria que foi criada pelo lingüista Patrick Charaudeau, do Centre tfAnalyse

du Discours da Universidade de Paris XIII (França). O primeiro ponto quequeremos aqui destacar é que as teorias que compõem essa Analise do

Discurso se inserem perfeitamente bem no domínio dos Estudos Lin-

güísticos: Charaudeau possui uma sólida formação de lingüista e sua tese

— bastante inovadora, na qual são apresentadas as referidas teorias — foi

orientada por Bernard Pottiers e defendidana Universidade deParis IV, em

1977, com o título:Lê s Condit ions l inguistiaues á "une analyse du âiscours.

Partindo dessa produção "inicial", notamos que o objetivo primei-

ro do autor, já espelhado neste título, foi o de refletir sobre "as condições

l ingüísticas de uma anál i se do discurso" e não o de buscar definir o que

seria a análise do discurso em si. Gostaríamos, então, de aí destacar o

emprego de "uma", ligado ao sintagma "análise do discurso": tal uso

parece-nos mais "democrático" e aberto que um fechado "da análise

do discurso". Isso nos mostra também, de certo modo, a situação psi-

cossocial do sujeito comunicante Patrick Charaudeau, ou seja: sua cons-

ciência de que a análise do discurso (doravante AD) pertence a um

amplo domínio onde existem teorias que precederam às lançadas em

su a tese e outras que surgiriam depois dela.

 

Análises tio discurso hoje

Éjustamente através da observação de certos usos linguageiros, apa-

As palavras de uma Análise do Discurso

conhecida por vários pesquisadores brasileiros3 pela sigla ADF (Análise

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rentemente "inocentes", como o "uma" destacado acima, que pode-

mos, por vezes, chegar a observações interessantes que dizem respeito

ao locutor ou ao sujeito falante do discurso. Assim, alguns desses usos,

disseminados em um dado discurso, são dotados de grande força ar-

gumentativa1: desse modo, o leitor atento pode captar "pistas" que vão

enviá-lo ao sujeito-autor, àssuas visões teóricas e, mais que isso, àssuaspercepções sobre o mundo que o rodeia. Sempre cuidadoso com suas

palavras, Charaudeau elabora seus ditos através de "projetos de fala" e

isso é visível desde o título de sua tese; o autor "fala" a partir de um

ponto determinado: tal ponto, no caso em questão, não é rígido nem

dogmático: a Semiolingüística não é uma teoria que foi lançada para

"sufocar" outra(s).

Isso não quer dizer, de modo algum, que as idéias do supracitado

pesquisador sejam "flutuantes", podendo vagar de um lado para outro,

de modo aleatório. Já no primeiro parágrafo da primeira parte de sua

tese, Charaudeau (1977, p. 2) define bem o que pensa da AD e de

sua necessária e natural expansão, após o surgimento da teoria analíti-

co-discursiva fundadora, ou seja, a da Êcolefrançaise d'analyse du discours2,

1 Nesse ponto estamosde acordo com Anscombre e Ducrot (1983), quando afirmamque a argumentação já está na língua.2 Segundo Dominique M aingueneau (2002,p.201),"a etiqueta"Escola francesa" per-

mite designar uma corrente dominante de análise do discurso na França, nos anos

1960-1970. Es te conjunto de pesquisas que surgiu no rneio dos anos 1960 foi con-sagrado em 1969 pelo lançamento [de um número] da revista Langages , intitulado A

Análise do Discurso e d o livroAnálise automát ica do discurso, de M . Pêcheux (1938-1983),

o autor mais representativo deste grupo." (Tradução nossa). Maingueneau chama a

atual continuidade (com suas devidas alterações) dessa teoria, na m e s m a obra (p.202),

de "análise do discurso de tendência francesa". Acreditamosque tal sintagma "escon-

de", de certo modo,várias outras "análises do discurso" criadas por franceses ou falan-tes da língua francesa, logo, queremos crer, também de tendência francesa, sobretudo seas compararmos com as analises de discurso de tendência americanaou inglesa. Aliás, amultiplicidade de "análises do discurso" existentes na França, e logo, insistimos, de ten-

dência ou de origem rancesa , oi mostrada pelo próprio Maingueneau em sua Apresenta-ção do número 117 da revista Langages (1995), por ele organizada. Infelizmente, o usoacentuado do sintagma "AD francesa" ou "AD de tendência francesa", por parte de

178

do Discurso francesa). Eis o que ele diz:

A "análise do discurso" é um setor da lingüística que se encontra em ple-

no desenvolvimento. A s pesquisas atuais se situam nos confins de outras

ciências humanas, tais corno a psicologia, a psicanálise, a sociologia e a

antropologia, ciências que fazem parte integrante do s fenômenos da comu-nicação. (Tradução e grifos nossos)

Por aí, vê-se que a linguagem em ação, ou seja, o discurso é visto

por Charaudeau como um fenômeno comunicativo por excelência:

é em torno dessa idéia que ele vai construir o "edifício" da Teoria

Semiohngüística. Note-se, a título de ilustração, que tal termo é bem

explicado em um artigo de Charaudeau4 no número 117 da revista

Langages (1995) e não deve ser confundido, como vemos ainda acon-

tecer, com uma simples retomada da Semiologia: a Semiohngüística é

uma análise do discurso.

Nunca escondemos nossa admiração pela coragem de Charaudeau

por ter lançado, de certa forma, uma espécie de "desafio" aos lingüistas

de sua época: sair de seus "papéis de lingüistas tradicionais", ou seja,

começar a considerar não só o que está explícito no ato de linguagem

(doravante A de L), mas também o implícito deste ato5, ou, mais exa-

vários pesquisadores em AD, no Brasil , tem gerado uma certa confusão principalmentepara aqueles que se iniciam nos estudos analítico-discursivos. No fundo, parece-nos

que tudo é uma questão de terminologia, e que M ain g u en e au , sem ter esta intenção,

é claro, colocou em uma espécie de "camisa-de-força" o sintagma "AD de tendência

francesa", tornando-o por demais fechado em relação a várias outras teorias também

conhecidas como AD (em suas abreviações ou siglas) e também criadas na França

(como a que nos interessa agora). Enf im, repetimos: basta folhear o número 117 de

Langages para verificar que nossa afirmação tem fundamento.3 Dentre os quais nos filiamos.4 Artigo este intitulado: Un e analyse sémiolinguistique de Vanalyse du discours.J Isso no âmbitode uma análise do discurso, pois, como é sabido por todos,Benveniste,

ainda nos anos 1960,postulava

umlugar

para o suje ito da enunciação, massern

citarespecif icamente , como o faz Charaudeau, o campo da AD.

179

 

Anál ises do discurso hoje As palavras de u ma Análise do Discurso

tamente, afirmar, em alto e bom som, que tal sentido só poderá existir força e credibilidade às interpretações (dos diferentesA de L) que ela

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na junção dos dois fatores ou espaços que rodeiam nosso mundo de

seres comunicantes: o interno e o externo.

Isso implicou, naturalmente, levar em conta o papel do sujeito histó-

rico que produz o A de L 6. Charaudeau (op. aí.) acredita que é chegada a

hora de se estabelecer uma reflexão nova, no âmbito da própria lingüís-

tica, reflexão esta que deve colocá-la em contato com os conhecimentosjá adquiridos po r outras disciplinas, tais como a filosofia da linguagem, a

semiótica literária e não-literária, assim como também a semântica. Esta

reflexão busca, então, mostrar a ligação que pode existir entre uma teoria

analítico-díscursiva (que leve em conta tais conhecimentos) e a possibili-

dade de se enxergar a comunicação na vida social como um fator suscetí-

ve l de "comandar" nossos atos discursivos; logo, aAD proposta por Cha-

raudeau vem dar um especial enfoque ao eu-comunicante e suas diferentes

representações no mundo linguageiro: autor de uma determinada obra,

redator de um artigo, grupo responsávelpor uma determinada campanha

publicitária, etc. Eis aí o retorno pleno do sujeito, no âmbito da lingüística

discursiva, visto como ser histórico e comunicante, capaz de "atuar" ou

de assumir diferentes papéis em sua vida em sociedade 7.

A Serniolingüística parte assim de um duplo desejo ou de um du-

pl o enjeu: colocar em destaque as funções dos diferentes sujeitos nos

atos de linguagem do cotidiano (mas também, do não-cotidiano, con-

forme os c o r p o r a estudados) e, ao mesmo tempo, manter uma AD que

tenha uma base lingüística, não a afastando de uma ciência que dará

6 Maingueneau irá também, por sua vez, valorizar o produtor dos "atos de linguagem"

— mas, é claro, em outra perspectiva, logo, sem usar este sintagma: somos nós quem

"ousamos" essa aproximação. Assim, para Maingueneau, em dois importantes livros

— Lê Cont ex t e de 1'oeuvre littéraire (1993) e Contre Sain t -Proust (2006) —, o autor de

obras literárias não deve ser negligenciado. Maingueneau recupera assim,com grande

elegância,a figura do "autor", que tantos anos e tantos hábitos estruturalistas relegaram

a um segundo plano. O "autor" faz parte de um "contexto", aquele em que a obra foi

produzida, e, à medida que levamos esse importante dado em conta, estaremos, sem

dúvida, realizando uma análise discursiva pertinente e realista.7

Dependendo, é claro, dos limites e normas que esta lhe impõe, em determinadoscontextos de sua vida.

180

poderá propiciar.

1. Uma teoria em movimento

Tentaremos explicar um pouco mais o que foi dito até agora. Para

tanto, tomaremos como base um curso ministrado por Patrick Cha-raudeau na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas

Gerais, durante uma missão por ele assumida, no dia 26 de maio de

19948. Nele, o lingüista expôs a um grupo de analistas do discurso (ou

futuros analistas do discurso) o fato de que teorias, grosso modo, podem

se dividir em "métodos" e "metodologias". Os primeiros seriam for-

mados pela reunião de conceitos, mais ou menos fixos, com existência

já comprovada no campo das ciências da linguagem, tais corno o Cog-

nitivismo, a Pragmática, entre outros; á as metodologias poderiam se r

consideradas em seus movimentos de "vai-e-vem", movimentos estes

efetuados entre o ou os métodos de trabalho e seus objetos. Metodo-

logias não são nunca fechadas, acabadas. O esquema abaixo reproduz

uma das divisões possíveis para ta l elemento, se ele for aplicado em

pesquisas ligadas àAD:

{-> 1.Descritiva -^ (a) língua; (b) discurso

M etodologia {- 2. Experimental -^ (a) cogniçao; (b) comportamentos

{- 3. Interpretativa -^ (a) antropologia, etnologia; (b) sociolingüística;

(c) psicanálise; (d) ideologia; (e) semiologia, etc.

Nessa perspectiva, seriam possíveis as seguintes interfaces: (i) as Teo-

rias da face de Gofrman resultariamde 3b & Ib; (ii) as teorias de Gum-

perz, de 3a & Ia; (iii) as de Labov estariam em 3b & la f etc. São apenas

algumas possibilidades, apresentadas no curso citado.

s Missão inserida no Projeto Anál ise do Discurso: procedimentos da persuasão e da sedução,

Convênio CAPES/COFECUB mantido entre o NAD/FALE/UFMG e o CAD de

Paris XIII, de 1994a 1998.

Í8Í

 

Análises do discurso hoje

No caso daTeoria Semiolingüística, poderíamos colocá-la, seguin-

A s palavras de u ma Anál ise do Discurso

genot (1992, p. 16), vem mostrar a importância dos discursos sociais,

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do a idéia acima, na conjugação de Ib & 3a, b, c ou d, conforme a

orientação que o pesquisador buscará privilegiar em sua análise. Assim,

um título do livro bem explicativo do conteúdo, como por exemplo o

de Françoise Minot (1993): Etude sémio-psychanal i t ique de quelques jilms

publ ià taires9, nos leva facilmente a inferir que as hipóteses que nortea-

ram sua pesquisa estão na união de Ib & 3c + 3e.De todo modo, as perspectivas de um trabalho de análise que utili-

ze a AD Semiolingüística são três: (i) a crítica ao social; (ii) a descrição

dos mecanismos psicossociais dos contextos em que estão envolvidos

os parceiros de um contrato ou de um determinado ato comunicativo;

(iii) a aplicação dos itens (i) e (ii) à linguagem (enquanto instrumento

comunicativo por excelência) e a seus usos.

A AD em pauta é, pois, uma analise do discurso que leva em conta

a crítica ao histórico-social representado por suas diferentes manifesta-

ções linguageiras. Em outros termos, trata-se de uma análise discursiva

que não ignora o lugar (histórico) de produção dos textos. Enten-

demos, por "lugar de produção", algo que envolve o eu produ tor, sua

época e as razões comunicativas que o levaram a produzir tal texto e

não tal outro: em suma, as circunstâncias da comunicação. De certo

modo, tocamos, então, no caso, em uma análise sociocrítica, nos mol-

des da que foi preconizada por Claude Duchet10. E bem verdade que

a Sociocrítica tem se ocupado mais dos discursos literários11, mas uma

observação como a que transcrevemos em seguida, feita por Marc An-

9 Este livro resulta da tese da citada pesquisadora, tese esta que foi orientada por P.

Charaudeau.10 Em vários escritos. Citamos aqui apenas dois,a título de ilustra cão: "La sociocririque.

Questions sur un personnage:Tebaldeo et lês valeurs". In: Dossier pédagogiques de li

RTS (radio-télévisionscolaire), tome II, français,1972-1973, e também:"Une écriture

de Ia socialité". In: Poétique, n. 16,1973.11

Ou daqueles que, conforme diria Bakhtin (1979,p.239),pertenceriam a uma classemais complexa de gêneros discursivos que a simples conversaçãoou trocas espontâ-

neas de palavras entre sujeitos falantes.

Í82

na disciplina em questão:

Se m um a teoria e uma prática de análise do discurso social, que é algo

bem maior do que intuímos,normalmente, é quase impossível abordar o

campo das letras, imediatamente, se m cair no a priori, na intuição descon-

trolada [...] O q u e falta então, e em larga escala no s dias de hoje — alémdas construções elitistas feitas na história das idéias e das interpretações

mecanicistas da crítica dita "ideológica"— seria uma teoria e uma histó-

ri a do discurso social.

A crítica social inerente à teoria de Charaudeau já pode ser no-

tada nas perguntas (e conseqüente busca de respostas) propostas aos

seus pesquisadores pelo autor e seus seguidores, em várias publicações:

"— Quem fala?","— De onde fala?", "— Para quem?" e "— Com

quais finalidades?".

Assim, os semiolingüistas, ao se debruçar sobre a análise de seus

diferentes corpora, irão buscar uma adequação dos ditos e escritos de

um sujeito histórico, produtor de w A de L, em uma sociedade deter-

minada, em um dado contexto, para melhor verificar a construção de

seus discursos.

De certo modo, a crítica feita aos discursos sociais na ou pela análise

Semiolingüística, vai se imbricar, em seu mo d u s operandi, ao item (ii),ou

seja, à descrição dos mecanismos psicossociais dos contextos nos quaisse movem os parceiros de um contrato ou de um determinado A de

L.Ao descrever estes "cenários" que propiciam a ação comunicativa, o

pesquisador leva em conta o caráter psicossocial das transações lingua-

geiras, o que o conduzirá, naturalmente, aos seus modos de "falar" ou

de contar o mundo adotados pelos difererentes sujeitos-comunicantes.

Em suma, a descrição dos mecanismos psicossociais ajuda a entender

o porquê da construção dos A de L por eles empregados; tal descrição

desloca-se num movimento repetido entre o explícito e o implícito de

seus ditos e/ou escritos, ou seja, de seus textos.

183

 

Análises do discurso hoje As palavras d e u m a Anál ise ao Discurso

Cabe proceder aqui a uma explicação do que seja t ex to , em nossa vi- Os parceiros dessas trocas comunicativas, evidentemente, acionam

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são. Para nós, um texto é formado por uma série de A de L.Reunidos de

forma coerente, tais atos darão lugar a um macroato de linguagem — ou

texto. Este tem uma fundamentação em sua base, algo que o faz existir.

Uma visada, como diria Charaudeau (2004). O que queremos também

dizer com isso é que nenhuma produção linguageira é aleatória: todas

dependem das visadas que lhes forem conferidas por seus criadores.Encerrando este segmento, devemos lembrar então que a Semio-

lingüística teve suas bases lançadas em 1977, sendo de 1983 o primeiro

livro que a divulgou junto ao público francês e aos analistas do dis-

curso. Mas essa teoria evidentemente não parou por aí. Várias outras

abordagens foram sendo feitas por seu autor e várias aplicações — que

sugerem ou apontam para um desenvolvimento da teoria — foram

realizadas por aqueles que a adotaram como análise do discurso (de

tendência francesa); citemos entre tantos, no cenário brasileiro, vários

pesquisadores dos núcleos de AD da FALE e da UFRJ (NAD e CIAD,

respectivamente)12.

2. Três competências, três procedimentos e dois saberes :

assim vai a Semiolingüística

Como tentamos explicitar linhas atrás, não há um ato comunicativo

"solto", ou seja, desligado do contexto psicossocial no qual foi pro-

duzido. Os atos comunicativos ou atos de linguagem, reunidos sob aforma de um texto, dependem do "lugar" e da "situação" de comuni-

cação que lhes deu origem.

12 Lembramos também que ambos congregam professores vindos de outras IFES e de

Universidades particulares. Um Núcleo de AD que se fechasse em um único Progra-

ma de Pós-Graduação, com professores de uma única Universidade, teria uma análise

do discurso, no mínimo, triste, pois estaria fug indo à liberdade da AD, sempre aberta

ao estudo de novos corpora e à discussão com pesquisadoresvindos de outros lugares,com outras formações (que a Lingüística, propriamente dita).

18 4

estratégias linguageiras adequadas, visando garantir as condições de su-

cesso de suas empreitadas comunicativas.

Pensando nisso, Charaudeau (2001,p. 41-54), no âmbito de suateo-

ria analítico-discursiva, elaborou e vem trabalhando com um modelo

dividido em três níveis, cada um deles correspondendo a um tipo de

competência do sujeito: (i) o nível situaáonal, ligado a sua competênciasituacional, (ii) o nível discursivo, ligado a sua competência discursiva e

(iii) o nível de compreensão do s sentidos do s signos âa l íngua, ligado à com-

petência Semiolingüística do referido sujeito. Iremos examinar cada

um desses níveis, de forma panorâmica.

A competência situacional, segundo Charaudeau,

exige que todo sujeito comunicante e ínterpretante de um ato de linguagem seja

capaz de construir seu discurso em função da identidade dos parceiros da

troca linguageira, de sua finalidade, do tema que tal troca coloca em jogo e

das circunstâncias m ateriais que a envolvem, (op. cíí., p. 46, tradução nossa)

Ainda segundo o autor, nas situações interlocutivas, em geral, o

sujeito que toma a iniciativa da fala toma também o espaço dapalavra,

daí excluindo o outro ou a ele se impondo ou se sobrepondo (ainda

que isso aconteça em um curto espaço de tempo). Porém, ao mesmo

tempo, o sujeito falante está também à mercê das reações do outro, seu

ouvinte e interlocutor. Daí advêm trocas verbais que se caracterizampor uma espécie de duelo, onde cada um dos sujeitos tenta justificar

seu direito à palavra e busca orientar, do modo que lhe convém, o

tema ou assunto em pauta. Para isso, os sujeitos comunicantes usam

estratégias de captação ou até mesmo de sujeição, dentro do espaço de

manobras que os limites de cada contrato de fala/ escrita lhes irnpòe;

ou então, dentro do que é solicitado pelo gênero discursivo no qual

tais sujeitos se inserem ou fazem inserir seus textos.

Ora, a competência situacional viria, justamente, determinar o que

Charaudeau denomina, desde suas primeiras publicações, de enjeu, ou

18 5

 

Anál ises do discurso hoje As palavras de u ma Anál ise do Discurso

seja, "jogo de expectativas"13 de um A de L. Na teoria aqui abordada

diga-se de passagem, o "jogo de expectativas" constitui, por si só, uni

municativos. Segundo Charaudeau (op. cit.,p. 47), tais procedimentos

seriam em número de três: (i) o enunciativo; (ii) o enuncivo e (iii) o

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ponto que merece ser destacado.Vejamos um exemplo, bem banal; ao

passar diante de um colega, lançamos um cumprimento qualquer, di-

gamos algo como "Oi, tudo bem?". Pode parecer exagerado, mas esse

A de L traz em seu âmago um jogo de expectativas por parte daquele

que o pronunciou.Tomar a palavra é sempre um risco ou um jogo: po-demos ser escutados ou negligenciados (em diferentes graus de atenção

ou nao-atenção) por nossos ouvintes, sejam eles colegas, alunos, amigos,

filhos, vizinhos, etc. Nossas expressões linguageiras podem parecer dig-

nas de resposta ou não pelos nossos eventuais interlocutores. Estamos

assim em um "campo minado":a não-resposta ou o não-entendimento

de nossa palavra pode gerar em nós várias indagações, já que a comu-

nicação ou a não-comunicação são largamente subjetivas. Assim, nosso

"Oi, tudo bem?" envolve uma "aposta comunícativa" e uma expecta-

tiva: nosso colega vai nos responder ou não? Vai virar o rosto para o

outro lado? V ai fingir que não nos viu? Ou, ao contrário, vai parar e nos

abraçar? As possibilidades são muitas. Quantas vezes já não escutamos

algo do gênero: "Eu o cumprimentei e ele nem respondeu! Não sei o

que houve." Ou "Ficou tão feliz em me ver!".E assim por diante.14

Examinemos agora, rapidamente, a competência discursiva. Ela

exige, grosso modo, de todo sujeito comunicante ou daquele que vai

"interpretar", tentar entender ou até mesmo "decodificar" um deter-

minado A de L, ou seja, exige que esta pessoa esteja apta a captar oureconhecer os procedimentos discursivos da encenação linguageira.

Pois, ao comunicarmos, querendo ou não, estamos entrando em um

processo de mise en scène da linguagem, processo este que depende de

nossos interlocutores e do local de onde "enviamos" nossos atos co-

13 A palavra em questão pode receber vár ias traduções, dependendo do contexto em

que está inserida: jogo, aposta, estratégia , etc. O sintagma jogo de expectativas nos foi

sugerido pela Profa. Maria Carmen Aires Gomes (UFV).M Este enjeu de um sujei to produtor de determinada ação comunicativa, aliás, faz tam-

bém parte desta nossa exposição: ele está presente em cada uma de nossas palavras.

Í86

semântico.

Os primeiros procedimentos estão ligados às atitudes enunciativas

que o sujeito falante constrói em função da situação de comunicação,

em uma primeira instância. É preciso lembrar que essas atitudes têm

algo em comum com a imagem, que os sujeitos da comunicação dese-jam passar de si mesmos e com a imagem que eles se dão um ao outro.

Esse jogo, onde reconhecemos a forte presença da noção de ethos, se faz

sempre respeitando-se as normas que prevalecem no grupo social onde

atuam os sujeitos comunicantes. Isso os leva a incluir, de modo espon-

tâneo, certos rituais sociolinguageiros em suas trocas comunicativas.

Os segundos procedimentos se referem ao que Charaudeau chama,

em sua Gr ammair e du sens et de 1'expression (1992f p. 634-835), de "mo-

dos de organização do discurso" ou, em outras palavras, as maneiras

que usamos para nos comunicar: somos mais descritivos, narrativosou argumentativos? Ou, quase sem perceber, usamos todas essas cate-

gorias ao mesmo tempo, conforme os A de L que produzimos ou os

textos que escrevemos? Enfim, vistos de modo bem panorâmico e no

âmbito de nossas produções enunciativas, temos os seguintes modos:

o "modo descritivo" que consiste em nomear e qualificar os seres do

mundo, com uma maior ou menor subjetividade; o "modo narrativo"

que consiste em descrever as ações dos protagonistas de uma história,

realçando seus diferentes percursos e causas; o"modo

argumentativo",enfim, que consiste em saber organizar as redes de causalidade expli-

cativa dos acontecimentos, estabelecendo as provas do verdadeiro, do

falso ou do verossímil. No "comando" de todos esses modos está o

"modo de organização enunciativo", evidentemente.

Na verdade, não há nenhum "segredo" envolvendo a utilização

desses modos de organização do discurso: aprendemos a usá-los na es-

cola, com a leitura e, de forma mais ampla, em nossos contatos ou nos

múltiplos "papéis" ou situações comunicativas que as circunstâncias da

vida nos forçam ou nos levam a assumir.

187

 

Análises do discurso hoje

As palavras de umaAnálise do Discurso

Chegamos, enfim, aos procedimentos de ordem semântica. Segun-

do Charaudeau ( o p . dt., p. 48), eles se referem ao que os cognitivistas

cozidas agora? Em um domingo, pela manhã? O que eu tenho

a ver com isso? Estou aqui só querendo retirar dinheiro de um

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chamam de "meio cognitivo mutuamente partilhado" (SPERBER, 1989,

p. 32, tradução nossa). Na verdade, em nossas trocas comunicativas,

para que possamos nos compreender uns aos outros, devemos recorrer

a certos saberes comuns que acreditamos/esperamos serão partilhados

pelos parceiros das trocas em questão.Esses saberes são de dois tipos:

(i) saberes de conhecimento, que dizem respeito "às percepções e às

definições mais ou menos objetivas do mundo" ( C H A R A U D E A U ,

o p . dt., p. 48). Eis um caso de percepção de experiência parti-

lhada: afirmar, para um brasileiro, que a capital do país é Brasília.

Ou então dizer que a Lua é o satélite daTerra.

(ii) saberes de crença, qu e fazem parte de certos sistemas de valo-

res (mais ou menos normalizados).Tais saberes circulam em

um dado grupo social, fornecendo a ele a sua identidade. Paracompreender o slogan que esteve em moda há uns sete anos,

no Brasil, "Não é nenhuma Brastemp" ou uma expressão co-

loquial que ainda vemos circular tal como "Só agora a ficha

caiu", teremos que fazer uma série de inferências entre o que

escutamos e o contexto no qual tais expressões foram pro-

duzidas. Imaginem a dificuldade de um estrangeiro no Brasil

tentando entender, a partir da última expressão citada, que es-tranha "ficha" seria esta

— u ma fichatelefônica?

M as isso nã oexiste mais no país. Ou será que a "ficha" em questão refere-se

a urna simples ficha de papel? O u a u m a ficha de relógio de

ponto? Mas que relógio seria esse? E onde foi que a ficha caiu?

N o chão? A h! Talvez um a ficha de cassino? Tantas v ãs inferên-

cias para não entender que, com "Agora a ficha caiu", o sujeito

falante quis simplesmente dizer: "Agora entendi a situação." O

mesnío processo se dá, em sentindo inverso, para brasileiros na

França diante de uma expressão ou ditado popular tal como

"Lês carottes sont cuites". Por que estão falando de cenouras

18 8

distribuidor de bilhetes que engoliu meu cartão. Por que esta

pessoa a meu lado se dirige a mim usando um vocabulário

culinário? E assim por diante. Até que nosso brasileiro com-

preenda que a expressão usada pelo francês significa "Não há

mais nada a fazer no momento", "O banco está fechado" ou

mesmo "Que falta de sorte a sua!" ou algo do gênero, muitas

inferências serão necessárias.

Seguindo este raciocínio, a Semiolingüística vem então postular a

necessidade de uma "teoria de inferências", essencial para o estudo e

para a compreensão dos fenômenos da interdiscursividade.

Sem mais tardar, examinemos a competência Semiolingüística. Re-

sumindo bem, trata-se do seguinte: todo sujeito que se comunica e

que interpreta um ato de linguagem precisa estar apto a utilizar/ re-conhecer a forma dos signos, suas regras de combinação e seu sentido

em determinado contexto, sabendo que esses signos são empregados

para servir de enquadramento à aplicação ou à expressão de um ato

comunicativo. Para exercer essa competência precisamos, então, estar

munidos de um certo savoir-faire ligado às nossas competências tex-

tuais, o que implica forçosamente possuir um certo conhecimento

no que diz respeito à construção gramatical, às marcas de coerência

do texto (tais como os conectores, modalizadores, etc.}, enfim: possuir

conhecimentos ligados a tudo que concerne ao aparelho formal de

enunciação. Todavia, esta aptidão precisa também estar ligada ao uso

apropriado das palavras do léxico: são elas que divulgam, conforme o

contexto onde são usadas, certos valores sociais.

Para simplificar o que foi dito, podemos afirmar, sem medo, que

Semiolingüística, em seu âmago, guarda uma curiosa metáfora: no

grande "mercado" ou "feira livre" da comunicação, existe um stanâ

composto po r vários rituais linguageíros, assim como também existe um

outro composto pelas palavras e seus usos sociais. Desse modo, a tríplice

189

 

Análises do discurso hojeAs palavras de um a Análise do Discurso

competência seria então a base necessária para analisar as condições dacomunicação linguageira.

Porém, o mais interessante e, acreditamos, desconhecido do grande

público que ainda cultua tanto Mina quanto Dalida, é que esta canção

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No próximo segmento, servindo-nos de um exemplo "musical",

vamos tentar ilustrar o que foi dito.

3. Três versões de uma canção: palavras que a

Semiolingüística ajuda a interpretar

Tentaremos explicar, a partir do que foi dito, as razões que motivaram

certas alterações na versão brasileira da canção italiana de G. Ferrio,

L . Chiosso e Michaèle, intitulada Parole, parole. T al canção obteve umgrande sucesso na Itália, onde fo i gravada, pela cantora Mina13, acom-

panhada do ator Alberto Lupo, em 1972.

Um ano depois, essa mesma canção freqüentou as hi t parades da

França, trazendo também um imenso sucesso para a cantora Dalida16.

E m nossa opinião, dois fatores contribuíram para a boa acolhida dacanção: o primeiro, certamente, seria a própria Dalida, cantora que,

como Mina na Itália, tornou-se um a personagem cult da canção ro -mântica. O segundo fator estaria na voz masculina que acompanhava

Dalida na versão francesa: a do ator Ala in Delon17.

lj Mina era o pseudônimo da cantoraitaüana Anna Maria Mazzini, que alérn de cantar,

foi também produtora e animadora de programas televisivos na Itália, tal como Teatro

10. Este programa, apresentado por Mina e pelo ator Alberto Lupo, conheceu umgrande sucesso,ainda mais depois que os dois parceiros gravaram a canção supracitada.

Mina deixou a vida artística relativamente cedo, com 47 anos. Talvez isso tenha con-

tribuído para criar um certo mito em torno de sua pessoa, na Itália.16 Dalida chamava-se Yolanda Gigliotti. Era de origem italiana, mas nascida no Cairo

(Egito). Na França, dedicou-se ao mundo da canção, onde obteve muito sucesso. Um

fator interessante na vida desta bela mulher foi que eta nunca deixou de lado um jeito

bem especial de pronunciar os "r" para falar ou para cantar em francês, ou seja, sempre

manteve uni sotaque que não negava suas origens latinas; mas isso não a impediu de

tornar-se um "ícone" da música romântico-popular francesa, o que não deixa (de

certo modo) de ser surpreendente.17Ator que é até hoje considerado como um dos grandes nomes do cinema francês, ao

lado de "moastros sagrados", tais como Gabin.Ventura, Belmondo.

1 90

a duas vozes fo i logo traduzida no Brasil, no mesmo ano de seu lança-

mento na Itália (1972), ou seja, antes mesmo que a versão francesa (de

1973) aparecesse. A tradução/ adaptação para o português fo i feita pela

cantora Maysa18 , qu e escolheu Raul Cortez19

para interpretar a canção

a seu lado20.

Note-se, nos três casos citados, que a mise en scène da canção em

pauta comporta um diálogo, onde os enunciados são expressos seja

através do canto, seja através do dito: o primeiro é assumido pela voz

feminina, o segundo pela voz masculina. Curioso diálogo que subten-

de um "duelo", onde o canto tenta menosprezar ou expor ao ridículo

o dito; este nã o teme os clichês, como veremos, observando este pe -queno trecho da canção, em sua versão original (italiana), seguida da

tradução:

O dito: Tu se i c ome U vento ch e porta i violini e lê roseO canto: Caramel le non ne voglio piü

O dito: Certe volte no n ti capisco

O canto: Lê rose e i violini // qitesta será raccontali a uríaltra // violini e

rose li posso sentire // quando Ia cosa m i vá, s e m i vá // quando è il momente

f / e dopo sí vedrà

lg A artista brasileira Maysa Figueira Monjardim Matarazzo, conhecida como Maysa,

teve uma bela carreira durante cerca de duas décadas (do final dos anos 1950 ao finaldos anos 1970). Maysa era conhecida como a "rainha da fossa", pelo sentimento de

profunda tristeza que imprimia em suas interpretações. Sambas-canções "sofridos"

como "Ouça", "Meu mundo caiu" são apenas dois exemplos, entre tantos outros su-

cessos da cantora, que morreu em 1977. {Folha on-l ine, 18/10/2005)K Ator brasileiro de teatro, cinema, telenovelas, que morreu em 18/07/2000. (Folha

on-line desta mesma data)20 Gostaríamos de notar que já utilizamos este exemplo (ou este mini-corpus ilustrativo)

em um artigo intitulado "A Análise Discursiva Semiolingüística e a tradução", artigo

este que apareceu na revista eletrônica COLL - Consultoria âe língua portuguesa e li tera-

tura , Rio de Janeiro, novembro/2007, p. 1-7. No entanto, na época, houve um engano

de nossa parte, no que diz respeito à referência da canção original, que retificamos

agora.

191

 

Analisei do discurso hoje

O dito: Un a parola encora

O canto: Parole, parole , parole .21

As palavras de u ma Anál ise do Discurso

dopo si vedrà", ou seja, ela pode ouvir violinos e ter rosas, m as, quando

quiser, quando isso lhe for conveniente; não naquele momento em

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O dito: Você é como o vento que traz violinos e rosas

O canto: Caramelos [doces] eu não quero mais

O dito : A s vezes eu não te compreendo

O canto: Rosas e violinos // esta noite, fale disso para uma outra //

[palavras sobre] violinos e rosas posso escutar // masquando estou bem,

se estou bem // quando é o momento certo // mais tarde veremos

O dito: Deixe-me dizer só mais uma palavra

O canto: Palavras, palavras, palavras. {Tradução nossa)

Examinemos esta "disputa" verbal entre o dito e o canto sob a pers-

pectiva da competência situacional; ela nos enviará, illico pres to, a uma

situação de interlocução, ao pseudodiálogo travado entre duas perso-

nagens (um casal) que parece atravessar urna má fase na relação. Ao quetudo indica, o homem {a voz masculina responsável pelo dito] se ex-

pressa através de clichês, usa formas linguageiras que, de tão repetidas,

já se desgastaram, pelo menos para a personagem feminina da canção.

Em um exercício de rnetalinguagem, esta voz se apropria das palavras

masculinas para ironizá-las. Assim,o canto usa uma metáfora in absentia

("Caramelle non ne voglio piü") como resposta ao primeiro dito de

seu parceiro ("Tu sei come il vento che porta i violini e lê rose"): ela

não se deixa mais levar pela doçura (aparente) daspalavras masculinas.

Em seguida, a voz feminina utiliza uma metáfora in praesentia, pois

el a auto-ironiza o que acabou de dizer, ou seja, que não quer mais

doces, explicando, por assim dizer, o que pensa desse tipo de fala vazia

e por demais açucarada para ser verdadeira; é quando canta: "Lê rose

e i violini // questa será raccontali a un'altra // violini e rose li posso

sentire //quando Ia cosa mi v á, se mi vá // quando è il momente // e

21 Fomos nós quem colocamos as palavras "dito" e "canto" em itálico, precedendo as

palavras propriamente ditas, do trecho da canção aqui transcrito .

192

que sente o vazio das palavras que escuta de seu parceiro.

O interessante a ser notado é uma certa performatividade presente

na canção italiana: quando a voz masculina fala de "violinos",a música

revela a presença destes, ou seja, o dito faz acontecer o que enuncia.

Mas, mesmo assim, o canto revela-se mais poderoso e assume uma po-

sição de comando da situação ao negar a palavra do outro.

No âmbito do "mercado linguageiro" italiano, a canção Parole, pa-

role foi logo enquadrada como "canção de amor". A competência de

ordem semântica pode explicar o fato, no âmbito discursivo:a língua

italiana é de uma sonoridade maravilhosa e a cantora Mina estava no

auge de seu sucesso ao cantar esta música, ao lado do ator Alberto

Lupo. Havia um "contrato de empatia" entre os dois e este contrato

passava, forçosamente, para o grande público. A canção romântica in-

terpretada por um duo vocal era algo bonito, agradável e "moderno",dentro do a ir du temps .

Em outro "mercado linguageiro", o do Brasil, isso também ocorreu,

m as não com tanta intensidade. Havia uni público romântico, ligado

a este tipo de canção: a prova é que Paroles, paroles, de Dalida & Alain

Delon tornou-se aqui bastante conhecida e arrancou muitos suspiros

dos amantes da língua francesa ou da canção romântica, simplesmente.

M a s , seja como for, era uma canção de exportação um tanto quanto

"piegas" para ouvidos mais sensíveis, em um país onde se fazia boa

música.

A questão das duplas musicais é curiosa. Um duo vocal pode se

revestir de um aspecto positivo e cultural: assim, os duetistas de cordel

sã o bastante apreciados por diferentes ouvintes e por pesquisadores.

M as essa junção de vozes pode também revelar um lado não-positivo

e afastado de uma cultura musical brasileira mais sofisticada: basta pen-

sarmos na invasão de uma certa country musicou de duplas sertanejas na

música popular brasileira, sobretudo após a "era Collor" (anos 1990).

Mas é difícil emitir juízos de valor! Tudo depende da situação de co-

19 3

 

Análises do discurso hojeAs palavras d e u m a Análise do Discurso

municação, dos parceiros envolvidos no contrato musical, das visadas

que cantores e seus ouvintes perseguem.Acreditamos que tal ajustamento, no caso brasileiro, recorreu à pa-

ródia. Tentemos nos explicar um pouco mais: sabemos que Maysa não

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É por isso que chamamos aqui atenção para os saberes de crença ou

saberes partilhados. Não podemos fazer um julgamento negativo de urna

canção — e aqui voltamos a falar da versão original de Parole, parole

— sem tentar penetrar, ao menos mais um pouco, no mundo e na

situação em que ela foi criada.

Examinando esta canção do ponto de vista da competência Sernio-

lingüística, mas sempre levando em conta o ponto de vista da competên-

cia de ordem semântica, não podemos deixar de ressaltar o savoir-faire dos

autores italianos da letra e da música dessa canção: eles souberam empre-

gar aspalavras certasdo léxico italiano, para exprimir a idéia do poder e do

esvaz iamento do poder da palavra, enquanto elemento de sedução. A ironia

que percorre a letra da canção se contrapõe ao romantismo da música

em si.Assim, uma coisa é dita pelas vozes enquanto outra é expressa pelos

instrumentos musicais.A ironia é, pois, dupla nesse sentido.Vejamos agora como é a versão brasileira da canção. No caso dos

versos acima selecionados, tivemos em português:

O dito: V o c ê é o vento que traz violinos, rosas

O canto: Cafonices não agüento mais

O dito: Espera, rneu bem, ainda não disse tudo

O canto: De rosas, violinos,- esta noite não fale comigo // que estas

coisas se sentem na alma// quando trazem o amor de verdade // não

quando mentem, isto tens que sentir

O dito: Só mais uma palavra

O canto: Palavras,palavras.

A adaptação de um texto vindo de uma determinada cultura para

outra é sempre uma tarefa delicada. O que se pode fazer — o mais

viável no caso, seguindo a análisedo discurso que adotamos — é optar

por estratégias pontuais de ajustamento,que conterão um duplo jogo de

expectativas, organizado em torno dos atos de linguagem traduzidos.

194

era apenas uma simples cantora do vasto Brasil: era uma mulher inteli-

gente, crítica e com um "fino ouvido" musical. Ora, na época em que

realizou a versão de Parole, parole para o português, usou uma estratégia

bastante inesperada: a do humor.

Devemos compreender que uma canção romântica, como a italia-

na, ainda que apreciada pelo grande público, devia parecer "açucarada"

demais para intérpretes mais sofisticados, nos anos 1970, no Brasil.

Assim, a cantora brasileira e os músicos que fizeram o arranjo de

Palavras, palavras , tiveram uma interessante idéia, que foi, é claro, com-

partilhada pela voz masculina de Raul Cortez: não levaram comple-

tamente a sério o romantismo da canção italiana. Assim, permitiram

que uma certa vis cômica se introduzisse na versão brasileira. Em vez

do tom um pouco dramático (ainda que amargo-irônico) da cantora

e do ator italiano22

, vimos surgir na versão brasileira um outro tomque orienta a ironia, maliciosamente, em direção a um certo "ar de

deboche",expresso (ainda que discretamente) na voz dos personagens

brasileiros.

A passagem de canção romântica à canção-paródia-do-romanüsmo im-

plica uma mudança de visada. A visada primeira apontava para uma

direção; a segunda passa a apontar para uma outra. Em outros termos:

a ironia de Parole, parole não é paródica (se considerarmos a canção em

sua totalidade);a ironia de Palavras, palavras é paródica, pois destrói ou

desvia (ainda que de leve) o objetivo primeiro da canção original.

Tentemos explicar este "desvio" pelo procedimento de ordem se-

mântica: pode-se talvez dizer que a versão brasileira levou em conta o

meio cognitivo mutuamente partilhado pelos admiradores da cantora

Maysa e do ator Raul Cortez. Pode-se verificar então, na "recons-

trução" brasileira de Parole, parole , um certo apelo aos saberes de co-

nhecimento. Em outros termos: os brasileiros — aqueles, com maior

22 Literalmence assumidos, diga-se de passagem, na versão f rancesa.

195

 

Análises do discurso hoje As palavras de uma Análise do Discurso

conhecimento musical — não aceitariam um a canção de uma dupla— ainda que fosse dotada de ironia —, mas aceitariam uma canção

das versões italiana e francesa da canção mantêm ainda hoje sua suti-

lidade e irônica leveza. H oje, no entanto, defendemos ta l termo, qu e

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onde houvesse, de modo mais ou menos visível, um certo tom "ma-

landrinho" inserido em uma situação dita "romântica".

O que nos surpreendeu, ao tomar conhecimento dessa versão, háalguns anos, mais precisamente, há sete23, foi o uso do termo "cafonice"

em lugar do elegante "Caramelle non ne voglio piü". Porém, as com-petências Semiolingüística e situacional conseguiram nos ajudar a me-

lhor entender a razão do uso de tal termo. Nos anos 1970, termos tais

como "cafona", "cafonice", ainda que v indos da gíria, eram utilizados,eram "moderninhos". Faziam parte do estilo coloquial da época, semgrandes problemas. Mas, mesm o assim, será que caberiam em um poe-

ma, já que a letra de uma canção romântica, como a que examinamos,é um a espécie de poema? E , insistimos — no caso da canção italiana

— um poema/ letra de canção inteligente, que fez uso de estratégias

metalingüísticas e irônicas? Sim, tudo é possível para aqueles que pos-suem requintes paródicos e coragem para aplicá-los.

4. Três parágrafos para concluir

Na verdade serão apenas algumas palavras para fechar o que foi dito,ainda levando em conta o nosso exemplo musical: no caso da adapta-

ção brasileira, talvez — e insistimos nesse "talvez"— , tenha havido um

forte desejo de se infringirem regras ou normas de um gênero ligadoà linguagem poética, uma grande vontade de transgressão oriunda, é

be m possível, po r parte da cantora/ adaptadora M aysa, transgressãoessa confi rm ada pela "atuação" de seu parceiro na canção, o ator Raul

Cortez.

Em nosso artigo anterior, sobre o mini-corpus aqui apresentado,

questionamos e chegamos a criticar o uso do termo "cafonices", vin-do da gíria, term o que se desgastou com o tempo, enquanto as palavras

' Através do CD O melhor de Maysa. BMG, s/d.

196

soube mudar a visada da canção romântica vinda da Europa, acultu-rando-a, po r meio da paródia, aos nossos climas tropicais. Consciente

ou inconscientemente, tal uso revela ou desvela um a carnavalização do

texto poético, se m dúvida.M as tais interp retações — que podem ser bem aceitas ou não, se -

gundo os diferentes leitores-interpretantes — só nos foram possíveisatravés de alguns "instrumentos" fornecidos pela T eoria Semiolingüís-

tica, "instrumentos" qu e tentamo s aqui descrever, ainda que de forma

panorâmica.

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198

POR UM REMODELAMENTO DASA B O R DA G E NS D O S E F E IT O S DE R E A L ,E F E IT O S D E FI C ÇÃ O E E FE I T O S DEGÊNERO

Emíl ia Mendes (UFMG) *

1 . Considerações iniciais

Na perspectiva da Teoria Semiolingüística de Patrick Charaudeau, os

efeitos de discurso produzidos pela troca linguageíra constituem da -dos essenciais para a encenação da situação de comunicação, já que

são tanto inerentes ao processo de transação entre os sujeitos quanto

a própria resultante do processo de significação. A lém desses efeitos

constitutivos, observamos, na teoria supracitada, três outras categorias

de efeitos que auxiliam na composição da encenação discursiva: (a)De um lado, tem os os efeitos de real e de ficção descritos no Langage

e t discours (1983) cuja concepção recai sobre uma visão de real/ cam-

po da racionalidade e ficção/ campo da irracionalidade, (b) De outrolado, temos os efeitos de gênero descritos na Gmmmaire du sens et de

Yexpression (1992) que estão relacionados a uma problemática dos pa-râmetros de restrição qu e cada gênero de discurso deve seguir.

Parece-nos que a atual caracterização destes efeitos e a suaviabili-

dade m etodológica como instrumento de análise pode m ser revisita-

dos e transformados à luz do estágio atual da teoria e também através

1 O presente trabalho foi realizadocom o apoio do PRODOC-CAPES (Programa de

A p o i o a Projetos Institucionais com a Participação de Recém-doutores) —B r a s i l .

 

Análises do discurso hoje Por um remodelamento da sabordagens

do s efeitos de real , efeitos de f icção e efeitos de gênero

de uma concepção experiencialista da linguagem desenvolvida, a priori,

por LakoíF e Johnson ([1980] 2002) e, em análise do discurso, por Au-estatuto do gênero permanece factual e a simulação de mundo possívelsomen te colabora para a sua composição; (3) ela é predominante quando

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chlin (desde os anos 1990 até os dias atuais). Ass im, nosso objetivo érepensar os mecanismos de identificação dos referidos efeitos a partirdos próprios instrumentos oferecidos pelo estágio atual do quadroteórico-metodológico fornecido pela análise do discurso. E is alguns

pontos nos quais nos apoiaremos: competência discursiva, memória

discursiva, a noção de gênero situacional, a perspectiva da ficcionalida-de no discurso, a interdiscursividade, dentre outros.

No presente artigo, adotaremos o seguinte procedimento: num pri-meiro momento, exploraremos a relação entre flccionalidade, estatuto,efeitos e a questão dos gêneros; em seguida, trataremos da questão dosefeitos de real e efeitos de ficção; num terceiro momento, abordaremosos gêneros de discurso, sua ancoragem situacional e os efeitos de gêne-

ro; por fim , argumentaremos em favor de uma v isão experiencialista daquestão e por uma identificação de tais efeitos a partir de noções hojeestudadas pela análise do discurso.

2. Flccionalidade, gêneros, estatuto e efeitos

T emos desenvolvido nossa pesquisa seguindo um a linha de pensam en-to que preconiza a existência de tipos de flccionalidade 2. A descriçãodestes t ipos é importante para qu e situemos o modo de agir do s efeitos

que pretendemos aqui estudar. Grosso modo, definimos flccionalidade

como a simulação de um mundo possível. Ela pode ocorrer em pelomenos três formas: (1) ela é constitutiva quando este mecanismo de si -mulação é a base da existência do fenôm eno, por exem plo: a língua, amatemática , o sistema binário, dentre outros. Esta modalidade não in-

terfere no estatuto nem nas relações contratuais empreendidas entre ossujeitos comunicacionais; (2) ela é colaborativa quando auxilia na cons-tituição de um dado gênero. Um exemplo deste tipo é a utilização dereconstituições ou simulações de fatos em reportagens televisivas. O

Cf. M endes (2004a, 2005).

200

há a dominância de simulações de situações possíveis, logo, o estatutodo gênero é ficcional. E ste tipo abarcaria a percepção mais clássicaque temos do termo "ficção". Pode ocorrer não só em gêneros como

conto, romance, piada, charge, como também aparecer em gêneros que

nã o seriam a priori de estatuto ficcional, como, por exemplo, uma pu-

blicidade ficcional. N estes casos, são os dados do con trato situacionalqu e no s ajudam a reconhecer o estatuto factual ou ficcional de umdado gênero. Seriam estes os dados: domínio de referência (tipos de

saber), instituição social, formas de troca (quem se endereça a quem) e,por fim, dados periféricos como paratextos, indicações outras, suportede v eiculação, etc. A ssim, para estes dois últimos tipos, a flccionalidade

é sempre contratual e situacionalmente estabelecida.A classificação acima descrita é aplicada aos gêneros de discurso.

Estes, por sua vez, são situacionalmente identificados e obedecem arestrições, conforme Charaudeau (2004). Os efeitos que pretendemosestudar aqui ocorrem no interior dos gêneros e, de maneira geral, nadatêm a ver com a determinação de seu estatuto factual ou ficcional.

Ass im, no interior de cada gênero, há um entrelaçamento de efeitos de

real, efeitos de ficção e efeitos de gênero. Para i lustrar, podem os citaro gênero "charge", que situacionalmente possui estatuto ficcional. Em

seu interior, podemos encontrar efeitos de real, como a referência adados históricos e sociais aos quais o chargista-enunciador se refere. O

recurso à simulação como instrumento pedagógico é um efeito de fic-çã o dentro do gênero factual "aula". U m jornalista que use a mençãoà estrutura do gênero teatral tragédia em uma "notícia"3 poderá criarum efeito de gênero em um gênero de estatuto factual.

A ssim, a discussão que nos interessa neste momento é localizada nointerior dos gêneros de discurso, embora percebamos a existência de

um jogo de estratégias entre estatutos e efeitos.

3 Sobre o uso de estruturas datragédia em notícias, consultar: MACHADO, Ida L."Lê

fait divers:Tragédie moderne?" Rencontres. São Paulo: s/d? 1995, n.6, p. 15-25.

201

 

Análises do discurso hoje

3. Efeitos de real e de ficção

Por um remodelamento da s abordagem do s e f e i t o s de real, e f e i t o s de ficção e e f e i t o s de vene.ro

Parece-nos que a grande dificuldade em responder à questão "o que

é um efeito de ficção" ou "o que é um efeito de real" se localiza no fato

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Para Charaudeau ([1983] 2008), um ato de linguagem é uma encena-

ção que se articula a um projeto de fala. Este trabalho de encenação

consiste em fazer apostas, propor contratos, correr riscos e se diri-

gir rumo ao desconhecido através da expedição da linguagem. Nessa

perspectiva, efeitos de real e de ficção criariam espaços cênicos nos

quais vemos representados efeitos de discursos que poderiam ir dobem-estar ao mal-estar conversacional, de acordo com a concepção

de Auchlin (1990). Em Charaudeau (1992), vemos também a idéia de

complementaridade entre estes efeitos e o aconselhamento de que

devem se r tratados conjuntamente.

A seguir abordaremos a exposição dos efeitos, ma s gostaríamos de res-

saltar um fato: a definição destes é circular, pois, naquele momento, a defi-

nição que se tinha de ficção (cf.M E N D E S , 2004a) era "algo oposto a real".

3, 7. O s e f e i t o s de ficção

Charaudeau (1983, p. 95) diz o seguinte sobre este assunto:

Nossa hipótese é a de que esses efeitos de fala — por mais diversos que

eles sejam — e os meios que permitem engendrá-los concorrem para

criar dois espaços cênicos da linguagem:

- Uma cena de ficção pontuada por todos os procedimentos discursivos

qu e produzem efeitos de ficção.— Uma cena de real localizada po r todos os procedimentos discursivos qu e

produzem efeitos de real.4 (Tradução nossa)

" Notre hypothèse est que cês effets de parole —- aussi divers qu'il soient — et lês

moyens qui permettent de lês engendrer concourent à créer deux espaces scèniquesde langage:

— Une scène de fiction mise en place par touces lês procedures discursives qui produi-sent dês effets de fiction.

- Une scène de réel mise en place par toutes lês procedures discursives qui produisent

dê s effets de réel.

202

de que o teórico — e ele não é o único — não define muito claramen-

te o que é ficção. Por outro lado, quando define o que é real, ele o faz

definindo-o como sendo o oposto da ficção,o que pode ser visto nesta

passagem: "Os efeitos de real devem ser compreendidos em oposição

aos efeitos de ficção"5 ( C H A R A U D E A U , 1.983, p. 97; tradução nossa).

A criação do lugar de ficção seria um a maneira de responder a umadupla questão, conforme Charaudeau (1983, p. 95):"como posso saber se

eu existo se eu não me vejo viver no mundo?" e "como eu posso dizer queeste mundo existe se eu não tenho senão visões parciais deste mundo?".

De acordo com o teórico acima mencionado,a ficção seria o lugar

onde poderíamos fabricar uma história com início e fim, um lugar no

qual poderíamos ter a visão total de uni destino; uma visão unificada

deste mundo parcelado, fragmentado, um lugar no qual poderíamos ver

a nó s mesmos. Nessa perspectiva, a cena de ficção é assim definida:

Se tal é a razão da cena de ficção, então podemos dixer que ela representa o

lugar no qual esta busca do impossível é tornada possível pelo viés do imagi-

nário,mediação que permitiria a todo sujeito construir urna imagem de uni-

cidade existencial do homem.6 ( C H A R A U D E A U , 1983, p. 96; tradução nossa)

Na perspectiva da Semioligüística daquela época, poderíamos carac-

terizar a ficção da seguinte maneira: a partir do momento no qual acei-

tássemos que a ficção existiria onde não há possibilidade de verificação

racional, então compreenderíamos que a porta se abriria sobre o irracio-

nal: o mistério, a magia, o acaso, o maravilhoso, o sobrenatural, onde se

encontram as forças do bem e do mal. Então um a outra questão é ne-cessária: — O que é o irracional?— O que não é provado pela ciência?Hoje sabemos que a ciência não é mais esta entidade sacrossanta que dita

5 Lês effets de réel doivent être compris en opposition aux effets de fiction.6 Si celle est Ia raison de Ia scène de fiction, alors on peut dire qu'elle represente lê lieu ou

cette quête de rimpossible est rendue possible par lê biais de rimaginaire, mediation qui

permetrait à tout sujei de se construire une image de Punicité existencielle de 1'homrne.

203

 

Análises do discurso hoje

o que é o real, o que é a verdade e o que é a racionalidade. Logo, pode-

mos concluir que o irracional não é critério para caracterizar o discurso

P o r u m remodelamento da s abordagem do s efeitos de real, efeitos de i c ç ão e efeitos de gênero

para o futuro, sem que isso recaia sobre o "irracional", neces-

sariamente. Uma outra possibilidade de exemplificação caberia

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ficcional. Poderíamos dizer que a própria irracionalidade possui uma ló-

gica racional. Por outro lado, não podemos ser ingênuos ao afirmar que

não exista o que é denominado pelo autor como "irracional"; contudo,

esses aspectos não são exclusivos de um discurso ficcional. Por exemplo,

pensemos nesta questão: uma crença religiosa é uma ficção no sentido

em que é uma crença no sobrenatural? Assim, como explicar a crença

em milagres, em vozes que se comunicam do além, em deuses que criam

universos e dão explicações sobre nossa existência, entre outras manifes-

tações? A nosso ver, tais questões estão ligadas ao universo de crenças de

cada indivíduo ou comunidade discursiva.A Bíblia,por exemplo,pode ser

vista como factual ou ficcional conforme a crença de quem a classifica.

Para uns, pode ser real, para outros, pode ser somente um romance ex-

tenso, uni romance-rio, com genocídio, travestis, muito sexo, adultérios,

sodomia, assassinatos,guerras, massacres, incestos... (ECO, 1992)

Uma outra característica do efeito de ficção, de acordo com Cha-

raudeau (1983, p. 96), seria o inteligível, com as seguintes variações:

(a ) A distância no tempo e no espaço (que produz o efeito do exo-

tismo). Parece-nos que discutir tal ponto é retornar à tese de

Hamburger7 (1986). A título de exemplo, poderíamos dizer que

é possível que relatemos nosso passado e que façamos planos

7 Levandoem consideração as categorias aristotélicas "Lírica" e "Epopéia", Hamburger

instituiu a classificação de urna modalidade de textos narrativos que reuniu sob a de-nominação de "gênero ficcional ou mimético". Em sua argumentação, levantou a hi-pótese da existência de marcas lingüísticas mensuráveis que seriam específicas do textoficcional e fez a restrição de que somente os enunciados de textos literários em terceirapessoa, ou seja, aqueles pertencentes ao gênero Epopéia seriam de fato ficcionais. Po routro lado, os textos literários era primeira pessoa, pertencentes à Lírica, não o seriam.

Na pesquisa realizada por esca autora, as especificidades do discurso ficcional produ-zido em terceira pessoa se apoiariam nos seguintes índices enunciativos: (a) presençade verbos que indicam processos interiores — pensar, refletir, crer, etc.; (b) empregomaciço de diálogos, do discurso indireto livre e do monólogo interior; (c)utilização deverbos de situação em enunciados que dizem respeito a eventos distantes no tempo eno espaço; e (d) empregode dêiticos espaciais e temporais com o uso do tempo verbal

mais-que-perfêico, como, por exemplo,"verbo no particípio passado + agora".

204

até mesmo sobre o que vivemos atualmente. Há poucos anos

presenciamos não só a passagem do século XX para o XXI, mas

também o começo de um novo milênio. Então, é perfeitamente

plausível alguém dizer que nasceu, que foi ao cabeleireiro ou

que defendeu uma tese no século ou no milênio passado,

(b)/b desproporçÕes das dimensões (o monstruoso). Sim, poderíamosdizer que há monstruosidade em uma narrativa mitológica, em

uma história de ficção científica com monstros alienígenas, por

exemplo. Contudo, há, também, monstruosidade em um livro de

patologia clínica, em um museu de anatomia humana; há mons-

truosidade em uma má formação fetal, o que não são fatos nada

ficcionais; ao contrário, são fatos suscetíveis de verificação.

(c ) As desproporçÕes dasquantidades (o enorme).As histórias de ogros

são bastante populares no caso.Podemos lembrar também de As

aventuras de Gull i ver , de Jonathan Swift. Entretanto, não devemos

nos esquecer dos casos de pessoas enormes citadas no Livro dos

recordes.Aí veremos casos de uma doença chamada acromegalia,

na qual a pessoa não pára de crescer em decorrência de uma

disfunção hormonal. Finalmente, poderíamos citar o caso dos

dinossauros: seus esqueletos são reais, encontrados em museus e

suas idades podem ser calculadas cientificamente.

(d) As desproporçÕes d as noções (o inacreditável). Parece-nos que essa

noção é relativa, porque ela depende do universo de crenças do

indivíduo: uma pessoa pode acreditar ou não em disco voador;

uma pessoa pode acreditar ou duvidar que o homem tenha ido

à lua; uma pessoa pode acreditar ou não nas promessas de me-

lhoria social do presidente da República.

3.2. O s efeitos de real

E m relação às cenas do s efeitos d e real, Charaudeau (1983, p. 97) afirma

que a fabricação de um lugar do real teria por função responder a

205

 

Análises do discurso hoje P o r u m remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de facão e efeitos degenero

um a outra angústia, a da solidão. Aqui ela é vista como o isolamento

de sua própria experiência que, nã o podendo se r partilhada, nã o seria

cinco sentidos. Se dissermos a palavra mesa, não necessitamos, necessa-

riamente, ter diante de nós uma mesa para saber da sua existência. Além

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nunca verificada e, dessa forma, nã o poderia ser objetivada. Esta busca

desencadearia, então, uma procura que consistiria em dar um valor

objetivo, isto é,já distanciado do sujeito, à experiência individual.Ta lfato solicitaria o consenso que os outros dariam a esta experiência, ou

seja, uni valor de verdade e um valor de generalidade.

Os efeitos de real devem então ser compreendidos em oposição aos efei-

tos de ficção. As duas cenas correspondem à nossa hipótese de fundo sobre

o ato de linguagem como encenação de quatro protagonistas sobre os dois

circuitos que denominamos interno e externo8. ( C H A R A U D E A U , 1983, p.

97-98; tradução nossa)

O teórico parte da hipótese de que todo sujeito sabe que a aventu-

ra da linguagem é um jogo estratégico entre os circuitos interno e externo

do ato de linguagem. Este jogo leva o sujeito a fabricar, pelos efeitos defala, a cena do real. Esta cena seria assinalada po r objetos, personagens

e eventos que são apresentadoscomo se eles existissem por si próprios,

tendo valor referencial (cópia da realidade),como se eles fossem trans-

parentes em face de um mundo verdadeiro, ordenado, organizado e

objetivado por um certo consenso que é evidenciado.

Nessa perspectiva, produzir efeitos de real é fazer apelo a um con-

senso qu e pode se apresentar sob diferentes figuras:

(a) Figura do tangível — que permitiria verificar o real através dos sen-

tidos (olfato, tato, visão etc.); estabeleceria um contato direto como mundo que engendra o mito do testemunho do espectador.

Obviamente, parece-nos que uma forma de verificar o real seria essa

figura do tangível. No entanto, nem tudo pode ser verificável através dos

8 Lês effets de réel doivent donc être compris en opposition au x effets de fiction. Lêsdeux scènes correspondem à notre hypochèse de fond sur 1'acte de langage commemise eii scène de quatre protagonistes sur lês deux circuits que nous avons appelé

interne et externe.

206

disso, esta palavra tanto pode estar em um discurso científico quanto em

um discurso ficcional. Temos também testemunhos forjados na mídia,

por exemplo, de pessoas que dizem ter visto, dizem ter ouvido coisas e

isso não corresponder exatamente aos fatos ou mesmo ser uma encena-

ção para convencer o público da veracidade dos fatos reportados.

(b) Figura da experiência — que permitiria verificar o real a partir de

uma vivência própria ou da de alguém; o partilhar do vivido.

Esse critério não nos parece muito convincente porque as experiên-

cias são subjetivas, e tanto a experiência de um fato qu e aprendemos

em um romance quanto a experiência realmente vivida constituem

experiências de um indivíduo e estas podem ser partilhadas. Pensemos

no caso de uma fábula de Esopo.Tornemos, po r exemplo,"A raposa e as

uvas". Nesse texto temos um a raposa qu e fala como os seres humanose desdenha, sentimento humano, das uvas que estão no alto e que ela

nã o consegue alcançar.Há, nesse tipo de relato, e não só nas fábulas, mastambém nos relatos mitológicos, uma "moral da história" que constitui

uma experiência para vários sujeitos. No entanto, esse tipo de relato

possui muitos "efeitos ficcionais", como vimos. Um outro exemplo,

seria o dos contos de fadas, muitas vezes considerados educativos para

crianças, que vão exatamente se basear em experiências vividas po r

seres nada reais:um lobo qu e finge ser a avó, um urso ou um sapo qu e

fala e que se transforma em príncipe, entre outras eventuais narrativas.

(c) Figura d o dizer — que constrói lugares de evidência, alguns ins-

titucionalizados (dicionários, por exemplo), outros registrados

na memória coletiva e configurados em provérbios, máximas,

expressões idiomáticas, estereótipos, enfim, toda fala qu e tenha

um valor de aforismo.

Não poderíamos afirmar qu e essas evidências sejam tão claras.Al-

gumas dessas expressões podem surgir exatamente do discurso ficcio-

20 7

 

Análises do discurso hoje P o r u m remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de f i c ç ão e efeitos degenero

nal. Basta pegar um dicionário de provérbios para que possamos ver

a profusão de referências a discursos institucionalizados ficcionais. A

(e ) Figura do dizer — representa a fala injuntiva e/ou performativa

que institui a verdade do dizer pela verdade do fazer que o

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título de ilustração lembramos alguns provérbios sobre animais, nos

quais estes possuem atitudes humanas:

• "Macaco, quando não pode comer banana, diz que está verde."

(grifo nosso)

• " Ca ch or r o não tem razão ." (grifo nosso)

• "C ac h o r ro de cozinha não quer colega." (grifo nosso) (MOTA,

1991, p. 83-139)

E mesmo alguns provérbios podem ser oriundos de textos ficcio-

nais, como é o caso, por exemplo, de provérbios que fazem menção

a fábulas ou a outros textos. Voltando ao exemplo de "A raposa e as

uvas": "Raposa de luvas não chega às uvas." (MOTA 1991, p. 229). As-

sim, tal critério de diferenciação do real e do factual se mostra muito

f luido.

(d) Figura do saber — mais ou menos codificada pelas ciências, re-

presenta as técnicas que permitiriam construir e verificar o ver-

dadeiro pelo raciocínio; é o mundo do inteligível estruturado

pela racionalidade.

Talvez esse fosse o critério mais exato para se definir o que pode-

ria ser o real. Contudo, várias experiências científicas, amparadas por

experimentos, mostraram-se equivocadas. Seja pelo acesso a técnicas

mais modernas, seja por novas descobertas. Há sempre a possibilidadede novas perspectivas científicas e, com isso, a mudança de paradigma

do que é o real. Como exemplo, citemos a crença de que aTerra era o

centro do universo; um tempo depois descobriu-se que aTerra girava

em torno do Sol e, em seguida, descobriu-se que o sistema solar é uma

migalha diante da imensidão do universo. O surgimento da informáti-

ca também foi muito importante, e, com ele, o aparecimento de novos

conceitos como o de realidade virtual. Assim, qual seria a diferença

entre ficção e realidade virtual? Não seria ela somente uma moderna

etiqueta para um velho fenômeno?

208

acompanha (é uma das chaves do discurso totalitário),

Essa é também uma noção muito oscilante. Pensemos, por exem-

plo, em histórias infantis, em mitos, fábulas, onde temos animais que

sãojuizes, governantes, legisladores, entre outros. E nesses casos, do

ponto de vista da Teoria dos Atos de Fala, poderíamos dizer, a partir

de Searle (1995, p. 5), que uma direção de ajustamento palavra-mundo

dentro da situação é instaurada.

Podemos ter também o discurso totalitário inserido em um dis-

curso ficcional. Lembremos, por exemplo, o filme de Charles Chaplin

O grande ditador que faz urna crítica ao nazismo. Da mesma forma que

a fala injuntiva de Hitler instaurava a verdade do dizer na época em

que foi ditador, a fala injuntiva do personagem "ditador" de Charles

Chaplin também o fez no referido filme.

4. Efeitos de gênero

Antes de tratarmos dos efeitos propriamente ditos, gostaríamos de fazer

um breve resumo do que é a concepção de gênero de discurso na con-

cepção da Teoria Semiolingüística. Para Charaudeau (2004), os gêneros

não devem ser determinados a partir de um só critério, mas sim apartir da

combinação de vários níveis e categorias. Dessa maneira, cada evento a ser

classificado traz um princípio de classificação que lhe é próprio e possuiao menos três dimensões a serem consideradas: (a) o nível situacional, que

permite reunir textos em torno de características do domínio de comu-

nicação; (b) o nível das combinações discursivas, que deve ser considerado

como o conjunto de procedimentos que deve ser invocado pelas instru-

ções situacionais para especificar a organização discursiva;e (c) o nível de

configuração textual, cujas recorrências formais são muito voláteis para

tipificar definitivamente um texto, mas podem constituir índices.

Os gêneros sofrem variações temporais, históricas, influências sociais,

dentre outros, ou seja, estão em constante mutação. Um exemplo disso é

209

 

Análises do discurso hoje Po r u ni remodelatnento da s abordagens do s e f e i t o s de real, efeitos de f i c ç ã o e efeitos de gênero

o gênero carta pessoal, que jã foi "missiva" e hoje é "mensagem eletrô-

nica".Assim sendo, os gêneros seguem formas rotineiras que circulam de

o gênero impõe: "Texto preliminar escrito pelo autor ou por outrem e

colocado no começo do livro."12 Como é possível observar na referida

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grupo para grupo, de situação para situação e que vão sendo transforma-

das e atualizadas. Eis o esquema desenvolvido por Charaudeau (2004):

ROTLN1ZAÇÃO DAS MANEIRAS DE DIZER EM UMA SITUAÇÃO DE COMUNICAÇÃO

=> USO DIFUNDIDO F ORA DA SITUAÇÃO DE ORIGEM => CRIAÇÃO D E UMA LÍNGUASEGUNDA "= > REINVESTIMENTO DESTA LÍNGUA SEGUNDA EM OUTRAS SITUAÇÕES.

Para ilustrar a questão, citamos o caso do gênero "auto". Antes

de Gil Vicente (1465-1536), tratava-se de um gênero trágico; após as

obras "transgressivas" do autor (p.ex.: Auto da Barca ao Inferno), tornou-

se cômico. Hoje não é mais uma ruptura escrever um auto cômico;

tornou-se trivial, rotineiro.

Além destas variações, o jogo de estratégias de captação, de sedução

e de persuasão empreendido pela comunicação também cria outras va-riantes genéricas: temos a transgressão e a mixagem de gêneros9. A mi-

xagem10 ocorre quando ha urna simplesjunção de gêneros ou de subgê-

neros. Observa-se que nesses casos não haveria, necessariamente, uma

mudança nas restrições do contato de comunicação, ou seja, o contrato

inicial é preservado. Um exemplo é o caso estudado por nós11 da coluna

"Diário de Bagdá" na qual podemos ter variantes do gênero "diário"

(diário íntimo, de guerra, de viagem, etc.) em um mesmo texto.

No caso da transgressão, há uma mudança de contrato e temos, de

acordo com Charaudeau (2004), o esquema: CONTRATO l "^INDIVIDUA-L I Z A Ç Ã O " = > TRANSGRESSÃO < = > CONTRATO 2. Um exemplo que consi-

déramos clássico da transgressão são os prefácios de Tutaméia, de João

Guimarães Rosa. Trata-se de quatro textos distribuídos ao longo do

livro, possuem a etiqueta "prefacio", mas não seguem as restrições que

9 A que rn possa se interessar, em Me nde s (2004b) esta questão é mais detalhada.10Termo utilizado pela Profa. Dra. Ida Luck Machado na disciplina:Seminário de Tópico

Variável em Análise ao Discurso:gêneros trangressivos. Pós-graduação em Estudos Lingüís-

ticos — Faculdade de Letras/UFMG, segundo semestre de 2003.11 Cf . Mendes (2004b).

210

obra, o primeiro "prefacio" poderia obedecer à restrição "preceder o

texto", mas os demais estão inseridos em meio aos contos que com-

põem o livro. O teor dos "prefácios", ou seja, a sua organização em

termos de categorias de língua e de discurso, também não segue o

que determinaria o gênero:apresentar o conteúdo da obra, relacioná-la

com outras, etc. Desta forma, poderíamos dizer que há uma ruptura das

restrições: o nome "prefacio" permanece, mas as restrições ali seguidas

são de um outro gênero:"ensaio" (o contrato 2). Neste caso,"prefacio"

passa a ser somente uma etiqueta e não a determinação de um gênero.

É interessante dizer que não se pode confundir transgressão de

gênero com transgressão a normas e padrões sociais. Por exemplo, de-

terminadas campanhas publicitárias da marca italiana Benetton podem

ser consideradas socialmente transgressivas, mas o gênero publicidade

permanece seguindo as mesmas restrições,ou seja, não há ruptura.

Fizemos todo este percurso para chegar à questão dos efeitos: um

efeito é mais localizado e se dá no interior do gênero. A mixagem

ocorre com a fusão das restrições genéricas. Por outro lado, a trans-

gressão muda o contrato do gênero, ou seja, a situação de comunicação

é transformada. Pode-se dizer que há uma gradação entre efeito de

gênero, mixagem e transgressão.

Após este percurso, retomemos a definição de efeitos de gênero. De

acordo com Charaudeau (1992,p. 698),"este efeito resulta do emprego

de alguns procedimentos de discurso que são suficientemente repetiti-vo s e característicosde um gênero para se tornarem o signo deste". (Tra-

dução nossa).13 Em síntese:para obter este efeito, valemo-nos de algumas

características de um gênero A e as usamos em um gênero B. Cria-se,

assim, uma "ilusão" de que o texto pertence ao gênero A invocado, mas,

na verdade, o texto pertence ao gênero B.Vejamos alguns exemplos:

12 ©2004 Enciclopédia Koogan-Houaiss Digital.13 Cet effet de 1'emploi de certains procedes de discours qui sont suffisament répétitifi

et caractéristiques d'un genre pour devenir lê signe de celui-ci.

2ÍÍ

 

Análises do discurso ho j e

a) No Submarino [loja virtual], tudo se clica, tudo se transforma(texto B) — efeito de citação acadêmica de Lavoisier — "Na na-

P o r u m remoãelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de f i c ç ão e efeitos de gênero

Observamos que há um efeito do gênero artigo acadêmico no

exemplo em questão.No entanto, é perfeitamente possível dizer que se

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tureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma." (texto A)

b) Um é bom, dois são bons e 5 são bons demais (texto B) (publici-

dade a respeito de 5 novos colunistas que falam de tecnologia doYahoo!) — efeito de provérbio (texto A) — estamos consideran-

do provérbio um gênero. Neste exemplo há uma desconstrução

mas as restrições do gênero são preservadas. Podemos ver também

este tipo de deslocamento,mas com o efeito de provérbio preser-

vado, na letra da música "Bom conselho"14, de Chico Buarque.

c) "Era uma vez...", marca lingüística já cristalizada usada em con-

tos de fadas; temos vários efeitos com esta estrutura:Era uma vez

no Oeste (Sérgio Leone, 1969); Era uma vez na América (Sérgio

Leone, 1984); Era uma vez um chalezinho — nome de um res-

taurante em Belo Horizonte, dentre outras possibilidades.

Este recurso é também usado em paródias, pastiches e plágios.Como é possível verificar, ele também se relaciona com a questão do

estilo.Vejamos o exemplo abaixo, retirado do ensaio Sobre falar merda,

de Harry Frankfurt, (2005, p. 9) :

Um dos traços rnais notáveis de nossa cultura é que se fale tanta merda.

Todos sabem disso. Cada um de nós contribui com a sua parte. Mas ten-

demos a não perceber essa situação.A maioria das pessoas confia muito

em sua capacidade de reconhecer quando se está falando merda e de

evitar se envolver. Assim, o fenômeno nunca despertou preocupações es-peciais nem induziu uma investigação sistemática.

Por causa disso, não temos uma idéia clara do que é falar merda, da razão

para que se fale tanta ou para que serve. E nos falta também uma avalia-

ção conscienciosa do que isso significa para nós. Em outras palavras, não

dispomos de uma teoria. Proponho iniciar o desenvolvimento de uma

compreensão teórica do que significa falar merda, oferecendo algumas

análises experimentais e exploratórias. [...]

1972 © Marola EdiçõesMusicais.

212

trata de uma imitação do estilo acadêmico. Este efeito de gênero acadê-

mico tem uma função irônica neste caso, pois o tema "falar merda" não

faria parte do rol das coisas nobres a ser pesquisadas pela academia.

5. A via do experiencialismo

Pensamos que o reconhecimento de um efeito — dizemos "reconhe-

cimento", pois a identificação deste se dá freqüentemente a posteriori

— está profundamente relacionado com a experiência que temos do

discurso e com a competência discursivaque adquirimos ao longo de

nossa vida. Eis a visão de Auchlin (2003, p. 138):

O discurso é, para mim, um dado de experienciação subjetiva particular

no qual se misturam e com o qual contribuem dados perceptivos ime-

diatos e representações complexas associadas a seqüências de unidadeslingüísticas. O que nomeamos "discurso" é o vivido. Nessa perspectiva,

seu estudo não se reduz, legitimamente, nem a manipulações cognitivas

conceituais-inferenciais, nem a seqüências de unidades lingüísticas, po r

mais que sejam complexas e organizadas. [...]

A análise experiencial do discurso pressupõe um dispositivo, "órgão" ou

"sistema" que tem como tarefa elaborar em experienciação o tratamento

seqüencial de unidades lingüísticas e, inversamente, articular a experiência

interna em seqüênciasde unidades lingüísticas.É este "órgão da experiencia-

ção discursiva" que nomeio "competência discursiva". (Tradução nossa)'3

15 Lê discours est pour mói une donnée d'expérienciation subjective particulière dans

laquelle se mêlent et à laquelle contribuent données perceptives jmmédiates et repré-

sentations complexes associées aux suites d'unités linguistiques; cê que nous nom-m o ns "discours", c'est du vécu.A cê ritre, son étude ne se réduit légitimement ni à

dês manipulations cognitives conceptuelles-inferentíelles, ni à dês séquences d'unités

linguistiques, fussent elles complexes et organisées. [...]. Uanalyse expérientielle du

discours suppose ainsi un dispositif, "organe" ou "système", ayant à charge d'élaborer

en expérienciation lê traitement séquentiel d'unités linguistiques, et inversement

d'articuler 1'expérience interne en séquences d'unités linguistiques; c'est cet "organe

de rexpérienci arion discursive" que je nomme "compétence discursive".

213

 

Análises do discurso h o j e P o r u m remodelamet i to da s abordagens do s efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero

De acordo comAuchlin (1997) a com petência discursiva deve servista como uni sistema auto-regulado melhorado, ou seja, aberto ao

sujeito comunicante utiliza para construir os gêneros de discurso, trata-se de um posicionamento, como o pensam Amossy e Koren (2004).

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tempo. Ela é global, de maturação lenta, organizada em uma suces-

são de estados semi-estáveis e sem real estado terminal. Cada estado

semi-estável, enquanto é funcional , é (virtualmente) terminal e vivido

como tal. A m udança de estado semi-estável desencadeia, necessaria-mente, um a reorganização do conjunto da competência discursiva,

isto é, uma modificação do modo de existência linguageira da pessoacomo um todo.

Assim, através da competência discursiva que adquirimos e renova-mos ao longo de nossa existência, aprendemos a reconhecer, através dovivido discursivo, do experienciado, os efeitos de ficção, de real e de gê-nero. É o fato, por exemplo, de termos passado pela experiência de umconto de fadas que nos faz reconhecer sua estrutura, suas formas crista-lizadas como "era uma vez" e "se casaram e foram felizes para sempre".

Esta competência é também cultural e, em decorrência disso, sujeita ainúmeras variações. Por exemplo, no caso dos contos de fadas, as ver-sões em língua francesa, em geral, termin am com "se casaram e tiveram

muitos filhos". A idéia de representação da felicidade sem m encionarfilhos/ com filhos nã o deixa de ser um dado relevante.

É esta mesma competência que nos auxiliará no reconhecimento

dos gêneros de discurso, de suas restrições, de suas transgressões, mixa-

gens, dentre outros aspectos.

6. Uma proposta possível

A idéia que go staríamos de sustenta r aqui é uma caracteriz ação dosefeitos a partir da experiência que temos do discurso. Não levaríamosem consideração a oposição ne m sempre verdadeira entre "real"/ obje-tividade e "ficcional"/ subjetividade proposta por Charaudeau (1983).

A nosso ver, a questão da objetividade/ subjetividade seria vista como

uma marca lingüística e não como a expressão do suje ito ou a con-figuração do objeto. A escolha de uma enunciação coni marcas qu e

indicam subjetividade (eu) ou objetividade (ele) é uma estratégia que o

214

Assim sendo, um "efeito" é definido em função dos fatos do mun-do, é uma reunião de vários critérios, é sempre relativo à situaçãode comunicação. O diagnóstico depende da competência de cada

um, de seu conhecimento de mundo e de suas crenças.A seguir, tentaremos demonstrar as duas noções que, a nosso ver,

seriam básicas para o diagnóstico de um efeito: estatuto do gênero eheterogeneidade discursiva.

O reconhecimento do estatuto ao qual o gênero de discurso per-tence possui um papel relevante na identificação dos efeitos. É estaexperiência em relação aos gêneros do discurso que possuímos quenos permitiria reconhecer o efeito de um gênero A em um gênero

B. Além disso, nem sempre uni efeito pode ser considerado enquantot a l . Por exemplo, quando M achado de Assis escreve "Ao vencedor as

batatas" no Quincas Borba, não se trata de um efeito. No entanto, se en-contrarmos esta frase em um texto jornalístico, ela poderá se constituirum efeito de ficção em um gênero de estatuto factual. Ainda men-cionando M achado de Assis, a sua descrição do Rio de Janeiro, por

exemplo, é um efeito de real dentro de sua obra de estatuto ficcional.É também possível ter um efeito de ficção em um gênero de estatutoficcional. U m exemplo é a intertextualidade literária.

Um outro modo de diagnóstico agrupa as duas modalidades de he-

terogeneidade: constitutiva e mostrada ( A U T H I E R - R E V U Z , 1982). A partir

da interdiscursividade vários efeitos podem ser percebidos e terem iden-tificadas as suas fontes. Reconhecemos que nesses casos pod e haver umacerta falta de exatidão p ara a classificação, pois as fontes dos efeitos podemse diluir e até mesmo se fundir a outras em um amálgama complexo. Poroutro lado, a heterogeneidade mostrada é bastante explícita, é perceptívelatravés de citações textuais ou livres, discurs o direto, aspas, dentre outraspossibilidades de ocorrên cia deste tipo de heterogeneidade.

A seguir trataremos brevemente de alguns exemplos, mas não seráum a análise exaustiva de casos.

No exemplo l temos a co-ocorrência de efeitos de real e de ficção:

2J5

 

Análises do discurso hoje P o r u m remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de facão e efeitos degenero

Exemplo í:

Buemba 2! GERALDO, O CARECA! Estão escrevendo uma biografia

Exemplo 2 :

O soldado agonizava; seu companheiro entre os fedayin soluçava, por

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meiga do Alckmin Picolé de Chuchu chamada "Alckmin, o Menino, o

Homem, o Político".E olha este trecho: "Geraldo e M aria Lúcia dança-

vam, o chão era de estrelas, naquele salão a impressão de que existiam só

os dois, embalados pela doce melodia de Ray Conniff". Quer mais? "Ge-

raldo era cobiçado pelas moças da cidade, mas seu espírito frugal, alheioàs vaidades, impedia-o de valer-se de sua condição para obter vantagens".

Novelão Mexicano M a d e in Brazil do SBT. Vai virar minissérie do SBT:

O Galã de Pindamonhangaba! Não tinha aquele Pedro, o Feio? Agora é

Geraldo, o Careca! Rarará. (SIMÃO, José. Folha de São Paulo - Ilustrada,

17fev. ,2006)

Podemos dizer que a coluna de José Sirnão é um artigo de opi-

nião, portanto, um gênero de estatuto factual. É a partir desta deter-minação e de nossa competência em reconhecer marcas de hetero-

geneidade que identificaremos: (a) os efeitos de real marcados pelas

aspas, ou seja, uma citação textual de um gênero factual, a "biografia"

Alckmin, o Menino, o Homem, o Político; (b ) os efeitos de ficção re-

presentados pela menção aos gêneros novela televisiva e minissérie,

ambos de estatuto ficcional. Há citação de uma novela Pedro , o feio;

(c) os efeitos de gênero que perpassam as citações textuais feitas por

José Simão. Mesmo pressupondo que, nesse caso, a biografia (texto

B) seja f ac tua l , percebemos que há um efeito do gênero romance

(texto A) como "o chão era de estrelas", o destaque para um traço de

nobreza do herói romanesco "seu espírito... impedia-o de valer-se de

sua condição para obter vantagens". A questão do humor e da ironia

são essenciais para a compreensão deste trecho, como, por exemplo,

"galã de Pindamonhangaba", mas não nos ateremos a esta análise

neste momento.

No exemplo seguinte, temos um relato de guerra feito por Robert

Fisk, ou seja, um gênero de estatuto factual.

21 6

compaixão, enquanto o amigo se debatia de dor.As balas norte-ameri-

canas o haviam atingido nas pernas, e um a médica estava tentando lenta-

mente, co m cuidado infinito, remover a bota direita de seu pé. Ele se recu-

sava a gritar, se recusava a mostrar o sofrimento pelo qual estava passando,

embora seus olhos estivessem cerrados enquanto a mulher trabalhava na

bota, desfazendo os laços, e temendo cortar a pern a de sua calça po r medo

daquilo que poderia encontrar. [...]" (F ISK, Robert. Folha de São Paulo , 5

abr.,2003,p.A24)

Vemos aqui um efeito do gênero romance: há a aparição do he-

rói e seus aliados (o soldado e seu grupo), a marcação do inimigo

(balas norte-americanas) e a ação. Valemo-nos de nossa competência

em reconhecer uma estrutura romanesca e da heterogeneidade para

podermos identificar o efeito. No entanto, sabemos que Robert Fisk

é partidário do Novo Jornalismo, que se vale desse tipo de estrutura

romanesca para escrever.Assim sendo, retomamos a questão da estreita

relação entre efeitos e estilo: este tipo de procedimento seria somen-

te um efeito de gênero ou seria uma marca estilística? No caso em

questão, como a estrutura romanesca perpassa todo o texto, não seria

o caso de considerarmos também a possibilidade de unia rnixagem?

Infelizmente, não temos ainda respostas para estas questões, que aqui

ficam para que inquietem também outros estudiosos do assunto.No exemplo 3, temos um efeito de ficção em um gênero de esta-

tuto ficcional. Para um melhor entendimento, vamos dar uma pequena

explicação.Em 24 de abril de 2004, a F o l h a de São P a ul o publicou uma

série de entrevistas no caderno "Mais!", com o título: "É tudo menti-

ra! "16Trata-se de entrevistassimuladas,portanto ficcionais,de escritores

de renome {Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Julien Gracq, Mário

16 Este é o corpus de nossa pesquisa sobre "ethos forjado", desenvolvida com o apoio

do PRODOC/CAPES.

217

 

Análises do discurso hoje

de Andrade, etc.) que até aquele momento não tinham tido, ou não

tiveram em vida, este tipo de contato mais direto com a mídia (vale

P o r u m remodelamento das abordagens dos efeitos de real, efeitos de ficção e efeitos de gênero

Enfim, a nossa proposta não se esgota aqui; sabemos que ainda há

situações a ser pensadas, problemas e questões a ser resolvidas.Os gê-

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dizer que é um distanciamento voluntário, uma decisão pessoal e não

uma condenação ao ostracismo por parte da mídia).As entrevistas são

feitas/ fabricadas por outros escritores e/ou críticos literários.

No caso de Dalton Trevisan, que tomamos aqui como exemplo, o

"entrevistador" foi Nelson de Oliveira e o título da entrevista remete

à obra mais conhecida do referido escritor; Entrevista com o Vampiro .

Estatuto do gênero: entrevista ficcional.

Exemplo 3 :

Nelson de Oliveira: — Como o sr. se vê como escritor? Conseguiria

traçar seu auto-retrato?

DaltonTrevisan: — De jeito nenhum. Eu jamais me vejo. Detesto espelhos.

No exemplo e no título da entrevista, vemos uma obra de ficçãoser citada textualmente e, em seguida, um jogo com a imagem de

vampiro na resposta forjada de Dalton a seu entrevistador. Estes dois

casos são efeitos de ficção dentro de um texto de estatuto ficcional.

7. Considerações finais

Os efeitos de gênero, efeitos de real e efeitos de ficção podem compor

qualquer gênero de discurso, independentemente de seu estatuto. Estes

efeitos estão ligados à competência discursivae sua identificação se dá pelo

estatuto e pela heterogeneidade discursiva, ou seja, um"efeito" é uma reu-

nião de vários critérios e é sempre relativo à situação de comunicação.

Vistos como instrumentos metodológicos de análise, os efeitos po-

dem auxiliar no estudo de diversos corpora, sejam eles de estatutos fac-

tuais ou ficcionais.

E interessante observar que o diagnóstico de um efeito está na ins-

tância da recepção e depende da experienciação que cada um possui

do discurso.

21 8

neros de discurso estão sempre em mutação, e cada um deles traz novas

fronteiras a ser desbravadas, vencidas.

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220

HUMOR E M Í D I A : D E F I N I Ç Õ E S ,

GÊNEROS E CULTURA

C la u d e Ch ab r o l (GRPC, Universidade d e Paris III)

1. Definir o ato humorístico e os contratos midiátícos

Falar de fatos humorísticos na comunicação midiática supõe primeira-

mente que se restrinja o campo de análise apenas às produções inten-

cionalmente "humorísticas", o que exclui imediatamente, como in-sistem Patrick Charaudeau e Anne Marie Houdebine, a questão mais

geral do Risível e do Riso.

Naturalmente, o destinatário pode não reconhecer essa intenção

(desconhecimento), entendê-la mal (incompreensão), ou ainda recu-

sá-la (redução normativa) por razões que tentaremos explicar mais

adiante. É preciso também notar que é raro comunicar, de maneira

homogênea e contínua, de forma "humorística". Salvo exceções, uma

conversa que se baseie apenas numa troca de brincadeiras e zombadas

é bem pouco freqüente fora de cena teatral ou do cabaré.

Evocaremos então as comunicações que tenderiam — por meio

de uma construção semiótica complexa, intervindo freqüentemente

sobre várias substâncias (verbal, icônica, sonora) e dirigida a um ou a

vários destinatários — a provocar um efeito local "perlocutório" de

conivência, fundada nas características muitas vezes deslocadas de um

enunciado e de uma enunciação. A intenção de conivência domina

necessariamente a intenção hostil ou agressiva, já que se supõe que o

locutor midiático não pode se permitir ofender seu leitor-destinatário,

 

Análises do discurso hojeHumor e mídia: definições, gêneros e cultura

nem mesmo suas crenças e valores profundos. Aqui o alvo, a vítima eodestinatário são por definição distintos.

Falaremos, então, com Charaudeau (2006, p. 2), de um tipo de ato

caso (por exemplo, JCS publicidade; AMH e Mae Pozas, desenhos de

imprensa).

O que opõe o ato humorístico ao ato de linguagem deAustin seria

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de enunciaçao humorística como de:

[...] certo modo de falar, no interior de diversas situações, com fins de

estratégia para fazer de seu interlocutor um cúmplice. Como todo at o

de linguagem, o ato humorístico é a resultante do jogo que seestabelece

entre os parceiros da situação de comunicação e os protagonistas da situa-

ção de enunciaçao. Somos assim levados, para estudar o ato humorístico,

a descrever a situação de enunciaçao em que ele aparece, a temática de que é

objeto, os procedimentos linguageiros que o fazem funcionar e os e f e i t o s qu e

ele é susceptível de produzir no auditório.

Assumir isso não significa que se trate de um ato de linguagem em

sentido estrito ( A U S T I N , 1970; S E A R L E , 1977, p. 27-45) ou de fala, deter-minado ( C H A B R O L e B R O M B E R G , 1999), visto que se pode querer infor-

mar, avaliar, identificar, incitar ou regular, por exemplo, mais ou menos

"humoristicamente".A finalidade "ilocutória" do ato pode, portanto,

variar, enquanto a dimensão humorística modulará a força para cima

(estratégia sarcástica) ou para baixo (ironia).

A rigor, esse tipo de enunciaçao faz desaparecer a própria fina-

lidade "ilocutória", parasitando-a totalmente. Isso é particularmente

sensível quando o humor é "gratuito" e zomba das leis da linguagem

e dos pontos de vista racionais sobre o Mundo, para visar a um efeito(perlocutório) de conivência "lúdica" já mencionado por Freud no

seu M o t (FEsprit, que o aproximava do sentimento de poder ligado

ao narcisismo e ao de invulnerabilidade do EU. Aqui, o autor-locutor

propõe um verdadeiro roteiro de ação que o destinatário pode com-

partilhar e tornar "real" co-enunciando-o e representando-o no ritual

de um jogo de linguagem. Algumas formas de autoderrisão ou de

humor negro, por exemplo, em que o autor toma como alvo sua pro-

fissão, seu grupo ou sua própria mensagem, podem se r evocadas nesse

222

essa predominância do efeito visado perlocucionário, esse estado mental

de conivência muitas vezes ligado a afetos e a emoções que se visa a

provocar no outro. Difere do ato ilocutório que se fa z falando (infor-

mar, avaliar alguma coisa, mandar fazer, etc.) e do ato locutório frástico,

realizado pela produção de um enunciado dotado de uma estruturalingüística dada, sintáxica ou léxica.

Com Charaudeau, postularemos que o "ato humorístico como ato de

enunciaçao põe em cena três protagonistas:o l o c u t o r , o destinatário e o alvo"

( o p . d t. , p. 2) e dependerá dos papéis que cada um vai assumir na situação

de comunicação. Um autor-locutor, supostamente"legítimo" no caso da

mídia, produz uma caricatura a respeito do 11 de setembro (Anne Ma-

rie Houdebine e Mae Pozas), ou uma crônica de humor sobre fatos da

sociedade ou sobre a atualidade do mundo político (DoloresVivero, Ma-

nuel Fernandez), ou um programa de televisão que interroga, de modo

provocador, políticos e artistas sobre suas ações e gestos (Guy Lochard),

ou ainda um texto publicitário que tenta captar a simpatia de seus leito-

res-clientes em potencial com uma mensagem muitas vezes sem relação

alguma corn as qualidades do produto, mas que visa primeiramente a

promover a marca (Jean Claude Soulages ou Monserrat Lopez).

Sã o situações de comunicação distintas, em que atos humorísticos

aparecem sem constituir forçosamente o essencial dessas comunica-

ções que pertencem a gêneros ou subgêneros midiáticos, cujos con-tratos diferem explicitamente entre si e que, além disso, são sensíveis

às variações ditas "culturais". O s contrastes pertinentes entre c o r p o r a

franceses e espanhóis são uma boa ilustração disso'.

1 Po r exemplo, as contribuições advindas do prolongamento de um trabalho feito nu m

grupo de pesquisa franco-espanhol (Picasso) que reuniu em Paris e Madri, de 2000a 2004, sob a direção de José Bastos e Patrick Charaudeau, pesquisadores lecionandoem diversas universidades da Espanha e os membros da CAD (Centro de Análise do

Discurso) de Paris.

223

 

Análises do discurso hoje Humor e mídia: definições, gêneros e cu l tu ra

O caricaturista se inscreve num contrato de informação e de di-

vertimento iconográfico ficcional sobre fatos da atualidade. Onde o

cronista instaura um contrato de tomada de posição apreciativa e pes-

através de personagens e de valores que os encarnam não poderiam ser

"compreendidos" como uma forma de "subentendido" estudado por

Ducrot (1972, p. 132)? A interpretação seria então o produto de um

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soal sobre a realidade, o animador de televisão e seus colaboradores

elaboram um contrato de conversação polêmica, divertida e infor-

macional, em que se misturam as esferas do público e do privado do

convidado. Quanto ao publicitário, este tenta cap tar a atenção, depois a

simpatia do cliente potencial, estabelecendo uma cumplicidade diretacom a marca que ele representa, ern proveito de um produto evocado

ligeiramente.

Entretanto, todos esses contratos operam a partir de um desloca-

mento enunciativo comum assim que atualizam atos humorísticos.

Esse deslocamento parece provocar uma suspensão das máximas de

Grice de pertinência, de informatividade, de sinceridade e de desam-

bigüização que questiona fortemente a pretensão habituai à verdade

dos Ditos e talvez à veracidade do Dizer, à primeira vista (VERNANT,

1997, p. 61-85), O ato humorístico pode realmente multiplicar as

ambigüidades semânticas e os equívocos referenciais e, aproximando

universos e visões pouco comparáveis do mundo, instaurar uma forte

(injcoerência entre as dimensões ou isotopias consideradas, em todo

caso, bastante distantes para servir imediatamente a uma comparação

que respeite o princípio de pertinência; isso sem falar de valor infor-

macional! Nós nos referiremos aqui aos processos descritivos das in-

coerências extravagante, absurda ou insólita e paradoxal, definidas por

Charaudeau (op. aí., p. 9-11).Quanto à sinceridade, é forçoso reconhecer que não se pode julgar

facilmente até que ponto o autor-locutor adere mais ou menos ao

discurso dos autores-personagens ou dos enunciadores aos quais eles

emprestam sua voz. Uma enunciação "não séria" suspende a respon-

sabilidade habitual. Não se presume que o enunciador "humorista"

assuma a interpretação implícita séria de seu enunciado.

Entretanto, o ceticismo, a agressividade, o desafio às normas lógicas

ou sociais, o questionamento crítico das tradições e dos conformismos

224

m d o d n i o do tipo "Se X preferiu dizerY (humoristicamente) foi porque

pensava (seriamente) Z". Poder-se-á também evocar as leis do discur-

so: de lítotes para interpretar o procedimento enunciativo "irônico", no

qual se supõe que o locutor quer dizer muito mais do que diz, ou de

hipérbole, para o procedimento "sarcástico" quando ele diz bem mais

do que queria dizer.

Examinemos a caricatura de Plantu, citada por Arme Marie Hou-

debine, mostrando um fuzileiro naval americano que, com um me-

gafone, interpela Bin Laden: (1 ) "Oussama! Saia d a í senão eu solto o

Charles de Gaulle!"." Não' . Isso não! isso não!" , grita B in Laden em resposta

(CA/F13). Poder-se-á sempre imputar ao autor-locutor Plantu de ter

querido exprimir ironicamente a moral da história (2): "Não é com uma

a r m a dessas qu e poder íamos amedrontar um inimigo desses e ajudar os ame-ricanos a combatê-lo!" , produzindo um efeito de derrisão. Mas é preciso

ainda recorrer a condições contextuais (quais?) para explicar que o

locutor não pôde se autorizar a dizer (2), que não é mais, de forma al-

guma, humorístico e que permite apenas um elo simbólico longínquo

com a situação imaginada na vinheta icônica.

Assim, toda a pintura clássica, em que são abundantes os nus fe-

mininos, seria apenas, como disse um crítico famoso, uma forma de

voyeur ismo, e todas as comunicações humorísticas, enunciações implíci-

tas, subentendidos, ou pelo menos insinuações, tidos como necessários

pelas formas de censura social! Para ser plausível, em algumas situações

históricas a respeito de certos tipos de objeto e realizadas através de

formas precisas de panfletos satíricos, caricaturas, etc., essa hipótese

não pode ser generalizadae aplicada às produções contemporâneas das

sociedades ocidentais aqui evocadas.

Pode-se certamente reconhecer que uma tal caricatura pode pro-

duzir um pensamento associado, como (2), mas também outros, tais como

(2'): "Enviar uma tal arma derrisória ao s americanos seria efetivamente u m a

22 5

 

Análises do discurso hoje

bo a ação",para um adversário da guerra no Iraque, ou ainda (2" ) :"Esse

é m e s m o o único tipo de a r m a que nós, franceses, s o m o s capazes de ter agora"

para um apreciador de autoderrisão pessimista, ou mesmo para um

Humor e mídia: definições, gêneros e adtum

ameaçar um inimigo num combate terrestre, corpo a corpo, com uni

porta-aviões) e o paradoxo (amedrontar com um navio/ arma que

não está em estado de funcionar), e um processo enunciativo sarcástico

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otimista de mesmo credo (2'"):"Felizmente, c o m tais armas, a França nã o

p ode mais participar desse tipo de jogo!".

Podemos afirmar que, sem ser infinita nem totalmente aberta, a lista

dos pensamentos implícitos associados a uma mensagem humorística é

freqüentemente numerosa, e poderá variar em função das atitudes, co-nhecimentos, capacidades, mplicações e motivações dos destinatários

(como propõe HOUDEBINE, 2006, p. 10). Em suma, uma variabilidade

inter ou mesmo intra-assunto poderia ser considerada corn esses tipos

de estratégia discursiva.

O enunciado humorístico não esconde uma significação figurada

implícita para além de uni enunciado literal "infeliz", porém engraça-

do. Ele evoca de preferência um feixe de impressões de sentido ou de

efeitos "poéticos" (SPERBER e WILSON, 1989, p. 326-384). Mais precisa-

mente, assumiremos, com esses autores, a hipótese de que o ato humo-

rístico, como o enunciado metafórico ou irônico, consiste em dizer e

fazer entender muito mais do que o enunciado sintético equivalente

semanticamente ao mínimo: (2),por exemplo.

Dir-se-á de tal caricatura que ela "é cheia de implícitos [...] e que,

como sempre, uma maneira indireta de se exprimir deve ser compen-

sada por um suplemento de efeitos contextuais". Exprimindo uma

significação através dessa caricatura, pode-se acrescentar que

[...] o autor encoraja (o leitor) a procurar efeitos contextuais suplementa-

res [...] e a supor que alguns desses efeitos foram desejados pelo locutor.

Quanto mais fracas forem essas implicações, mais vasta será a gania das

conclusões possíveis e maior será o engajamento da própria responsabili-

dade do auditor ao adotá-las, ( o p . «/., p. 352-353)

Que tipos de efeitos Plantu pôde querer comunicar? Ele escolheu

um procedimento descritivo incoerente, entre o extravagante (querer

226

(simbolizar o absurdo da história verdadeira desse navio sem rumo por

um absurdo imaginário ainda mais forte). Poderemos supor que ele

quis justamente comunicar implicitamente o sentimento de extremo

absurdo, logo de derrisão, que pode inspirar aos franceses, mas, sobretu-

do, ao resto do mundo e particularmente aos americanos, o espetáculo

lamentável de um florão de nossa marinha de guerra numa tal situação.

Todavia, já que foi formulado hurnoristicamente, esse sentimento não

pode ser imputado ao locutor, pois, como para a ironia,

[...] o pensamento do locutor interpretado pelo enunciado (o texto ou a

caricatura) já é por si mesmo um a interpretação [...] a de qualquer outro

(o u do locutorno passado) [...] (ora)um enunciado utilizado corno inter-

pretação de um pensamento de um terceiro é sempre, em primeiro lugar,um a interpretação da compreensão que se tem do pensamento desse Ter-

ceiro [...] ( o p . cit., p. 356-357)

Podemos designar esse fenômeno como um caso de enunciado em

"eco" ou ainda "polifônico". Em resumo, por sua enunciação, Plantu

faria eco ao sentimento de absurdo e de derrisão que ele suporia pre-

sente em boa parte de seus leitores, sem que pudéssemos saber se ele o

compartilha verdadeiramente.

Naturalmente Plantu não exprime esse sentimento literal e lingüis-

ticamente; ele o atualiza fazendo-o figurar numa pequena cena com

interpelação cômica, na qual domina uma incoerência divertida, como

acontece geralmente com ele. A extravagância da historinha é apoiada

pelo traço leve com que o caricaturista habitualmente desenha esses

personagens quase infantis. Tal encenação se afasta do drama ou da

vergonha para induzir uma incitação a uma autoderrisão muito leve,

que sugere efeitos do gênero "diante desses tipos de absurdo, finalmente

nã o m u i t o graves, é melhor ri r aqui do que chorar seriamente em todo lugar ,

22 1

 

Análises do discurso hoje Humor e mídia: definições, gêneros e cu l tu ra

em que alguns entenderão uma interpelação aos jornalistas e políticos

por demais focados em tudo o que possa evocar "o atual declínio da

França"!

A conivência crítica da publicidade do aspirador LG mostra um ho-

mem nu, de corpo musculoso e untado de óleo, um atleta brandindo

um instrumento (?) como um t roféu, com a legenda: "Nãoljonathan,

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Tal exegese, pois as comunicações humorísticas forçam os destina-

tários a um trabalho de interpretação sem fim e sem certezas2, pode-

ria ser repetida muitas vezes com a condição de exprimir também a

qualidade patêmica da conivência visada com o destinatário: eufórica

ou "terna", como sugerem Anne Marie Houdebine e Mae Pozas; ou

disfórica ou "negra", isto é, orientada para o trágico, como em um

Willem, por exemplo, ou em um El Roto3. Há, sem dúvida, corre-

lações a serem estabelecidas entre os tipos de conivência e os estados

patêmicos, os procedimentos e as temáticas. As análises dos diversos

gêneros midiáticos sugerem hipóteses a confirmar.

A conivência lúdica da publicidade espanhola AUDI, que compara

a vida mais excitante das quatro rodas de seu carro à vida mais banal

(implicitamente) das quatro rodas de uni carrinho de supermercado,está bem apoiada num procedimento enunciativo irônico e uma in-

coerência extravagante, com uma temática sem lances atitudinais. Ela

orienta para um estado patêmico eufórico simples.

A conivência cínica da publicidade francesa ERAM, que exibe um

homem nu com sapatos de mulher e um slogan provocador ("Ne-

nhum corpo de mulher foi explorado nessa publicidade."), apóia-se

num procedimento sarcástico e numa incoerência paradoxal sobre

uma temática feminista muito carregada ideologicamente, objeto de

lances atitudinais fortes. Ela orienta para um estado patêmico mais

disfórico, ou, pelo menos, para um "riso amarelo".

2 As interpretações de um ato humorístico dependem, como as de qualquer enuncia-

ção, de contextos anteriores e posteriores e da situação.Uma brincadeira breve duran-

te um discurso "sério" não tem o mesmo alcance que num discurso "não sério", em

que anedotas,zombarias e episódios semanticamente inacabadossão abundantes. Em

última análise,são os objetivos da ação da situaçãoem curso e os contratoshabituais de

comunicação que decidirão (cf. os novos programas de info-divertimento, estudados

por Guy Lochard (2006) .

3 Consultar sua análise da carica tura In Gás, w e tmst .

228

isso não é uma cafeteira. É o recipiente para o pó de nosso aspirador sem saco."

O procedimento enunciativo é sarcástico, a incoerência absurda, pois

já há algumas relações, por exemplo, entre um recipiente para pó e

uma taça, e a temática da incompetência dos homens para os serviçosdomésticos é carregada de lances ambíguos. Ela orienta de preferência

para um estado patêmico eufórico mitigado, ligado à desqualificação

do homem moderno de boa vontade,"perdido"num dos domínios de

competência da mulher: a limpeza da casa.

Não podendo nos aprofundar neste artigo, citaremos as hipóteses

desenvolvidas mais amplamente em conclusão por Chabrol e Vrig-

naud (2006), tais como:

-Acorrelação positiva (C.+) entre visada lúdica e objeto temáti-

co pouco "investido" pelas atitudes pro/anti e, ao contrário, o caráter

muito "carregado" atitudinalmente dos objetos temáticos utilizados

pelas duas outras visadas. A intenção "crítica" sustentaria os objetos de

atitudes em conformidade com as normas e os valores emergentes na

contemporaneidade, desqualificando os antigos que caem em desuso,

enquanto a visada "cínica" os atacaria ao contrário.

- Do mesmo modo, (C.+) entre conivência lúdica, procedimento

"irônico" e incoerência "extravagante", enquanto a "crítica" e a "cí-

nica" prefeririam, embora não sistematicamente,o procedimento sar-

cástico, em todo caso com as incoerências absurda ou paradoxal, mais

apto às induções visadas.

De qualquer modo, os atos humorísticos dependerão, para seus

efeitos e interpretações finais, de contratos midiáticos especiais e

de dispositivos que os fazem agir. É necessário evocar agora o peso

dessas exigências ligadas aos gêneros midiáticos e o de sua inserção

nos interdiscursos culturais, pois eles contextualizam todos esses atos

humorísticos.

22 9

 

Análises do discurso hojeHumor c mídia: definições,gêneros e cultura

2. Gêneros midiáticos e ínterdiscursividades culturais

As mídias de imprensa ou audiovisual são muito heterogêneas do pon-

sarcasmos quase-insultantes, sem muitas vezes estabilizar claramente

mais uma dimensão do que a outra.

Urna segunda orientação, menos espetacular, aparece: a de uma

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to de vista dos gêneros e do recurso ao humor. Disso decorre uma

conseqüência evidente. Antes de qualquer generalização, é necessário

descrever cuidadosamente essa diversidade, ainda mais por querermos

situar o peso das marcas "culturais". Isso explica a atenção dada à aná-

lise detalhada do corpus de crônicas francesas e espanholas (Dolores

Viveros, Manuel Fernandez), de caricaturas francesas e espanholas

sobre o 11 de setembro (Anne Marie Houdebine e Mae Pozas), de

mensagens publicitárias francesas e espanholas que negligenciariam a

argumentação sobre o produto em benefício de uma inscrição nos

imaginários discursivos sociais, em que o humor tem um lugar de

destaque (Jean-Claude Soulages e Monserrat Lopez), e, enfim, de pro-

gramas de televisão que questionam a personalidade e a pessoa de

políticos em dispositivos muito polivalentes quanto aos contratos, à

enunciaçao, séria e não séria, e aos objetivos informacionais e de di-

vertimento (Guy Lochard). Algumas grandes orientações aparecem,

ultrapassando a diversidade esperada.

A mais importante delas, por ser cheia de conseqüências comu-

nicacionais e sociais, consistiria no sentimento, já bem identificado

po r numerosos autores, de uma tendência à confusão do s gêneros e à

subversão dos contratos preestabdeddos. A contribuição de Guy Lochard

é urna ilustração muito pertinente para o universo televisual quanto

ao tratamento dos políticos. Os novos programas, como Vivement Di~manche,Tout lê monde enparle (France 2), On aura tout vu (France 3) ou

ainda Lê Vrai Journal (Canal +), tornam fundamentalmente ambíguas

as situações instauradas entre os atores políticos e seus anfitriões tele-

visuais, assim corno as finalidades perseguidas. Nestes, contrariamente

aos programas satíricos do período anterior, o Bébête Show e Os Guig-

nols de 1'Info, os políticos tornam-se o alvo dos comentários e questio-

namentos humorísticos, que misturam as esferas pública e privada e se

inscrevem num jogo interacional aberto, com animação pluriforme e

polilogal,que faz alternar questões sérias e zombarias provocadoras ou

230

tendência à autoderrisão generalizada que atinge não somente os alvos,

mas também seus autores. É o caso do publicitário-anunciante, como

afirma Soulages (2006):

[...] co m essa dimensão de autoderrisão que, parecendo desqualificá[-lo]

[como] /ocw/or-anunciante pouco sério, pois por um lado ele se autoriza

a argumentar mal, instaura uma relação de conivência possível com um

destinatário que compartilharia com ele uma avaliação da comunicação

publicitária como "não séria" e como lugar de questionamento oblíquo

dos valores e tabus demasiadamente pesados dessa sociedade!

Essa tendência aparecia claramente em alguns dos programas analisados

por Guy Lochard {Vivement Dimanché) e em Manuel Fernandez e Dolores

Vivero (2006), que a encontram no âmbito dacrônica, mas de forma mais

acentuada na Espanha. "Enquanto na França o alvo é sempre construído

como um outro, um adversário que se estigmatiza através de traços iden-

titários, o alvo espanhol pode serencarnado pela própria representaçãodo

jornalista. O auto-sarcasmo parece ser um fenômeno espanhol".

A autoderrisão não está ausente do corpus das caricaturas estudadas

por A.M. Houdebine e M. Pozas, e sua análise da vinheta "negra" de

El Roto In Gás, u > e tntst não é apenas uma denúncia dos poderes ame-

ricanos, mas também possivelmente de todos aqueles, inclusive nós

mesmos., que pusemos o petróleo no lugar de Deus!

Seria necessário falar, depois de Freud, de "Mal-estar na Civilização"

a esse respeito e generalizar, atribuindo a todos esses fenômenos sociais

visados por atos humorísticos uma orientação única predominante? Esta

revelaria uma crise profundade todos osfundamentos identitários dos ci-

dadãos e dos sujeitos modernos nas esferas públicas e privadas, uma crise

do laço social, dos sistemas de papéis masculinos e femininos, das insti-

tuições políticas e econômicas, de seus representantese de seus pertenci-

mentos culturais (Leste-Oeste, Ocidente-OrienteAsiático, Norte-Sul)?

23 í

 

Análises do discurso hoje

Seria sem dúvida demasiadamente simples. Além disso, muitas análi-

se s sugerem mais prudência e mais respeito à complexidade e à diversi-

dade dos fenômenos midiáticos atingidos pelo Humor. Primeiramente,

Humor e mídia: definições, gêneros e cultura

Enfim, essas questões sugerem que se dê importância ao estudo dos

efeitos produzidos, e não apenas ao estudo dos efeitos visados. A contri-

buição de Claude Chabrol e PierreVrignaud tende justamente a produzir

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considerando-se França e Espanha, deve-se constatar a importância das

variações no interior de um mesmo gênero midiático, tanto num país

quanto no outro, e, naturalmente,das divergências, além das semelhan-

ças, entre duas nações hoje tão próximas social, econômica e talvez

politicamente. Elas sugeririam temporalídade e interdiscursividades em

parte diferentes (herança da ironia à francesa e do sarcasmoàespanhola,

mencionados por diversos autores?).Todavia, só nos resta abster-nos de

qualquer conclusão generalizante "culturalizante" que nos induziria a

constituir "Francidade e Hispanicidade" em essências socio-históricas.4

As comparações aqui apresentadas tendem, para nós, sobretudo a am-

pliar o corpus midiático sobre o qual se elabora a reflexão sobre os fenô-

menos humorísticos na mídia.Apenas os fatores contingentes explicam

a limitação dessas comparações a dois países, limites que será preciso

ultrapassar com o estudo de outras imprensas no mundo.

Essas variações,ditas intra e interculturais, defendem, em todo caso,

modelos muíto mais elaborados que valorizam a pluralidade das for-

mas lingüísticas — cujos jogos sobre as palavras e com as imagens

constituem apenas uma parte (vide contribuição de Monserrat Lopez)

— e semióticas, sublinhadas pelos estudiosos da área, e, portanto, a

existência de subgêneros num mesmo gênero midiático. Estes pode-

riam corresponder a temporalidades e a interdiscursividades distintas,

que, segundo as circunstâncias, desenvolvem-se mais ou menos e são

apreciadas diversamentenas diferentes imprensas.

4 Será sempre muito fácil "descobrir" interdiscursividades ou "intertextualidades"entre

algumas tendênciasmidiáticas "humorísticas" — aliás, nã o quantificadas, em c o r p o r a de

trabalhos constituídos apenas para elaborar hipóteses e não para prová-las, sem a seleção

aleatória necessária nesse caso — e alguns autores emblemáticos: escritores, pintores

ou pensadores, ou ainda alguns acontecimentos, todos judíáosametiie escolhidos para a

ocasião. Essas correlações ilusórias provam, sobretudo, a força de nossas expectativas

"societais" na recepção;em resumo, um efeito de naturalização do "espírito nacional".

232

alguns elementos a esse respeito, após uma "enquete" quase experimental

sobre os efeitos produzidos em recepção pelas publicidades francesas e

espanholas. Essa enquete já confirma plenamente, sobre um gênero es-

pecífico, asseguintes hipóteses: o emprego de atos humorísticos abre um

espaço muito amplo de interpretações das seqüências discursivasa todos

os seus níveis. Disso testemunham:assignificações plurais dos enunciados;

as atribuições de intenções opostas, positivas ou negativas,de uma mesma

enunciação que pode ela mesma serjulgada paradoxal (BERRENDONNER,

1981, citado por MAINGUENEAU, 2002,p.330); osjulgamentos ambivalen-

tese plurivalentes do enunciador e a aceitação ou a rejeição marcada pela

conivência proposta por ele, muitas vezes em função da representação

que faz de sua pessoa o destinatário (SCHOENTJES, 2001, p. 140-157).

Naturalmente,tais resultados convidam a uma maior colaboração em

comunicação entre as ciências da linguagem e as ciências sociais: socio-

logia, psicologia social (vide CHA BRO L , COURBET e F OUQ UET , 2004), pois,

para progredir, será preciso completar os modelos semio-pragmãticos

apresentados aqui com modelos do sujeito social e psicossocial (posicio-

namentos sociais, normas e inclusão em grupos, crenças, conhecimentos

e motivações, etc.) que permitirão tratar mais de perto a questão ainda

mal resolvida e, entretanto capital, da variedade de interpretações dos

discursos humorísticos, isto é, a parte ativa e decisiva que os destinatários

desempenham na produção dassignificações humorísticas.

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23 3

 

Análises do discurso hoje

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23 4

A CONSTRUÇÃO MÚTUA DA SIDENTIDAD ES NOS DEBATES

POLÍTICOS NA TELEVISÃOCatherine Kerbrat-Orecchioni

(Universidade de Lumière Lyon II)

1. Introdução

IA. Apresentação da problemática

Por ocasião do colóquio "O francês falado na mídia", organizadoem

Estocolmo em junho de 2005, decidimos, meu colega Hugues de

Chanay e eu, abordar os debates políticos televisivos, a partir, entre

outras, da noção aristotélica de ethos, que, apesar de sua idade mais

que venerável (por volta de 2.400 anos), pode ainda servir à análise do

discurso e, mais especialmente, à analise do "discurso em interação"1.

Resolvemos aplicar essa noção ao caso de Nicolas Sarkozy, na época

ministro do Interior, realizando um estudo detalhado de um progra-

ma do canal de televisão "France 2", no qual Sarkozy foi a vedete, o

que contribuiu para reforçar sua popularidade: trata-se do programa

100 minutos para convencer, de 20 de novembro de 2003. Nele, Sarkozy

fo i confrontado com diferentes personalidades do mundo político e,

particularmente, com Jean-Marie Lê Pen, presidente do partido Front

Para retomar a expressãoeponimíca de meu último trabalho (2005).

 

Análises do discurso hoje A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão

NationaP. Observamos de perto como Sarkozy construía seu ethos

diante de diferentes interlocutores (e o adaptava, numa certa medida, à

situação interlocutiva) e que, para fazê-lo, explorava todos os recursos

tidade, enquanto outros traços vão passar para o último plano, como se

os participantes não cessassem, de algum modo, de "zapear" no âmbito

de um repertório identitário infinitamente diversificado.

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semióticos possíveis, verbais, mas também paraverbais (prosódicos e

vocais) e não-verbais (mímica e gestos).

Gostaria de retornar aqui parte dessas análises3, porém:

1) baseando-asna noção mais ampla de "identidade", noção retra-

balhada recentemente no âmbito da lingüística interacional;

2) observando como um locutor pode ao mesmo tempo construir,

pelo conjunto de seu comportamento discursivo, sua própria identida-

de e a de seu interlocutor, e como essas identidadessão eventualmente

negociadas entre os parceiros da interação.

1.2. Definições

A identidade de um dado sujeito A é o conjunto de todos os atributos,estáveis ou passageiros, que o caracterizam (estado civil, característi-

cas físicas e psicológicas, gostos e crenças, staius e papel na interação,

etc.). Os componentes infinitamente diversos dessa constelação que

definem a identidade de A não são evidentemente todos de mesma

importância: em um momento T, cercos componentes são dominan-

tes, seja pela natureza do contexto, mais ou menos amplo (assim, em

nosso exemplo, o status de "ministro do Interior" pode ser considerado

como o componente essencial da identidade de Sarkozy), seja porque

eles são "ativados" no discurso. Com efeito, no decurso da interação,

os locutores vão esforçar-se para "destacar" alguns traços de sua iden-

2 Esse partido de extrema-direita foi fundado pelo próprio Lê Pen, político dotado de

posições anti-semitas, racistas e mesmo facistas. (N.T.)3Apresentadas em Constantin de Chanay e Kerbrat-Orecchioni (2007).Trabalhamos

atualmente, numa perspectiva similar, sobre o debate realizado entre Sarkozy e Sego-

lene RoyaJ entre os dois turnos das eleições presidenciais (3 de maio de 2007), mas os

resultados desse estudo ainda não podem ser apresentados: é um trabalho de fôlego,

pelo tempo dispendido não somente na análise propriamente dita, mas também na

transcrição de duas horas e quarenta minutosde debate.

236

Por ethos entende-se o modo pelo qual o orador exibe em seu dis-

curso certas qualidadessusceptíveis de ganhar a confiança do auditório,

a fim de tornar seu discurso mais convincente4.A noção de ethos é,por-

tanto, mais restrita que a de identidade, na medida em que as características

"étnicas"são todas construídas discursivamente (elassebaseiamno con-

junto do comportamento semiótico do sujeito), ao passo que, entre os

atributos identitários, alguns seligam ao sujeito, independentemente de

seu comportamento discursivo — por exemplo, o status de ministro do

Interior: essa propriedade, como a de ser "firme", são dois componen-

tes da identidade de Nicolas Sarkozy, porém só o último componente

se refere a seu ethos. Dir-se-á então que alguns atributos identitáriossão

ethosisáveis, e são, por isso, mais eficientes que outros (por exemplo, a

"firmeza" é um atributo mais forte que a "eficiência"; ser"simpático"é

mais convincente que ser "generoso"; ser"sedutor" é mais convincente

que ser"encantador" e,afortiori, que "belo"ou "louro").Se os atributos

nã o ethosisáveis podem ser abertamente reivindicados pelo sujeito ("eu

sou eficiente"),o ethos não consiste em dizer que se é isto ou aquilo,mas

em mostrá-lo por seu comportamento discursivo.

Neste estudo, nós nos interessaremos pelos componentes identi-

tários que são atualizados de uma maneira ou de outra pelos nossos

locutores no decurso da interação (sejam eles afirmados explicitamen-

te ou exibidos por outros meios mais implícitos). Realmente, mesmo

sendo claro que os sujeitos iniciam a interação já munidos de um

"ethos prévio" e de uma "identidade prediscursiva" e que isso tem um

papel importante tanto do ponto de vista da produção do discurso

quanto de sua interpretação, admitiremos que é essencialmente graças

à produção e ao deciframento de certos marcadores e índices que se faz a

gestão coletiva das identidades na interação.

4Sobre os avatares dessa noção, remetemos à abundante literatura a esse respeito e,

particularmente, ao capítulo introdutório da obra dirigida por Ruth Amossy (1999).

237

 

Análises do discurso hoje

1.3. Prindpios da análise

Nossa análise se baseará nos seguintes princípios:

A construção mútua das identidades nos debates polít icos na televisão

(1 ) Identidade atribuída por A a A (auto-atribuída: "Eis como eu

sou/ como eu me vejo")

(2) Identidade atribuída por A a B (alo-atribuída: "Eis como eu o

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- Durante umadeterminada troca comunicativa, cada um constrói

de si mesmo uma certa "imagem" (em termos gofímanianos, dir-se-á

que cada um efetua uma "apresentação de si"), ao mesmo tempo que

constrói uma certa imagem de seu parceiro: em primeiro lugar, opo-

remos a identidade projetada ou auto-atribuída (quando esse processo éconsciente e deliberado, pode-se também falar de "identidade reivin-

dicada") à identidade atribuída (termo que é preciso entender como o

equivalente elíptico de "alo-atribuída"5).

- Essas construções de imagens sefazemcom a ajuda demarcadores

e índices que são muliimodais (podem ser de natureza verbal, paraverbal

ou não verbal) e polissêmicos (seu valor só se determina no contexto e

su a interpretação implica sempre uma parte de subjetividade 6).

- O sujeito que se encontra em posição de locutor constrói sua

identidade ao longo de sua intervenção e, por intermitência, a de seu

parceiro.

- O sujeito que se encontra emposição de ouvinte pode também,

de certo modo, exibir um ethos (de desprezo, de compaixão, etc.) pela

produção de alguns gestos e mímicas (pois, quanto a isso, o receptor

também é emissor). A rigor, pode-se até admitir que, por esse mesmo

modo (exibição de uma mímica irônica, por exemplo), o ouvinte pos-

sa também contribuir para a construção d a imagem d o outro.

Encontram-se assim confrontadas durante toda a interação as iden-tidades seguintes:

5Do francês "allo-attribuée". O radical, de origem grega, "álo(s)" significa "outro".

Ver, por exemplo, "alopatia". (N.O.)6 Os índices identitarios são mesmo às vezes claramente reversíveis, um mesmo com-

portamento podendo ser interpretado em termos positivos ou negativos (tratando-se,

por exemplo, de Tariq Ramadan, com quem Sarkozy se confronta em nosso debate

e cujo comportamento pode ser visto como sutil e matizado, ou como sinuoso e

até mesmo malicioso). Sobre essas "imagens contradi tórias e frágeis" ver Charaudeau

(2005, p.67-68).

23 8

vejo")

(3 ) Identidade atribuída por B a B (auto-atribuída)

(4 ) identidade atribuída por B a A (alo-atribuída)

Em caso de não-coincidência entre (1) e (4) e entre (2) e (3), essa

discordância poderá dar lugar a um processo de negoáação da s identida-

des (a de A, no primeiro caso, e a de B, no segundo7).

- Essa concepção interativa da identidade implica, entre outras coi-

sas, que, diferentemente da concepção aristotélica de ethos, os atributos

identitários não são necessariamente "virtudes". No que concerne à

identidade projetada, se podemos admitir que, de modo geral — e, mais

particularmente, no contexto desses debates na mídia —, ela é, antes de

tudo, um a imagem positiva de si mesmo que se tenta construir, veremos

que essa imagem nunca é totalmente controlada e que os efeitos produ-zidos não são jamais totalmente controláveis, qualquer qu e seja o grau de

preparação do s debatedores.Ma s são, sobretudo, as identidades atribuídas

que vão adquirir um caráter negativo em tal contexto, onde o jogo con-

siste principalmente er n construir um a imagem valorizadora de si mes-

mo, enquanto se tenta imputar ao adversário atributos desvalorizadores.

2. Análise da seqüência

A análise abordará os primeiros minutos da seqüência, durante a qual

Sarkozy (doravante NS) debate com Lê Pen (doravante LP), que aca-

bou de entrar no recinto, introduzido nestes termos pelo animador do

programa, Olivier Mazerolle (doravante OM)8:

7Para um a modalizaçào dessas negociações de identidade, ver Lê discours en interactton,

p. 156-164.8 Nossas convenções de transcrição (transcrição nas quais os números correspondem

às intervenções, delimitadas a partir de critérios ao mesmo tempo sintáticos e prosó-

dicos, e mesmo mimogestuais) são as seguintes:

239

 

Análises do discurso hoje

1 OM [...] monsíeur Sarkozy (.) alors euhJean-Marie lê Pen présídent

du Front National es t avec nous euh vous aüez débattre ensemble

bon- [soir monjsíeur Lê Pe n

A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão

qu i n'ontpas accès/ (.)ASP à I a représentation politique/ (.)ASP

dan:s Vassemblée natíonale Jrançaise malgré/ (.) ASP lê s miüions

de voi:x/ que:: nous représentons\ (.) ASP c'est un : domainefon-

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2 LP [oui] bonsotr/

3 OM voilà (. ) prenez place (. ) monsieur Lê Pen donc vous avez suivt

euh une grande partie de cette émíssion pour ne pá s dire I a totalité

ASP qu'est-ce que vous avez à dire/ à monsieur Sarkozy\

1OM [...] senhor Sarkozy, então,Jean-Marie L ê Pen, presidente

do Front National está conosco; os senhores vão debater

juntos; boa noite, senhor Lê Pen.

2 LP Sim, boa noite.

3 OM Está bem. Sente-se, senhor Lê Pen, então o senhor seguiu

uma boa parte dessa emissão, para não dizer toda ASP. O

que o senhor tem a dizer ao senhor Sarkozy?9

Porém, ao invés de se dirigir diretamente a NS, LP se lança numa

espécie de diatribe, ora dirigida a sua volta, ora dirigida a OM, fala na

qual incrimina o "governo francês" que o trata como "um pária":

4 LP ASP be n je voudrais d'abord dire/ que ma tache n'est pasfaàle

ia puisque ie suir.s (.) lê représentqnt/ d'une_catéçorie_(. Jpolitique

rare/ dons notrepays/ c'est c e l l e despanas\ (. .) c'est-à-dire degens/

&: continuidade do turno, apesar da interrupção e da sobreposição;[xxxx] segmento sobreposto;

(. ) pausa interna na intervenção (medida quando ultrapassa um segundo);: (eventualmente dobrado ou triplicado): alongamento vocálico;/ entonação ascendente; V entonação descendente (barra redobrada em casode inclinaçãomuito forte);ASP: aspiração audível.

Os sublinhados servem para pôr em evidência os segmentos sobre os quais sefocaliza a análise.9 Optamos por manter as transcrições originais do francês (em itálico), se-guidas de sua tradução. Para evitar problemas de transcrição para o português,apresentamos a tradução de forma simplificada, ou seja, sem as convenções

adotadas pela autora (vide nota 8). (N.O.)

240

damentalA ( .)ASPje suis en quelque sorte monsieur Mazerolle un

intermittent de I a politique puisque aussi bien:/ (.)j 'ai ét é chassé

d e m on siè:ge/ eu::h de depute européen/ celuí ou lê s électeurs

m'avaient (.) en-envoyé/ (.)parlegouvemement/français\ (.)ASP

c'est même un dês r a r e s pay:s/ prétendument démocratiques/ (.)

AS P ou lê gouvernement/ peu t se permettre/ de:jeter dehoirs/ (.)

ASP un élu/ du peupl e\ mais enfin/ (.) nous r e p a r l e r o n s de tout

çela\ (1.5s) ASP monsieu:r / lê ministre de l'Intérieu:r/ vous me

donnez 1'impression::

4 LP Gostaria primeiramente de dizer que minha tarefa aqui não

é fácil, pois sou o representante de uma categoria política

rara, neste país, que é a dos párias, isto é, pessoas que não

têm acesso à representação política na assembléia nacional

francesa, apesar dos milhões de vozes que nós representa-

mos. É um domínio fundamental; eu sou de certa forma,

senhor Mazerolle, um intermitente da política, pois tam-

bém fui caçado de meu posto de deputado europeu, no

qual os eleitores haviam me colocado, pelo governo fran-

cês. É mesmo um dos raros países pretensamente demo-

cráticos, em que o governo pode se permitir expulsar um

eleito do povo, mas enfim tornaremos a falar disso. Senhorministro do Interior, o senhor me dá a impressão...

2.i.A auto-apresentação de LP

Nessa introdução, LP faz uma definição dele p róprio: eu sou um "pária ,

nos diz ele, um "intermitente da política". O status desses predicados

é bem especial, pois ambos se referem a uma identidade "atribuída ,

porém em um sentido diferente daquele que foi evocado preceden-

temente: o enunciado significa não que "me tratam de pária", porem

241

 

Análises do discurso hoje

que me "tratam como um pária" — a atribuição identitária em ques-

tão não se refere ao discurso mantido sobre LP, mas a seu próprio ser:

fizeram de mim um pária, e isso de modo totalmente injusto. Embora

A construç ão mútua das identidadesnos debates políticos na televisão

alguma forma), LP passa ao ataque nominativo contra NS, que ele de-

signa servindo-se do vocativo: "senhor ministro do Interior". Embora

aparentemente respeitoso, esse tratamento é uma atribuição de identidade

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imposta do exterior, essa identidade é assumida e mesmo reivindicada

por LP, mas não sem ironia ("uma categoria política rara", "um dos

raros países pretensamente democráticos").

Diante dessa atribuição de identidade, LP reage mostrando uma ou-

tra, de forma implícita, u m a identidade d e perseguido (apresenta-se comovítima de odiosa maquinação), assim como um ethos d e denunciador sar-

cástico do tratamento in justo que lhe foi reservado (ethos constestador).

O primeiro atributo identitário (o de "pária") não será retomado

por NS; enquanto o segundo (o de contestador) será retomado mais

tarde, em termos extremamente desqualifi cantes (NS vai acusar LP

de "protestar" e de "arrotar", ver seção 2.4.2. ) . Nesse momento, sa-

biamente, NS deixa LP fazer seu pequeno show durante mais de um

minuto, até que LP se vire para ele.Vamos, então, assistir a um episódio

totalmente imprevisto.

2.2. O ataque de LP contra NS, as escaramuças de NS contra LP e as

negociações de identidades

Retomemos o fim da intervenção 4 e vejamos o que se passa em se-

guida:

4 LP [...] (l.5s) AS P monsieu:r/ lê ministre de l 'Intérieu:r/ vom m e

donnez Vimpression::[ASP]

5 NS [bonsoir/] monsieur Lê P en

4 LP [,..] senhor ministro do Interior, o senhor me dá a impres-

são...

5 NS Boa noite, senhor Lê Pen.

No final de sua intervenção, depois de uma pausa de um segundo

e meio, seguida de uma forte aspiração (como se tomasse impulso de

242

não tão respeitosa, no presente caso (formulada através de um pressu-

posto apresentado como uma lembrança dos fatos): o senhor é minis-

tro do Interior, e é enquanto ministro que me dirijo ao senhor.

Depois de ter lembrado a identidade estatutária de seu interlocutor,

LP se prepara, com "o senhor me dá a impressão...", para formularuma apreciação mais subjetiva. Não conheceremos jamais a natureza

exata dessa apreciação, pois o processo de atribuição se encontra su-

bitamente suspenso por uma primeira interrupção de NS (em 5), que

será seguida por outras intervenções do mesmo gênero (em 7, 9a, 9b,

11, 13). Essas interrupções não são para NS verdadeiras tentativas de

tomar a palavra, mas pequenas escaramuças que visam a desestabilizar

o adversário e a "sabotar" seu trabalho de construção identitária. Elas

vão ao mesmo tempo dar origem a uma série de negociações d e identi-

dade das quais NS sairá vencedor.

2.2.1. O EPISÓDIO D A SAUDAÇÃO: P O L I D E Z DE NS E I M P O L I D E Z DE LP

5 NS [bonsoir/] monsieur Lê P en

6 LP bonsoir/ bonsoir monsieu::r eh j'ai d it bonsoir en anivant/

AS P mais eu h v o u s étiez indus collectiv- dans m on bonsoircol-

leciij\ [ASP]

7 NS [dans m a] cage d'écureuil

5 NS Boa noite, senhor Lê Pen.

6 LP Boa noite, boa noite senhor. Eu disse boa noite ao chegar,

mas o senhor estava incluído coletiv- no meu boa noite

coletivo.

7 NS Na minha gaiola de esquilo.

No momento em que LP entrou em cena, vimos o animador cum-

primentar o recém-chegado e este responder, enquanto se sentava:

uma troca de civilidades bastante normal.

24 3

 

Análises do discurso hoje

A segunda saudação formulada por NS é totalmente diferente: ela

chega quando LP já estava falando há mais de um minuto e em favor

de uma interrupção patente (sobrepondo-se à aspiração de LP). Em

A construç ão mútua das ident idades nos debates polí t icos na televisão

tecido". NS sugere, assim, que o preâmbulo, não dirigido a ninguém

em particular, não tinha razão de ser e que LP deveria começar por

dirigir-se a ele (a repreensão de NS também se refere a isso).

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decorrência dessa colocação inusitada, o "boa noite" de NS, sem. dei-

xar de ser uma saudação, funciona ao mesmo tempo como um ato

indireto de repreensão.Esse valor resulta de um raciocínio implícito

como: iniciando uma troca comigo, o senhor deveria ter começado

por me cumprimentar; ora, o senhor não fez isso, logo o senhor não

passa de um grosseiro; essa intervenção está, além disso, reforçada pela

entonação (de contorno fortemente ascendente, o que dá ao enuncia-

do o tom de uma rápida lição de "savoir v i vre") , sem falar da mímica

de triunfo (movimento de baixo para cima da cabeça inclinada e sor-

rizinho) pela qual NS acolhe o "boa noite" reativo de LP (espécie de

índice retroativo do valor indireto de repreensão).

O enunciado de NS possui, portanto, um duplo valor ilocutório

(o valor de saudação, implícito convencionalmente na fórmula "boanoite", e o valor de repreensão, que se origina nesse contexto parti-

cular). Ele provoca, assim, uma dupla reação, que realmente ocorre:

obrigado a responder ao cumprimento (que ele chega a reiterar, não

sem uma certa irritação), LP se sente também obrigado a justificar

seu comportamento ("eu disse boa noite ao chegar, mas o senhor

estava incluído no meu boa noite coletivo", reação à reprimenda).

Outros valores interacionais, que poderíamos chamar "perlocutó-

rios", vêm acrescentar-se a esses dois valores ilocutórios, como, por

exemplo, a irrupção inopinada da saudação, que vai ter como conse-qüência perturbar a troca e dêsestabilizar o adversário, como vemos

em 6: interrompido em seu entusiasmo, ao falar, LP incorre em um

"fracasso", seguido de uma "reparação" (o senhor estava incluído

coletiv- no meu boa-noite coletivo") — ele está visivelmente "des-

concertado".

Enfim, essa saudação vai ter como conseqüência invalidar o que a

precede: como uma saudação deve vir normalmente no início de uma

troca, o que a precede vai se tornar de certa maneira "nulo e não acon-

244

Do ponto de vista da construção das identidades mútuas, dir-se-á

que, por essa troca de cumprimentos, NS se atribui um ethos "cortês",

ao mesmo tempo em que atribui a LP um ethos "grosseiro".

Porém, é necessário observar que se deve duvidar do caráter ver-

dadeiramente "polido" do comportamento de NS. Em primeiro lu-

gar, porque o uso que aqui é feito da saudação, o caráter "lisonjeador"

desse ato de linguagem (falamos, na teoria da polidez, de Face Flat te-

ring ActY° é seriamente prejudicado por esse ato "ameaçador para a

face" (Face Threatening Act) que vem parasitar a saudação:a repreensão,

agravada pela interrupção e mesmo pelo termo de interpelação que,

nesse contexto, vem reforçar o FTA, de preferência ao FFA. Além

disso, pode-se indagar se a repreensão sarkoziana é legítima nessa cir-

cunstância: após ter saudado aspessoas que estavam "à sua volta", logoque entrou em cena, LP estaria verdadeiramente obrigado a dirigir

uma saudação especial a NS, quando começa uma troca tête à têté?

Nada é menos certo. Nosso sistema ritual é flutuante a esse respeito,

e pode-se julgar que num caso assim a saudação constitui antes "uma

hiperpolidez".

E, aliás, o argumento que LP vai usar para justificar seu compor-

tamento.

LP refuta a atribuição identitária que lhe é atribuída, tentando se descul-

par da acusação de impolidez. Mas, incontestavelmente, ele foi rebai-

xado de posição: viu-se intimidado por NS, foi obrigado a se justificar,

o que fez gaguejando, como uma criança apanhada em erro.

Sem lhe dar tempo para se recuperar e retomar o fio do discurso

programado, NS lança ao seu adversário uma outra "casca de banana"

para fazê-lo cair: o "golpe do esquilo", depois de ter-lhe dado o golpe

do "boa noite".

Sobre essas noções e essa teoria, consultar Kerbrat-Orecchioni (2005, capitulo 3).

245

 

Análises do discurso hoje

2.2.2. O E P I S Ó D I O D O ESQUILO: A NEGOCIAÇÃO D A I D E N T I D A D E DE NS,

V IA INTERPRETAÇÃO DE UMA METÁFORA

A construção mútua das identidades nos debates políticos na televisão

U a échoué (. ) c'est c o m m e Vécureuil dans sã cage i tourne i tourne i tourne

il se donne un mal de chien mais i reste toujours au m ê m e endroít.

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6 LP bonsoir/ bonsoir monsieu::r eh j'ai di t bonsoir en anivant/

AS P m a i s e uh vo us étíez inclus collectiv- d a m m o n bonsoir

collectij\ [ASP]

7 NS [dans m a] cave d 'écurewl

5 LP tout àfait ( . ) je oui:// (. ) eh bien/ écoutez/justement\jeje dois

dire/ que:

[ je t rouve qu e v o u s ressemblez à à u n écureuil]

9a NS [méfiez-vous c a peut être sympathique un écureuil]&

10a LP AS P c'est c a et l'é- 1'écureuil [est sympa-]&

9b NS (í.5s) &[méj iez-vousl

lOb LP &thique/ U a m ê m e du panachef ríest-ce pá s mais il tourne dans

sã cage/ ronde/ ( . )^en se donnant Im J l ' impressionou' i l fait/

beaucoup/ ASP mais alors qu'il r íavance pá s du tou:t ( . )

6 LP Boa noite, boa noite, senhor. Eu disse boa noite ao chegar,

mas o senhor estava incluído coletiv- no meu boa noite

coletivo.

7 NS Na minha gaiola de esquilo.

8 LP Exatamente, eu, sim, bem, ouça justamente; eu devo dizer

que acho que o senhor parece um esquilo.

9a NS Cuidado, um esquilo pode ser simpático.10a LP É isso e o esquilo é simpático.

9b NS Cuidado.

lO b LP ético. Ele até tem coragem; não é, mas ele roda na sua gaio-

la redonda dando a si mesmo a impressão que faz muito,

mas não avança nem um pouquinho.

Num documentário difundido momentos antes da entrada de LP

no palco, ouve-se dizer de NS:

24 6

Ele fracassou: é como o esquilo na sua gaiola, roda, roda, roda, tem

um trabalho louco, mas fica sempre no mesmo lugar.

Pode-se pensar que, visionando essas imagens, NS decidiu exploraresse achado de LP, achado assaz infeliz, pois acontece que o esquilo,

na França, goza de uma boa dose de simpatia. Mas NS precisava ainda

encontrar um modo de situar sua réplica, e o mais depressa possível.

A palavra "incluído"vai servir-lhe de pretexto: ele vai pegar a bola no

ar , explorando a polissemia do termo, cujo sentido ele muda para aí

inserir "na minha gaiola de esquilo". É um pouco forçado, mas não

deixa de ser eficiente, pois vamos ver uma vez mais LP, desestabilizado

por essa nova interrupção, se esforçar numa tentativa de recuperar sua

alta posição ("eu, sim, bem, ouça justamente...") pela reapropriação de

sua comparação animal. É então que NS vai transformar a seu favor

essa comparação: enquanto ela conota para LP a idéia de uma agitação

tão frenética quanto improdutiva, NS vai lembrá-lo de que um esquilo

"pode ser muito simpático", o que LP admite (10a e lOb), reforçando

mesmo essa afirmação: substitui o "talvez" por um "é" e ainda acres-

centa outros atributos positivos do esquilo: "até tem coragem". Depois

de fazer essa concessão, tenta, com um "mas" (mas roda em sua gaiola

redonda) restabelecer a orientação axiológic o -argumenta tiva inicial dacomparação, porém já é tarde demais: quando consegue enfim proferir

a tirada prevista, esta será apenas uma bomba molhada, desativada pelas

estocadas irônicas de NS, de quem LP não "desconfiou" o suficiente

— o "cuidado, um esquilo pode ser simpático" podendo ser interpre-

tado tanto como "desconfie de sua propensão às comparações que às

vezes são armadilhas" quanto como "tome cuidado para não parecer

antipático diante de um animal tão simpático (quer dizer, eu)".

Recapitulemos o desenvolvimento dessa negociação que diz res-

peito à identidade de NS e cuja iniciativa nessa passagem vem dele

247

 

Análises do discurso hoje

próprio, mesmo se é a LP que se deve, em um momento anterior da

emissão (os telespectadores tiveram acesso a isso), a primeira formula-

ção da atribuição identitária:

A construção mútua da s identidades no s debates políticos na televisão

Notemos que, para tornar plausível esse ethos "simpático", NS em-

prega os dois principais marcadores mimogestuais da "benevolência"

(eunoia aristotélica), a saber:o sorriso,que acompanha "na minha gaiola

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- LP a NS:"O senhor é um esquilo",isto é,alguém que se agita em

pura perda (metassemas11: [agitação frenética] [ineficiência]).

- NS a LP (em 9):"Sou um esquilo", quer dizer,"alguém simpáti-

co". Aceitação do significante, mas modificação do significado e subs-

tituição de um traço negativo por um traço positivo; reapropriação

irônica da metáfora,que NS retorna a seu favor invertendo seu valor

axiológico.

— LP a NS (em 10): aceitação (com exagero, como vimos) da versão

sarkoziana d a metáfora; mas é apenas um a "concessão" feita ao adver-

sário, pois LP continua, retomando sua própria visão do esquilo, cuja

atividade incessante é apenas uma ilusão de ótica, que só ilude a ele

mesmo ("ele se dá a impressão de fazer muito, mas não avança nem

um pouquinho"). Lê Pe n tenta assim restabelecer a verdade de sua metáfo-ra , que para ele conota, antes de mais nada, "ineficiência".

Atribuição qu e será refutada mais adiante po r NS (e m 13:"posso ser um

esquilo eficiente de vez em quando") sob urna forma ironicamente

modalizada.

Portanto: no âmbito da simpatia, os dois debatedores chegam a con-

cordar (proposição de NS aceita por LP), mas, no da "eficiência", ocu-

pam posições opostas (proposição de LP refutada por NS). NS voltará

ao assunto de sua eficiência, mas, dessa vez, de modo sério, enquanto

aqui tudo se passa num registro lúdico; registro imposto por NS, que,nesse ponto de vista, dirige o jogo, enquanto, em princípio, é LP que

tem a deixa: NS consegue não só impor sua interpretação da metáfora,

mas também recuperar seu potencial humorístico, atraindo para seu

lado os que riem e destronando LP de sua pretensão de histrião. Ele

rivaliza com seu adversário em seu próprio terreno, porém num estilo

mais "simpático" (a ironia de LP é mais sarcástica que maliciosa).

11 Pode-se também falar de "conotações", porém "metassema" é mais preciso.

248

de esquilo", e a cabeça inclinada que acompanha o segundo "Cuidado".

Esse gesto cativante (através do qual alguns especialistas da comunicação

não-verbal descreveram virtudes reconfortantes e sedutoras) acompanha

um enunciado de conteúdo ameaçador; pode-se,no caso, falar de "mul-

timodalidade divergente", que permite a NS, atuando nos diferentescanais que tem à sua disposição, lutar ao mesmo tempo em duas frentes:

verbalmente, ele mantém seu adversário sob pressão, e, não verbalmente,

constrói de si mesmo um ethos "simpático"junto ao público.

Correlativamente, LP aparece corno "não simpático" e como um

debatedor menos invulnerável do que se poderia esperar. Ele caiu na

armadilha de sua retórica muito floreada, fornecendo a NS as armas

para derrotá-lo (inocentando-o, assim, de algum modo, dessejogo po-

lêmico, já que foi LP que "o provocou"...). Resumindo: LP foi ridi-cularizado por NS. Se essa seqüência é focalizada na identidade de

NS (que é negociada de modo explícito), a de LP não sai indene das

piruetas de NS, que ainda não esgotou completamente seu registro de

humor zombeteiro.

2.2.3, ULTIMASESCARAMUÇAS

I Ob LP [...] mais U tourne dans sã cace/ ronde/ f. ) en se donnattí l u i / _

Vimpression qu'ilfait/ beaucoup/ AS P mais alors qu'il n'avancepas_du tou:t ( . ) [...] et: c ê soi:r/ vous ne parlez qu e d'un ceríaín

nombre de sujeis/ (.)ASP tout particulièrement ceux su r lesquels

v ou s ave z (. ) remporté quelques succèsf (. ) limitésL d'aüleurs/_

mais mais/_r_éeh\ ( , ) et et: vous ne

{ f a l t e s u :- vousfaites u n u n]

II NS [ie v ou s remerde d e votre honnêteté

12 LP mais tout àfait v o u s savez qu e j R mis un h o m m e n k j e c t i f / / fflgü

(.)ASPet

249

 

Análises do discurso hoje

[euh vousfaites/ vousfaltes/]

13 NS jj e peux donc être_un_écureuil] de temps en t e m p s _ e j f i c a c e

14 LP heuheu ( r i re )ASP

A construç ão mútua das identidades nos debates pol í t i cos na televisão

- Em 12, LP retoma sob a forma do adjetivo "objetivo" o termo

"honestidade", utilizado por NS ("eu sou um homem objetivo, eu").

Essa reprise diafônica transforma u m a alo-atribuição positiva quase explícita

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lO b LP [...] mas ele roda em sua gaiola redonda, dando a si mesmo

a impressão que faz muito, mas não avança nem um pou-

quinho [...] e esta noite, o senhor fala apenas de um certo

número de assuntos, especialmente aqueles que o senhorrealizou com algum sucesso, limitados, aliás, mas mas reais e

e o senhor não faz u-não faz um uni...

11 NS Agradeço sua honestidade.

12 LP Mas completamente o senhor sabe que eu sou um homem

objetivo e o senhor faz, o senhor faz.

13 NS Então eu posso ser um esquilo, de tempos em tempos, efi-

ciente.

14 LP heu heu (riso).

- Em lOb,LP consegue, durante um bom minuto (cuja transcrição

não reproduzimos integralmente aqui) zombar de NS, que o deixa

afirmar, sem se opor, essa atribuição identitária, até o momento em

que LP admite que NS "obteve alguns sucessos, limitados, mas reais";

confissão que constitui um a atribuição explícita da propriedade "não c o m -

pletamente ineficiente" e " m e s m o parcialmente eficiente", pois a orientação

argumentativa global da estrutura é positiva, apesar das duas restrições

apresentadas ("algumas" e "limitadas, aliás").Simultaneamente, LP d e f i n e a si mesmo como imparcial e bom jogador ,

capaz de reconhecer os méritos do adversário.

— Em 11, NS explicita e s s a atribuição positiva (que passa então do esta-

tuto de auto-atribuição ao de alo-atribuição) "Eu agradeço sua honesti-

dade", que pressupõe"o senhor é honesto". M as esse elogio dirigido a LP

é efetuado de modo irônico (a ironia insinuando que a avaliação positiva

chegava um pouco tarde). Essa ironia é caracterizada igualmente pelo

agradecimento, com o qual NS exibe novamente u m ethos "polido".

25 0

(pois toma a forma de um pressuposto) e m u m a auto-atribuição posi-

tiva ainda mais explícita (isto é, "colocada"). Mas, além disso, pode-se

ver aparecer no enunciado, por causa da estrutura clivada ("je. . .mõi")

reforçada pelo esquema prosódico, o subentendido "não é como o

senhor" (alô-atribuição negativa bastante implícita}.

— Enfim, em 13, NS volta ao fi m da intervenção lOb , na qual LP

reconhecia "alguns sucessos" obtidos por ele (NS), e disso tira a con-

clusão:"eu posso ser, portanto, um esquilo que, de tempos, em tempos,

é eficiente". Essa transformação simétrica d e u m a alo-atribuição positiva em

auto-atribuição positiva é feita também ironicamente, pois fa z voltar à

baila, uma última vez, o esquilo, mostrando, no entanto, os limites dessa

metáfora (já que o reconhecimento de sua eficiência, mesmo que rela-

tiva, entra em contradição com a afirmação segundo a qual o "esquilonão avança nem um pouquinho").

Aparentemente surpreendido por esse novo dito espirituoso, LP

nã o pode deixar de recebê-lo, em 14, com um risinho, que marca o

fi m do episódio lúdico.

Poderíamos dizer que nessa passagem os dois debatedores fazem, de

modo assaz inusitado, um "ataque de polidez", pois eles reconhecem,

alternadamente, algum mérito ao adversário: LP reconhece em NS

uma certa eficiência, e NS reconhece em LP unia certa honestidade.

Porém, ao mesmo tempo, cada um deles aproveita para se auto-atri-

buir, em quiasma, o mérito em questão (a objetividade, para LP, e

a eficiência para NS); auto-atribuições tanto mais plausíveis por se

basearem num fenômeno de diafonia12 , o que significa que elas reto-

mam uma avaliação vinda de outro lugar e, ainda por cima, do próprio

adversário. Alérn disso, tudo se passa no modo da ironia zombeteira,

que não é muito adaptada ao estilo de LP,mais à vontade no registro

12

No sentido de Roulet, em RouleC et ai. (1985).

25 /

 

Análises do discurso hoje

sarcástico: é NS quem dá o tom, e LP parece ter alguma dificuldade

em segui-lo nesse terreno (ou então: eie é visivelmente "arrastado"

para esse terreno).

A constntção mútua das identidades nos debates políticos na televisão

paz")14, endossando o ethos de um denunciante lúcido e sem complacência.

Porém, embora NS esteja reduzido ao silêncio, não lhe é proibido

exibir, através de seu comportamento não-verbal, um certo ethos. É

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No fim dessas primeiras 14 intervenções, fica claro que LP, de

quem, no entanto, se esperava que ocupasse o terreno e dominasse a

interação, como novo participante no debate, encontra-se seriamente

enfraquecido pelas pequenas incursões de NS, que são como "banda-

rilhas"13 que lhe são infligidas e que têm como conseqüência arranhara imagem tradicionalmente ligada à sua pessoa: a de um debatedor

temível, do qual é difícil conter a verve polêmica. Com suas escaramuças

repetitivas, NS conseguiu "minar" o ethos lepenista e, ao mesmo tempo, re-

duzir com antecedência o impacto da diatribe na qual finalmente LP

pôde se lançar, de uma vez por todas, na intervenção 14.

2,3. No va diatribe de LP

O ataque propriamente dito dura quase dois minutos, durante os quais

LP se empenha em denunciar, com a virulência costumeira, a incapaci-

dade dos dirigentes para reduzir as dificuldades do país, especialmente

os problemas de insegurança, novamente acusando de ineficiência NS

e o governo que ele representa. NS abstém-se de interrompê-lo, espe-

rando polidamente que o moderador julgue que chegou o momento

de lhe dar a palavra, para que-ele possa formular sua resposta.Mas não

é fácil fazer LP se calar. Após quatro tentativas infrutíferas de OM,

NS decide ajudá-lo e se lançar na confusão. Sob a pressão dessa duplasolicitação, LP acaba abandonando a palavra em favor de NS. Antes de

saber que uso este vai fazer dela,duas observações sobre essa passagem,

que é essencialmente de natureza "monologal", sãonecessárias.

Como LP é quase exclusivamente o único a ocupar o terreno nes-

sa passagem, ele é também o principal gestor das identidades mútuas:

ele constrói, portanto, uma imagem negativa de NS (" a de um in-ca-

13 O termo francês é "banderilles".Trata-se dos pequenos artefatos coloridos

que o toureiro finca no pescoço do touro, durante a corrida.(N.O.)

252

o que se passa no momento em que LP evoca as desventuras de um

oficial harki15: vemos, então, NS aparecer na tela com uma fisionomia

séria (não é hora de sorrir!) que deve refletir um ethos ao mesmo

tempo responsável e compassivo. Belo exemplo do que chamamos um

ethos de ouv inte , que só pode ficar accessível aos telespectadores com acumplicidade do c am era-m an .

No instante em que OM tenta pôr fim à tirada de LP, este dáprovas

de uma tal determinação na recusa de ceder a palavra que seu compor-

tamento é susceptível de prejudicar seu ethos — sua eloqüência pode

ser tomada por logorréia e sua obstinação, por falta de respeito para

com seu interlocutor e para com as regras do debate ( p r o j e ç ã o d e um

ethos descartes). NS, ao contrário, prossegue no seu trabalho de construção

de u m ethos polido: ele espera, para tomar a palavra, qu e esta lh e seja ofe-recida pelo animador, pelo menos até que, diante da dificuldade dessa

operação, ele intervém, mas em termos muito educados ("senhor Lê

Pen, se o senhor permite um debate";"posso continuar").

2.4. NS contra-ataca

21a NS [monsieur Lê Pen/ si v o u s permettez u n débat/ (. ) alors monsieur

Lê: [monsieur lê Pen] (.)]&

22 OM [monsieur Sarkozy\]

14 No decurso dessa intervenção (d a qual não reproduzimos aqui a transcrição po rfalta de espaço), LP usa estas palavras, que pronuncia escandindo as sílabas para au-mentar seu impacto: " Vo us ètes bien súr ín-ca-pa-ble d'ordonner qu'il retourne dans sonapparfement" [O senhor é, com certeza, in-ca-paz de ordenar que ele volte para seu

apartamento].15 A denominação "Harki" fo i dada a argelinos que lutaram ao lado dos franceses e quese posicionaram contra a liberação da Argélia. O problema éque,depois da guerra en-tre a França e a Argélia, esses soldados e suas famílias foram desprezados por aqueles ao

lado de quem combateram e, naturalmente, pelos seus próprios compatriotas.(N.O.)

2 5 3

 

Análises do discurso hoje

21b NS & si v o u s permettez un débat \ ( 0 . 9 s ) m ó i je considere que mon

devoir ( .) cent minutes pour convaincre ( .) c'es t de convaincre\ ( .)

et qu'gn ne convainc pás dans lês saiam ( . ) e t âonc oui ( . ) p o u r

A c o n s t r u ç ã o mútua das identidades nos deba tes pol í t i cos na televisão

21b NS Se o senhor permite um debate, eu considero que meu

dever, cem minutos para convencer, é convencer e que

não se convence nos salões e então, pela segunda vez, eu

reivindico debater com o senhor. Não tenho suas idéias,

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Ia ãeuxièmefois (.)je revendique de de: ( . ) de débattre_ave_c vous\

(. ) je n'ai pás vos idées[(...) m a i s a u moins m a i s mais]

23 LP [a h b en heureusement/ ] (..) [mais enfin v o us y venez/]

24 NS [attend- (.) puis-je_/_p_uis-je/2

puis - je cont inuer ( . ) ma is je veux/ ( . ) face à face / ( . ) démontrer

pourquoi/ v o u s avez tor t ( .) premièrement/ ( .) lês banlieues\ ( .)

v o u s m e dites f .) je n'y vais pas\ ( . ) je v o u s m e t s au d é f i mon-

síeur Lê P e n ( . ) d e m e ater u n quartier ouje n'aipas é té \ ( . ) ou

j'aumis pá s lê droit d'entrer/ ( . ) e t ou sije rentmis/ (. ) ca p r o -

voquerai t ( . ) une émeute \ ( .) première re m arq u e \ (. ) deuxième/

remarque monsieur Lê Pen\ ca fa i t d ix-neuf m ó i s qu e j'ai Ia

responsabili té lour de d e ministre âe_VJfntérieur\ í.lje ne ai s pás/

qu e tout çe g u e j'fais esiMen/ nature l lement/ (. ) je ne douíe

pásl que tou t est réglé:/ (.) m a i s vous-méme v o us a v e z reconnu

quelques succès (. ) mais monsieur Lê Pen ( . ) qu'est-ce qu e dans

tout/ ç e quej'aifaít\ (.)je n'auraíspás düfai re/ ( . ) e t vous/ {, )

qui connaissez tant/ de choses\( . ) dites/-mói çe que j e devrais

faire ( .) p o u r êtreplus ejjicace\ ( .) p a r c e qu e monsieur lê Pen c'est

u ne chose/ d e parler \ ( . ) c o m m e vous_parlez depuis tantl â'an-

nées\ ( . ) de designer dês adversaires ( .) de^pjojesjer (. ) d 'éruc ter/

(. ) de designer dê s ennemis à Ia nation (. ) de jouer / su r lês p e ur s

(. )c'en est une

autre/ d'essayerde faire çe

quejefais( .) avecbien sur dê s insuffisan:ces ( .) d'e$sayer au quotidien/ AS P cette

d a m e / su r lepor t (. ) quand elle disait oui::/ ( . ) U essaye de fai re

çe qu'U peut ( . ) ben au m o i ns m ó i q ua nd je me regarde âans Ia

glace ( . ) je me d is que pendant deux ansj'auraí essaye de faire

quelque chose/ ( . ) e t v o u s monsi_eur_JLe P en qu'est-ce qu e v o u s

proposez pour résoudre lê p r o b l è m e \

21 a NS Senhor Lê Pen/ se o senhor permite um debate, entãosenhor Lê: senhor Lê Pen...

22 OM Senhor Sarkozy.

254

mas ao m enos, mas mas...23 LP Ah! Felizmente. M as enfim o senhor chega.. .24 NS Espere, posso, posso continuar? M as eu quero face a face

demonstrar por que o senhor está errado. Primeiramente,os subúrbios, o senhor m e diz: eu não vou lá. E u o desafio,

senhor Lê Pen, a me citar uni bairro onde eu não estiveou on de eu não teria o direito de entrar e, se eu en-trasse, isso provocaria uma rebelião, primeira observação.Segunda observação, senhor Lê Pen, fa z dezenove mesesque tenho a pesada responsabilidade de ministro do Inte-

rior. Não digo que tudo o que faço é bom; naturalmentenão duvido que tudo é decidido, mas o senhor mesmo

reconheceu algum sucesso. M as, senhor Lê Pen, o queem tudo o que eu fiz eu não deveria ter feito? O senhor,que conhece tantas coisas, diga-me o que eu deveria fazer

para ser mais eficiente, porque, senhor Lê Pen, uma coisaé falar, como o senhor faz há tantos anos, designar os ad-versários, protestar, arrotar, indicar à nação os inimigos,aproveitar-se dos medos; outra é tentar fazer o que eufaço com certamente insuficiências; tentar no cotidiano.Aquela senhora, no porto, quando ela disse: sim, ele tenta

fazer o que pode, bem, eu ao menos, eu quando me olhono espelho digo a mim mesmo que durante dois anostentei fazer alguma coisa. E o senhor, senhor Lê Pen, oque sugere para resolver o problema?

2.4.1. QUANDO NS R E T O M A SE U " E T H O S H A B I T U A L "

O comportamento zombeteiro adotado até aqui diante de LP por um

NS relativamente calmo (mesmo se continua de sobreaviso) não cor-

255

 

Análises do discurso hoje

responde ao que se espera habitualmente do personagem (LP também

não parece estar preparado para isso). Mas depois do requisitório de LP

na intervenção 14, NS não pode mais fugir à polêmica: ele vai contra-

atacar, endossando um ethos que lhe é claramente mais costumeiro:

A construç ão mútua das identidades nos debates políticos na televisão

autoritárias como "diga-me o que eu deveria fazer", "o que o senhor

propõe para resolver o problema" ou "que medida eu deveria tomar"

(pergunta com valor de injunção, repetida cinco vezes).

A firmeza, e mesmo a brutalidade na realização das refiitações ou das

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ethos que descrevemos detalhadamente, a partir da análise de um outro

episódio dessa mesma emissão, em que Sarkozy se confronta comTa-

riq Ramadan, no artigo mencionado na introdução, e que consiste em

afirmar as qualidades de firmeza e determinação.A determinação é marcada primeiramente pelo verbo "querer" na

primeira pessoa ("eu quero [...] demonstrar porque o senhor está erra-

do")16 assim como pelo verbo "tentar" que aparece pelo menos quatro

vezes no fim da longa intervenção 24. Quanto à firmeza , ela caracteriza

tanto os enunciados assertivos quanto os diretivos. No que concerne às

asserções, NS adota um posicionamento claro, face ao seu interlocutor,

do qual procura se distinguir,sem dúvida para se inocentar daacusação

de ciscar no mesmo terreiro que o presidente do Front National ("não

tenho suas idéias"17

, "o senhor está errado", e rnais adiante, em 42 "éfalso, senhor Lê Pen [...] é duplamente falso"). No que diz respeito aos

atos diretivos, desde o início da intervenção 24, NS se dedica a um de

seus atos de linguagem favoritos, que consiste em "desafiar" o adversá-

rio (quer dizer, "ordenar-lhe que faça alguma coisa, dando a entender

que o acha incapaz de fazê-lo", segundo o Dicionário Petit Rober t) "Eu

o desafio, senhor Lê Pen, a me citar um bairro [...] onde [...] se eu en-

trasse, isso provocaria uma rebelião"18 — a expressãoserá retomada um

pouco mais adiante sob a forma "desafio quem quiser me demonstrar

o contrário". Encontram-se também aí variantes um pouco menos

16 A freqüência do "eu quero", no discursosarkoziano (encontram-se, por exemplo,55recorrências na alocuçào feita na universidade de verão do Medef, em 30 de agosto de

2007), fo i assinalada po r numerosos analistas.17 Note-se a leve estranheza desse encadeamento:"eu nã o tenho suas idéias, ma s quero

demons trar que o senhor está errado".18 Essa afirmação torna retroativamente um aspecto involuntariamente irônico... (as~sim como a de LP à qual ela responde assume um caráter premonitório: "quando o

senhor quiser ir a esses bairros, pois bem, o senhor enfrentará formas de rebelião de

estilo insurrecional").

256

injunções, se manifestam não apenas verbalmente (para isso contribuem

igualmente os termos de interpelação que proliferam na intervenção 24,

na qual se encontram cinco ocorrências de "senhor Lê Pen"), mas tam-

bém por meios paraverbais e não verbais. No que diz respeito à prosódia,vamos encontrar aqui o padrão que constitui, de alguma forma, a cartei-

ra de identidade social de Sarkozy: uma sucessão de segmentos de frase

acompanhados por uma melodia àsvezes ascendente, outras vezes descen-

dente, seguidos de uma pausa bastante longa, o que produz um forte efeito

de autocontrole e de autoridade. No que concerne à mimogestualidade,

vamos encontrar as unidades mais características do gestual sarkoziano: o

punho fechado acompanhando "é convencer" (gesto que conota a ener-

gia, o "puncti') e o dedo acusador em riste, acompanhando "eu o desafio,

senhor Lê Pen" e "o senhor que conhece tantas coisas19, diga-me".Referem-se à mesma isotopia as qualidades de combativ iâade e co-

ragem que NS reivindica nessa passagem: para começar, ele tem a co-

ragem de afrontar, "face a face" e pela "segunda vez", esse debatedor

considerado temível que é LP ("sim, pela segunda vez, reivindico de-

bater com o senhor") e isso porque "não se convence nos salões",mas

nos palcos da televisão, transformados em arena onde se combate tanto

quanto se debate, mas também coragem de ir a campo, até mesmo

aos "subúrbios", essa reivindicação identitária sendo enunciada sob o

modo da refutação ("o senhor diz que eu não vou lá" retoma a decla-

ração precedente de LP sobre "as zonas de não-direito").

Tudo isso contribui para dar a impressão de que, nessa longa tirada,

NS se concede um diploma de auío-satisfação: fi z tudo o que devia

fazer e nada que não devesse fazer; é o que nos diz através dessas per-

19 Se NS não se priva de infligir esse gesto a seus interlocutores, ele não suporta servítima dele, como o atesta essa réplica a Segolene Royal, por ocasião do debate de

03/05/2007:"acalme-se e não me aponte o dedo!"

257

 

Análises do discurso hoje

guntas e injunções endereçadas a LP; portanto "quando me olho no

espelho" não me envergonho de minha imagem, já que fiz meu "de-

ver" (a palavra fo i pronunciada no início da intervenção). Porém, essa

A cotistrução mútua das identidades nos debatespolí t icos na televisão

está aquém d e qualquer a ç ã o : ele fala, ele fala, é tudo o que sabe fazer! e

ainda mais, o único dizer de que é capaz é um dizer não construtivo,

mas destruidor, vingativo e venenoso. A partir da metade dessa inter-

venção 24, NS se lança num requisitório impiedoso no qual acusa

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demonstração de auto-satisfação (associada à recorrência do pronome

de primeira pessoa, às vezes sob a forma enfática m ó i [ . . .] je ) correria

o risco, com a repetição, de produzir um efeito desastroso de falta de

modéstia: NS matiza, então, seu balanço — globalmente positivo, é

claro — com algumas autocríticas que, aliás, são bem vagas (eu nãodisse que tudo o que eu faço é bom, naturalmente", "não duvido que

tudo esteja decidido"20,"e, é claro, com algumas insuficiências").

Mencionemos, enfim, que, em outro nível, NS mostra um ethos pe-

dagógico, que, geralmente, ele gosta de exibir, graças a uma dicção pau-

sada, ao recurso constante a organizadores discursivos de apoio ("Para

começar, os subúrbios [...] primeira observação [...] segunda observa-

ção, senhor Lê Pen"; o gesto sistematicamente unido à palavra) e ainda

às perguntas retóricas21: Nicolas Sarkozy gosta de fazer perguntas e de

dar as respostas,e também de adotar a postura de quem está dando u m al i ç ã o (lição aqui de cortesia e de eficiência).

2.4.2. QUANDO NS P R O P Õ E UM A D E F I N I Ç Ã O DE LP

Ao mesmo tempo em que propõe de si mesmo uma definição bastante

vantajosa, NS reduz seu adversário a uma imagem nã o muito brilhante:

é um "pedante", fechado em sua retórica prolixa, um irresponsável (en-

quanto ele,NS, tem "a pesada responsabilidade de ministro de Interior")

que nada sabe dos meios reais que se deve utilizar para levantar o país

(pois "o senhor que conhece tantas coisas" é evidentemente irônico).

Na verdade, NS nada fa z aqui além de pagar LP com a mesma

moeda, porém com exagero: LP acusou-o de se agitar inutilmente,

isto é, estar agindo, mas ineficientemente; NS retruca, então, que LP

20 Trata-se evidentemente aqui de uni lapso (revelador?).21 Sobretudo, mais adiante, nas intervenções 40-42: "e por que eu não quis que ele

fosse expulso? Porque [...]", "porque posso ser firme, porque eu sou justo".

258

Lê Pen de "arrotar" ("é uma coisa falar [...], protestar [..], arrotar [...].

aproveitar-se dos medos"); é então que podemos medir todo o inte-

resse da estratégia empregada por NS, no início de seu encontro com

LP, que consistiu, como vimos, em deixá-lo falar sem interrompê-loa não ser por pequenas incursões "assassinas": sso permitiu que LP se

exibisse como "arrotador", de modo que, quando chega a qualificação

explícita, ela tem mais impacto do que se NS o tivesse logo tratado de

"arrotador"; acontecendo logo após LP ser apanhado em lagrante delito

d e "eructação", ela não se arrisca a passar po r gratuita.

Diante dessa operação de sabotagem do ethos (de contestador elo-

qüente ei-lo rebaixado ao nível de "comediante de salão", de histriãoparanóico), LP se agarra a seu registro preferido: a zombaria. Ele de-

senvolve a idéia de que NS invade seus direitos, acusando-o de serapenas uma cópia pálida de si mesmo (para fazer isso, chama em seusocorro não mais um oficial harki, mas um "compatriota negro" que

julga que "Sarkozy seria um bom ministro se fosse ministro de Jean-

Marie Lê Pen"), ao que NS retruca dando-lhe o troco na mesma moe-

da: "o senhor resistiria muito tempo, senhor Lê Pen"; ele faz outras

brincadeiras do mesmo gênero, divertindo-se em adornar NS com

atributos que são de preferência seu apanágio (corno "a demagogia"):

ele o ataca enfim com a questão da pena dupla, e NS se apropria, então,

desse "ponto capital" para se justificar em termos veementes ("é du-

plamente falso", "desafio qualquer um a provar o contrário", etc.) atéessa declaração em forma de conclusão:

eh bien mói monsieur Lê P en etj'en termine pa r lá ( .) pourquoíje peitx

êtreferme\ (. ) p a r c e queje sui:s jjjuste\

Pois bem, senhor Lê Pen, e por aqui eu termino porque posso ser

fi rme e porque sou justo.

259

 

Análises do discurso hoje

Declaração que não só nos oferece um condensado da retórica

sarkozíana ("moi...je",perguntas puramente oratórias, entonações des-

cendentes, seguidas de pausa, dedo indicador em riste, auto-definição

valorizadora), mas que também nos permite voltar a falar, mas, para

A construç ão mútua das identidades nos debates políticos na televisão

o senhor que é ministro do Interior, o senhor faz bastante mal o seu

trabalho; NS: eu, que sou ministro do Interior, faço meu trabalho o

melhor que posso).

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concluir, das noções de "ethos" e de "identidade".

3 . Conclusão

Recapitulemos os principais componentes identitários exibidos e atri-

buídos por nossos dois protagonistas na seqüência estudada:

LP se define como perseguido e como denunciador sarcástico, mas

"objetivo", da impotência de seu adversário para resolver osproblemas

do país. Ao mesmo tempo, fa z de NS o retrato de um excitado, parcial,

demagogo e, sobretudo, ineficiente.

NS se define como simpático, cortês, capaz de humor e de malícia e,

sobretudo, firme e enérgico, logo eficiente; determinado, corajoso e em-preendedor, satisfeito com seus resultados, mas consciente de seus limites;

claro e honesto em suas explicações. Faz LP aparecer como uni persona-

gem grosseiro, um comediante de salão, que só serve para "arrotar".

Entre esses diversos componentes, apenas fazem parte verdadei-

ramente do ethos os atributos que o locutor "exibe" de si mesmo

pelo conjunto de seu comportamento discursivo, verbal e não-ver-

bal (exemplo: "a firmeza"). Vêm-se acrescentar a estes, de um lado,as

propriedades que o locutor atribui de fo rma explícita ou implícita

ao seu interlocutor e, de outro lado, as que ele reivindica aberta-

mente por meio de autoqualificações (como "eu sou justo" ou "eu

sou eficiente"), sempre que possível argumentadas pela lembrança de

alguns fatos alusivos qu e atestem essas qualidades. A eficiência ou o

sentido de justiça são,assim, qualidades dificilmente "ethosisáveis"; elas

se medem menos por comportamentos discursivos do que por reali-

dades extradiscursivas. Isso é ainda mais evidente numa característica

objetiva, como "ministro do Interior", lembrada por LP e também

pelo próprio NS, mas com orientações argumentativas opostas (LP:

260

Por outro lado, o processo das construções identitárias não poderia

ser reduzido a um simples inventário de projeções e atribuições pelas

seguintes razões (entre outras):

a) Os atributos identificáveis são raramente "quimicamente puros";

por exemplo:

- o ethos "polido" de Sarkozy: se este multiplica as fórmulas de

cortesia (especialmente para iniciar a troca ou se apropriar da inter-

venção), vimos que a saudação em 5 era de uma polidez duvidosa e

que o agradecimento em 11 também era pleno de ironia;

— o ethos " f a i r play" dos dois debatedores (única característica co-

mum a ambos), consistindo em aceitar reconhecer alguns méritos no

adversário22 (intervenções lO b a 13): essa pequena troca de amabili-

dades aparentes, além de ser feita inteiramente sob um modo irônico,serve na verdade apenas como pretexto para uma dupla autopromoção

(" o senhor obteve alguns sucessos" logo se transforma,na boca de LP,

em "eu sou objetivo; e "o senhor é honesto", na de NS, em "eu sou

eficiente"), guarnecida, no caso de LP, por uma alusão pérfida ("não é

como o senhor, que não é objetivo").

b) Esses atributos são de natureza muito heterogênea e suas ma-

nifestações (mais ou menos explícitas ou implícitas), extremamente

variáveis. Não são também de importância igual: LP se "apresenta",

sobretudo, como é seu hábito, como denunciador sarcástico, e NS,

como campeão valoroso da ação política no cotidiano.

c) Esses atributos devem, enfim, ser considerados em relação à dinâ-

mica da interação, isto é, segundo a maneira como são introduzidos: se

de maneira iniciativa ou reativa, negociados ou não, aceitos ou refuta-

dos. O ponto central é, então, a questão da eficiência ou da não-eíicien-

22 Ou o direito de ter uma opinião contrária (cf. Sarkozy em 33: "o senhor me acusa

de não ser eficiente, e é direito seu".

261

 

Análises do discurso hoje

cia de NS, pois é toda a seqüência analisadaque se reduz, em suas gran-

des linhas, a uma longa negociação entre LP, que diz a NS "O senhor

não é eficiente", e NS retorquindo (e habilmente utilizando o próprio

A construç ão mútua das identidades nos debatespolí t icos na televisão

apresenta o risco de conotar unia "egomania"24 prejudiciala seu ethos,

e contribuir para a impressão de que ele exibe uma auto-satisfação

excessiva, apesar de algumas precauções tomadas ("não digo que tudo

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LP) "Eu sou eficiente, sim". Ao mesmo tempo em que reivindica sua

eficiência no campo político, NS demonstra incontestavelmente, nes-

sa passagem, sua eficiência como debatedor, e, mais particularmente,

como administrador da s identidades mútuas. Desse modo:

1) Enquanto mantém um " p e r f i l éthico" coerente, NS explora um apalheta mais extensa de traços que seu adversário, mais monolítico.

Poder-se-ia assim mostrar que, muito mais que seu adversário, ele con-

segue aproveitar o conjunto dos recursos de que dispõem os oradores

para construir sua identidade, recursos esses tanto verbais quanto não-

verbais, explícitos ou implícitos (o s procedimentos implícitos apresen-

tam a vantagem de dar menos lugar à refutação que as reivindicações

explícitas).

2) LP e NS se esforçam ambos, é claro, em construir uma imagempositiva de si mesmos e uma imagem negativa um do outro. Porém, en-

quanto LP privilegia claramente o registro do ataque,NS pratica tanto

a autovalorização quanto a desvalorização do adversário (é exemplar a

intervenção 24, em que se equilibram bem a diatribe contra Lê Pen e

a defesa em causa própria). Notemos que a estrutura ímoi...je"/ "je...

m ói" é bastante útil neste caso, com o subentendido polêmico que ela

traz. O melhor exemplo é a conclusão da intervenção 24, na qual o

subentendido é reforçado por "ao menos": "eu ao menos eu quando

me olho no espelho digo a mim mesmo que durante dois anos tenteifazer alguma coisa" — e que, portanto, posso estar orgulhoso de mim

mesmo, enquanto o senhor, senhor Lê Pen, o senhor deve ter vergonha

de sua imagem quando se olha no espelho.23 Observemos também que

essa estrutura pronominal, da qual todos sabem que NS usa e abusa,

23 Como vimos, LP também recorre a esse procedimento em 12, "afirmando", for-

temente pela entonação, o subentendido zombeteiro (" o senhor sabe que eu sou um

homem objetivo, eu").

262

o que eu faço é bom, naturalmente", "claro que com algumas insu-

ficiências"), porém, sem ter a certeza de que elas consigam neutrali-

za r completamente os efeitos negativos desse componente identitário

"projetado", mas não certamente "reivindicado".LP se abstém todavia

de explorar esse pequeno defeito do ethos sarkoziano, enquanto, po rseu lado, NS não se priva de apontar as falhas de comportamento de

LP para os telespectadores, que podem constatar a exatidão de suas

imputações (coincidência entre o ethos exibido por LP e o que lhe é

atribuído por NS).

3) Se os debatedores devem administrar conjuntamente sua própria

imagem e a do outro, também devem se esforçar por integrar ao seu o

discurso do outro: NS é excelente nesse exercício, como vimos: espe-

cialmente no uso que fez da metáfora do esquilo, de que ele se apro-priou, invertendo o valor axiológico e mandando-a de volta como um

bumerangue, em direção ao seu adversário, qu e terá dificuldade para se

restabelecer do choque recebido.

4) A dupla operação de autopromoção e de demolição do inter-

locutor se baseia finalmente na s capacidades de adaptação das partes

em presença: adaptação à situação, aos status e aos papéis de cada um

(NS devendo, po r definição, defender sua atuação,e LP atacá-lo), assim

como às"imagens prévias" ligadas aos debatedores logo que entram em

cena, imagens que eles vão poder explorar, a fi m de desestabilizar ou

desqualificar o adversário.É assim que NS vai explorar o que ele sabe

do ethos habitual de LP para colocar suas estratégias de "sabotagem" já

analisadas, a fim de desativar as pequenas "bombas" retóricas que seu

adversário preparara para lançar na arena durante o debate,LP, sabendo

que sua imagem está fortemente comprometida pela desconfiança de

24 O u "egocracia", para retomar o título de um artigo do jornal Lê Monde 2

(24/1 l /2007):"Sarkozy, o egocrata".

2 6 3

 

Análises do discurso hoje

racismo, vai tentar provocar surpresa, convocando sucessivamente, para

sustentar suas alegações, um oficial harki e um "compatriota negro",

sem, no entanto, cessar de brandir o espectro da imigração. Há limites às

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possibilidades de remodelagem das identidades:é bom surpreender, mas

com a condição de não contrariar demais as expectativas do público!

Pois, é claro, é o público dos telespectadores que se trata, antes de

tudo, de seduzir e convencer... É a esse público, único e verdadeiro juiz

dessa dramaturgia das imagens, que se destina, em primeira e última

instância, no contexto midiático, o espetáculo dos afrontamentos iden-

titários. Espetáculo com fim quase sempre incerto, pois a proximidade

é grande entre atributos avaliados positivamente, como a firmeza e a

eloqüência contestatória, e seu simétrico negativo, como o autorita-

rismo "egocrático" ou a vociferaçao venenosa: pode-se pensar que o

talento de um debatedor se baseia em grande parte na habilidade pela

qual ele consegue drar partido dessa instabilidade das características

éthicas e dos atributos identitários.

Referências

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264

ANÁLISE D E DISCURSO CRITICA:

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NA M Í D I ADenize Elena Garcia da Silva (UnB)

Viviane Ramalho (UnB/UCB)

1. Introdução

Situar a Análise de Discurso Crítica (ADC) na esteira dos estudos do

discurso que, hoje, recobrem uma gama variada de propostas teóricas,implica a necessidade de resgatar o início de uma trajetória que reuniu

cinco estudiosos, cujas idéias se coadunaram no eixo dos aspectos so-

ciais da linguagem. Em lugar de privilegiar uma discussão acadêmica

voltada tão-somente para questões de natureza lingüistico-discursiva,

o grupo decidiu considerar, como ponto de partida, problemas sociais

predominantes, privilegiando uma perspectiva em favor dos desfavore-

cidos, em contraste com aqueles que detêm o poder.A linguagem pas-

sa, a partir de então, a ser cada vez mais enfocada como prática social e

o discurso como um objeto historicamente produzido e interpretadoem termos de sua relação com estruturas de poder e ideologia.

O referido grupo, formado por Gunther Kress (Universidade de

Londres), Norman Fairclough (Universidade de Lancaster),Teun van

Dijk (Universidade de Pompeu Fabra),Theo van Leeuwen (Univer-

sidade de Artes de Londres/Faculdade de Comunicação de Londres),

Ruth Wodak (Universidade deViena; Universidade de Lancaster), ha-

via-se reunido, pela primeira vez, por ocasião de um simpósio cele-

brado em Amsterdã, em janeiro de 1991. Durante dois dias, os cinco

 

Análiíes do di scur so hoje

pesquisadores discutiram teorias e métodos, voltados de modo especial

para uma abordagem nova que se fortalecia, naquele momento, na

esteira da Lingüística Crítica.

A partir desse evento, que reuniu, no dizer de Wodak, o "grupo

Análise de Discurso Crí t ica : representações sociais na mídia

que envolvem questões de educação, letramento,bem como assimetrias

de poder, de gênero social e de hegemonia, entre outros, razão pela qual

estimula estudos que envolvam desde discursos institucionalizados, de

âmbito educacional, religioso, político, econômico e midiático, até os

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científico dos iguais", a Criticai Discourse Analysis (CDA) começa a flo-

rescer na Europa e chega ao Brasil, em 1993, pelo trabalho pioneiro

de Izabel Magalhães, na Universidade de Brasília (UnB), com a sigla

de ADC, o que marca a entrada do "grupo de Brasília" no cenário dos

estudos do discurso voltados para urna lingüística crítica.1 Em maio

de 1998, durante três dias, Fairclough participou na UnB, juntamente

com Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP) e pesquisadores brasileiros,

do /// Encontro Nacional d e Interação em Linguagem Verbal e Não-Verbal

(III ENIL), cujo tema central, Análise d e Discurso Crí t ica , privilegiou

debates voltados para uma concepção de educação como prática social

transformadora. Nas trilhas do pensamento de Paulo Freire (1983),

buscou-se questionar problemas existentes na realidade brasileira, bemcomo apontar mecanismos para sua superação.2

Assim é que aADC, desde as suas origens como escola (CDA),traça

como escopo central o incentivo à pesquisa lingüístico-discursiva vol-

tada para causas sociais em favor das minorias. Propõe investigações que

configurem a busca de soluções para problemas decorrentes de discursos

1 Para caracterizar algumas das posições assumidas pelo grupo, valemo-nos, aqui, depalavras de Rajagopalan (2003, p. 12), para quem "acreditar na lingüística crítica éacreditar que podemosfazer a diferença",assim como "acreditar que o conhecimento

sobre a linguagem pode e deve ser posto a serviço do bem-estar geral", o que implicacolocar os estudos lingüístico-discursivos em favor dos que vivem em situação dedesigualdade social.2 Em outubro de 2004, para comemorar os dez anos de pesquisas do referido "grupode Brasília", Denize Elena Garcia da Silva (UnB) , M ar ia Christina D i n i z Leal (UnB)e GuilhermeVeiga Rios (UnB-Nelis) organizaram, dentro do VII ENIL,o / SimpósioInternacional de Análise de Discurso Crítica. O dup lo evento foi marcado pela presença deEnrique Bernárdez (Univ. de Madrid),Jacob M ey (Universidade de Odense), Carlos

Gouveia (Universidade de Lisboa), bem como da catarinense Carmen Rosa Caldas-Coulthard (Universidade de Birminghan), cuja colaboração com o grupo da UnBtem feito do EN IL, mais que um evento (itinerante hoje em dia), um espaço da AD C

brasileira de projeção internacional.

206

que envolvem relações implícitas e explícitas de lutas de classe, confli tos

interétnicos e de discriminação, tais como o racismo. Constitui, assim,

uma corrente teórica que se caracteriza como uma forma de pesquisa

social e, como tal, eqüivale a uma prática teórica crítica, principalmente

porque leva em conta a premissa de que situações opressoras podem

ser mudadas, uma vez que decorrem de criações sociais passíveis de

se r transformadas socialmente. Mas a ADC não configura apenas uma

proposta de caráter multidisciplinar, voltada para questões sociais, uma

vez que se constitui também como método de análise.

Apresentaremos, neste artigo, uma das perspectivas teórico-meto-

dológicas da ADC, assinada por Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough

(1999). De início, sumarizamos alguns conceitos que consideramos re-levantes na proposta do s dois autores, tais como prática social, ideologia e

crítica explanatória, os quais podem subsidiar estudos críticos de discurso

hoje. Em seguida, ilustramos a aplicabilidade desse suporte científico

com exemplos de duas pesquisas, que desenvolvemos na UnB, com

enfoque analítico voltado para a representação, categoria que nos permi-

te descrever e interpretar finalidades e legitimações das práticas sociais,

A primeira pesquisa, aqui, brevemente apresentada, tem como objeto

de estudo duas realidades — pobreza nas ruas e ruptura familiar ,

problemas que acentuam a questão social no contexto brasileiro. A

segunda, uma tese de doutorado, investiga o discurso da propaganda

brasileira de medicamentos e sua relação com questões de poder.

Com a discussão da proposta teórico-metodológica mencionada,

seguida de exemplos de análise de duas pesquisas distintas, objetivamos

3 A referida pesquisa vincula-se a um projeto mais amplo, desenvolvido em parceriacom quatro países da América do Sul: Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela, qu e

formam a Rede Latino-americana de Es tudos do D iscurso — REDLAD.

267

 

Análises do discurso hoje

ilustrar, ainda que de maneira sucinta, o amplo espectro de aplicaçõesda ADC, não só no que diz respeito às noções gerais oferecidas dentro

desse arcabouço teórico, mas também no que tange às categorias de

análise textual, voltadas par a nossa realidade social, ou seja, o contexto

Análise de Discurso Crí t ica: representações sociais na mídia

p. vii). Nesse sentido, a pobreza e o abandon o familiar, assim como prá-

ticas inadequadas de consumo de medicamentos em nossa sociedade,

não são apenas problemas políticos e sociais, mas também problemas

lingüístico-discursivos, conforme problematizamos neste artigo.

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brasileiro.

2. Perspectiva crítico-explanatória para estudos Kngüístico-

díscursivos

A vertente britânica daAnálise de Discurso Crítica (ADC), apresenta-

da em Fairclough (2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999), configura

uma abordagem científica transdisciplinar para estudos críticos que

se ocupam da linguagem, tanto na sua exterioridade quanto na suainterioridade. Como sugere Fairclough (2003), a proposta se insere na

tradição da "ciência social crítica", com prometida em o ferecer suporte

científico para questionamentos de problemas sociais relacionados apoder e justiça. De acordo com o autor, a contribuição da pesquisasocial crítica esta em procurar compreender como são produzidos pe -las sociedades tan to os efeitos benéficos (como distribuição de renda),

corno os maléficos (tais como os gerados pela desigualdade social eeconômica), e como os efeitos maléficos podem ser mitigados ou, em

condições propícias, eliminados. Consideramos que a pesquisa social

crítica começa com questionamentos a respeito de como as sociedades

podem prover algumas pessoas com tantos recursos e possibilidades

para enriquecer e satisfazer vidas, e como, por outro lado, negam aoutras esses recursos e possibilidades.

Trata-se, ainda, de um modelo que dialoga com outras perspectivasteóricas, tais como a Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF), uma vez

que operacionaliza seus conceitos e aplica suas categorias, o que será

ilustrado mais adiante na seção analítica. M as tal abrangên cia se expli-

ca pelo entendimento de que a relação entre linguagem e sociedade

é interna e dialética, ou seja, de que "questões sociais são, em parte,

questões de discurso", e vice-versa ( C H O U L Í A R A K I e F A I R C L O U G H , 1999,

268

Na perspectiva crítica, aqui endossada, a linguagem é parte irre-

dutível da vida social, visto que se constitui socialmente na mesmamedida em que tem "conseqüências e efeitos sociais, políticos, cogni-

tivos, morais e materiais" ( F A I R C L O U G H , 2003, p. 14). Consideramos queo ( s ) sentido(s), bem como os efeitos de um texto, como exemplifica

Fairclough (2001, p. 108), têm conseqüências de natureza extradiscur-

siva, uma vez que "alguns conduzem a guerras; outros levam pessoasa perder o emprego ou a obtê-lo; outros ainda m odificam as atitudes,

crenças ou p ráticas das pessoas", e assim por diante.Uma observação merece, ainda, ser registrada.Como ciência críti-

ca, a AD C está preocup ada com efeitos ideológicos que (sentidos de)

textos possam ter sobre relações sociais, ações e interações, conheci-mentos, crenças, atitudes, valores e identidades. E m poucas palavras,

trata-se de sentidos a serviço de projetos particulares de dominação eexploração, que sustentam a distribuição desigual de poder. A idéia de

que problemas sociais podem ser desencadeados e sustentados, assim

como superados, por (sentidos de) textos assenta-se na ontologia do

Realismo Crítico, cujo expoente é reconhecido no filósofo contem-

porâneo Roy Bhaskar (1978,1998).

3. Pressupostos ontológicos e teóricos em ADC

Para o Realismo Crítico, conforme foi discutido em Ramalho (2007),

o mundo é um sistema aberto, constituído por diferentes domínios

(real, actual e empírico) 4, assim como por diferentes estratos. Os estratos

4 Os termos originais em Bhaskar (1998) são real, actual e empirical. A fi m de nãotornar ainda mais complexo o conceito de "actual", optamos por manter o termo em

inglês, a exemplo das trad uções brasileiras atuais.

269

 

Análises do discurso hoje

— físico, biológico, social e semiótico — possuem estruturas distinti-

vas e mecanismos gerativos que se situam no domínio do real,os quais,

quando são ativados simultaneamente, causam efeitos imprevisíveis nos

Análise de D i s c u r s o Cri t ica : representações sociais na mídia

nível intermediário das práticas sociais, tem-se a linguagem como or-

dens de discurso —"as combinações particulares de gêneros, discursos

e estilos, que constituem o aspecto discursivo de redes de práticas so-

ciais". Por fim, no nível mais concreto dos eventos, ternos a linguagem

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demais domínios da vida social.A relação que se estabelece entre os

estratos é de interdependência causai, pois a operação de qualquer me-

canismo gerativo dos diferentes estratos é sempre mediada pela ope-

ração simultânea de outros, de forma tal que não são redutíveis a um

e sempre dependem (e internalizam traços) de outros. Por isso, como

explica Sayer (2000,p. 11), ainda que não haja necessidadede voltar ao

estrato da biologia, da física ou da química para investigar fenômenos

sociais, isso não significa que os primeiros não tenham efeito sobre a

sociedade e vice-versa.

Nesse sentido, o estrato semiótico é parte integrante e irredutível

do mundo e da vida social, uma vez que mantém relações simultâneas

de articulação e internalização com os demais estratos, incorporando-

os e, também, modificando-os. Podemos dizer que a linguagem c o m osistema semiótico, com seus mecanismos e poderes gerativos, tem efei-

tos nas práticas e eventos sociais. Isso significa, conforme Fairclough

(2003), que a linguagem se fa z presente em todos os níveis do social,

conforme ilustramos no Quadro l abaixo, no qual sintetizamos uni

gradiente de abstração-concre u de de três diferentes níveis da vida

social correlacionados a três níveis da linguagem.Vejamos:

Q UADR O 1: Linguagem como elemento da vida social

Níveis do social

E strutura social

Práticas sociais

Eventos sociais

Níveis da linguagem

Sistema semiótico

Ordens de discurso

Textos

Baseado em Fai rc lough (2003).

De acordo com Fairclough (2003, p. 220), no nível mais abstrato

das estruturas, conforme relacionado acima, tem-se a linguagem como

sistema semiótico — com sua rede de opções lexicogramaticais. No

270

como texto — o principal material empírico com que analistas de

discurso trabalhamos, mas não o único.

Ainda com base em princípios do Realismo Crítico, e apoiada

também em Harvey (1992), a ADC reconhece seu objeto de estudonas práticas soc iais. Disso advém o foco no "discurso", entendido como

momento constituinte e irredutível de práticas sociais.Corno maneiras

recorrentes, situadas temporal e espacialmente, pelas quais pessoas in-

teragem no mundo, práticassociais são "articulações de diferentes tipos

de elementos sociais que são associados a áreas particulares da vida

social" (FAIRCLOUGH, 2003, p. 25). Qualquer prática, sugere Fairclough,

com base em Harvey (op. cit.), envolve ação e interação, relações sociais,

pessoas (com crenças, valores, atitudes, histórias etc.) , m u n d o material e discurso.

Em práticas particulares, esses cinco elementos mantêm entre si cons-

tantes relações dialéticas de articulação e internalização, sem se redu-

zirem a um, tornando-se "momentos" da prática. Resende e Ramalho

(2005, 2006) explicam que essas relações dialéticas de articulação e

internalização entre os cinco momentos de práticas sociais particulares

podem ser tanto minimizadas para se aplicarem à articulação interna

de cada momento de uma prática, quanto ampliadas para se aplicarem

à articulação externa entre práticas organizadas em redes.

Em redes de práticas sociais, cada prática específica configura gêne-ros, discursos e estilos particulares, ou seja, sua ordem de discurso. Assim

é que temos ordens de discurso jornalística e publicitária, por exemplo.

Os três momentos de ordens de discurso correlacionam-se a três prin-

cipais maneiras, apresentadas em Fairclough (2003), como o discurso

figura simultânea e dialeticamente em práticas sociais: como maneiras

de (inter-)agir, de representar e de identificar(-se). Sugere o autor que,

em suas atividades habituais , pessoas (inter-)agem por meio de gêneros

— "tipos de linguagem ligados a uma atividade social particular"; tarn-

271

 

Análises do discurso hoje

bem representam aspectos do mundo por meio de discursos—"modos

particulares de representar"; e, por fim, identificam a si mesmas, aos

outros, e a aspectos do mundo, por meio de estilos —"tipos de lingua-

gem usados por uma categoria particular de pessoas e relacionado a sua

Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia

xima-se de uma versão da abordagem crítico-explanatória de Bhaskar

(1998), orientada para investigar mecanismos causais e seus e f e i t o s poten-

ciais em contextos particulares, com atenção voltada para causas e efei-

tos envolvidos em relações de poder. Nos termos da ADC, o objetivo

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identidade", nas definições de Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 63).

Essas maneiras de acionar a linguagem na vida social ligam-se, por sua

vez, a três principais significados do discurso — acionai, representacio-

nal e identificacional —, os quais serão retomados mais adiante.Por agora, convém acercar-nos do conceito de articulação, proposto

por Laclau e M o uf f e (2004, p. 142) nos seguintes termos: "toda prática

que estabelece uma relação tal entre elementos que resulta na modifi-

cação de sua identidade ".Tal concepção ajuda-nos a compreender, por

exemplo, as maneiras e os motivos pelos quais traços de momentos ex-

teriores, quer de amplas redes de práticas sociais, quer de práticas par-

ticulares, podem ser articulados com elementos de ordem do discurso

(gêneros, discursos e estilos), momentos que, internalizando traços dos

outros, não se reduzem a um. Em poucas palavras, o referido conceito

esclarece a conexão, em termos de causa e efeito, entre elementos dis-

cursivos e nâo-discursivos de práticas sociais.

A linguagem, de acordo com essa concepção, configura um mo-

mento de (redes de) práticas sociais,que mantém relações de articulação

e internalização simultâneas com outros momentos nao-semióticos. A

linguagem, mediada por essas relações, incorpora traços do social, assim

como gera efeitos no mundo. Nessa perspectiva, e por ser uma ciência

crítica, aADC ocupa-se dos efeitos ideológicos do discurso, aqueles que,em circunstâncias particulares,podem contribuir para instaurar e susten-

tar relações de dominação (THOMPSON, 2002), daí o fato de sua proposta

de abordagem teórico-metodológica basear-se na crítica explanatória.

4. Pressupostos teórico-metodológicos em ADC

Para levar a efeito a concepção de mundo estratificado, dotado de pro-

fundidade ontológica, a proposta teórico-metodológica da ADC apro-

272

é mapear conexões entre aspectos sociais discursivos e não-discursivos,

tendo em vista dois objetivos principais. Primeiro, investigar meca-

nismos causais discursivos e seus efeitos potencialmente ideológicos.

Segundo, refletir sobre possíveis maneiras de superar relações assimé-tricas de poder, parcialmente sustentadas por sentidos de textos ( S I L V A ,

2002f 2006). De acordo com o princípio da profundidade ontológica,

entende-se que o trabalho de descrição e interpretação de conexões,

em termos de causa e efeito, não pode ser feito de maneira satisfatória,

entre linguagem e sociedade, apenas com base em análises qualitativas

de textos ( S I L V A , 2003).

Essa postura também é apoiada na ontologia estratificada do rea-

lismo crítico, segundo a qual a estratificação e a abertura do mundoimpedem o acesso direto ao domínio do real. Não obstante, trata-se

de um domínio mais abstrato, conforme este entendimento, que só

pode ser alcançado pela mediação de nosso conhecimento (crenças,

valores, atitudes, ideologias) sobre ele, ou seja, a partir do actual e do

empírico. Para Bhaskar (1978, p. 36), constituiriam "falácias epistê-

micas" pretender, por um lado, estudar o "mundo real" de maneira

"objetiva", visto que só podemos estudar o mundo real passando pelo

filtro de nossas experiências, e, por outro, conceber o mundo como

constituído apenas pelo domínio empírico, isto é, por aquilo que ex-perienciamos.

Aplicado à ADC, tal princípio implica o fato de que a realidade não

pode ser reduzida ao empírico — ao nosso conhecimento sobre ela,

que é contingente, mutável e parcial. Nas palavras de Fairclough (2003,

p. 14), "não devemos presumir que a realidade de textos seja exaurida

por nosso conhecimento sobre eles". Não pode haver análises textuais

"completas" e"definitivas", ou "objetivas" e "imparciais", por serem ine-

vitavelmente seletivas. Isso porque, sempre de acordo com Fairclough,

273

 

Análises do discurso hoje

"em toda análise, escolhemos responder a determinadas questões sobre

eventos sociais e textos, e não a outras questões possíveis" (p. 14).

Para investigações mais refinadas de mecanismos discursivos e seus

potenciais efeitos ideológicos em práticas sociais particulares, a ADC

Análise de Discurso Crí t ica : representações sociais na mídia

ficar obstáculos para que o problema em foco seja superado. Nas duas

primeiras, investigam-se redes de práticas (ou conjunturas), em que se

localiza o problema de cunho semiótico, assim como a prática particu-

lar em estudo, o que inclui análise de relações dialéticas entre discurso

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propõe um arcabouço que sumarizamos no Quadro 2 abaixo.

QUADRO 2: Arcabouço teórico-metodológico da Análise

de Discurso Crítica

Percepção de um problema social com aspectos semióticos

Identificação de obstáculos para que o problema seja superado

análise da c on j u n t u r a

análise áa prática part icular

análise do discurso

Investigação da função do problema na prática

Investigação de possíveis modos de ultrapassar os obstáculos

Reflexão sobre a análise

Baseado em Chouliaraki & Fairclough (í 999,p. 60); Fairclough (2003, p. 209-2 W)

Como se pode observar, o arcabouço propõe uma reflexão sobre a

análise e sua contribuição para questões de emancipação social. Trata-

se de um modelo gerado para explanação crítica de fenômenos sociais,

por meio da investigação de mecanismos que os produzem. De acordo

com Fairclough (2003, p. 15), para se ter acesso a efeitos ideológicos de

textos, é preciso relacionar a "microanálise" de textos à "macroanálise"

de maneiras como relações de poder operam através de redes de práti-

cas e estruturas. Por isso, as cinco etapas do modelo, descritas a seguir,

conjugam análises textual e socialmente orientadas.

Já de início, pesquisas em ADC costumam partir da identificação de

um problema social com aspectos semióticos. Definida a preocupação

de pesquisa, segue-se a identificação de elementos que representam

obstáculos para a superação do problema, o qual deve ser examinado

em três etapas específicas: análise da conjuntura, análise da prática par-

ticular e análise do discurso.Esses

três tipos de análise podem especi-

274

e outros momentos (nâo-discursivos).

Na análise do discurso, em que textos figuram como principal ma-

terial empírico, devem ser buscadas conexões entre os mecanismos

discursivos e o problema em foco. Essa análise detalhada e intensiva de

textos como elementos de processos sociais é, nos termos de Choulia-

raki & Fairclough (1999, p. 67), um processo complexo que engloba

duas partes: a compreensão e a explanação. Um texto pode ser compreen-

dido de diferentes maneiras, uma vez que diferentes combinações das

propriedades do texto e do posicionamento social, conhecimentos,

experiências e crenças do leitor resultam em diferentes compreen-

sões. Parte da análise de textos é, portanto, análise de cornpreensões,

que envolvem descrições e interpretações. A outra parte da análise éa explanação, que reside na interface entre conceitos e material empírico.

Esta constitui um processo no qual propriedades de textos particulares

são "redescritas" com base em um arcabouço teórico particular, com

a finalidade de "mostrar como o momento discursivo trabalha na prá-

tica social, do ponto de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas e

relações de dominação" (op. dt., p. 67).

Além de englobar essas duas partes, a compreensão e a explanação,

a análise de discurso é orientada, simultaneamente, para a estrutura e

para a interação. Isto é, para os recursos sociais {ordens de discurso)

que possibilitam e constrangem a interação, bem como para as ma-

neiras como esses recursos são articulados em textos. A concepção

de textos como parte de eventos específicos, que envolvem pessoas,

(inter-)ação, relações sociais, mundo material, além de discurso, situa

a análise textual na interface entre ação, representação e identificação,

três principais aspectos do significado, que serão discutidos a seguir.Conformefoimencionadonaseçãoanterior,discursosfiguram simul-

tânea e dialeticamente em práticas sociais:como maneiras de (inter-)agir,

275

 

Análises do discurso hoje

de representar e de identificar(-se) .Tais maneiras, dentro da proposta de

Fairclough (2003), encontram-se associadas a três elementos de ordens

de discurso — gêneros, discursos, estilos — e aos três principais signifi-

cados da linguagem — acionai, representacional e identificacional. Não

Análise de Discurso Crí t ica : representações sociais na mídia

Ao estreitar o diálogo da ADC com a LSF, sugere Fairclough (2003)

que um texto, além de envolver simultaneamente as funções ideacio-

nal, interpessoal (identitária e relacionai) e textual, deve ser visto sob

o prisma de três tipos de significados do discurso, ou seja, como ação

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obstante, como observa Silva (2007b), deve-se ter em mente que esses

três tipos de significados têm sua gênese nas rnacrofunções da lingua-

gem propostas por Halliday (1973,1994) e rediscutidas por Halliday &

Matthiessen (2004) dentro da Lingüística Sistêmico-Funcional (LSF),da qual trataremos de maneira sucinta a seguir.

5. A LSF e os significados do discurso na ADC

Em poucas palavras,a LSF aponta três rnacrofunções simultâneas da

linguagem, passíveis de ser identificadas em textos: a ideadonal (enfo-

que na oração como processo); a interpessoal (enfoque na oração como

ato de fala); e a textual (enfoque na oração corno mensagem). Desta-camos, aqui, os processos de transitividade da língua, os quais se en-

contram associados à função ideacional, que consiste na expressão do

conteúdo, da experiência do falante/ escritor em relação ao mundo

real (incluindo as noções de tempo e espaço) e ao mundo interior de

sua própria consciência.

Com base no princípio de que a linguagem estrutura a experiência

e contribui para determinar nossa visão de mundo, sugere Halliday

(1994) que se pode identificar em uma oração urna transitividade evi-

denciada por vários tipos de processos — material, comportamental,

mental, verbal, relacionai e existencial — com seus significados e parti-

cipantes característicos, bem como as circunstâncias que os envolvem.

Deve-se comentar, ainda, que a teoria sistêmica hallidiana configura

urna proposta que envolve o estudo da linguagem em sua interiorida-

de, mas que também leva em conta as escolhas, as opções, as necessi-

dades, bem como os propósitos dos falantes, o que se reflete na exte-

rioridade da linguagem. Trata-se, aqui, da correlação entre a estrutura

lingüística e a estrutura social ( S I L V A , 2007a).

2 7 6

(por meio de gêneros), representação (por meio de discursos) e identi-

ficação (por meio de estilos), que são os três elementos de ordens de

discurso. Nessa perspectiva, cada ordem de discurso encerra gêneros

discursivos característicos, que articulam discursos e estilos de maneira

relativamente estável num determinado contexto sociohistórico e cul-

tural. Cabe lembrar, ainda, que gêneros, discursos e estilos constituem

elementos de ordens do discurso, categorias diferentes de nomes e ora-

ções, que são elementos de estruturas lingüísticas. Comenta Fairclough

(2003, p. 28) que analisar textos em termos dos significados do discur-

so , isto é, na interface entre ação e gêneros, representação e discursos, bem

como entre identificação e estilos, implica uma perspectiva social deta-

lhada. Isso nos permite não só abordar os textos em termos dos trêsprincipais aspectos do significado e das maneiras como são realizados

em traços lingüísticos nos textos, mas também estabelecer a conexão

entre um evento social concreto e práticas sociais mais abstratas.

Ainda que a relação entre os significados do discurso seja dialética,

traços semânticos, gramaticais e lexicais dentro de textos podem ser

associados, em princípio, a significados particulares. Essa especificidade

explica-se pelo fato de gêneros se realizarem nos textos em formas e

significados acionais, assim como discursos, em formas e significados

representacionais, e estilos, em formas e significados identificacionais.

Isso implica que traços lingüísticos específicos (tais como vocabulário,

relações semânticas e gramaticais) são, em princípio, moldados por sig-

nificados particulares.

Nos exemplos que apresentaremos mais adiante, trabalhamos algu-

mas categorias de análise que correspondem, especialmente, a formas

e significados representacionais, razão pela qual ampliamos essa intera-

ção teórica, sobretudo, com respeito à categoria da representação. Para

tanto, buscamos a contribuição de van Leeuwen (1997), cujas idéias

277

 

Análises do discurso hoje

de natureza essencialmente crítica, bem como sociológica, fbndamen-tarn-se na proposta hallidiana, a exemplo de Fairclough.

Análise de Discurso Crítica: representações sociais na mídia

substantivos denotando locais ou instrumentos de trabalho diretamente

associados a uma atividade ("homem-bomba"), conforme exemplos

de Ramalho (2005). No caso da identificação, são representados por

aquilo que, mais ou menos permanentemente, ou inevitavelmente, são,

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6. A categoria da representação

Antes de enfocar a representação em termos lingüístico-discursivos, su-

gere van Leeuwen ( o p . dt .) que se deve buscar as maneiras como atores

sociais sãorepresentados em textos, o que pode indiciar posicionamentos

ideológicos em relação a eles e a suas atividades.Trata-se de unia propos-

ta analítica que conjuga o social e o lingüístico, mas com ênfase na agên-

cia sociológica. Segundo o autor, determinados atores,por exemplo, po-

dem ter sua agência ofuscada, ou enfatizada, em representações; podem

ser representadospo r suas atividades ou enunciados;ou ainda podem serreferidos de modos que presumem julgamentos acerca do que são ou

do que fazem. Por isso, a análise de tais representações costuma ser útil

no desvelamento de ideologias em textos e interações. Para tanto, apre-senta van Leeuwen um inventário sociosemântico detalhado quanto aos

modos pelos quais os atores sociais podem ser representados. Cada um a

das escolhas representacionais propostas encontra-se ligada a realizações

lingüísticas específicas, o que será explicado a seguir.

As representações incluem ou excluem atores sociais para servir

a interesses e propósitos particulares. Atores podem ser incluídos, su -

primidos ou colocados em segundo plano na representação. A inclusão

pode ser realizada de diversas maneiras, tais como nomeação e categori-

zação. O s atores podem se r representados em termos de sua identidade

única, sendo nomeados ou categorizados.A nomeação realiza-se tipica-

mente através de nomes próprios, ao passo que a categorização ocorre

por funáonalização e identificação. A primeira escolha representacional

ocorre quando os atores são referidos em termos de uma atividade,

ocupação ou função à qual estão ligados. Costuma-se realizar por meio

de substantivo formado de verbo rnais sufixo ("ditador");substantivo

formado a partir de outro substantivo qu e denota local ou instrumento

diretamente associado a uma atividade ("estrategista"); composição de

27 8

como sexo, idade, classe social, etnia e, a nosso ver, até por princípios

religiosos, o que remete à fé, traço essencialmente humano.

Os atores podem ser incluídos também de forma não indivi-

dualizada, ou seja, de forma assimilada, por meio de r e f e r e n d a genéricaou e s p e c í f i c a . A primeira pode se realizar lingüisticamente através do

plural sem artigo e do singular com artigo definido ou indefinido.

A segunda representa os atores sociais em grupos e pode se reali-

za r por meio de especificação por agregação, quantificando grupos de

atores como dados estatísticos,ou por coletivização, que não represen-

ta atores quantitativamente, mas os trata po r meio da pluralidade, ta l

como "os iraquianos", "os invasores".

Cabe, aqui, registrar que, ao contrário das escolhas representacio-nais comentadas anteriormente, qu e personalizam os atores sociais,

representando-os como seres humanos por meio de nomes próprios,

substantivos, cujos significados encerram característica humana, um a

outra categoria, proposta por van Leeuwen, denominada objetivação,

refere-se ao que ímpersonaliza os atores.A objetivaçao ocorre quando

os atores sociais são representados metonimicamente po r meio de uma

referência a um local, ou coisa diretamente associada quer à sua pessoa,

quer à atividade a que estão ligados ("moradores de rua" e "catadores

de lixo"). Em Ramalho (2005), por exemplo, foram examinados ca-sos de espadalização, em que os atores são representados po r meio de

um a referência ao local ao qual estão diretamente associados, como

"os Estados Unidos" em vez de citar nomes de governantes dos EUA;

de autonomização de enunciado,, na qual os atores são representados po r

meio de uma referência aos seus enunciados, tal como em "o relatório

afirmava"; e de instrumentalização, em que a representação se dá por

meio de uma referênciaao instrumento com o qual os atores empreen-

dem uma atividade a que estão ligados.

219

 

Análises do discurso hoje

7. As representações em discursos institucionalizados

Como destacamos no início do artigo, nosso propósito é discutir pres-supostos teórico-metodológicos da ADC e ilustrar sua aplicabilidade

Análise de Discurso Crí t ica: representações sociais na mídia

circunstanciais ( H A L L I D A Y , 1994).A categoria hallidiana de participantes

recebe de van Leeuwen (1997) um desdobramento em termos de fer-

ramentas analíticas, o que nos permite unia análise crítica mais acu radano âmbito do significado representacional da linguagem.

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em pesquisas sobre diferentes preocupações sociais com aspectos dis-

cursivos. Reunimos, pois, nesta seção, exemplos de análises lingüís-

tico-discursivas, levadas a cabo em nossas pesquisas, as quais têm em

comum,além da abordagem crítica, dados gerados a partir de discursosinstitucionalizados — textos provenientes da mídia escrita — , exa-

minados de modo específico sob a lupa da ADC, com o auxílio deferramentas de análise balizadas pela LSF.5

7. i.Práticas discursivas naturalizadas: a pobreza c o m o pano de fundo

ignorado

O objetivo desta subseção analítica é apontar uma série de representações

discursivas discriminadoras, que são socialmente elaboradas e comparti-

lhadas, ainda que de forma inconsciente. Apontá-las significa uma manei-

ra de contribuir para a conscientização de práticas naturalizadas em nossa

sociedade, as quais atingem o status do denomindado "senso comum",

sobretudo, com relação a questões que ilustram a pobreza nas ruas, o que

vem atrelado ao descaso com os menos favorecidos. Uma vez que o estu-do tem como pilar básico princípios da AD C, cabe, aqui, enfatizar que aanálise textual é conjugada com análises de cunho sociológico.

Na ADC, a questão da representação se configura no discurso, vin-culada ao eixo do conhecimento (relação de controle sobre as coisas),

dentro dos três aspectos do significado da linguagem ( F A I K C L O U G H ,

2003).Já a LSF enfoca a representação dentro da função ideacional dalinguagem, mediante a transitividade oracional identificada po r meio

de três componentes: o processo verbal, seus partic ipante s e os aspectos

5 O s dados e reflexões analíticas foram apresentados no /// Simpósio internacional sobreanálise do discurso: emoções, ethos e argumentação, realizado na Universidade Federal deM inas Gerais (UFMG), em abril de 2008.

280

Na pesqu isa mais ampla, inserida no proj eto sobre pobrez a nas ruas,

que vem sendo coordenado por uma das autoras, analisamos e com-

paramos textos de diversos gêneros discursivos, tais como entrevistas

narrativas com moradores de rua, que representam redes de práticasdiscursivas individuais, assim como leis, decretos, projetos de lei e n otasinformativas da mídia impressa, que integram redes de práticas ligadas a

instituições. Entre os dados que conformam os c o r p o r a da referida pes-

quisa, selecionamos, para esta subseção, dois textos da mídia impressa.

Texto 1:

Catadores invadem Parque das Sucupiras

DA REDAÇÃO

O Parque de Uso Múltiplo da s Sucupiras, às margens do eixo

Monumental, pede socorro. Várias famíl ias de catadores de papel

se mudaram para o local. A área de proteção ambiental virou depó-

sito de lixo e entulho. Osdejetos estão por toda parte e podem ser

vistos de várias janelas de apartamentos de condomínios do Setor

Sudoeste. Inconformados com o problema, moradores da região

pedem uma f iscal ização intensa e o cercamento do parque, mas até

agora as queixas não resultaram em solução. [...]

(Correio Braziliense, 14/06/2007)

O fragmento acima faz parte de uma matéria de destaque, cujo

conteúdo é de inteira responsabilidade do jornal, o que é configu-rado, no caso, pela informaç ão "D a Redação". Para apontarmos, emtermos de "m acroanálise", o modo como relações de poder associadasao discurso jornalístico operam, através de redes de práticas discursi-

vas e estruturas, consideramos relevante mergu lhar, sem nos afastar da281

 

Análises do discurso hoje

superfície do texto, no nível da "microanálise", o que implica acercar-

nos do significado representacional da linguagem.

Cabe, aqui, ressaltar que a representação no discurso, como bem ob-

serva Fairclough (2003), encontra-se vinculada à relação de controle

Análise de Discurso Critica: representações sociais na mídia

de papel se mudaram para o local" — permite-nos identificar uma

impersonalização por abstração,o que é reforçado pela indeterminação,

configurada lingüisticamente no emprego do pronome "várias" que

contribui para a idéia de anonimização.

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sobre as coisas (eixo do conhecimento), enquanto a ação implica a rela-

ção de controle sobre os outros (eixo do poder), e a identificação envol-

ve a relação consigo mesmo (eixo da ética). Não obstante, pode-se, já

de início, associar representações discursivas aos dois primeiros eixos, acomeçar pelo título da matéria, que evoca uma idéia de contravenção

e ilegalidade, tanto no processo material configurado na forma verbal

invadir, quanto na designação dos atores sociais: catadores (agentes in-

vasores) e o Parque (afetado).

De acordo com van Leeuwen (1997), atores sociais envolvidos em

eventos e práticas sociais, bem como as relações estabelecidas entre

eles, podem ser examinados a partir de um ponto de vista representa-

cional, em termos de que atores sào incluídos ou excluídos na repre-

sentação, e a que atores é dada proeminência. No caso do exemplo em

foco, a proeminência recai no Parque, não só pela posição que ocupa

de tópico, do ponto de vista da estrutura oracional, mas também como

participante âizente em termos de processo de transitividade:

"O Parque de Uso Múltiplo... pede socorro."

Com relação ao destaque acima, a idéia que o segmento oracional

transita, através das escolhas lingüísticas,ressalta A personalização do Par-que, que é representado como ser humano.6 Enquanto o Parque é per-

sonalizado, outro segmento oracional — "Várias famílias de catadores

6 Cabe, aqui, lembrar que, na perspectiva da s macrofunções hallidianas, a oração pode

ser enfocada como processo (ideacional), como ato de fala (interpessoal) e como men-

sagem ( textual). U ma observação a mais se faz necessária: a transitividade observada

dentro da função ideaciona! envolve o processo verbal eni si, os participantes envol-

vidos diretamence no processo (atores, metas, experienciadores, fenômenos, dizentes,etc.), os envolvidos indiretamente (recipientes, afetados, etc.), beni como as circuns-

tâncias veiculadas po r advérbios.

282

Sempre de acordo com a categorizaçao sugerida por van Leeuwen

(op. aí.), pode-se, também, apontar a idéia de abstração que emerge do

sintagma "família de catadores", uma vez que se trata de uma designa-

ção genérica que relega a segundo plano o traço semântico /-í-huma-no/. A impersonalização é ainda reforçada pela idéia de instrumentalização,

devido à forma pela qual os atores sociais, no caso, catadores de material

reciclável, são referidos. Outra representação que merece ser comenta-

da concerne a uma categorizaçao com ênfase no referente afetado — A

área de proteção ambiental —, um a referênciaanafórica ao "Parque", cuja

predicação consiste num comentário avaliativo do jornal: virou depósito

de lixo e entulho. Observe-se que tal avaliação é reforçada no segmento

oracional seguinte — O s dejetos estão po r toda parte. . . — sobretudo, pela

imagem que a informação pode evocar na mente do leitor, visto que

leva a uma associação implícita. Mais que uma informação, trata-se de

uma representação que, a nosso ver, remete a valores discriminatórios,

veiculados, lingüisticamente, por urna coletivização, marcada pela plura-

lidade de "os dejetos". Soma-se, a isso, a imagem da segregação espacial

da miséria, o que é passado ao leitor do mesmo modo que a idéia na-

turalizada de guetos, nas periferias urbanas.

Duas observações merecem ser, ainda, registradas. Por uni lado,

devemos mencionar que não se trata de analisar a representação em

termos de comparação com a verdade a respeito do evento concreto,

afinal, a "verdade" não se estabelece independentemente de represen-

tações particulares. Por outro lado, de acordo com T.van Dijk {l 999, p.

205), os jornalistas corno grupo desenvolvem ideologias profissionais

com relação a outras elites, outros grupos de poder.7

7 Exp l ica van Dijk (1999, p. 175) que "as ideologias não são somente conjunto de

crenças, mas crenças socialmente compartilhadaspor grupos .

283

 

Análises do discurso hoje

Vejamos, no texto (2), apresentado a seguir, como são projetadas

tais ideologias profissionais nas representações jornalísticas com rela-

ção às pessoas que vivem em situação de rua.

Análise de Discurso Critica: representações sociais na mídia

justamente por estar camuflado como um simples ato referencial que

tais descrições acabam exercendo tamanha influência sobre o leitor do

jornal. À medida que o leitor vai-se acostumando ao rótulo, deixa de

perceber que a descrição não passa de uma opinião avaliativa".

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Texto 2:

Fiscais do SIVSOLO derrubam barracos

A Subsecretária do Sistema Integrado de Vigilância do Uso doSolo (SivSolo) retirou 36 barracos na Asa Norte ontem à tarde. A

operação foi feita em pontos considerados críticos na região: nas

quadras 216, 909, 910 e 911. "A maioria dessas pessoas tem resi-

dência fixa e só fica aqui durante a semana para coletar o material

reciclável", explica o coordenador da operação, tenente Nelson Ra-

mos. Os invasores nã o apresentaram resistência, mas avisaram que

vã o voltar.

(Correio Brazil iense, p. 22, 27/03/07)

Observe-se que, apesar da aparência cível do título, o conteúdo da

nota informativa implica, na realidade, uma ação militar contra mora-

dores de rua, o que pode ser constatado na referência anafórica a um

procedimento do SivSolo, configurado no síntagma nominal a operação,

bem corno na referência ao coordenador da operação, no caso, um

tenente. Por outro lado, há uma referência exofórica de atores sociais

explicitada no sintagma os invasores. Disso resulta que o emprego da

expressão os invasores constitui, no texto em análise, uma representa-

ção social atribuída aos moradores de rua, cujas identidades sociais são

apagadas na reportagem, ou melhor, ignoradas, uma vez que são desig-

nados tão-somente por meio da pluralidade, numa espécie de inclusão

no texto apenas mediante uma "coletivização" (van Leeuwen, op. dt.}.

Deve-se ressaltar que tal representação, veiculada em atos referenciais

supostamente neutros, envolve, na verdade, uma opinião avaliativa por

parte do jornal. Para explicitar o poder da designação, no presente con-

texto analítico, recorremos às palavras de Rajagopalan (2003, p. 87): "é

284

7.2. Discurso e ideologia na propaganda de m edicamentos

O exemplo de análise que ora apresentamos é proveniente depesquisade doutorado, mencionada anteriormente, sobre o discurso da propa-

ganda brasileira de medicamentos. O estudo crítico tem como escopo&

central a investigação de sentidos ideológicos capazes de sustentar re-

lações assimétricasde poder, sobretudo entre peritos em saúde e publi-

cidade, de um lado, e cidadãos(ãs) comuns "leigos(as)", de outro.

Como se apoia em pressupostos teórico-metodológicos da ADC,

a pesquisa conjuga análise social, das redes de práticas de algum modo

envolvidas na atividade promocional, e análise discursiva, de textos

promocionais de medicamentos. O objeto da análise de cunho mais

social abarca uma rede composta por quatro principais práticas articu-

ladas, direta ou indiretamente, com a promoção de medicamentos: as

práticas de p ro d u ç ão industrial e comercialização d e medicamentos; a prática

publicitária; a prática da vigilância sanitária, e, por fim, o m u n d o da v ida,

a prática do(a) cidadão(ã) comum. Sobre tais práticas, cabe comen-

tar que a indústria de medicamentos está entre as mais lucrativas do

mundo, e seu investimento em propaganda é muito maior do que em

pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos, cerca de 35% dareceita, conforme Angell (2007).

No Brasil, par te da população, por um lado, encontra-se desas-

sistida de tratamentos e serviços de saúde. Por outro, considerável

parcela da sociedade é diariamente exposta a apelos comerciais que

possuem potencial para, em práticas específicas, levar as pessoas ao

consumo desnecessár io e desmedido de medicamentos. Esses pro-

dutos fa rmacêuticos são representados na mídia como "símbolos de

saúde", a materialização de um conceito que, hoje, significa a busca

285

 

Análises do discurso hoje

incessante pela expansão do potencial corporal, conforme Bauman

(2001), e pela superação das naturais limitações humanas, de acordo

com Silva (2000).

Dados seus reconhecidos riscos potenciais à saúde pública, essa

Análise d e . Discurso Crítica: representações sociais na mídia

potencialmente ideológicas de promover medicamentos do que pro-

priamente coibido tais práticas.

A seguir, apresentamos dois exemplos:

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prática publicitária é regulamentada e fiscalizada no país, desde 2000,

pela Agência Nacional deVigilância Sanitária (Anvisa). Amparada pe-

la Resolução de Diretoria Colegiada n° 102/2000, à Anvisa com-

pete, por exemplo, o controle de certos apelos em propagandas demedicamentos de venda livre, ou, ainda, a suspensão de propagandas

vedadas ao público em geral, como de medicamentos de venda sob

prescrição ( B R A S I L , 2000). Como resultado e instrumento das mu-

danças sociais qu e inseriram a propaganda de medicamento na lista

do s objetos "controlados" pela vigilância sanitária, identificamos, na

pesquisa, mudanças discursivas na prática publicitária. Dentre elas, es-

tão novas "tecnologias discursivas", nos termos de Fairclough (2001),

capazes de dissimular propósitos promocionais em textos, de modo

qu e alcancem o(a) consumidor(a) potencial como se fossem simples

informações.

Para ilustrar tais mudanças discursivas, impulsionadas pelas novas

exigências sociais, apresentamos exemplos de textos promocionais em

que se verifica o que denominamos "cientlficização da publicidade".

Por este processo, entendemos o rompimento estratégico de fronteiras

entre diferentes campos sociais, tais corno o mundo da vida, a ciência, a

comunicação, a economia, que se verifica, no caso em análise, no acen-

tuado hibridismo entre o discurso da ciência médica/ farmacêutica eo discurso publicitário.

Embora seja previsível o uso de vocabulário científico em propa-

gandas de medicamento, o que se verificou na pesquisa foi um proces-

so estratégico de "fusão" entre os dois discursos citados que obscurece

a distinção entre o que é "publicidade" e o que é "divulgação cientí-

fica". O híbrido de "reportagem de divulgação científica" e "publici-

dade", identificado em diversas amostras analisadas no estudo, sugere

que o controle sanitário parece ter mais impulsionado novas formas

256

Exemplo ( i)

Essa síndrome nada mais é do que um distúrbio dos movimen-

tos do intestino que provoca muita dor, diarréia ou, emoutro extre-

mo, prisão deventre. [...]

'É um remédio promissor para uma doença que tem graves im-

plicações navida social' [...]

(Revista Saúde, 2002, n. 224, p. 34)

O Exemplo (1) é uma passagem de um texto divulgado em revista

impressa, na seção "Avanços", isto é, reservada para divulgações no cam-

po da ciência. O texto apresenta forma de "reportagem de divulgação

científica", mas não parece ter como finalidade principal divulgar in-

formações sobre a "síndrome intestinal". Observa-se que, assim como

ocorre em textos explicitamente publicitários, o texto em foco dá desta-

que à mercadoria, ou seja, ao medicamento indicado para a síndrome.

No exemplo acima, a macrorrelação semântica problema-solução,

típica de anúncios, é explícita. O problema é a doença que "provo-

ca dor, diarréia, prisão de ventre" e "tem graves implicações na vida

social". A solução, por outro lado, é a droga anunciada. Se as pala-

vras mencionadas acima apresentam o problema, isto é, as "necessida-

des" ou "desejos" atribuídos ao(à) leitor(a) consumidor(a) potencial, o

Exemplo (2), a seguir, delimita a passagem para a solução:

Exemplo (2 )

Isso, porém, deverá mudar com um medicamento que acaba de

ser lançado no Brasil [...]

(Revista Saúde, 2002, n. 224, p. 34)

287

 

Análises do discurso hoje

A relação semântica local contrastava e o processo "mudar" sinali-

zam um padrão recorrente de anúncios. Na reportagem de divulgação

científica, como observou Zamboni (2001), predomina uma atitude

mais de cautela e prudência diante dos resultados apresentados do que

Análise de Discurso Crí t ica : representações sociais na mídia

senvolvida pelo lingüista britânico Fairclough, em. parceria com Lilie

Chouliaraki, até os princípios ontológicos e teóricos que fundamentam

a concepção de linguagem como prática social, tanto constituída pela

sociedade quanto constitutiva de identidades, crenças, valores, conhe-

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de comprometimento, subjetivo e explícito, com esses resultados. A

supervalorização da droga como a "solução" pode ser vista, portanto,

como um traço dessa interdiscursividade.

Ainda como traço de tal hibridização estratégica, podemos apontarna s passagens acima palavras características do vocabulário científico

— "síndrome"f"distúrbio"— ao lado do discurso publicitário —"re-

médio promissor", "acaba de ser lançado", por exemplo.

No estudo mais amplo, verificamos que as convenções trazidas da

reportagem de divulgação científica são articuladas com o discurso

publicitário, com a finalidade não só de legitimar os medicamentos

como soluções eficazes e desejáveis, mas também de obscurecer o pro-

pósito promocional do texto, apresentando-o como "informação".

A elevada hibridização discursiva em textos promocionais de me-

dicamento consiste em uma "tecnologia discursiva", uma manipulação

estratégica da linguagem orientada para projetos de dominação. A am-

bivalência contemporânea de funções — entreter e vender, aconselhar e

vender,informar e vender — implica, como observou Fairclough (2001),

questões de poder e ideologia. Os sentidos criados nas propagandas de

medicamento atuais apontam sua potencialidade para obscurecer frontei-

ras entre informação/ publicidade e, até mesmo, entre saúde/ estética.

O estudo aqui exemplificado permite afirmar, na perspectiva daADC, que o discurso particular da publicidade é legitimado em gê-

neros discursivos híbridos e inculcados em identidades projetadas na

imagem do(a) consumidor(a) de medicamento.

8. Considerações finais

Neste trabalho, pretendemos apresentar, discutir e ilustrar com análi-

ses a perspectiva teórico-metodológica da ADC, desde a proposta de-

288

cimentos.Também discutimos aspectos especificamente relacionados à

abordagem de análise empírica, voltados para problemas sociais. Sinali-

zamos que, igualmente fundamentada no Realismo Crítico, a proposta

de pesquisas em ADC é emancipatória, uma vez que se ocupa de pro-blemas sociais com aspectos discursivos, como aqueles que ilustramos

nas análises, tendo em vista dois objetivos interligados. Primeiro, inves-

tigar mecanismos discursivos e seus efeitos potencialmente ideológicos.

Segundo, propor possíveis maneiras de superar relações assimétricas de

poder parcialmente sustentadas por sentidos ideológicos.

As análises sugerem que as representações na mídia, tanto de pessoas

em situação de rua, quanto do conceito de "saúde", podem contribuir

para naturalizar e manter reconhecidos problemas sociais. Disso ad-

vém nossa preocupação em investigar os discursos da mídia impressa

e apontar caminhos para desconstruir ideologias naturalizadas, além de

clarificar como valores discriminatórios estão inscritos e mediados nos

sistemas semióticos.Esperamos haver cumprido nossos objetivos opera-

cionais,pelo menos no âmbito deste artigo, assim como contribuir para

a divulgação dessa ciência crítica da linguagem que vem agregando, de

maneira crescente, novos(as) pesquisadores(as).

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292

A ORGANIZAÇÃOR E L A C I O N A L D E

TEXTOS DE GÊNEROS J O R N A L Í S T I C O SJanice Helena Chaves Marinho ( U F M G )

1. Introdução

O discurso, concebido como interação verbal situada em suas dimen-

sões lingüística, textual e situacional, pode ser estudado com base num

instrumento de análise tal como o proposto por Roulet, Filliettaz e

Grobet (2001).Trata-se do Modelo de Análise Modular (MAM), que

nos fornece um quadro de reflexão e de instrumentos heurísticos pró-

prios para favorecer a descrição da complexidade da organização de

discursos autênticos.

Para que se possa estudar todos os aspectos ligados ao discurso, o

modelo adota a hipótese de que um objeto cuja organização é bastan-

te complexa deve ser decomposto num certo número de sistemas de

informações simples e autônomos, que serão descritos inicialmente de

maneira independente, sem referência a outros sistemas de informa-ções, para posteriormente se proceder à combinação dasinformações

resultantes das análises de cada um desses sistemas e se chegar à inter-

pretação da complexidade da organização de discursos.

Os sistemas elementares ou módulos, distribuídos em subconjuntos

nas três dimensões — sintático e lexical (dimensão lingüística); hierár-

quico (dimensão textual); referencial e interacional (dimensão situacio-

nal) —, fornecem informações que serão combinadas com as extraídas

da descrição das formas de organização elementares ou complexas. Pás-

 

Análises do discurso hoje

sando-se sucessivamente da descrição das dimensões modulares à des-

crição das formas de organização,pode-se chegar então à compreensão

da complexidade e da heterogeneidade das atividades discursivas.

O estudo da organização relacionai de atividades discursivas materia-

A organização relacionai de textos degêneros jornalísticos

nhece que os marcadores discursivos, que não se encaixam facilmente

numa classe lingüística, são recursos coesivos.

Blakemore (1992), na perspectiva da Teoria da Relevância (TR),

afirma que os conectores devem se r considerados como expressões

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lizadas em textos constitui um importante aspecto da elucidação de sua

interpretação, na medida em que informações dele extraídas poderão ser

combinadas com informaçõesde outra natureza, possibilitando, assim, as

análises de todas as formas de organização complexas do discurso.E na forma de organização relacionai que se estudam as relações

textuais e o papel dos conectores na sinalização ou na determinação

dessas relações. O interesse pelo estudo dos conectores em textos —

que têm sido estudados sob diferentes perspectivas e têm recebido di-

ferentes denominações, tais como: marcadores discursivos, conectores

discursivos, conectores pragmáticos, partículas pragmáticas, marcadores

de relação textual, etc. — deve-se ao fato de que esses elementos de-

sempenham papel na articulação textual-discursiva, embora sua con-

tribuição específica para isso não esteja ainda muito clara.

Diversos estudos sobre os conectores vêm sendo desenvolvidos ha

mais de trinta anos, sob diferentes pontos de vista com o propósito de

compreender o que eles são e quais são as funções qu e esses elementos

podem exercer no texto ou no discurso.

Uma das obras pioneiras sobre os conectores — Lês Mots du discours

(DUCRDT et aí., 1980) — os concebe como morfemas que possuem a

função de ligação entre unidades do discurso e que contêm instruções

semânticas em que se inscreve a natureza da orientação argumentativaque atribuem aos enunciados.

SchirTrin (1987),interessada em mostrar como os marcadores discur-

sivos funcionam para contribuir para a coerência do discurso, analisa-os

como elementos que marcam unidades de discurso seqüencialmente

dependentes. Para ela, esses elementos são os marcadores faticos (como

por exemplo "/ mean", "weU", "y'know") , os marcadores temporais

(como por exemplo "now", " then") , ou ainda os conectores propria-

mente ditos (como "but" , ( 'because", "s ó" , por exemplo). A autora reco-

29 4

que impõem restrições semânticas aos tipos de implicaturas que o

ouvinte pode extrair do que o falante diz. Eles são usados pelos fa-

lantes para indicar como os enunciados qu e introduzem devem se r

interpretados como relevantes. A autora propõe que os conectoresnão têm uma representação de sentido tal como as expressões lexi-

cais, mas têm somente um sentido procedural, que consiste em instru-

ções sobre como manipular a representação conceituai do enunciado.

E la defende que os conectores devam se r analisados como restrições

contextuais lingüisticamente especificadas, como meios efetivos para

a restrição da interpretação de enunciados em concordância com o

Princípio da Relevância1.

Reboul e Moeschler (1998), interessados em compreender o fun-cionamento dos conectores no discurso, propõem uma abordagem al-

ternativa, com origem na pragmática cognitiva (Teoria da Relevância)

e assim os definem como marcas lingüísticas, pertencentes a categorias

gramaticais variadas (conjunções de coordenação, conjunções de su-

bordinação,advérbios, locuçõe s adverbiais), que: (a ) articulam unidades

lingüísticas máximas ou unidades discursivas quaisquer; (b) oferecem

instruções sobre a maneira de ligar essas unidades; (c ) impõem que se

tirem da conexão discursiva conclusões que não seriam tiradas na sua

ausência. Os autores defendem que tais expressões têm um conteúdoprocedural e que a sua função é essencialmente interpretativajá que a

sua presença pode facilitar a tarefa do interlocutor. Sua função é, dessa

forma, mais cognitiva do que discursiva, visto que, "minimizando os

esforços de tratamento e dirigindo o processo de descoberta do s efei-

1 O Princípio da Relevância é o princípio de base da TR, segundo o qual todo ato de

comunicação traz em si mesmo a garantia de sua pertinência ótima, ou seja, o locutorproduz um enunciado o mais pertinente dentro das circunstâncias, para qu e valha a

pena interpretá-lo.

295

 

Analises do discurso ho j e

tos contextuais, asseguram de maneira eficaz a pertinência do discur-

so"2 (REBOUL; MOESCHLER, 1998, p, 98).

Fraser (1999), tentando elucidar o status e o funcionamento dos

marcadores discursivos, acaba definindo-os como uma classe de expres-

A organização relacionai de textos degêneros jor nalíst icos

—, cuja função é significar uma relação (daí o termo conector), relação

que se estabelece entre entidades lingüísticas ou contextuais (daí o termo

pragmático). A autora reivindica uma abordagem semântica para fazer so-

bressair as características estáveis do potencial semântico dos conectores,

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sões lexicais extraídas das classes de conjunções, sintagmas adverbiais e

preposicionais, que sinalizam uma relação entre o segmento que intro-

duzem (S2) e o segmento anterior (SI). Para o autor, os marcadores não

simplesmente exibem uma relação entre os segmentos, como consideraSchifErin (1987), mas impõem a S2 um certo conjunto de interpreta-

ções, considerando-se a interpretação de SI e o sentido do marcador.

Teóricos que trabalham com modelos baseados nas taxonomias das

relações de coerência ou retóricas (como a Rhetoríal Struc ture Theoty

— RST) consideram que os conectores podem ser usados para tornar

explícitas essas relações.A RST, inicialmente concebida como o quadro

dos estudos sobre a geração automática do texto, é uma teoria proposta

como uma explanação para a construção da coerência discursiva e da

organização do texto. Ela trata da organização textual, por meio dasrelações de coerência existentes entre partes do texto, e explica a coe-

rência postulando a existência de uma estrutura textual hierárquica e

conectada, na qual toda parte de um texto tem um papel, uma função a

preencher, com respeito às outras partes ( T A B O A D A , 2006). Fornece, assim,

ao analista um modo sistemático de observar um texto. O diagrama a

que chega o analista ao observar^ (e julgar) o texto oferece um panorama

de alguns propósitos ou intenções do autor na inclusão de cada parte do

texto, que está conectada a outra por meio das relações.3 O reconheci-

mento dessas relações é muitas vezes, embora nem sempre, guiado pela

presença de um conector, considerado marcador de relação retórica.

Num trabalho em que busca articular as propriedades dos conectores e

a interpretação do discurso,Rossari (2000) desenvolve um estudo semân-

tico dos conectores, elementos designados pela literatura lingüística como

conectores pragmáticos — conjunções, locuções adverbiais ou interjeições

2 Tradução minha.3

A RST define uma lísca de aproximadamente trinta relações.

296

as suas aptidões para exercer restrições estabelecidas pelo próprio código

sobre o ambiente lingüístico em que são usados. Para tanto, adota uma

análise duplamente comparativa, visto que se centra nos contrastes entre

enunciados com ou sem conectores ou nos contrastes entre enunciadoscom conectores que integram uma mesma classe semântica. Segundo a

autora, tal análise causa impacto na forma como se concebem as relações

discursivas, na medida em que o estudo dos conectores oferece um es-

clarecimento particular a essas relações. Os conectores são concebidos

não só corno vetores de restrições que limitam suas possibilidades de

emprego em configurações adequadas ao tipo de relação que eles são

levados a explicitar, mas também como vetores de relações que não

podem se manifestar independentemente de seu emprego.

Os pesquisadores que seguem o Modelo de Analise Modular comoreferencial teórico-metodológico consideram quef para o estudo dos

conectores — que deve estar integrado a esse modelo global da com-

plexidade da organização de discursos —, pode-se combinar meto-

dologias usadas pelas diferentes abordagens, pelo fato de elas parece-

rem complementares e convergentes (ROULET, 2006). Assim, segundo

Roulet (op, dt.), na descrição dos conectores, considera-se a análise das

relações entre constituintes textuais de discursos reais, a análise semân-

tica das instruções dadas pelos conectores e a definição cognitiva de

operações básicas requeridas para a construção do discurso.

Os conectores são definidos como formas lingüísticas que indicam

ou determinam uma relação ilocucionária ou interativa entre consti-

tuintes do texto e informações estocadas na memória discursiva (defi-

nida como um conjunto de saberes compartilhados pelos interlocuto-

res 4) e que oferecem instruções procedimentais que facilitam o acesso a

informação relevante para a interpretação da relação (ROULET, 2006).

4Cf. Berrendonner

(1983).

291

 

Análises do discurso hoje

Inicio este artigo com uma breve apresentação do modelo de análise

adotado e da descrição da forma de organização relacionai do discurso.

E m seguida faço algumas considerações acerca dos gêneros jornalísticos

aqui estudados — o texto de opinião e a notícia — e a descrição dos

A organização relaãonal de textos de gêneros jornalísticos

valor comunicacional que pode ser manifestado em dois níveis, globale local, e que pode ser realizado por três tipos de unidades textuais: a

troca {unidade comunicativa), a intervenção (unidade textual interme-

diária) e o ato (unidade textual mínima). Essas três unidades textuais

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perfis relacionais dos textos analisados,po r meio dos quais é possível te-

cer considerações sobre a marcação das relações textuais nesses textos.

2. O Modelo genebrino e a forma de organização relacionai

do discurso

O M odelo deAnálise M odular do discurso — doravante MAM — con-siste num instrum ental teórico e metodológico que combina inform ações

de diferentes dimensões discursivas. Alin hado às propostas de Bakhtin,

concebe o discurso como interação verbal e o descreve com referência a

situações reais de uso, a configurações textuais que ele produz e a recursos

convencionais que ele carrega e evidencia ( F I L L I E T T A Z ; R O U L E T , 2002).

Seus autores postulam que, para a consideração da complexidadeda organização do discurso, ela pode ser analisada inicialmente pela

identificação de um con junto restrito de componentes elementares, osmódulos, e em seguida pela combinação desses componentes elemen-

tares, o que resulta nas form as de organização.

A forma de organização relacionai resulta da combinação de infor-

mações de n atureza lexical, hierárquica e referencial. O seu estudo pos-sibilita a identificação das relações textuais, chamadas de ilocucionárias

ou interativas, que podem existir entre os constituintes dos textos e asinformações estocadas na memória discursiva dos interloc utores. Essas

relações são definidas considerando-se o processo de negociação sub-jacente às interações, exposto na estrutura hierárquica.

Segue-se a hipótese de que cada constituinte textual constitui umtraço/ registro de linguagem de uma atividade comunicativa e de que

essa atividade comunicativa ocorre po r meio de urna troca. As trocass ã o , portanto, unidades de comunicação, enquanto os textos são os tra-

ços/ registros da s trocas. U m texto possui um valor acionai, ou seja, um

29 8

podem manter relações hierárquicas entre si.

Numa estrutura hierárquica, as relações ilocucionárias são as que

ocorrem entre as informações no nível da troca. As intervenções que

a compõem podem estar ligadas por relações ilocucioná rias iniciativas(como perguntas, pedidos) ou reativas {como respostas). Os consti-

tuintes que p ertencem à intervenção, por sua vez, podem estar ligados

por rela ções interativas, definidas de fo rm a genérica em oito tipos:

preparação, argumento, contra-argumento, comentário, topicalização,

reformulação, clarificação e sucessão.A descrição da organização relacionai de um texto contribui para

a elucidação de sua interpretação, através da interpretação das posiçõeshierárquicas dominantes de seus constituintes, e perm ite o alcance deseu perfil relacionai, exposto em esquema arbóreo, qu e evidencia as

relações textuais dominantes no interior de sua organização. Esse perfil

relacionai pode ser completado com procedimentos que evidenciam a

computação de relações textuais específicas.

3. Análise

Os textos selecionados para a análise que aqui apresento são textos

de opinião e notícias, publicados no jornal Folha de S ão Paulo e/ouno Folha Online, be m como textos produzidos po r estudantes, comoatividade escolar5. São dez editorias (cinco produzidos por colunistas

da Folha e cinco por estudantes) e dez notícias (cinco produzidas por

jornalistas da Folha e cinco po r estudantes).

5 Os textos foram produzidos pelos estudantes como atividade de produção de textos,

após prévia leitura e discussão de textos autênticos.As produções dos estudantes foram

digitadas ta l como foram escritas po r eles.299

 

Análises do discurso hoje

O MAM assume que a construção de qualquer interação verbal, fa-

lada ou escrita, reflete um processo de negociação em que os interlocu-

tores recursivamente iniciam proposições, reagem a elas e finalmente asratificam. Uma proposição como uma pergunta, por exemplo, pode ser

A organização relacionai de textos degêneros jornalísticos

que podem ser também identificadas pela construção sintática, como

o deslocamento à esquerda, que ocorre em construções topicalizadas.Há outras para as quais não existem marcadores específicos, corno as

de preparação e de comentário. A sua determinação se dá pela conside-

ração da posição ocupada pelo constituinte subordinado, antes ou de-

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forma

resposta ou pode causar a necessidade pelo interlocutor de abertura de

uma negociação secundária de modo a esclarecer o que de fato se per-

guntou.A reação, por sua vez,pode ser uma resposta completa que con-duz os participantes da interação a uma ratificação ou pode ser apenas

parcial ou mesmo confusa, o que implicará a necessidade de abertura de

outra negociação. A vontade dos interlocutores de efetuar negociações

faz com que eles produzam tais constituintes comunicativos.As trocas,

que funcionam como projeção textual dialogai máxima de um proces-

so de negociação, são compostas por intervenções. Cada fase do proces-

so de negociação corresponde a uma intervenção, que pode ser restrita

a um só ato principal ou pode ser formada por uma configuração mais

complexa: outras intervenções, atos e trocas subordinadas.O desenvolvimento e o fim de um processo de negociação estão as-

sociados a dois princípios: (1) o princípio da completude dialógica, que

determina que uma troca chega ao fi m quando os interlocutores alcan-

çam um duplo acordo; (2) o princípio da completude monológica, que

determina que cada constituinte de uma troca deva ser formulado de

modo a ser suficientemente claro para funcionar como uma contribui-

ção adequada a esse processo (ROULET; F I L L I E T T A Z ; GROBET, 2001).

Os textos que examino podem ser interpretados como represen-

tando a fase de reação de um processo de negociação, na medida em

que cada uni deles pode ser visto como uma resposta a uma proposi-

ção, isto é, um assunto ou um fato que desencadeia a necessidade de

uma discussão, da expressão de uma opinião ou do oferecimento de

informação. Cada um deles, então, constitui uma intervenção cujos

constituintes se conectam por meío de relações textuais interativas.

Essas relações podem ser identificadas pela presença de conectores

ou pela possibilidade de sua inserção nas seqüências do texto, por meio

da qual se poderão explicitar as relações nelas presentes. Há relações3 0 0

pois do constituinte principal.

Os conectores presentes no texto, ou que nele podem ser inseri-

dos, tornam explícita a maioria das relações interativas. Dessa forma,afirma-se que eles contribuem para a elucidação da articulação do s

constituintes textuais, evidenciando as relações dominantes no texto e

a forma como ele é construído.

Na produção de um texto, os autores buscam expressar suas idéias e

podem expor a forma como elas se relacionam entre si com marcado-

res, que podem ser os conectores (advérbios ou conjunções) ou mesmo

outros mecanismos provenientes de diferentes aspectos da organizaçãodo discurso, como as formas verbais, os modos, a pontuação, etc.

3.1.Algumas considerações sobre o s gêneros analisados

Os gêneros textuais refletem, em sua materializaçao lingüística, relações

textuais que influenciam o processo de negociação, as intenções dosinterlocutores (tais como informar, dar uma opinião, criticar, instruir)

e ainda as perspectivas dos interlocutores (subjetiva ou objetiva).

As categorizações dos gêneros podem ser pensadas em termos de

agrupamentos de textos que compartilham propriedades e funções. O

dois gêneros que analiso neste trabalho pertencem ao domínio jornalís

tico, mas desempenham diferentes funções comunicacionais em relaçã

a seus leitores. Conforme D e Broucker (apua A D A M , 1997), há dois gran

des gêneros redacionaisjornalísticos que agrupam os textos do domíni

jornalístico: o gênero da informação (notícias, entrevista, reportagem, re

senha, etc.) e o gênero do comentário (editorial, crônica, carta do leitor

charge, artigo de opinião, etc.). Esses dois grandes tipos se opõem quant

ao tema. (um fato v s. um a idéia), à intenção argumentativa (reportar v s

opinar) e à posição enunciativa (distanciamento vs. engajamento).

30

 

Análises do discurso hoje

Sabemos que não há fronteiras claramente definidas entre as cate-

gorias dos gêneros, e assim consideramos esses dois gêneros redacio-

nais como dois pólos num continuum, conforme está representado no

quadro abaixo, inspirado no quadro apresentado em Adam (op. dt.), em

que os textos dos gêneros jornalísticos se distribuem conforme este-

A organização relacionai de textos degêneros jornalísticos

notícia, o jornalista tende a focalizar um assunto principal, relaciona-

do a um fato acontecido, e a apresentá-lo com apoio comprobatório e

objetividade, sem expressão ostensiva de seu ponto de vista. Nesse caso,

pode-se levantar a hipótese de que esse gênero favorecerá a instanciação

de relações de comentário, pois, com o recurso da inserção de consti-

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jam situados em relação às duas posições enunciativas polares:

pólo distanciamento — informação

Enquete

Reportagem

NotíciaEntrevistaResenhaAnálise

EditorialCartas dos leitoresArtigo de opinião

Crônica

pólo engajamento — comentário

O artigo de opinião, como se pode ver, encontra-se mais próximo

do pólo do comentário. Ele constitui um texto que tem como pro-

priedades o fato de se centrar numa idéia e de procurar expressar uma

opinião sobre ela. Seu conteúdo é,_então, mais a exposição e adiscussão

de uma idéia do que o relato de um fato, e o seu autor pretende mais

fazer valer uma opinião, tomar uma posição, do que reportar, informar.

Considerando essas característ icas, pode-se prever que um artigo de

opinião tenderá a apresentar argumentos, explicações ou justificações

acerca de uma idéia a partir do ponto de vista do autor ou abraçado por

ele, favorecendo a instanciação de relações genéricas de argumento.

A notícia, por sua vez, se encontra mais próxima do pólo da informa-

ção. Ela se centra em um fato ou acontecimento, procurando informar,

dar esclarecimento sobre esse fato. Seu conteúdo, assim, é mais uni relato

do fato do que a expressão de uma opinião, e seu autor pretende mais

fazer conhecer, sem assumir posições, julgamentos. Ao apresentar uma

302

tuintes subordinados a um constituinte principal, o autor poderá expor

objetivamente detalhes e explanações sobre o que noticia.

3.2. A descrição d a organização relacionai d os textos

Considerando as estruturas hierárquicas dos textos, propostas a partir

da interpretação do processo de negociação que eles refletem, analiso

a sua organização relacionai.

Como explica Roulet (2006), nessa forma de organização traba-

lha-se com categorias genéricas de relações (baseadas na satisfação dos

princípios de conipletude dialógica e monológica), uma vez que cada

urna cobre um conjunto específico de relações interativas. Assim, umarelação de argumento, por exemplo, cobre as relações de causa, expli-

cação, justificação, argumento potencial, motivação, evidência, conse-

qüência, etc. E unia relação de contra-arguniento cobre as relações de

desacordo, contraste, concessão, oposição. Usando essas categorias, des-

crevem-se as relações genéricas entre constituintes textuais e informa-

ções implícitas, estocadas na memória discursiva dos interlocutores.

Há sempre uma relação interativa entre dois constituintes de mes-

mo nível hierárquico, e ela pode ser ou não marcada por um conector.

Nessa classificação, por exemplo, os conectores porque , já que, uma vez

que, se e então, portanto, ou os conectores mas, p o r é m , apesar de e embora

indicam a mesma relação textual genérica, de argumento e de contra-

argumento, respectivamente.

Usando essa classificação, é possível descrever a organização rela-

cionai dos textos.Tal descrição pode ser representada por esquemas ar-

bóreos, estruturashierárquico-relacionais,que expõem a interpretação

do analista das hierarquias entre os constituintes textuais, bem como

das relações aí existentes.

305

 

Análises do discurso hoje

Os artigos de opinião analisados, tanto os publicados na F o l h a quan-

to os produzidos por estudantes, apresentam majorítar iamente uma es-

trutura hierárquico-relacional bastante semelhante. Como evidenciam

os esquemas a seguir, esses textos são compostospor duas grandes inter-

venções, normalmente complexas, pois contêm outras intervenções e

A organização r elacionai de textos de gêneros jornalísticos

A segunda grande intervenção é precisamente onde são expressosos

pontos de vista dos autores dos textos.Tanto os colunistas quanto os estu-

dantes dão proeminência a suas opiniões ern seus textos ao optar por essa

configuração. Na maioria dos textos analisados, na primeira intervenção,

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atos. A primeira intervenção, que pode trazer uma afirmação, umaper-

gunta ou uma citação como ponto de partida para o desenvolvimento

do texto, possui um valor comunicacional mais fraco e dessa forma sesubordina à segunda intervenção. Esta normalmente traz a finalização

do texto, onde conclusões, resultados ou às vezes até contra-argumen-

tos ao que se expôs antes são apresentados. Seu valor comunicacional é

forte e por isso ela tem o estatuto de constituinte principal.

As figuras a seguir expõem a macro estrutura hierárquico-relacional

de artigos de opinião dos dois grupos analisados6.

i- Is

ls-1-8

Ip-9-17

arg

- Ip-18-24

Figura 1: Macro EHR do texto Violência e Inércia

r- Is

lp-1-4

ls-5-13

-lp-14-16

arg ouref

Figura 2: M a c r o EHR do texto Promessas Esquecidas

6 São usados: ípara intervenção, A para ato,s para subordinado, p para principal, ar gpara argumento, c - a r g para contra-argumento, ref para reformulação, pr é para prepara-ção, c om para comentário. O s números representam a numeração do s atos, feita a partir

da segmentação do texto em unidades textuais mínimas. Sobre a determinação daunidade textual mínima, ver Marinho (2007).

304

seguindo uma idéia apresentada por terceiros, em uma afirmação, uma

pergunta ou uma citação, os autores discutem diferentes pontos de vista.

Em seguida, abrem uma segunda intervenção, que subordina a primeira,

onde buscam concluir seus textos assumindo seu próprio ponto de vista.

Essa segunda intervenção é freqüentemente marcada por expressões de

natureza adverbial (No Brasil; Nesse lusco-jusco de conceitos e idéias; No lulo-

petismo;A rigor, a rigor; P o r essas e por outras; Para u so próprio), por constru-

ções frasais usadas na marcação da finalização do texto (Conclui-se que . . . ;

Fica bem claro que..,; Seja como for . . . ) ou por conectores (Portanto; E) .

Nos dois grupos de textos são usados conectores para a marcação

das relações interativas. Os estudantes, no entanto, para essa marcação,

tendem a empregar apenas as conjunções listadas nas gramáticas ouapresentadas nos livros didáticos:

(1 ) [8]Mas para a mídia isso não é conveniente, [9]pois seria um

ponto final para Geraldo [10]enão causaria nenhuma polemica.

(Sem título 2)

Ap - (8]Mas para a mídia isso não é conveniente,

Ls

arg

i— As - [9]pols seria umponto final para Geraldo

arg

l— Ap - [10]e não causaria nenhuma polemca.

(portanto)

(2) [ll]Se por um lado, há aquele cidadão que não é influenciado

por esses meios de comunicação, [l2]esse mesmo cidadão e in-

fluenciado por alguém que sofre influência direta dessa ditadu-

ra, [13]eassim sucessivamente, [14]como se fosse a reinvençao

da roda. (O poder das palavras)305

 

Análises do discurso hoje

IP

As - [11]Se por um ado, háaquele cidadão que...

Ap - [12]esse mesmo cidadãoé influenciadopor...— "r* l' •u rom L

AP - [13]e assimsucessivamente

As - [14]como sefosse a reinvenção daroda.arg

A organização relacionai de textos de gêneros jornalísticos

falar dele. ( R O S S I , Clóvis."Violência e inércia". F olh a de Sã o Pa u-

Io . Opinião. 7 jun., 2006, p . A2)

r- Ap- (18]No Brasil,oenfoquedos "coitadinhos"...Is

L As - [19]porque opaís há muito

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Os colunistas muitas vezes empregam, em seus textos, expressões

que, a meu ver, assumem no texto uma função conectiva, como asconstruções ao qu e dá prova e s e j a c o m o f o r , po r exemplo.

(3) [27]Ficamos sempre no limbo, [28]do que dá prova, entre

tantas outras coisas, o fato de que o presidente da Câma-

ra dos Deputados é nominalmente comunista, [29]mas

participou alegremente de um governo vigorosamente

pró-mercado (na prática), [30]embora, durante a campa-

nha eleitoral, renegasse as privatizações, [31]que, vitorioso,

passou a adotar gostosamente (nas rodovias federais, por

exemplo). ( R O S S I , Clóvis."O crime e o lusco-fusco". Folha

de Sã o Paulo . Opinião. 5 nov., 2006, p. A2)

Isarg

Ap - [27]Ficamossempre no limbo

_ Isc o m

As - [28]do que dá prova...

As - [29]masparticipoualegremente...AP - [30]embora,durante acampanha...

c - a r g Ipc-arg As - [31]que, vitorioso,passou a adotar...com

(4 ) [l 8]No Brasil,o enfoque dos "coitadinhos"se justifica mais que

na França [19]porque o país há muito deixou de ser a terra das

oportunidades. [20] Seja como for, o crescimento da violência

pede, a gritos, idéias novas. [21]As de Ségolène podem até ser

ruins, [22]mas são melhores que a inércia que se vê no Brasil,

[23]como se o problema fosse desaparecer [24]se a gente não

306

IPAp - [20]Seja como for, o crescimento daviolência...

As - [21]As deSégolènepodem até serruins,

c-arg

Ap - [22]massão melhoresque a nércia...

l_ Ip l_ Is

ref com

r Isarg

Ap - [23]como se oproblema fosse...

As - [24]se agentenão falar dele.

Nos dois grupos de textos, há também seqüências em que as rela-

ções não são marcadas. A ausência de conectores ligando as seqüências

força o leitor a inferir a relação. Na interpretação do trecho extraído

de um artigo de opinião, reproduzido em (5), para determinar a re-

lação interativa entre o ato [2] e a informação estocada na memóriadiscursiva que possui origem em [1], é preciso lançar mão de um ter-

ceiro componente discursivo, o situacional, além das informações de

natureza hierárquica e lingüística.

(5 ) [l]Não venho acompanhando em detalhes a saia justa entre o

pessoal da cultura, notadamente do cinema e do teatro, com

o pessoal do esporte. [2]Alguns setores da sociedade acham des-

cabida a obrigação do Estado de sustentar [3] ou apenas apoiar

iniciativas culturais e esportivas. (CONY, Carlos Heitor. "Culturae esporte". Folha de Sã o Paulo . Opinião. 17 dez., 2006, p. A2)

Para determinar a relação, é preciso computá-la inferencialmente,

combinando as informações oferecidas pelos constituintes com as in-

formações de natureza referencial, baseadas em nosso conhecimento

de mundo. De acordo com o modelo genebrino, pode-se computar

essa relação usando-se um simples modelo de inferência que liga pre-

missas a uma conclusão, como se expõe a seguir:307

 

Análises do discurso ho j e

Premissa íInformação lingüística

(forma lógica enriquecida)

Informação lingüística

O autor diz para o leitor que ele não tem

acompanhado em detalhes a situação entre o

pessoal da cultura e o do esporte.

O autor diz para o leitor que alguns setores da

sociedade consideram descabida a obrigação

A organização relacionai de textos degêneros jornalísticos

—Ip-1-4

> — l s - 5 - 1 6com

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Premissa 2

Premissa 3

Conclusão

( forma lógica enriquecida)

Informação contextualacessível na memória

discursiva

Interpretação

do Estado de sustentar iniciativas culturais ou

esportivas.

É sabido que alguns setores da sociedadeconsideram descabida a obrigação do Estado de

sustentar iniciativas culturais ou esportivas.

O autor diz para o leitor que ele não tem

acompanhado em detalhes a situação entre o

pessoal da cultura e o do esporte, mas que ele

sabe que alguns setores da sociedade consideram

descabida a obrigação do Estado de sustentar

iniciativas culturais ou esportivas.

Esse método permite computar informalmente todas as relações

interativas específicas em discursos reais, combinando-se as informa-

ções lingüísticas oferecidas pelos constituintes e pelos conectores (que

estejam presentes ou que possam ser inseridos) com as informações

contextuais. A ausência de marcadores leva necessariamente o leitor a

lançar mão desse cálculo inferencial.

As notícias produzidas por jornalistas e pelos estudantes também

apresentam estruturas hierárquicas semelhantes. Elas são formadas por

duas grandes intervenções ou por um ato seguido de uma intervençãocomplexa. M as diferentemente do que ocorre com os artigos de opi-

nião, a primeira intervenção das notícias é a que carrega o seu valor

comunicacional mais forte, tendo dessa forma o estatuto de principal.

Nessa primeira intervenção é trazida a informação sobre o fato que é

noticiado. A segunda intervenção normalmente traz detalhes do que

é noticiado, em narrativas ou descrições,

As figuras 3 e 4 expõem as macro estruturas hierárquico-relacionais

de notícias pertencentes aos dois grupos analisados.

308

riu

Figura 3: Macro EHR do texto Um carro "afoga"

r—Ip-1-5

!—IScom

— 1-9-13

— l -14-21

— l - 22-31

Figura 4: Macro E HR do texto Após referendo, cai a venda de a rma s na s lojas

Na s notícias, a relação predominante entre as duas intervenções

que as compõem é a de comentário, determinada pela presença de

pronomes relativos, que podem ser marcadores desse tipo de relação,ou pelo fato de o constituinte subordinado suceder o constituinte

principal. Outra característica desses textos é a grande presença deconstituintes coordenados, como mostra a figura 4, prevalecendo a

relação hierárquicaindependente, visto que a presença de um consti-

tuinte não se liga à presença de outro.Freqüentemente nas notícias é usada a conjunção aditiva e, expli-

citando a coordenação dos constituintes por ele ligados ou, noutros

casos, traduzindo a sucessão temporal de acontecimentos ou ligando

seqüências numa relação interativa de argumento.

(6)[5]Não tendo conseguido, [6]ele pegou o carro [7]e partiucompletamente desgovernado, [8]e acabou na piscina de uma

casa vizinha. (Briga termina com carro na piscina)

3 0 9

 

Análises do discurso hoje

As - [SINão tendo conseguido,

IP arg

Is

A-[6]ele pegouocarro

— A - [7]e partiu completamente desgovernado,

Ip p As  [8]e acabou napiscinadeuma casa vizinha.

A organização relaciona! de textos de gêneros jornalís ticos

de comentário nesse gênero textual.Vale mencionar ainda que os jor-

nalistas tendem a formar seus textos favorecendo a coordenação de

intervenções complexas. O s estudantes, por sua vez, tendem a produzir

os textos obedecendo à estrutura canônica da s notícias, que, de acordo

com Revaz (1997), constitui-se de: início > situação > fato > narração

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São também empregadas expressões conectivas temporais comoem seguida, depois de, quando, comuns no encadeamento de seqüências

narrativas.

(7 ) [12]Quando o garoto conseguiu sair do carro [13]fez a despre-

zivel e inútil brincadeira [14]"O carro presizava mesmo de

um banho." (Dando um mergulho)

ÍP

As - [12]Quando ogaroto conseguiu sair docarro

arg

Ip

pAP - [13jfezadesprezível e nútil brincadeira

_ As - [14]"O carro presizava mesmo de umbanho."

com

E m muitas passagens da s notícias, encontra-se ainda o uso do pro-

nome relativo que, marcando a relação interativa de comentário.

(8) [HJSegundo a PM, [12]os sem-terra ficarão na nova ala do

complexo penitenciário da Papuda, [l3]que ainda não foi

inaugurada. (D a Folha Online. Invasão)

r-As  [11]Segundo aPM,

comprepr— Ap-[12]os sem-terra ficarão nanova ala...

As - [13]que ainda não foi inaugurada,

com

As estruturas hierarquizadas a que se chega com a interpretação

das notícias dos dois grupos expõem uma predominância da relação

31 0

> conclusão. Dessa fo rma, as notícias por eles produzidas são formad as

po r constituintes ligados po r relações de dependência.

4. Considerações finais

A análise das organizações relacionais de textos desses dois gêneros

jornalísticos, centrada na determinação da s relações textuais e n o papel

dos conectores na marcação ou no estabelecimento dessas relações,

permite evidenciar diferenças em suas construções, que refletem suas

diferentes propriedades.

Embora produzidos por autores profissionais e estudantes, que se en-

contram em diferentes estágios de desenvolvimento de sua competência

discursiva, os artigos de opinião, assim como as notícias, apresentam es-

truturas hierárquico-relacionais bastante semelhan tes entre si, bem como

a predominância do mesmo tipo de relação textual interativa.

Espera-se que com essa pesquisa, que contempla a problemática

das relações de discurso bem como a problemática da construção

de gêneros textuais do domínio jornalístico, se tenha alcançado al-

guma contribuição para um a melhor compreensão do s mecanismos

envolvidos na articulação de textos, assim como para um a melhorcompreensão de convenções que regem a construção de textos de

diferentes gêneros.

Referências

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dre general pour un e approche de Ia presse écrite". In : Pratiques,

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relations". ln:Journal ofPragmatics 38 (4), 2006, p. 567-592.

312

SOBRE OS ORGANIZADORES E

AUTORES

Glaucia Muniz Proença Lara tem doutorado em Semiótica e Lin-

güística Geral pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado

em Semiótica,junto ao Centre de Recherches Sémiotiques (Paris).Atual-

mente, é professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de

Minas Gerais (UFMG), onde atua tanto na graduação quanto na pós-graduação na área de Língua Portuguesa (EstudosTextuais eDiscursivos).

Tem vários capítulos de livros e artigos publicados em revistas científicas,

além dos livros Autocorreção e auto-avaliação na produção de textos escolares

(1999) e O qu e dizem da língua os que ensinam a língua (2004). Organizou

as coletâneas Linguagem), texto, discurso: entre a r e f l e x ã o e aprática - v. l (Lu-

cerna, 2007) e, juntamente com Ida Lúcia Machado e Wander Emediato,

Análises dodiscurso hoje - v. l (Nova Fronteira/ Lucerna, 2008).

Ida Lúcia Machado é pós-doutora pelas Universidades de Paris

13 (1998) e Paris 3 (2005/2006). Realizou seu doutorado emToulou-

se 2 (França) e seu mestrado na USP (l982) .É professorada Faculdade

de Letras da UFMG, onde criou, em 1996, o Núcleo de Análise do

Discurso — NAD (grupo ligado ao CAD de Paris XIII), do qual é

a atual coordenadora. Organizou várias coletâneas sobre Análise do

Discurso (Coleção do NAD/FALE/UFMG) e dois congressos inter-

nacionais, também sobre Análise do Discurso, na mesma Universidade.

Coordenou dois projetos CAPES/COFECUB, reunindo a UFMG, a

UFRJ e a Universidade de Paris XIII. Participou de vários colóquios e

 

Análises do discurso hoje

seminários no Brasil e no exterior, centrados na Análise do Discurso e,

em especial, na Teoria Semiolingüistica. Criou, em 2005, a AMPADIS

(Associação Mineira de Pesquisadores emAD).

Wander Emediato de Souza é professor da Faculdade de Letras

Sobre os organizadores e au tores

teórico-metodológica adotada em seus trabalhos é a da semiótica dis-

cursiva. Algumas de suas publicações são: O príncipe d e Maquiavel e seus

leitores: u m a investigação sobre o processo d e leitura; "Semiótica e leitura:

os leitores de Harry Potter", capítulo do livro Razões e sensibilidades: a

semiótica em foco; "Teoria semiótica: a questão do sentido", capítulo do

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da UFMG, onde atualmente ocupa o cargo de vice-diretor. Atua na

área de Língua Portuguesa (Estudos Textuais e Discursivos). Graduou-

se em Letras pela UFMG, onde também concluiu o mestrado em

Lingüística.É doutor em Ciências da Linguagem pela Universidade de

Paris XIII (França). Pesquisador-membro e atual subcoordenador do

Núcleo de Análise do Discurso da FALE/UFMG, possui vários textos

publicados em livros e revistas da área de Letras e é autor do livro A

f ó rm ul a do texto: redação, argumentação e leitura.

Anne Hénault é professora da Universidade Paris IV -— Sorbon-

ne e dos IUFM (Instituis Universitaires de Formation dês Maítres),

em Paris. Publicou vários livros, entre eles, Lês enjeux d e Ia sémio t íque,

Lê p o u v o i r c o m m e passion, Questions de sémiotique (org.) e Histotre de Ia

sémiotique, esse último com tradução em português .

Antoine Auchlin é doutor em Lingüística, é professor e pesquisa-

dor da Universidade de Genebra e formador de adultos. Colaborador da

primeira "Escola genebrina de análise do discurso" (E.Roulet e outros),

aplica e discute o modelo numa perspectiva contrastiva (Pragmática c o m -

parada da enunáaçào em francês e chinês, Berna: Lang, 1993). Seus trabalhos

recentes sistematizam o tratamento do discurso (problemática do "su-

cesso conversacional"), focalizando a prosódia nas interações e as "mes-clagens experienciais" e inscrevendo-se, no âmbito da análise do discur-

so, no paradigma do experiencialismo e da cognição corporificada.

Arnaldo Cortina é professor livre-docente do Departamento de

Lingüística e do Programa de Pós-graduação em Lingüísticae Língua

Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Araraqua-

ra e pesquisador do CNPq. Desde suas primeiras pesquisas, ainda no

mestrado, até a que desenvolveu para a livre-docência,preocupa-se em

estudar a concepção de leitor na constituição do texto. A perspectiva

314

livro Introdução à Lingüística:fundamentos epistemológícos, entre outros.

Beth Brait é crítica, ensaísta, docente, orientadora e coordenadora

do LAEL/PUC/SP e docente da FFLCH/USP. Fez doutorado (1981)e livre-docência (1994) na USP e pós-doutorado na Ecole dês Hautes

Études en Sciences Sociales — Paris/França. E pesquisadora nível l do

CNPq e autora, organizadora e colaboradora de várias obras: A persona-

g em ; Ironia em perspectiva polifôníca; Bakhtin , díalogismo e construção do sentido;

Bakht ín: conccitos-chave e Bakht in: outros conceitos-chave; Gusti e dísgustí. So -

áosemiotica dei quotidiano. É colaboradora da Revista Língua Por tuguesa .

Catheríne Kerbrat-Orecchioni, antiga aluna da Ecole Norma-

le Superieure (Boulevard Jordan), é titular de gramática e doutora emLingüística. Atualmente, é Professora Emérita da Universidade Lyon II,

onde fez toda a sua carreira, sendo, ao mesmo tempo, várias vezes profes-

sora convidada em diferentes universidades estrangeiras (Universidade

de Columbia em Nova York, Universidade de Genebra, Universidade

da Califórnia em Santa Bárbara). No âmbito das ciências da linguagem,

interessa-se sobretudo pela pragmática, a análise do discurso e a análise

das interações, domínios sobre os quais publicou numerosos artigos e

urna dezena de obras t dentre as quais L'énoncíation, IJimplidte, Lês inte-

ractions verbaies, 3 v., La conversation, Lês actes de langage dans lê discours, Lêdiscours en interaction. Ocupou de 2000 a 2005 a cadeira de "Lingüística

das interações", no Institut Universitaire de France.

Claude Chabrol conheceu o "Estruturalismo" com Claude Levi-

Strauss e a semiologia nos seminários de R. Barthes e AJ. Greimas

(EHESS),a partir de 1968.Estudou a imprensa feminina (L ê Récit F é m i -

nin: Mouton 1971) e textos bíblicos com M. de Certeau (cf. Languages

22). Professor de Psicologia Social da Comunicação na Universidade

Paris X — Nanterre e, depois, em Paris III — Sorbonne, desenvolveu

3 1 5

 

Análises do discurso ho j e

uma orientação "Psico-semiótica e pragmática" para testar, no âmbito

da recepção, conjecturas sobre o processo de tratamento dos textos e

suas significações (Discours du t f a v a . i l social et pragmatíque: PUF, 1994).

Colabora regularmente com P. Charaudeau e com o CAD de Paris

XIII. O contrato de comunicação publicitária é uma das ilustrações

Sobre os organizadores e autores

Dylia Lysardo-Dias é professoraAdjunta da Universidade Fede-

ral de São João Del-Rei, onde leciona na graduação e no Mestrado

em Letras. Doutora em Estudos Lingüísticos pela UFMG, possui pós-

doutorado pela UNICAMP. É pesquisadora-membro do Núcleo de

Análise do Discurso da FALE/UFMG e tem publicado artigos sobre o

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dessa colaboração (R/PS, n. 4, 2000), assim como a análise dos atos de

linguagem (Psychologiefmnçaise, n. 44-4, 1999). Lançará, pela editora

D e Boeck, no final de 2008, Psychologie d e Ia communicat ion ei persua-sion, uma síntese dos trabalhos psicológicos e de análise de discursos

americanos e europeus, em co-autoria com Miruna Radu.

Christían Plantín é diretor de pesquisa no CNRS (Centre Na-

tional de Ia Recherche Scientifique), na França. Suas pesquisas em

ciências da linguagem focalizam o discurso e as interações e voltam-se,

principalmente, para as problemáticas da argumentação e das emoções.

Editou, juntamente com Marianne Doury e V Traverso, o livro Lê s

É m o t i o n s dans lês interactions (2000, Presses Universitaires de Lyon) e

publicou Uargumentat ion - Histoire, théorie, perspectives (2005, Presses

Universitaires de France), cuja tradução em português será publicada

ainda em 2008.

Denize Elena Garcia da Silva é mestra em Lingüística pela

Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Lingüística Hispânica

pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). É Pro-

fessora Associada da UnB e líder do Grupo Brasileiro de Estudos de

Discurso, Pobreza e Identidades, registrado no CNPq. É fundadora e

conselheira honorária do Grupo de Estudos de Linguagem do Cen-

tro-Oeste (GELCO) e, atualmente, é Delegada Regional do Brasil

junto àAssociação Latino-americana de Estudos do Discurso (ALED).

Tem vários artigos publicados em periódicos no exterior e, no Brasil,

destacam-se os livros: A repetição em narrativas de adolescentes: do oral ao

escrito (2001); Na s instâncias do discurso: u m a permeabilidade de fronteiras

(2005) e L ín gua , gramática e discurso (2006).

316

discurso publicitário, estereótipos e representações sociais.

Emília Mendes possui graduação em Letras, mestrado e doutora-

do em Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Minas Ge-

rais (2004) e pela Universidade de Paris XIII (doutorado sanduíche).

Atualmente é bolsista recém-doutor do PRODOC/CAPES no Pro-

grama de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos da FALE/UFMG. É

também tradutora.Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase

em Análise do Discurso, atuando principalmente nos seguintes temas:

análise do discurso vertente francesa, teoria semiohngüística, teoria da

ficcionalidade, dentre outras. Participa do Núcleo de Análise do Dis-

curso (NAD) FALE/UFMG desde 1995.

Helena H. Nagamine Brandão fez Doutorado na PUC-SP, Li-

vre Docência na USP e pós-doutorado na Universidade de Grenoble

III (Langues et Lettres), Grenoble, França. É professora Associada do

Departamento de Letras Clássicas eVernáculasna Universidade de São

Paulo, onde atua no Programa de Pós-graduação em Filologia e Lín-

gua Portuguesa, orientando e desenvolvendo pesquisas nas áreas de

Análise do Discurso e Lingüística Aplicada. É autora de Introdução à

Análise do Discurso; Subjetividade, argum entação, polifonia. A propaganda daPetrobrás; Gêneros do discurso na escola — mito , conto, cordel, discurso polí tico,

divulgação científica (organizadora) e Aprender e ensinar c om textos didáticos

e paradidáticos (co-organizadora).

Janice Helena Chaves Marinho é professora da Faculdade de

Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Possui pós-doutora-

do pela Universidade de Fribourg/Suíça, doutorado em Lingüística

e mestrado em Letras: Língua Portuguesa, ambos pela UFMG. Atua

na graduação e na pós-graduação, na área de estudos do texto e do

3 1 7

 

Análises do discurso hoje

discurso. É líder do G r u p o de Estudos sobre a Articu lação d o Discurso ,

certificado pelo CNPq. Suas pesquisas mais recentes voltam-se para

o estudo de expressões conectivas e de seu impacto sobre as relações

de discurso.

centes, estão o livro Análise deDiscurso Crítica, em parceria comViviane

Resende, e o capítulo "La invasión anglosajona a Irak en ei discurso

de los médios impresos brasileiros", no livro Criticai Discourse Analysis of

media texts (Universitat deValència,2007).

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Mareei Burger leciona análise do discurso e teorias da comunica-

ção na Universidade de Lausanne (Suíça) e no Instituto de Informação

e Comunicação da Universidade de Neuchâtel (Suíça). Seus trabalhos

incidem principalmente sobre a construção da identidade nos gêneros

da comunicação midiática e política. É autor de artigos em francês

e em inglês, veiculados em Co m m un i c a t i o n , Stuâies in Co m m un i c a t i o n

Sdences, Revue de Sémant ique et Pragmat ique, e publicou Lês Manifestes.

Paroles d e combat . De Marx à Bre t o n {2002, Delachaux et Niestlé). É

também um dos autores e co-editor de Vanalyse linguistique dê s discours

dê s médias . Entre sciences du langage et sdences de Ia Communica t ion (2008,

Nota Bene), Argumentat ion e t Comm unica t ion dans lês médias (2005, Nota

Bene) e de La Communica t ion touristiaue. Approches discursives de Videntitéet de Valtérité (2004,L'Harmattan).

Maria Leda Pinto é graduada em Letras pela Faculdade Dom de

Aquino de Filosofia Ciências e Letras (FUCMAT), mestre em Edu-

cação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e

doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP).É professora

da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), onde atua

na graduação e na pós-graduação. Possui experiência na área de Le-

tras, com ênfase em Língua Portuguesa e Lingüística, tendo publicado

diversos capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Suas

pesquisas mais recentes têm como tema a cultura e a identidade do

pantaneiro, na perspectiva da Análise do Discurso.

Viviane Ramalho é mestra e doutoranda em Lingüística pela

Universidade de Brasília (UnB). Está em fase final de elaboração de

tese sobre o discurso da propaganda brasileira de medicamentos, sob a

orientação da Profa. Dra. Denize Elena Garcia da Silva. É docente da

Universidade Católica de Brasília (UCB). Dentre suas publicações re-

318

 

Ao lei tor, não se lhe apresenta ap enas um

conjun to de ensaios contendo um inventário

teórico-metodológico, mas, de fato, um acervode possib i l idades anal í t i cas em distintos cenários

da realização l íngüfstico-discursiva, vivenciados

e construídos po r sujeitos e atores em contextos

situacionais diversos. Por tudo isso, o alcance dest

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CONSELHO E D I T O R I A L LUCERNA

Angela Paiva DionmoCarlos Eduardo Falcão Uchôa

Dino Fioravante Preti

Evaníldo Cavalcante Bechara

Ingedore Grunfeld Villaça K o c h

José Luiz Fiorin

Leonor Lopes Fâv ero

Luiz Carlos Travaglia

Ne usa Maria de Oliveira Barbosa Bastos

Ricardo Stdfola Cavaliere

Sueli Cristina MarquesiValier Kehdi

PRODUÇÃO E D I T O R I A L

Daniele Cajueiro

Shahira M a h m u d

REVISÃO

Carolina Rodrigues

Parla Serafim

DlAGRAMAÇÃO

Abreu's System

obra se estende a pesquisadores e profissionais

de perfis também diversos, cujo foco de interesse

esteja voltado para o a p ro f un da m e n to da

compre ensão sobre as formas de expressão e deprodução do sentido no campo da l i nguagem edo s discursos.

Sueli Pires

Consultora acadêmica do Insti tuto Inter naciona lda U N L S C O para E ducação Superior na América

Latina e CaribeDiretora de Gestão do Conhec imento do Ins t i tuto

Cultural Inhot im