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Análise do quadro "A providência guia Cabral", trabalho final da disciplina História da Arte no Brasil I (CAP / USP). De Jesiel Luis Ternero.
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Jesiel Luis Ternero
Trabalho monográfico Pintura: “A providência guia Cabral” de Eliseu Visconti
Trabalho final da disciplina História da Arte no Brasil I.
Professor: Tadeu Chiarelli
Escola de Comunicações e Artes - USP2013
2
Eliseu ViscontiA providência guia Cabral
1899Óleo sobre tela
180 x 108 cm
Obra realizada para os 400 anos do “Descobrimento do Brasil”, pintada em
1899 na França e exposta pela primeira vez no Rio de Janeiro em 19011, o quadro “A
providência guia Cabral” é uma pintura alegórica que mostra o navegador português
Pedro Álvares Cabral em seu caminho ao litoral brasileiro, guiado por uma mulher
representando a personificação da Providência Divina. Quadro de grandes dimensões
(180 x 108 cm), foi pintado por Visconti em seu período parisiense como pensionista
da República, no início de sua carreira artística, sendo o primeiro bolsista da Escola
Nacional de Belas Artes (ENBA)2. A obra caracteriza-se pela influência de movimentos
artísticos como o Simbolismo, Renascimento italiano e um colorido de forte influência
impressionista.
Ao passarmos o olhar pela tela identificamos quatro figuras masculinas,
alinhadas e posicionadas na parte inferior. A primeira, ao leme, é o navegador Pedro
Álvares Cabral. Ao seu lado, em um plano mais ao fundo, aparece um rosto em
1 LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Artlivre, 1988, 1ª ed., p. 427.
2 SERAPHIM, Mirian Nogueira. No verão de Eliseu Visconti: obra pioneira que revela seu autor. Revista de História da Arte e Arqueologia (RHAA), Universidade Estadual de Campinas, nº 7, p. 64, jan/jun 2007.
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penumbra que representa um dos navegadores que acompanhavam Cabral, como
Bartolomeu Dias ou Nicolau Coelho. Na sequência, empunhando uma pena em posição
de escrita, aparece Pero Vaz de Caminha, autor da primeira carta que relata
oficialmente as terras brasileiras ao Rei de Portugal, Dom Manuel. Mais atrás, com as
mãos levantadas em posição de oração e em trajes franciscanos, aparece frei Henrique
de Coimbra, celebrante da primeira missa no Brasil. Acima dos homens, como centro
da alegoria, encontra-se a figura de uma mulher ruiva, cega, que repousa o indicador
no centro da cabeça do navegador e o guia: a personificação da Providência Divina.
O ambiente alegórico e as influências do artista
A pintura foi executada com pequenas pinceladas em tons alaranjados, azuis e
violetas, com áreas de sombras bem acentuadas: uma coloração que se sobrepõe em
tons e concede um efeito diluído e pulsante para a obra, como uma chama viva de
cores. A pintura em si não possui uma luz ambiente, não se pode afirmar qual o
período do dia ou qual a posição do foco de luz. Não se trata aqui de um ambiente
físico, e sim de um lugar metafísico, sem tempo, imaterial, remetendo-nos a um
mundo onírico. As figuras estão mergulhadas em uma dimensão decadentista3, quase
melancólica, sentimento que também contamina suas expressões faciais. Essa
dimensão expressiva aparece também em obras do mesmo período do artista, tais
como: Sonho Místico (1897, Museu de Belas Artes de Santiago do Chile), Gioventù
(1898, Museu Nacional de Belas Artes/Rio de Janeiro), Recompensa de São Sebastião
(1898, MNBA/RJ) e Oréadas (1899, MNBA/RJ).
3 O termo decadentismo descreve uma sensibilidade estética que ocorre no fim do século XIX e se contrapõe ao realismo e ao naturalismo, acompanhada de uma inclinação estética marcada pelo subjetivismo, pela descoberta do universo inconsciente e pelo gosto das dimensões misteriosas da existência. (Trecho obtido em < http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=4624 >. Acesso em 1º de dezembro de 2013.)
4
Sonho místico1897
Gioventú1898
Recompensa de São Sebastião1898
Oréadas1899
Depreende-se que esse estilo de criar ambientes, em Visconti, tem suas raízes
no Simbolismo, estilo com o qual teve contato na Paris de fin-de-siècle e que
influenciou grande parte de sua obra. Mas, também é correto supormos que uma
apreciação dos clássicos renascentistas italianos, em ressonância com valores pré-
rafaelistas, também inspirou o artista. Tal apreciação fica mais evidente nas obras
Gioventù e Oréadas, que nos remetem às pinturas de Botticelli. A esse respeito, o
autor Olívio Tavares de Araújo elucida:
“Mas é certo que Visconti nunca foi nem um impressionista, nem um divisionista em sentido estrito. Deste último nunca adotou o cientificismo, o estudo minucioso dos fenômenos óticos, a justaposição sistemática de cores primárias para gerar uma terceira segundo leis de
5
contraste, degradação e irradiação da luz. Assimilou livremente as linguagens correntes de sua época e as usou como quis. Acrescentou-lhes certo gosto pelo realismo e até um sabor clássico, como o que aparece em sua famosa obra-prima Gioventù, de 1898. Pelo desenho e modelado ela lembra ninguém menos que Botticelli – assim como O Progresso está perto de Monet. Grande pintor heterodoxo, Visconti criou o seu estilo e se move na transição entre dois séculos fazendo arte de alta qualidade.”4
Além disso, apesar de o ambiente viscontiano das obras citadas possuir
expressões típicas do neoplatonismo5, sobretudo em sua luz, devemos lembrar que a
obra de Visconti não apresenta outros paralelos renascentistas, como o estudo
minucioso de fenômenos da natureza com o fim de compreender a materialização
terrena do mundo das ideias e a crise do ser enquanto matéria e sua luta para superá-
la. Em relação a este último, em Visconti, o que encontramos é o oposto: a calma, a
contemplação, o olhar distante e introspectivo permeiam as personagens do autor e
também se confundem com o ambiente que as cercam. Sobre isso, a pesquisadora
Mirian Nogueira Seraphim escreve:
“O pintor brasileiro rapidamente absorveu o clima respirado na Paris da virada do século, mas seu temperamento, não dado a grandes angústias e conflitos existenciais, só lhe permitiria assumir um dos lados das contraposições reinantes naqueles anos [...]”6
Vale apontar que, conforme evolui em sua obra, Visconti passa a substituir essa
atmosfera por outra mais real, viva e colorida, influenciado pela própria atmosfera
úmida carioca que passa a retratar. Podemos constatar essa mudança já na tela
“Antigo observatório nacional”, de 1903, com seu campo bucólico e seu horizonte
colorido. Esse período posterior de sua obra (de meados da década de 1900 até a
década de 1940), cuja atmosfera contrasta com a de seu período inicial em que se 4 ARAÚJO, Olívio Tavares de. Pintura brasileira do séc. XX: trajetórias relevantes. Rio de Janeiro, editora 4 Estações, 1998, p. 34.
5 Nesse sentido, o neoplatonismo na pintura reflete a visão do filósofo Plotino de que de que a esfera material estava mergulhada nas sombras, mas ainda assim acreditava que as formas naturais refletiam um pouco da Luz do Uno. Essa visão filosófica aparece em obras como as de Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio e Michelangelo.
6 SERAPHIM, Mirian Nogueira. Um novo olhar sobre a obra de Eliseu Visconti. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, Universidade Federal de Uberlândia, vol. 3, ano III, nº 3, ps. 6-7, jul/set 2006.
6
localiza a pintura tema deste texto, foi o mais aclamado, pois estava mais em sintonia
com a construção ideológica do movimento modernista brasileiro. O crítico Mário
Pedrosa, analisando a obra de Visconti, comenta no jornal Correio da Manhã em 1950:
“Elyseu Visconti veio ligar o passado ao futuro da história de nossa pintura. Com ele, termina o hiato entre artistas de ontem, que chegam até Batista da Costa, e os modernos que atearam o fogo da revolução. Nele o movimento moderno encontra o elo que faltava para prendê-lo à cadeia da tradição. Visconti tinha, no fundo, consciência dessa missão. Sabia situar-se no plano da curva da história.”7
Antigo observatório nacional1903
Luz e submersão
Analisando a pintura, percebemos que a luz da composição emana do peito da
Providência, e é a única parte da tela realmente iluminada. Mesmo a chama que ela
carrega em sua mão não causa efeito luminoso; não há claridade na mão que a
empunha. A chama ali parece apenas representar o símbolo do conhecimento, como a
chama na lenda mitológica de Prometeu, e a luz emana apenas da mulher, a
Providência Divina, um dos atributos de Deus. Apesar disso, a figura não é toda feita de
luz, as extremidades vão gradualmente ganhando sombra; os pés da Providência já se
apresentam tão escuros que mal os distingue. É forte nisso a simbologia dicotômica
entre terra e céu, profano e divino. Os pés, que tocam o solo, não possuem luz. A
luminosidade, mesmo na personificação divina, emana do peito, do coração. Cabral e
sua tripulação se encontram em uma região de sombras, não fosse a presença da
Providência Divina ali, estariam todos mergulhados na penumbra.
7 Pedrosa, Mário. Visconti diante das modernas gerações. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1.1.1950. Apud CAVALCANTI, Ana. História da arte e ficções num caderno de notas de Eliseu Visconti. ARTE & ENSAIOS – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, nº 21, p. 94, dez. 2010.
7
Ao fundo, o mar se apresenta calmo. Colorido com tons azuis e lilases, com a
utilização de verde esmeralda na construção dos tons, dá a impressão de ser feito de
pedras preciosas. Ele se mistura ao céu roxo e, por sua composição cromática, parece
ser um mar de outro plano, sem paralelo na nossa dimensão terrena. Os tons azul-
lilases do mar foram concebidos para contrastar com o laranja-dourado com o qual é
construída a Providência, seguindo as cores opostas do Disco de Newton.
Um detalhe peculiar da obra foi o tratamento dado aos cabelos esvoaçantes da
Providência. Apesar de parecer retratar um vento forte, esse vento só se manifesta nos
cabelos, nas vestes e na tocha segurada pela figura feminina. Esse suposto vento não
causa efeito físico nas outras personagens. Tal efeito estilístico utilizado pelo pintor
pode ser comparado aos modernos efeitos cinematográficos de captura de movimento
debaixo d’água (underwater motion capture). Curiosamente, esse efeito foi usado no
filme hollywoodiano 3008 com um fim similar ao que o pintor quis em seu quadro. No
filme, uma jovem – a atriz Kelly Craig – ruiva e com os seios desnudos, como a
Providência na pintura, faz parte de um oráculo e realiza uma dança ritualística para
entrar em contato com os deuses que lhe revelarão uma mensagem9. O recurso
estilístico utilizado pelo diretor Zack Snyder foi fazer a captura de movimento debaixo
d’água, talvez pela aparência de transcendentalismo que o efeito mostra. Encontramos
aí um paralelo na representação da Providência: o efeito de movimentação das vestes
apenas da figura feminina, flutuante no navio, leva-nos a sentir seu aspecto
transcendental, um dos temas abordados pelo Simbolismo.
8 300. Direção: Zack Snyder. Estrelando: Gerald Butler and Lena Headey. Warner Bros. Pictures, 2007. DVD (117 min), color.
9 O trecho citado do filme pode ser assistido atualmente no link <http://www.youtube.com/watch?v=xJT-nS4t_gE>. Acesso em 15 de novembro de 2013.
8
A mulher do Oráculo (Kelly Craig) desliza em transe e começa o processo de interpretar a vontade dos deuses. © Warner Bros. Pictures
Nesse contexto, notam-se também as formas esverdeadas que aparecem na
base da imagem. Essas formas, por possuírem asas e bicos, lembram-nos pombos –
símbolo do Espírito Santo e da paz. Porém, Visconti pintou-as de um verde-musgo,
distanciando-se do branco padrão utilizado na representação mais comum deste
símbolo. Fazendo assim, as formas também ganham um aspecto de névoa densa,
reforçando ainda mais a estética onírica da alegoria. Mas, por estarem localizadas
apenas na base do quadro e por possuírem contornos orgânicos, essas formas nos
lembram também de plantas subaquáticas, como algas. Soma-se a isso o já citado
efeito aquático aparente da figura da Providência e podemos supor, como efeito geral,
a sugestão de uma alegoria submersa em água. Essa sugestão está de acordo também
com o tema da obra, a vinda Cabral para o litoral brasileiro dominando os tortuosos
mares que separavam o Reino de Portugal das terras de Pindorama. Ademais, as
pernas da Providência estão quase que totalmente encobertas por um pano
alaranjado, cuja pintura com pequenas pinceladas de um alaranjado brilhante, remete-
nos à escama de algum peixe dourado ou mesmo à imagem de uma sereia. Desta
forma, Cabral, quando guiado pela Providência Divina, se une a Deus e também ao
mar; tudo converge para a descoberta das novas terras, que o pintor desejou enaltecer
com a pintura.
Podemos supor que o pintor tenha talvez planejado e desejado esse feito
simbólico de submersão em seu quadro se levarmos em conta o estudo de um caderno
de notas de Visconti realizado pela professora Ana Cavalcanti (EBA/UFRJ). Em seu
artigo, Cavalcanti nota que Visconti realizava diversas anotações de modelos, seus
endereços e atributos mais interessantes, e também tomava nota de várias outras
9
obras como referência para suas criações futuras. Isso demonstra como o pintor
empregava um esforço intelectual em suas criações.
“Essas anotações se assemelham às de um diretor teatral, produtor cinematográfico, fotógrafo ou qualquer profissional que necessite de elenco variado de atores ou modelos com que possa contar, de acordo com as demandas específicas de cada projeto. Esse é um indício da prática do artista que opera no campo da montagem de cena ou da narração de uma história, ou seja, no campo da ficção.
Encontra-se nesse mesmo bloco outro procedimento de estudo. São esboços rápidos com as linhas de composição e comentários sobre obras que Visconti viu numa viagem a Londres.”10
As personagens e o toque
A figura feminina do quadro é a que nos chama mais atenção. Com um sorriso
contido, parece fitar o horizonte (onde se localiza o Brasil), mas não possui olhos. Suas
órbitas oculares negras reforçam a mensagem de que a Divina Providência é
onisciente, diferindo da iconografia católica que, por vezes, representa a Divina
Providência como um olho – o olho que tudo vê. Levando em conta as estaturas,
percebemos também que a figura feminina é bem maior que as personagens sob seus
pés. Ela é também alongada, com um pescoço muito esticado, porém não tão robusta
como o padrão clássico de representação de mulheres. A composição da figura, seu
cabelo e roupa nos remete à pintura Maria Madalena em Sainte-Baume, de Pierre
Puvis de Chavannes, que pode ter sido uma das inspirações de Vsiconti11. A leveza da
face e da expressão de Providência nos remete às faces femininas das obras de Eugène
Carrière, como por exemplo, Mulher inclinada sobre uma mesa.
10 CAVALCANTI, Ana. História da arte e ficções num caderno de notas de Eliseu Visconti. ARTE & ENSAIOS – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, nº 21, p. 96, dez. 2010.11 LEITE, José Roberto Teixeira, 1988, p. 427.
10
Pierre Puvis de ChavannesMaria Madalena em Sainte-Baume
1869Óleo sobre tela52,5 x 36,5 cm
Eugène CarrièreMulher inclinada sobre uma mesa
1893Óleo sobre tela
65 x 54 cm
Os seios desnudos da figura representam, de acordo com o padrão clássico,
uma imagem superior da mulher, igualando-a às deusas. Temos um exemplo dessa
noção clássica em Eurípedes, na tragédia Hécuba, quando este representa a princesa
Polyxena parcialmente nua nos momentos que precedem sua morte. Ele a descreve
como “expondo seus seios nus, nua e amável como uma escultura de uma deusa”12.
Entretanto, a mulher pintada por Visconti aparece apenas com a metade de cima do
corpo nua, fato que nos remete imediatamente à famosa figura da República Francesa
12 No original: “exposing her naked breasts, bare and lovely like a sculptured goddess”. Eurípedes. Hécuba. 560-61 (trad. W. Arrowsmith, Euripides III. New York 1968). Apud BONFANTE, Larissa. Nudity as a Costume in Classical Art. American Journal of Archaeology, Vol. 93, No. 4 (Oct., 1989), p. 547. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/505328>. Acesso em 16 de novembro de 2013.
11
idealizada por Eugène Delacroix em sua pintura A Liberdade Guiando o Povo (1830).
Essa pintura de Delacroix também inspirou a figura feminina representando a
República Portuguesa da famosa litografia colorida de 1910 de Cândido da Silva13,
alusiva à proclamação da república daquele país.
Eugène DelacroixA Liberdade Guiando o Povo
1830Óleo sobre tela
260 x 325 cm
Cândido da Silva (?)A proclamação da República
portuguesa.1910
9,0 x 13,8 cm
Essas duas figuras, tanto a de Delacroix como a efígie da República Portuguesa
inspirada em Delacroix, guardam paralelos com a figura feminina de Visconti, não
apenas nos seios desnudos, mas por ocuparem o centro da representação e por serem
13 A autoria é atribuída a Cândido da Silva, porém não confirmada. Fonte: Casa Comum/Fundação Mário Soares . Disponível em: < http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=09022.002.007>. Acessado em 22 de novembro de 2013.
12
formalmente maiores, ganhando mais importância. É sabido que Visconti naturalizou-
se brasileiro por ocasião da Proclamação da República Brasileira14, em 1889, e que o
ano de produção do quadro A Providência Guia Cabral, 1899, encontrava-se neste
contexto histórico. Então, podemos supor que estas imagens estavam dentro do
interesse do artista e tenham influenciado, em alguma medida, seu modo de
representação de figura feminina idealizada, superior.
Outra representação personificada da Divina Providência é conhecida do
afresco Alegoria da Divina Providência e do Poder Barberini, de Pietro da Cortona,
pintada no Palazzo Barberini de 1633 a 1639. No afresco, a Divina Providência é
personificada por uma mulher completamente vestida com roupas amarelas e
alaranjadas, tendo uma luz intensa atrás de sua cabeça. A principal diferença da
figuração de Pietro da Cortona e de Visconti está no nu da figura do segundo. Todavia,
a obra de Cortona foi realizada no contexto da Contrarreforma, após o Concílio de
Trento, que proibiu figuras nuas em representações sacras, o que talvez tenha guiado
a sua decisão estética.
14 SERAPHIM (RHAA, p. 64)
13
Pietro da CortonaAlegoria da Divina Providência e do Poder
BarberiniAfresco
c. 1633-1639
Passando a análise para a figura de Cabral, nota-se que na pintura ele está
mesmerizado. Sua expressão, apática, apenas contempla o longe, mostrando que está
fadado ao seu destino. Os cabelos e barba do navegador vão se desfazendo nas
pontas, são quase fluidos. Acerca da figura de Cabral, em 1901, Gonzaga Duque
escreve uma crítica para a revista Kosmos e comenta duas telas de Visconti: Cabral
guiado pela Providência Divina e Orédeas. Sobre Cabral, na obra que tratamos aqui, ele
escreve:
“A figura eminente, Pedr’Álvares Cabral, é representada, no seu tipo tradicional e nas suas vestes da época, mas em o quanto do homem se faz necessário à glorificação – a sua cabeça em que reside a inteligência, e o seu peito, sede convencionada para os sentimentos afetivos, em que, nesse heróico mareante o amor da pátria se reanimava a cada latejar do coração.”15
Outro fato interessante sobre a alegoria é que a Providência coloca o indicador
da mão esquerda no centro da cabeça de Cabral. O dedo atravessa e entra na cabeça
do português, penetrando-a, dando um aspecto espiritual ao toque. Olhando com
atenção, percebe-se que o dedo da mulher se aproxima da localização da glândula
15 Gonzaga Duque. Eliseu Visconti. Revista Kosmos. Rio de Janeiro, ano 2, julho de 1901. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/literatura/gonzaga_duque/FCRB_GonzagaDuque_Eliseu_Visconti.pdf>. Acesso em 17 de novembro de 2013.
14
pineal na cabeça de Cabral. Curioso é notar que, atualmente, essa glândula é tida por
espiritualistas16 como o local de conexão com o espiritual. O artista contemporâneo
americano Alex Gray, que realiza pinturas com temas psicodélicos e espiritualistas,
coloca essa glândula em evidência em alguma de suas pinturas como uma fonte de
inspiração supernatural, como pode ser visto em sua obra Painting. Entretanto, nada
na obra de Visconti aponta que esse detalhe do toque foi intencional. Nenhuma de
suas outras pinturas ou desenhos17 mostra algum indício de ligação entre Visconti e o
espiritualismo. Em uma procura por alguma referência de pintura (dentre simbolistas,
românticos, pré-rafaelitas ou renascentistas) que talvez pudesse explicar a inspiração
de Visconti para a construção desse toque peculiar também não logrou resultados.
Alex GreyPainting
1998Óleo sobre linho
76,2 cm x 101,6 cm
Origem da obra e gênero
A origem desta obra foi, na verdade, um concurso lançado em 1899 pela
Associação do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil. Os candidatos deveriam
16 Divaldo Franco, em entrevista para a Rede Globo em 2012, transcrita pelo jornal on-line da emissora, o G1, cita a relação tida por espiritualistas entre a glândula pineal e a mediunidade. Notícia pode ser vista e lida em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/08/medium-divaldo-franco-cita-maias-e-fala-em-transicao-para-mundo-melhor.html>. Acesso em 17 de novembro de 2013.
17 Uma lista completa de trabalhos de Visconti pode ser vista no website do Projeto Eliseu Visconti: <http://www.eliseuvisconti.com.br/Catalogo/Principal/Default.aspx>. Acesso em 17 de novembro de 2013.
15
enviar um esboço com o Descobrimento como tema, medindo 60 x 40 cm, até 20 de
agosto daquele ano18. A composição vencedora seria realizada em tamanho maior e
um prêmio em dinheiro seria dado a seu autor. Doze esboços foram apresentados e
Visconti usou Providência como pseudônimo em sua participação. Embora não tendo
ganhado o concurso, Visconti resolveu realizar assim mesmo uma obra de maiores
dimensões, a que conhecemos hoje. É conhecido também um esboço para essa obra,
que se encontra na Embaixada do Brasil em Washington, que pelo seu tamanho (85 x
54 cm), acredita-se que não seja a obra enviada para o concurso, mas talvez um
planejamento do quadro que realizaria.
Eliseu ViscontiProvável esboço para a obra “Providência
Guia Cabral”.1899
Óleo sobre tela85 x 54 cm
Apesar de apresentar um fato histórico, a vinda de Pedro Álvares Cabral e sua
comitiva para o, então, “Descobrimento” do Brasil, a tela de Visconti não guarda
muitas semelhanças com o gênero pintura histórica. Não é o foco da representação de
Visconti passar a objetividade do fato histórico, como acontece em pinturas históricas
como as de Victor Meirelles e Pedro Américo. Eliseu Visconti quis, ao contrário, dar um
ar simbolista, romântico, ao fato. Se compararmos essa pintura de Visconti com a 18 SERAPHIM, Mirian Nogueira. [Com/Con]tradições na História da Art. XXXI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, Universidade Estadual de Campinas, p. 411, outubro de 2011. Disponível em: <http://www.cbha.art.br/coloquios/2011/anais/pdfs/anais2011.pdf>. Acesso 17 de novembro de 2013.
16
Descoberta do Brasil [Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500]
(1922), de Oscar Pereira da Silva, notamos que nesta última foram representadas
todas as caravelas de Cabral, além de um grande número de pessoas pertencentes à
tripulação e o estandarte do Reino Português, itens que não entraram na
representação de Visconti. Além disso, a pintura A Providência guia Cabral, apesar de
possuir proporções relativamente grandes (180 x 108 cm) não possui as gigantescas
proporções nas quais as pinturas históricas eram feiras, como a citada pintura de Oscar
da Silva que possui 190 × 330 cm.
Oscar Pereira da SilvaDescoberta do Brasil
[Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto
Seguro em 1500]1922
Óleo sobre tela190 × 330 cm
Também, as pinturas históricas possuíam um interesse especial do Estado,
sendo muitas vezes encomendadas por este e, por serem vistas como de maior
importância, atribuídas apenas a pintores que gozavam de certo renome. Eliseu
Visconti, apesar das ótimas críticas, prêmios e recomendações, estava ainda no
começo de sua carreira quando pintou A Providência guia Cabral e, a avaliar pelos
estudos e outras pinturas realizadas no período, não inclinado à pintura histórica.
Considerações finais
Este trabalho teve por objetivo a análise da obra “A providência guia Cabral”,
de Eliseu Visconti. A análise principal se tentou mostrar que, ao planejar a tela,
Visconti, inspirado pelo simbolismo, inseriu diversos pormenores que atribuem uma
atmosfera transcendental à cena e a coloca em ressonância com a produção simbolista
17
de Paris do fim do século XIX. Notamos também, que Eliseu empreendeu estudos
sérios durante seu período como pensionista da República e trouxe para o Brasil uma
densa gama de conhecimentos, que continuou por desenvolver no restante de sua
carreira.
Bibliografia
ARAÚJO, Olívio Tavares de. Pintura brasileira do séc. XX: trajetórias relevantes. Rio de Janeiro: 4 Estações, 1998.
CAVALCANTI, Ana. História da arte e ficções num caderno de notas de Eliseu Visconti. ARTE & E NSAIOS – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, nº 21, dez. 2010.
EURÍPEDES. Hécuba. (trad. W. Arrowsmith, Euripides III. New York 1968). Apud BONFANTE, Larissa. Nudity as a Costume in Classical Art. American Journal of Archaeology, Vol. 93, No. 4 (Oct., 1989). Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/505328>. Acesso em 16 de novembro de 2013.
GONZAGA DUQUE. Eliseu Visconti. Revista Kosmos. Rio de Janeiro, ano 2, julho de 1901. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/literatura/gonzaga_duque/FCRB_GonzagaDuque_Eliseu_Visconti.pdf>. Acesso em 17 de novembro de 2013.
LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Artlivre, 1988, 1ª ed.
PEDROSA, Mário. Visconti diante das modernas gerações. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1.1.1950. Apud CAVALCANTI, Ana. História da arte e ficções num caderno de notas de Eliseu Visconti. ARTE & ENSAIOS – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, nº 21, dez. 2010.
SERAPHIM, Mirian Nogueira. No verão de Eliseu Visconti: obra pioneira que revela seu autor. Revista de História da Arte e Arqueologia (RHAA), Universidade Estadual de Campinas, nº 7, jan/jun 2007.
_______________________. Um novo olhar sobre a obra de Eliseu Visconti. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, Universidade Federal de Uberlândia, vol. 3, ano III, nº 3, jul/set 2006.
18
_______________________. [Com/Con]tradições na História da Art. XXXI Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, Universidade Estadual de Campinas, outubro de 2011. Disponível em: <http://www.cbha.art.br/coloquios/2011/anais/pdfs/anais2011.pdf>. Acesso 17 de novembro de 2013.