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REC Revista Eletrnica de Comunicao - Uni-FACEF 2007 Edio 04 Jul/Dez 2007
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POESIA MEDIADA: DIALOGISMO, LINGUAGEM E COMUNICAO NO FILME O CARTEIRO E O POETA
SCORSOLINI-COMIN, Fabio; SANTOS, Manoel Antnio dos
Resumo:
O Carteiro e o Poeta foi um dos grandes sucessos do cinema europeu (1994). Trata-se de uma adaptao ao cinema do romance de Antonio Skrmeta sobre a amizade entre o poeta chileno Pablo Neruda e um carteiro italiano no incio dos anos 50, quando o primeiro foi obrigado a exilar-se em uma ilha do Mediterrneo. Michael Radford assina um filme sobre a fora transformadora da amizade entre dois homens separados por diferenas, a partir de um dilogo mediado pela poesia. Evocando-se as contribuies de Bakhtin e Vygotsky acerca dos conceitos como dialogismo e linguagem, aponta-se de que modo esses conceitos contribuem para analisar as interaes estabelecidas, por meio do objeto poesia, abordado no filme no apenas em sua dimenso semntica e esttica, mas em sua possibilidade de ressignificao dos dizeres, interjogo de sentidos e possibilidades de comunicao entre as personagens dentro de um contexto de produo que delimita a obra.
Palavras-chave: dialogismo; linguagem; comunicao; poesia; cinema.
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O OBJETO DE ANLISE
O filme narra o encontro do carteiro Mrio Ruoppolo com o poeta Pablo Neruda.
Mrio mora em uma remota ilha do Mediterrneo (Itlia), sem infra-estrutura, onde a grande
maioria dos homens vive da pesca. S que ele no gosta de barcos e muito menos das velhas
redes de pescaria. Mrio consegue um emprego temporrio como carteiro, de um nico
endereo, o de Pablo Neruda, poeta chileno que chega ilha em 1953, exilado de seu pas por
ser comunista. Mrio, homem naturalmente ingnuo, mas dotado de sensibilidade, encanta-se
com a presena do importante poeta, a ponto de querer se tornar poeta tambm.
O contato que passa a ter com Neruda desperta nele um conhecimento sobre si e seus
sentimentos, abrindo seus olhos para ver o mundo limitado em que vive e que, agora, pode
melhor entend-lo. Mrio apaixona-se pela jovem Beatrice e ajudado por Neruda durante a
sua conquista, que se d por intermdio de metforas construdas por Mrio e de poesias
escritas por Neruda. Ao fim do exlio, o escritor retorna ao Chile, esquecendo-se do seu antigo
carteiro, e este, movido pela dor do abandono, escreve uma poesia sobre a ilha e sobre
Neruda. Mrio envolve-se com o comunismo, tambm por influncia de Neruda, e acaba
sendo morto por policiais durante um protesto. Mrio tem um filho com Beatrice, Pablito. Ao
final do filme, Neruda volta Itlia e conhece o filho de Mrio, sabendo que seu amigo
carteiro est morto.
A chegada de Pablo Neruda ilha ir despertar Mrio para uma vida que parece
perdida. O contato entre os dois quase imediato. O anncio no posto de correios desperta a
sua curiosidade, uma vez que ele sabe ler e escrever e possui uma bicicleta. Desde o primeiro
dia de trabalho, em que Mrio entra em contato com o poeta Neruda, a vida dos dois
personagens passa a ser diferente notadamente a do primeiro, relatada com principal no filme
(apenas na traduo para o portugus do nome do filme que aparece a citao do poeta. Em
outras tradues, aparece apenas o carteiro). Pensando no contexto de produo destacado no
filme, o encontro dos dois no marca apenas um encontro de palavras, de poesias e de
sentimentos: marca o encontro de realidades polticas, de saberes e de dois pases (Chile e
Itlia) que viviam situaes polticas e econmicas semelhantes. O dilogo que se estabelece
possibilitado (no filme) pelas palavras, mas isso extrapola a poesia.
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Neruda transmite a Mrio a conscincia de vida que h muito procurava. Apresenta-
lhe as metforas, o esprito do comunismo e ajuda-o a conquistar Beatriz Russo. Neruda
fomenta a nsia de vida de Mrio Ruoppolo que, paradoxalmente, estar na base da sua morte,
durante um comcio do Partido Comunista violentamente reprimido pelas foras policiais.
Sem o poeta chileno Mrio nunca teria ganhado autonomia para reivindicar, para se sentir
capaz de mudar o mundo ou, simplesmente, trazer a gua corrente para a sua comunidade.
Mrio simboliza a vontade de pensar diferente, de dar conta da realidade que vive, apesar das
pocas de alguma esperana que nos so retratadas tanto no Chile quanto na Itlia. Em ambos
os casos, em ambas as ilhas, ainda se sente a pobreza e a desigualdade que a poesia tambm
pode ajudar a mostrar.
REFERENCIAL TERICO
Vygotsky e Bakhtin viveram na mesma poca e apresentaram significativas
convergncias em suas obras, embora nenhum deles tenha se valido do outro na construo de
suas teorias em torno da linguagem e do desenvolvimento humano. Eles possuam no apenas
formaes diferentes, como tambm focos diferentes de trabalho. Vygotsky focalizou a sua
obra muito mais nas questes desenvolvimentais, enquanto que o outro estudou mais a
linguagem a partir da perspectiva da Lingstica, levando a mudanas importantes no modo
como a linguagem estudada e concebida na cincia. Dentro do campo da Psicologia, que
norteia a disciplina base deste trabalho, a obra de Vygotsky algo mais difundido e de
alcance para todos os pesquisadores. Bakhtin, no entanto, apresenta uma leitura mais difcil
primeira vista (por diversos motivos, dentre os quais destacamos o carter recente com que
seus textos comearam a ser difundidos no ocidente, as dificuldades de traduo de muitos de
seus textos e mesmo a polmica envolvendo a autoria de seus textos), dificultando que muitos
profissionais conheam as linhas do seu pensamento e as possam discutir.
Vygotsky produziu trabalhos dentro das concepes materialistas predominantes na
Unio Sovitica ps-revoluo de 1917, tendo uma idia central de que o ser humano se
constitui enquanto tal na sua relao com o outro social. Para este autor, a cultura se torna
uma parte da natureza humana a partir de um processo histrico que vai moldando o
funcionamento psicolgico do homem ao longo do desenvolvimento da espcie e do
indivduo. Bakhtin foi um lingista na atualmente extinta Unio Sovitica, vivendo e
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desenvolvendo a sua obra em um contexto histrico especfico, recebendo grandes influncias
do marxismo. Ele compartilhou com os tericos marxistas de um interesse pelo mundo
histrico e social, em um interesse em como os seres humanos agem e pensam. Ou seja, um
interesse na lngua como o meio em que as ideologias se articulam, j que, para este autor, a
lngua portadora de ideologias, sendo esta sempre material. Assim, podemos perceber que
esses autores, da perspectiva histrico-cultural, possuem pontos de ligao e que foram
fundamentais no desenvolvimento de suas teorias, o que hoje vem sendo resgatado por
estudiosos de diferentes reas, como a Psicologia, que o local de onde partimos.
Na abordagem histrico-cultural, temos que pensar no desenvolvimento humano a
partir da idia de sujeito em relao, mas tendo uma participao ativa nas negociaes que
estabelece com o meio social, o que trazido tanto por Vygotsky quanto por Bakhtin. Para
Vygotsky (1989), os processos de desenvolvimento podem ser discutidos a partir de outras
noes, como a de socializao, segundo a qual o contato social permite criana a
construo de sentidos e significados. O que deve aqui ser enfatizado que embora a leitura
de Vygotsky nos atenha ao perodo da infncia, devemos refletir que so essa construo no
se d apenas nesta fase da vida, mas durante todo o ciclo vital, para utilizar uma noo
clssica da Psicologia do Desenvolvimento.
Bakhtin, por no ser um terico vindo da Psicologia (ele parte da Lingstica, embora
dialogue e contribua com outras tantas cincias e correntes filosficas) no enfoca tanto o
desenvolvimento na perspectiva psicolgica com a qual estamos acostumados, mas tambm
destaca a necessidade de um olhar mltiplo sobre o mundo e sobre o outro. Trata-se de um
olhar que v o mundo a partir de rudos, vozes, sentidos, sons e linguagens que se misturam,
(re)constroem-se, modificam-se e transformam-se. Dentro disso, a palavra (na viso
bakhtiniana) assume papel primordial, pois a partir dela que o sujeito constitui e
constitudo. A palavra no seria apenas um meio de comunicao, mas tambm contedo da
prpria atividade psquica. Essa viso supera a descrio dos elementos estritamente
lingsticos e busca tambm os elementos extralingsticos que, direta ou indiretamente,
condicionam a interao nos planos social, econmico, histrico e ideolgico (SCORSOLINI-
COMIN, 2006).
Pensando na questo do desenvolvimento, Vygotsky (1989) aborda duas linhas
principais de desenvolvimento, uma natural e outra cultural, que se relacionam. A natural a
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do crescimento e da maturao, est presente no nascimento e se traduz nos processos mentais
inferiores. Os processos mentais inferiores se transformam em processos mentais superiores
pela interao com os outros e pela apropriao e construo de ferramentas de mediao. A
linha cultural envolve a apropriao de vrias ferramentas de mediao ou meios culturais,
possibilitando a prpria interao e a transformao qualitativa da linha natural. Essa
interao enfatizada por Vygotsky quando este afirma que Eu me relaciono comigo tal
como as pessoas relacionaram-se comigo (VIGOTSKI, 2000, p. 25), ou seja, traz a
necessidade de um outro para que ocorra o desenvolvimento, que fundamentalmente social.
Corroborando tal afirmao, quando aborda as funes psquicas superiores, Vygotsky atesta
que as mesmas so relaes internalizadas da ordem social, so o fundamento da estrutura
social da personalidade (VYGOTSKY, 1995, p. 151).
ANLISE DA OBRA
Em um dos primeiros pontos de anlise, no na discusso da transformao de
processos inferiores em superiores, mas no modo como a cultura possibilita a apropriao
dessas ferramentas de interao, podemos pensar em diversas situaes trazidas no filme O
Carteiro e o Poeta que corporificam este dilogo.
A poesia utilizada como uma ferramenta, ferramenta que possibilita a interao entre
carteiro e poeta, entre o carteiro e o seu meio social (sua futura esposa, a tia da esposa, os
companheiros do vilarejo e etc.) e do poeta com o seu meio tambm (o Chile, seus
companheiros polticos, o vilarejo no qual ele exilado e etc.). A poesia a veia condutora
deste processo, pois permite que as pessoas construam sentimentos a respeito dela e mesmo
que expressem sentimentos, emoes e afetividade a partir dela.
Em termos de desenvolvimento, refletindo a respeito da diferenciao que por vezes
fazemos entre a evoluo biolgica e a histria cultural, Vygotsky no aceitava a hiptese de
que a capacidade de adquirir cultura foi uma ocorrncia na filognese dos primatas, afirmando
que a linguagem no era produto de um sbito aparecimento na ontognese, mas resultado de
um processo de desenvolvimento. Esta viso tambm compartilhada por Bakhtin. Em
relao linguagem, Bakhtin (1986) destaca a centralidade da mesma na vida do homem.
Segundo ele, a palavra o material da linguagem interior e da conscincia, alm de ser
elemento privilegiado da comunicao na vida cotidiana, que acompanha toda criao
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ideolgica, estando presente em todos os atos de compreenso e de interpretao. Para este
autor, a palavra tem sempre um sentido ideolgico ou vivencial, se relaciona totalmente com
o contexto e carrega um conjunto de significados que socialmente foram dados a ela. Fazendo
uma interlocuo com Vygotsky, pode-se dizer que o significado o caminho do
pensamento para a palavra, no sendo a soma de todas as operaes psicolgicas que esto
por trs da palavra (VYGOTSKY, 1987, p. 44).
A palavra tambm polissmica e plural, uma presena viva da histria, por conter
mltiplos fios ideolgicos que a tecem (BAKHTIN, 1985; BRAIT, 1997), o que fica bastante
evidente no filme analisado, uma vez que so as palavras usadas a partir tanto da veia potica
(refletir e expressar sentimentos de amor, tristeza, saudade) quando da veia poltica (produzir
protestos, reivindicaes, contestaes). O produto do ato da fala, a enunciao, de natureza
social, sendo determinada pela situao mais imediata ou pelo meio social mais amplo. E o
que torna a compreenso de uma palavra possvel tambm aquilo que presumido pelo
ouvinte, porque toda palavra usada na fala real possui um acento de valor ou apreciativo,
transmitido atravs da entoao expressiva. Por isso, junto com a palavra acontecem os
gestos, as expresses faciais, a tonalidade e entonaes.
Vygotsky (1996), em termos de desenvolvimento, afirma que toda funo psicolgica
se desenvolve primeiro no plano interpessoal, mediada por instrumentos culturais (entre eles,
a fala - o mais importante, mapas, diagramas, smbolos abstratos, etc.), e depois
internalizada. Os processos mentais superiores so explicados por esta lei de desenvolvimento
e resultam da transformao dos processos mentais inferiores. As crianas utilizam processos
mentais inferiores, como a ateno involuntria, a percepo imediata e a memria no
mediada, resultante de uma linha de desenvolvimento natural. Por meio da interao,
entretanto, esses processos so radicalmente transformados em ou superados por processos
mentais superiores, como a ateno voluntria e a memria mediada. No filme, no temos a
expresso de uma criana neste processo de desenvolvimento da linguagem, o que nos
auxiliaria a pensar no modo como isso se d na realidade (captada por uma produo
artstica). No entanto, a descoberta da poesia que feita pelo carteiro pode ser interpretada
como um acesso que o mesmo tem a uma outra forma de linguagem, que lhe possibilita
diversos contatos (com o poeta, com a sua futura esposa, com seus futuros companheiros
polticos e com a sua prpria vida). No filme, podemos compreender o carter ininterrupto
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dessa transformao e do processo de desenvolvimento, uma vez que as personagens vo se
modificando a partir do contato pessoal, do modo como so tocadas pelas diferentes
ferramentas disponveis no meio cultural.
Por meio da linguagem, as divergncias, a materializao das lutas de classes, a
disputa pelo poder por grupos antagnicos, as crenas religiosas e as demonstraes de
preconceitos so colocadas em evidncia. Dentro desse jogo - da palavra que liga a palavra - o
sujeito falante, que apreende o discurso do outro, no um ser mudo e passivo. Ao contrrio,
um ser perpassado pelas suas prprias palavras e pelas de outrem. As palavras refletem e
refratam, no de forma mecnica, os conflitos, e apontam s marcas ideolgicas distintas de
cada sujeito em interao. Nessa viso bakhtiniana no existem pensamento e linguagem
inatos. A atividade mental do sujeito pertence totalmente ao campo social, pois a palavra e o
material semitico, externo aos sujeitos, so elementos determinantes para a organizao do
pensamento que, posteriormente, retorna ao campo social. Para Vygotsky, a linguagem
sempre polissmica, requerendo uma interpretao com base em fatores lingsticos e
extralingsticos, nos levando a considerao de que para entender o que o outro nos diz no
basta entendermos as suas palavras deve-se entender ou compreender o seu pensamento, a
sua motivao (VYGOTSKY, 1996).
A palavra, em sua condio de signo, adquirida no meio social que, interiorizada
pelo sujeito, retorna ao meio social por meio do processo de interao, numa forma
diferenciada, ou seja, ela dialeticamente alterada devido s coloraes ideolgicas que
marcam as condies de produo. O sentido da palavra totalmente determinado por seu
contexto, mas estes contextos no se encontram justapostos simplesmente, mas se encontram
em uma situao de interao e de conflito tenso e ininterrupto (Bakhtin, 1986). A respeito da
noo de linguagem, Vygotsky destaca o processo de apropriao cultural, o papel mediador
da linguagem (Vygotsky, 1989). A linguagem seria construda a partir de um processo
dialtico, devendo ser compreendida dentro de um quadro de relaes contraditrias. A
linguagem seria social e ambientalmente orientada, ou seja, ela construda socialmente (nas
interaes, no processo de mediao e a partir dos signos) a partir de um movimento
ininterrupto de dentro para fora e de fora para dentro. Em outras palavras, s podemos
compreender esta construo se entendemos que o externo vai constituindo nosso mundo
interno (intrapsquico) e vice-versa.
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Os signos (a palavra, por exemplo) desempenham um papel muito importante nesta
relao. Assim, o que nos chama a ateno nesta concepo de linguagem que a mesma no
se d apenas em termos de aquisies neurolgicas e de uma maturao de nosso sistema
nervoso (se pensarmos estritamente na comunicao verbal), mas tambm a partir de diversas
formas de comunicao, como o gesto, o toque, a expresso, uma vez que essas instncias
tambm so construdas (e co-construdas) a partir do meio social, a partir das interaes e
dos diversos outros que nos cercam e nos constituem, o que corroborado por Bakhtin. Deste
modo, a palavra funciona como um signo que permite a mediao, levando-nos a
compreender como ocorre o processo de internalizao. Quais os sentidos expressos por este
signo? Qual a sua abrangncia? Qual a sua concretude? Essas so algumas questes que
particularmente me colocam a discutir Vygotsky. A palavra enquanto um signo revelada em
todo o filme pelo domnio da palavra que o pescador se torna carteiro de um s
destinatrio, pela palavra que o carteiro identifica as remetentes de Neruda (ele o poeta das
mulheres, como dizia um dos noticirios que ele assistira, ele recebe muitas cartas das
mulheres), a carta da Sucia (indicao para o Prmio Nobel) e recebe notcias do poeta
quando ele sai do exlio. por meio da palavra que o filme nos comunica as suas metforas
com a realidade dos expectadores, confundindo poltica, sentimento e poesia e nos
impactando com a simplicidade da onda que bate na pedra, insistente e ritmada.
A palavra permite a constituio do sujeito na e por meio da linguagem. No se trata
aqui de lidar com uma palavra enquanto unidade da lngua, nem com a significao dessa
palavra, mas sim com o enunciado acabado e com um sentido concreto, ou seja, seu contedo.
A significao da palavra se refere realidade efetiva nas condies reais da comunicao
verbal (a significao de uma palavra s pode ser entendida a partir dos enunciados, da sua
entonao, que vai lhe conferir toda uma expressividade a entonao expressiva no
pertence palavra, mas ao enunciado). Como apontado por Pino (2000, p. 66), a significao
emerge na prpria relao, ou seja, ou seja, depende de um outro. Para Bakhtin (1986), a
palavra seria considerada como um signo social, funcionando como elemento essencial que
acompanha e comenta todo ato ideolgico. Os processos de compreenso de todos os
fenmenos ideolgicos (um quadro, uma pea musical, um ritual ou um comportamento
humano um filme!) no podem operar sem a participao do discurso interior. Todas as
manifestaes da criao ideolgica todos os signos no-verbais banham-se no discurso e
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no podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele (idem). De igual
modo, Pino (1991, p. 36) aponta que a natureza reversvel dos signos torna-os
particularmente aptos para a regulao da atividade do prprio sujeito, fazendo deles os
mediadores na formao da conscincia, experincia das experincias, o que nos leva a
considerar tambm que os signos no so dados e estanques, mas que so construdos e esto
em transformao.
O dialogismo um conceito que permeia toda a obra de Bakhtin e no trazido
diretamente por Vygotsky, uma vez que na construo desta noo desenvolvida a partir da
Lingstica. Mas neste trabalho, enfocamos o modo como este princpio nos ajuda a pensar
em questes tpicas do desenvolvimento humano. A concepo dialgica contm a idia da
relatividade da autoria individual e, por conseguinte, o destaque do carter coletivo e social da
produo de discursos. De acordo com as proposies bakhtinianas, a alteridade marcaria o
ser humano. Nesta vertente, o dialogismo seria o confronto das entoaes e dos sistemas de
valores que possibilitam as mais variadas vises de mundo acerca de um tpico especfico. O
ser humano seria considerado um intertexto, no existindo isoladamente, j que a sua vida se
tece, intercruza-se e se interpenetra com a experincia do outro. Os enunciados de um falante
esto sempre e inevitavelmente atravessados pelas palavras do outro: o discurso elaborado
pelo falante constitui e se constitui tambm do discurso do outro que o atravessa,
condicionando o discurso do eu.
Em Bakhtin, a noo de dialgico ou de dialogicidade aparece atravs de diversas
formas, mas abordaremos uma em especfico, o dialogismo interno da palavra (no discurso, o
objeto est mergulhado de valores e definies, fazendo com que o falante se depare com
mltiplos caminhos e vozes ao redor desse objeto). No filme, algumas palavras so
trabalhadas neste sentido, como o caso clebre de metfora. O poeta apresenta ao carteiro
o significado de metfora, que seria uma espcie de comparao. Cita o exemplo de O cu
chora para se referir chuva e, a partir disso, Mrio comea a fazer as suas metforas,
fazendo aluso ao ato de compor um poema. A palavra metfora, no filme, a metfora do
que ocorre com a poesia, com o retrato que ela faz do mundo por meio da leitura de cada um,
de cada autor. Quais as mltiplas vozes que so evocadas quando falamos em metfora? A tia
de Beatrice parece no entender o que so metforas e, em certas passagens do texto, a
metfora adquire um sentido pecaminoso e desertor de Beatrice as metforas de Mrio
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estavam seduzindo a moa. A metfora usada na poesia compreendida como uma
possibilidade de encantar a mulher e lev-la ao pecado da carne. Outra palavra que desperta a
ateno do expectador amor.
No filme, Neruda e sua esposa Matilde se chamam por Amor, o que alvo dos
comentrios de Mrio para seu chefe nos correios: Eles tratam um ao outro por Amor. A
palavra amor assume no apenas o significado de carinho e afeto enquanto um substantivo,
mas passa a ser um nome pessoal, um nome que marca o sentimento que envolve as duas
personagens. No filme, pode-se pensar no comunismo enquanto uma corrente que revelada e
(re)velada a Mrio pela influncia de Neruda. Os pressupostos comunistas no pertencem nem
se originam em Mrio ou em Neruda, mas so corporificados e modificados por eles e neles
de acordo com as suas vivncia e uma srie de relaes que se estabelecem - Neruda exilado
por ser comunista no Chile e Mrio morto por manifestar essas idias em sua comunidade,
em uma ilha da Itlia. Pensando no dialogismo construdo pela emergncia de vrias vozes
relacionadas a um tema especfico, dadas pela antecipao da resposta dos outros e das
possveis respostas imaginadas por ele, em funo do interlocutor e do contexto, o exemplo
do comunismo tambm pertinente, uma vez que esta corrente adquire diferentes conotaes
a partir das vozes que a enunciam as vozes dos pescadores da ilha, da tia de Beatrice, do pai
de Mrio, de Neruda!
A certa altura, no decorrer do filme, Neruda diz a Mrio que a explicao da poesia
significa a morte do poema. Poesia no se explica, sente-se. Mrio dizia ao poeta que os
poemas tambm eram seus, porque lhe despertaram emoes. A poesia de Neruda despertou
em Mrio sentimentos que s a ele dizem respeito. Quando Mrio diz a Beatriz o poema que
Neruda havia escrito para Matilde, o faz com emoo diferente da que o poeta se serviu para
escrever, certamente. A democraticidade da poesia advm dessa tomada de posse, desse dizer,
por palavras que no so as nossas, de sentimentos que s a ns nos dizem alguma coisa, ou
seja, dialogismo. Aqui pertinente resgatar que Vygotsky afirma que a atividade humana
produtora, por meio dela o homem transforma a natureza e a constitui em objeto de
conhecimento e, ao mesmo tempo, transforma a si mesmo em sujeito de conhecimento
(VYGOTSKY, 1996; 1989).
A relao sujeito-objeto, nessa perspectiva, no de interao, mas sim dialtica, ou
seja, contraditria e mediada semioticamente. Entendo que a mediao semitica, por sua
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vez, uma mediao social, pois os meios tcnicos e semiticos (a palavra, por exemplo) so
sociais a poesia e os discursos, como analisado anteriormente so possibilitadores deste
processo. Para Vygotsky, a palavra o signo que serve tanto para indicar o objeto como para
represent-lo, como conceito, sendo nesse ltimo caso, um instrumento do pensamento (A
poesia, no filme, seria um signo? As palavras dos poemas de Neruda e do carteiro seriam
signos? Funcionariam como signos?). Da a importncia de se discutir acerca da palavra. Em
nossa sociedade, temos a recorrncia da palavra enquanto signo verbal, como mediador da
interao verbal. No entanto, a partir das contribuies vygotskyanas, abre-se espao para que
possamos refletir no apenas a partir sobre o verbal, mas sobre o signo em um sentido mais
amplo, no necessariamente verbal.
No filme, podemos nos remeter ao episdio no qual Mrio grava diferentes sons para
mandar ao amigo poeta, como forma de mostrar o que de mais belo havia em sua terra. Mrio
escolhe o som das guas do mar batendo nas pequenas pedras da orla, o som das ondas em
alto mar, o som da rede triste, os sinos da igreja, o som do cu estrelado e as batidas do
corao de seu filho, o pequeno Pablito. Esses sons, para Mrio, trazem uma significao
especial, mostram sentimentos, mostram uma leitura possvel do belo. A significao
carregada por esses sons adquire um estado da palavra abordada por Bakhtin, uma vez que
eles revelam muito mais do que a simples expresso sonora de eventos naturais ou materiais:
a expresso de algo que adquire carter de signo, produzindo significaes especficas
dentro do contexto potico no qual se situa o filme. Como destacado por Vygotsky, o
significado no igual palavra, nem igual ao pensamento (VYGOTSKY, 1996), mas
acontece em funo da mediao e esta mediao pode ser entendida como algo que se d
entre o carteiro e o poeta atravs da poesia. a poesia que est nas ondas, nos sons, no bater
do corao. Ela permite o contato e a comunicao entre as personagens. Mais do que isso,
proporciona a significao.
Acerca desta alteridade constitutiva, podemos pensar que Neruda se faz presente e
constitui o carteiro, na medida em que suas idias vo modificando e ajudando a construir o
modo como Mrio se coloca nas diversas situaes, em seu posicionamento enquanto cidado
e quanto homem apaixonado. As vozes de Neruda acabam se cravando no existir do carteiro,
ajudando a circunscrever o seu desenvolvimento. Quando este decide se envolver com
poltica, outras vozes alm da do poeta so evocadas: as condies de vida de Mrio, o seu ex-
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ofcio de pescador, a situao de misria vivida pelas pessoas da comunidade, os dizeres da tia
de Beatrice e do seu prprio pai quando este se casou: conseguira casar-se e ter um emprego,
ainda que receba muito pouco. Essas mltiplas vozes acabam sendo evocadas por Mrio e
devem ser estudadas, a fim de que compreendamos a trajetria da personagem.
Pensando no modo como o carteiro ajuda o poeta a construir o seu desenvolvimento,
deve-se comentar acerca das diversas perguntas e comentrio feitos por Mrio que fizeram
que o poeta ficasse se perguntando a respeito, tentando achar uma resposta. Quando o poeta
vai nadar e vai pensar no que Mrio acabara de perguntar, por exemplo, ele vai evocar na
apenas a voz questionadora e simples do carteiro, mas uma srie de outras vozes ouvidas,
faladas, experienciadas, historicizadas que fazem o seu desenvolvimento. As vozes dos
companheiros comunistas que se fixaram no Chile e tambm espalhados por outros pases
constituem o modo como o poeta pensa e inclusive se expressa em sua obra (e tantas outras
vozes que no nos so acessveis pelo filme). Essas vozes so acessadas por ele atravs das
cartas que recebe e envia, da sua memria e tambm das fitas udio-gravadas trocadas ao
longo do filme. Muitas dessas vozes acabam ecoando em Mrio. Assim, a polifonia estabelece
que essas vozes nos constituem constantemente, em um processo nem sempre organizado e
sistematizado.
A noo de alteridade trazida por Bakhtin (1997; 1985) vai ser constituda a partir dos
conceitos de dialogismo e polifonia, possuindo um ponto de encontro com Vygotsky (1996)
quando este fala da necessidade do outro para que ocorra o desenvolvimento, ou seja, o nosso
desenvolvimento se processa tambm em funo do meio em que vivemos, da cultura na qual
estamos inseridos e dos outros que nos atravessam. Segundo Pino (2000), se as relaes
sociais so internalizadas, podemos pensar na questo de que a sociedade constitui o
indivduo, na medida em que os diversos aspectos sociais participam do modo como
dialogamos com o mundo, o compreendemos e nos apropriamos do mesmo. Nesta
constituio do eu pelo outro, Vygotsky tambm aborda os aspectos biolgicos, o que no
muito destacado por Bakhtin. Talvez esta reflexo fosse algo importante de ser pensado luz
desses dois autores. O que nos constitui? O que constitui as personagens do filme?
Por fim, no filme, as relaes sociais tpicas do contexto em que vivem os personagens
cravam-se no modo como eles agem e se expressam. Se pensarmos na questo dos costumes,
por exemplo, a personagem Beatrice resguardada pela tia, que considera a poesia uma
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imoralidade para as moas, por exemplo. Ela chega a afirmar que as mos so menos
perigosas que as palavras, tambm se referindo fama de galanteadores dos poetas. Este tipo
de pensamento no pertence apenas ela, mas partilhado por mais pessoas (o padre, por
exemplo). Isso faz parte de um conhecimento social, de um saber que transmitido de pessoa
a pessoa, de gerao a gerao, segundo as tradies que se observam segundo o momento
histrico. Esses saberes vo se modificando, mas no deixam de constituir as pessoas, seus
desenvolvimentos e as palavras que elas carregam. As vozes da tia marcam o modo como
Beatrice se comporta (ora aceitando isso, ora negando e indo contra as regras impostas pela
sociedade). Assim, o outro corporificado no modo como se age, ou seja, a idia de
alteridade que no se coloca atrs ou lado, mas em mim. Para se conhecer ou se estudar uma
pessoa, importante compreender e investigar esses outros corporificados. neste sentido
que Bakhtin, de acordo com Faraco (2003) promove uma nova leitura de alteridade, no
externa, mas constitutiva.
CONSIDERAES FINAIS
Assim, pensando nas implicaes das noes de dialogismo e linguagem para a
comunicao, a cultura e a histria so pontos fundamentais na compreenso das questes
humanas e sociais. O contexto histrico transforma a palavra fria do dicionrio em fios
dialgicos vivos que refletem e refratam a realidade que a produziu e, mais do que isso, nos
auxiliam a pensar em desenvolvimento. Todo signo cultural compreendido e dotado de
sentido se torna parte de uma unidade da conscincia verbalmente construda, em que toda
palavra est presente em todos os atos de interpretao. O signo, como cravado no ser
humano, possui uma realidade no apenas objetiva, mas corporificada, em que dinamiza,
problematiza e tenciona o humano em sua ebulio de significados. esta ebulio que fica
evidente no filme em cada uma das palavras.
O expectador convidado a saborear diversos gostos que a palavra mar evoca, que a
palavra metfora propicia. Mrio pergunta a Neruda se as metforas so uma forma de
entendermos o mundo, ou se vamos criando metforas para entender o mundo. Vygotsky e
Bakhtin dialogam com isso de maneira primorosa: no apenas metaforizamos o mundo, mas o
recriamos, o corporificamos e o produzimos a partir de duas ou mais mos. A considerao
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do contexto e dos outros de fundamental importncia ao se discutir desenvolvimento
humano, mas isso no pode ser tomado como um modelo fechado, mas justamente aberto a
outras contribuies, o que nos coloca na mesma direo da perspectiva de Morin (1990), que
v o conhecimento como algo sempre inacabado e aberto a novos dilogos. Corroboramos a
idia de que a partir do dilogo entre os diferentes saberes e as diferentes propostas de se
estudar o humano que abrimos a possibilidade de recriar a realidade, a partir de mltiplas
perspectivas. Perspectivas estas que, para construrem saber, precisam dialogar entre si, como
a proposta de qualquer tipo de comunicao, em todas as suas nuanas.
REFERNCIAS
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Autores:
Fabio Scorsolini-Comin
(Psiclogo e mestrando em Psicologia pela Universidade de So Paulo)
Prof. Dr. Manoel Antnio dos Santos
(Docente da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, da Universidade de
So Paulo)