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XXI Congresso Espírita Pan-americano Santos-SP – Brasil – 5 a 9 de setembro de 2012 Análise Interpretativa do PROLEGÔMENOS de O Livro dos Espíritos Eugenio Lara Julho de 2012

Analise Prolegomenos

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XXI Congresso Espírita Pan-americano

Santos-SP – Brasil – 5 a 9 de setembro de 2012

Análise Interpretativa do

PROLEGÔMENOS

de O Livro dos Espíritos

Eugenio Lara

Julho de 2012

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1. PALAVRAS INICIAIS

Eu sou a videira verdadeira e meu Pai, o viticultor. (João 15:1).

No início dos anos 1980, em um dos polêmicose agradáveis debates doutrinários

com um amigo e companheiro espírita vinculado à Aliança Espírita Evangélica,1 discutí-

amos a simbologia existente nos cultos religiosos e esotéricos, especialmente o trevo,

símbolo usado na lapela pelos dirigentes da Aliança para se identificarem. Em resposta às

minhas críticas a esse estranho hábito no meio espírita, o companheiro referiu-se ao sím-

bolo do espiritismo, a cepa, como exemplo de que há também uma simbologia adotada

pelos espíritos, o que justificaria o procedimento da Aliança. O argumento não me pareceu

convincente, mantive-me contrário ao uso de simbologia no espiritismo, mas o fato citado

despertou meu olhar para detalhes e diversos significados contidos no Prolegômenos que

ainda não havia percebido.

Desde então, comecei a reler e a buscar nesse texto, dentre outros, vários aspectos

interpretativos, detalhes aparentemente insignificantes, mas prenhes de significado. Mais ou

menos nessa época, quando tomei contato com a 1ª edição de O Livro dos Espíritos, passei

a compará-la com a 2ª edição definitiva. Isso abriu um grande leque de descobertas e refle-

xões, o que resultou para mim, a partir da leitura comparativa, numa grande surpresa ao

perceber que o papel de Allan Kardec, na estruturação da doutrina espírita,fora muito maior

do que eu pudera imaginar.

O presente ensaio é, portanto, o resultado desse estudo analítico, interpretativo e di-

rigido de um dos textos mais importantes da história do espiritismo: o Prolegômenos. Com

título estranho, aparentemente arcaico e numa linguagem elegante, doutrinária em tom sole-

ne, esse texto representa algo mais do que apenas o prólogo de transição entre a introdução

e os capítulos do livro síntese da filosofia espírita.

Pois é justamente esse “algo mais”, contido naquele singelo texto, que o presente ensaio

pretende abordar — sem receio de errar ou mesmo delirar, tanto na interpretação comparativa

de seu conteúdo como nos aspectos formais. De todo modo, se esse modesto ensaio servir para

que os espíritas iniciantes e simpatizantes do espiritismo despertem o seu interesse em conhecer

esse texto-síntese, ele terá atingido seu objetivo. 1 De orientação religiosa, a Aliança Espírita Evangélica - Fraternidade dos Discípulos de Jesus, fundada em 1973 pelo escritor e líder espírita Edgar Armond (1894-1982), é uma dissidência da Federação Espírita do Estado de São Paulo (Feesp).

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2. O ESPÍRITO DA FILOSOFIA ESPÍRITA

Identificamos n’O Livro dos Espíritosuma concepção de Deus não-antropomórfica que

divide o espaço com uma visão próxima da teologia cristã. O livro começa com uma concepção

de Deus radicalmente contrária a essa teologia. Deus não é um ser, esse é o pressuposto básico.

Na primeira questão, Rivail não pergunta “quem é Deus”, mas sim, “o que é Deus”.2Todavia, nas

Leis Morais e mesmo na exposição de seus supostos atributos, a partir do que Deus não poderia

deixar de ser, a influência cristã é evidente. E torna-se definitiva quando o fundador do Espiritis-

mo toma para si a pretensão de interpretar os textos evangélicos e tentar adequar os princípios da

teologia cristã, especialmente a católica, ao espiritismo. Daí a sequência de obras interpretativas

da filosofia cristã: O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese.

O contexto histórico, a formação religiosa de Rivail e a orientação dos espíritos con-

tribuíram para a sua decisão editorial. Ele agiu como um editor/escritor que era. Filtrou o

existente para, segundo sua concepção de mundo e a orientação dos espíritos, editar e lançar

esses livros, sem que se tenha em conta algum tipo de concessão ao cristianismo. Ele não

quis agradar a Igreja. Fosse assim, teria sido bem mais polido e condescendente com o Aba-

de Chesnel, em sua polêmica acerca da natureza do espiritismo.

Renegar essas obras, especialmente O Céu e o Inferno, seria uma burrice cavalar. Todas

elas oferecem ideias atualíssimas, extremamente críticas e essenciais à compreensão do mundo

físico e extrafísico. Elas foram elaboradas não porque “estava escrito nas estrelas”, mas em fun-

ção de sua realidade existencial, histórica, situada no tempo e no espaço. Por sua vez, sustentar

que essas obras tenham que ser aceitas sem nenhum questionamento só por serem parte da dou-

trina dos espíritos, a Terceira Revelação, uma coisa transcendental e metafísica, sem correspon-

dência direta com o trabalho intelectual humano, legítimo, é uma ofensa à nossa inteligência, à

nossa razão. O espiritismo não é uma fábrica de crentes sectários e dogmáticos, mas sim, de

livres-pensadores, de humanistas, de indivíduos comprometidos com a sua proposta ética, bem

semelhante aos ensinamentos morais de Jesus de Nazaré, Krishna e Buda.

Como se vê, um estudo comparativo entre a primeira e a segunda edição de O Livro

dos Espíritos pode resultar em teses e mais teses, em muitas reflexões, pois apesar de homô-

nimas, são obras extremamente diferentes, não somente em sua estrutura, na edição, mas prin-

cipalmente no conteúdo.

2 A expressão “Qu’est-ce que Dieu?” tem sido traduzida no Brasil por “O que é Deus?”. A exceção é a tradução de que nos servimos, feita pelo escritor, tradutor e erudito Júlio Abreu Filho, que preferiu a tradução “Quem é Deus?”.

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Há uma rara edição brasileira bilíngue do primeiro O Livro dos Espíritos, publicada no

centenário do espiritismo (1957), traduzida e editada pelo historiador espírita Silvino Canuto A-

breu. É dela que nos servimos nesse estudo sobre o Prolegômenos. A 2ª edição, usada neste en-

saio, foi traduzida por Júlio Abreu Filho e lançada pela editora Pensamento. A edição original

utilizada foi a publicada pela União Espírita Francesa e Francofônica, em 1998, com a nota com-

pleta do Prolegômenos que havia sido retirada por Kardec a partir da 10ª edição, de 1863.

Apesar de ter adotado a forma de pergunta e resposta, critério didático também bas-

tante utilizado pelos movimentos de esquerda, por filósofos e em obras pedagógicas, Deni-

zard Rivail manteve o formato de texto corrido. Ao lado das perguntas e respostas, pode-se

consultar também o texto direto, no formato tradicional: fluente, literário e filosófico.3

Pela linguagem e o conteúdo, percebe-se logo que não basta somente ler e escrever para

entender essa obra. Ela exige certa dose de cultura geral, de erudição. Tanto que o movimento

surgido em torno do seu estudo, o nascente espiritismo, era composto por pessoas da elite, intelec-

tuais, profissionais liberais, magistrados, empresários, enfim, a nata da sociedade francesa. É uma

obra de caráter filosófico, mesmo não possuindo o rigor técnico de um tratado de filosofia. O

formato tête-à-tête, pergunta/resposta, de característica marcadamente dialógica, foi não somente

um recurso pedagógico, mas, sobretudo, a expressão da forma como o livro foi elaborado, fruto

do diálogo dos espíritos com Rivail, da humanidade extrafísica com a humanidade física.4

Nesse sentido, a visão de José Herculano Pires é extremamente esclarecedora: “Algu-

mas pessoas estranham a forma dialogada desse livro, e os filósofos e estudantes de Filosofia,

em geral, costumam colocá-lo à parte, não o considerando obra filosófica. Por que acontece

isso? Porque O Livro dos Espíritos, como já anteriormente aconteceu com os Evangelhos,

não está escrito na linguagem técnica da Filosofia. Mas a sua estrutura é a de um tratado, os

seus problemas são essencialmente filosóficos e, como se verifica nos seus prolegômenos,

a intenção de Kardec não foi oferecer ao mundo um tratado sistemático, mas uma Fi-

losofia racional, livre dos prejuízos do espírito de sistema. Esse é o espírito da Filosofia

Espírita (...).” (José Herculano Pires - O Infinito e o Finito, cap. XVI, grifo meu).

3 O opúsculo Princípios Básicos do Comunismo (1846), que serviu de base para o Manifesto Comunista (1848), foi escrito por Friedrich Engels no formato de pergunta/resposta. Esse padrão também foi adotado pelo fundador do positivismo, Auguste Comte, no Catecismo Positivista (1852). Podemos também observar critério semelhante na obra A Verdade, escrita pelo filóso-fo medieval Santo Anselmo de Cantuária, composta por diálogos entre mestre e discípulo, bem como nos diálogos de Platão. No opúsculo O Que é o Espiritismo, Allan Kardec também adotou o mesmo padrão dialógico. 4 O formato dialógico adotado em O Livro dos Espíritos tem a ver com um formato consagrado na filosofia e nas religiões, tipo um manual, um catecismo ou uma cartilha. O texto corrido, árido, é fragmentado de modo didático na forma de pergun-ta/resposta, principalmente por ter "a feição das entrevistas espíritas", como bem salientou Allan Kardec na nota explicativa do primeiro Prolegômenos.

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3. JOIA RARA

Uma joia rara é aquela que sempre nos oferece um brilho diferente, um novo e belo

visual, até então imperceptível aos nossos olhos e mentes. Há pessoas que são como joias

raras. E há também obras de arte, da literatura e filosofia, que são verdadeiras raridades,

obras-primas. O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, é uma dessas joias raras e exuberan-

tes, uma obra-prima da cultura espiritualista, sempre a nos oferecer novos olhares, novas

percepções e conceitos.

Talvez seja uma das obras que mais li e reli, dentre tantas outras. É livro de cabeceira,

para consulta, estudo e pesquisa permanentes.Se tivesse que salvar um único livro de minha

biblioteca em chamas ou corroída por cupins, certamente seria esse.

Pois foi numa dessas leituras e releituras que fui me deparando com outro olhar sobre

o Prolegômenos, texto intermediário entre a introdução e o livro propriamente dito. Poucos

talvez tenham se dado conta da importância desse texto, espremido entre a apresentação de

Rivail e a primeira questão sobre Deus.

Prolegômenos, na grafia brasileira,é palavra de origem grega (proleghômena), normal-

mente usada em filosofia, na literatura ou em teologia. Sua função é demonstrar os objetivos de

determinada obra, sua finalidade e princípios gerais. Contém as noções preliminares, fundamen-

tais para a total compreensão de determinados pressupostos, das ideias básicas e de toda a argu-

mentação que o leitor irá se deparar ao longo da leitura.

Trata-se de um termo erudito, sinônimo de prefácio, introdução ou prólogo, muito usual

em tratados de filosofia, como na célebre obra de Imanuel Kant, Prolegômenos a Toda a Meta-

física Futura. Na teologia, notadamente a cristã, é quase sinônimo de teologia fundamental,

introdutória à compreensão das verdades cristãs a respeito de Deus. Na literatura, prolegômenos

tem a mesma função aplicada na filosofia, de inserir o leitor no universo literário, poético ou

mesmo apologético que o autor pretenda expor.

Portanto, não foi àtoa que Rivail e os espíritos preferiram prolegômenos a prólogo, pre-

fácio ou introito, dentre outras expressões aplicadas na apresentação de qualquer obra. No caso,

uma obra de caráter filosófico, moral e também teológico. Longe de ser arcaica e desatualizada,

prolegômenos, apesar de inusual, épalavra precisa, exata. Sintetiza todas as ideias compiladas,

organizadas e estruturadas por Rivail e os espíritos, anunciando assim ao leitor o conteúdo vin-

douro da obra kardequiana.

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4. CEPA: O SÍMBOLO DO ESPIRITISMO

O simpático e singelo desenho de uma cepa, um ramo de uva com as frutinhas, os

bagos e as folhas de parreira logo no frontispício da página do Prolegômenos, surpreende.

Ao contrário de filosofias esotéricas e religiosas, o espiritismo dispensa símbolos e para-

mentos. Todavia, esse desenho, pequeno clichê tipográfico, talvezseja a primeira psicopicto-

riografia da história do espiritismo, provavelmente recebida pelo dramaturgo e médium da

Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Victorien Sardou. Odesenho desempenha a fun-

ção de logotipo, de logomarca, o trademark dessa nova filosofia espiritualista.

Trata-se de um símbolo repleto de significados, dissecados pelos próprios autores des-

se fac-símile decorativo, conforme vemos abaixo, na segunda edição (1860):

“Porás no cabeçalho do livro a cepa de vinha que te desenhamos, pois é o emblema do

trabalho do Criador; todos os princípios materiais que podem melhor representar o corpo e o

espírito aí estão reunidos: o corpo é a cepa; o espírito é o licor; a alma ou o espírito,unido à

matéria é a baga. O homem quintessencia o espírito pelo trabalho, e sabes que só pelo traba-

lho do corpo o espírito adquire conhecimentos.”5

Como se vê, a orientação para se colocar no cabeçalho da página o célebre fac-símile

partiu dos espíritos, bem como a interpretação de seu significado, cuja metáfora Rivail, sob o

pseudônimo de Allan Kardec, aborda no comentário às questões 196 e 196-a de O Livro dos

Espíritos, como podemos ver a seguir:

5 No original: “Tu mettras en tête du livre le cep de vigne que nous t’avons dessiné (1), parce qu’il est l’emblème du travail du Créateur; tous les principes matériels qui peuvent le mieux représenter le corps et l’esprit s’y trouvent réunis: le corps, c’est le cep; l’esprit, c’est la liqueur; l’âme, ou l’esprit unis à la matière, c’est le grain. L’homme quintessencie l’esprit par le travail, et tu sais que ce n’est que par le travail du corps que l’esprit acquiert des connaissances.” (1) Le cep ci-dessus est le fac-similé de celui qui a été dessiné par les Esprits. (1) A cepa que se vê acima é o “fac-símile” da que foi desenhada pelos Espíritos. Na tradução de Júlio Abreu Filho, a palavra esprit (espírito) foi grafada em maiúscula (caixa alta e baixa). Preferimos manter a grafia original, em letras minúsculas (caixa baixa).

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“Achamos uma comparação material dos vários graus de depuração da alma no suco da vinha.

Ele contém o licor chamado espírito ou álcool, enfraquecido por uma porção de matérias estranhas que

lhe alteram a essência; e só chega à pureza absoluta após várias destilações, em cada uma das quais se

liberta de umas tantas impurezas. O alambique é o corpo no qual deve entrar para se depurar. As maté-

rias estranhas são como o perispírito, que se depura por si mesmo, à medida que o Espírito se aproxima

da perfeição.” (Tradução de Júlio Abreu Filho).6

Interessante observar queAllan Kardec não considera o fato de que “o licor chamado

espírito ou álcool” é obtido através da fermentação, e não da destilação, devido à ação de

microrganismos, espécie de fungos cultivados em destilarias para, por exemplo, a produção

de etanol. São levedos, como os bolores e cogumelos. Trata-se de um fermento natural,

também utilizado na produção de cerveja. No caso do vinho, o que ocorre é a fermentação.

Senão teríamos, por exemplo, o conhaque (do francês cognac), bebida destilada do vinho.

De todo modo, em que pese o desconhecimento demonstrado por Kardec dos proces-

sos de fermentação, a metáfora permanece com seu sentido didático inicial, que é mostrar a

necessidade da existência corpórea a fim de que o espírito evolua, se depure, repurificando

o perispírito, tornando-o assim cada vez mais livre das impurezas materiais, na medida em

que se aproxima da perfeição.Mesmo tratando-se de um símbolo material, o significado da

cepadesigna o sentido evolucionista do espírito, de superação das injunções físicas na busca

de sua autorrealização intelecto-moral e psíquica.

5. O ENTRELAÇAMENTO DE CULTURAS

Uva, parreira e vinho são símbolos da cultura cristã, do cristianismo. Segundo o mito

bíblico, após degustarem o fruto proibido da árvore da sabedoria, Adão e Eva, então libertos

de sua ingenuidade intelecto-moral, escondem sua nudez com a parreira, a folha da uva. O

primeiro milagre de Jesus de Nazaré se deu nas bodas de Canaã, ao operar a transformação da

água em vinho, a fim de garantir a alegria dos convidados. E não nos esqueçamos do milagre

da transubstanciação, que segundo a teologia cristã, é a conversãodo vinho no sangue do Cris-

6 No original: “Nous trouvons une comparaison matérielle des différents degrés de l’épuration de l’âme dans le suc de la vigne. Il contient la liqueur appelée esprit ou alcool, mais affaiblie par une foule de matières étrangères qui en altèrent l’essence; ele n’arrive à la pureté absolue qu’après plusieurs distillations, à chacune desquelles elle se dépouille de quelque impureté. L’alambic est le corps dans lequel elle doit entrer pour s’épurer; les matières étrangères sont comme le périsprit qui s’épure lui-même à mesure que l’Esprit approche de la perfection.” “(...) O corpo é a cepa; o espírito é o licor; a alma ou o espírito, unido à matéria é a baga.” foi a interpretação dada a esse símbolo pelos espíritos, mais explicativa do que na 1ª edição: “O corpo é a cepa; a alma é o bago; o espírito é o licor”.

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to, Cordeiro de Deus, ritual de consagração ainda hoje celebrado em toda missa católica, com

o objetivo de relembrar a sua memória, através do vinho e da hóstia, o corpo do Cristo.

Todavia, na Bíblia, a menção ao vinho nem sempre está vinculada à alegria, à celebra-

ção. Há também casos de perversão, associados ao sexo e a excessos de todo tipo.

Curiosamente, Canaã era o nome do filho de Cam, amaldiçoado por Noé, que ficou

furioso quando soube que ele viu sua nudez provocada pelo consumo de vinho em excesso.

Os outros dois irmãos, Sem e Jafé, cobriram a nudez do pai que, por ser lavrador, havia

plantado a vinha de onde produziu o vinho, logo em seguida ao pacto celebrado com Deus

após o dilúvio. A bebedeira de Noé talvez tenha sido o primeiro grande porre da história.

(Gênesis 9:20-25). 7

Depois da destruição de Sodoma e Gomorra, há o incesto entre Ló e suas duas filhas.

Preocupadas com a descendência da família, as duas embebedam o pai com vinho, deitam-se

com ele, cada uma delas em dias intercalados e engravidam. Dessa união incestuosa nascem

Moabe e Bem-Ami. (Gênesis 19:31-36).

Por outro lado, foi com uma taça de vinho que o sacerdote Melquisedeque, rei de

Salem, abençoou Abraão, o grande patriarca hebreu (Gênesis 14:18-20). E conforme a

descrição do profeta Isaías, Deus abençoou essa bebida como vemos nesta passagem: “As-

sim diz o SENHOR: Como quando se acha vinho num cacho de uvas, dizem: Não o des-

perdices, pois há bênção nele; assim farei por amor de meus servos e não os destruirei a

todos”. (Isaías 65:8).

Tais símbolos também possuem representações de grande valor na cultura celta. Os

arquidruidas utilizavam o vinho em seus rituais. A lenda céltica dos amantes Tristão e Isolda,

que inspirou Shakespeare em Romeu e Julieta, começa com uma poção de amor depositada

em uma taça de vinho. E o cálice do Santo Graal, da Última Ceia do Cristo e os apóstolos,

tem sido objeto de mitos e lendas, desde o Rei Arthur aos Templários.

Na cultura grega o vinho tinha um valor tão importante que havia um deus a ele

consagrado: Dionísio (Baco para os romanos), demonstrando um lado místico de sua devo-

ção a essa bebida.8 Os filósofos recomendavam e também ministravam o vinho como remé-

dio. E os simpósios, cujo significado literal é“beber em comunhão”, eram reuniões para se

beber vinho em salas apropriadas, com divãs, onde o alegre convívio e a conversação gira-

7 As citações bíblicas foram traduzidas por João Ferreira de ALMEIDA. 8 Na Antiguidade, a Grécia foi um dos maiores produtores e exportadores de vinho, uma das bebidas mais antigas da história da humanidade.

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vam em torno de temas filosóficos. Tais eventos eram constituídos por homens nobres e

sábios, por filósofos e pensadores.9

Na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec considera Sócrates e Pla-

tão como precursores do Espiritismo. Tivesse ele acesso ao conhecimento histórico sobre os

celtas, obtido graças às escavações arqueológicas intensificadas no século 20, certamente inclui-

ria também esse antigo povo como um dos precursores do Espiritismo. Léon Denis e Allan

Kardec são considerados druidas reencarnados. Os túmulos de Kardec e Pierre Gaëtan Leyma-

rie têm o formato de um dólmen, monumento megalítico usado pelos druidas para seus rituais.

As irmãs Baudin e Ermance Dufaux consideravam-se druidisas reencarnadas. O espírito Zéfiro,

protetor de Kardec, revelou que ambos foram druidas, provavelmente na antiga Bretanha. Nas

tríades célticas, aforismos e máximas sempre em três frases, como se fossem versículos, pode-

mos observar a extraordinária afinidade da filosofia céltica com a filosofia espírita. Antigos

historiadores e pensadores gregos, como Aristóteles, consideravam que a filosofia havia nascido

entre os celtas. E Léon Denis, em sua obra derradeira O Gênio Céltico e o Mundo Invisível

(1927), sustenta, de modo categórico, que o espiritismo é a ressurreição da doutrina céltica. Se-

gundo o sociólogo francês Jacques Lantier, “os espíritas refugiam-se de bom grado por detrás

da tradição celta” e “fundam a sua doutrina simultaneamente na tradição celta e na tradição cris-

tã.” (O Espiritismo, pág. 107). E ainda acrescentaríamos: na tradição grega (Sócrates e Platão).

O espiritismo, mesmo não adotando simbologias esotéricas para a compreensão de

seus princípios e do entendimento do homem e do mundo, possui um símbolo: a

ra.10Ela sintetiza três grandes correntes históricas do pensamento filosófico, o tripé, a trípo-

de doutrinária que serviu como húmus, substrato, como raiz para a árvore conceitual da filo-

sofia kardecista: a cultura céltica, a grega e a cristã, todas elas, precursoras do espiritismo.

6. OS TRÊS PROLEGÔMENOS

Rivail era minucioso, metódico e organizado. Até pouco antes de desencarnar, realizou

várias alterações em seus livros, na medida em que novas edições iam sendo lançadas. Nem a

Revista Espírita escapou de seu perfeccionismo. Sem dúvida alguma, O Livro dos Espíritos foi a

9 O Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, surgido em Santos-SP, por iniciativa do escritor espírita Jaci Regis (1932-2010), realizado desde 1989, não foge ao caráter primordial desse costume grego, pois é um evento voltado ao diálogo, ao debate e à reflexão no contexto da cultura espírita. Normalmente, no coquetel de abertura do evento, costuma-se servir vinho branco. 10É oportuno lembrar que a Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA) tem como símbolo a videira, aquela mesma que aparece nos Prolegômenos, mas com um design mais arrojado. E, curiosamente, não por acaso, a abreviatura CEPA nos remete àquele singelo desenho feito pelos espíritos.

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obra que ele mais modificou. A começar pela evidente diferença entre a 1ª edição (18 de abril de

1857) e a 2ª (18 de março de 1860). São praticamente duas obras distintas, apesar de homônimas.

No caso, o que nos interessa é o Prolegômenos e as alterações que esse texto sofreu

ao longo do tempo. Pode-se dizer que há três Prolegômenos. Na primeira edição, na segun-

da e a partir da 13ª edição, eles são diferentes nos detalhes, ainda mais se formos comparar a

primeira com a segunda edição da obra síntese do pensamento espírita.

O primeiro Prolegômenos (1857) não é assinado e contém uma nota explicativa em

seu final justificando o critério editorial adotado: numa coluna, perguntas e respostas; na outra

coluna, o texto corrido.11 O segundo Prolegômenos (1860) contém a assinatura de dez espíri-

tos e vem com uma nota explicativa reformulada. E no terceiro Prolegômenos (1863), a nota

explicativa foi excluída por Allan Kardec sem nenhuma justificativa.

A primeira diferença que salta aos olhos é quanto à assinatura. Na primeira edição, o

Prolegômenos não é assinado. Não dá para saber quem é o autor desse texto. Obviamente, e

subentende-se, ele foi escrito pelos espíritos que ditaram a obra a Rivail. Ele mesmo esclarece

isso, ao afirmar que olivro foi o resultado de uma série de mensagens, de diálogos e de conta-

to permanente com os espíritos encarregados de sua elaboração na dimensão extrafísica. To-

davia, apesar de não ser assinado, há uma nota bem esclarecedora no final da primeira edição

de O Livro dos Espíritos, a nota XVII, de onde extraímos o parágrafo final:

“Vários Espíritos concorreram simultaneamente a estas instruções, às quais assistiam, tomando

alternadamente a palavra e falando um em nome de todos. Entre os que animaram personagens conhe-

cidas citaremos JOÃO EVANGELISTA, SÓCRATES, FÉNELON, VICENTE DE PAULO, HAHNEMANN, FRAN-

KLIN, SWEDENBORG e NAPOLEÃO PRIMEIRO; os demais habitam Esferas elevadas e, ou nunca viveram

na Terra ou aqui apareceram em época imemorável. (...)”12

Na segunda edição, os espíritos Napoleão Primeiro e Hahnemann não são citados. E

Kardec ainda acrescenta outros, na assinatura do novo Prolegômenos. Nessa edição, quase defi-

nitiva, dez espíritos assinam essa mensagem síntese da origem, conteúdo e finalidade da obra.

Dos cinco primeiros subscritores, quase todos têm evidente ligação com o cristianismo: São

João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, São Luiz e O Espírito de Verdade, 11Interessante notar que esse formato de edição foi aplicado somente no primeiro livro, dos quatro que compunham a pri-meira edição de O Livro dos Espíritos. Certamente, Kardec adotou esse critério editorial com o objetivo de também atingir um público mais exigente, acostumado com textos filosóficos, já que o formato “ping-pong”, de perguntas e respostas, mostra-se mais agradável à leitura de pessoas que não possuem formação acadêmica. Ou seja, ele queria atingir tanto o doutor como o trabalhador. E conseguiu. 12No original: “Multiples esprits ont concouru simultanément à ces instructions auxquelles tous assistaient, prenant tour à tour la parole, et l’un d’eux parlant au nom de tous. Parmi ceux qui ont animé des personnages connus, nous citerons Jean l’Évangéliste, Socrate, Fénelon, saint Vincent de Paul, Hannemann, Franklin, Swedenborg, Napoléon Ier; d’autres habitent les sphères les plus élevées et n’ont jamais vécu sur la terre, ou n’y ont paru qu’à une époque immémoriale.” A tradução é de Silvino Canuto ABREU.

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que assinaram assim, nessa ordem. Todos os quatro primeiros se mostram como personalidades

conhecidas dos cristãos.São João Evangelista foi apóstolo de Jesus; Santo Agostinho é conside-

rado um dos pais da Igreja e um dos maiores filósofos da Idade Média, grande mentor da Esco-

lástica; São Vicente de Paulo, clérigo francês, é uma das personalidades mais veneradas entre os

cristãos e São Luís, o rei Luís IX da França, foi canonizado pela Igreja. São, portanto, quatro

santos e um que, caso fosse Jesus, seria “o santo dos santos”. Apesar da identidade d’O Espírito

de Verdade ser um mistério, uma incógnita, pelo conteúdo e a linguagem dos textos que assina

na Kardequiana, não há como ter dúvida de sua adesão ao pensamento cristão.

Os outros cinco espíritos são, pela ordem: Sócrates, Platão, Fénelon, Franklin e Swe-

denborg.Com exceção de Fénelon, nenhum deles foi santo, mártir cristão, sacerdote ou coisa

do tipo. Fénelon, quando encarnado, foi teólogo cristão e literato. Mas, rompeu com a estrutu-

ra do cristianismo católico e passou a adotar uma postura contrária à Igreja. Quanto aos ou-

tros, nenhum deles teve ligação tão direta assim com o cristianismo. Platão e Sócrates, obvia-

mente por uma questão histórica. Franklin, ou melhor, Benjamim Franklin, foi inventor, esta-

dista, pensador político e, apesar de sua formação calvinista, teve mais ligações com o ilumi-

nismo e o esoterismo, com a maçonaria e a ordem Rosacruz, hoje conhecida como Amorc

(Antiga e Mística Ordem Rosacruz). Emanuel Swedenborg foi um clarividente sueco e pre-

cursor do espiritismo. Até hoje existem igrejas fundadas em seu nome, que adotam sua dou-

trina, obtida a partir de suas visões, do êxtase medianímico.

É, portanto, evidente a existência na equipe d’O Espírito de Verdade de duas facções, ou

se preferirem, duas falanges diferenciadas de espíritos. Uma, vinculada diretamente ao cristianis-

mo. A outra, mais laica, não-cristã ou não necessariamente cristã, formada por livres-pensadores.

Desde sua origem há, no espiritismo, não somente na linguagem, como no conteúdo das ideias, a

expressão dessas duas correntes, a cristã e a não-cristã. Uma bem religiosa e outra,livre-

pensadora, não necessariamente religiosa. A assinatura do Prolegômenos evidencia essa tese.

7. DETALHES TÃO PEQUENOS...

Muitos detalhes importantes e curiosos podem ser observados quando comparamos o

Prolegômenos da 1ª edição com o da 2ª edição de O Livro dos Espíritos. Sob um olhar mais

apurado, notamos a prudência e o critério editorial do fundador do espiritismo, tanto quanto seu

perfeccionismo e a clareza na exposição das ideias. Ainda que seja um texto de no máximo duas

laudas, ao fazermos esse estudo comparado, muitos aspectos formais e conceituais emergem de

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sua leitura. Enumeraremos a seguir alguns desses detalhes, aparentemente insignificantes, mas

que servem para uma compreensão mais clara desse importante texto do pensamento espírita.13

■ 1.A primeira diferença evidente está no título “Os Livros dos Espíritos” (Les Livres

des Esprits), estranho plural que aparece somente na 1ª edição. Obviamente, está assim por

ser uma referência aos três livros que compunham a primeira edição: Doutrina Espírita, Leis

Morais e Esperanças e Consolações. Na 2ª edição, esse título esquisito foi suprimido. Ficou

apenas Prolegômenos (Prolégomènes).

■ 2. A modéstia e a humildade de Allan Kardec eram qualidades exaltadas por todos

seus biógrafos e pessoas que com ele conviveram. Provavelmente, em função desse aspecto

de sua personalidade, ele preferiu excluir, na 2ª edição do Prolegômenos, o parágrafo onde os

espíritos o elogiam. A frase final, “Creia em Deus e marche com confiança”, foi deslocada

para o antepenúltimo parágrafo:

1ª Edição – “Compreendeste bem tua missão; estamos contentes contigo. Continue e nós não

te deixaremos jamais. Creia em Deus e marche com confiança!”.

“Tu as bien compris ta mission; nous sommes contents de toi. Continue et nous ne te quitte-

rons jamais. Crois en Dieu et marche avec confiance!”.

■ 3. Na 2ª edição, uma novidade. Na página de rosto, no frontispício, pode-se ler: Filo-

sofia Espiritualista, definição básica da doutrina espírita, também citada na introdução. Kardec

alterou a redação do Prolegômenos em relação à definição do espiritismo:

1ª Edição – “Este livro é a compilação de seus ensinamentos; foi escrito por ordem e sob o di-

tado de espíritos superiores para estabelecer os fundamentos da verdadeira doutrina espírita, isenta dos

erros e dos preconceitos”.

“Ce livre est le recueil de leurs enseignements; il a été écrit par l'ordre et sous la dictée

d'esprits supérieurs pour établir les fondements de la véritable doctrine spirite, dégagée des erreurs et

des préjugés”.

2ª Edição –“Este livro é a compilação de seus ensinamentos; foi escrito por ordem e sob o di-

tado de Espíritos superiores para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos pre-

conceitos do espírito de sistema.”

“Ce livre est le recueil de leurs enseignements; il a été écrit par l'ordre et sous la dictée

d'Esprits supérieurs pour établir les fondements d'une philosophie rationnelle, dégagée des préjugés de

l'esprit de système”.

13 Os textos citados são uma tradução livre de Eugenio Lara, a partir das traduções de Silvino Canuto Abreu (1ª edição) e Júlio Abreu Filho (2ª edição). Os originais e tradução estão em Anexos, no final deste ensaio. Estudo sobre o mesmo tema pode ser conferido no blog Decodificandoo Livro dos Espíritos, editado por Vital Cruvinel. URL: http://decodificando-livro-espiritos.blogspot.com/2008/11/prolegmenos.html

Page 13: Analise Prolegomenos

■ 4. Allan Kardec excluiu o trecho onde parece que haveria uma relação autoritária de

controle sobre ele. Reformulou o texto dando outro sentido, mais de colaboração, de interação,

ao invés de parecer que ele seria teleguiado pelos espíritos.

1ª Edição – “Estaremos contigo todas as vezes que tu o pedires, e tu estarás também às nossas ordens sempre que te chamarmos”.

“Nous serons avec toi toutes les fois que tu le demanderas, et tu seras à nos ordres chaque fois

que nous t'appellerons”.

2ª Edição –“Estaremos contigo todas as vezes que tu o pedires, para te ajudar nos outros

trabalhos (...)”.

“Nous serons avec toi toutes les fois que tu le demanderas et pour t'aider dans tes autres

travaux (...).”

■ 5. Na 2ª edição foram acrescentados, no final, dois parágrafos que não existiam na 1ª

edição do Prolegômenos. Esse acréscimo deve ter sido motivado pelo sucesso do lançamento da

primeira edição, três anos atrás. Em 18 de março de 1860, data de publicação da 2ª edição de O

Livro dos Espíritos, o movimento espírita francês estava em franco e vertiginoso crescimento,

fato que resultou nas várias visitas doutrinárias aos pioneiros grupos espíritas que Allan Kardec

realizou a partir desta data por toda a França, inclusive na Bélgica e na Suíça. São palavras de

ufanismo e de incentivo contra os maus e os incrédulos, os orgulhosos e os ambiciosos.

“É com a perseverança que conseguirás colher o fruto de teus trabalhos. O prazer que

experimentarás, vendo a doutrina propagar-se e ser bem compreendida, ser-te-á uma recompensa, cujo

valor completo talvez reconheças mais no futuro do que no presente. Não te inquietem os espinhos e as

pedras que incrédulos e maus semearão em teu caminho; mantém a confiança; com ela chegarás ao fim

e merecerás sempre a ajuda.”

“Lembra-te que os Bons Espíritos só assistem aos que servem a Deus com humildade e

desinteressadamente e que eles repudiam os que buscam no caminho do céuum degrau para as coisas

terrenas; eles se afastam do orgulhoso e do ambicioso. O orgulho e a ambição serão sempre uma

barreira entre o homem e Deus: é um véu lançado sobre as claridades celestes e Deus não se pode servir

do cego para fazer compreender a luz.”

“C'est avec la persévérance que tu parviendras à recueillir le fruit de tes travaux. Le plaisir

que tu éprouveras en voyant la doctrine se propager et bien comprise te sera une récompense dont tu

connaîtras toute la valeur, peut-être plus dans l'avenir que dans le présent. Ne t'inquiète donc pas des

ronces et des pierres que des incrédules ou des méchants sèmeront sur ta route; conserve la confiance:

avec la confiance tu parviendras au but, et tu mériteras d'être toujours aidé.

Souviens-toi que les Bons Esprits n'assistent que ceux qui servent Dieu avec humilité et

désintéressement, et qu'ils répudient quiconque cherche dans la voie du ciel un marchepied pour les

choses de la terre ; ils se retirent de l'orgueilleux et de l'ambitieux. L'orgueil et l'ambition seront

toujours une barrière entre l'homme et Dieu; c'est un voile jeté sur les célestes clartés, et Dieu ne peut

se servir de l'aveugle pour faire comprendre la lumière.”

■ 6. Allan Kardec reafirma o caráter d’O Livro dos Espíritos como a síntese do pen-

samento espírita, a fundação, a base sob a qual seriam erguidos os alicerces e a estrutura do

Page 14: Analise Prolegomenos

edifício doutrinário espírita, no acréscimo que faz logo no primeiro parágrafo da mensagem

assinada pelos espíritos.

1ª Edição – “Ocupa-te com zelo e perseverança do trabalho que empreendeste com a nossa

colaboração; este livro também é nosso. Teremos de revê-lo juntos a fim de que não contenha nada que

não seja a expressão de nosso pensamento e da verdade, sobretudo quando a obra estiver terminada (...).”

“Occupe-toi avec zèle et persévérance du travail que tu as entrepris avec notre concours ; ce

travail est aussi le nôtre. Nous le reverrons ensemble afin qu'il ne renferme rien qui ne soit l'expression

de notre pensée et de la vérité; mais, surtout quand l'oeuvre sera terminée (...).”

2ª Edição – “Ocupa-te com zelo e perseverança do trabalho que empreendeste com a nossa

colaboração, porque este trabalho é nosso. Nele estabelecemos as bases do novo edifício que se eleva e que um dia deverá reunir todos os homens num mesmo sentimento de amor e de caridade (...).”

“Occupe-toi avec zèle et persévérance du travail que tu as entrepris avec notre concours, car ce

travail est le nôtre. Nous y avons posé les bases du nouvel édifice qui s'élève et doit un jour réunir tous les

hommes dans un même sentiment d'amour et de charité (...).”

■ 7. Há diferenças de redação entre as duas notas explicativas. Na primeira, Kardec

justifica o critério editorial adotado, com texto corrido em uma coluna e pergunta/resposta em

outra, aplicado somente no primeiro livro, Doutrina Espírita. Esclarece também que todo o

livro foi “cuidadosamente revisto e reiteradas vezes corrigido pelos próprios espíritos.”

Na 2ª edição, a nota explicativa foi refeita, obviamente sem as justificativas acerca do

critério editorial, pois o livro todo foi totalmente redigido no formato dialógico, de pergun-

ta/resposta, com comentários de Allan Kardec e ensaios teóricos. Reproduzimos abaixo a ín-

tegra das duas notas:

1ª Edição

Nota — Os princípios contidos neste livro são o resultado, tanto de respostas dos espíritos a

perguntas diretas que lhes foram propostas, como de instruções dadas por eles espontaneamente sobre as

matérias que contém. Tudo foi coordenado de modo a formar um conjunto regular e metódico, e só foi

entregue ao público após ter sido cuidadosamente revisto várias vezes e corrigido pelos próprios espíritos.

A primeira coluna contém as questões propostas e as respostas textuais. A segunda contém o

enunciado da doutrina sob uma forma fluente. São ambas, estritamente falando, duas redações ou duas

formas diferentes do mesmo tema: uma tem a vantagem de mostrar de certo modo a feição das

entrevistas espíritas; outra a de permitir uma leitura contínua.

Embora o assunto versado em cada coluna seja o mesmo, contém às vezes uma e outra

pensamentos especiais que, quando não são propriamente o resultado de perguntas diretas, não

constituem menos o produto das lições dadas pelos espíritos, visto que não há nenhuma que não seja a

expressão de seus pensamentos.

Nota. — Les principes contenus dans ce livre résultent, soit des réponses faites par les esprits

aux questions directes qui leur ont été proposées, soit des instructions données par eux spontanément

sur les matières qu'il renferme. Le tout a été coordonné de manière à présenter un ensemble régulier et

méthodique, et n'a été livré à la publicité qu'après avoir été soigneusement revu à plusieurs reprises et

corrigé par les esprits eux-mêmes.

La première colonne contient les questions proposées suivies des réponses textuelles. La seconde

renferme l'énoncé de la doctrine sous une forme courante. Ce sont à proprement parler deux rédactions sur

Page 15: Analise Prolegomenos

un même sujet sous deux formes différentes : l'une a l'avantage de présenter en quelque sorte la

physionomie des entretiens spirites, l'autre de permettre une lecture suivie.

Bien que le sujet traité dans chaque colonne soit le même, elles renferment souvent l'une et l'autre

des pensées spéciales qui, lorsqu'elles ne sont pas le résultat de questions directes, n'en sont pas moins le

produit des instructions données par les esprits, car il n'en est aucune qui ne soit l'expression de leur pensée.

2ª Edição

NOTA. — Os princípios contidos neste livro são o resultado, seja de respostas dos Espíritos às

perguntas diretas que lhes foram propostas em diversas oportunidades e por intermédio de um grande

número de médiuns, seja de instruções que espontaneamente nos deram ou a outras pessoas acerca dos

temas que ele aborda. Tudo foi coordenado de modo a formar um conjunto regular e metódico, e só foi

entregue ao público após ter sido cuidadosamente revisto várias vezes e corrigido pelos próprios

Espíritos. Esta segunda edição também foi objeto de novo e minucioso exame.

O que está entre aspas após as questões é a resposta textual dada pelos Espíritos. O que está

indicado por um outro caractere, ou destacado de uma maneira especial a este efeito, compreende as

observações ou desdobramentos adicionados pelo autor, e que passaram igualmente pelo controle dos

Espíritos.

NOTA. — Les principes contenus dans ce livre résultent, soit des réponses faites par les Esprits

aux questions directes qui leur ont été proposées à diverses époques et par l'entremise d'un grand

nombre de médiums, soit des instructions données par eux spontanément à nous ou à d'autres personnes

sur les matières qu'il renferme. Le tout a été coordonné de manière à présenter un ensemble régulier et

méthodique, et n'a été livré à la publicité qu'après avoir été soigneusement revu à plusieurs reprises et

corrigé par les Esprits eux-mêmes. Cette seconde édition a pareillement été de leur part l'objet d'un

nouvel et minutieux examen.

Ce qui est entre guillemets à la suite des questions est la réponse textuelle donnée par les Esprits.

Ce qui est marqué par un autre caractère, ou désigné d'une manière spéciale à cet effet, comprend les

remarques ou développements ajoutés par l'auteur, et qui ont également subi le contrôle des Esprits.

Essa nota explicativa foi suprimida por Allan Kardec a partir da 10ª edição, de 1863.

Nas edições brasileiras, a nota também foi excluída porque as traduções se basearam em ediç-

ões posteriores a 1863. Não sabemos exatamente qual o real motivo de Kardec ter tomado tal

decisão. Certamente, não foi por acaso e muito menos por algum erro de revisão, senão teria

sido corrigido em edições posteriores a de 1863. O fundador do espiritismo realizou alteraç-

ões em suas obras até 1868, pouco antes de desencarnar. A hipótese mais plausível é de que, a

fim de evitar confusões ou especulações desnecessárias, Kardec decidiu retirar a nota porque

ela expressa, de modo muito sintético, os critérios e o método por ele adotados na feitura do

livro. Tema que será abordado na Revista Espírita, na introdução d’O Evangelho Segundo o

Espiritismo e em textos esparsos publicados no Obras Póstumas. Tal questão, dentre outras,

de certo modo obscuras, somente poderiam ser esclarecidas em um estudo mais aprofundado

sobre a história d’O Livro dos Espíritos.

A União Espírita Francesa e Francofônica lançou uma edição completa e definitiva de

O Livro dos Espíritos, em 1998, a partir do raro original de 1860, cedido pela Federação Espí-

Page 16: Analise Prolegomenos

rita Brasileira (FEB). A nota explicativa do Prolegômenos foi reincorporada, além de algumas

alterações feitas por Alla Kardec.

No Brasil, a FEB publicou uma edição especial de O Livro dos Espíritos, no sesqui-

centenário de seu lançamento, em 2007. A tradução, de Evandro Noleto Bezerra, a exemplo

da edição da União Espírita Francesa, foi feita a partir da segunda impressão da 2ª edição

francesa, de 1860. Foram incorporados acréscimos, exclusões e alterações feitas por Kardec

até a 12ª edição, de 1864.

■ 8. Allan Kardec não somente suprimiu a nota explicativa como também alterou a

imagem da cepa, do ramo de videira. A imagem que aparece em grande parte das traduções

brasileiras é a que foi publicada na 1ª edição, com um cacho de uva, quatro folhas de parreira

em um pequeno ramo, tipo um ramalhete, mas de uva:

A imagem publicada na 2ª edição é a mesma, mas foi cortada. A primeira folha de pa-

rreira, à esquerda, foi suprimida, decepada. A escala do desenho foi, portanto, ampliada.

No tempo de Kardec ainda não existia a impressão em ofsete, com fotolitos e chapas

de impressão. O linotipo só seria inventado no final do século 19. A matriz de impressão era

composta por tipos de chumbo, montados manualmente, técnica conhecida como impressão

Page 17: Analise Prolegomenos

de tipos móveis. A inclusão de imagens, de fotos e ilustrações não tinha a mesma facilidade

da impressão mediante fotomecânica, menos ainda da impressão digital. Eram obtidas atra-

vés de clichês, pequena matriz feita em metal, normalmente de zinco, compostos junto com

os tipos móveis, com uma base de madeira.

Considerando essa condição técnica, é possível que o clichê original tenha sido parci-

almente danificado e, apesar disso, foi reaproveitado. Ou então, foi refeito mesmo por decisão

de Kardec, por achar que o desenho ampliado ficaria esteticamente melhor do que o original.

Teriam as três folhas da parreira a representação simbólica de ciência, filosofia e moral?

8. DUAS FALANGES, DOIS ETCETERAS

A ordem de citação dos espíritos que subscrevem o Prolegômenos, seguida de dois etce-

teras ao final do texto, pode parecer um detalhe insignificante, trivial, no entanto, temos de

considerar que não é comum o uso de tal recurso em um livro de caráter filosófico, doutrinário.

Fosse um romance, um livro de contos, crônicas, uma obra de literatura, aí sim. Entretanto, não

é o caso. Eis o original, conforme saiu na segunda edição, com os nomes em versalete:

“SAINT JEAN L'EVANGÉLISTE, SAINT AUGUSTIN, SAINT VINCENT DE PAUL, SAINT

LOUIS, L'ESPRIT DE VÉRITÉ, SOCRATE, PLATON, FÉNELON, FRANKLIN, SWEDENBORG, ETC.,

ETC.”

Usada normalmente para objetos, o etcetera tornou-se de uso comum no século 19.

Trata-se de uma locução conjuntiva. É palavra de origem latina (et cetera ou et coetera) e

significa “e outras coisas da mesma espécie”, “e outras coisas mais”, “e o resto”, normalmente

usada ao final de uma frase, cuja abreviação (etc.) limita a citação de objetos, na enumeração

de uma série de coisas, sem o qual a leitura da citação tornar-se-ia exaustiva, cansativa. O uso

do etcetera é um recurso didático, a fim de ocultar aquilo que poderia ter sido citado. A forma

abreviada surgiu na Idade Moderna, no uso do chamado “latim científico”.

O uso do etcetera, tanto para pessoas como objetos, não é unânime. Há quem defenda

que sua aplicação deveria se restringir a coisas. Outros consideram correta sua aplicação na

enumeração de pessoas. Segundo o linguista e gramático Cláudio Moreno, vários dicionários

de inglês e francês reafirmam sua dupla aplicação. Na prática, o etcetera tornou-se de uso co-

mum tanto para pessoas como para coisas.14

14 Cláudio MORENO, Pontuação do etc.

Page 18: Analise Prolegomenos

Todavia, na enumeração de pessoas há outro recurso semelhante, o et alii, expressão

também latina que significa “e outros”, muito utilizada em citações bibliográficas, se deter-

minada obra citada for de autoria de várias pessoas. Seu uso é regido pela ABNT - Associa-

ção Brasileira de Normas Técnicas. A abreviatura é et al. Vem daí o uso coloquial na refe-

rência a pessoas: fulano de tal, ciclano de tal, quando se quer ocultar o sobrenome, a origem

de determinado indivíduo. É por isso que no idioma inglês a palavra all significa tudo ou

todos, ou seja, aplica-se tanto a pessoas quanto a objetos.

A rigor, Allan Kardec deveria ter usado et al ao invés de etcetera. Afinal, não deixa de

ser uma citação, de uma referência autoral. Se ele decidiu, na 2ª edição, assinar o Prolegôme-

nos, o uso de et al no final do texto seria mais conveniente.

Em nosso entender, se Kardec usou etcetera, aplicado normalmente a coisas, não foi

por acaso. Ele mesmo reafirmou diversas vezes que os espíritos eram para ele objetos de in-

formação, fontes informativas, nada mais. Se o espírito comunicante foi ou não alguém ilus-

tre, isso não tinha nenhuma importância para o fundador do Espiritismo, pois, segundo ele, o

que importava mesmo era o conteúdo das ideias e não a sua procedência. Assim como não foi

por acaso que o Mestre de Lyon colocou, ao final do Prolegômenos, dois etceteras: um etcete-

ra para cada falange de espíritos. De modo que, além dos que subscrevem, outros poderiam

estar ali representados. O primeiro da lista seria Zéfiro. Hahnemann, posteriormente excluído,

poderia também subscrever a mensagem, bem como Galileu, Lamennais e Voltaire. Como

seria enfadonho colocar toda a equipe do Espírito de Verdade, optou-se por dez subscritores.

Curiosamente, uma mensagem tão importante como essa, apesar de agora assinada, na

2ª edição de O Livro dos Espíritos, não traz informação alguma do autor mediúnico. Afinal,

quem foi o médium? Não sabemos. Muito provavelmente, as irmãs Caroline e Julie Baudin.

9. MANIFESTO ESPIRITUALISTA

Os manifestos surgem, ao longo da história, como reação aos modelos vigentes, uma crí-

tica ao establishment, ao status quo. Normalmente subscritos e apesar de serem mais conheci-

dos pela sua natureza política, pode-se observar em vários campos do conhecimento manifestos

das mais distintas características, seja nas artes, na poesia ou na literatura. Segundo o dicionário

Caldas Aulete, manifesto é uma declaração formal de intenções ou expressão pública (geral-

mente por escrito) de ideias políticas, estéticas etc. Significado semelhante observamos no di-

cionário Aurélio: declaração pública ou solene das razões que justificam certos atos ou em que

Page 19: Analise Prolegomenos

se fundamentam certos direitos; programa político, religioso, estético etc. E no dicionário Hou-

aiss, manifesto é uma declaração trazida a público para fins diversos; declaração pública, fre-

quentemente solene, na qual uma pessoa, um governo, partido político, grupo religioso, de ar-

tistas etc. expõe determinada decisão, posição, programa ou concepção.

Os manifestosComunista (1848), Futurista (1909), Dadaísta (1918), Surrealista

(1924), o Manifesto Antropofágico (1928) dos modernistas brasileiros, e tantos outros, insur-

gem-se criticamente contra padrões vigentes. Propõem uma nova visão, um novo olhar, um

novo paradigma no campo do conhecimento ao qual se dispõem a transformar, revolucionar

ou mesmo reformar, como foi o manifesto-denúncia de Lutero contra as indulgências e os

desvios doutrinários da Igreja Católica, em suas 95 Teses (1517), afixadas na porta da Igreja

do Castelo de Wittenberg, na Alemanha.

Normalmente a linguagem é contundente e iconoclasta, como se fosse um aviso, uma a-

meaça àqueles que procuram manter as coisas como estão.Todavia, nem sempre o manifesto se

expressa através de textos, mas sim de atitudes, de ações coordenadas, na oratória, no discurso

contundente e transformador, como foi o caso de Jesus. Apesar de nada ter escrito, os últimos três

anos de sua vida foram um manifesto de transformação moral, assim como o foi a vida do filósofo

grego Sócrates, que também nada escreveu,em suas pregações filosóficas nas ágoras gregas.

A linguagem adotada nesse texto é um pouco intimidadora, meio prospectiva, como se

fosse o cumprimento de alguma profecia. Não chega a ser um sermão ou homilia, muito menos

um édito ou mesmo um edital público. Não é a confirmação de alguma anunciação teológica,

sobrenatural, tipo aquela do Consolador prometido por Jesus, do Paracleto, que iria restabelecer

todas as coisas e relembrar o que estava esquecido, mediante ação do Espírito de Verdade, envia-

do pelo Cristo. Coincidentemente, um dos subscritores dessa mensagem chama-se O Espírito de

Verdade. O texto é dirigido a Kardec, que naquele momento representava toda a humanidade:

“Ocupa-te com zelo e perseverança no trabalho que empreendeste com o nosso concurso, por-

que este trabalho é nosso. Nele estabelecemos a base do novo edifício que se eleva e que um dia deverá

reunir todos os homens no mesmo sentimento de amor e de caridade; mas antes de o espalhar, revê-lo-

emos em conjunto, a fim de controlar todos os detalhes.”

“Estaremos contigo sempre que precisares, para te ajudar em teus trabalhos, porque isto é ape-

nas uma parte da missão que te é confiada e que já te foi revelada por um de nós.”15

15 No original: “Occupe-toi avec zèle et persévérance du travail que tu as entrepris avec notre concours, car ce travail est le nôtre. Nous y avons posé les bases du nouvel édifice qui s’élève et doit un jour réunir tous les hommes dans un même senti-ment d’amour et de charité ; mais avant de le répandre, nous le reverrons ensemble, afin d’en contrôler tous les détails.” “Nous serons avec toi toutes les fois que tu le demanderas et pour t’aider dans tes autres travaux, car ce n’est là qu’une partie de la mission qui t’est confiée, et qui t’a déjà été révélée par l’un de nous.”

Page 20: Analise Prolegomenos

Pode-se considerar, sem sombra de dúvida, que o Prolegômenos, assinado pelos es-

píritos e apresentado por Allan Kardec, é muito mais do que um simples abaixo-assinado,

pois se constitui num manifesto. Trata-se de um manifesto espiritualista, com uma retórica

próxima dos manifestos literários e políticos. Ao mesmo tempo em que sintetiza e apresenta

as ideias ao leitor, ao iniciante, também se mostra como uma nova proposta, “uma filosofia

racional, livre dos preconceitos do espírito de sistema”, que se constitui na abertura de uma

nova era para a regeneração da humanidade. Esse texto poderia ter o título deManifesto

Espiritualista ou, melhor ainda, deManifesto Espírita. Todavia, o termo adotado, Prole-

gômenos, atende perfeitamente às intenções e ao conteúdo da mensagem dos espíritos.

10. QUEM É QUEM...

Como já vimos, no primeiro Prolegômenos, conforme a nota XVII ao final da primeira edição de O Livro dos Espíritos, oito espíritos são citados como autores da mensagem dirigida a Kardec, que saiu sem assinatura. São eles: João Evangelista, Sócrates, Fénelon, São Vicente de Paulo, Hahnemann16, Franklin, Swedenborg e Napoleão Primeiro. Na segunda edição, Na-poleão Primeiro e Hahnemann são excluídos. Foram acrescentados mais quatro subscritores: O Espírito de Verdade, Platão, Santo Agostinho e São Luís, totalizando dez espíritos.

Não sabemos qual o motivo dos espíritos de Hahnemann e Napoleão Primeiro terem sido excluídos. Supomos que a decisão de assinar a mensagem tenha partido dos espíritos, por sugestão de Rivail. De todos os espíritos mencionados, do total de doze, Napoleão Pri-meiro é o que destoa dos demais. Assim como destoa também a presença d’O Espírito de Verdade, devido ao fato de não sabermos sua verdadeira identidade.

A seguir, um perfil biobibliográfico de cada um dos autores do Prolegômenos:

HAHNEMANN –Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843), fundador da homeopatia, nasceu na Alemanha. Apesar da origem humilde, o pai o incentivou a estudar. Depois de terminar os estudos básicos, foi estudar medicina em Leipzig. Hahnemann aprendeu várias línguas (francês, italiano, inglês, grego, latim, árabe e sírio) e custeou seus estudos traduzindo livros médicos do inglês para o alemão. Ao se formar, transfere-se para Viena, on-de atua como médico particular e bibliotecário do governador da Transilvâ-nia. Além de estudar profundamente a etiologia das enfermidades, interes-sou-se especialmente pelo vitalismo e o organicismo.

A partir de 1796 passa a publicar artigos em jornais de medicina prá- O “um de nós” (l’um de nous) a que os subscritores da mensagem se referem é o espírito Zéfiro, que assinava como “Z”, prote-tor de Rivail, o primeiro espírito da equipe d’O Espírito de Verdade a se comunicar com o fundador do espiritismo. Segundo Canuto Abreu, foi ele quem fez a revelação das encarnações anteriores de Rivail como druida e como o reformador tcheco Jan Huss (1369-1415), precursor do movimento protestante. 16 No original, de modo incorreto, foi grafado Hannemann. O certo é Hahnemann.

Page 21: Analise Prolegomenos

tica com críticas aos absurdos e erros da medicina ortodoxa, que denominou de alopática. Na medicina de seu tempo era comum a prática de sangrias, vomitórios, clisteres (lavagem intesti-nal) e o uso de medicamentos tóxicos (mercúrio, arsênico, beladona etc.) para o tratamento te-rapêutico. Por conta disso, chegou a abandonar a medicina. Ainda assim, continuou a dedicar-se à tradução de livros e tratados médicos para sobreviver.

Pois foi justamente no decorrer desse trabalho de tradução que Hahnemann percebeu a identidade entre a doença e a droga ingerida. O mesmo remédio pode tanto curar como provocar as mesmas condições mórbidas da doença, quando é testado em voluntários sau-dáveis. Depois de seis anos de intensas pesquisas e experimentos, publica três obras onde fundamenta suas teorias: o célebre Organon, em 1810, um clássico da história da medicina; Matéria Médica Pura, em seis volumes, publicada de 1811 a 1821 e o Tratado de Doenças Crônicas, em 1828. Suas obras causaram grande impacto na corporação médica, que reagiu de forma virulenta. Apesar da perseguição das academias de medicina, a homeopatia consa-gra-se na França e se espalha pelo mundo.

Com a homeopatia, Samuel Hahnemann criou uma terapia alternativa à alopatia, ba-seada no princípio da semelhança de Hipócrates, o Pai da Medicina, similia similibus curan-tur (“os semelhantes curam-se pelos semelhantes”). Os medicamentos homeopáticos são preparados mediante um processo que consiste na diluição sucessiva da substância terapêu-tica, do princípio ativo, com sucussão (manual ou mecânica) e dinamização, também deno-minada de potencialização, segundo uma série de procedimentos.

Hahnemann partiu do pressuposto teórico de que todo ser humano possui energia vi-tal, capaz de se adaptar a causas internas e externas. Um estado mental negativo, depressivo, pode atrair miasmas (emanação malcheirosa), que invadem o organismo e causam os sinto-mas da doença. A base conceitual da homeopatia guarda muitas semelhanças com a filosofia espírita. Por conta disso, as ligações históricas e filosóficas entre homeopatia e espiritismo são muito grandes. No final do século 19 e início do século 20, notadamente no Brasil, a maioria dos homeopatas era simpatizante do espiritismo.17

Allan Kardec era tão simpático à homeopatia quanto crítico, notadamente em relação à suposta influência moral dos medicamentos homeopáticos, como podemos observar nesta passagem da Revista Espírita (jun. 1867), a propósito da resposta de um espírita homeopata a um artigo que ele havia publicado sobre o tema: “não contestamos que certos medicamentos — e os homeopáticos mais que qualquer outros — produzem alguns dos efeitos [morais] indi-cados, mas contestamos enfaticamente seus resultados permanentes e, sobretudo, tão univer-

17 Na década de 1840, antes do espiritismo aportar no Brasil, os neoespiritualistas e homeopatas Bento Mure, francês e o português João Vicente Martins introduziram a homeopatia no país. Mure, clarividente, entrava em transe mediúnico. Martins era médium psicógrafo. O trabalho desses dois pioneiros da homeopatia deu origem ao primeiro círculo homeopático dissemi-nado por todo o país. O patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, era adepto da homeopatia. D. Pedro II se correspondia com Hahnemann. As primeiras experiências com mesas girantes no país foram feitas por adeptos da homeo-patia. Ambos aplicavam passes no tratamento terapêutico e tinham por divisa “Deus, Cristo e a Caridade”, trinário adotado mais tarde pela Federação Espírita Brasileira. Foi Martins quem introduziu as irmãs de caridade e os princípios vicentinos em terras brasileiras. Ver o livro de Silvino Canuto Abreu, Bezerra de Menezes - Subsídios para a História do Espiritismo no Brasil até o ano de 1895 [Feesp]. O médico Adolpho Bezerra de Menezes, adepto da homeopatia, em A Loucura Sob um Novo Prisma (FEB), incluiu uma mensagem psicografada de autoria de Hahnemann sobre loucura e obsessão. A obra foi lançada em 1920.

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sais, como pretendem algumas pessoas. Um caso em que a Homeopatia nos parece particu-larmente aplicável com sucesso é o da loucura patológica, porque aqui a desordem moral é consequência da desordem física (...). A ação da Homeopatia pode ser aqui tanto mais eficaz, quanto age principalmente pela natureza espiritualizada de seus medicamentos, sobre o pe-rispírito, que apresenta papel preponderante nesta afecção.” (Grifo meu).

NA KARDEQUIANA –O espírito de Hahnemann participou ativamente da estruturação do Espiritismo. Podemos observar referências e diversas mensagens ditadas por ele em toda a obra de Allan Kardec:

● O Livro dos Espíritos (1857) – Notas X e XVII. Hahnemann é citado como subscri-tor do prolegômenos na nota XVII. A nota X, vale a pena transcrever:

“Entre os Espíritos que se ocupam, com uma sorte de predileção, do alívio da Humanidade,

de preferência a quaisquer outras coisas, muitos animaram, aqui, ilustres médicos da Antiguidade e

dos Tempos Modernos, e entre estes últimos citaremos, fora outros, HAHNEMANN e DUPUYTREN

que, embora entre si pouco de acordo quando aqui, se entendem às maravilhas no Mundo dos Espíri-

tos e se unem de bom grado quando há bem a fazer. A bondade, que foi a essência do caráter de

HAHNEMANN, não se desmente em sua nova situação; é sempre a mesma benevolência e solicitude

pelos que empreende curar, e os resultados que obtém tocam muita vez a raia do prodígio.” 18

● O Evangelho Segundo o Espiritismo – A Cólera (mensagem), cap. IX.

● Revista Espírita – Correspondência (jan. 1860). – Jean Reynaud e os Precursores do Espiritismo (ago. 1863). – Medicina Homeopática (ago. 1863); Um Caso de Possessão (jan. 1864).

● Obras Póstumas – Minha Missão (diálogo), 7 de maio de 1856. – O Livro dos Espíritos (diálogo), 10 de junho de 1856.

NAPOLEÃO PRIMEIRO–Uma das grandes personalidades da história da humanidade, excepcional estrategista, Napoleão Bonaparte (1769-1821) foi um dos maiores líderes militares de todos os tempos e o maior herói que a França já teve. Adotou o nome de Napoleão I como imperador autoproclamado da França, onde reinou no período de 1804 a 1814. Voltou ao poder em 1815, mas ficou por alguns meses até ser exilado na Ilha de Sta. Helena, Grã-Bretanha, onde viveu os últimos anos de sua vida.

O espírito Emmanuel, através da psicografia de Francisco Cândido Xa-vier,19 considera Napoleão Bonaparte um missionário que reencarnou com o objetivo de liderar “a organização social do século XIX”. No entanto, devido ao orgulho e ânsia de poder, “o humilde soldado corso não soube compreender as finalidades de sua grandiosa missão”. Emmanuel/Chico “pegam pesado” com

18Tradução de Silvino Canuto ABREU. 19A Caminho da Luz, cap. XXII - A Revolução Francesa, pág. 192.

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Napoleão: “Assediado pelo sonho de domínio absoluto, Napoleão foi uma espécie de Maomet transviado, da França do liberalismo. Assim como o profeta do Islã pouco se aproximara do E-vangelho, que a sua ação deveria validar, também as atividades de Napoleão pouco se aproxima-ram das ideias generosas que haviam conduzido o povo francês à revolução. Sua história está i-gualmente cheia de traços brilhantes e escuros, demonstrando que a sua personalidade de general manteve-se oscilante entre as forças do mal e do bem.”

Compreendendo ou não “sua grandiosa missão”, a França conquistou sua hegemonia polí-tica frente às grandes potências europeias graças ao gênio militar e político de Napoleão Bonapar-te nas Guerras Napoleônicas. Durante o período em que esteve no poder, promoveu a moderniza-ção da França e a criação de instituições administrativas, jurídicas e financeiras. Reformulou a universidade francesa e realizou várias obras urbanísticas. No campo do direito, a aprovação do Código Napoleônico (1804) implementou importantes reformas legislativas, tornando-se uma referência para outros países. Se não fosse ele, certamente a França não teria a importân-cia cultural que teve no século 19 e Paris não viria a ser conhecida como a Cidade das Luzes.

NA KARDEQUIANA –Kardec faz referência a Napoleão na Revista Espírita (mar. 1862), no artigo Genealogia Espírita, sobre a reencarnação: “nada liga Carlos Magno a seus descenden-tes. (...) E, então, como explicar por que, entre os seus descendentes, houve tantos homens nulos e indignos, e por que Napoleão é um gênio maior do que os seus obscuros antepassados? Façam o que quiserem: sem a reencarnação nós nos chocamos a cada passo contra dificuldades insolú-veis, que só a preexistência da alma resolve, de maneira ao mesmo tempo simples, lógica e completa, visto dar a razão de tudo.”

N’O Livro dos Médiuns, em um estudo sobre comunicações apócrifas (cap. XXXI), Kardec publica uma mensagem supostamente de autoria de Napoleão. A observação crítica e bem-humorada do fundador do Espiritismo é bastante interessante:

“Napoleão era, em vida, um homem grave e sério como poucos. Todos conhecem o seu estilo

breve e conciso. Teria degenerado após a morte, tornando-se verboso e burlesco? Esta comunicação po-

de ser de algum soldado que se chamava Napoleão.”

SÃO JOÃO EVANGELISTA –O único dos evangelistas que conviveu com Jesus de Nazaré. Longevo, viveu quase 100 anos, provavelmente entre os anos 8 d.C. e 105 d.C. Foi um dos doze apóstolos e testemunha ocular da vida de Jesus. Seu evangelho, o quarto e último, é considerado pelos estudiosos e exegetas o mais intimista e teológico, diferenciando-se dos outros três (Mateus, Marcos e Lucas), considerados sinóticos, devido às semelhanças históricas e descritivas. Somente em João encontram-se registros do diálogo de Jesus com o membro do sinédrio Nicodemos, com a samaritana, o primeiro milagre nas bodas de Canaã, da ressurrei-ção de Lázaro e a célebre cerimônia do lava-pés.

João nasceu em Betsaida, pequeno povoado de pescadores a

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nordeste do mar da Galileia. Era filho de Zebedeu, descrito pelo filólogo e historiador francês Ernest Renan como um pescador bem estabelecido e proprietário de várias embarcações. Sua mãe, Salomé, era irmã de Maria, mãe de Jesus. Era parceiro de pesca dos irmãos André e Pe-dro, apóstolos de Jesus. Com pouco mais de 20 anos, junto do único irmão, Tiago Maior, u-niu-se ao grupo de apóstolos. Os dois eram chamados por Jesus de “filhos do trovão”, devido à sua personalidade explosiva e enérgica. João, seu irmão e Pedro formavam o trio dos discí-pulos prediletos e mais íntimos de Jesus, chamados por Paulo de “colunas da Igreja”, em sua epístola aos Gálatas (Gl 2:9).

O evangelista também ficou conhecido por uma curiosa passagem evangélica em que sua mãe, Salomé, pede a Jesus que no seu Reino cada um dos seus filhos, João e Tiago Maior, se assentassem, um à sua direita e outro à sua esquerda. Jesus consentiu, mas advertiu: “Bebe-reis o meu cálice; mas o assentar-se à minha direita e à minha esquerda não me compete conce-dê-lo; é, porém, para aqueles a quem está preparado por meu Pai”. O pedido provocou indigna-ção e ciúme entre os demais apóstolos. E Jesus, aproveitando a situação, deixa um ensinamento que vale para todos: “Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” (Mat 20:20 a 28).

Segundo Renan, João era um homem extraordinário: sua juventude, fervor e a exal-tada imaginação faziam dele um dos apóstolos mais encantadores.20 Foi o mais novo dos apóstolos, e o único que acompanhou Jesus até o fim da crucificação, também conhecido como o “apóstolo do amor”, o “discípulo bem-amado”. Como se vê nessas derradeiras pala-vras de Jesus, pouco antes de desencarnar, dirigidas ao grupo de familiares ao pé da cruz, segundo a própria descrição de João:

“E junto à cruz estavam a mãe de Jesus, a irmã dela, e Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena.

Vendo Jesus sua mãe, e junto a ela o discípulo amado, disse: Mulher, eis aí o teu filho. Depois disse ao dis-

cípulo: Eis aí tua mãe. Dessa hora em diante o discípulo a tomou para casa.” (João, 19: 25 a 27, grifo meu).

Logo no início de seu evangelho, João faz uma descrição poética de Jesus, no que pode-ríamos denominar de uma autêntica metafísica teológica: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. (...) “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.” (João 1: 1-14).

Após a desencarnação de Jesus, desempenha importante papel na criação e orientação de várias comunidades cristãs. Ao lado de Pedro, foi o principal sustentáculo da primitiva comunidade cristã de Jerusalém, resistindo às tentativas de sufocar o nascente movimento cristão. No Ato dos Apóstolos, em seus primeiros capítulos, podemos observar que os dois eram amigos e companheiros inseparáveis. Segundo Renan, João e Pedro foram presos várias vezes e condenados a açoites, castigo que era infligido aos heréticos, o que fazia aumentar ainda mais a fé e o idealismo dos primeiros cristãos.

20 Ernest RENAN, Vida de Jesus, cap. IX - Os discípulos de Jesus.

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Mesmo sendo um dos quatro evangelistas, João nunca deixou de ser judeu, apesar de cristão. Foi o único dos apóstolos que não foi martirizado. Segundo a tradição cristã, João escapou, por milagre, de uma caldeira de azeite fervente. Acusado de feitiçaria, por conta dis-so foi exilado pelo tirânico imperador romano Domiciano por quatro anos na Ilha de Patmos (ao leste do mar Egeu), onde escreveu o último livro da Bíblia, o Apocalipse.21Além do quar-to evangelho e do Apocalipse, João é autor de três epístolas. A primeira, dirigida às comuni-dades cristãs da Ásia Menor (antiga região da atual Turquia); a segunda, à “senhora eleita e aos seus filhos” e a terceira tem como destinatário o “amado Gaio”, provavelmente um dos líderes de alguma comunidade cristã da Ásia Menor.

João teve destacada atuação na Ásia Menor, dirigiu várias comunidades cristãs, dentre elas a de Éfeso, fundada por Paulo, onde se estabeleceu e viveu os últimos de seus longos dias.

NA KARDEQUIANA – O espírito João Evangelista é um dos oito citados por Allan Kardec na primeira edição de O Livro dos Espíritos e o primeiro subscritor do Prolegômenos, em sua segunda edição.

● O Livro dos Espíritos (1857 - 1ª edição) – Nota XVII. ● O Livro dos Espíritos (1860 - 2ª edição) – Prolegômenos. ● O Evangelho Segundo o Espiritismo – Deixai vir a mim os pequeninos, mensagem - cap. VIII. ● Revista Espírita – A Esposa de Remone, diálogo e Jacques Noulin, diálogo (nov. 1862). – O Arrependimento, mensagem (jul. 1863). – Aos Operários, mensagem (abril 1864). – Citado na Sessão Comemorativa na Sociedade de Paris (dez. 1864). – Citado em O Espiritismo só pede para ser conhecido. (set. 1866). – Os Mortos Sairão de Seus Túmulos, mensagem (fev. 1868).

SANTO AGOSTINHO – Foi um dos membros mais ativos da equipe d’O Espírito de Verdade. Reencarnou como Aurélio Agos-tinho (354-430), em Tagaste, atual Argélia, na África. Considerado um dos maiores teólogos do cristianismo, somente comparável a São Tomás de Aquino, antes de seguir a carreira eclesiástica Agos-tinho teve um passado considerado mundano, cheio de prazeres e aventuras amorosas. Teve um filho com apenas 19 anos. Conver-teu-se ao cristianismo aos 32 anos em meio a uma crise existencial. Na busca de um sentido para a própria vida, se vê diante de uma experiência mística no jardim de sua casa, em Milão. Agostinho ouve uma voz infantil que entoava uma canção que dizia, repeti- 21 Apesar da afeição especial de Jesus por João, o “discípulo amado”, este era mais judeu do que cristão. Podemos observar isto na leitura de Ato dos Apóstolos e na linguagem empregada no Apocalipse, obra provavelmente escrita por volta de 95-96 d.C., no final do reinado do imperador Domiciano. Os originais foram redigidos em “grego estranho e pouco gramatical”, segundo o histori-ador inglês Norman Cohn: “Seu autor é claramente um cristão de origem judaica e palestina. (...) que costumava pensar em he-braico ou aramaico”. Todos os cristãos aceitam essa obra e consideram João Evangelista como seu autor. Para Norma Cohen, a autoria dessa obra é “certamente falsa”. (Norman COHN, Cosmos, Caos e o Mundo que Virá, cap. 12, pág. 276).

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damente: “toma e lê, toma e lê” (tolle, lege, tolle, lege). Em seguida, de modo impulsivo, to-ma a bíblia e abre aleatoriamente, justamente em uma epístola de Paulo sobre os prazeres mundanos: “Não caminheis em glutonerias e embriaguez, nem em desonestidades e dissolu-ções, nem em contendas e rixas, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites”. (Rm 13:13-14).

Desse dia em diante, torna-se um verdadeiro cristão, trilhando um caminho singular, que havia sido preparado por sua mãe. Se inicialmente fora influenciado pelo maniqueísmo e o neoplatonismo de Plotino, passa a seguir um rumo todo próprio, com amplas reflexões sobre a questão da graça, do bem e do mal, do livre-arbítrio, da fé e a razão, onde nota-se a nítida influência do pensamento de Platão. A filosofia cristã surge com Santo Agostinho.

Seu pensamento teológico e filosófico influenciou por vários séculos todo o período medieval. É autor de uma das primeiras utopias, A Cidade de Deus, base de seu pensamento onde contrapõe a Cidade dos Homens, mundana e profana à Cidade de Deus, a comunidade cristã devota a Deus e aos princípios cristãos. Combateu com veemência as chamadas here-sias que surgiram em sua época.

Em 391 é ordenado sacerdote em Hipona (região da atual Argélia) por aclamação, cargo que ocupou até sua morte. Era um homem de hábitos simples, de alimentação frugal, avesso a maledicências e bastante parcimonioso na administração dos bens da Igreja. Dei-xou uma vasta obra, com mais de cem trabalhos escritos, quinhentos sermões sobre os mais variados temas de caráter teológico, filosófico e hermenêutico. Desenvolveu estudos sobre o evangelho de São João e os Salmos.

Na obra Sobre o Livre-Arbítrio (De Libero Arbitrio), Santo Agostinho aborda a questão da origem do mal. Segundo ele, o mal não poderia vir de Deus, que é a própria per-sonificação do bem, da perfeição. Sua origem está no livre-arbítrio, na capacidade que o homem tem de exercer o bem ou o mal, segundo sua vontade. Foi o principal teórico da doutrina do pecado original e exerceu grande influência no pensamento de Tomás de Aqui-no e Calvino. Entre as principais obras de Agostinho, temos: Contra os Acadêmicos (386). Solilóquios (387), Do Livre Arbítrio (388-395), De Magistro (389), Confissões (400), Espí-rito e Letra (412), A Cidade de Deus (413-426) e as Retratações (413-426).

A obra de Santo Agostinho se constituiu num dos pilares do desenvolvimento da Es-colástica, corrente de pensamento dominante no medievo, que consistia basicamente na conciliação da fé cristã com a filosofia grega, com o pensamento racional.

Assim que os vândalos invadem Hipona, Agostinho adoece, vindo a morrer em se-guida, aos 76 anos, deixando uma extensa obra que iria definir por vários séculos os parâ-metros do pensamento cristão medieval.

NA KARDEQUIANA –Desde o início, até pouco antes da desencarnação de Kardec, o espírito Santo Agostinho teve ativa participação na elaboração do espiritismo. Segundo o espírito Erasto, Agostinho pertencia a uma “vigorosa falange dos Pais da Igreja”.

● O Livro dos Espíritos (1860 - 2ª edição) – Prolegômenos; questões 495, 919 e 1009; Conclusão, item IX.

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● O Livro dos Médiuns – Cap. XXXI, Dissertações Espíritas - Sobre o Espiritismo, mensagem; Sobre as sociedades espíritas, item XVI, mensagem e ditado sobre uma fórmula de invocação geral.

● O Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. III, Mundo de expiações e provas (Paris, 1862); Mundos regeneradores, (Paris, 1862); Progressão dos mundos (Paris, 1862). – Cap. V, O mal e o remédio (Paris, 1863). – Cap. XII, item 12 (Paris, 1862) e item 15 (Bordéus, 1861) sobre os duelos. – Cap. XIV, A ingratidão dos filhos e os laços de família (Paris, 1862). – Cap. XXVII, Felicidade que a prece proporciona (Paris, 1861).

● O Céu e o Inferno – 2ª parte, cap. VIII, Instruções do guia do médium.

● Revista Espírita – Os Anjos da guarda (jan. 1859), publicada n’O Livro dos Espíritos (q. 495). – Mundos intermediários ou transitórios, diálogo (maio 1859). – O Espiritismo é provado por milagres? (fev. 1862). – A vinha do Senhor (mar. 1862). – Os mártires do Espiritismo, Perseguição (abril 1862). – Mensagem aos membros da SPEE que partem para a Rússia (maio 1862). – Os dois Voltaires (maio 1862). – Duplo suicídio por amor e dever, estudo moral (jun. 1862). – Mensagem para a Sociedade Espírita de Constantina (ago. 1862). – Mensagem sobre o valor da prece (ago. 1862). – Mensagem sobre as férias da Sociedade Espírita de Paris (set. 1862). – Sobre as comunicações dos espíritos (jun. 1863). – Comunicação sobre Jean Reynaud (ago. 1863). – O verdadeiro espírito das tradições (nov. 1863). – Sobre os espíritos que ainda se julgam vivos (nov. 1864). – Comunicação na sessão comemorativa da Sociedade de Paris (dez. 1864). – O trabalho (jun. 1866).

SÃO VICENTE DE PAULO – Um dos santos mais venerados pelos cris-tãos. Seu nome está sempre associado a ações sociais de caridade. De ori-gem camponesa, Vicente de Paulo (1581-1660) nasceu em Landes, França. Desde cedo manifesta grande inteligência e muita fé nos princípios cristãos. Segue o caminho eclesiástico e conclui seus estudos teológicos na Univer-sidade de Toulose. Com apenas 19 anos, é ordenado sacerdote.

Em sua vida atribulada, teve de enfrentar uma série de dificul-dades físicas e financeiras. Por ocasião de uma viagem marítima a Marselha, seu navio é atacado por piratas turcos que o aprisionam e o vendem, na Tunísia, como escravo a um pescador, depois para um al-quimista e por último, a um fazendeiro ex-cristão, recém-convertido à

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fé muçulmana. O contato com Vicente de Paulo resulta na reavaliação de sua fé. Arrependi-do, o fazendeiro segue com ele para a França. Vicente retoma suas funções eclesiásticas e o fazendeiro torna-se monge.

Vicente de Paulo ganha notoriedade com seu ativismo social, voltado à prática da so-lidariedade ao ponto de ser nomeado pelo rei Luís XIII como Ministro da Caridade, com a função de gerenciar todos os projetos assistenciais da França. Desenvolve grande variedade de obras sociais e funda várias congregações no seio da Igreja, como a Confraria das Damas de Caridade, a Congregação dos Padres da Missão (Lazaristas), a Confraria do Rosário, os Servos dos Pobres e as Filhas da Caridade.

Dedica sua vida à assistência dos pobres e oprimidos. É canonizado pelo papa Cle-mente XII em 1737. Entre os católicos, tornou-se conhecido pelo epíteto de A Consciência do Reino, tendo sido nomeado pelo papa Leão XIII como o Patrono dos Serviços Sociais, em 1885. Desencarna aos 85 anos.

Seu exemplo de ação caridosa inspirou um grupo de católicos leigos na fundação da célebre Sociedade São Vicente de Paulo, na França, em 1883, entidade com várias filiais em todo o mundo.

NA KARDEQUIANA – O espírito São Vicente de Paulo se integrou à equipe d’O Espíri-to de Verdade, levando consigo toda sua experiência na vivência da caridade.

● O Livro dos Espíritos (1857 - 1ª edição) – Nota XVII. ● O Livro dos Espíritos (1860 - 2ª edição) – Prolegômenos e q. 888-a. ● O Livro dos Médiuns – Cap. XXXI, itens XIX, XXVI, XXIX e XXX. ● O Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. XIII, item 12. ● Revista Espírita – A caridade (ago. 1858), publicada n’O Evangelho, cap. XIII, item 12. – Comunicação espontânea (dez. 1859). – Os Convulsionários de Saint-Médard, diálogo (dez. 1859). – Parábola (abril 1860). – Perseguições, comentário (set. 1862).

SÃO LUÍS –De todos os espíritos que participaram da equipe d’O Espírito de Verdade, São Luís era provavelmente o mais preparado. Ques-tões doutrinárias mais espinhosas, de maior profundidade, eram respondi-das por ele. Provavelmente, foi ele quem aconselhou Kardec a assumir sozinho a empreitada de lançamento da Revista Espírita, sem precisar de algum investidor. O primeiro contato do fundador do Espiritismo com esse espírito se deu através da médium Ermance Dufaux, cujo guia era o pró-prio São Luís. Médium excepcional, psicografou A História de Luís IX, Ditada por Ele Mesmo (1854), censurada por Napoleão III, mas lançada posteriormente pela revista La Verité, de Paris. Ermance tomou parte ativa na revisão da 2ª edição de O Livro dos Espíritos e na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), da qual é uma das fundadoras.

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Reencarnou como o rei Luís IX (1214-1270), consagrado monarca desde os doze anos, sempre com o apoio moral e político da mãe, Branca de Castela, que atuou como atenta con-selheira até o fim de sua vida. Promoveu grandes mudanças políticas e jurídicas na França. A Universidade de Sorbonne surgiu por sua iniciativa. Assinou o Tratado de Paris (1259), fina-lizando o centenário conflito com a Inglaterra, recuperou a Normandia, dentre outros territó-rios usurpados e ordenou a estruturação de uma comissão judiciária, que viria a ser o embrião do futuro parlamento francês.

O rei Luís IX, extremamente religioso, era um monarca respeitadíssimo pela sua inte-gridade, virtudes morais e reto pensar. Em conflitos internacionais, era sempre requisitado para atuar como árbitro. Essas qualidades morais fizeram dele uma figura muito carismática, adorada pelo povo francês, que o via como santo, um rei-santo, bem antes da Igreja canonizá-lo.Foi guindado à condição de mito, o mito do rei-santo.22 A Igreja examinou a vida de rei Luís IX, o culto popular que surgiu em torno de sua figura mítica, e aprovou a sua canoniza-ção, que se deu em 1287 pelo papa Bonifácio VIII, 17 anos após sua desencarnação.

Há historiadores que descartam o caráter mítico de Luís IX como o rei cristão, por exce-lência, em função da perseguição aos judeus durante o seu reinado e da capacidade política na manipulação dessa imagem e da religião cristã, usando-as a seu favor como soberano, inclusive no papel que desempenhou na política externa. A perseguição aos judeus e desapropriação de seus bens também serviram para angariar recursos no financiamento de seu projeto de retomar as Cruzadas, fruto de seu religiosismo exacerbado, mas principalmente da finalidade comercial e mercantilista que estava por trás desse empreendimento bélico e proselitista.

O fato é que, apesar de todas essas qualidades, o rei Luís IX se deu mal quando liderou a Sétima Cruzada (1248), mesmo com uma frota de 100 navios e 35 mil soldados. Foram to-dos surpreendidos por uma epidemia de tifo no Egito, resultando na derrota de seu poderoso exército. Saiu da prisão depois do pagamento de um resgate. Ainda assim, tentou outra cruza-da, a oitava, em 1269, também derrotada pela mesma epidemia, na Tunísia. Desta vez, o novo desastre custou-lhe a vida.

O espírito São Luís era o guia, patrono, o diretor espiritual (ou presidente espiritual) da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), desde sua fundação, em 1º de abril de 1858. Era ele quem coordenava as pesquisas e as reuniões mediúnicas da sociedade, fato que pode ser conferido nas edições da Revista Espírita. Os diálogos com Allan Kardec, a precisão e profun-didade de seus ensinamentos, a linguagem objetiva, sem floreios, metáforas, destoa radicalmen-te de muitas comunicações mediúnicas cheias de enfeites e florilégios moralistas, recheados de adjetivos. Se a Revista Espírita tornou-se o laboratório de ideias de Kardec, na feliz expressão do tradutor e erudito Júlio Abreu Filho, um dos maiores responsáveis foi o espírito São Luís.

22 O rei Luís IX era tão respeitado e, como santo, tão popular, tão reverenciado, a tal ponto pelo povo francês, que a Igreja o canonizou alguns anos depois de sua desencarnação. Há um episódio curioso n’O Livro dos Médiuns que demonstra sua popularidade, inclusive no mundo extrafísico. Um espírito traquinas e debochado tinha por hábito “jogar pedras” nas pesso-as da Rua Noyers, em Paris. Quando interrogado por Kardec, o espírito referiu-se ao diretor espiritual da SPEE como “O Bom Rei Luís”. Sob a orientação de São Luís, esse espírito atendeu a várias questões formuladas por Kardec, com a finali-dade de se compreender como ele produzia aqueles fenômenos, que hoje seriam chamados de poltergeist.

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NA KARDEQUIANA –Além de sua profunda contribuição intelectual, o espírito São Luís nos legou vários estudos de natureza moral, principalmente na Revista Espírita. Foi o intelec-tual mais prolífico da equipe d’O Espírito de Verdade.

● O Livro dos Espíritos (1860 - 1ª edição) – Prolegômenos. Questões 495, 664, 1004, 1006 a 1008, 1010 e 1019.

● O Livro dos Médiuns – Cap. IV, item 74; cap. V, item 94; cap. VIII, item 128; cap. XXIV, item 266;

cap. XXV, item 279; cap. XXXI, itens VI, XVII, XVIII, XIX, XXIII.

● O Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. IV, itens 24 e 25; cap. V, itens 28 a 31; cap. X, itens 19 a 21; cap. XIII,

item 20; cap. XVI, item 15.

● Revista Espírita

– A avareza (fev. 1858).

– A fatalidade e os pressentimentos (mar. 1858).

– A rainha de Oude, comentário (mar. 1858).

– O orgulho, Problemas morais, Metades eternas e Morte de Luís IX -

manuscritos de Ermance Defaux (maio 1858).

– Teoria das manifestações físicas, A preguiça, Conversas familiares de

além- túmulo, O suicida da Samaritana e Confissões de Luís IX (jun. 1858).

– A inveja (jul. 1858).

– Os talismãs e Suicídio por amor (set. 1858).

– O mal do medo (out. 1858).

– Sobre o suicídio (nov. 1858).

– Sensações dos espíritos e A Bela Cordoeira (dez. 1858).

– Os anjos da guarda (jan. 1859).

– Os agêneres (fev. 1859).

– Estudo sobre os médiuns e Fenômeno de transfiguração (mar. 1859).

– Conversas familiares de além-túmulo (abril 1858).

– Comentário sobre a raça negra (jun. 1859).

– Mobiliário de além-túmulo, O guia da senhora Mally (ago. 1859).

– Processo para afastar os espíritos maus (set. 1859).

– Perguntas sobre o avarento Pai Crépin (out. 1859).

– História de um danado (fev. 1860).

– Sobre o gênio das flores (mar. 1860).

– Sessão particular da SPEE e O espírito de um idiota (jun. 1860).

– Sobre os animais (jul. 1860).

– Estudos na SPEE, O trapeiro da Rua des Noyers (ago. 1860).

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– Sessão geral na SPEE, comunicação (dez. 1860).

– O espírito batedor do Aube (jan. 1861).

– Questões e problemas diversos e Ano de 1861 (fev. 1861).

– Sobre Alfred Leroy, suicida (abril 1861).

– O anjo da cólera (maio 1861).

– Hereditariedade moral (jul. 1862).

– Festa de Natal (abril 1863).

– Estudo sobre os possessos de Morzine (maio 1863).

– A nova Torre de Babel (nov. 1863).

– Cura moral dos encarnados e Sobre a morte dos espíritas (jul. 1865).

– O camponês filósofo (dez. 1865).

– Mediunidade mental (mar. 1866).

– O Espiritismo obriga (maio 1866).

– Comunicação providencial dos espíritos (fev. 1867).

– Comunicação coletiva (mar. 1867).

– Os adeuses (out. 1867).

– Os messias do Espiritismo e Apreciação da obra A Gênese (fev. 1868).

– Perseguições (ago. 1868).

– Sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos (dez. 1868).

● Obras Póstumas – Diálogo sobre a Revista Espírita na casa do sr. Dufaux, em 15/11/1857. Apesar de não ter sido identificado, certamente é o espírito São Luís, pela linguagem e a médium, Ermance Dufaux, da qual era o guia espiritual.

O ESPÍRITO DE VERDADE –Não sabemos sua identidade. Ele foi Sócrates ou Jesus? Há quem sustente que tenha sido Jesus. Existem pistas acerca de sua origem em O Livro dos Mé-diuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo e na Revista Espírita. Todas elas apontam para a identificação desse espírito como sendo Jesus de Nazaré. Todavia, há também sólidos argumen-tos contrários, baseados em análises interpretativas do evangelho de João.23 Normalmente, os 23 Os cristãos são unânimes em considerar o Espírito de Verdade, o Paracleto, o Consolador Prometido pelo Cristo como a

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espíritas de mentalidade mais religiosa são partidários da tese de que O Espírito de Verdade seja o Cristo. Outros acham mais admissível que ele e o Cristo sejam duas individualidades distintas.

Considerando a profecia evangélica, de que após a subida aos céus o Cristo iria enviar o Consolador Prometido para relembrar sua mensagem, ficaria estranho imaginá-lo enviando ele próprio, caso O Espírito de Verdade fosse mesmo o Cristo.24 Algo bastante confuso, im-provável, no entanto, essa ideia deve ter seduzido Allan Kardec como podemos observar nas referências que faz a ele. E além do mais, Kardec aderiu à tese das Três Revelações: Moisés, Cristo e o Espiritismo. A vinculação à tradição judaico-cristã é evidente. A tese de que O Es-pírito de Verdade é o próprio Cristo se encaixa perfeitamente nessa vinculação.

O primeiro a aceitar e divulgar tal tese foi o advogado de Bordéus, Jean-Baptiste Roustaing (1805-1879), autor da obra apócrifa Os Quatro Evangelhos (1866). Roustaing chama o Espiritismo de “terceira explosão da bondade divina”, em carta enviada a Kardec, publicada na Revista Espírita (jun. 1861). “Não temais nada! O Cristo (chamado por eles Es-pírito de Verdade), a Verdade é o primeiro e o mais santo missionário das ideias espíritas”. E completa: “Estas palavras me tocaram vivamente, e me perguntava: ‘Mas onde está, pois, o Cristo em missão sobre a Terra?’ A Verdade comanda, segundo a expressão do Espírito de Marius, bispo das primeiras idades da Igreja, essa falange de Espíritos enviados por Deus em missão sobre a Terra, para a propagação e o sucesso do Espiritismo.”

Indícios dessa tese podemos observar em O Livro dos Médiuns.25 E a suspeita de que O Espírito de Verdade seja o Cristo surge também em função da linguagem empregada. Ele usa termos típicos do discurso evangélico: “Venho, como outrora, entre os filhos desgarra-dos de Israel”; “não mistureis o joio ao bom grão”; “Eu sou o grande médico das almas”. Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, há passagens bem sugestivas:

“Amai e orai. Sede dóceis aos Espíritos do Senhor. Invocai-O do fundo do coração. Então,

Ele vos enviará o seu Filho bem-amado, para vos instruir e vos dizer estas boas palavras: Eis-me a-

qui; venho a vós, porque me chamastes!”

manifestação sobrenatural de Deus, através do Espírito Santo. Após a ressurreição, o Espírito Santo manifesta-se no Pente-costes, entre os apóstolos, na fase inicial do movimento cristão. O Cristo é o verbo que se fez carne. Enquanto que O Espírito de Verdade, sinônimo de Espírito Santo, foi enviado pelo próprio Cristo para restabelecer todas as coisas e relembrar a men-sagem do Reino. Ou seja, o Cristo e o Espírito de Verdade são distintos, apesar de, na teologia cristã, serem parte de uma mesma pessoa, de uma mesma substância na trindade divina, um autêntico “três-em-um”: Pai, Filho e Espírito Santo. 24 A profecia da vinda do Consolador (João 14:15-17 e 26) é analisada por Kardec em A Gênese (cap. XVII, itens 35 a 42): “Jesus dizendo: ‘Rogarei a meu pai e Ele vos enviará um outro Consolador’ indica claramente que este não é ele próprio; do contrário, teria dito: ‘Voltarei para completar o que vos tenho ensinado’. Após, ele junta: A fim de que ele demore eternamente convosco e ele estará em vós’. Isto aqui não seria possível entender de uma individualidade encarnada que não possa demo-rar eternamente conosco (...). O Consolador é, pois, no pensamento de Jesus, a personificação de uma doutrina soberana-mente consoladora onde o inspirador deva ser o Espírito Verdade.” Na visão de Kardec, o Espiritismo é esse Consolador anunciado por Jesus: “O Espiritismo realiza, como tem demonstrado, todas as condições do Consolador prometido por Jesus.” (item 40). 25 Quando Kardec tece críticas ao sistema uniespírita ou mono-espírita (‘crença de que um único espírito se comunica com os homens e que esse espírito é o Cristo, protetor da Terra’), como critério para a análise da identidade na comunicação espírita, ele argumenta: “com que fim o Espírito da Verdade viria nos enganar sob falsas aparências, abusar de uma pobre mãe ao fingir-se o filho por ela chorado. A razão se recusa a admitir que o Espírito mais santo de todos venha a representar semelhante comédia.” (O Livro dos Médiuns, cap. IV, item 48, grifo meu).

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“Vinde (...) a mim, todos vós que sofreis e que estais carregados, e sereis aliviados e consola-

dos. Não procureis alhures a força e a consolação, porque o mundo é impotente para dá-las. Deus dirige

aos vossos corações um apelo supremo, através do Espiritismo: escutai-o.”26

Na Revista Espírita (dez. 1864), na mensagem A Propósito da Imitação do Evangelho, O Espírito de Verdade afirma que “há dezoito séculos, por ordem de meu Pai, vim trazer a palavra de Deus aos homens de boa vontade”. Na mesma mensagem também afirma: “Há muitas moradas na casa de meu Pai, disse-lhes eu há dezoito séculos. O Espiritismo veio tornar compreensíveis estas palavras”. (Grifo meu). Na observação a essa mensagem, Allan Kardec, como sempre, é bem prudente:

“Sabe-se que não levamos em consideração o nome dos seres que se comunicam, sobre-

tudo os que se apresentam sob nomes venerandos. Não garantimos mais esta assinatura do que

muitas outras, limitando-nos a entregar esta comunicação à apreciação de todo espírita esclarecido.

(...) Para nós, dizemos que pode ser do Espírito de Verdade, porque é digna dele, enquanto temos vis-

to massas assinadas por este nome venerado ou o de Jesus, cuja prolixidade, verborragia, vulgaridade,

por vezes mesmo a trivialidade das ideias, traem a origem apócrifa aos olhos dos menos clarividentes.

Só uma fascinação completa pode explicar a cegueira dos que se deixam apanhar, quando não, tam-

bém, o orgulho de julgar-se infalível e intérprete privilegiado dos Espíritos puros, orgulho sempre

punido, mais cedo ou mais tarde, pelas decepções, mistificações ridículas e por desgraças reais nesta

vida. À vista desses nomes venerados, o primeiro sentimento do médium modesto é o da dúvida, por-

que não se julga digno de tal favor.” (Grifo meu).27

Além da linguagem evangélica e das referências a si mesmo, tem uma mensagem as-sinada pelo Espírito de Verdade n’O Evangelho Segundo o Espiritismo, intitulada Advento do Espírito de Verdade, muito semelhante a outra publicada em O Livro dos Médiuns, mas assinada por Jesus de Nazaré.28 São poucas as diferenças de redação. Será que foi intencio-nal? Foi erro de revisão, lapso de Kardec?

Em Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas (1858), Kardec revela que O Espírito de Verdade teria sido um conhecido filósofo da Antiguidade. E mais, seu nome teria o S como inicial.29 O que inevitavelmente nos faz reportar a Sócrates, a quem Kardec imagi-nava ser o seu guia espiritual.30Esse espírito, que também se identificava como A Verdade, 26 Allan KARDEC, O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. VI, pág. 104. (Grifo meu). 27 Allan KARDEC, Revista Espírita (dez. 1864), pág. 535. 28 A mensagem assinada por Jesus de Nazaré pode ser conferida no cap. XXXI, item IX de O Livro dos Médiuns. E a que foi repu-blicada, assinada pelo Espírito de Verdade, está n’O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. VI, Instruções dos Espíritos, item 5. 29 O Espírito de Verdade é mencionado por Kardec, pela primeira vez, no Instruções Práticas: “Tendo eu interrogado esse Espírito, ele se deu a conhecer sob um nome alegórico (eu soube depois, por outros Espíritos, que fora o de um ilustre filósofo da antiguidade).” (Manifestações Espontâneas, pág. 228). A referência como S. para identificá-lo está no diálogo intitulado Meu Espírito Protetor, entre Kardec e o espírito Zéfiro (que assinava Z.), em 11 de dezembro de 1855, na casa do sr. Baudin:

“P. – Quando, há algum tempo, evocamos S... e lhe perguntamos se ele poderia ser o Espírito protetor de um de nós, ele respondeu: ‘Se um de vós se mostrar digno, eu com ele estarei. Z. vô-lo dirá.’ Julgas-me digno desse favor?

R. – Se o quiseres.”

Nesse mesmo diálogo, o espírito Zéfiro ou Zéphyr, apelidado de Roc pela mãe das irmãs Baudin, revela que O Espírito de Verdade, quando viveu na Terra, foi “um homem justo e sábio”. (Obras Póstumas - Minha Primeira Iniciação no Espiri-tismo, pág. 223). 30 Com inicial S também temos os filósofos Sêneca, Simplício e Skoitenós (cognome de Heráclito), nenhum deles tão célebre quanto Sócrates.

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evitou identificar-se ao ser questionado. E exigiu discrição: “Já te disse que, para ti, sou a Verdade; isto, para ti, quer dizer discrição; nada mais saberás a respeito.” (Obras Póstumas - A Minha Primeira Iniciação no Espiritismo - LAKE). Provavelmente, Kardec nunca soube, com certeza, quem realmente foi ele.

Como vimos, de início Rivail pensava que O Espírito de Verdade fosse um filósofo da Antiguidade. Ele revela isto a partir de informações dos espíritos em Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas. O fundador do espiritismo, inclusive, imaginava, bem antes do lançamento de O Livro dos Espíritos, que Sócrates fosse seu guia espiritual.31Des-cobriu, posteriormente, que seu guia espiritual era O Espírito de Verdade, conforme este mesmo lhe revelou. E no segundo Prolegômenos, o espírito de Sócrates e O Espírito de Verdade são também subscritores, portanto, duas individualidades distintas.

A adesão à tese de que O Espírito de Verdade e Jesus são uma e a mesma pessoa certamente surgiu em 1863, durante a elaboração de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Segundo o próprio Kardec, ele trabalhou nessa obra à surdina. O editor Didier somente ficou sabendo dela quando Kardec mostrou-lhe os originais no início de 1864, sob o título inicial de Imitação do Evangelho. Apesar do Mestre de Lyon nunca ter feito nenhuma de-claração explícita quanto à identidade desse espírito, tudo leva a crer que ele considerava plausível a hipótese de que ele fosse Jesus, principalmente em função do teor das mensa-gens desse espírito publicadas n’O Evangelho.

Provavelmente, Kardec mudou de opinião pouco antes de desencarnar. Ele deixou de lado a extrema modéstia ao se colocar como o fundador da teoria espírita, contrariando tudo o que havia dito a respeito. E no estudo que faz sobre a natureza de Jesus, em nenhum mo-mento faz referência ao Espírito de Verdade, como podemos observar em Obras Póstumas. Em nosso entender, Jesus e O Espírito de Verdade são duas individualidades distintas. Quanto à verdadeira identidade desse espírito, é uma incógnita.

Mas convenhamos, essa é uma questão bizantina, dispensável. Causa divergências desnecessárias. As especulações em torno da identidade d’O Espírito de Verdade não alte-ram em nada a estrutura doutrinária do espiritismo. O que importa é a função destacada que ele teve, como coordenador no mundo extrafísico de todo o processo de intercâmbio dos espíritos com a humanidade, muito bem representada na pessoa de Allan Kardec, no processo de estruturação do espiritismo.

NA KARDEQUIANA –O Espírito de Verdade é um dos espíritos mais citados, com vá-rias referências. Proferiu diversas dissertações na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. O espírito Erasto, discípulo de São Paulo quando encarnado, nas duas epístolas aos espíritas de Lyon e de Bordéus, refere-se a ele como “nosso bem-amado mestre” e “mestre de todos nós”. (Revista Espírita, out/nov. 1861). O espírito de Hahnemann considerava-o como o espírito “que dirige este globo”. (Revista Espírita, jan. 1864). Provavelmente, inspirados na

31 Ver O Livro dos Espíritos e sua Tradição Histórica e Lendária, de Silvino Canuto ABREU, cap. 5.

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visão de Roustaing, Hahnemann e do próprio Kardec, muitos espíritas acreditam piamente que o Cristo seja o governador do planeta.32

Seria enfadonho expor todas as referências a esse espírito, cuja contribuição para ser totalmente abarcada demandaria, no mínimo, um livro, uma obra à parte. Enumeramos, a se-guir, apenas citações das mensagens por ele assinadas, em toda a Kardequiana:

● O Livro dos Espíritos (2ª edição, 1860) – Prolegômenos. ● O Livro dos Médiuns – Cap. XXVII, item 7 e cap. XXXI, item XV. ● O Evangelho Segundo o Espiritismo – Prefácio; cap. VI, quatro mensagens e

cap. XX, Os Obreiros do Senhor. ● Revista Espírita

– Conselhos (abril 1860). – Mensagem citada por Allan Kardec no seu discurso aos espíritas de Bordéus. (nov. 1861). – Comunicação sobre o sr. Jobard, como A Verdade (mar. 1862); mensagem OsObreiros do Senhor, republicada em O Evangelho Segundo o Espiritismo. – A Telha (jul. 1862). – A Propósito da Imitação do Evangelho (dez. 1864).

● Obras Póstumas – A Minha Primeira Iniciação no Espiritismo: Meu Guia Espiritual,

25/03/1856; Diálogo na casa do sr. Baudin, 9/04/1856; Acontecimentos, 12/05/1856; Minha Missão, 12/06/1856; O Livro dos Espíritos, 17/06/1856; Duração dos meus tra-balhos, 24/01/1860; Minha volta, 10/06/1860; Auto de Fé em Barcelona, 21/09/1861.

SÓCRATES – O mais célebre e ilustre membro da equipe d’O Es-pírito da Verdade, cuja presença, ao lado de Platão, representa a tradição filosófica grega no processo de construção do espiritismo. Ambos, se-gundo Allan Kardec, foram precursores da filosofia espírita.33 Como Jesus, nada escreveu. Preferia perambular pela ágora, o centro comercial da antiga Atenas, debatendo filosofia com os cidadãos, escravos e estran-geiros. O que sabemos do pensamento de Sócrates (469 a.C. - 399 a.C.) vem principalmente do filósofo Platão, seu discípulo mais emérito.

A formação educacional de Sócrates não foi diferente da de outros cidadãos gregos. Deve ter conhecido Homero, Hesíodo, prati-cado ginástica, adquirido noções de luta e defesa pessoal, e aprendido a venerar os mitos e os deuses. De início, seguiu a profissão de seu 32N’O Evangelho Segundo o Espiritismo (capítulo I, Não Vim Destruir a Lei), Kardec comenta a passagem evangélica sobre a lei e os profetas: “Da mesma maneira que disse o Cristo: ‘Eu não venho destruir a lei, mas dar-lhe cumprimento’, também diz o Espiri-tismo: ‘Eu não venho destruir a lei cristã, mas dar-lhe cumprimento’. Ele nada ensina contrário ao ensinamento do Cristo, mas o desenvolve, completa e explica, em termos claros para todos, o que foi dito sob forma alegórica. Ele vem cumprir, na época predi-ta, o que o Cristo anunciou, e preparar o cumprimento das coisas futuras. Ele é, portanto, obra do Cristo, que o preside, assim como preside ao que igualmente anunciou: a regeneração que se opera e que prepara o Reino de Deus sobre a terra.” (item 7). 33 Allan Kardec: “se Sócrates e Platão pressentiram as ideias cristãs, encontram-se igualmente na sua doutrina os princípios fundamentais do Espiritismo.” (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, item IV - Sócrates e Platão, Precursores da Doutrina Cristã e do Espiritismo).

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pai: escultor. Casou com Xantipas, mulher irascível e explosiva, com quem teve três filhos. Destacou-se por bravura na Guerra do Peloponeso, contra Esparta, mas nunca deixou de ser o que sempre foi, um filósofo, certamente o maior e mais carismático de todos os tempos.

Sócrates foi aluno de Anaxágoras, pensador jônico que trouxe a filosofia para Ate-nas. Conheceu Parmênides pessoalmente. Na juventude, teve Crítias como professor. Herá-clito e o grande sofista Protágoras também influenciaram seu pensamento. Desenvolveu um método de reflexão denominado dialética, eternizado nos diálogos de Platão. Inspirado na profissão de sua mãe, que era parteira, chamou de maiêutica (ciência ou arte do parto) a busca da verdade, segundo a máxima “conhece-te a ti mesmo”, que viu inscrita no templo do Oráculo de Delfos, adotando-a como base de seu pensamento. É considerado o fundador da filosofia e da pedagogia grega. Segundo o filólogo alemão Werner Jaeger, “Sócrates é o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do Ocidente”.34

A vitória da Grécia sobre os persas, nas chamadas Guerras Médicas, inaugurou um pe-ríodo áureo do ponto de vista político e cultural, a era de Péricles, que também foi aluno de Anaxágoras. Atenas era a cidade-estado mais importante, a mais desenvolvida e civilizada, provavelmente a mais bela de seu tempo, devido à arquitetura, ao urbanismo e à escultura, tanto quanto ao teatro, com o aprimoramento da poesia e da tragédia gregas. Nesse período, a democracia ateniense se consolida. É nesse contexto que Sócrates emerge como um pensador polêmico e inovador.

Sócrates desenvolveu sua atividade como filósofo numa época em que o mito era dominante na Grécia. Ele contrapôs o logos ao mito, o pensamento racional, abstrato em oposição ao pensamento mítico, mágico, concreto. Combateu o relativismo dos sofistas, os quais considerava uma espécie de “vendilhões da filosofia”.

A finalidade da filosofia, segundo Sócrates, era tornar as pessoas felizes. Partia do princípio de que todo ser humano tem uma alma, o verdadeiro eu de um indivíduo, cuja transformação moral pelo desenvolvimento das virtudes, lhe aproximaria de Deus. Para o filósofo, a virtude não pode ser ensinada, pois ela surge como um dom de Deus à criatura.

Tornou-se bastante popular entre os jovens atenienses, provocando a ira dos podero-sos de seu tempo. Sempre sob a orientação do “daimon” (demônio), seu guia espiritual, Só-crates enfrentou com argúcia e serenidade seus inimigos. Submeteu-se à lei grega sem pro-testar. Foi condenado a beber cicuta (veneno) devido às injustas acusações de desrespeito aos deuses, por ter introduzido novas divindades, corrompendo assim a juventude ateniense. Desencarnou cercado pelos discípulos, demonstrando que, como filósofo, não tinha medo da morte e estava plenamente preparado para morrer.

Na visão de Werner Jaeger, “Sócrates torna-se o guia de todo o Iluminismo e de toda a filosofia moderna; o apóstolo da liberdade moral, separado de todo dogma e de toda tradi-ção, sem outro governo além daquele da sua própria pessoa e obediente apenas aos ditames da voz interior da sua consciência; o evangelista da nova religião terrena e de um conceito 34 Werner JAEGER, A Formação do Homem Grego, pág. 512.

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de bem-aventurança atingível nesta vida mercê da força interior do homem e baseada, não na graça, mas na incessante tendência ao aperfeiçoamento do nosso próprio ser.” 35

NA KARDEQUIANA – Sócrates, segundo Allan Kardec, é um dos espíritos que estava mais preparado e “mais apto do que outros” a compreender os sublimes ensinos de Jesus de Nazaré, podendo assim “participar hoje da grande plêiade de Espíritos encarregados de vir ensinar aos homens as mesmas verdades.” 36

● O Livro dos Espíritos (1857 - 1ª edição) – Nota XVII.

● O Livro dos Espíritos (1860 - 2ª edição) – Prolegômenos.

● O Livro dos Médiuns – Cap. XVI, itens 186, 187, 197 e 198.

● O Evangelho Segundo o Espiritismo – Introdução.

● Revista Espírita

– A fantasia, comentário (jun. 1860). – A ingratidão (mar. 1861). – Comunicação coletiva (mar. 1867).

PLATÃO – Muitos estudiosos consideram Platão (428-7 - 348-7 a.C.) como o maior filósofo da Antiguidade. Sem dúvida, é o mais citado, tanto pelas respostas às questões que abordou quanto pelo fato de ter registrado seu pensamento em textos, o que faz dele o primeiro filósofo-escritor. Na juventude, destacou-se como grande atleta, famoso por seus feitos em competições olímpicas. Devido ao porte atlético, os ombros e testa largos, recebeu o apelido de Platão (largo, plano). Seu nome era Arístocles, nascido em Atenas, na ilha de Egina, em uma família de políticos consagrados. Seu pai, Aristo, era descendente do último rei ateniense, Codro, e sua mãe tinha parentesco com o grande legislador grego Sólon. Cresceu, portanto, em um ambiente político, fato que iria influenciar decisi-vamente suas futuras reflexões no campo da ética e da política.

Antes de tomar contato com Sócrates, por volta dos 20 anos de idade, Platão recebeu ensinamentos de Crátilo, discípulo de Heráclito. Foi bastante influenciado pelo filósofo e ma-temático grego Pitágoras. Segundo a tradição, escreveu tragédias na juventude, mas as queimou depois que passou a se dedicar à investigação filosófica no grupo de discípulos de Sócrates. Essa experiência como dramaturgo Platão colocou a serviço da filosofia, na escritura dos diálo-gos. Toda sua obra, 36 diálogos divididos em nove tetralogias, chegou até nós, fato raro em se tratando de um filósofo da Antiguidade.

A cronologia e a autenticidade são os maiores desafios dos filósofos especialistas no estudo de sua obra. Em alguns momentos, é bastante difícil separar seu pensamento do de Sócrates, que aparece como personagem central em muitos diálogos. Depois da morte do mes-

35 Idem, pág. 493. 36 Allan KARDEC, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução - item XI.

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tre Sócrates, Platão funda a Academia, a primeira instituição filosófica da Grécia, adquirindo grande prestígio e atraindo homens sérios, muitos jovens e pessoas ávidas de conhecimento. Após várias tentativas frustradas de influenciar eticamente políticos de seu tempo, dedica-se ao seu trabalho como filósofo, na Academia.

Formulou a primeira utopia da história, A República, a cidade-estado perfeita, com a fi-nalidade de reconstrução de uma Grécia derrotada por Esparta, devastada pela intriga, a corrup-ção, responsável pela morte do “mais sábio e o mais justo dos homens”. Nesta obra ele formula o célebre Mito da Caverna, que representa a possibilidade de se libertar da escuridão do mundo sensível em busca da luz no mundo das ideias.

O pensamento platônico possui muitas afinidades com a filosofia espírita. Platão pro-pôs na Teoria das Ideias, uma realidade suprafísica, o mundo das ideias, que antecede o mun-do sensível, físico, um reflexo daquele, simples aparência. Admitia, como Sócrates, a existên-cia da alma imortal e do corpo, de um Deus-artífice, o Demiurgo. Na obtenção do conheci-mento desenvolveu a tese das reminiscências, em que o ser se recorda daquilo que conhecia no mundo das ideias, antes de nascer. A reencarnação é também outro conceito desenvolvido por Platão, resquício do pensamento mítico pitagórico, segundo os especialistas.

No texto As Aristocracias, Allan Kardec mostra sua concepção de poder, utópica, ba-seada nos princípios espíritas, ao privilegiar a aristocracia intelecto-moral como aquela dotada de plenas condições para governar, por ser animada, além da inteligência, pelos sentimentos de justiça e caridade. As outras aristocracias, a dos patriarcas, da força bruta, do nascimento, do dinheiro e da inteligência refletem a condição moral e evolutiva do planeta, ainda muito aquém de oferecer à sociedade uma forma justa e caridosa de exercício do poder.

Aristocracia vem do grego aristokratía e significa o governo, o poder dos melhores, uma forma de organização política em que o poder é exercido por uma elite, uma minoria dominante. Nessa concepção de Allan Kardec, observamos a nítida influência da República, de Platão. Para o filósofo grego, a aristocracia se fundamenta no saber e na virtude, cabendo aos sábios, aos filósofos a direção do Estado em direção ao bem comum. Ideia semelhante é desenvolvida por Allan Kardec, que considera o espiritismo “como um dos mais fortes pre-cursores da aristocracia do futuro, isto é, da aristocracia intelecto-moral.” 37

O filósofo espírita Herculano Pires sintetiza de modo esclarecedor o papel que a Re-pública de Platão teria no exercício do poder: “é o inverso da falsa democracia ateniense, em que prevalecem as paixões e os apetites das almas inferiores. Nela [na República], os homens deverão ser educados para o exercício da razão, e somente os que mais desenvolve-rem a alma racional assumirão os postos dirigentes. E a República Filosófica, o reino do saber, o domínio luminoso do Bem e da Justiça, onde a Educação e a Política serão meios de salvaguarda da natureza humana, em vez de instrumentos de sua corrupção contínua. A polis ideal, e por isso mesmo a única verdadeira, natural, não corrompida.” 38

Platão desencarnou dormindo, durante uma festa na Academia, aos 81 anos. Seu pen-samento, na forma do neoplatonismo medieval, foi a base filosófica da Escolástica. A Cidade

37 Allan KARDEC, Obras Póstumas, 1ª parte, pág. 194. 38 José Herculano PIRES, Os Filósofos, Platão e Aristóteles, pág. 111.

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de Deus, de Santo Agostinho, não deixa de ser um genérico, uma interpretação cristã da Re-pública. Suas ideias atravessaram os séculos, permanecem atuais e influentes, eternizando-o como um dos maiores filósofos de todos os tempos.

NA KARDEQUIANA –Platão é bastante citado, principalmente na Revista Espírita. N’O Livro dos Espíritos assina uma contundente mensagem sobre o que ele denominou de “guer-ras de palavras”, em relação à interpretação das penas eternas.

● O Livro dos Espíritos (1860 - 2ª edição) – Prolegômenos e questão 1009.

● O Evangelho Segundo o Espiritismo – Introdução.

● Revista Espírita

– Platão: Doutrina da Escolha das Provas (set. 1858). – Filosofia (abril 1860). – Comunicação coletiva (mar. 1867).

FÉNELON –Um mestre na arte de escrever. Esse era Fénelon, com seu estilo suave, agradável, extremamente elegante, conciso e sempre inspirado nos grandes autores clássicos. Até hoje sua obra é reeditada e estudada na França, em todo o mundo, como exemplo para aqueles que desejam aprender as regras da escritura. A candura e a benevolência dos textos desse espírito na Kardequiana encantam qual-quer leitor, do mais exigente ao menos preparado intelectualmente.

Filósofo, escritor, teólogo, poeta, grande pedagogo, orador vibrante e eloquente, o Duque de Fénelon (1651-1715) reencarnou em Périgord, França, no Chateau de Fénelon, castelo da família, vem daí o pseudônimo. Seu nome verdadeiro era François de Salignac de La Mothe. Até os doze anos foi educado em casa por um preceptor desconhecido. Aprendeu grego, latim, acessou os clássicos da litera-tura. Seguiu a carreira eclesiástica, estudou filosofia e teologia. Atingiu altos postos na hierar-quia católica, tornando-se prelado, título equivalente ao de bispo.

Sua primeira obra, Tratado de Educação das Moças (1687), foi muito bem recebida pelos meios intelectuais e eclesiásticos. Encomendada pela duquesa de Beauviller para a edu-cação de suas filhas, o livro é fruto de sua experiência como educador de moças protestantes, recém-convertidas ao catolicismo. Fénelon é considerado um dos pioneiros da educação femi-nina. A qualidade da publicação das obras posteriores garantiu-lhe uma cadeira na Academia Francesa de Letras. Tornou-se uma celebridade.

Sua obra mais famosa, As Aventuras de Telêmaco (1699)39, escrita quando era o preceptor do filho de Luís XIV, colocou-o em maus lençóis quando o “Rei Sol” percebeu que muitas ideias ali contidas eram contrárias a ele e ao seu reinado. Não bastasse isso,

39 Allan Kardec era grande admirador da obra de Fénelon. Além de verter o célebre livro para o alemão, citou várias passa-gens dele em O Céu e o Inferno (cap. IV, O Inferno, item 9). As Aventuras de Telêmaco foi um livro pioneiro no campo da literatura infantil.

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entrou em conflito com a Igreja devido à adesão ao quietismo,40 ideologia considerada herética que adotou a partir do contato com Madame Guyon, adepta das ideias do teólogo e místico espanhol Miguel de Molinos. Os dirigentes da Igreja já não estavam muito satis-feitos com o conteúdo de suas ideias e a sua exagerada tolerância para com os protestantes “hereges”. O quietismo foi a gota d’água para o seu banimento, político e religioso, o que lhe rendeu um conflito aberto com o bispo Jacques-Bénigne Bossuet, homem conservador, culto, de muito prestígio na Igreja e na corte. O resultado foi a exclusão, a perda de seus direitos como clérigo e o ostracismo. Mesmo assim, não deixou de escrever e de publicar seus livros.

É considerado um dos pioneiros no emprego da literatura na educação infantil. Cu-riosamente, assumiu uma posição considerada hoje conservadora em meio aos movimen-tos literários de seu tempo. Na chamada Querela Entre Antigos e Modernos (Querelle des Anciens et des Modernes), entre os ancies (antigos) e os modernes (modernos), Fénelon manteve-se firme ao lado dos antigos, ou seja, daqueles que cultuavam a estética clássica, greco-romana, helênica e latina. Esse conflito estético, entre correntes de pensamento lite-rário divergentes, iniciou-se no final do século 17 e permaneceu vivo por todo o século 18. Os modernos, liderados por Charles Pernault, achavam que a estética contemporânea era autossuficiente e não precisava se inspirar nos clássicos. Pernault é hoje considerado o Pai da Literatura Infantil.

Fénelon escreveu uma interessante obra intitulada Tratado da Existência e dos Atributos de Deus (1705),41 onde procura demonstrar a existência de Deus com uma argumentação bem embasada. Também publicou os seguintes títulos: Diálogo dos Mortos (1700), Fábulas (1712), Diálogos sobre a Eloquência (1718), Exame da Consciência de um Rei (1734), dentre outros. Pode-se dizer que Fénelon foi um grande humanista, quase inigualável em seu estilo literário. Desencarnou aos 63 anos.

Depois da desencarnação de Allan Kardec, o espírito Fénelon, além da SPEE, conti-nuou a se comunicar em Bordéus, no grupo da médium Madame W. Krell, que se tornou fa-mosa por ter recebido a conhecida prece de Cáritas. 42

NA KARDEQUIANA – As mensagens morais do espírito Fénelon dão um colorido especi-al na exposição dos fundamentos da ética espírita. Tanto n’O Livro dos Espíritos, como em O Evangelho Segundo o Espiritismo, o que vemos é a caridade e a benevolência, a delicadeza e

40 O quietismo, doutrina teológica e metafísica, foi desenvolvida pelo teólogo espanhol Miguel de Molinos (1628-1696), conside-rada herética pela Igreja. Teve bastante influência na Itália e na França, graças à adesão de Madame Guyon e Fénelon. Am-bos trocavam correspondência. Guyon era a melhor amiga da esposa de Luís XIV. Essa doutrina se caracteriza pela busca da quietude da alma a partir da passividade interior, da contemplação e da presença direta de Deus na vida do crente através da graça divina, sem palavras, sem aparatos, sem sacramentos ou orações, mas somente através do amor a Deus e da medita-ção. Obviamente que a Igreja, com toda a sua estrutura formal e sacerdotal, não iria aceitar tal doutrina, que teve bastante influência entre os quackers e os pietistas, nas colônias norte-americanas. 41Certamente, Allan Kardec que foi tradutor de Fénelon, leu esse livro, bem como a Ética, de Espinosa, obras que também serviram como referência na elaboração do primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos. 42 Essa famosa prece foi publicada no livro Rayonnements de la Vie spirituelle - Science et Morale de la Philosophie Spirite (1876). Nessa obra, podemos encontrar algumas mensagens do espírito Fénelon. A editora Camille Flammarion publicou-a no Brasil com o título Irradiações da Vida Espiritual.

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o carinho junto com a precisão, em suas comunicações.43 A equipe d’O Espírito de Verdade, com ele, ficou ainda mais iluminada.

● O Livro dos Espíritos (1857 - 1ª edição) – Nota XVII. ● O Livro dos Espíritos (1860 - 2ª edição) – Prolegômenos e questão 917. ● O Livro dos Médiuns – Prolegômenos e questão 917. ● O Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. I, item 10; cap. V, itens 22 e 23; cap. XI, item 9; cap. XII, item 10; cap. XVI, item 13. ● Revista Espírita – A imortalidade (abril 1860). – A prece (jul. 1861). – Se fosse um homem de bem teria morrido (out. 1861), publicada em

O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V, item 22. – Comunicação no Círculo Espírita de Tours (fev. 1863). – Comunicação na Sociedade Espírita de Antuérpia (jan. 1865). – Comunicação coletiva (mar. 1867). – Os messias do Espiritismo (fev. 1868).

FRANKLIN – Da equipe que assina o Prolegômenos, o espírito de Benjamin Franklin (1706-1790) é o único cientista. Ao seu lado, outros espíritos como Galileu e Pascal, dentre outros, compuseram o que poderí-amos denominar de Falange ou Segmento dos Cientistas na equipe d’O Espírito de Verdade. Benjamin Franklin foi um autêntico polímata, o “homem dos sete instrumentos”. Interessou-se por diversas áreas do saber. Autodidata, sem formação acadêmica, não foi propriamente um cientista, mas era um homem de ciência. Filósofo, escritor, gráfico, político, diplo-mata, inventor, abolicionista, filantropo, jornalista, editor, grande enxa-drista etc., Franklin é uma das grandes glórias da cultura norte-americana.

Mais conhecido como o inventor do para-raios, Benjamin Fran-klin também inventou o óculos bifocal, um aquecedor que levou seu nome, o cateter flexível, um instrumento musical denominado glass harmonica (harmônica de vidro) e reformulou, com suas observações minuciosas, as previsões meteorológicas. O corpo de bombeiros também foi criação sua. Instalou a primeira biblioteca pública nos Estados Unidos e fundou a Universidade da Pensilvânia. Muitos de seus inventos não foram patenteados, por considerar que eram de domínio público. Em vida, tornou-se uma celebridade mundial, reve-renciado pela sua enorme cultura, a benevolência e suas invenções.

Benjamin Franklin provou, com a famosa experiência da pipa de papel (1752), em-pinada por um fio de metal preso a uma chave metálica, que o raio, o relâmpago é apenas um fenômeno elétrico, uma supercarga elétrica. Fato curioso foi a ridícula resistência da 43 Estimulado pelo resultado de suas pesquisas sobre a reencarnação, desde o lançamento de A Memória e o Tempo (Edicel, 1981), o escritor espírita Hermínio Corrêa de Miranda lançou o livro As Sete Vidas de Fénelon (Lachâtre, 1998), onde analisa as várias reencarnações desse espírito. O autor baseou-se em comunicações mediúnicas e em estudos sobre regressão da memória. Segundo Miranda, o espírito Fénelon reencarnou como o filósofo e teólogo suíço Johann Lavater (1741-1801), em uma de suas existências.

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Igreja, que condenou na época suas experiências, por considerar o relâmpago como a ex-pressão da “fúria divina”, algo que o homem não deveria se imiscuir. A Igreja somente dei-xou o inventor em paz em 1769, em função da “força das coisas”, como diriam os espíritos, quando um raio atingiu uma igreja próxima de Veneza, na Itália, matando centenas de pes-soas. Hoje, qualquer torre de igreja tem um para-raios.

Na Revolução Americana de 1776, teve destacada atuação como um de seus ideólogos e articuladores. Assinou e ajudou a redigir a Declaração da Independência dos Estados Uni-dos, junto com Thomas Jefferson. Foi aprovada em 4 de julho, fato que foi somente reconhe-cido pelo Reino Unido sete anos depois, com o Tratado de Paris, pondo fim à Guerra dos Sete Anos, vencida pelos colonos norte-americanos. O apoio material e logístico da França, obtido pela atuação diplomática de Franklin, foi decisivo para a vitória contra os ingleses. O tratado, assinado em 3 de setembro de 1783, teve Benjamim Franklin como um dos representantes norte-americanos, ao lado de John Adams e John Jay.

Benjamin Franklin foi o primeiro cidadão estadunidense, o primeiro americano da história, um dos pais fundadores dos Estados Unidos. Toda sua atuação política foi pautada pelo humanismo e o reto pensar, demonstrando que era um lídimo representante do ilumi-nismo, por sua paixão pela liberdade e o bem-estar social. Além de extremamente culto, era um homem muito bondoso, um filantropo, no verdadeiro sentido dessa palavra. Abolicionis-ta radical, para ele, a escravidão era um comércio “pestilento e detestável”.

Seu livro inacabado, Autobiografia de Benjamin Franklin, é um exemplo de que a litera-tura de autoajuda pode ter alguma utilidade quando bem elaborada. Quando estava na Inglater-ra, Franklin escreveu a primeira parte dirigida a seu filho, em forma de memórias. A segunda parte não pôde ser concluída em função de sua ativa participação na Revolução Americana. Nesta obra, um misto de memórias, apontamentos pessoais e aconselhamentos éticos, Franklin enumera 13 preceitos morais que procurou seguir desde os 26 anos: “não comer em demasia e não beber até se embriagar”, “não tolerar sujeira no corpo, na roupa ou na habitação”, “não per-der tempo, permanecendo sempre ocupado com algo útil, eliminando assim todas as tarefas desnecessárias”, “não dizer nada além daquilo que beneficie outros ou você mesmo; evite con-versas tolas” etc. Seu 13º preceito intitulou de Humildade: “imite Jesus Cristo e Sócrates”. 44

Apesar de sua formação calvinista, Franklin era deísta, maçom, também vinculado à Rosacruz, um indivíduo de mentalidade laica e secular. Algumas fontes afirmam que quando ele esteve na França, como emissário dos Estados Unidos, foi instruído pelo místi-co e lendário conde de Saint-Germain. Lá, estudou o ocultismo e o magnetismo. Apesar de seu nome estar historicamente associado à Rosacruz, Franklin é mais conhecido como uma das primeiras personalidades norte-americanas da Maçonaria. Foi membro da primei-ra loja estabelecida no estado da Filadélfia, em 1730, onde tornou-se grão-mestre e tam-bém da franco-maçonaria, quando residiu na França. Teve atuação destacada na célebre loja franco-maçônica Des Neufs Soeurs, de Paris.45

44 John BIGELOW, Autobiography of Benjamin Franklin, pág. 216. 45Grandes Mestres do Espírito, Planeta Especial, pág. 157.

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NA KARDEQUIANA – O espírito Benjamin Franklin, que se identificava como Fran-klin, teve atuação aparentemente discreta, em comparação com outros espíritos que assinam o Prolegômenos.

● O Livro dos Espíritos (1857 - 1ª edição) – Nota XVII. ● O Livro dos Espíritos (1860 - 2ª edição) – Prolegômenos. ● O Livro dos Médiuns – Citado no cap. II, item 15. ● Revista Espírita – Citado no artigo Uma Questão de Prioridade a Respeito do Espiritismo, sobre

as Irmãs Fox. (dez. 1858). – Citado no artigo Os Milagres (out. 1859). – Manifestações Americanas (ago. 1861).

SWEDENBORG – “É o primeiro explorador do outro mundo, o explo-rador que devemos levar a sério”,46 afirmou o grande escritor argentino Jorge Luís Borges, grande admirador de Swedenborg, cuja vida dividiu em exatos três períodos. No primeiro período, temos o presbítero estudioso, no segundo, o engenheiro de minas e espírito empreendedor e no terceiro, o teólogo, voltado para especulações metafísicas e teológicas, segundo suas observações como testemunha ocular do mundo dos espíritos. A exemplo de Benjamin Franklin, era polímata, dominava várias áreas do saber. “Nun-ca se viu tamanho amontoado de conhecimentos”, afirmou o escritor e espi-ritualista inglês Arthur Conan Doyle, célebre autor de Sherlock Holmes. 47

Emanuel Swedenborg reencarnou em Estocolmo, Suécia, em 29 de janeiro de 1688 e desencarnou em Londres, a 29 de março de 1772. Era filho do dr. Jesper Swedberg, bispo luterano, pregador na corte do rei Charles XI, decano e professor de Teologia em Upsala. Sua mãe, Sarah Behm, era filha de Albrecht Behm, assessor no Colégio Real de Minas. O pai, zeloso pela educação do filho, coloca-o na Universidade de Upsala, onde obtém a cátedra de Matemática. Nesta fase, dedica-se com muito entusiasmo ao estudo da matemática e das ciências físicas. Aprende anatomia, zoologia, fitologia e diversos idiomas, tornando-se poliglota. Em 1709, obtém o grau de Doutor de Filosofia. Em seguida, parte numa turnê de cinco anos por vários países da Europa, a fim de aprimo-rar seus conhecimentos técnicos e científicos. Forma-se engenheiro de minas, tornando-se uma autoridade em geologia, mineralogia e hidráulica.

Depois que o dr. Jesper desencarnou, graças aos serviços prestados por ele à corte, a família recebe um título de nobreza da rainha Ulrica Leonora, passando a assumir o sobreno-me de Swedenborg, fato que permitiu a Emanuel ocupar uma cadeira no parlamento sueco, por ser o filho mais velho.

Homem prático e dinâmico, como engenheiro militar assessorou os empreendimen-tos bélicos do rei Carlos XII. Exerceu o cargo de Assessor do Conselho Real de Mineração, 46 Jorge Luís BORGES, Borges Oral, Swedenborg. 47 Arthur Conan DOYLE, História do Espiritismo, cap. I, pág. 34.

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tendo coordenado todo o processo de mineralogia do país. Swedenborg destacou-se em di-versas áreas do conhecimento. Projetou e construiu um maquinário para transportar navios por terra. Elaborou desenhos de máquinas submarinas e aéreas, antecipando a invenção do avião e do submarino. Antecipou também várias teorias como a hipótese nebular sobre a origem do Universo, de Kant,48 e Laplace; a teoria atômica, a teoria ondulatória e hipóteses sobre a mente, bem antes de Freud conceber o inconsciente.

Depois de muito viajar e de serviços prestados ao seu país, decide morar em Londres, Inglaterra, onde especializa-se em diversos ofícios: carpintaria, marmoraria, tipografia, relojo-aria, ourivesaria. Torna-se ebanista (marceneiro) e lutier, além de excelente organista. Até os 55 anos, já havia escrito quase 30 livros sobre geometria, álgebra, filosofia, mineralogia, ana-tomia, astronomia, geologia etc.

Swedenborg tenta um contato pessoal frustrado com o grande físico inglês Sir Isa-ac Newton, a quem muito admirava. Mas, para sua surpresa, acaba tomando contato mes-mo é com um estranho homem, que lhe segue até sua casa e o aborda, afirmando que era “o Senhor Deus, o Criador do mundo, o Redentor”. O estranho revela que Swedenborg tinha a missão de renovar sua igreja, a cristã. Para isso, ele teria a permissão de adentrar no mundo dos espíritos, com o objetivo de colher ensinamentos na criação da terceira i-greja, pois, assim como Lutero renovou a Igreja católica, ele teria a missão de criar a Igre-ja de Nova Jerusalém, renovando assim o cristianismo. Desde então, aos 56 anos, Swe-denborg abandona seus estudos técnico-científicos e dedica-se “às coisas do espírito, so-bre as quais o Senhor me ordenou a escrever”, até o fim da vida. Volta-se para o estudo da Bíblia. Por dois anos estuda o hebraico, a fim de ler as escrituras no original.

Inicia-se, então, uma nova fase na vida de Swedenborg, toda dedicada à especulação teológica e metafísica. A partir de suas observações minuciosas do mundo dos espíritos, do diálogo com “anjos” e “demônios”, elabora uma obra teológica, constrói uma exegese bíblica, interpreta o Apocalipse, a Bíblia. As descrições do mundo dos espíritos são em linguagem clara, objetiva, sem metáforas, aforismos ou subterfúgios, características comuns do discurso místico, de tom velado, revelatório e profético. Segundo Borges, é como se ele tivesse ido à Índia ou à China e, quando retornasse, passasse a descrever, de modo atento e minucioso, co-mo um cientista, o que lá viu e experimentou.

Em vida, não quis criar nenhuma igreja ou confraria. Desencarna aos 84 anos. Suas principais obras na fase teológica são: Arcanos Celestes (1749), A Nova Jerusalém (1758), O Juízo Final (1758), O Céu e o Inferno (1759), Doutrina da Escritura Santa (1763), Apocalip-se Revelado (1766), Amor Conjugal (1768), Verdadeira Religião Cristã (1771), dentre outras, todas escritas em latim.

Os seguidores das ideias de Swedenborg fundaram a Igreja Swedenborgiana, a Igreja da Nova Jerusalém e ainda contam com milhares de adeptos em todo o mundo. No livro As

48 O célebre filósofo alemão Imanuel Kant (1724-1804) estava com cerca de 40 anos quando se interessou pelos fenômenos psíquicos produzidos por Emanuel Swedenborg. Estudou vários casos, bem como sua volumosa obra. Sua posição foi favorá-vel, em grande parte dos fenômenos psíquicos produzidos pelo clarividente sueco; em outros, julgou serem fruto da imagina-ção, lendas, sem base racional. Em 1766, o filósofo da razão pura publicou anonimamente Sonhos de um Vidente de Fantas-mas (Dreams of a Ghost Seer), resultado de suas investigações. Provavelmente, foi o primeiro caso na história de pesquisa séria e rigorosa dos fenômenos psíquicos.

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Religiões do Rio, o jornalista e escritor carioca João do Rio fala da “Nova Jerusalém”, da religião de Swedenborg, que contava no início do século 20 com cerca de 120 mil adep-tos.49Por certo, esse número diminuiu consideravelmente. Segundo o antropólogo inglês John R. Hinnells, os membros da Igreja Swedenborgiana são pouco numerosos. Na década de 1980 eram uns três mil na Grã-Bretanha e cerca de sete mil nos Estados Unidos.50

O espírito de Swedenborg teve decisiva participação no movimento espiritualista que antecedeu o espiritismo. O médium norte-americano, Andrew Jackson Davis, o “Allan Kar-dec norte-americano” tinha Swedenborg como guia espiritual, tendo se apresentado a ele, no início de sua trajetória mediúnica, ao lado do espírito de Galeno. Jackson Davis recebe dele a obra Filosofia Harmônica.51 Outro pioneiro, o magnetizador Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), contemporâneo de Allan Kardec, a partir de experiências com a médium so-nâmbula Adèle Maginot, resolve fundar um pioneiro grupo de magnetizadores, por sugestão do espírito de Swedenborg. Em 27 de dezembro de 1848 surge a Sociedade dos Magnetiza-dores Espiritualistas. Posteriormente, em 1852, o grupo prossegue suas atividades sob outro nome: Sociedade dos Estudantes Swedenborgianos. Mais tarde, o grupo se aproximaria do espiritismo kardecista.52

Sobre a importância do clarividente sueco, afirma Allan Kardec, “Malgrado os er-ros de seu sistema, Swedenborg não deixa de ser uma dessas grandes figuras cuja lem-brança ficará ligada à história do Espiritismo, do qual foi um dos primeiros e mais zelosos fomentadores.” (Revista Espírita, nov. 1859). O filósofo José Herculano Pires sintetiza muito bem o significado de sua obra:

“O Espiritismo formou-se, como uma estrela, no seio de uma nebulosa. É parte de uma

verdadeira galáxia, que se estende pelo infinito, a partir dos mundos inferiores, até os mais eleva-

dos. Certamente, nos perderíamos, se quiséssemos examinar toda a extensão da galáxia, toda a

complexidade de doutrinas e teorias que precederam o Espiritismo. Somos forçados, por isso mes-

mo, a limitar a nossa ambição, procurando o foco mais próximo da sua elaboração. Esse foco, se-

gundo o entendeu Conan Doyle, é a doutrina de Emmanuel Swedenborg. Uma verdadeira nebulosa

doutrinária, em que os elementos em fusão nos aturdem, mas de cujo seio partem os primeiros rai-

os, nítidos e incisivos, de uma nova concepção da vida e do mundo.” 53

Assim como Kardec, Swedenborg não é muito bem visto pelos esotéricos. Os cris-tãos rejeitam sua obra, herética, por considerarem-no um falso profeta. Seu nome está no Index do Vaticano. Em que pese a exegese bíblica e sua hermenêutica complicada, sua obra espiritualista tem servido de inspiração e influenciado muita gente. O Moderno Espiritua-lismo norte-americano e britânico bebeu na sua fonte. O ocultista Eliphas Lévi tinha simpa- 49 Jornalista-escritor, tradutor e teatrólogo carioca, João do Rio (1881-1921), pseudônimo de Paulo Barreto, realizou uma série de reportagens no campo do jornalismo investigativo sobre o perfil das religiões do Rio de Janeiro, reunidas em formato de livro no início do século 20. A obra, um sucesso editorial, vendeu mais de 8 mil exemplares em seis anos. João do RIO, As Religiões do Rio, A Nova Jerusalém, pág. 143. 50 John R. HINNELLS, Dicionário das Religiões, pág. 131. 51Filosofia Harmônica é, na verdade, o nome dado ao conjunto de 30 obras ditadas ao médium norte-americano Andrew Jackson Davis pelo espírito Swedenborg. 52 Zeus WANTUIL e Francisco THIESEN, Allan Kardec, vol. II, cap. 9, pág. 93. 53 José Herculano PIRES, O Espírito e o Tempo, cap. IV Antecipações Doutrinárias, pág. 124.

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tias por suas ideias. Hellen Keller, a grande escritora norte-americana, cega e surda, escre-veu o livro Luz em Minha Escuridão, em sua homenagem. Sem mencioná-lo, o dramaturgo inglês Bernard Shaw aborda aspectos de seu pensamento na peça Homem e Super-Homem (Men and Superman). Balzac também escreveu o romance místico-filosófico Seráfita, todo inspirado nas visões de Swedenborg e podemos vê-lo citado nos ensaios do filósofo e escri-tor francês Paul Valéry. Baudelaire, o grande poeta francês, tinha muita estima por sua obra e o grande místico e pintor inglês William Blake foi seguidor de suas ideias. Borges admi-rava tanto Swedenborg que dedicou-lhe este poema:

Emanuel Swedenborg Más alto que los otros, caminaba/Aquel hombre lejano entre los hombres; Apenas si llamaba por sus nombres/Secretos a los ángeles. Miraba Lo que no ven los ojos terrenales:/La ardiente geometría, el cristalino Edificio de Dios y el remolino/Sórdido de los goces infernales. Sabia que la Gloria y el Averno/En tu alma están y sus mitologías; Sabía, como el griego, que los días/Del tiempo son espejos del Eterno. En árido latín fue registrando/Últimas cosas sin por qué ni cuándo.54

NA KARDEQUIANA – “— Falai, meu velho amigo”, foi a saudação do espírito Sweden-

borg a Allan Kardec, quando o evoca em uma sessão particular da Sociedade Parisiense de Es-tudos Espíritas. Surpreso, Kardec responde: “— Honrais-me com o título de vosso velho amigo e, no entanto, estamos longe de ser contemporâneos; não vos conheço senão pelos vossos escri-tos. — É verdade, mas eu vos conheço há muito tempo.” 55

● O Livro dos Espíritos (1857 - 1ª edição) – Nota XVII. ● O Livro dos Espíritos (1860 - 2ª edição) – Prolegômenos. ● Catálogo Racional: Obras para se Fundar uma Biblioteca Espírita – Citação da

biografia e obra. ● Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas – Citado no vocabulárioespírita. ● Revista Espírita – Uma Questão de Prioridade a Respeito do Espiritismo, citado pelo

sr. Ch. Renard (dez. 1858). – Evocação em sessão particular da SPEE (out. 1859). – Swedenborg, artigo sobre vida e obra; comunicação e diálogo (nov. 1859). – Genealogia Espírita, citação de suas teorias. (mar. 1862). – Jean Reynaud e os Precursores do Espiritismo, citação (ago. 1863). – Uma Lembrança de Existências Passadas, citação (nov. 1864). – Alucinação nos Animais nos Sintomas da Raiva, citação (set. 1865).

54Mais empinado que os outros caminhava/ Aquele homem distante entre os homens;/ Apenas se chamava por seus nomes/ Secretos aos anjos. Enxergava/ O que não veem os olhos terrenos:/ A ardente geometria, o cristalino/ Edifício de Deus e o redemoinho/ Sórdido dos gozos infernais./ Sabia que a Glória e o Inferno/ Em tua alma estão e suas mitologias;/ Sabia, como o grego, que os dias/ Do tempo são espelhos do Eterno./ Em árido latim foi registrando/ Últimas coisas sem porquê nem quando. Jorge Luís BORGES, El Otro, El Mismo in Obras Completas de Jorge Luís Borges 1923-1972. Tradução livre de Eugenio Lara. 55 Allan KARDEC, Revista Espírita (out. 1859).

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– Notas Bibliográficas sobre o romance espírita Mireta, citação (fev. 1867). – Conferências Sobre a Alma, citado pelo sr. Alexandre Chaseray. (set. 1868).

– Dissertações Espíritas, citado pelo espírito Lamartine (abril 1869).

11. O LUGAR DE RIVAIL

É preciso recolocar Rivail em seu devido lugar, como o verdadeiro fundador do espiri-

tismo. Longe de ser uma obra de origem metafísica, preexistente a tudo e a todos, a doutrina

espírita é histórica, estruturada no tempo e no espaço, no mundo ocidental e, portanto, a influ-

ência tenaz do cristianismo impregna, de modo inevitável, todo seu conteúdo, a começar pelo

fato de seu fundador, Hippolyte Léon Denizard Rivail, ter nascido em berço católico, numa

França também católica e, posteriormente, educado nos princípios do calvinismo, na famosa

escola de Pestalozzi, na Suíça, até o início de sua juventude.

Essa filosofia se pretende universal, apesar de ter uma vinculação insidiosa com o

cristianismo. Cabe, portanto, às novas gerações estabelecer um novo olhar. Talvez pós-

cristão, segundo a proposta lançada pelo grande escritor espírita Jaci Regis. Não diria laico,

pois o laicismo é insuficiente para se abarcar a totalidade do pensamento kardecista, por não

dar conta de fenômenos que se inserem fora do âmbito de uma cultura estritamente secular,

notadamente os ligados à transcendência, à teologia, a processos intuitivos, equivocadamente

considerados como de natureza exclusivamente religiosa, látrica. E laico é o estado cubano,

que expeliu o espiritismo de Cuba, bem como a ditadura stalinista, a nazista e tantos outros

estados laicos. O laicismo também tem o seu lado pérfido, sórdido, de modo que antes de de-

nominarmos o espiritismo de laico, sem refletir, temos de meditar bem e agir com bom senso,

ainda que o adjetivo laico para qualificá-lo seja, num certo sentido, uma redundância.

O código de conduta ensinado por Jesus de Nazaré nos aproxima do que o espiritismo de-

nomina de leis morais, leis universais que regem o comportamento pessoal e interpessoal, que nos

faz imersos na perfectibilidade evolutiva, ainda que relativa. Ele é o nosso modelo de virtude, mas

necessita ser tão universal quanto Krishna ou Buda, por exemplo. Por sua vez, vincular o espiri-

tismo ao cristianismo, a propostas de revivescência dessa religião monoteísta anacrônica, é entrar

num labirinto ou num beco sem saída. O pensamento filosófico espírita, livre por natureza, ficaria

aprisionado, refém de uma ideologia, de uma práxis contrária a sua própria axiologia.

É necessário sim um olhar não-cristão, pós-cristão. E não diria anticristão, mas um

pensar isento dos prejuízos causados pela herança cristã. Isto também implica, necessariamen-

te, na recolocação de Jesus de Nazaré em seu devido lugar, como mestre de todos nós, mas

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sem qualquer tipo de hegemonia, de menosprezo ou despeito a outros mestres do Oriente co-

mo Maomé, Buda, Krishna ou Confúcio, tão importantes quanto ele. Do mesmo modo, o lu-

gar de Allan Kardec, como o grande protagonista, o maestro, o arquiteto e o construtor, como

o fundador da filosofia espírita, necessita ser reafirmado.

Estudos comparativos, formais, sobre a linguagem e as alterações que o Mestre de

Lyon realizou na Kardequiana, de 1857 a 1868, tendem a reafirmar o seu verdadeiro papel de

protagonista de todo o processo de elaboração doutrinária. Apenas no estudo de um único

texto, o Prolegômenos, pudemos observar o quanto seu poder de decisão, sua função como

editor e definidor do conteúdo doutrinário final são proeminentes, evidentes. O estudo compa-

rativo, crítico e analítico de outros textos, de outras obras são um caminho, um viés necessário

para compreendermos com mais clareza a obra de Allan Kardec.

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ENCICLOPÉDIAS E COLEÇÕES CONSULTADAS

■A Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida, s/ed. Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil [1978].

■Enciclopédia Digital Encarta. Microsoft Encarta Premium [2005].

■Grande Enciclopédia Delta Larousse. 15 vols. Rio de Janeiro-RJ, Ed. Delta S.A. [1972].

■Os Mestres do Espírito. Planeta Especial, trad. Luís Carlos Lisboa, 1ª ed. São Paulo-SP, Ed. Três [1973].

■História das Grandes Ideias do Mundo Ocidental, vol. 1 - Coleção Os Pensadores, 1ª ed. São Paulo-SP, Ed. Abril Cultural [1972].

SITES CONSULTADOS

■PENSE – Pensamento Social Espírita - URL: http://www.viasantos.com/pense

■Decodificando O Livro dos Espíritos - URL: http://decodificando-livro-espiritos.blogspot.com

■Wikipédia – A Enciclopédia Livre - URL: http://wikipedia.org

■Criticando Kardec - URL: http://www.criticandokardec.com.br

■ Sua Língua – por Cláudio Moreno - URL:http://wp.clicrbs.com.br/sualingua

■ Portal do Espírito - URL:http://www.espirito.org.br

■ Psypionner – Revista de Estudos Psíquicos in Woodlands Sanctuary Foundation

URL: http://www.woodlandway.org

FILMES E DOCUMENTÁRIOS

Além das obras indicadas na bibliografia, há diversos filmes, documentários e longas-metragens sobre as personalidades históricas que assinam o Prolegômenos. A seguir, uma relação selecionada de filmes disponíveis:

■ Napoleão Bonaparte (Napoleón) - França, 2002. Direção: Yves Simoneau. ■ Hahnemann: a Arte de Curar - Documentário - Brasil, 2010. Produção: Instituto Homeopático François Lamasson e Museu de Homeopatia Abrahão Brickmann, de Ribeirão Preto-SP. ■ O Evangelho Segundo São João (The Visual Bible: The Gospel of John) - Canadá, 2003. Direção: Philip Saville. ■ São Luís (Saint Louis ou La Royauté Bienfaisante) - França, 1982. Direção: Jean-Claude Lubtchansky. ■ Agostinho de Hipona (Agostino d'Ippona) - Itália, 1972. Direção: Roberto Rosselini. ■ São Vicente de Paulo (Monsieur Vincent) - França, 1947.Direção: Maurice Cloche. ■ Breve Vida e Obra de Platão - Documentário - Brasil, 2010.Produção: TV Cultura. ■ Sócrates (Socrate) - Itália, 1971. Direção: Roberto Rosselini. ■ Vida e Obra de Benjamin Franklin (Biography Channel - Benjamin Franklin) - Documentário - Grã-Bretanha, 2008.

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Produção: Studio LOG-ON & BIO - The Biography Channel. ■ Swedenborg (Swedenborg), curta-metragem - Espanha, 1971.Direção: Antoni Padrós.

CRÉDITO DAS IMAGENS

■ The Emperor Napoleon in his Study at the Tuileries. Jacques-Louis David (1748-1825) - National Gallery of Art. Em 1812.

■ Samuel Hahnemann – Litogravura de Vigneron, século 19.

■ São João Evangelista – Óleo sobre tela de El Greco (1541-1614) - Museu do Prado, Madrid - Espanha - De 1594 a 1604.

■ Santo Agostinho – Óleo sobre tela de Philippe de Champaigne (1602-1674), Los Angeles County Museum of Art, EUA - De 1645 a 1650.

■ São Vicente de Paulo – Óleo sobre tela de Simon François de Tours (1606-1671), século 17 - Museu do Louvre - Paris, França.

■ São Luís, Rei da França – Óleo sobre tela de El Greco (1541-1614) - Museu do Louvre. De 1585 a 1590.

■ Jesus de Nazaré, interpretado por Robert Powell, com direção do cineasta italiano Franco Zefirelli - Em 1977.

■ Sócrates, interpretado pelo ator Jean Sylvère, filme para TV dirigido pelo cineasta italiano Roberto Rosselini - Em 1971.

■ Busto de Sócrates – Jan Faber (1684 - 1756) - Harvard Art Museums - Collection of John Witt Randall

■ Platão - Detalhe de A Escola de Atenas – Afresco de Raffaello Sanzio (1483-1520) Palazzi Pontifici, Vatican - Itália.

■ Fénelon - François de Salignac de La Mothe - archevêque de Cambrai – Óleo sobre tela de Joseph Vivien (1657-1734).

■ Retrato de Benjamin Franklin – Óleo sobre tela de Joseph-Siffred Duplessis (1725-1802) - National Portrait Gallery, Smithsonian Institution - EUA. Em 1785.

■ Emanuel Swedenborg – Óleo sobre tela de Carl Fredricvon Breda. Em 1818.

Eugenio Lara, arquiteto e designer gráfico, reside em São Vicente-SP. Fundador e editor do site PENSE - Pensamento Social

Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do CPDoc - Centro de Pesquisa e Documentação Espírita

[www.cpdocespirita.com.br], expositor do ICKS - Instituto Cultural Kardecista de Santos e do Centro Espírita Allan Kardec, de

Santos-SP. Articulista dos jornais Opinião, de Porto Alegre-RS e do jornal de cultura espírita Abertura, de Santos-SP, é autor

dos seguintes livros em edição digital: Racismo e Espiritismo, Milenarismo e Espiritismo, Os Celtas e o Espiritismo, Amélie

Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico e Conceito Espírita de Evolução.E-mail:[email protected]