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"Vestido de Noiva" - resumo da obra de Nelson Rodrigues Encenada pela primeira vez em 1943, a peça de Nelson Rodrigues mostra ações simultâneas em três planos - da realidade, da alucinação e da memória e deu início ao processo de modernização do teatro brasileiro. Primeiro Ato A peça inicia-se com sons bastante conhecidos pelos habitantes de qualquer metrópole: “Buzina de um automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio”. Cria-se, dessa forma, na imaginação do espectador, a cena de um atropelamento. Acende-se o plano da alucinação, e Alaíde chama por Madame Clessi. Encontra-se com vários personagens desconhecidos, ele que, aos poucos, lhe informam que Clessi fora assassinada. Alaíde desespera-se. Acende-se o plano da realidade, com várias pessoas falando pelo telefone ao mesmo tempo. São repórteres que noticiam o atropelamento. No plano da alucinação, Alaíde está num bordel e recebe um homem que tem o rosto de seu marido. Suas atitudes são extremadas: acaricia o homem e o esbofeteia. Alaíde repara que todos os homens que aparecem têm o rosto de seu marido e encontra Madame Clessi, que a ajuda a lembrar-se da infância. O plano da memória registra o diálogo entre os pais de Alaíde a respeito de Madame Clessi, antiga habitante da casa. No plano da realidade, o diálogo lacônico entre os médicos revela que Alaíde está sobre uma mesa de operação. Alternam-se os diálogos entre Alaíde e Clessi no plano da alucinação e cenas do passado no plano da memória. Alaíde diz a Clessi ter matado seu marido. Aparece também a Mulher de Véu, cuja identidade Alaíde parece não querer revelar. Madame Clessi pede a Alaíde que recorde o dia em que se casou. Alaíde lembra-se de que sua futura sogra elogiou o vestido de noiva pouco antes de ela entrar na igreja. Relembra também que havia mais alguém com elas, mas não consegue identificar essa pessoa. Segundo Ato Diálogo entre Alaíde e Clessi ao microfone. No plano da memória, Alaíde e a Mulher de Véu discutem violentamente. A segunda parece disposta a estragar o casamento de Alaíde. Aos poucos, descobre-se o motivo: o noivo fora namorado da Mulher de Véu, e Alaíde roubara-o dela. Clessi interroga Alaíde sobre a identidade da Mulher de Véu. Plano da realidade: os médicos tentam os últimos recursos para salvar a vida de Alaíde. Sua memória está em franca desagregação; acendem-se as luzes das escadas laterais, das quais descem dois homens empunhando círios e se ajoelham diante de uma cruz, no plano da alucinação. Duas cenas são apresentadas de maneira entrecortada. Numa delas, a Mulher de Véu revela a Alaíde seu desejo de vingança; na outra, Clessi conversa com um jovem namorado, e este sugere que os dois se matem de amor. A mulher não parece levar a sério a conversa do garoto. No plano da alucinação, uma mulher se senta junto aos dois homens. Estão diante de um ataúde, dialogam num cínico tom de flerte. A conversa entre

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Análise da peça Vestido de Noiva

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"Vestido de Noiva" - resumo da obra de Nelson Rodrigues

Encenada pela primeira vez em 1943, a peça de Nelson Rodrigues mostra ações simultâneas em três planos - da realidade, da alucinação e da memória e deu início ao processo de modernização do teatro brasileiro.Primeiro AtoA peça inicia-se com sons bastante conhecidos pelos habitantes de qualquer metrópole:“Buzina de um automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio”.Cria-se, dessa forma, na imaginação do espectador, a cena de um atropelamento. Acende-se o plano da alucinação, e Alaíde chama por Madame Clessi. Encontra-se com vários personagens desconhecidos, ele que, aos poucos, lhe informam que Clessi fora assassinada. Alaíde desespera-se.Acende-se o plano da realidade, com várias pessoas falando pelo telefone ao mesmo tempo. São repórteres que noticiam o atropelamento. No plano da alucinação, Alaíde está num bordel e recebe um homem que tem o rosto de seu marido. Suas atitudes são extremadas: acaricia o homem e o esbofeteia. Alaíde repara que todos os homens que aparecem têm o rosto de seu marido e encontra Madame Clessi, que a ajuda a lembrar-se da infância.O plano da memória registra o diálogo entre os pais de Alaíde a respeito de Madame Clessi, antiga habitante da casa.No plano da realidade, o diálogo lacônico entre os médicos revela que Alaíde está sobre uma mesa de operação. Alternam-se os diálogos entre Alaíde e Clessi no plano da alucinação e cenas do passado no plano da memória. Alaíde diz a Clessi ter matado seu marido.Aparece também a Mulher de Véu, cuja identidade Alaíde parece não querer revelar. Madame Clessi pede a Alaíde que recorde o dia em que se casou. Alaíde lembra-se de que sua futura sogra elogiou o vestido de noiva pouco antes de ela entrar na igreja. Relembra também que havia mais alguém com elas, mas não consegue identificar essa pessoa.

Segundo AtoDiálogo entre Alaíde e Clessi ao microfone. No plano da memória, Alaíde e a Mulher de Véu discutem violentamente. A segunda parece disposta a estragar o casamento de Alaíde. Aos poucos, descobre-se o motivo: o noivo fora namorado da Mulher de Véu, e Alaíde roubara-o dela. Clessi interroga Alaíde sobre a identidade da Mulher de Véu.Plano da realidade: os médicos tentam os últimos recursos para salvar a vida de Alaíde. Sua memória está em franca desagregação; acendem-se as luzes das escadas laterais, das quais descem dois homens empunhando círios e se ajoelham diante de uma cruz, no plano da alucinação. Duas cenas são apresentadas de maneira entrecortada. Numa delas, a Mulher de Véu revela a Alaíde seu desejo de vingança; na outra, Clessi conversa com um jovem namorado, e este sugere que os dois se matem de amor. A mulher não parece levar a sério a conversa do garoto.No plano da alucinação, uma mulher se senta junto aos dois homens. Estão diante de um ataúde, dialogam num cínico tom de flerte. A conversa entre Alaíde e a Mulher de Véu se torna cada vez mais tensa. Alaíde revela a Clessi que a cena na qual os dois homens estão ajoelhados ante um ataúde é a do enterro da própria Madame Clessi. A identidade da Mulher de Véu é descoberta: trata-se de Lúcia, irmã de Alaíde.Plano da realidade: Pedro pergunta aos médicos sobre a condição de sua esposa. Os médicos informam que o estado da paciente é grave, mas o homem não demonstra nenhum abalo emocional.

Terceiro AtoAlaíde descobre que não matou o marido. Novo diálogo entre Clessi e o jovem namorado, em que ele lhe pede para morrerem juntos. Alaíde e Lúcia discutem no plano da alucinação, e aparecem outros personagens no meio da discussão, entre os quais Pedro e Dona Lígia. Clessi e o namorado conversam, ela entrega-lhe algum dinheiro. A mãe do jovem aparece e inicia uma discussão com Clessi, na qual pede que a mulher deixe de ver seu filho. Alaíde lamenta-se por confundir essas pessoas com personagens da ópera La Traviata e do filme ...E o Vento Levou. A discussão termina com Clessi expulsando a mãe do rapaz de casa.Plano da realidade: repórteres noticiam o acidente de Alaíde, descobrem se tratar de alguém importante, mulher do industrial Pedro Moreira. No plano da alucinação, Alaíde conta a Clessi suas recordações sobre a morte da mulher. Pedro surge e Clessi desaparece. Alaíde acusa Pedro de não a

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amar e diz saber que ele e Lúcia desejam sua morte. Surge Lúcia de luto fechado, os três juntam suas cabeças. Corte para o plano da realidade, no qual o diálogo entre os médicos revela a morte de Alaíde. No plano da alucinação, Alaíde e Clessi aparecem de costas para a platéia. Os repórteres noticiam a morte de Alaíde e dizem que a irmã chora muito.No plano da realidade, Pedro é repelido por Lúcia, que diz ter jurado diante do cadáver da irmã não mais se aproximar dele. Diálogo entre Alaíde e Lúcia, no qual Alaíde ameaça a irmã. Lúcia acusa Pedro de ter incutido nela o desejo de que Alaíde morresse; falam de um “crime”, mas sempre entre aspas, o que confere ambigüidade ao termo.Cenas sucessivas apresentam saltos cronológicos: discussão entre Lúcia e sua mãe; Lúcia volta de uma viagem, mais gorda e mais corada; Lúcia se prepara para o casamento com Pedro e faz a Laura a mesma pergunta que Alaíde fizera: “Estou muito feia, D. Laura?” – ao que Laura responde: “Linda! Um amor!”. Lúcia pede o buquê, e essa é sua última fala. Madame Clessi sobe uma escada. Surge também Alaíde, que caminha em direção a Lúcia como quem vai lhe entregar o buquê. A cena se apaga, exceto por uma luz que ilumina o túmulo de Alaíde.

Personagens

Alaíde: a protagonista. Casada com um homem importante (Pedro), é atropelada no começo da peça. A tensão dramática se constrói sob a expectativa de sua morte. Não se sabe se o atropelamento foi criminoso, acidental ou decorrente de tentativa de suicídio, e esse é um dos grandes êxitos da obra.

Lúcia (mulher de véu): irmã de Alaíde, surge inicialmente como a Mulher de Véu. Conforme a situação se descortina, descobre-se que Lúcia fora escondida sob um véu em conseqüência da culpa que Alaíde sentia em relação a ela. No passado, Pedro havia sido namorado de Lúcia, que acusava a irmã de tê-lo roubado dela.

Pedro: industrial bem-sucedido. Após o casamento com Alaíde, continua a desejar Lúcia, a ex-namorada, e com ela planeja matar sua mulher. Seu principal traço de caráter é o cinismo.

Madame Clessi: antiga prostituta de luxo assassinada por um jovem amante em 1905. A casa onde os pais de Alaíde e Lúcia foram morar tinha sido a habitação de Madame Clessi e o local onde ela exercia sua profissão. Sua figura é construída na imaginação de Alaíde, que, quando pequena, encontrara no sótão da casa o diário de Madame Clessi.

Dona Lígia: mãe de Alaíde e de Lúcia, mulher de costumes conservadores, representa o peso da tradição e dos bons costumes, que atuam sobre os personagens principais.

Gastão: marido de Dona Lígia, pai de Alaíde e de Lúcia. Sua principal aparição se dá no plano da memória, no qual está conversando com sua mulher sobre as atividades que eram exercidas na casa na época de Madame Clessi. “O negócio acabava numa orgia louca”, o curto diálogo, no qual Gastão profere essas palavras, marca profundamente a protagonista.

Sobre Nelson RodriguesNelson Falcão Rodrigues nasceu no Recife, em 23 de agosto de 1912, e mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro. Aos 13 anos começou a trabalhar em jornal. Escreveu sua primeira peça, "A Mulher sem Pecado", em 1941. Dois anos depois, a montagem de Vestido de Noiva revolucionou o teatro nacional e transformou-o num dos principais dramaturgos brasileiros.

Sua obra teatral é assim classificada pelo crítico Sábato Magaldi: peças psicológicas (nas quais se incluem as duas primeiras), peças mitológicas ("Anjo Negro" e "Álbum de Família") e tragédias cariocas ("A Falecida" e "O Beijo no Asfalto"). Suas obras causaram polêmica ao abordar temas sexuais e morais, como o tabu do incesto e a infidelidade, de forma mórbida, obsessiva e moralista.Sua vida pessoal foi marcada por tragédias, como o assassinato do irmão e o choque por saber que seu filho fora torturado pela ditadura militar, regime que Nelson apoiou. Escreveu também os romances "Meu Destino É Pecar" e "O Casamento", além de livros de crônicas. Morreu no Rio de Janeiro, em 21 

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"Vestido de Noiva" - análise da obra de Nelson Rodrigues28/09/2012 21h 39Encenada pela primeira vez em 1943, a peça de Nelson Rodrigues mostra ações simultâneas em três planos - da realidade, da alucinação e da memória e deu início ao processo de modernização do teatro brasileiro.

Aplausos dos insultados A peça "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues, é um marco na história da dramaturgia nacional. A primeira montagem, em dezembro de 1943, deu início ao processo de modernização do teatro brasileiro. Essa era a segunda peça escrita por Nelson. O autor trabalhava como jornalista, profissão que herdara do pai, e procurava, naquele período, uma fonte de sustento complementar. Seu primeiro trabalho para os palcos, "A Mulher sem Pecado", tinha como pretensão conseguir o sucesso obtido por outras produções da época, como A Família Lero-Lero, comédia de Raymundo Magalhães Júnior. Embora a peça de Nelson fosse uma obra de valor artístico muito superior à de Magalhães Júnior, ao estrear, em 1942, não obteve a simpatia do público e resultou em fracasso de bilheteria. Um ano depois, Vestido de Noiva, de estrutura mais complexa, iria revolucionar o teatro brasileiro. A montagem foi realizada sob a direção do polonês Zbigniew Marian Ziembinski, que chegara ao Brasil cerca de dois anos antes. Experiente encenador, Ziembinski deu forma ao texto de Nelson. Seu rigor na encenação, com a exigência de ensaios constantes, levou a concepção brasileira de teatro a novos níveis.A grande tensão que permeia a peça não se mostra apenas no antagonismo entre Alaíde e Lúcia, mas nas relações conflitantes entre todos os personagens. Nas cenas, a angústia da culpa supera sempre os tons de ternura amorosa com que geralmente são apresentados os laços familiares. As relações de desejo são também relações de ódio. Um exemplo é a relação entre Lúcia e Pedro, cujo impulso poderia parecer exclusivamente erótico, um desejo cuja realização era impossibilitada pelo casamento entre Pedro e Alaíde. Tendo morrido Alaíde, era de esperar que um se entregasse ao outro imediatamente, mas o mecanismo da culpa atua, o que leva Lúcia a prometer diante do cadáver da irmã jamais ficar com Pedro. Desse conflito se depreende toda uma rede de ambivalências, que nascem também sob o signo do ridículo. O gênero que, por excelência, incorpora o ridículo da desmesura sentimental é o melodrama moderno. Isso ocorre porque o melodrama parece tentar imitar a catarse da tragédia clássica numa época em que a indignação já não tem lugar. Valores como a honra perderam o significado, numa sociedade em que a dignidade depende de pressupostos materiais. A peça configura uma crítica cáustica a determinada classe da sociedade carioca. Tal como ressalta o crítico Ronaldo Lima Lins: “Vestido de Noiva movimenta seu drama dentro de um círculo fechado. Ali está uma peça cujos problemas se passam no nível da pequena burguesia, que a aplaudiu e lhe deu notoriedade”. Nessa maneira velada de ação, está o êxito do teatro de Nelson Rodrigues: agradar a sua plateia, ao mesmo tempo em que a insulta.

EstruturaA representação é dividida em três planos: da alucinação, da memória e da realidade. Há também duas escadas laterais. A peça se desenrola em três atos, cuja relação não é exatamente cronológica, a não ser no plano da realidade, o qual acompanha a degradação do estado de saúde de Alaíde e a aniquilação consequente dos outros dois planos.

Comentário do professorEscrita e levada à cena em 1943, "Vestido de noiva" é uma espécie de "divisor de águas" do teatro brasileiro. Trata-se de uma peça revolucionária do ponto de vista estético-estrutural, cuja lógica interna remete a recepção (público) a um estado de perplexidade até então não protagonizado na dramaturgia brasileira. O argumento gira em torno da vida de Alaíde, personagem representativa da burguesia carioca, que morre tragicamente em um acidente (atropelada). Alaíde é levada ao hospital e, enquanto os médicos tentam salvá-la, ela protagoniza um tipo muito peculiar de viagem interior, uma jornada psíquica, de uma profundidade imaterial e antropológica que resgata seu passado e as figuras humanas que exerceram papéis decisivos em sua constituição. Alaíde, mulher voluntariosa e arrogante, conquistou Pedro, o namorado da irmã, Lúcia. Admiradora de Madame Clessi, antiga prostituta do Rio de Janeiro, Alaíde via em sua figura uma espécie de modelo de liberdade e de

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transgressão dos valores sociais. Enquanto está casada com Pedro, este protagoniza um caso adúltero com Lúcia, personagem com quem primeiro ia se casar. Após a morte de Alaíde, Pedro e Lúcia se casam, sem o menor remorso."Vestido de noiva" é uma peça absolutamente inusitada, porque o argumento acima proposto é apresentado sob uma perspectiva não linear e aparentemente caótica. A estrutura da obra, como referimos acima, propõe três planos: 1) Plano da realidade - Alaíde é atropelada e levada ao hospital. Enquanto os médicos tentam recuperá-la, a imprensa divulga a notícia do trágico acidente. Não resistindo aos ferimentos, Alaíde morre. 2) Plano da alucinação - Alaíde está em busca de uma mulher misteriosa, Madame Clessi, prostituta que fora assassinada pelo namorado de dezessete anos. Os diálogos entre ambas são esclarecedores e convergentes para a resolução dos dramas da personagem central. 3) Plano da memória – as lembranças do passado de Alaíde vêm à tona e se consubstanciam com as imagens do plano da alucinação. É possível imaginar a extraordinária produção cênica que essa concepção teatral exigiu, principalmente de atores e equipe técnica, quando foi pela primeira vez apresentada, em 1943. A crítica social é inquestionável, pois Nelson Rodrigues não perdoou a hipocrisia social. Por isso mesmo, fez do teatro uma ferramenta de denúncia, capaz de pôr por terra as máscaras (assim como fizera, no século XIX, Machado de Assis), revelando a face sombria e desumana da sociedade carioca do século XX.Marcílio Bittencourt Gomes Jr., Professor da Oficina do Estudante - Campinas (SP)

Análise da obraVestido de Noiva vai aos palcos em 1943, sob a direção de Ziembinski, marcando a renovação do teatro brasileiro ao se voltar para a realidade de cunho psicológico. A peça causou polêmica na época e ainda hoje é considerada forte em sua linguagem e no tratamento do tema, transplantando para o palco a profunda angústia do autor, que contamina os atores e os espectadores. Despojada da leveza da cena e compondo diálogos fortes e desnudados, a peça apresenta ainda outra inovação, a subdivisão do palco que aparece iluminado de três maneiras, representando três planos: o plano da realidade, o plano da alucinação e o plano da memória. Através da intersecção desses três planos tem-se o conteúdo da peça. 

Plano da realidade: é o que dá início à peça, o estrépito de um acidente de carro é seguido de repórteres que comunicam o atropelamento de uma mulher. Esta é identificada: Alaíde Moreira, 25 anos, casada com o industrial Pedro Moreira. Na mesa de cirurgia, Alaíde delira – assim o espectador passa aos planos da memória e da alucinação. Por fim, os médicos anunciam a morte da jovem. 

Plano da alucinação: sem a interdição da censura moral, todos os desejos de Alaíde se libertam. Às cenas de delírio soma-se a lembrança de fatos reais, vividos pela personagem. Divagando, Alaíde procura Madame Clessi, prostituta do início do século que fora assassinada por um amante adolescente. Na representação da memória, o espectador descobre que Alaíde tinha um diário da mundana, encontrado no sótão da casa em que vivera antes de casar. O casamento sem grandes aventuras e o cotidiano banal haviam transformado Alaíde numa Bovary carioca, o que a faz projetar seus impulsos e seus desejos na figura da prostitua Clessi. 

Plano da memória: Alaíde concentra o esforço ordenador da memória na reconstituição das cenas do casamento. Um dado verdadeiro que já surgira no plano da alucinação: ela roubara Pedro da irmã, Lúcia. É da consciência culpada da protagonista que surge a imagem da Mulher de Véu – que depois se revelará como sendo a própria Lúcia. Misturando num ritmo gradativo as ações dos três planos, a peça encaminha-se para o desfecho no qual Lúcia acaba por casar-se com Pedro. É Alaíde quem entrega o buquê à noiva, acompanhada de Madame Clessi. A peça se encerra com apenas uma luz sobre o túmulo de Alaíde.

O entrecruzamento memória / alucinação / realidade - A primeira cena é desenvolvida a partir do entrecruzamento dos planos da alucinação, da memória e da realidade. Enquanto o leitor/espectador é apresentado a uma realidade exterior - a referência ao acidente - e ao subterrâneo psicológico da personagem, presente o mergulho que será dado no que existe de mais profundo na alma humana. De imediato, ganha-se a convivência do público, o que vem a facilitar o desenvolvimento da trama

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Existe o predomínio dos planos da memória e da alucinação. Este procedimento que se tornará comum em inúmeras peças de Nelson Rodrigues. A realidade é apresentada a partir do filtro da mente dos personagens. Com forte efeito psicológico, esse procedimento é evidente em Vestido de Noiva. A matéria fundamental da peça está no plano do delírio e, ao mesmo tempo, no plano da memória de Alaíde. Ao situar a ação da obra no território livre do subconsciente (em que se situam o plano da memória e mesmo o da alucinação) o autor favorece as possibilidades de criação. Fora do alcance da censura – que a psicanálise chamaria de super ego Â–, a heroína pode liberar sua libido, seus desejos reprimidos. É assim que surge, em Alaíde, como projeção de suas fantasias na figura da prostituta, Madame Clessi. Infeliz no casamento, insatisfeita com a realidade mesquinha da vida ordinária, a protagonista encontra na identificação com a prostituta uma compensação. Percebe-se também em Vestido de Noiva, a inclinação do autor para uma estética expressionista, em que o exagero, a deformação ou a obsessão dos personagens, ao invés de proporcionarem o tom cômico, funcionam como elementos intensificadores da dramaticidade de cenas e situações.Além de reforçar a capacidade de criação visual, imagética, os elementos grotescos da peça contribuem para estabelecer uma visão pessimista e sombria da realidade. Há nesta peça a presença do folhetinesco, traduzida na disputa das duas irmãs por Pedro. O dramaturgo sempre foi um entusiasmado leitor de folhetins e soube usar os temas simplistas e melodramáticos do gênero para buscar um sentido psicológico profundo para seus personagens, alcançando, muitas vezes, uma concepção trágica da existência. 

Estrutura / espaço / ação

A peça tem três atos e sua ação transcorre no âmbito familiar. A família é o núcleo de todas danações dos personagens de Nelson Rodrigues, nesta e em suas demais peças, seja esta família de origem suburbana, de classe média ou burguesa. É no interior dessa comunidade que deveria proteger seus membros, que os dramas ocorrem. Paixões proibidas, ódio recalcado, violência, crueldade e outros sentimentos degradados implodem a estrutura familiar, transformando-a em um inferno em que os personagens das peças vivem como seres para sempre amaldiçoados. O peça inicia com buzina de automóvel, barulho de derrapagem violenta, vidraças partidas, sirene de ambulância. O cenário é dividido em três planos, que o autor denomina: alucinação, memória e realidade.Os sons ouvidos referem-se ao atropelamento de Alaíde, que é levada a um hospital.O universo dramático de Vestido de Noiva é a classe média carioca nas imediações dos anos quarenta. Nessa sociedade, predomina a hipocrisia, os preconceitos e os símbolos eleitos pela cultura judaico-cristã como eternos em relação à família e ao casamento.

Temática e símbolosPartindo do princípio de que as relações sociais são perversas, todas as atitudes das pessoas revelam a hipocrisia, a competição desleal, os desejos proibidos, o conformismo imbecilizado ou o inconformismo agressivo, enfim, é um universo de obsessivo pessimismo.Todas as imagens e símbolos que emergem da peça convergem para essa amarga concepção da existência, sem nenhuma surpresa, com pouca sutileza, de maneira bem clara, em que pese a manifesta intenção de ironizar símbolos sagrados à cultura judaico-cristã. Assim Vestido de Noiva que deveria simbolizar a virgindade, a ingenuidade de sentimentos, a paixão pelo noivo com o qual ocorrerá a união sob a benção de Deus e dos homens, nos mostra um cenário completamente a este apenas descrito e acaba dessacralizando a pureza e a castidade para se tornar a representação das discórdia, da competição, e, a considerar o inequívoco desfecho da peça, em que a marcha fúnebre se sobrepõe à marcha nupcial, termina por adquirir a conotação de mortalha.As outras imagens também convergem para o mesmo universo simbólico, como o bouquet, espécie de troféu às avessas e metáfora de um casamento destinado ao fracasso, e a aliança - "grossa ou fina, tanto faz" nas palavras de uma prostituta, ao invés de celebrar a união do casal, funciona como índice de disputa, rivalidade, ameaça de morte.A mulher de véu também se constitui numa imagem de pessimismo. É a mulher que não se revela, mas está sempre pronta a dar o bote, em seu desejo de vingança. É a retaliação sempre presente, que Alaíde só consegue identificar claramente ao final do segundo ato. Provavelmente será a próxima vítima do marido.

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Personagens

Alaíde - neurótica e oportunista, é a protagonista de Vestido de Noiva. É uma mulher insatisfeita e inconformada com a condição feminina. Seduz os namorados da irmã como uma tentativa de auto-afirmação, que a faz parecer melhor aos próprios olhos. É como ela diz a Lúcia, em tom de provocação: "Eu sou muito mais mulher do que você - sempre fui! Após conquistar Pedro, que se torna seu marido, demonstra um certo desinteresse e frustração pela vida de casada, ao mesmo tempo em que se sente ameaçada de morte por Pedro e Lúcia. O atropelamento é um desfecho trágico da tensão dos últimos dias da protagonista, e tanto pode ser suicídio como acaso ou assassinato. Em seu delírio e lembranças, reconstrói no subconsciente as injustiças de que se julga vítima e revela seu fascínio pela vida marginal de Madame Clessi.

Lúcia - irmã de Alaíde, aparece em quase toda a peça como Mulher de Véu. É uma pessoa também insatisfeita, incompleta, que vive atormentada pelo sentimento de ter sido passada para trás pela irmã. Parece ter conseguido uma grande vitória com a morte de Alaíde e seu casamento com Pedro, mas as cenas finais sugere que ela não estará melhor em seu casamento do que Alaíde em seu túmulo.

Pedro - é o elemento dominador, é quem manipula as mulheres para conseguir o que quer. Namora Lúcia inicialmente, deixa-se seduzir por Alaíde, com quem se casa pela primeira vez, e depois concebe um plano macabro de eliminar a esposa para retornar aos braços da irmã. É o industrial bem sucedido, que representa o bom partido para as moças casadoiras que conseguirem fisgá-lo, mesmo sabendo que viveram à mercê do macho opressor. Pedro e Lúcia são presumidos assassinos e hipocritamente se casam, com o consentimento dos pais de Lúcia e da inexpressiva mãe de Pedro.

Madame Clessi - é a prostituta do início do século que povoa a mente de Alaíde, desejosa de viver um mundo de sensações picantes. Ela havia residido na casa de Alaíde décadas atrás, e os pais da protagonista resolvem queimar seus pertences, alguns dos quais são salvos, inclusive  o diário. Clessi representa (para Alaíde) o ideal de mulher liberada, que agride a sociedade hipócrita que Alaíde nega, mas na qual ela transita.

Os demais personagens desempenham papéis secundários, como o namoradinho adolescente de Clessi, que a assassina com uma navalhada, e os pais de Alaíde e Lúcia e a mãe de Pedro, que representam a classe média conformada e deslumbrada com as convenções sociais, que devem ser preservadas.

EnredoA obra é a história de um triângulo amoroso. Alaíde, a protagonista, rouba o namorado da irmã, Lúcia, e casa-se com ele. Lúcia, por sua vez, fica com o marido da irmã, e os dois formam um complô, que leva Alaíde à loucura e à morte. A mulher sai enlouquecida pela rua, é atropelada, e vai parar num hospital, agonizando numa mesa de operações. E a peça reconstitui em cena aquilo que se passa nessa mente em desagregação da protagonista. O peça inicia com buzina de automóvel, barulho de derrapagem violenta, vidraças partidas, sirene de ambulância. O cenário é dividido em três planos, que o autor denomina: alucinação, memória e realidade.Os sons ouvidos referem-se ao atropelamento de Alaíde, moça rica da sociedade carioca, é atropelada numa das noites do Rio e é levada a um hospital.No plano da realidade, jornalistas correm para se informar e publicar em seus jornais o fato, enquanto médicos correm para salvar o corpo inerte da mulher, jogada numa mesa de operação entre a vida e a morte. No plano da alucinação, Alaíde procura por uma mulher chamada Madame Clessi, sua heroína, que foi assassinada no início do século, vestida de noiva, pelo seu namorado. As duas se encontram e conversam. Um homem acusa Alaíde de assassina, e ela revela a Madame Clessi que assassinou o marido Pedro com um ferro após uma discussão (o plano da memória reconstitui a cena). Mais tarde, ambas percebem que o assassinato de Pedro não passou de um sonho de Alaíde. O principal símbolo da libertação feminina é para ela Madame Clessi, uma prostituta do início do século que havia residido na casa em que então moravam seus pais. Diante do propósito dos pais de incinerarem os pertences da cafetina que haviam ficado no sótão da casa, Alaíde consegue resgatar o

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diário dela, e fica conhecendo detalhes de sua trajetória, complementados com recortes de jornais da época encontrados na Biblioteca Nacional.Enquanto os médicos tentam quase o impossível para salvá-la da morte no plano da realidade, Alaíde e Madame Clessi conversam no plano da alucinação, tentando se lembrar do dia do casamento da primeira, e de duas mulheres que estavam presentes enquanto Alaíde se preparava para a cerimônia: a mulher de véu e uma moça chamada Lúcia. Ambas são, na verdade, a mesma pessoa: a irmã de Alaíde, que reclama o fato desta ter lhe roubado o namorado. Segue-se uma série de intercalações entre os planos: no plano da realidade, o trabalho dos médicos para reanimar Alaíde, e dos jornalistas querendo informações sobre a tragédia do atropelamento. Nos planos da alucinação e da memória, a história de Madame Clessi, com seu namoro com um jovem rapaz e sua morte, se funde com a de Alaíde no dia do casamento com Pedro. Segue-se a discussão com Lúcia minutos antes da cerimônia, que a acusa violentamente de ter lhe roubado o noivo. O casamento acontece, e Alaíde se vê vítima de uma conspiração entre Lúcia e Pedro, que pretendem matá-la para ficarem juntos. No plano da realidade, Alaíde morre na mesa de operação. Enquanto Alaíde assiste com Madame Clessi cenas de seu enterro e de sua discussão com Lúcia momentos antes do atropelamento, quando jura que mesmo morta não a deixaria ficar com Pedro. Inconformada com as convenções sociais repressoras da mulher, Alaíde não consegue em vida opor-se a elas, mas consegue manipular as pessoas com seu poder de sedução. Perto da morte, seu desejo de transgressão toma corpo e salta aos olhos nas cenas em que se torna amiga da prostituta e consegue inclusive matar, com a maior frieza, o marido traidor. Lúcia, no entanto, casa-se com Pedro, mesmo tendo em sua mente a imagem de Alaíde com seu vestido de noiva.