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Prof. Paulo Costa 1 Anamnese do aparelho digestivo proximal Prof. Doutor Paulo Costa Regente de Cirurgia I 2007

Anamnese Aparelho Digestivo Proximal

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Prof. Paulo Costa

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Anamnese do aparelho digestivo proximal

Prof. Doutor Paulo Costa

Regente de Cirurgia I

2007

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O interrogatório dos doentes com suspeita de patologia do tubo digestivo proximal (esófago,

estômago e duodeno) deve ser conduzido para avaliar as principais queixas relatadas e para

valorização de aspectos que permita integrá-las segundo uma estrutura de raciocínio que tenha em

consideração:

• tipos fundamentais de patologias;

• orientação para circunscrever a causa mais provável dos sintomas a um determinado

segmento (esófago, estômago ou duodeno);

• focar os pormenores semiológicos para precisar a forma como a parede do órgão está

envolvida ou atingida no processo;

• as consequências locais e gerais da patologia suposta;

• a natureza congénita ou adquirida das lesões.

Ao procurar os pormenores que fazem pender a probabilidade diagnóstica numa orientação

etiológica, as principais direcções a ter em consideração, por corresponderem à maioria das situações

patológicas do tubo digestivo proximal, são:

• disfunções motoras;

• patologia péptica;

• neoplasias;

• outras (malformações congénitas ou adquiridas; infecções; corpos estranhos).

Circunscrever a causa dos sintomas em relação com a espessura do órgão e a sua localização

topográfica é, como referimos, orientação diagnóstica fundamental. A causa das queixas do doente

pode ser intra-luminal (exemplo: corpo estranho deglutido, bezoar), da parede (neste caso deve

procurar-se identificar a(s) camada(s) do órgão atingida(s) ou ponto de partida da lesão - por exemplo:

neuro-muscular na acalásia, mucosa na úlcera duodenal) e extra-tubular (exemplo: compressão

extrínseca).

Localizada a possível patologia, deve o interrogatório dirigir-se para avaliar as suas

consequências a montante (exemplo: infecção respiratórias repetidas por obstrução do esófago com

regurgitação e aspiração pulmonar), loco-regionais (exemplo: soluços produzidos pela invasão do

nervo frénico por tumor do fundo gástrico) e a jusante (exemplo: desnutrição dos doentes com

obstruções luminais) da causa de sofrimento do doente (ver outros exemplos abaixo: disfagia,

obstrução pilórica, outras).

Na maioria dos doentes observados na idade adulta é importante indagar aspectos relacionados

com os hábitos alimentares (por exemplo: abuso de ingestão de café, álcool, alimentos fumados ou

conservados pelo sal, gorduras e fritos, ingestão de alimentos muito quentes), uso de fármacos

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agressivos para a mucosa digestiva (exemplo: anti-inflamatórios não-esteróides, corticosteróides,

tetraciclinas, alandronato) ou ingestão de cáusticos, consumo de tabaco.

O perfil psicológico dos doentes com queixas digestivas deve ser também avaliado, pois as

manifestações psicossomáticas são muito semelhantes aos sintomas de doença orgânica.

A relação das queixas com a ingestão de alimentos e a evolução temporal dos sintomas faz

parte obrigatória do interrogatório dos doentes do tubo digestivo, por aportarem significativos

contributos para a interpretação da patologia em causa.

Este tipo de orientações para conduzir o interrogatório e o exame físico dos doentes com

patologia do tubo digestivo proximal, acima sugeridas, são aplicáveis, com as adaptações adequadas, à

maioria dos órgãos tubulares com funções de propagação de um conteúdo. O exercício mental que

propusemos desenvolver, com intenção de fazer um diagnóstico topográfico e anatomo-funcional,

destina-se, também, a balizar a orientação dos meios complementares de diagnóstico para obter uma

boa eficácia da sua utilização.

Sintomas

Os sintomas pelos quais os órgãos do tubo digestivo manifestam o seu sofrimento, são muito

semelhantes quer a doença seja originariamente deste aparelho, quer sejam dependentes de outros

aparelhos ou sistemas e se apresentem como manifestações digestivas. A distinção destes dois tipos de

situações é por vezes delicada, mas é necessário ter-se em atenção para poder orientar o diagnóstico e

a terapêutica, evitando percursos de raciocínio inapropriados e que podem ser prejudiciais ao doente

(exemplo: náuseas e vómitos podem ser motivados pela ingestão de medicamentos como os digitálicos

ou podem ter origem em patologias do sistema nervoso central).

A terminologia usada no contexto semiológico das doenças do tubo digestivo compreende

muitos termos precisos, com significado bem definido, como, por exemplo, disfagia ou hematemeses,

que para a generalidade dos médicos correspondem a uma queixa igualmente interpretável e registada

como tal. No entanto, algumas designações aceites pela gíria médica não têm este carácter tão

universal, ou porque os sintomas e/ou sinais a que se referem não são interpretáveis com rigor, clareza

e facilidade, necessários para que não subsistam variações na leitura e registo das queixas dos doentes

(ex: hematoquezia vs melena; enfartamento pós-prandial), ou porque fugindo a um interrogatório

sistemático e pormenorizado, se evita a especificação e se opta por uma nomenclatura mais vaga e

imprecisa (ex: queixas dispépticas, indigestão).

Ao registar, ou transmitir, os dados da anamnese devem evitar-se referências imprecisas.

Assim, quando se utilizam expressões como “queixas dispépticas” para referir dor ou desconforto

abdominal, episódico, recorrente ou persistente, ou qualquer outro sintoma do tubo digestivo (com

exclusão de icterícia ou hemorragia, por estes serem geralmente tão evidentes que merecem uma

referência precisa) que se manifeste por sintomas mal caracterizados, pouco ou nada é introduzido na

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história do doente, que possibilite um acréscimo à compreensão do quadro clínico. O conceito de

“indigestão” é igualmente tão vago que enferma das mesmas limitações que o anterior - está ligado a

queixas que englobam um leque vasto de sintomas, desde o enfartamento pós-prandial à flatulência,

das designadas “paragens de digestão” à diarreia e aos vómitos. Em nosso entender estas designações

podem ser sempre substituídas, com vantagem, pela descrição feita pelo doente, empregando as suas

próprias palavras.

Também os doentes utilizam frequentemente palavras do léxico médico mas com sentido

omisso ou mesmo errado (na semiologia digestiva os exemplos mais comuns são provavelmente

“azia”, “cólicas”, “icterícia”, como assinalaremos mais abaixo), pelo que se torna necessário “contra-

interrogar” o doente com a intenção de assegurar que a terminologia sintomática, por ele utilizada para

descrever as suas queixas, corresponde às designações técnicas do léxico médico.

1. Disfagia

Definição – Disfagia, ou dificuldade de deglutir, é um sintoma que indica a presença de

doença ou disfunção dos órgãos responsáveis pela progressão dos alimentos até ao estômago.

Se a dificuldade de engolir se faz acompanhar por dor, esta designa-se por odinofagia.

A disfagia deve ser considerada como manifestação relevante de doença que impõe

esclarecimento etiológico rigoroso. Até prova em contrário não pode ser tomada como manifestação

emocional ou psicossomática, nem confundida com o globus histericus, termo utilizado para designar

a sensação de bola ou aperto na garganta, independente da deglutição.

A localização da disfagia, referida pelo doente, permite avaliar com bastante rigor a região

esofágica em que se encontra a lesão. Podemos considerar a existência de disfagia alta (cervical),

torácica (retroesternal) e abdominal ou baixa (referida geralmente ao nível do apêndice xifoideu).

A dificuldade de progressão pode ocorrer inicialmente apenas para alimentos sólidos ou para

líquidos. O tipo de alimentos que provocam mais precocemente disfagia está relacionado com a

etiologia da doença esofágica, como assinalamos mais abaixo. Com a progressão da doença

habitualmente verifica-se uma tendência para a disfagia ser para ambos os tipos de alimentos.

A disfagia manifesta-se ou de forma súbita, ou por agravamento progressivo. A ocorrência de

disfagia pode ser ocasional, apenas com determinados alimentos, como o pão, a carne ou os bolos

secos e ter apenas a duração de poucos segundos (forma de apresentação ligeira). Nas formas

moderadas a sensação de paragem dos alimentos sólidos só desaparece após ingestão de líquidos, para

limpar o esófago. Nas formas mais graves o impacto alimentar obriga a manobras mais complexas

para fazer desencravar o alimento do esófago, inclusivamente pode ser necessário recorrer à

desobstrução do lúmen esofágico por endoscopia. O impacto alimentar, numa das suas apresentações

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mais conhecidas, steak house syndrome, pode ocorrer como primeira manifestação de doença

esofágica, durante a deglutição de um “bom naco” de bife mal mastigado.

Fisiopatologia – O esófago é um órgão tubular constituído por duas camadas musculares (uma

circular e interior, outra longitudinal e exterior) que envolvem uma parede mucosa com epitélio

estratificado pavimentoso. Inicia-se no esfíncter esofágico superior (EES - constituído principalmente

pelo músculos cricofaríngeo e constritor inferior da faringe) na transição com a porção distal da

faringe, percorre o pescoço e o mediastino posterior junto da coluna, atravessa o diafragma para o

abdómen pelo hiato esofágico e termina no estômago por uma porção designada cárdia.

A principal função do esófago é fazer progredir os alimentos desde a boca, ou mais

exactamente desde o EES até ao estômago. O esófago é um órgão geralmente vazio, sem conteúdo,

devido à acção dos dois esfíncteres situados nas suas extremidades. O EES mantendo-se geralmente

encerrado impede que o ar respirado seja também deglutido. O esfíncter esofágico inferior (EEI),

situado no cárdia, tem por função principal actuar como válvula de abertura preferencial e coordenada

pela chegada das ondas peristálticas de propagação esofágica que atingem a porção distal do órgão, e

assim permitir a chegada dos alimentos ao estômago. O EEI relaxa-se para dar passagem aos alimentos

e em condições fisiológicas permite o refluxo de gás ou líquido, apenas quando o regime de pressões

gástricas se eleva demasiado. O seu papel como escape do ar e/ou líquido em excesso no estômago

(refluxo) é uma função fisiológica importante em diferentes processos digestivos.

A actividade propulsora do esófago e o funcionamento coordenado dos seus dois esfíncteres

deve-se, por um lado, às propriedades intrínsecas dos seus músculos e, por outro lado, às influências

nervosas (dos nervos vagos e dos plexos de Meissner e Auerbach, com contingentes nervosos

colinérgicos, adrenérgicos e não-colinérgicos-não-adrenérgicos) e parácrinas (prostaglandinas,

histamina, gastrina, secretina, colecistoquinina).

A disfagia pode ter origem em diferentes processos patológicos que alterem o normal

funcionamento dos esfíncteres esofágicos (EES ou EEI) ou a propulsão coordenada do bolo alimentar

(peristalse) através do corpo do esófago (Tabela 1).

Os alimentos, após terem sido mastigados e misturados com saliva, são empurrados

voluntariamente para cima e para trás pela língua, seguindo-se um conjunto de mecanismos de

coordenação complexa que envolve a língua, o palato que se eleva para tapar a nasofaringe, até

chegarem à faringe (1º fase da deglutição). A transferência da faringe para o esófago (2º fase da

deglutição), é feita sobretudo pelos músculos constritores da faringe e deve ser acompanhada de

relaxamento do cricofaringeo, com encerramento simultâneo da glote, produzindo-se uma ejecção do

bolo alimentar com ganho de energia cinética. A 3ª fase da deglutição é o tempo de passagem ou

transporte esofágico.

De forma geral, a disfagia pode resultar de perturbação funcional ou de obstrução do lúmen, a

maior parte dos casos com origem nas estruturas do próprio esófago (parietal). Como cada um destes

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tipos de causa de disfagia tem nos diferentes segmentos esofágicos preponderância conhecida, a

determinação da localização da disfagia é dos primeiros passos diagnósticos. A região esofágica em

que a progressão alimentar se encontra dificultada, ou é interrompida, corresponde com bastante

exactidão topográfica à localização da região afectada e é referida pelo doente ao descrever as suas

queixas.

As causas mais frequentes de disfagia são de origem parietal e têm como substrato patologias

da mucosa ou neuro-musculares (Tabela 1).

Raramente a causa de disfagia se deve a compressão extrínseca (aneurismas, anomalias

vasculares, hérnia paraesofágica que comprime o lúmen, gânglios patológicos com fixação ao

esófago), uma vez que é necessário que o processo patológico condicione fixação da parede do órgão,

impedindo que este se desvie, pois, caso contrário, o calibre e a função podem manter-se não

alterados. Por vezes os tumores ou anomalias dos órgãos do mediastino produzem disfagia, mas as

causas ligadas ao próprio esófago são de considerar sempre em primeiro lugar e devem ser excluídas

antes de aceitar como etiologia uma compressão extrínseca. No entanto, doenças neuro-musculares

extrínsecas ao esófago cursam com disfagia, sobretudo alta, por interferirem com a coordenação de

músculos estriados (Tabela 1).

A presença de corpos estranhos deglutidos pode impedir a progressão do bolo alimentar

devendo ser extraídos, por via endoscópica ou cirúrgica. A lesão da mucosa provocada pela passagem

de corpos estranhos de maior volume ou com formas agressivas (arestas, bicos) pode fazer permanecer

a sensação de disfagia, mesmo após o desaparecimento do material que produziu a obstrução e lesão

iniciais. As sondas naso-gástricas, utilizadas frequentemente no tratamento de doentes, podem ser

causa de disfagia, quer pela obstrução do lúmen, quer por desencadearem processos inflamatórios ou

darem origem a infecções secundárias (frequentemente por cândidas).

Os processos que afectam a mucosa (esofagite de origem péptica ou cáustica, neoplasia,

infecção - Tabela 1) provocam a sensação de dificuldade de engolir por inflamação-ulceração ou por

diminuição do calibre do órgão (estenose). De forma geral, a disfagia nestes processos patológicos é

inicialmente para sólidos, progredindo para líquidos nas formas mais graves de doença. A esofagite

péptica é a expressão patológica resultante da doença do refluxo gastroesofágico, isto é, duma

agressão pelo conteúdo gástrico excessiva para as capacidades de resistência da mucosa do esófago,

que pode evoluir para lesões inflamatórias transmurais com compromisso da coordenação peristáltica,

lesões ulceradas ou estenoses (vide: Refluxo, Endoscopia esofágica, Manometria e pHmetria). Os

aspectos macroscópicos das lesões da mucosa esofágica, quando observada por endoscopia são:

hiperémia, erosões lineares, friabilidade, exsudação, hemorragia, úlcera, estenose, mucosa gástrica. A

esofagite é uma doença que vai e vem, com altos e baixos em gravidade e a observação da mucosa em

fase de máxima regressão pode fornecer informação enganadora no que diz respeito à gravidade da

doença noutras épocas sintomáticas.

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Localização topográfica

Origem na mucosa Origem neuromuscular Origem extrínseca

Alta -

(transferência)

. Neoplasia

. Estenose cáustica

. Avitaminose

. Anemia ferropénica (Plummer-Vincent) . Lesões ulcerativas (herpes, monília, angina de Vincent)

. Hipertonia do EEI

. Divertículo Zenker

. Acalásia do cricofaríngeo

. Distrofia muscular oculo-faríngeo

. Conectivites (dermatomiosite)

. Alterações motoras secundárias

. AVC

. Trauma

. Alterações operatórias

. Parkinson

. Esclerose lateral amiotrófica

. Miastenia gravis

. Poliomielite

. Angina diftérica

. Paralisia cerebral

. Coreia Huntington

. Anéis fibro-conjuntivos

. Abcessos peri-esfincterianos Torácica -

(Progressão -Corpo)

. Carcinoma

. Esofagite de refluxo (Barrett, estenose, …) . Esofagite cáustica . Candidíase

. Acalásia

. Espasmo difuso do esófago

. Quebra nozes

. Esofagite (transmural)

. Divertículos

. Leiomioma, leiomioblastoma

. Alterações motoras secundárias

. Aneurisma da aorta

. Fixação a adenopatias (neoplásicas, infecciosas)

Baixa - (EEI)

. Carcinoma

. Esofagite de refluxo

. Esofagite cáustica

. Acalásia

. Esclerodermia

. Alterações motoras secundárias

. Tumores do fundo gástrico

. Hérnia para-hiatal

Tabela 1 - Etiologias mais frequentes de disfagia.

Nas fases em que a doença é transmural, a esofagite de refluxo perturba a coordenação motora

do esófago distal, pensando-se ser este o mecanismo que produz disfagia, mesmo na ausência de

obstrução luminal. A disfagia é geralmente para sólidos, ligeira a moderada, de evolução intermitente,

com intervalos livres, arrastada, acompanhada de queixas de refluxo gastroesofágico. As queixas

tornam-se progressivas e constantes nas formas estenosantes, podendo mesmos ser referida para

líquidos.

Na doença cáustica a par com a descrição da ingestão (ocasional ou intencional) do produto

agressivo para a mucosa, a da disfagia é de aparecimento agudo, súbito e de evolução rapidamente

progressiva, acompanhada de odinofagia, ocorrendo nas formas mais graves inclusivamente para a

deglutição da saliva. Recorde-se que o primeiro ponto de relentamento do trânsito esofágico se situa

no estreito aortico-brônquico, região aonde estas lesões são geralmente muito graves. A evolução para

a estenose é frequente e as lesões devem procurar-se em todo o trajecto do cáustico, portanto na boca,

faringe e estômago.

Nas neoplasias da mucosa a disfagia surge habitualmente por ocupação do lúmen. O

carcinoma pavimento-celular é o tumor mais frequente do corpo do esófago. O adenocarcinoma,

geralmente considerado como tumor apenas dos segmentos distais (cárdia ou fundo gástrico com

invasão do esófago) ou surgindo em áreas da mucosa com metaplasia intestinal (Barrett), tem sido

encontrado cada vez com maior incidência nas sociedades economicamente mais avançadas. Devido à

boa capacidade propulsora do esófago a montante do tumor, apenas quando cerca de 1/3 da

circunferência do órgão se encontra atingida é que a disfagia se torna mais evidente. Geralmente

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começa por ser sentida para os sólidos mais difíceis de deglutir (pão, carne, bolos secos), passando a

ser referida seguidamente para alimentos pastosos, moles e posteriormente para líquidos. O carácter

progressivo, sem regressão, sem sintomas concomitantes de refluxo gastroesofágico e acompanhado

de repercussão no estado geral, muitas vezes em doentes grande fumadores, com ingestão alcoólica

abusiva e má higiene oral, são aspectos francamente sugestivos de etiologia neoplásica.

Nas avitaminoses e anemias ferropénicas pode ocorrer disfagia, mais frequentemente alta, por

lesão da mucosa.

As lesões neuro-musculares do esófago que causam disfagia podem ter carácter funcional ou

ser de origem tumoral (Tabela 1).

Na maior parte das situações de disfagia por incoordenação motora a origem das alterações é

esofágica, mas o esófago pode ser envolvido secundariamente em doenças sistémicas que cursam com

perturbações (secundárias) da motilidade esofágica, ocasionando disfagia (lupus eritmatoso

disseminado, esclerose sistémica progressiva, diabetes mellitus, tirotoxicose, amiloidose,

presbiesófago, outras).

As disfunções do EES que induzem disfagia são geralmente do tipo hipertónico, impedindo a

progressão dos alimentos, ou por incoordenação com os múculos constritores da faringe.

A hipertonia do EES pode produzir um regímen de tensões intraluminais favorecedor da

herniação, a montante. A mucosa do esófago penetra na zona de menor resistência (fraqueza) entre o

bordo superior do cricofaríngeo (hipertónico) e o bordo inferior do constritor inferior da faringe. A

orientação transversal do cricofaríngeo e o curso oblíquo do constritor inferior da faringe, criam um

espaço triangular desprovido de suporte muscular, na região latero-posterior. Na deglutição normal, o

cricofaríngeo relaxa-se aquando da contracção dos constritores da faringe para deixar progredir os

alimentos. Quando existe hipertonia e/ou incoordenação do cricofaríngeo a mucosa tem tendência a

herniar pelo triângulo acima descrito, dando origem ao aparecimento de um divertículo (de Zenker)

que cresce para fora do esófago. A partir de certo volume pode ser notado no pescoço como uma bolsa

que se enche e esvazia de alimentos, facto que os doentes referem associado à dificuldade de engolir e

a halitose.

A disfagia alta, associada à hipertonia do EEI e/ou incoordenação motora faringo-esofágica

(disfagia de transferência), pode ter outras origens, como por exemplo acidentes vasculares cerebrais

com paralisia bulbar, poliomielite, miastenia gravis, dermatomiosite, polineuropatia diftérica (Tabela

1).

Nas situações de incoordenação motora faringo-esofágica a disfagia pode acompanhar-se de

aspiração traqueal associada à deglutição, regurgitação de líquido pelo nariz, odinofagia ou

incapacidade de “empurrar” os alimentos para a faringe, por alteração dos nervos cranianos

responsáveis pela coordenação da transferência dos alimentos da boca para a faringe e posteriormente

para o esófago.

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Lesões inflamatórias, granulomatosas e/ou neoplásicas (exemplo: da tiróide) peri-

esfincterianas podem induzir alteração da deglutição por deficiente encerramento ou abertura do EES,

ou por compressão extrínseca.

As alterações neuro-musculares mais frequentes do corpo do esófago e que perturbam a

peristalse são a acalásia, o espasmo difuso do esófago e o esófago em quebra-nozes. Nestas situações

as ondas peristálticas primárias e secundárias, normalmente propulsoras, são substituídas por ondas

terciárias, incoordenadas, sem eficácia (ver Manometria) e que estão na base da disfagia.

Na acalásia, associada a esta dismotilidade do corpo do esófago, ocorre uma incoordenação

entre as ondas do corpo e o EEI, que se traduz por não abertura do esfíncter na sequência da chegada

da onda peristáltica do corpo, ficando os alimentos retidos a montante do EEI, anormalmente

hipertónico e não coordenado.

Por este mecanismo fisiopatológico se explica a disfagia inicial para líquidos, muito

característica das doenças neuromusculares do corpo esofágico, mas sobretudo da acalásia. A ejecção

faringo-esofágica dos sólidos transmite-lhes uma energia cinética superior à que é transmitida aos

líquidos e pelo efeito de massa-peso que os sólidos exercem no interior do lúmen esofágico ser

superior aos dos líquidos, a progressão dos sólidos só é perturbada mais tardiamente. Na acalásia, a

pressão (peso) dos sólidos actua sobre o esfíncter hipertónico promovendo a sua abertura. Para que

este efeito de pressão sobre o EEI actue, aquando da ingestão de líquidos, é preciso uma coluna de

líquido para a exercer e a altura desta coluna será tanto maior quanto maior for a incoordenação

motora do corpo e a hipertonia do EEI. Assim, geralmente, na acalásia os doentes referem disfagia

inicialmente para líquidos, que se vai agravando progressivamente e só mais tarde aparece disfagia

para sólidos.

A coordenação peristáltica esofágica, necessária para a propulsão do bolo alimentar e para a

limpeza do lume, parece estar alterada mesmo em doentes com esofagite de refluxo sem disfagia

clínica e sem estenose orgânica. Nos doentes que referem disfagia, sem estenose, nem sempre tem sido

possível demonstrar alterações manométricas ou gamagráficas que expliquem este sintoma. A

clarificação esofágica de material ácido refluído está frequentemente reduzida nos doentes com

esofagite, verificando-se também diminuição de limpeza dos resíduos alimentares que normalmente

resultam da desagregação do bolo alimentar, ejectado para o esófago pela deglutição. Estas alterações

podem explicar a disfagia referida por estes doentes.

O EEI pode ser causa de disfagia funcional por hipertonia e incoordenação motora de

relaxamento (acalásia) ou por hipotonia permitindo o refluxo excessivo de conteúdo gástrico (ácido

e/ou biliar) que vai lesar a mucosa (Tabela 1), como acontece na doença do refluxo gastroesofágico e

na esclerodermia (ver Refluxo, Manometria, pHmetria, Endoscopia).

Os tumores musculares do esófago (leiomioma e leiomiosarcoma) não são causa frequente de

disfagia, excepto quando atingem dimensões consideráveis ou ulceram a mucosa.

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A obstrução funcional ou efectiva do lúmen esofágico, que produz disfagia, pode trazer

consequências que devem ser investigadas:

• a montante: sialorreia e ingurgitamento das glândulas salivares (principalmente das

parótidas; regurgitação de saliva e restos alimentares; aspiração brônquica de conteúdo

esofágico determinando pneumonias de repetição e/ou broncospasmo.

• no esófago: susceptibilidade a infecções oportunistas; inflamação ou ulceração da parede.

• a jusante: diminuição da ingestão alimentar - desnutrição - défice imunitário.

Formas de expressão dos doentes – engasgar, entupir, embassar, entalar, embuchar

Como interrogar os doentes – Na caracterização da disfagia deve ter-se obrigatoriamente em

consideração:

• ponto (altura) em que o doente refere a dificuldade de passagem dos alimentos;

• tipo de alimentos;

• evolução temporal e a sua relação com o tipo de alimentos;

• refluxo/regurgitação, alguns sintomas e/ou sinais acompanhantes de outras doenças;

• ingestão de cáusticos, corpos estranhos e drogas;

• hábitos alimentares, consumo de álcool e tabaco;

• consequências da disfagia (a montante, locais e a jusante).

O conhecimento das causas mais frequentes de doenças que se manifestam por cada tipo de

disfagia, que descrevemos acima, serve de orientação para a condução da avaliação clínica e para a

selecção dos métodos complementares adequados.

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2. Refluxo gastroesofágico (regurgitação)

Definição – Sensação de subida do conteúdo gástrico pelo esófago até a um nível variável,

podendo chegar à boca. Este refluir (regurgitação) do conteúdo do estômago faz-se sem ser induzido

por esforço para o desencadear (como acontece no vómito). Acompanha-se frequentemente de pirose.

Nas formas ligeiras surge após refeições gordas ou volumosas, ou em decúbito após refeições

importantes. Nas formas moderadas, para o doente torna-se previsível com mudanças de posição,

nomeadamente decúbito, dorsiflexão anterior do corpo (sinal do atacador do sapato) ou os esforços.

Nas formas graves ocorre aspiração traqueobrônquica.

Fisiopatologia – O estômago é um órgão com actividade secretora e muscular intensas,

destinadas a degradar física e quimicamente os alimentos. Para que os alimentos não se escapem para

esófago, situado no tórax e sujeito às pressões negativas desta cavidade, nem progridam para o

duodeno antes de suficientemente fragmentados, a entrada e a saída do órgão estão convenientemente

protegidas por esfíncteres, respectivamente o EEI e o piloro.

O regímen de pressões intra-gástricas varia muito com o decorrer dos processos digestivos (ao

longo do dia) sendo particularmente elevado nos períodos pós-prandiais. Sempre que a capacidade

tónica do EEI se torna insuficiente para contrariar estes aumentos de pressão no interior do estômago,

estão criadas as condições para o escape de conteúdo gástrico no sentido retrógrado, isto é, para o

esófago. Dependendo da qualidade, quantidade e intensidade destes fenómenos, assim serão sentidos e

expressos como refluxo (regurgitação) e/ou apenas como pirose.

A ocorrência de episódios discretos de refluxo pode ser considerada um fenómeno fisiológico,

como é conhecido de quase todas as pessoas e ficou bem demonstrado pelos estudos de pHmetria do

esófago e gamagrafia computadorizada prolongados (ver abaixo). A persistência e o agravamento

qualitativo/quantitativo dos fenómenos de refluxo gastroesofágico (RGE) constituem a base

etiopatogénica da doença do refluxo, que tem como expressão patológica a esofagite.

O EEI funciona como mecanismo de separação funcional entre o lume esofágico e a

câmara gástrica, constituindo uma zona de altas pressões que anula o habitual gradiente de

pressão gastroesofágico. A insuficiência desse mecanismo e o consequente fenómeno de

câmara comum, entre o estômago e o esófago, parece ser universalmente aceite como origem

do RGE.

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A ingestão de drogas ou substâncias que reduzem o tónus do EEI (Tabela 2) podem provocar

refluxo.

Aumento da pressão Diminuição da pressão Gastrina, pentagrastrina Drogas anticolinérgicas Acetilcolina Somatostatina Histamina Nicotina Substâncias alcalinas Ácidos Colecistoquinina Xantinas (café, chá)

Tabela 2 - Factores que influenciam o tónus do esfíncter esofágico inferior

Pela multiplicidade de dados discrepantes sobre o EEI e pelo crescente interesse

investigacional sobre a sua função e implicações terapêuticas das lesões detectadas neste segmento

esofágico, o EEI foi considerado como uma esfinge. A intensa investigação sobre o papel deste

esfíncter na patologia da doença do RGE originou importantes desenvolvimentos na manometria e no

conhecimento da junção esofagogástrica, mas continuam ainda por decifrar alguns "enigmas" deste

esfíncter.

A valorização quantitativa deste mecanismo esfincteriano não é ainda actualmente assunto

passivo. O EEI do mesmo doente pode ser diferentemente valorizado, quanto à sua competência

funcional, se forem utilizados todos os diferentes critérios propostos: tónus, comprimento total,

comprimento do segmento intra-abdominal (ver Manometria).

A ocorrência de episódios de RGE durante períodos de relaxação inadequada desta zona de

altas pressões é explicada pela ineficácia transitória dum esfíncter com tónus normal que dá origem a

episódios de refluxo, como referimos acima. A relaxação inadequada pode ser secundária à distensão

do fundo gástrico.

A transmissão da tensão gástrica à zona de altas pressões situada no cárdia, exerce influência

sobre o mecanismo de abertura do EEI de importância fundamental no controlo do refluxo. Segundo a

Lei de Laplace, a tensão sobre a parede do fundo gástrico aumenta mais do que a pressão intra-gástrica

(P = 2T/r), para o mesmo aumento de volume gástrico. Este fenómeno, designado por relaxação

adaptativa ou de recepção, explica a abertura do EEI mesmo sem grande aumento da pressão intra-

gástrica, após as refeições.

As alterações do esvaziamento gástrico, nomeadamente a tendência para atraso do trânsito

gástrico, e a hiper-secreção gástrica contribuem para aumentar o gradiente de pressões gastroesofágico

e induzir RGE.

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Prof. Paulo Costa

13

O refluxo bilioesofágico é factor de disrupção da mucosa esofágica, por interferência da bílis e

da pepsina no aumento da permeabilidade da mucosa esofágica aos hidrogeniões, com as consequentes

lesões morfológicas.

O aumento da pressão abdominal, produzido por diversas manobras ou posições (ver Como

interrogar os doentes), pode funcionar como indutor dum acréscimo de pressão intra-gástrica

suficiente para tornar o EEI funcionalmente incompetente e permitir o refluxo.

Formas de expressão dos doentes – azia, queimadura atrás do peito, “vem-me a comida (ou o

ácido) à boca,

Como interrogar os doentes - Na caracterização das queixas de refluxo gastroesofágico deve

procurar-se sistematicamente obter informação sobre:

• intensidade, frequência e composição das regurgitações;

• situações desencadeantes de regurgitação, em associação com:

• sobrecarga volumétrica ou lipídica do estômago (tipo de refeições);

• posições facilitadoras de refluxo (decúbito dorsal, flexão anterior do tronco - “sinal

do atacador do sapato”, limpeza do chão, trabalhos em posições em que o tórax

fique mais baixo do que o abdómen e sobretudo se associadas à flexão do tórax

sobre o abdómen);

• consumo de tabaco, café e álcool e outras drogas (Tabela 2);

• correlação entre os factores acima citados (exemplo: se o tempo que medeia entre o

jantar e o deitar é muito curto, a regurgitação é previsível, o mesmo acontecendo

quando ao serão o consumo de tabaco e álcool é abundante).

• coexistência de disfagia deve ser obrigatoriamente interrogada;

• associação de doença péptica gastroduodenal e de patologia biliar, principalmente nos

casos refractários à terapêutica com fármacos tão potentes como os que são hoje

disponíveis (inibidores da bomba de protões);

• a presença de um componente biliar importante no desencadeamento das queixas; a

esofagite biliar, ou alcalina, é uma entidade relativamente rara em doentes não previamente

operados ao tubo digestivo proximal estando contudo frequentemente associada à gastrite,

à estenose e ao Barrett; sobretudo nos doentes gastrectomizados o papel do refluxo biliar

deve ser equacionado como factor desencadeante de queixas esofágicas; igualmente nos

doentes com queixas de refluxo que não cedem ou se agravam com os potentes inibidores

da bomba de protões, actualmente utilizados para combater o RGE;

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• associação do RGE a queixas respiratórias resultantes de infecções repetidas ou quadros

de dispneia tipo asmatiforme, provocados pela aspiração do refluxo (quase sempre

nocturna, com os doentes em decúbito).

3. Pirose

Definição - Sensação de queimadura retroesternal que sobe do abdómen (estômago) até um

nível variável do tórax, podendo atingir a região cervical ou a boca.

A pirose pode ser ocasional, não tendo sido alvo de tratamento prévio (mínima). Nas formas

moderadas constitui a razão principal da visita médica ou é o “problema” médico. Nas formas graves

torna-se constante, perturbando a actividade diária.

Fisiopatologia – ver “Refluxo”.

Formas de expressão dos doentes – calor, fogo, queimadura, azia (atenção: muitos doentes

designam por “azia” as queixas de pirose, pelo que deve ser claramente perguntado o sentido dado

individualmente à palavra “azia”)

Como interrogar os doentes – ver “Refluxo”.

4. Azia

Definição – Sensação de hiperacidez ou queimadura a nível do epigastro.

Fisiopatologia – A sensação de azia pode ser originada pela hiperclorídria, pelo refluxo

biliogástrico ou duodenogástrico.

A presença no estômago, destas substâncias químicas, em quantidade ou proporções anormais,

pode originar uma sensação de queimadura epigástrica, pelo contacto com mucosa fragilizada

patologicamente ou mesmo em indivíduos normais.

O refluxo bilio(duodeno)gástrico patológico (excessivo) está frequentemente associado à

disfunção das vias biliares, provavelmente por aumento da secreção de CCK para produzir a

contracção da vesícula.

Formas de expressão dos doentes – azia, queimadura, ardor, fogo interior, dor

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Como interrogar os doentes – ver “Epigastralgias” e “Discinésia biliar”

5. Epigastralgias

Definição – Dor sentida na região do epigastro.

A esta definição, lato senso, podem corresponder formas de expressão de doenças tão

diferentes como enfarto do miocárdio, ruptura de aneurisma, perfuração de úlcera, pancreatite,

ansiedade, para citar apenas as mais comuns.

No sentido mais restrito, que passamos a considerar na exposição seguinte, as epigastralgias

são dores epigástricas originadas por patologia digestiva. De uma maneira geral, as epigastralgias

originadas na porção gastro-duodenal do tubo digestivo, apresentam-se ligadas à ingestão de

alimentos, que as pode desencadear ou aliviar. Outras queixas devidas a patologias destes órgãos

acompanham geralmente estas epigastralgias e devem ser pesquisadas em simultâneo.

De uma forma geral, as epigastralgias “crónicas” ou recorrentes constituem um quadro clínico

que deve ser abordado com uma perspectiva semiológica muito pragmática, que apresentaremos como

forma de interrogar os doentes, pois está em jogo separar queixas funcionais de doença orgânica

(péptica ou neoplásica), com abordagem terapêutica distinta e obrigatória, de manifestações somáticas

de perturbações não orgânicas.

As epigastralgias “agudas” podem, como já referimos, ser a expressão de doenças não

digestivas, mas a dor epigástrica aguda da perfuração do estômago ou duodeno, pode ser a primeira

manifestação de doença destes órgãos (ver Abdómen Agudo), embora mais frequentemente nestas

doenças se encontre um passado de epigastralgias recorrentes ou “crónicas”.

Fisiopatologia - A dor epigástrica das doenças pépticas, nomeadamente das úlceras gástricas

e duodenais, tem um substrato orgânico e fisiopatológico provavelmente diferente das epigastralgias

de origem neoplásica.

Nas úlceras duodenais e gástricas, como evidenciou Moynihan no princípio do século, a

relação entre a ingestão de alimentos e a dor epigástrica é geralmente diferente.

Nas úlceras duodenais o padrão habitual é dor-ingestão-alívio. A dor, descrita como

semelhante a fome, desaparece com os alimentos, por um período longo, 2 a 4 horas, para voltar a

surgir e aliviar novamente com a ingestão de alimentos ou anti-ácidos. Os doentes acordam

frequentemente de noite, cerca das 2 horas da madrugada, com dor (fome) e procuram alimentar-se

para a combater. O leite é um dos alimentos mais procurados para minimizar a dor.

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Nas úlceras gástricas, a dor, quando alivia com a ingestão alimentar, é apenas por um período

curto, 30 a 90 minutos, seguido de dor até que o estômago se esvazie, cerca 60 - 90 minutos depois.

Este ritmo, dor-conforto-dor-alívio, geralmente tido como habitual nas úlceras gástricas, é muitas

vezes diferente, podendo os doentes referir agravamento da dor com a ingestão alimentar. Também

muitos doentes com este tipo de úlceras tem um padrão doloroso semelhante ao das úlceras duodenais,

acordando mesmo durante a noite com a sensação de fome.

A explicação para estes padrões dolorosos é controversa. Para alguns Autores, a dor deve-se à

acção directa do ácido clorídrico sobre nervos sensitivos no pavimento da úlcera, enquanto para outros

um mecanismo diferente está implicado no despertar da dor (alterações da motilidade ocasionadas pela

úlcera, aumento da tensão das paredes gástricas e duodenais com hipermotilidade/espasmo e atrasos de

esvaziamento; inflamação associada ao processo ulceroso). É provável que vários factores sejam

responsáveis, quer isoladamente quer em associação, pelo despertar da dor.

A admitir-se a teoria da acção directa do ácido como desencadeante da dor, o padrão doloroso

na úlcera duodenal corresponderia, no essencial, às fases de exposição da úlcera ao agente agressor e o

alívio ficava a dever-se ao seu tamponamento pela acção dos alimentos ou de anti-ácidos. O

aparecimento de um padrão “tipo úlcera duodenal”, em doentes com úlcera gástrica, pode relacionar-

se com as observações de Johnson que verificou diferentes comportamentos secretores neste tipo de

úlceras: as úlceras gástricas pré-pilóricas (Tipo I) e as úlceras do antro associadas a úlceras duodenais

(Tipo II) apresentam um padrão secretor do tipo hipercloridria, enquanto as úlceras situadas no corpo

ou fundo (Tipo III) cursam com hipocloridria. Assim nos doentes com úlceras gástricas de Tipo I ou

II, segundo a classificação de Johnson, o padrão doloroso pode assemelhar-se ao das úlceras

duodenais.

Nos doentes com cancro gástrico, a dor epigástrica pode apresentar-se sob diversos padrões.

As lesões neoplásicas, enquanto não atingem dimensões suficientes para perturbar mecanicamente a

passagem dos alimentos pelo cárdia (produzindo disfagia) ou pelo piloro (causando enfartamento,

vómitos), podem manifestar-se por epigastralgias, frequentemente referidas como desconforto

epigástrico ou abdominal alto, mal definido, com características vagas ou de sensação de “indigestão”,

enfartamento ou flatulência com necessidade de eructação. Em muitos doentes a dor pode manifestar-

se por um padrão em tudo semelhante ao das úlceras pépticas, com ritmos de desconforto-alívio

induzidos pela ingestão alimentar. As mais das vezes a ingestão de alimentos induz desconforto e

sensação de saciedade precoce. Uma modificação do padrão doloroso habitual (desconforto-alívio

relacionado com a ingestão alimentar) surge frequentemente se as queixas são devidas a cancro

gástrico.

A dor epigástrica aguda de origem digestiva está tipicamente relacionada com a perfuração

de úlcera péptica. A dor intensa, com início tão súbito que os doentes sabem precisar com exactidão, é

referida como uma punhalada ou facada, tornando-se a face pálida, expressando grande ansiedade e

apelando por alívio, com os olhos abertos, fixos e olhar observante, o cabelo e a face banham-se em

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suor. A irritação do peritoneu provocada pela entrada súbita de conteúdo gástrico, quimicamente muito

agressivo, induz uma reacção peritoneal muito rápida, com contractura muscular involuntária marcada

da parede abdominal (“ventre em tábua” - ver Abdómen Agudo) os movimentos respiratórios tornam-

se superficiais, curtos e quase apenas sub-costais e diafragmáticos, devido à rigidez do ventre. Para

não despertar a dor os doentes tendem a imobilizar-se, parecendo até que o falar pode agravar os

padecimentos. Este quadro de grande irritação peritoneal química é geralmente substituído pela

instalação de peritonite mista (química e bacteriana) 2 a 6 horas após a perfuração.

A dor epigástrica aguda também pode ter origem em patologia da vesícula ou do pâncreas,

sendo causas a considerar no diagnóstico diferencial de dor no “Abdómen Agudo” com inicio nesta

região.

Formas de expressão dos doentes – dor de estômago; azia; dor de fome; cólica;

Como interrogar os doentes – A caracterização das epigastralgias “crónicas” ou recorrentes,

como de qualquer tipo de dor, deve incidir sobre os seguintes aspectos:

• Tipo de dor – A dor na doença péptica é geralmente descrita como semelhante a fome,

ardor, azia. Nas neoplasias é muitas vezes descrita como um desconforto, ou moinha, com

sensação de saciedade persistente e enfartamento pós-prandial.

• Irradiação – A dor epigástrica crónica de causa gastroduodenal pode irradiar para a região

dorsal. Nos tumores do estômago a dor pode ser referida a localizações não epigástricas,

devido a invasão de estruturas nervosas ou órgãos vizinhos.

• Horário – A variação diária da dor, por ciclos relacionados com a ingestão alimentar, é

designada geralmente por “horário” das epigastralgias.

Nas úlceras duodenais o padrão habitual é dor-ingestão-alívio, por a dor desaparecer com

os alimentos, por um período longo, 2 a 4 horas, para voltar a surgir e aliviar novamente

com a ingestão de alimentos ou anti-ácidos. Os doentes acordam frequentemente de noite,

cerca das 2 horas da madrugada, com dor.

Nas úlceras gástricas o ritmo habitual é dor-conforto-dor-alívio, sendo o alívio com a

ingestão alimentar por um período curto, 30 a 90 minutos, seguido de dor até que o

estômago se esvazie, cerca de 60 - 90 minutos depois.

Nas neoplasias a dor pode manifestar-se por um padrão em tudo semelhante ao das úlceras

pépticas, com ritmos de desconforto-alívio induzidos pela ingestão alimentar. As mais das

vezes a ingestão de alimentos induz desconforto e sensação de saciedade precoce. Deve

suspeitar-se da possibilidade de as queixas serem devidas a cancro gástrico em qualquer

doente que note uma modificação do padrão doloroso habitual (desconforto-alívio

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relacionado com a ingestão alimentar) ou quando a dor/desconforto persiste ao longo do

dia.

• Calendário – A doença péptica é geralmente recorrente, sendo possível encontrar em

muitos doentes um calendário de aparecimento, ou agravamento, dos sintomas. Na úlcera

duodenal, esta periodicidade de aparecimento, muitas vezes com as estações do ano, é mais

frequentemente descrita, aparecendo os períodos dolorosos na Primavera e Outono. A

variação sazonal é mais rara na úlcera gástrica e não se encontra nas neoplasias.

• Factores de alívio – O leite é um dos alimentos mais procurados para minimizar a dor.

Anti-ácidos. O vómito nos doentes com obstrução ou dificuldade de esvaziamento antro-

pilórico.

• Factores de agravamento – A fome e/ou a ingestão alimentar. Café, álcool, tabaco.

Fármacos: AINEs, corticoesteróides,

• Sintomas e sinais acompanhantes – Refluxo gastroesofágico, regurgitação, sialorreia com

salivação abundante; anorexia, náuseas, vómitos, podendo ser de estase; intolerância

alimentar; enfartamento; emagrecimento ou aumento de peso (úlceras duodenais); disfagia;

irritabilidade psíquica e quadro de “stress”; hematemeses, melenas ou sintomas e sinais de

anemia crónica; sinais de peritonite.

A integração destes elementos permite formular a hipótese clinicamente mais provável para

explicar a etiologia da dor epigástrica.

Se a caracterização da dor é em tudo correspondente ao padrão de úlcera duodenal somos de

opinião que o doente pode ser aconselhado a eliminar os factores de agravamento da doença e fazer

um ciclo de terapêutica com inibidores da secreção ácida, que devem produzir um rápido alívio ou

desaparecimento dos sintomas (1-2 semanas).

Em todas situações, quando o quadro clínico aponta para úlcera gástrica ou neoplasia, ou

quando a regressão do quadro doloroso não se obtém sob tratamento farmacológico eficazmente

redutor da hipercloridria, os doentes devem ser investigados, sem demoras, por um estudo

endoscópico.

A probabilidade de ser uma neoplasia do estômago pode considerar-se elevada se o doente já

atingiu a 5ª década, tem uma história curta (inferior a 1 ano), o padrão da dor epigástrica se

alterou, a dor/desconforto persiste ao longo do dia, vomitou sangue (hematemese), refere

enfartamento pós-prandial e/ou perdeu peso.

A caracterização das epigastralgias agudas deve ser enquadrada na avaliação de doentes com

Abdómen Agudo.

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6. Enfartamento pós-prandial

Definição – Sensação de plenitude após a ingestão de alimentos, considerada excessiva em

relação com a quantidade ingerida, referida ao epigastro e/ou região peri-umbilical, por vezes também

ao hipocôndrio direito.

Fisiopatologia – O enfartamento pós-prandial continuado (crónico) pode estar relacionado

com disfunção motora ou com lesão obstrutiva gástrica ou duodenal.

As lesões obstrutivas gástricas ou duodenais (cancro ou úlcera) que mais comummente

produzem enfartamento têm localização justa-pilórica. Por impedir o normal esvaziamento gástrico

produzem quadros de estase com distensão do órgão, que se manifestam por enfartamento pós-

prandial.

As designadas “perturbações motoras do estômago” referem-se a um conjunto de alterações do

padrão funcional gástrico, nem sempre com correspondência clínica bem definida, que podem originar

sensação de enfartamento pós-prandial por:

• deficiente adaptação do órgão à entrada dos alimentos, por exemplo, relaxamento

adaptativo inadequado do estômago proximal (principalmente do fundo gástrico)

• hipermotilidade/hipertonia

• hipomotilidade antral com ou sem aumento da capacidade contráctil global

• aumento da resistência pilórica ou bulbar por incoordenação motora

• taquigastria (aumento da frequência das ondas disparadas pelo “pacemaker” antral com

ausência de acoplamento electromecânico e consequente falência de contracção do antro;

propagação retrógrada dos estímulos)

• incoordenação antro-pilórica

A percepção dos fenómenos digestivos, nomeadamente o esvaziamento gástrico, dentro de

certos limites, pode não corresponder a um processo patológico bem definido, mas não é normal.

Quando a quantidade de alimentos ingeridos é “exagerada” ou a qualidade química dos mesmos é

particularmente rica em lípidos ou em temperos muito activos, a maior parte das pessoas apercebe-se

“que tem estômago e que lhe falta ácido, bílis e/ou enzimas pancreáticos” para se libertar do repasto.

Este acontecimento faz parte do dia-a-dia, ou do fim-de-semana, de muita gente saudável, sendo o

enfartamento pós-prandial acompanhado de “uma charutada” e algumas bebidas “espírituosas” para

ajudar a ultrapassar a situação. Mas esta sensação, ou percepção do funcionamento gástrico, pode

ocorrer como somatização de doenças neuróticas, com grande ansiedade a rodear a ingestão alimentar

e deve ser enquadrado no contexto de perturbação psíquica.

A sensação de enfartamento pós-prandial desencadeada principalmente por alimentos gordos,

fritos, ovos, laranjas, está muita vezes associada à disfunção da vesícula.

Page 20: Anamnese Aparelho Digestivo Proximal

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Formas de expressão dos doentes - ficar a rebentar, como se tivesse comido um boi,

Como interrogar os doentes – O interrogatório dos doentes com queixas de enfartamento pós-

prandial deve orientar-se para a determinação do tipo e quantidade de alimentos que produzem as

queixas, para caracterização do padrão evolutivo dos sintomas e para a possibilidade de o

enfartamento estar relacionado com um processo obstrutivo mecânico ou funcional de etiologia a

esclarecer.

Importa precisar, com o máximo de elementos clínicos possíveis de obter, se as queixas

podem ser imputadas a um processo patológico gastroduodenal, pela concomitância de sintomas

geralmente atribuídos a disfunção deste segmento digestivo (exemplo: história de epigastralgias

recorrentes, hematemeses, vómitos, outros) ou, se pelo contrário, a conduta de exploração diagnóstica

complementar se deve orientar para uma patologia sistémica.

As doenças gerais que mais frequentemente se acompanham de enfartamento pós-prandial

encontram-se referidas mais abaixo e devem estar na mente quando se avalia um doente com esta

sintomatologia e sem evidência de doença gastroduodenal. A labilidade emotiva ou a somatização de

problemas só deve ter-se como explicação para este tipo de queixas após uma cuidadosa exclusão de

outras etiologias – esta regra deve aplicar-se a todos os outros quadros sintomáticos mal esclarecidos

que tão frequentemente se constituem com focalização digestiva.

As doenças orgânicas que mais frequentemente produzem enfartamento pós-prandial por

obstrução pilórica são a doença péptica (crises agudas em úlceras peri-pilóricas ou formas crónicas,

cicatrizadas e estenosantes) e os cancros do estômago. Os cancros gástricos, independentemente da sua

localização podem produzir sensação de plenitude pós-prandial por interferência na distensibilidade do

órgão. As agressões cáusticas podem originar obstrução ao esvaziamento gástrico, por vezes com

grandes destruições da arquitectura do estômago.

As alterações do padrão normal de motilidade gástrica podem ser primárias (como por

exemplo: gastroparésia idiopática, síndroma de ruminação, dispepsia funcional, sindromas associados

à aerofagia) ou serem devidas a alterações locais ou a doenças sistémicas que cursam com

perturbações motoras gástricas secundárias (exemplos: pós-cirurgia, pós-radioterapia, gastroparesia

diabética, esclerodermia, neuropatias, hipo ou hiper tiroidismo ou paratiroidismo, doenças infecciosas,

sindromas paraneoplásicos, patologia psíquica com somatização e ansiedade referidas ao

funcionamento digestivo, drogas da família dos tricíclicos e dos opióides).

Estas doenças funcionais e os doentes que as sofrem, são um manancial importante de

“frequentadores” das consultas de Gastroenterologia. As formas agudas, de diagnóstico

frequentemente difícil, se curam fazem-no espontaneamente, as mais das vezes, ou sob acção de

tratamentos sintomáticos e paliativos com procinéticos. Os doentes com formas crónicas são uma

causa frequente de multiplicação de consultas e de eventuais explicações “fisiopatológicas”

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dificilmente demonstráveis. A possibilidade de a causa dos sintomas ser um cancro, uma úlcera ou

uma doença sistémica deve ser sempre tida em consideração.

7. Aerofagia, flatulência e eructação

Definição – Aerofagia é a deglutição de ar em quantidades excessivas.

Eructação é a expulsão pela boca de gases vindos do estômago.

Flatulência é a sensação de distensão abdominal devida à presença de quantidades

excessivas de ar no intestino, que se pode traduzir pela passagem de flatos (gases) pelo ânus.

Fisiopatologia – A maior parte do ar presente no tubo digestivo (20-60%) é deglutido

aquando da ingestão alimentar ou isoladamente, de forma quase inconsciente, nos momentos de

grande concentração ou tensão psíquica.

Se o ar deglutido não for eructado acumula-se no fundo do estômago (câmara de ar gástrica

visualizada no radiograma simples do abdómen em pé) ou acompanha o bolo alimentar.

A acção de bactérias intestinais sobre os alimentos (fermentação) é responsável pelo gás não

deglutido presente no tubo gastrintestinal. Particularmente nas situações que cursam com estase

intestinal e/ou em que o crescimento bacteriano está aumentado existe maior propensão para a

formação de gás.

Formas de expressão dos doentes – Aerofagia: engolir ar

Eructação: arroto

Flatulência: gases, gaseria

Como interrogar os doentes - As queixas de doentes que referem este tipo de sintomas são

muito frequentes na clínica. Representando geralmente uma manifestação exagerada de fenómenos

fisiológicos, torna-se difícil estabelecer padrões de normalidade e critérios de patologia. Estes

sintomas fazem parte do quadro das “más digestões” ou “indigestões” que tão sofridamente muitos

doentes “arrastam penosamente” durante fases da vida. A dificuldade semiológica, ao encarar este

quadro, resulta da possibilidade destas queixas adquirirem para o doente uma importância central, a

ponto de subvalorizar outros sinais ou sintomas indiciadores de patologia orgânica merecedora de

maior cuidado. Referimos seguidamente algumas formas mais comuns de acumulação excessiva de

gás no tubo digestivo, que podem levantar dificuldades de interpretação.

A acumulação excessiva de ar no fundo gástrico pode provocar, por vezes, um quadro de

desconforto abdominal, sub ou retro-costal esquerdo, que pode ser confundido com dor cardíaca. A

combinação do quadro doloroso com enfartamento pós-prandial e alívio com a eructação, deve fazer

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pensar na possibilidade da etiologia estar ligada à aerofagia e conduzir o interrogatório no sentido de

avaliar os hábitos e modos de deglutição do doente. A aproximação semiológica passa também pela

análise do perfil psicológico, momento da vida pessoal e profissional, intercorrências que originem

sobrecarga psíquica ou física associáveis a maior deglutição de ar ou desencadeiem uma insuficiência

coronária. A distensão gástrica provoca também, em muitos doentes, extra-sístoles que podem ocupar

grande relevo no quadro clínico, por serem o elemento mais destacado na anamnese. A história da

função cardíaca deve ser indagada.

A chamada “dilatação gástrica aguda”, por acumulação de ar deglutido ou devido à vedação

insuficiente do tubo de ventilação anestésica (ou de suporte ventilatório), em doentes com parésia

gastrointestinal, que pode surgir no pós-operatório imediato, resultante da intervenção cirúrgica,

ocorre actualmente muito raras vezes, por ser frequente a utilização de sondas de intubação naso-

gástrica que fazem a descompressão preventiva do estômago.

Não raramente, a presença excessiva de gás no intestino provoca dores de tipo cólica ou

desconforto abdominal mal caracterizado, de localização central, acompanhado da sensação de

movimentos intestinais mais vigorosos do que o normal (que deviam ser imperceptíveis ou quase) e de

ruídos característicos (pessoal e socialmente inconvenientes). Estas queixas agravam-se 1-2 horas após

as refeições e em particular se estas forem ricas em hidratos de carbono (ou outros nutrientes que, para

cada pessoa, sejam habitualmente desencadeantes de meteorismo agravado).

Deve procurar-se separar este quadro “crónico” ou “habitual” de um processo oclusivo do

lúmen intestinal que se esteja a instalar, interrogando o doente sobre a concomitância de outros

sintomas ou sinais indiciadores de tumores intestinais. A possibilidade de um quadro semelhante ao

descrito surgir de forma súbita e associado às doenças abdominais agudas deve estar na mente de

quem avalia um doente que se apresenta com o quadro descrito iniciado “en pleine sainté” e com

intensidade apreciável.

A acumulação de gás no ângulo esplénico do cólon é fácil de compreender atendendo à

disposição anatómica deste segmento intestinal. O quadro doloroso associado à distensão deste

segmento do cólon é frequentemente muito doloroso, incómodo para a actividade diária, persistente e

alivia, as mais das vezes, após a defecação, voltando a agravar-se com o passar das horas. Também

nestas circunstâncias pode haver lugar à procura de queixas ou sinais sugestivos de tumor ou

inflamação do cólon.

8. Anorexia, náusea e vómito

Definição – Anorexia, ou perda do desejo de comer, é um sintoma importante e presente

numa enorme variedade de doenças digestivas e não digestivas.

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Fisiopatologia – A anorexia têm etiologia variada. Como é que os mecanismos

fisiopatológicos condicionantes de anorexia interferem com o equilíbrio entre os centros hipotalâmicos

da “fome” e da “saciedade”, fazendo cair a preponderância no sentido da saciedade, não está

perfeitamente determinado para a maioria das situações apontadas como causa de anorexia.

Como causas de Anorexia devem ser consideradas as descritas abaixo para as “Náuseas” pois

de maneira geral sobrepõe-se a estas, podendo em algumas situações aparecer anorexia como forma de

expressão menor deste outro sintoma.

Não raras vezes a anorexia assume uma preponderância no quadro clínico a merecer atenção,

entre outros motivos, por poder ser um sinal de alerta premonitório de doenças graves, como

neoplasias (nomeadamente do tubo digestivo) e patologias hepáticas (hepatite aguda, cirrose hepática

alcoólica). Muitas vezes, doenças extra-digestivas acompanham-se também por anorexia (insuficiência

cardíaca, intoxicação digitálica, insuficiência renal ou respiratória, endocrinopatias, neoplasias, status

pós-operatórios).

A anorexia conduz frequentemente à perda de peso e nas situações mais graves constitui um

problema médico específico, por vezes de difícil solução (por exemplo: nas doenças malignas ou

infecções crónicas, no pós-operatório de grandes intervenções, particularmente se em terreno

neoplásico).

A denominada anorexia nervosa (estado de caquexia auto-imposto, geralmente em quadro

depressivo grave) é um problema médico complexo, que exige abordagem multidisciplinar, não sendo

frequentemente bem sucedida.

Formas de expressão dos doentes – sem apetite

Como interrogar os doentes – A anorexia exige sempre investigação cuidada, por poder

resultar de um conjunto variado de processos fisiopatológicos, muitos deles com consequências

graves. Por as causas se interrelacionarem tão frequentemente com as das “Náuseas”, é aconselhável

proceder a um interrogatório e investigação semelhantes aos que descrevemos para esse sintoma.

A anorexia deve distinguir-se de enfartamento ou intolerância a um tipo particular de

alimentos (ver acima), pois como referimos, o enfartamento pode estar associado a múltiplas causas,

como obstrução gástrica, redução da capacidade de distensão do estômago ou insuficiente aporte bilio-

enzimático, bem como pode resultar de intolerância alimentar que surge nas gastrites, no cancro do

estômago ou na lítiase vesicular por incoordenação funcional – estes dois sintomas surgem após a

ingestão dos alimentos e não antes, como é o caso da anorexia.

Nas situações em que a anorexia domina o quadro clínico deve ter-se em atenção o facto de

poder tratar-se de uma manifestação de doença grave, clinicamente oculta, que um interrogatório

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exaustivo, bem conduzido, pode evidenciar mais precocemente do que se não for considerada esta

realidade.

Deve ser feita avaliação nutricional correcta das consequências da anorexia, pois a desnutrição

resultante da anorexia pode exigir medidas de correcção específicas.

Definição – Náusea é a sensação do desejo de vomitar, referido ao estômago ou à garganta.

Vómito é a expulsão forçada do conteúdo gástrico pela boca. No vómito, ao contrário da

regurgitação, a saída do conteúdo gástrico faz-se precedida ou acompanhada de esforço.

Fisiopatologia – As náuseas são um sintoma muito frequente na clínica. Náuseas e vómitos

podem ocorrer independentemente, mas geralmente estão tão associados que vamos analisá-los em

conjunto. Ambos podem ter etiologia variada que descreveremos na medida em que for necessário

para a avaliação semiológica destes sintomas.

As náuseas, habitualmente acompanham ou precedem o vómito. De maneira geral, com o

adensar das náuseas surge um período de ânsia para vomitar em que os movimentos respiratórios se

alteram, tornando-se mais profundos, rítmicos, intercortados e forçados, como que preparando a emese

que surge finalmente (as três fases do vómito: náusea, ânsia e emese).

O acto de vomitar é um processo complexo, envolvendo uma sequência de acções

coordenadas e integradas por dois núcleos bulbares: o centro do vómito e a zona quimiosensível

desencadeante.

O centro do vómito, situado no pavimento do 4º ventrículo, recebe informações aferentes que

desencadeiam o acto de vomitar, vindas do sistema nervoso central (ex: labirinto, zona quimiosensível

desencadeante) e de outras partes do organismo (ex: tubo digestivo). Estes estímulos aferentes são

percebidos e uma resposta integrada é dirigida, para a periferia, por vias eferentes (nervos frénicos

para o diafragma, nervos espinhais para a musculatura abdominal, nervos viscerais para o estômago e

esófago).

A zona quimiosensível desencadeante recebe estímulos químicos de múltiplas origens,

nomeadamente de fármacos (ver abaixo) e integra informações que são convertidas em estímulos para

desencadear o vómito. Estes estímulos devem ser dirigidos ao centro do vómito para que se verifique

uma resposta periférica, pois este centro quimiosensível isoladamente não coordena o acto de vomitar.

O estado de náusea acompanha-se frequentemente de anorexia e sintomas ou sinais de distonia

vagal (palidez, sudorese e salivação, podendo também ocorrer bradicárdia e lipotímia - sindroma vaso-

vagal).

Na fase de náusea, o estômago fica flácido devido à diminuição da sua actividade funcional e

enquanto está a ocorrer hipermotilidade duodenal e intestinal, com movimento retrógrado (refluxo) do

conteúdo para o estômago, que acomoda passivamente esta sobrecarga dilatando o fundo.

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Durante a fase de ânsia os movimentos respiratórios alteram-se, como já referimos,

aumentando progressivamente de amplitude e intensidade, a glote fecha-se interrompendo os ciclos

normais, ocorrendo em simultâneo esforço inspiratório dos músculos torácicos e do diafragma em

oposição às contracções expiratórias da musculatura abdominal. O fundo gástrico mantém-se flácido

mas o antro desenvolve contracções vigorosas.

A emese resulta da contracção intensa e mantida dos músculos abdominais e da descida do

diafragma. O cárdia abre-se e o piloro contrai-se, mantendo-se o corpo e fundo flácidos e distendidos,

pelo que o grande aumento da pressão abdominal projecta o conteúdo do estômago para o esófago. O

palato mole sobe reflexamente para proteger a nasofaringe, a glote encerra-se e o conteúdo gástrico é

expulso violentamente pela boca. A energia necessária para vomitar é, assim, mais dependente de todo

este conjunto de movimentos da musculatura abdominal, diafragmática e respiratória, que aumentam

drasticamente a pressão abdominal, do que propriamente do estômago.

As causas mais frequentes de náuseas e vómitos são:

• Doenças do tubo digestivo – as causas originariamente digestivas de anorexia, náuseas e/ou

vómitos são múltiplas; o estômago pode ser o ponto de partida destas situações em doenças

como as gastrites (a gastrite crónica alcoólica é o exemplo mais frequentemente apontado

desta situação, sendo também causas destes sintomas as formas agudas corrosiva,

infecciosa, fleimonosa e formas crónicas hipersecretoras), a doença péptica

(particularmente se as úlceras alteram o normal funcionamento do conjunto antro-pilórico

ou se produzem estenose pilórica) ou o cancro gástrico (em qualquer localização, mas com

maior significado nas localizações distais, por interferir com o esvaziamento); as doenças

obstrutivas do tubo digestivo acompanham-se geralmente de anorexia, náuseas e/ou

vómitos (ver caracterização dos “Vómitos” e quadro de “Oclusão intestinal”/vómitos

fecalóides); as doenças infecciosas agudas do aparelho digestivo apresentam

frequentemente no seu quadro clínico esta tríade sintomática, como acontece por exemplo

nas gastroenterites, colecistite aguda, apendicite aguda, hepatite viral, entre outras; a

aerofagia e a intolerância às refeições gordurosas (associada à lítiase vesicular e à

insuficiência pancreática) acompanham-se frequentemente de náuseas e vómitos.

• Ingestão de irritantes ou venenos – a ingestão de substâncias tóxicas pode induzir náuseas,

seguidas ou não de vómitos, por três mecanismos: a) aversão ou repulsa psicológica,

aquando de produtos com sabor ou cheiro desagradável, ou quando evocam a possibilidade

de ser prejudiciais; b) por irritação directa da mucosa gástrica ou do tracto digestivo; c) por

acção central de produtos absorvidos

• Ingestão de fármacos – morfina, analgésicos centrais, digitálicos, alcalóides da ergotamina,

citostáticos

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• Infecções agudas – muitas doenças infecciosas, particularmente as agudas e que cursam

com febre, são acompanhadas de anorexia, náuseas e/ou vómitos; a entrada em circulação

de mediadores da resposta inflamatória sistémica pode actuar sobre os centros bulbares do

vómito, designadamente na zona quimiosensível desencadeante e originar náuseas; esta

reacção geral do organismo, como resposta comum a múltiplas causas, é também

frequentemente acompanhada de vómitos; trata-se de resposta do organismo a “agressões”

fora do aparelho digestivo, mas em que as manifestações digestivas podem assumir uma

importância sintomatológica preponderante.

• O abdómen agudo – este conceito de doença aguda que requer quase sempre intervenção

cirúrgica urgente está ligado a três tipos de doenças que podem cursar com anorexia,

náuseas e vómitos, isoladamente ou em associação: 1) as infecções de órgãos ocos

abdominais (ex: apendicite, colecistite); 2) as peritonites e 3) as obstruções intestinais.

• Doenças de outros sistemas – em algumas doenças não digestivas ocorrem náuseas e/ou

vómitos, por mecanismos mal conhecidos, como por exemplo no enfarte do miocárdio e na

cólica renal; nas perturbações do sistema vestibular labiríntico, com ou sem vertigem, por

exemplo na doença de Menière, doenças do movimento (viagens marítimas, de automóvel,

outras) as náuseas e os vómitos são frequentes (ver Capítulos respectivos).

• Alterações metabólicas – a urémia, a tirotoxicose, a crise Addisoniana e a hipercalcémia

acompanham-se habitualmente de náuseas e vómitos.

• Doenças intracranianas – o aumento da pressão intracraniana (ex: tumores, meningites,

enxaqueca), pode ser causa de náuseas e vómitos muitas vezes em jacto.

• Psicológicas – a sensação de desejo de vomitar acompanha muitas situações de sobrecarga

emocional, sobretudo quando associadas ao “desgosto”; a simulação histérica de náuseas e

vómitos é frequentemente encontrada na prática clínica, como resposta a conjunturas de

intensidade emocional ou intelectual intoleráveis.

• Gravidez – A fisiopatologia da anorexia, das náuseas e vómitos que ocorrem durante a

gravidez.

As consequências dos vómitos podem ter manifestações loco-regionais, como por exemplo a

rotura pós-emética do esófago (sindroma de Boerhaave), laceração traumática do cárdia que origina

vómitos de sangue ou hematemeses (sindroma de Mallory-Weiss), a aspiração brônquica

(particularmente propícia de ocorrer nos doentes em coma ou com perturbações da consciência) a

passagem de material vomitado para as fossas nasais (se o palato mole não subir atempadamente e o

bloqueio não for eficaz) e sistémicas, como por exemplo desidratação e alcalose hipoclorémica.

Formas de expressão dos doentes – Náusea: enjoado, almariado,

Vómito: arrancos, puxos

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Como interrogar os doentes – Os doentes com náuseas e/ou vómitos devem ser interrogados

sobre as circunstâncias acompanhantes ou desencadeantes destes sintomas, sobre as características do

material vomitado e sobre as eventuais repercussões locais e/ou sistémicas. Deve procurar-se assim

uma orientação etiológica que servirá de base à prossecução da anamnese.

• As circunstâncias acompanhantes e desencadeantes das náuseas e/ou vómitos, que importa

perguntar ao doente, prendem-se com as causas mais frequentes destes sintomas,

enumeradas acima, que passamos a listar:

• início, duração e evolução da gravidade do quadro de náuseas e/ou vómitos,

nomeadamente a relação temporal e concomitância destes dois sintomas;

• tipo, quantidade e qualidade de alimentos e bebidas ingeridas anteriormente;

• conhecimento de outras pessoas que tenham partilhado a(s) refeição(ões)

anterior(es) e que apresentem o mesmo quadro clínico;

• anorexia;

• febre e outros sintomas ou sinais de infecção aguda, particularmente abdominal

(abdómen agudo ?);

• icterícia;

• enfartamento pós-prandial;

• paragem da emissão de gases e/ou fezes;

• intolerâncias alimentares ou farmacológicas conhecidas;

• irritantes gástricos, fármacos ou venenos ingeridos;

• perturbações do equilíbrio e marcha;

• cefaleias e outros sintomas neurológicos;

• doenças endócrino-metabólicas acima enumeradas;

• gravidez;

• perturbações emocionais ou psiquiátricas;

• na ausência de esforço para vomitar, isto é, a saída de conteúdo alimentar ser feita

passivamente, deve ser tida em consideração a possibilidade de estar em face de

regurgitação, que pode ocorrer como consequência de estenoses ou divertículos

esofágicos e nas situações de falência do EEI, como referimos mais acima.

• As características do material vomitado a serem pesquisadas com a intenção de orientar

para o diagnóstico etiológico são as que enumeramos seguidamente, no entanto, a sua

interpretação deve ser cuidadosa e a qualidade dos vómitos tem que ser inserida numa

apreciação global do quadro clínico, não redutora, pois as características do vómito não só

dependem da conjugação de vários factores, como podem sofrer variação com a evolução

temporal do quadro:

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• presença ou ausência de ácido clorídrico e tempo de actuação do mesmo sobre os

alimentos - a sensação de queimadura ácida do vómito é normalmente notada pelo

doente e ocorre na patologia péptica e nas gastrites hipersecretoras, ao contrário da

ausência de ácido que acompanha frequentemente as lesões neoplásicas do

estômago; se a ingestão dos alimentos ocorreu pouco tempo antes do vómito, a

sensação de acidez é comum; os vómitos de doentes que não se alimentaram

recentemente têm características semelhantes de acidez, apresentando-se como um

líquido aquoso muito ácido;

• os vómitos de estase gástrica que ocorrem nas doenças obstrutivas antro-pilóricas

de evolução prolongada, em que o estômago se vai distendendo e acomodando à

dificuldade de esvaziamento; surgem geralmente várias horas após a ingestão da

última refeição e muitas vezes o jantar da véspera é vomitado no dia seguinte,

apresentando-se os alimentos com aspecto não digerido, quase igual à forma com

que foram ingeridos (nos cancros do estômago, por falta de ácido) ou com aspecto

de digestão química, reconhecendo-se no entanto a natureza dos mesmos (nas

estenoses pilóricas de origem péptica); nestes vómitos de estase pode ser expulsa

uma quantidade enorme de alimentos, geralmente desproporcionada para a

quantidade ingerida em cada refeição pelo doente, devido ao facto de o estômago

atingir grandes proporções, descendo até à pélvis; esta mistura de grandes

quantidades de líquidos e sólidos dentro do estômago se for agitada antes do

vómito produz um ruído característico, marulho gástrico;

• presença ou ausência de bílis - se não existir uma estenose pilórica total a presença

da bílis no vómito é habitual; após a expulsão do conteúdo gástrico, se

continuarem os vómitos a presença da bílis é quase uma constante e é referida

como produzindo a sensação de fel, apresentando os vómitos uma cor amarela ou

por vezes esverdeada; o vomitar persistente de bílis “pura”, vómitos biliares

contínuos, pode significar a existência de uma obstrução jejunal alta ou do

duodeno;

• os vómitos fecalóides, que ocorrem nas oclusões intestinais, devem o seu aspecto

semelhante a fezes, ao facto de existindo estase significativa e prolongada do

conteúdo entérico dentro das ansas, se criarem as condições para a proliferação

bacteriana de flora intestinal responsável pelo cheiro e aspecto sui generis das

fezes; a peristalse retrógrada que ocorre nas oclusões intestinais é responsável por

o estômago expulsar, vomitando, o seu conteúdo, inicialmente alimentar, seguido

do conteúdo duodenal constituído sobretudo por bílis, aparecendo posteriormente

conteúdo entérico que ao fim de 2-3 dias de obstrução adquire aspecto fecalóide –

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raramente o vómito é de fezes, ocorrendo esta circunstância apenas se existir uma

fístula gastro-cólica ou se o doente ingerir fezes (coprofagia);

• vómito de sangue (ver Hematemeses)

• As repercussões locais e/ou sistémicas dos vómitos, que acima foram referidas como

consequências deste quadro, devem ser pesquisadas.

9. Hematemeses e melenas

Definição - Hematemese é o vómito de sangue. Melena é a defecação de fezes negras, como

alcatrão brilhante ou parecendo borras de café, pastosas, pegajosas e com cheiro pestilento, sui

generis.

Hematemeses e melenas resultam da hemorragia do tubo digestivo proximal. As melenas

podem corresponder à emissão de sangue na parte alta do intestino delgado se o trânsito intestinal for

lento. A maioria das vezes as hemorragias do intestino delgado e da parte proximal do cólon direito

têm aspecto intermédio entre as melenas e as rectorragias (emissão de sangue vivo pelo ânus), sendo

designadas por Hematoquezias (ver abaixo).

Fisiopatologia – A hemorragia resultante de lesões a montante do duodeno (duodeno,

estômago e esófago) pode acumular-se no estômago e ser vomitada. Raramente hemorragias abaixo da

3ª- 4ª porção do duodeno refluem para o estômago em volume suficiente para produzir hematemeses.

O aspecto do sangue depende do tempo de contacto e da mistura com o ácido clorídrico, que

quanto maior forem, mais o aspecto do vómito mudará de vermelho vivo (se imediatamente após a

hemorragia) para negro, tipo borras de café. O ácido clorídrico em contacto com o sangue produz

hematina, que dá esta cor característica às hematemeses e sobretudo às melenas.

As melenas podem ocorrer isoladamente ou aparecerem após um episódio de hematemeses

(hemorragia de volume suficiente para produzir hematemeses geralmente acompanha-se de melenas).

De maneira geral, a presença de sangue no intestino acelera o trânsito e parte substancial do sangue é

incorporado nas primeiras emissões de fezes após a hemorragia, mas, de forma evidente ou oculta, é

habitual encontrar-se sangue nas fezes nos primeiros dias subsequentes a uma hemorragia digestiva

alta.

Dependendo do volume e débito da hemorragia, do estado geral prévio do doente (anemia,

reserva cardíaca funcional), assim as hematemeses e melenas se fazem ou não acompanhar de

sintomas e sinais sistémicos de falência circulatória e anemia agudas (tonturas, vertigens, lipotímia,

sede, ansiedade, agitação, palidez, sudorese, extremidades frias e suadas, recuperação lenta da

coloração dos leitos ungueais após libertação da unha sujeita a pressão, palpitações, taquicardia, baixo

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débito urinário). Normalmente são necessárias hemorragias de 500 ml ou superiores, para ter tradução

hemodinâmica.

Se a determinação da pressão arterial em decúbito e na posição de sentado se reduzir mais de

10 mmHg (hipotensão postural) indica perda de sangue de 20% ou mais do volume circulante. A

determinação do valor da hemoglobina e do hematócrito logo após uma hemorragia (perda de sangue

total) não fornece indicação fidedigna do volume perdido. A determinação da pressão arterial nestas

duas posições dá informações mais úteis.

Perdas sanguíneas iguais ou superiores a 40% do volume circulante são acompanhadas de

grave falência circulatória (shock).

A presença de sangue no tubo digestivo pode ser acompanhada de febre moderada (cerca dos

38º C) e de uma elevação da urémia (24 - 48 h após a hemorragia) por degradação das proteínas do

sangue, pela acção das bactérias intestinais.

As três principais causas de hematemeses e melenas são:

• úlcera péptica - duodeno (mais frequentemente) e estômago; a hemorragia ocorre na

evolução das úlceras pépticas quando a “corrosão” da espessura da parede atinge vasos de calibre

significativo, com débitos sanguíneos geralmente elevados; as úlceras duodenais que originam

hemorragia digestiva estão quase sempre localizadas na face posterior do bulbo, atingindo a artéria

gastroduodenal;

• gastrite hemorrágica - ingestão de anti-inflamatórios não-esteróides, álcool; stress pós-

traumático ou pós-operatório, grandes queimados (úlceras de Curling); traumatismos cranianos

(úlceras de Cushing); nas gastrites hemorrágicas habitualmente a origem do sangue encontra-se

espalhada por uma miríade de pequenos pontos que sangram em toalha, sendo difícil localizar com

precisão a zona de maior débito hemorrágico;

• rotura de varizes esofágicas - na cirrose hepática, na trombose da veia porta e noutras

situações em que se estabelece um regímen de hipertensão portal, o aumento da pressão é transmitido

às veias esofágicas; este fenómeno de transmissão retrógrado da pressão é feito sobretudo por duas

vias: à esquerda, através do sistema venoso esplénico, vasos curtos, ou, pelo lado direito, através das

veias gástricas direitas (e coronária) ambos vindo a atingir as veias do plexo sub-mucoso do fundo

gástrico (podem formar-se varizes também neste território) e as veias esofágicas que lhe estão em

contiguidade - criando-se as condições de sobrecarga tensional que originam as varizes esofágicas; se

a pressão no território porta se eleva acima da capacidade de contenção das veias dilatadas do esófago,

ou se ocorre qualquer fenómeno que traumatize a mucosa esofágica fragilizada, que recobre as varizes,

há lugar a hemorragia.

Outras situações patológicas podem manifestar-se por hematemeses e/ou melenas devendo ser

procuradas como causa após exclusão das principais etiologias. De entre as mais comuns, embora

muito mais raras do que cada uma das anteriormente citadas, podemos referir:

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• Esofágicas – esofagite grave ulcerada, carcinoma, síndrome de Mallory-Weiss (laceração

da mucosa distal, associada a vómitos intensos e persistentes), hérnia para hiatal;

• Gástricas – carcinoma, linfoma, angiodisplasia (Dieulafoy);

• Duodenais – angiodisplasia, bulbite erosiva;

• Outras doenças – discrasias hemorrágicas, rotura de aneurismas vasculares (aorta ou

esplâncnicos), urémia, malformações vasculares acompanhantes de doenças sistémicas

(exemplo: Rendu-Osler-Weber); amiloidose; outras.

Formas de expressão dos doentes – vómito ou emissão de fezes tipo borras de café ou

alcatrão, pretas, pestilentas,

Como interrogar os doentes – Na anamnese de um doente com hematemeses e/ou melenas o

interrogatório deve focar três questões fundamentais:

• Confirmação da natureza do vómito e das fezes – de maneira geral, o aspecto, o cheiro e a

descrição feita pelo doente são fortemente sugestivos de hemorragia digestiva; convém no

entanto ter em atenção:

• a saída de sangue vivo, arejado (com bolhas de ar) corresponde a hemoptises e

geralmente é expelido com tosse e não com o esforço do vómito;

• o sangue deglutido de epistaxis, hemoptises, extracções dentárias e

amigdalectomias, pode ser vomitado;

• a ingestão de carvão, ferro, bismuto e alimentos contendo sangue (exemplos:

morcelas, arroz de cabidela) dão cor preta às fezes semelhante à das melenas;

• a mistura de água oxigenada ao vómito ou às fezes, suspeitas de conter sangue,

produz efervescência na presença de sangue;

• Determinação das consequências hemodinâmicas da hemorragia – a avaliação clínica dos

sintomas e sinais, acima descritos, de falência circulatória, como a medição da pressão

arterial e do pulso, em decúbito e sentado, são elementos-chave para a abordagem de um

doente com hemorragia digestiva, podendo condicionar a instituição de medidas de suporte

hemodinâmico antes de prosseguir com a investigação diagnóstica e com o tratamento

etiológico, pelo que constitui uma prioridade clínica insubstituível;

• Orientação para o diagnóstico etiológico – a história clínica que precedeu o episódio de

hematemeses e/ou melenas fornece habitualmente a chave para o diagnóstico; tendo em

mente as três causas mais frequentes de hemorragia digestiva alta (úlcera péptica, gastrite e

rotura de varizes esofágicas) o interrogatório deve ser dirigido para a obtenção/infirmação

de dados referentes a:

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• epigastralgias, azia, enfartamento pós-prandial sugestivos de doença péptica (ver

acima);

• ingestão aguda e/ou crónica de drogas gastroerosivas, nomeadamente os anti-

inflamatórios não-esteróides ou o álcool;

• situações de “stress” como as referidas acima (queimaduras, traumatismo craniano,

intervenção operatória;

• consumo excessivo de álcool condicionando cirrose hepática (outras situações de

hipertensão portal devem levar à pesquisa de sintomas e sinais de falência

hepática;

• discrasia hemorrágica conhecida.

A confirmação da etiologia das hemorragias digestivas altas pode ser feita, na grande maioria

dos casos, por endoscopia. A associação de manobras hemostáticas durante o acto endoscópico é

actualmente possível e constitui uma das formas de tratamento a considerar nestas situações. No caso

da rotura de varizes esofágicas a esclerose por via endoscópica é o método terapêutico de eleição.