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7/18/2019 ANDERSON,Perry. Duas Revoluções_Russa e Chinesa http://slidepdf.com/reader/full/andersonperry-duas-revolucoesrussa-e-chinesa 1/26  DUAS REVOLUÇÕES: ANOTAÇÕES ENSAIO COMPARATIVO SOBRE O DESENLACE ATUAL DAS DUAS MAIORES REVOLUÇÕES DO SÉCULO XX: A RUSSA E A CHINESA Perry Anderson 1  Publicado originalmente na revista britânica New left Review, de janeiro de 2010. Tradução de Hugo Mader Republicado no Brasil na revista SERROTE, do instituto Moreira Alves, Nr. 5. Quadrimestral. julho de 2010. Se o século 20 foi dominado pela trajetória da Revolução Russa, mais do que por qualquer outro evento singular, o século 21 será configurado pelo resultado final da Revolução Chinesa. O Estado soviético, nascido da Primeira Guerra Mundial, vitorioso na Segunda, derrotado na réplica "fria" de uma Terceira, desintegrou-se após sete décadas quase sem um tiro, tão rapidamente quanto surgira. O que restou foi uma Rússia menor em superfície do que aquela que o Século das Luzes conheceu, com menos da metade da população da antiga União Soviética, restituída a um capitalismo mais dependente da exportação de matérias-primas do que nos últimos dias do tsarismo. Embora não se possam descartar futuras reviravoltas, no momento o que restou do levante de outubro, em qualquer sentido positivo, não parece ser grande coisa. Seu feito mais transcendente, deveras extraordinário, foi negativo: a derrota do nazismo, o que nenhum outro regime europeu teria sido capaz de alcançar. Esse, de qualquer modo, é um juízo consensual hoje em dia. O desfecho da Revolução Chinesa oferece um impressionante contraste. Ao entrar na sua sétima década, a República Popular é uma força motriz da economia mundial; o maior exportador, seja para a União Europeia, o Japão ou os Estados Unidos; o maior detentor de reservas cambiais do mundo; o país que. durante um quarto de século apresentou o maior e mais rápido crescimento da renda  per capita  jamais registrado, e para a maior população do mundo. Suas grandes cidades não têm rivais em matéria de ambição comercial e arquitetônica, seus produtos são vendidos em toda parte. Seus empreiteiros, agentes comerciais e diplomatas cruzam o mundo em busca de novas oportunidades de negócios e áreas de influência. Cortejado tanto por antigos inimigos quanto por amigos, pela primeira vez na sua história o Reino do Meio se tornou uma verdadeira potência mundial, estendendo sua presença a todos os continentes. Com a queda da URSS, nenhuma outra fórmula para caracterizar a virada histórica que ela significou se tornou tão sacramentada quanto o "colapso do comunismo". 20 anos depois, ela soa um tanto eurocêntrica. Em certo sentido, o comunismo não apenas sobreviveu como se tornou a história exitosa dos tempos atuais. 1  Perry Anderson - o historiador PERRY ANDERSON é editor da New Left Review, que publicou originalmente este ensaio. Entre os seus livros que saíram no Brasil estão Linhagens do Estado absolutista (Brasiliense, 1995), Um mapa da esquerda na Europa ocidental (Contraponto, 1996), As origens da pôs-modernidade (Jorge Zahar, 1999), Afinidades seletivas (Boitempo, 2002) e Considerações sobre o marxismo ocidental (Boi tempo, 2004). Tradução de Hugo Mader

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DUAS REVOLUÇÕES: ANOTAÇÕES ENSAIO COMPARATIVO SOBRE O DESENLACE ATUAL DAS DUAS MAIORES REVOLUÇÕES DO SÉCULO XX: A RUSSA E A CHINESA

Perry Anderson1

 

Publicado originalmente na revista britânica New left Review, de janeiro de 2010. Traduçãode Hugo Mader

Republicado no Brasil na revista SERROTE, do instituto Moreira Alves, Nr. 5.Quadrimestral. julho de 2010.

Se o século 20 foi dominado pela trajetória da Revolução Russa, mais do que por qualqueroutro evento singular, o século 21 será configurado pelo resultado final da Revolução Chinesa. O

Estado soviético, nascido da Primeira Guerra Mundial, vitorioso na Segunda, derrotado na réplica"fria" de uma Terceira, desintegrou-se após sete décadas quase sem um tiro, tão rapidamentequanto surgira. O que restou foi uma Rússia menor em superfície do que aquela que o Século dasLuzes conheceu, com menos da metade da população da antiga União Soviética, restituída a umcapitalismo mais dependente da exportação de matérias-primas do que nos últimos dias dotsarismo. Embora não se possam descartar futuras reviravoltas, no momento o que restou dolevante de outubro, em qualquer sentido positivo, não parece ser grande coisa. Seu feito maistranscendente, deveras extraordinário, foi negativo: a derrota do nazismo, o que nenhum outroregime europeu teria sido capaz de alcançar. Esse, de qualquer modo, é um juízo consensualhoje em dia.

O desfecho da Revolução Chinesa oferece um impressionante contraste. Ao entrar na suasétima década, a República Popular é uma força motriz da economia mundial; o maior exportador,

seja para a União Europeia, o Japão ou os Estados Unidos; o maior detentor de reservascambiais do mundo; o país que. durante um quarto de século apresentou o maior e mais rápidocrescimento da renda  per capita  jamais registrado, e para a maior população do mundo. Suasgrandes cidades não têm rivais em matéria de ambição comercial e arquitetônica, seus produtossão vendidos em toda parte. Seus empreiteiros, agentes comerciais e diplomatas cruzam omundo em busca de novas oportunidades de negócios e áreas de influência. Cortejado tanto porantigos inimigos quanto por amigos, pela primeira vez na sua história o Reino do Meio se tornouuma verdadeira potência mundial, estendendo sua presença a todos os continentes. Com a quedada URSS, nenhuma outra fórmula para caracterizar a virada histórica que ela significou se tornoutão sacramentada quanto o "colapso do comunismo". 20 anos depois, ela soa um tantoeurocêntrica. Em certo sentido, ocomunismo não apenas sobreviveu como se tornou a história exitosa dos tempos atuais.

1  Perry Anderson - o historiador PERRY ANDERSON é editor da New Left Review, que

publicou originalmente este ensaio. Entre os seus livros que saíram no Brasil estãoLinhagens do Estado absolutista (Brasiliense, 1995), Um mapa da esquerda na Europa

ocidental (Contraponto, 1996), As origens da pôs-modernidade (Jorge Zahar, 1999),

Afinidades seletivas (Boitempo, 2002) e Considerações sobre o marxismo ocidental (Boi

tempo, 2004).

Tradução de Hugo Mader

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Naturalmente, o caráter e a escala desse feito encerram mais de uma (amarga) ironia. Jáquanto à sorte diversa das revoluções na China e na Rússia, resta pouca dúvida.

Onde estaria a explicação desse contraste? Não obstante o peso histórico-mundial daquestão, ela não tem sido muito discutida. O que está em pauta, naturalmente, não é apenas umacomparação entre duas sublevações similares, porém distintas, que não guardam relação entre siquanto ao mais, dados os seus diferentes contextos, a exemplo da analogia antes familiar entre

1789 e 1917. A Revolução Chinesa proveio diretamente da Revolução Russa e permaneceuligada a ela, como inspiração ou admoestação, até o final dos anos 1980, quando chegou a horada verdade para ambas. As duas experiências não foram independentes uma da outra, masformaram conscientemente uma sequência ordinal2. Esse vínculo entra em qualquer apreciaçãode seus diferentes resultados. A explicação destes, por sua vez, requer reflexão sobre certonúmero de aspectos. Aqui, distinguiremos quatro deles. Primeiro, como se diferenciavam osagentes políticos subjetivos das duas revoluções - isto é, os respectivos partidos em cada país eas estratégias que implementaram? Segundo, quais eram os dados objetivos iniciais - ascondições socioeconômicas e outras - com base nos quais cada partido embarcou no seuprograma de reformas? Terceiro, quais foram as consequências concretas das políticas queadotaram? Por último, quais legados, na Zangue durée da história de ambas as sociedades;podem ser vistos como fatores subjacentes determinantes do resultado final das revoluções e das

reformas? isto que a República Popular da China (RPC) sobreviveu à URSS e seu futuro talvezconstitua a principal incógnita da política mundial, o foco organizado r destas anotações será aChina, tal como vista no espelho russo - não o único relevante, como ficará claro, mas umacondição iniludível de tudo o mais.

I. MATRIZES

 A Revolução de Outubro, como é notório, foi uma rápida insurreição urbana que em questãode dias tomou o poder nas grandes cidades da Rússia. A rapidez com que derrubou o governoprovisório foi igualada pela cristalização do partido que a realizou. Os bolchevistas, que nãosomavam mais de 24 mil em janeiro de 1917, às vésperas da abdicação de Nicolau lI, jásuperavam 200 mil quando, nove meses mais tarde, derrubaram o regime de Kerensky. A suabase social era a jovem classe operária russa, que correspondia a menos de 3% da população.

Eles não tinham nenhuma presença no campo, onde vivia mais de 80% da população, jamaistendo cogitado organizar o partido entre os camponeses - o que tampouco ocorreu aos socialistasrevolucionários, embora estes tivessem recebido maciço apoio rural em 1917. Essa rápida vitóriaa partir de uma margem de apoio ainda exígua foi possibilitada pela desintegração do Estadotsarista, diante dos devastadores ataques alemães na Primeira Guerra Mundial- os fracassosmilitares deflagrando motins que pulverizaram seu aparelho repressivo, visto que a Revolução deFevereiro produzira um governo sucessor instável e esvaziado de autoridade.

Contudo, se o poder foi facilmente tomado nesse vácuo, seria muito mais difícil conservá-lo.Vastas extensões do território caíram sob o domínio alemão. Quando a própria Alemanha foiderrotada em 1918, dez forças expedicionárias diferentes - norte-americana, britânica,canadense, sérvia, finlandesa, romena, turca, grega, francesa e japonesa - foram despachadaspara ajudar os exércitos brancos a esmagar o novo regime, numa cruenta guerra civil que se

prolongou até 1920. Quando esta chegou ao fim, completando o quadro de destruição deixadopela Grande Guerra, a Rússia estava em ruínas: escassez crônica de alimentos nas aldeias,fábricas abandonadas nas cidades, a classe operária pulverizada pelos combates e peladesindustrialização do país. O partido de Lênin, com sua base social desintegrada ou absorvidapelas estruturas do novo Estado, emergiu da guerra civil comoum aparato de poder isolado, suspenso sobre uma paisagem devastada: seu governo era

2  O notável ensaio de Isaac Deutscher, “Maoism –  Its Origins and Outlook” (1964),

continua a ser o ponto de partida para qualquer exame das relações entre as duas

revoluções: Ironies of History, Oxford, 1966, pp.88-120.

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associado agora às misérias da guerra intestina, mais do que às promessas de paz e dedistribuição de terras feitas após outubro.

 A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que o partido criou mediante um supremoesforço, cobria a maior parte do antigo império russo. Mas, primeiro Estado moderno da história arecusar qualquer definição territorial, a emergente URSS não fez qualquer chamamento aoorgulho patriótico ou à construção nacional. Seu apelo era internacional: dirigia-se à

solidariedade do movimento trabalhista mundial. Após tomar o poder num país tão vasto quantoatrasado, cuja economia era predominantemente agrária e cuja população era em grande parteanalfabeta, os bolchevistas contavam com revoluções nos países europeus mais desenvolvidos eindustrializados para resgatá-los da difícil posição de um compromisso radical com o socialismonum país que não apresentava os pré-requisitos de nenhum capitalismo coerente. Uma apostaque os sitiados governantes perderam depressa, desde o início ela nada significou para a massados governados. Opartido soviético teria de aguentar por suas próprias forças e tentar avançar o mais rapidamentepossível para uma nova forma de sociedade, sem contar com muito apoio no plano doméstico esem nenhuma ajuda externa.

2

 A Revolução Chinesa, embora inspirada pela russa, inverteu praticamente todos os seustermos. O Partido Comunista da China (PCC), fundado em I92I, ainda não contava mil membrosquatro anos mais tarde, quando, pela primeira vez, começou a se tornar uma força políticaexpressiva, nascida da explosão da militância operária nas cidades costeiras suscitada pelomovimento de 30 de maio de I925, e auxiliada pelo papel crucial dos assessores e suprimentossoviéticos no incipiente regime do Guomindang (GMD) liderado por Sun Yat-sen em Cantão. Entreesse momento fundador e a conquista do poder pelos comunistas na China, houve conflitos quese estenderam por um quarto de século. Seus marcos são bastante conhecidos - a expedição aonorte de I926, que uniu nacionalistas e comunistas contra os regimes dos principais senhoresguerreiros; o massacre dos comunistas por Chiang Kai-shek em Xangai, em I927; o Terror Brancoque se seguiu; o estabelecimento do soviete do liangxi em I93I, e as cinco campanhas deaniquilação movidas contra ele pelo GMD; a Longa Marcha do exército vermelho para Yari'an em

I934-I935 e a criação de regiões fronteiriças governadas pelo PCC no noroeste; a Frente Unidacom o GMD contra o invasor japonês em I937-I945; e, por fim, a guerra civil de I946-I949, em queo Exército deLibertação Popular (ELP) arrebatou o país.

Mais que a simples temporalidade totalmente diversa dessa experiência a separa dareviravolta na Rússia. A forma pela qual o poder foi conquistado foi inteiramente distinta. Se épossível definir o Estado, segundo a famosa fórmula de Weber, como o exercício do monopólioda violência legítima sobre um determinado território, uma revolução sempre implica na rupturadesse monopólio e na emergência daquilo que Lênin e Trotsky chamaram de poder dual.Logicamente, existem três modos pelos quais isso pode ocorrer, correspondentes aos três termosda fórmula de Weber. Uma revolução pode quebrar o monopólio de poder do Estado, destruindo abase de legitimidade de seu governo, de modo que este se veja impossibilitado de exercer

coerção para reprimir o movimento que se lhe opõe. A Revolução Iraniana, na qual não houveconflitos, ficando o exército real paralisadoenquanto a monarquia caía, seria um exemplo. Como outra opção, uma revolução pode provocaro confronto de uma violência insurgente com o aparelho repressivo do Estado, dominando-omediante um golpe rápido e decisivo, sem ter assegurado nenhuma legitimidade expressiva. Essefoi o modelo russo, possível apenas contra um adversário fraco.

Finalmente, uma revolução pode quebrar o monopólio de poder do Estado sem primeiroesvaziar sua legitimidade ou neutralizar rapidamente sua capacidade para a violência, massubtraindo-lhe território suficiente para erguer um Estado paralelo, capaz de solapar com o tempoo seu controle da força e do consentimento. Esse foi o modelo chinês. Não foi exclusivo da China,

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tendo caracterizado a trajetória geral das forças guerrilheiras - sejam iugoslavas ou cubanas -rumo ao poder. O excepcional no caso chinês não foia criação de sucessivos "estados rebeldes" dentro do Estado, mas sua duração combinada. Sãoas condições dessa longevidade que requerem explicação.

Na virada do século, a monarquia Romanov, apesar de suas próprias vulnerabilidades, eraincomparavelmente mais forte que a Qing: uma instituição autóctone que contava não somente

com bolsões de indústria avançada e abundantes recursos naturais, mas também com umenorme exército e profundas reservas de lealdade patriótica geradas pela vitória sobre Napoleão.Já no Extremo Oriente, foi sobretudo a ação conjunta das potênciaseuropeias que causou a desagregação do império chinês. Somente a derrota esmagadora noscampos de batalha, primeiro contra o Japão e depois contra a Alemanha, foi capaz de deflagraras revoluções de 1905 e 1917. A monarquia Qing, em contraste, já em meados do século 19 erageralmente odiada como uma dinastia adventícia e, logo depois, também como uma possessãocorrupta do Ocidente. Após a rebelião Taiping, ela nunca mais recuperou pleno controle da forçasobre o país como um todo. O Estado imperial estava tão enfraquecido que caiu em 19II sem aomenos um movimento orquestrado contra ele. Nenhum regime sucessor se mostrou à altura doscritérios de Weber. A República se dissolveu primeiro num tabuleiro de feudos rivais controladospor senhores guerreiros; depois, no regime híbrido baseado em Nanjing, o GMD dominando o

centro do país a partir do delta do Yang-tsé e variados caudilhos militares regionais, o resto:Chiang Kai-sheknunca chegou a controlar mais da metade das 18 províncias chinesas tradicionais, não raromenos ainda.

Foi nesse emaranhado de centros de poder conflitantes que o PCC conseguiu se implantar,ocupando as lacunas entre as jurisdições e constituindo um poder paralelo móvel. Mas, emboranunca tivesse enfrentado uma máquina do Estado unificada, como ocorrera com os bolchevistas,seu adversário era paradoxalmente mais formidável e os riscos de derrota, maiores. Emborarestrito como estava a seus baluartes estratégicos, o GMD não era um regime absolutista aoconcluir seu ciclo de existência, nem um governo provisórioespectral. Nacionalismo e comunismo eram antagonistas contemporâneos formados no mesmomolde organizacional: rivais igualmente modernos, cada um a seu modo, pelo domínio do país.

Contudo, o GMD dispunha de exércitos muito mais vastos, equipados com blindados pesados etreinados em sucessivas missões de assistência militar - as de Von Seeckt, Von Falkenhausen -pela elite da Wehrmacht; controlava a renda tributária das regiões mais ricas da China. Apesar detodo o heroísmo da Longa Marcha, o GMD teria certamente aniquilado o PCC no final da décadade 1930, caso o Japão não tivesselançado um ataque maciço contra o regime de Nanjing em 1937.

Nessa emergência, Chiang, privado de sua presa, mas ainda obcecado com o comunismocomo o perigo maior, mostrou-se incapaz de enfrentar o inimigo estrangeiro com alguma eficácia.Um colaborador de longa data dos militares japoneses - com os quais planejara o massacre deXangai em 1927, voando para Tóquio pouco depois para selar um pacto com seu estado-maior, eaos quais dera seu consentimento para a anexação da Manchúria -, ele se retirou para o interiordo país e, após Pearl Harbour, deixou o tempo passar, esperando que os Estados Unidos

saíssem vitoriosos da guerra para, então, cair sobre o PCC com o grosso de suas forças intactas. A campanha final do Japão na China, a ofensiva de Ichigo, em I944, arruinou qualquer chance deo GMD concretizar facilmente esses planos, despedaçando suas melhores divisões de modoirreparável. Não menos danoso foi o descrédito que cercou a ditadura de Chiang, que se recusoua fazer de tudo pela defesa da nação.

Fora do alcance do GMD ou da penetração japonesa, a partir de sua base na remota regiãofronteiriça de Yan'an, o PCC promoveu no norte da China uma guerra de guerrilhas cada vez maiseficiente contra o invasor. A ampliação de seu poder se deveu à sua capacidade de combinarreforma nas aldeias - redução dos preços de arrendamento, cancelamento de dívidas,redistribuição limitada de terras - com resistência ao invasor estrangeiro. A conjugação desses

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dois fatores possibilitou ao PCC um grau de penetraçãosocial que o partido russo jamais alcançou, ampliando sua base de apoio entre o campesinato, aclasse que formava a ampla maioria da população. No intervalo de oito anos entre I937 e I945, onúmero de militantes do PCC passou de 40 mil para I,2 milhão e o efetivo de seus exércitos, de90 mil para 900 mil. Após a rendição do Japão, o partido se implantou rapidamente na planíciesetentrional da China: quando estourou a guerra civil em

I947, seus quadros tinham mais que duplicado novamente, somando cerca de 2,7 milhões. Nesseínterim, nas áreas controladas pelo GMD no centro e no sul, a corrupção e a inflaçãodesenfreadas destruíram a base de apoio urbano ao regime de Chiang, cujos exércitosdesmoralizados, embora bem armados e equipados pelos Estados Unidos, não se mostraram emabsoluto adversários à altura do ELP. Em número cada vez maior, seus comandantesse renderam ou trocaram de lado, à medida que o ELP marchava para o sul: Beijing, Xangai,Nanjing, Guangzhou - uma após outra, as grandes cidades da China foram caindo quase semluta.

Na Rússia, a guerra civil veio depois da revolução e, como para castigá-Ia, mergulhou opaís numa situação muito pior do que ele se encontrava antes da ascensão dos bolchevistas. NaChina, a revolução sucedeu a guerra civil e seus efeitos imediatos foram sentidos como umaredenção daquele transe. Por mais de um século, a China não conhecera um governo central

capaz de fazer face à agressão estrangeira e assegurar a manutenção da ordem nopaís. O comunismo trouxe ambas as coisas: soberania nacional e paz interna. Com a derrota doGuomindang, oficiais americanos, canhoneiras britânicas e retardatários japoneses foramdespachados de mala e cuia para fora do país. A vitória do ELP, longe de deixar a economia e asociedade depauperadas, promoveu a recuperação e a estabilidade. A inflação foi controlada; acorrupção, reprimida; o abastecimento, restabelecido. No campo, o sistema de arrendamento deterras foi abolido. Nas cidades, não foi preciso fazer expropriações radicais, visto que mais dedois terços das indústrias já haviam sido estatizadas durante o período do Guomindang e oscompradores haviam transferido seus capitais para Hong Kong e Taiwan. Os últimos anos degoverno nacionalista tinham alienado as simpatias da classe média a tal ponto, que boa parte delarecebeu a chegada dos comunistas com alívio, mais que resistência; à medida que a produção serestabelecia, os trabalhadores retornavam ao regime de emprego normal e voltavam a receber

salários. A República Popular, encarnando ideais patrióticos e disciplina social, veio ao mundodesfrutando de um grau de consentimento popular que a União Soviética jamais conheceu.

3Essas diferentes matrizes deixaram sua marca na evolução dos respectivos regimes, cujas

proporções de força e consentimento sempre foram distintas. Sob Stálin, o comunismo soviéticoobteve o apoio ativo da população em duas oportunidades após a guerra civil: entre a novageração de operários de origem rural mobilizados para o esforço intensivo de industrialização dosprimeiros planos quinquenais, numa atmosfera Sturm. und Drang de entusiasmo coletivoautêntico, senão generalizado; e durante a Segunda Guerra Mundial, quando o regime se valeude um patriotismo russo muito mais disseminado, numa luta de ida ou morte de toda a populaçãocontra o invasor nazista. Nem o esforço de industrialização

nem o esforço de guerra alteraram a desconfiança dos governantes em relação às massassubalternas. O sistema soviético se aproveitou de episódios de adesão popular quandoeles se manifestaram. Contudo, estava baseado na repressão. Durante o período da ditadura deStálin, a polícia secreta tornou-se uma instituição mais importante e mais poderosa doque o próprio partido. A violência, desencadeada compulsivamente contra inimigos reais ouimaginários, inclusive dentro das próprias fileiras do regime, era onipresente.

Contra um fundo de tensão contínua, seus dois grandes paroxismos foram a coletivizaçãoagrária do final dos anos 1920 e os expurgos da década de 1930. Com a primeira, o regimelançou uma guerra total contra a sociedade camponesa, na qual as deportações em massa e afome fizeram talvez 6 milhões de vítimas, reduzindo o campesinato a uma massa taciturna e

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alquebrada, situação da qual a agriculturarussa jamais se recuperaria. Com os expurgos, não somente a velha guarda bolchevista inteiraque fizera a Revolução de Outubro, mas praticamente toda a geração seguinte de quadros emposições de liderança no partido e no Estado, bem como vasto número de outras vítimas foramliquidados - pelo menos, 700 mil ao todo. Os campos de trabalhos forçados, para onde foramdespachados aqueles que escaparam de ser sumariamente executados nessas selvagerias, iriam

alojar outros 2 milhões naqueles anos, correspondendoa um expressivo setor da economia3. Após a vitória na Segunda Guerra Mundial, na qual a Rússiasofreu enorme destruição, o terror arrefeceu. Contudo, apesar de toda a consagração quealcançou nos campos de batalha, o medo continuou a ser a mola-mestra do poder de Stálin até ofim.

4O partido chinês herdou o modelo soviético, tal como se configurou sob Stálin,

desenvolvendo em larga medida a mesma disciplina monolítica, a mesma estrutura e hábitosde comando autoritários. Em termos organizacionais e ideológicos, o Estado que ele criou noinício da década de 1950 assemelhava-se bastante ao soviético. E mais: no decorrerdo processo, o governo comunista infligiria à China dois grandes desastres similares. Dadas as

suas raízes no campo, onde os trabalhadores de modo geral mantiveram sua confiança noslíderes, o PCC foi capaz de promover uma rápida e integral coletivização poucos anos após asprimeiras redistribuições de terras, sem provocar o desastre ocorrido na Rússia. Mas, em 1958,decidido a acelerar o ritmo das mudanças, o partido lançou o Grande Salto Adiante, criandocomunas populares que deveriam implementar indústrias de fundo de quintal e, ao mesmo tempo,produzir cotas muito mais elevadas de grãos. Com o desvio da mão-de-obra para fornossiderúrgicos caseiros e o baixo rendimento das colheitas provocado pelo mau tempo, o resultadofoi a pior fome do século, que causou a morte de pelo menos 15 e talvez 30 milhões de pessoas.Oito anos depois, a Revolução Cultural viria ceifar as fileiras do próprio partido, dizimando seusquadros numa série de expurgos que, como na Rússia, então ultrapassaram seus limites. Ao quetudo indicava, como que arrebatada por uma inexorável dinâmica comum, a RPC tinhareproduzido os dois piores cataclismos da URSS.

Mas, por mais estranhas que possam parecer as semelhanças, a matriz diversa daRevolução Chinesa acabou se impondo. Se o saldo de vítimas no campo, em termosproporcionais, foi comparável, seus mecanismos e suas consequências foram distintos. Acoletivização soviética foi concebida como uma operação para destruir os camponeses "ricos"como um estrato - em geral, os proprietários de alguma criação - e foi executada com níveismilitares de violência. Mais de 2 milhões de kulaks foram deportados para as estepes sob a miradas armas da OGPU. A fome de 1932-1933 que se seguiu, embora provocada em parte pelo mautempo, foi essencialmente um efeito da destruição da sociedade rural que esta segunda guerracivil deixou no seu rastro. Por mais absurdamente voluntarista que tenha sido, o Grande Salto

 Adiante, em contraste, nunca foi concebido como um ataque contra o campesinato ou qualquer desuas camadas. Não houve deportações, nem se viu tropas do Ministério do Interior arrebanhandocamponeses recalcitrantes. A cegueira burocrática, resultado da carência (autoinflingida,

naturalmente) de relatórios fidedignos das bases sobre o rendimento real das safras de grãos,mais do que a truculência policial, foi a causa imediata do desastre. Além do mais, não seproduziu nenhum desânimo comparável ao que se abateu sobre o campesinato russo. O camponão ficou permanentemente desmoralizadopelo Grande Salto Adiante, e o trem de vida nas aldeias, mesmo nas regiões mais gravementeafetadas, foi retomado com surpreendente rapidez.

3 Para uma estimativa do saldo de vítimas, ver R.W. Davies, “Forced Labor under Stálin:

The Archive Revelations”, NLR I/224, nov-dez. 1995, pp.62-80; J. Arch Getty e Oleg

Naumov, The Road to Terror , New Haven, CT 1999,pp. 587-594.

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O contraste entre as motivações e os resultados finais foi ainda mais acentuado naRevolução Cultural. Na segunda metade da década de 1930, Stálin espalhou o terror de alto abaixo no partido e no Estado soviético, atingindo muitos dos próprios dirigentes que tinham lhedelegado o poder supremo no PCUs, prontamente fuzilados como espiões, traidores oucontrarrevolucionários durante a Yezhovshchina. Embora os verdadeiros motivos por trás dessainsânia permaneçam obscuros, está claro que Stálin, cuja legitimidade como ditador personalista

nunca fora totalmente assegurada - ele não desempenhara nenhum papel relevante naRevolução de Outubro e Lênin prevenira expressamente o partido contra ele -, foi tomado poruma mórbida suspeita contra todos os que o cercavam e agiu na certeza de que a única maneirade lidar com potenciais opositores ou dissidentes era matá-los.

 Ao lançar a Revolução Cultural, Mao também visou seus colegas mais próximos, em parteporque fora obrigado a admitir o fracasso do Grande Salto Adiante, quando este não podia maisser negado, e aceitar a mudança da política agrária que lhe impuseram. Contudo, sua principalmotivação foi impedir que se reproduzisse na China a casta de burocratas empedernidos que, aseu ver, estava conduzindo a URSS pós-stalinista a uma sociedade de classes indistinguível docapitalismo. A fim de tolher essa tendência, ele não recorreu aos órgãos de segurança, que naChina nunca tiveram a importância que tinham na Rússia, mas à juventude estudantil. Insuflandocontra os suspeitos de favorecer a via soviética agitações de massa desde as bases, em vez de

decapitá-los desde a cúpula, Mao lançou o país numa década de caos controlado. As barbaridades que se seguiram formaram uma legião. A violência desregrada -perseguições e altercações; humilhações, surras, fuzilamentos; guerras entre facções - espalhou-se de cidade em cidade; nos condados, execuções organizadas. O número de vítimas, ainda a serdevidamente computado, superou de longe um milhão4. Contudo, as mortes - proporcionalmente,muito menos numerosas que as verificadas durante o pandemônio soviético - não foram ditadaspor instruções executivas, mas motivadas por iniciativas localizadas de vingança, conforme asautoridades iam sendo depostas,e as pendências, ajustadas por todo o país. Nenhum Yezhov ou Beria estava no comando. Aocontrário do Grande Terror, a Revolução Cultural não foi simplesmente uma campanha derepressão em escala gigantesca. Foi uma tentativa radical de sacudir as estruturas burocráticas,mobilizando contra elas a revolta de uma geração mais jovem, tendo sido vivida como uma

liberação mental - quanto mais não seja, devido ao colapso temporário de tamanha autoridadeinstitucional - por muitos que mais tarde se decepcionariam com seus resultados e mesmo poranticomunistas ferrenhos. A sua meta autoproclamada foi uma transformação igualitária deperspectivas que não mais comportasse as "três grandes diferenças": entre cidade e campo, entreagricultura e indústria, e - acima de tudo - entre trabalho intelectual e manual.

Esses ideais eram utópicos para qualquer sociedade da época, quanto mais para uma tãoatrasada como a chinesa. Mas eles não eram mera vitrine. O envio de 17 milhões de jovens dascidades para o campo a fim de realizarem trabalhos agrícolas ao lado dos camponeses, com aconsequente paralisação dos colégios e universidades, foi um processo mais característico e demaior alcance do que as perseguições do período. Executado sem violência, frequentemente comentusiasmo, ele atendia a outros objetivos. Estes, por sua vez, pesaram no modo pelo qual aRevolução Cultural promoveu sucessivos expurgos no interior do partido. Não houve nenhuma

carnificina generalizada. Humilhação, degradação e embrutecimento era a sina comum da maioriados visados, mais do que a eliminação. Os rituais da reforma do pensamento, destinados a "curara doença, não matar o paciente", segundo o preceito de Yan'an, permaneceram na teoria e naprática - esta, um tanto brutal -, o método habitual para lidar com os suspeitos da via capitalista.Quando a Revolução Cultural chegou ao fim, não mais do que 1% dos quadros do partido haviasido definitivamente expulso, sendo que praticamente todo o primeiro escalão - à exceção de LiuShaoqi -, contra o qual Mao investira em 1966-1969, sobrevivera. Ao contrário de Stálin, Mao

4 Ver Andrew Walter e Yang Su, “The Cultural Revolution in the Countryside: Scope, Timing

and Human Impact”, China Quarterly, mar. 2003, pp. 82-107.

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tinha conduzido a Revolução Chinesa para a vitória e não ocorreu nenhum massacre da VelhaGuarda que combatera a seu lado.

Variáveis culturais e políticas interagiram para produzir um desenlace diferente. Mao tinhase tornado um imperador moderno, exercendo poder pessoal absoluto. No entanto, a tradiçãoimperial da China sempre valorizara mais a doutrinação do que a coerção como instrumento degoverno, por mais implacável que tenha sido seu exercício da violência quando a necessidade ou

o capricho assim o ditaram: o objetivo da Revolução Cultural- transformar as mentes paratransformar a realidade, como se as concepções intelectuais determinassem as relações sociais -era tributário de noções mais confucianas do que marxistas da transformação histórica. Contudo,esse ainda era um regime nascido de uma revolução social, em que o poder - contrariamente aum ditado de Mao da época - brotara não apenas do cano de um fuzil, mas também da confiançamoral de milhões no partido que o detinha. Se a Revolução Cultural chegou perto de destruir essaherança política, nem por isso ela deixou de ser estranhamente conformada e, afinal, tambémrestringida por ela.

II. MUTAÇÕES

Com uma diferença de trinta anos entre suas origens, as duas revoluções tenderam paraprojetos de reforma que, dada a sua proximidade no tempo, acabaram por se superpor. Os

antecedentes de cada um deles foi o fracasso das tentativas prévias de reconstrução. Na URSS,tão logo Stálin morreu, a reação contra sua tirania foi rápida. Sob Khruschev, a máquina do terrorfoi desmantelada; a censura relaxou; as fazendas coletivas ganharam maior autonomia; osinvestimentos em consumo aumentaram; e a coexistênciapacífica com o capitalismo foi proclamada. A desestalinização prosseguiu com ímpetoconsiderável por uns cinco anos, do XX ao XXI Congresso do PCUs. Depois disso, os erráticoszigue-zagues de Khruschev na política externa e interna - aposta e recuo no Caribe,reestruturação inócua do partido, planos improvisados para a revitalização da agricultura -provocaram a hostilidade de seus colegas e levaram à sua demissão sumária. Khruschev nãochegou a cogitar nenhuma transformação essencial do sistema econômico herdado de Stálin,com ênfase no planejamento altamente centralizado e prioridade para a indústria pesada, quetinha assegurado o triunfo soviético em 1945 e que servira de plataforma para a sua própria

carreira. Legitimando tudo o que a Cosplan

5

 alcançara o prestígio da vitória sobre a potência maisindustrializada da Europa comprometeu a flexibilidade do sistema socioeconômico responsávelpor transformar a URSS numa grande potência, justamente no momento em que isso se faziamais necessário, no limiar de uma nova era6.

Quando Khruschev foi deposto, o desenvolvimento ainda era considerável e o poder militarda URSS se expandia. O preço de seu fracasso foi o "período de estagnação", como seriachamado longo interregno de meados da década de 1960 até meados da década de1980. Livre de suas irrequietas iniciativas e agora a salvo de prisões arbitrárias, a burocraciasoviética se acomodou numa inércia complacente, contentando-se com um estoque crescente dearmamentos e ignorando a queda acentuada de rendimento de suas repisadas fórmulas deinvestimento industrial. A URSS alcançou paridade nuclear com os EUA e conquistou o estatutode superpotência. Contudo, 20 anos de brezhnevismo transformaram o partido numa floresta

petrificada de funcionários públicos, que geriam uma sociedade na qual a expectativa de vida

5  Gosudarstvennyi Komitet Planirovaniya, Comissão de Planejamento Estatal do Governo

Comunista da Rússia. [N.doT.]

6  Negativamente, a coletivização agrária e os expurgos tiveram efeitos afins sobre o

sistema político: catástrofes cujos êxitos comprometeram irremediavelmente as

renovações, enquanto os fracassos do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural

possibilitaram-nas.

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caía, o crescimento econômico praticamente estagnara e o cinismo era generalizado. Era esse opalco quando Gorbachev entrou em cena, em 1985.

 A desordem na China quando Deng Xiaoping chegou ao poder era impressionante. O paísainda estava traumatizado pela turbulência da Revolução Cultural. A educação superiorsimplesmente deixara de existir durante uma década. Monumentos haviam sido destruídos pelovandalismo' a vida intelectual havia sido abolida pelo dogmatismo. Vasto número

de jovens continuava segregado em exílio rural. As cidades ferviam de insatisfação, e a capital dopaís fora recentemente palco de tumultos de massa, quando o prédio do Birô de SegurançaPública, nas imediações da praça da Paz Celestial, foi saqueado e incendiado por multidõesenfurecidas: baderna inconcebível em Moscou. Mao quisera evitar a espécie de comunismo a queas políticas de Khruschev, no seu entender, tinham conduzido a URSS. Nisso, ele foi bem-sucedido. Agora, a China estaria preservada daquela lenta involução de uma burocraciaconservadora, como a que tomou conta da URSS com Brezhnev, imobilizando a economia e asociedade numa condição degenerativa. Sua meta negativa tinha sido alcançada. Mas suaalternativa positiva fracassara igualmente, e por completo. Por ocasião de sua morte, as políticasque implementara tinham conduzido a China a outro tipo de impasse histórico.

2

Quando embarcaram nos seus programas de reforma, a União Soviética, ao que tudoindicava, era dos dois países o que apresentava condições materiais e culturais muito maisfavoráveis para lograr o êxito. Seu PIB era de quatro a cinco vezes maior que o chinês. Sua baseindustrial era muito mais ampla e empregava mais do dobro da força de trabalho, em termosrelativos. Era mais rica em quase todos os recursos naturais - combustíveis fósseis, minériospreciosos, terras abundantes. Era muito mais urbanizada. Sua população era mais bemalimentada e ingeria em média 50% mais calorias que a chinesa. Sua infraestrutura eraconsideravelmente mais desenvolvida. Por último, mas não menos importante, seu nível deeducação era incomparavelmente melhor: totalmente alfabetizada, com um número, em termosrelativos, 20 vezes maior de estudantes matriculados em nível superior além de contar com umacomunidade de cientistas bem treinados.

Contudo, o "período de estagnação" veio neutralizar gradualmente e, em certos aspectos

cruciais, degradar essas vantagens naturais. Durante 20 anos, nenhuma mudança políticasacudiu o marasmo da vida soviética. O planejamento centralizado levado a extremos caricaturais- 60 mil produtos básicos com preços tabelados - tolheu a inovação e propiciou toda espécie dedistorções. A produtividade do trabalho estagnou; a relação capital/produto piorou: a maquinariaobsoleta não foi sucateada; as novas tecnologias de informação não foram assimiladas. Noentanto, à medida que o desempenho da economia declinava, a pressão da corrida armamentistaaumentava. Encalacrada numa rivalidade estratégica com os Estados Unidos, um país maisavançado e muitíssimo mais rico, a liderança soviética desviou uma vultosa fatia do PIB paragastos militares, com pouca ou nenhuma "derivagem" [spin-offJ para o resto da economia, sem terconseguido afinal emparelhar com o arsenal norte-americano. Seus protetorados no LesteEuropeu e no Afeganistão, demandando subsídios e forças expedicionárias, representavam umônus adicional. Para a URSS, a Guerra Fria não foi apenas um impasse diplomático, ela também

congelou as molas do crescimento.Mas, quando chegou o momento da reforma há muito necessária, o grande déficit nessesistema emperrado não foi econômico, mas político. Quatro gerações separavam agora o partidodirigente da Revolução. O espírito insurgente do bolchevismo havia muito desaparecera. O rudedinamismo da shturmovshchina stalinista na indústria e na guerra era coisa do passado. A simpleslembrança do espalhafatoso jogo de cena de Khruschev, no seu intento de combinar as duascoisas, ainda que brevemente, tinha se apagado. O grosso do PCUs - a nomenklatura soviéticapropriamente dita - era formada por funcionários administrativos medíocres e apáticos, incapazesde criatividade ou iniciativa. O surgimento de Gorbachev como seu líder, no entanto, provou que opartido ainda não estava totalmente catatônico. Tão logo tomou posse como secretário-geral, ele

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agiu rapidamente para afastar dos altos cargos remanescentes do período de Brezhnev,consolidando seu poder no partido por meio de uma maioria escolhida a dedo no Politburo. Emseguida, proclamou seus lemas: glasnost e  perestroika - a necessidade de maior transparêncianos negócios públicos e uma remodelação das instituições do país.

 A primeira, acompanhada por um relaxamento geral da censura, foi saudada por uma ondade entusiasmo na sociedade, à medida que energias há muito reprimidas eram liberadas em

polêmicas revelações de fatos controversos e debates iconoclastas de toda espécie. Já asegunda deixou sua audiência um tanto perplexa. O que a perestroiha - um termo que Lênin certavez utilizara de modo incidental- realmente significava na prática? Logo se viu que Gorbachev,por corajoso que fosse nas suas intenções, era vago nas suas ideias: embora moralmentedistanciado do PCUs da era Brezhnev no qual ascendera, ele contava com poucos recursosintelectuais independentes do partido e não tinha senão uma ideia demasiado vaga das reformasque pretendia. A maioria de seus delegados na cúpula do partido tinha uma ideia mais vaga aindae não tardou para que muitos começassem a resistir-lhe. A fim de contornar sua oposição,Gorbachev passou a apelar cada vez mais para uma clientela alternativa, em busca delegitimidade e orientação.

 A intelligentsia russa havia muito se incompatibilizara com o regime. O brilhante movimentovanguardista animado por aqueles que não tinham partido para o exílio após a Revolução foi

enterrado por Stálin. As esperanças alimentadas pela distensão que se seguiu à sua morte foramrapidamente frustradas, antes mesmo da queda de Khruschev, pela rudeza e pelo espírito filisteudo regime sucessor. Em meados dos anos 1980, o comunismo, sob qualquer forma ou aspecto,era anatematizado por quase todas as correntes desse estrato historicamente influente dasociedade russa. Os eslavófilos e os ocidentalistas, seus dois polos tradicionais, se uniram narecusa da ordem soviética. Aqueles, no entanto - apesar da projeção alcançada por Solzhenitsyn -, eram residuais; estes eram hegemônicos. Liberais,convencidos da superioridade do Ocidente e aspirando a se integrar nele, em breve estavamditando o compasso na entourage de Gorbachev, propondo mais ideias e objetivos decididos doque ele próprio desenvolvera. Para eles, uma verdadeira reforma só poderia significar duas coisasinterrelacionadas: a introdução da democracia, com a realização de eleições livres, e oestabelecimento de uma economia de mercado baseada na propriedade

privada dos meios de produção.Como secretário-geral do PCUS, Gorbachev não estava em posição de apoiar a segundameta, mesmo se tivesse querido, o que não foi o caso. Mas ele endossou a primeira, desde queas regras fossem tais que lhe assegurassem a legitimação de seu próprio poder por meio de umplebiscito popular, ajudando-o a se libertar da dependência de um partido do qual passara adesconfiar cada vez mais, assim como o partido desconfiava dele. A reforma política, a criaçãopela primeira vez na história russa de uma democracia representativa,tornou-se a prioridade. A reforma econômica, que originalmente havia sido o principal significadoda perestroiha, foi postergada. Essa foi a ordem de batalha transmitida para a intelligentsia liberal,que precisava quebrar o monopólio do poder antes de investir contra os alicerces da economiaplanejada. Para Gorbachev, no entanto, ela tinha uma outra atração. Abolir a censura e permitir arealização de eleições livres era algo relativamente simples de realizar - no fundo, uma simples

questão de suspender restrições. Reorganizar a economia seria muito mais difícil- uma tarefadescomunal, em comparação. Ele preferiu o caminho menos árduo.Se havia que introduzir a democracia de estilo ocidental no país, que sentido tinha

confrontá-Ia no plano externo? Esvaziar gradualmente a Guerra Fria era algo que poderia lhetrazer não somente o aplauso da intelligentsia que, agora bem entrincheirada na mídia, tinha setornado o principal formador de opinião no país, como também benefícios econômicos concretos,reduzindo o ônus representado pelos gastos militares. E não apenas isso: o prestígiointernacional de um governante que se relacionava nos termos mais amistosos com seusinterlocutores ocidentais, sobretudo com o presidente dos Estados Unidos da América, e traziapaz e boa-vontade às nações do mundo, só faria realçar a sua imagem interna. A partir de Ig87,

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Gorbachev se dedicou cada vez mais a viagens internacionais e confabulações, tornando-se ocentro das atenções da opinião pública ocidental, visivelmente inebriado pela figura que estavacultivando no cenário mundial. O tempo dedicado à desagradável tarefa de gerir a economiarussa era cada vez menor.

Então, quando os inconsistentes projetos iniciais para a promoção de cooperativas deramem nada, uma medida inócua após outra foi experimentada para introduzir maior autonomia

empresarial, com pouco ou nenhum resultado, enquanto a URSS mergulhava numa profundacrise social, consequência direta da prioridade dada à renovação política do país, em detrimentoda econômica. O crescimento era praticamente nulo quando Gorbachev assumiu o poder, e ospreços do petróleo - do qual a receita cambial do governo dependia criticamente - já estavamcomeçando a cair, pressionando o orçamento com intensidade crescente e constante, à medidaque as rendas do petróleo continuavam caindo. Essas seriam graves dificuldades em quaisquercircunstâncias. O que as transformou numa queda livre catastrófica foi a marginalização do r-cuspor Gorbachev, em sua busca de consagração popular. A economia planejada dependia dacapacidade do partido de exigir o cumprimento das cotas de produção requeridas pelo governocentral. Como o partido fora privado de poder real, sem nenhum substituto efetivo, os gerentessimplesmente deixaram de fornecerseus produtos ao Estado pelos preços fixados e passaram a vendê-los por quanto conseguissem

e a quem pudessem. O resultado foi o colapso do sistema de alocação central que mantinha osistema coeso e o crescente descontrole do comércio, particularmente severo entre as repúblicas.Enquanto a economia mergulhava no caos, o Estado encontrava dificuldades cada vez

maiores para arrecadar impostos das empresas e das repúblicas, apelando para a emissão demoeda a fim de cobrir subsídios de alimentação e encargos sociais. A espiral inflacionária foiagravada pelo aumento do déficit no balanço de pagamentos - visto que o governo tentara contera queda de sua popularidade com a importação de bens de consumo -, bem como pelo aumentogalopante da dívida externa, que duplicaria em cinco anos. Por volta de 1989, o Estado soviéticonão estava longe da bancarrota. E, o que ainda era mais fatídico, estava à beira dadesintegração, e pela mesma razão. A partir do momento em que Gorbachev excluiu o fatorPCUs da equação, colocando-se na posição de governante personalista, à parte e acima dele,nada mais conservou as repúblicas unidas7. Sem a estrutura coesiva do partido, a URSS carecia

de quaisquer vínculos unionistas [all-UnionJ. Gorbachev, encarnando até o fim seu papel demoderador da Guerra Fria e libertador da Europa do Leste, mostrou -se ainda mais insensívelpara a questão nacional dentro de seu próprio país, do que para a situação crítica de suaeconomia. Quando os últimos sobreviventes da velha ordem finalmente se revoltaram contra ele,em 1991, e o derrubaram, vindo abaixo junto com ele, a URSS se dissolveu da noite para o dia.

3Quando, sete anos antes do PCUs, o PCC se lançou no caminho das reformas, a China era

um país muito mais pobre e atrasado do que a Rússia8. Por volta de 1980, o PIB  per capita da

7 Para o desmantelamento do partido federativo, ver Stephen Kotkin, Armageddon Averted:

The Soviet Collapse 1970-2000, Oxford, 2001, pp. 76-81; para o caos monetário, a

disseminação do escambo e o desfalque crescente do patrimônio público à medida que a

perestroika degringolava, ver David Woodruff, Money Unmade: Barter and the Fate of

Russian Capitalism, Ithaca, 1999, pp. 56-78, e Andrew Barnes. Owning Russia: The

Struggle over Factories, Farms and Power, Ithaca, 2006, pp. 43-67.

8 As comparações pertinentes são exploradas na obra fundamental de Peter Nolan, China´s

Rise, Russia´s Fall: Politics, Economics and Planning in the Transition from

Stalinism, Basingstoke, 1995, pp. 110-159, que também contém um dos mais críticos e

contundentes relatos da perestroika: pp. 230-301. Para reflexões contritas sobre o

fracasso da perestroika em “deflagrar uma revolução capitalista”, comparar Minxin Pei,

From reform to Revolution: The Demise of Communism in China and the Soviet Union,

Cambridge, 1944, pp. 118-142.

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RPC era 14 vezes menor que o soviético. Mais de 70% de sua força de trabalho estavaempregada na agricultura, contra 14% na União Soviética. Cerca de um em cada três chinesesainda não sabia ler ou escrever. Suas universidades não passavam de uma fração das indianas.Pode-se afirmar com segurança que nenhum observador, seja no próprio paísou fora dele, poderia ter previsto a reviravolta da sorte nos dois países três décadas mais tarde.Contudo, já de início a Rússia apresentava uma série de desvantagens que não afetavam a

China; esta apresentava antes um conjunto de "vantagens negativas" que lhe proporcionaramcondições iniciais - econômicas, sociais e políticas - que a favoreciam, sob certos aspectosmenos evidentes.

 A primeira delas era o peso menos considerável da maquinaria obsoleta na economia, nãoporque seu capital fixo superasse o soviético, mas simplesmente por seu nível inferiorde industrialização. Aquilo que se tornaria conhecido como o "cinturão da ferrugem" chinês aindaera algo respeitável: quem viu West ofthe Tracks, a trilogia de Wang Bing sobre odestino final do parque industrial de Shenyang e de seus operários - talvez, o maior documentáriode todos os tempos -, não poderá esquecê-lo. Ainda assim, em termos relativos, seu peso eramenor do que na URSS. Não havia tantas fábricas para sucatear. Mais importante ainda, oplanejamento chinês sempre havia sido mais maleável que o seu modelo russo. Bem cedo, Maocompreendeu a impossibilidade de impor as ubíquas diretrizes do Gosplan a uma economia

muito menos articulada como a chinesa, com tradições regionais muito mais arraigadas einfraestrutura mais pobre. Desde o início, as autoridades provinciais e distritais haviam desfrutadode maior autonomia do que no sistema soviético, em qualquer momento de sua história.Deliberadamente, a Revolução Cultural enfraquecera ainda mais os poderes do centro, deixandoaos governos locais uma margem maior de iniciativa. Assim, as metas de produção industrialeram um tanto modestas e a pressão para seu cumprimento não era irresistível. O resultado foium sistema muito mais descentralizado, no qual o número de produtos básicos com preçostabelados por Beijing nunca ultrapassou 600, no máximo, um centésimo da pletora soviética 9.Menos rígido, essemarco institucional permitia maior flexibilidade e mudanças menos desestabilizadoras.

Socialmente, a China também apresentava uma enorme e decisiva vantagem sobre aRússia. O campesinato chinês não era um resquício da classe indolente e taciturna que

havia sido antigamente, como na Rússia. Não estava exaurido, nem descontente, mas cheio deenergias latentes à espera de sua liberação, como os acontecimentos demonstrariam.Historicamente, nunca possuíra instituições coletivas comparáveis ao mir.  A sociedade rural,atomizada havia muito no norte e chacoalhada pela rebelião Taiping no sul, conseguiu serecuperar após o Grande Salto Adiante, tendo atrás de si um passado secular de estímuloscompetitivos. Além do mais, a ausência de descontentamento profundo no campo não se deveu auma simples diferença entre as duas sociedades rurais. Formando a maioria esmagadora dapopulação, o campesinato chinês era a pedra angular da nação. Seu equivalente mais próximo naURSS, ainda que proporcionalmente não correspondesse a um setor tão amplo da sociedade,seria a classe operária industrial. No entanto, embora não tão desmoralizada quanto os kolkhoz-niki, por volta da década de 1980 ela também era uma força social totalmente desiludida,profundamente cética com relação ao regime, acomodada ao trabalho antieconômico e à baixa

produtividade, como uma espécie de compensaçãopara a imensa disparidade entre seu papel nominal como classe condutora do Estado e suaposição real na hierarquia do privilégio. Na China, onde após o Grande Salto Adiante a populaçãorural foi impedida de entrar nas cidades e sempre careceu dos benefícios sociais que assistiamaos trabalhadores urbanos, as desigualdades formais entre cidade e campo eram maiores do quena União Soviética. Antes de mais nada, porém, a ideologia governante nunca proclamou aoscamponeses que eles eram a classe na vanguarda da construção do

9 Barry Naughton, Growing out of the Plan: Chinese Economic reform, 1978-1993. Nova York,

1995, pp. 41-42

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socialismo. O abismo moral entre teoria e realidade era menor, bem como o tempo transcorridoentre as esperanças iniciais e a experiência subsequente. Apesar de tudo o que lhes foi infligidoou concedido, o campo continuou a ser uma reserva do partido no poder.

No plano internacional, a situação da RPC proporcionou-lhe maior margem de manobra. Elanão estava sobrecarregada por nenhuma zona de estados-satélites onerosa, que exigissesoldados e subvenções para ser mantida. Ela não estava em condições de competir com as

superpotências na corrida armamentista, nem tentou. Além de estar livre desses entraves, havia arelação radicalmente diferente que a China mantinha com os Estados Unidos. Após uma décadade extrema tensão com a URSS, quando se produziram inclusivechoques militares ao longo da fronteira, Mao derivou para uma entente com os Estados Unidosainda durante a Revolução Cultural. A visita de Nixon e seus resultados, por mais espetacularesque tenham sido, permaneceriam uma abertura diplomática sem maiores consequênciasenquanto ele vivesse. Graças a ela, porém, quando ocorreu o redirecionamento para as reformasinternas, a China contava com uma situação propícia na arena internacional. Uma amizadecautelosa, de preferência a um antagonismo calculado, criou as condições para que o centronervoso do capital mundial e sua pletora de sucursais regionais já estivessem preparados paraestender ajuda financeira à China, aos primeiros sinais de abertura para a economia de mercado.

 A ausência de descontentamento profundo no campo somou-se à inexistência de qualquer

ameaça imperialista direta do exterior, pela primeira vez na história moderna do país. Além do mais, internamente a RPC não corria perigo algum de se desintegrar, comoaconteceria com a URSS. Ela não era composta de 15 repúblicas diferentes. Mais homogêneaem termos étnicos do que a maioria dos Estados- Nação, ela enfrentava a hostilidade denacionalidades rebeldes dentro de suas fronteiras - no Tibete e no Uygur -, o que não ocorreradurante meio século na União Soviética. Contudo, o peso delas no conjunto da população eramínimo em comparação com a soma dos povos que provocariam a fragmentação da URSS umadécada mais tarde. Um ponto mais prioritário na agenda do PCC do que o problema recorrentede manter essas regiões sob controle era a tarefa ainda pendente de recuperar Taiwan, onde oGMD estabelecera um reduto insular sob proteção dos Estados Unidos, ainda alimentavapretensões de representar a verdadeira República da China e atravessava um período de grandeprosperidade econômica. A principal preocupação do partido não era com os riscos de

dissolução, mas com problemas de recomposição territorial.4

Contudo, no limiar de suas reformas, a diferença mais decisiva entre a Rússia e a Chinatalvez fosse o caráter de suas lideranças políticas. A RPC não tinha no seu comando umfuncionário inexperiente, isolado, cercado de assessores e publicitários imbuídos de um ingênuoSchwiirmerei por tudo o que fosse ocidental, mas veteranos escaldados da Revolução original,líderes que haviam sido companheiros de Mao e sofrido sob seu governo, mas que não tinhamperdido nada de sua capacidade estratégica, e de sua autoconfiança. Deng Xiaoping, com efeito,havia sido tão indispensável ao regime que Mao o chamara de volta quando ainda vivo. Após amorte de Mao, sua autoridade era tamanha que ele depressa se sobressaiu como o árbitroinconteste do partido, sem precisar se empenhar pessoalmente para alcançar essa distinção, nem

sequer ocupar altos postos hierárquicos. Mas Deng não estava só. Com ele, retornaram ChenYun, Bo Yibo, Peng Zhen,Yang Shangkun e outros, formando um entrosado grupo de colegas sem papas na língua - os"Oito Imortais" -, os quais, embora não raro discordassem veementemente entre si, assegurarama continuidade das reformas a seu lado. Coletivamente, eles ocupavam uma posição forte,desfrutando não somente de prestígio pelo-seu desempenho na Guerra Civil e na construção danação, mas de popularidade por terem dado um fim à RevoluçãoCultural, o que foi recebido com uma onda de alívio nas cidades.

 Ao avaliar a situação do país tal como Mao o deixara, esses dirigentes, com Deng à frente,permaneceram os revolucionários que sempre haviam sido. A sua têmpera era leninista: radicais,

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disciplinados, criativos - capazes tanto de paciência tática, quanto de experimentação cautelosa,das iniciativas mais ousadas e das guinadas mais dramáticas. Esse havia sido o espírito queinspirara a Longa Marcha e levara à vitória na guerra civil. E foi comesse espírito que eles enfrentaram o impasse no qual a Revolução Cultural lançara a China. Aofazê-lo, tinham aguda consciência da transformação da conjuntura chinesa, o que os funcionáriosdo PCUs, dirigindo uma sociedade relativamente mais avançada, não tinham. O Leste Europeu

era certamente mais rico e mais desenvolvido do que a Rússia, mas sempre havia sido, e adiferença entre suas respectivas taxas de crescimento - durante as décadasde 1970 e início de 1980, a própria CEE (Comunidade Econômica Europeia) entrou num longoperíodo de baixa - não era tão grande a ponto de forçar os dirigentes soviéticos, nem mesmo nosprimeiros tempos de Gorbachev, a repensar os pressupostos básicos sobre os quais assentava oêxito do Estado.

No Extremo Oriente, por outro lado, a partir da década de I950, o Japão quebrara todos osrecordes históricos no seu acelerado crescimento - superando de longe não apenasa Europa, mas também os Estados Unidos. Essa recuperação espetacular de uma economiareduzida a cinzas no final da guerra - com a criação de indústrias exportadoras de altíssimacompetitividade e de uma sociedade de consumo integralmente moderna - contrastava de modoflagrante com a pobreza e a autarquia relativas da China, apesar do substancial desenvolvimento

alcançado durante o período de Mao. O Japão, ainda que sobrepujasse seus vizinhos como agorao fazia, tampouco estava sozinho no seu êxito. No final da década de I970, a Coreia do Sulexperimentara um vertiginoso processo de industrialização conduzido por Park Chung-Hee e, oque era ainda mais exasperante, oregime do GMD em Taiwan não ficara muito atrás. A pressão desses desenvolvimentos sobre aRPC era iniludível. Deng exprimiu-se com agudeza sobre a situação uma décadamais tarde, no auge da crise política de I989. Após observar que, enquanto a Chinapermanecesse isolada, "não haveria nenhum desenvolvimento econômico, nenhum aumento dopadrão de vida, nenhum fortalecimento do país", ele continuou: "Hoje em dia, o mundo galopauma milha por minuto, sobretudo em ciência e tecnologia. Mal conseguimos acompanhar 10.

 A tarefa de superar o descompasso entre o comunismo na China e o capitalismo noExtremo Oriente era uma ordem do dia formidável para qualquer programa de reformas. No

entanto, os Imortais não se mostraram intimidados. Atacaram-na, não somente com um vigorderivado do impulso ainda atuante da Revolução que tinham feito, mas também com a milenarauto confiança - posta à prova durante séculos, mas ao fim e ao cabo inquebrantável-, da maisantiga civilização contínua do mundo. O dinamismo de Mao, feliz ou infelizmente, havia sido umadas expressões da restauração dessa confiança. A Era das Reformas impulsionada por Dengseria outra. Essa auto confiança histórica constituía outra das diferenças essenciais entre aRússia e a China.

5Ideologicamente, o tsarismo possuíra desde o início um ligeiro traço messiânico,

transmitido às elites russas e, no seu devido tempo, à intelligentsia do país - crenças da Rússiacomo a Terceira Roma, a salvadora dos eslavos, a redentora da humanidade do materialismo

ocidental. No século que iria dar na Revolução, manifestações dessa tendência podiam serdetectadas nos Aksakov, Dostoiévsky, Rozanov, Blok. Tratava-se, porém, de um mecanismo decompensação. A Rússia continuou a ser, como sabiam todos os russos, um rincão atrasado daEuropa, temível apenas por sua imensidão. A ocidentalização, destituída de idiossincrasiasétnicas ou religiosas, tinha sido a visão que impelira seus maiores governantes, Pedro e Catarina,e numa ou noutra variante - liberal ou radical-,veio a dominar suas elites e sua intelligentsia no início do século 20. Contudo, a reivindicação deuma missão especial reservada à Rússia persistiu, produzindo uma esquizofrenia recorrente,

10 The Tiananmen Papers, Nova York, 2001, p. 327.

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visível até hoje. O leninismo superou essa mentalidade cindida combatendo o atraso russo, nãoem desesperada imitação do Ocidente, mas em revolta contra ele, movido por sua profundacrítica dele.

Sob Stálin, a Segunda Guerra Mundial e suas sequelas propiciaram o retorno de umnacionalismo de corte mais tradicional, do tipo "Grande Rússia", com sua cadeia de mecanismosde defesa, embora ele tenha sempre coexistindo com motivos marxistas. Após Stálin, esse

chauvinismo perdeu terreno, sem que nenhum substituto viesse a ocupar o seu lugar. Os últimosalentos do internacionalismo, ainda subsistentes sob Khruschev, depressase extinguiram, deixando apenas o vácuo ideológico do brezhnevismo. Na altura da  perestroika,não somente a maioria quase absoluta da intelligentsia, como também elementos da própria elitedirigente, desesperançados diante da estagnação do país, reverteram para o que se poderiaconsiderar em termos históricos a posição ideológica default da ocidentalização radical- destavez, porém, com espírito de rebaixamento, mais que ambição.

 As tradições geoculturais da China eram totalmente diversas. O Reino do Meio haviadominado seu mundo conhecido desde a unificação promovida pelo primeiro imperador, ao tempodas Guerras Púnicas no Ocidente; foi por vezes conquistado, mas nunca sofreu a rivalidade denenhum Estado comparável da região, onde sempre foi de longe a maior, mais rica e maisavançada potência, à qual as outras podiam somente prestar tributos, não esperar igualdade de

tratamento. Sob a dinastia Qing, o império tinha se expandido como nunca antes, alcançando osrecessos da Ásia Central. A ideologia das sucessivas dinastias variava - os cultos manchús eramdos mais heteróclitos -, mas não a pretensão imperial de absoluta preeminência sobre quaisquersoberanos menores, mais próximos ou mais distantes.

 A China era o centro da civilização e seu ápice natural.No século 19, a ingerência ocidental despedaçou essas antiquíssimas pretensões. Quando

se tornou claro que a monarquia estava ruindo sob o impacto de golpes internos e externos, oalarme dos literatos - normalmente, a mola-mestra da administração imperial- tornou-se mais emais estridente; e, com os primeiros reveses da nova República, sua reação tomou uma direçãosingularmente radical. Diferentes correntes se entrecruzaram na cultura do Movimento de Quatrode Maio, que se cristalizou em torno dos protestos estudantis de 1919 contra as exigências

 japonesas impostas à China e contra o Tratado de Versalhes que as amparava. Contudo, sua

investida se concentrou na demolição completa do cânone confuciano, a doutrina de governo queregera a ordem sociopolítica da China e o arcabouço moral da vida intelectual desde a dinastiaHan. Em questão de poucos anos, ele foi reduzido a praticamente nada: um feito que osadversários de qualquer credo ou religião comparável- cristã, muçulmana, hindu ou budista - queocupasse uma posição equivalente no firmamento ideológico de suas civilizações, jamaisrivalizaram11. O assalto contra o passado chinês - um tanto impetuoso já em Liang Qichao, aindaque esporádico - tornou-se abrangente e implacável com Chen Duxiu, o mentor intelectual daNova Juventude12.

 A veemência dessa rejeição das tradições autóctones, que destoava por completo dequalquer corrente de ideias no Japão, não refletiu - isso também destoava do Japão - nenhumatentação profunda pelo Ocidente. Na China, o retrospecto predatório das potências ocidentais erademasiado flagrante para permitir algum tipo de zapadnichestvo.  A carnificina entre as potências

europeias na Primeira Guerra Mundial foi o rematedas lições sobre a ganância imperialista na Ásia, e seu casamento em Versalhes precipitou o

11 Para um estudo de brilhante virtuosismo, ver Mark Elvin, “The Collapse of Scriptural

Confucianism”, in Another History: Essays on China from a European Perspective,

Honolulu, 1996, pp. 352-389.

12 “Onde estão os babilônios hoje? De que lhes serve a sua cultura agora?”, Indagou ele,

Jack Gray, Rebellions and Revolutions China from the 1800s to 2000, Oxford, 2002, p.

195.

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próprio Movimento de Quatro de Maio. A marca distintiva dessa intelligentsia após ocolapso do sistema de exames imperiais foi a repulsa ao passado tradicional e a execração dopresente capitalista, tal como estes se combinavam na China dos senhores guerreiros. Seumaior espírito, Lu Xun, exprimiu ambos de modo inesquecível. Sem negar que os dois sistemascontivessem algo de positivo - no espírito de um sardônico Montaigne, ele instigou seuscompatriotas a tirar o melhor proveito de cada um, numa pilhagem

à Ia "haptism" -, ele permaneceu um inimigo irreconciliável de ambos. Contudo, o próprioextremismo de suas posições derivava da força da cultura que ele criticava.Mao, que admirava Lu Xun, seguiu seu conselho numa escala grandiosa, transformando

suas negações na síntese positiva de um marxismo achinesado, a uma só vez maissistematicamente receptivo à subversão intelectual do Ocidente e mais profundamente apegadoàs tradições políticas do passado imperial - redigindo "Sobre a contradição" nas cavernas deYan'an e negligenciando os negócios do Estado no auge de seu poder para reler as crônicas deSima Guang. Lu Xun era pouco versado em materialismo dialético e não apreciava os anais daautocracia. Contudo, os liberais de hoje, que detestam ambos, não estão equivocados emdiscernir uma ligação entre o "totalismo" do crítico e o "totalitarismo" do dirigente. A seu modo,ambos encarnaram uma resposta chinesa às crises de seu país, cujo vigor criativo não encontraparalelo na Rússia de meados da década de 1920, resposta tirada dos profundíssimos substratos

de uma cultura muito mais antiga e mais ameaça da pela dominação estrangeira. Sob formaprodutiva ou pervertida, do Quatro de Maio à Revolução Cultural, correntes de força semelhantesestiveram em ação. De 1919 a 1949, confiança na negação, em seguida na revolta. De 1958 a1976, excessiva confiança naconstrução, em seguida na destruição. Finalmente, após 1987, confiança na reforma e nareconstrução.

6O grau de auto confiança com que o senado de anciãos revolucionários atacou os

problemas que enfrentavam se manifestou inicialmente no seu modo de lidar com o passado e ofuturo do partido. A desestalinização na Rússia tinha sido o feito espetacular, porém subreptício,de um líder unicamente, Khruschev, que surpreendeu o XX Congresso de seu partido com um

discurso de denúncia dos crimes de Stálin, sobre o qual não consultara ninguém. Emocional eanedótico, sem apresentar explicações mais profundas sobre como as repressões que relatavaseletivamente tinham sido possíveis, a não ser recorrendo ao vazio eufemismo burocrático "cultoda personalidade", essa arenga divagadora nunca foi publica da oficialmente, nemcomplementada por documentos ou análises mais profundas por parte da liderança daquelaépoca ou das subsequentes, até os dias da perestroiha.

Deng e seus colegas agiram de modo muito diverso. Cerca de 4 mil funcionários ehistoriadores do partido foram convocados para elaborar um retrospecto da Revolução Cultural;com base nas discussões então mantidas, um grupo de 20-40 redatores, sob a supervisão deDeng, produziu um documento-síntese de 3S mil palavras, formalmente adotado como resoluçãopelo Comitê Central do PCC em junho de 1981. Embora não fossecertamente um relato completo da Revolução Cultural- a responsabilidade atribuída a Mao era

qualificada como "ampla pela escala e prolongada pela duração", mas as vítimas das repressõesse restringiam ao partido, mais que à população -, o documento oferecia uma explicação coerentedos acontecimentos que não se limitava aos desmandos de um indivíduo isolado: as tradiçõespeculiares de um partido cujo caminho para o poder o tornara afeito à luta de classes irredutível,como se isso fosse uma missão permanente; o efeito do conflito com a Rússia, alimentandotemores de revisionismo; e, por último, mas não menos importante, "a perniciosa influênciaideológica e política de séculos de autocracia feudal". Ao contrário do requisitório de Khruschev, aresolução admitia a corresponsabilidade do Comitê Central nas gestões do moderno autocrata enão procurava de modo algum diminuirsua contribuição para a Revolução Chinesa como um todo.

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Com vistas ao futuro, a abordagem dos anciãos era igualmente distinta.Na URSS, Khruschev não dera nenhuma atenção à questão sucessória. O grupo que o

depôs, com Brezhnev à frente, agarrou-se aos seus cargos até a senilidade. Na gerontocraciaparalisada em que se transformara o PCUs, as novas gerações eram vistas não como umapromessa, mas como uma ameaça; somente as mortes poderiam suscitar alguma renovação daliderança. Foi preciso que três secretários-gerais morressem no espaço de três anos, todos

na casa dos 70, para que um político mais jovem finalmente ascendesse. No PCC, por outro lado,os anciãos estavam preservados dessa insegurança. Eles não perderam tempo para encontrarum substituto. Dois anos após recuperar o poder, tinham delegado seu exercício diário ao séquitode seus subordinados, promovendo Hu Yaobang a secretário-geral do partido e Zhao Ziyang apresidente do Estado.

7 A Era das Reformas começou - se não exatamente no tempo, em termos concretos - com

uma transformação das relações fundiárias. Primeiro, os preços de estocagem de grãos foramaumentados. A seguir, em um processo que se estendeu por todo o país após o êxito dosexperimentos realizados em Anhui e Sichuan, as comunas do povo foram desativadas de modoordenado e o usufruto das terras criteriosamente dividido entre as famílias individuais que as

formavam, as quais poderiam dispor de suas propriedades para produzir o que quisessem,contanto que as cotas requeridas pelo Estado fossem cumpridas. O "sistema de responsabilidadepor unidade familiar" significou uma segunda reforma agrária, tão igualitária quanto a primeira,mas muito mais favorável à produção dos camponeses. Reagindo aos novos incentivos, aprodutividade aumentou rapidamente: os insumos de mão-de-obra diminuíram e as safrasaumentaram; a produção agrícola aumentou em um terço. Com a redução das horas de trabalhodedicadas à lavoura, a indústria rural- têxteis, tijolos e similares - prosperou rapidamente. Oresultado foi um aumento de 30% para 44% darenda dos camponeses na renda nacional em um intervalo de poucos anos, 1978-1984.

No setor industrial, o sistema de alocação centralizado, baseado no modelo russo, nãosofreu nenhum ajuste radical. Ao contrário, as empresas estatais foram gradualmenteautorizadas a cobrar preços de mercado para a produção que excedesse as cotas exigidas pelos

planos governamentais, vendidas a preços fixos. Os gerentes receberam incentivos parecidosaos dos agricultores para produzir com rentabilidade por fora do sistema de cotas oficial, sem quefosse preciso desmantelá-Ia. Quando esse sistema de preços dual foi suficientemente testado, oescopo dos planos foi congelado, permitindo que outros empreendimentos industriais sedesenvolvessem à sua margem. Na prática, o Estado passou a arrendar empresas aos gerentesem bases contratuais, assim como cedera terras aos camponeses mediante contratos dearrendamento de 30 anos, conservando-as, emúltima instância, sob sua propriedade.

Durante 15 anos ou mais, no marco desses arranjos, o setor mais dinâmico da economia foio das "empresas de comunas e aldeias" ou TVES13, com seu peculiar estatutohíbrido. Firmas a meio-caminho entre a propriedade estatal, coletiva e privada, elas sebeneficiavam de baixos impostos e crédito fácil dos governos locais, muitas vezes acionistas

delas, proliferando com espantosa rapidez e competitividade nos ramos mais simples daindústria. A produção da indústria rural cresceu a uma taxa anual superior a 20%; ospostos de trabalho nas TVES aumentaram mais de quatro vezes, passando de 28 para 135milhões; sua parcela no PIB aumentou de 6% para 26%, entre o lançamento das reformas emeados da década de 199014. Altamente lucrativo, o fenômeno das TVES foi ignorado pelosreforma dores russos de todos os matizes, à medida que a  perestroika era implementada. De

13 Em inglês, “Township and Village Enterprises”, ou TVE [N.do T.] 

14 Naughton, The Chinese Economy: Transitions and Growth, Cambridge, 2007, p. 274-276.

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todos os contrastes entre as transformações nas duas economias, o desempenho das TVESconstitui a antítese mais flagrante do mergulho desestabilizador da economia soviética nadesindustrialização.

Naturalmente, o crescimento espetacular das TVES estava condicionado à oferta ilimitadade mão-de-obra barata, inexistente na URSS. Com elas, pela primeira vez, a RPC tirou máximoproveito de sua principal dotação, em função da qual seu modelo anterior de industrialização em

moldes soviéticos - concentrado em investimentos com elevado coeficiente de capital em indústriapesada -, revelara-se um desajuste, embora necessário à época. Alterando esse padrão medianteinvestimentos intensivos de mão-de-obra em indústria leve, as TVES ganharam uma enormevantagem comparativa: no final da década de 1980, a relação mão-de-obra/capital fixo das TVESera nove vezes maior que a das empresas estatais. Contudo, estas últimas também forambeneficiárias do crescimento das TVES, cujos lucros engordaram a poupança dos agricultores,sendo então canalizados através dos bancos estatais para ulteriores investimentos nas grandesempresas nacionalizadas, reequipando-as e modernizando-as.

Os elevados índices de poupança rural, por sua vez, foram outra característica dodesenvolvimento chinês arraigada no legado paradoxal da própria Revolução. Pois, o que osdeterminou foi uma combinação entre a tradicional limitação dos benefícios integrais de bem-estarsocial aos trabalhadores urbanos, o desmantelamento das comunas que tinham fornecido

serviços sociais no campo, mais restritos, mas ainda assim efetivos, e os efeitos dapolítica do filho único, destinada a conter o crescimento populacional. Sem proteção do Estadocontra a vicissitude, nem garantias seguras de provimento por parte da geração seguinte, asfamílias camponesas não tinham muitas opções, senão investir uma parcela substancial de seusrendimentos em poupança. O Estado se beneficiou duplamente com isso. Ao contrário de suacontraparte soviética, ele não precisou cobrir os gastos com o bem -estarsocial da maioria de sua população e obteve fácil acesso aos fundos necessários para financiarseu programa de modernização.

Havia capitais disponíveis também de outra fonte. Já em 1979-1980, Zonas EconômicasEspeciais tinham sido implantadas nas regiões costeiras para atrair investimentos da chamada"diáspora chinesa", visando os afluentes expatriados de Hong Kong, de Taiwan e do Sudeste

 Asiático. Após um início moroso, a política de Portas Abertas, voltada para esses empresários

estrangeiros, tornou-se um sucesso. Atraídas pelas regalias, pela ausência de tarifas deimportação e pela mão-de-obra barata da China Continental, as firmas da "diáspora" chegaramcom força total, trazendo tecnologias inacessíveis às ZEES, sobretudo em processamento deexportações. Assim, a China conseguiu pegar carona na experiência e no patrimônio acumuladosdo capitalismo da diáspora para fazer sua entrada no mercado mundial como centromanufatureiro de baixo custo para linhas de montagem, especializando-se com o tempo emeletrônica e eletrodomésticos de cozinha. Essa também foi uma vantagem regional que aeconomia soviética, embora eventualmente contasse com outras opções, não tinha chance deigualar.

Por último, mas não menos importante, as reformas chinesas foram decisivamentebeneficiadas pela descentralização dos controles sobre a economia, um dos legados maisprofícuos do maoísmo. Isso significou não apenas que o império do planejamento a ser

remodelado era muito menor, sem uma parafernália desmesurada de cotas e diretrizes, mastambém que o país já contava com uma rede de centros autônomos de atividade econômica emsuas províncias. Quando estas foram liberadas ainda mais da intervenção de Beijing, seusgovernos entraram com força total, oferecendo todo tipo de incentivos para aumentar osinvestimentos e acelerar o crescimento em suas jurisdições. A certa altura, isso acabouprovocando uma série de distorções e irracionalidades: duplicação de indústrias, gigantismo naconsecução de obras públicas, expansão do protecionismo informal, para não falar doenfraquecimento fiscal do governo central, visto que as autoridades locais passaram a competirentre si por melhores resultados. Contudo, apesar de todas as suas aberrações, a concorrênciainterprovincial na China, tal como a rivalidade entre as cidades italianas no passado, foi e continua

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a ser uma fonte de vitalidade econômica. A Rússia é hoje nominalmente uma federação; noentanto, suas vastas e uniformes planícies nunca favoreceram a criação de fortes identidadesregionais e seu governo continua centralizado como nunca. O contraste com a China é notável.Em matéria não de direito constitucional, mas de realidade comercial, a República Popular de hojeé um exemplo tão acabado de federalismo dinâmico quanto os Estados Unidos.

III. PONTOS DE RUPTURAQuando a Era da Reforma completou uma década, no final dos anos 1980, a economiachinesa tinha se transformado substancialmente. Naturalmente, a escala e a rapidez dessasmudanças não deixaram de afetar a sociedade e a cultura. No campo, o crescimento da rendaestacionou após 1984, mas as condições de vida do campesinato tinham melhorado tãosensivelmente, em termos relativos, que eles permaneceram uma classe satisfeita. Aintelligentsia, historicamente o outro fator-chave da ordem social, também havia sido bastantefavorecida pela política de reformas. Contudo, sua atitude diante do regime era mais ambígua. Asuniversidades reabriram, os institutos de pesquisa se expandiram, novas oportunidades deemprego surgiram. A juventude escarmentada pela temporada no campo foi reintegrada à vidaurbana e as vítimas das repressões do passado, libertadas. A liberdade de expressão era muitomaior do que no período de Mao, o acesso às ideias e à literatura estrangeiras era de modo geral

franqueado, motivando uma verdadeira "febre de alta cultura". Numa atmosfera estimulante decrescente emancipação, debatia-se o futuro da nação, com esmagador consenso em favor daampliação das reformas.

Esse último ponto, aliás, não constituía propriamente uma diferença com o governo, cujameta oficial também era aprofundar o processo de reformas. Para muitos intelectuais, ambostrabalhavam no mesmo sentido, trocando consultas e orientações, especialmente com ZhaoZiyang e seus assessores. Mas, havia também certa tensão no ar, que foi aumentando à medidaque a década avançava. O partido estava imbuído da autoridadeque os sucessos na economia lhe conferiram. Ele gozava de legitimidade também por terresgatado o país da Revolução Cultural. Mas essa liberação não se traduziu pela sugestão denenhuma ordem política alternativa. A esse respeito, os anciã os, que tinham sentido na própriapele os efeitos da turbulência, não fizeram nenhum aceno, mas tão só advertências quanto à

necessidade de prevenir qualquer recaída no caos. Já em 1978, quando começou a Era dasReformas, as vozes que reivindicavam democracia haviam sido rapidamente silenciadas comouma ameaça para a estabilidade. Na época, elas ainda eram relativamente isoladas.

Mas, à medida que as reformas econômicas avançavam, com ênfase crescente naintrodução de relações de mercado, não houve nenhum esforço consequente de analisar as suasimplicações - nenhuma explicação oficial para o sucesso das ZEES, por exemplo. O resultado foiuma espécie de limbo ideológico, no qual as ideias liberais se disseminaram de modo um tantonatural. Ora, se os princípios da economia de livre empresa estavam na ordem do dia, por que osprincípios jurídicos de liberdade política - alguns, consagrados nominalmente na própriaconstituição da RPC - não poderiam acompanhá-los, tal como sustentavam as doutrinasconceituadas no Ocidente? Historicamente, apesar da projeção alcança da por Hu Shi, seurepresentante mais destacado na geração do Movimento Quatro de Maio, o liberalismo havia sido

uma tendência inexpressiva entre a intelligentsia chinesa. Mas, na década de 1980, sem terproduzido nenhum teórico comparável, sem contornos suficientemente nítidos, ele se tornou, norastro da Revolução Cultural, algo como uma postura dominante entre os intelectuais. Bastantemoderada, na maioria, embora com o tempo viesse a adquirir acentos mais radicais, maispróximos do padrão russo. Por volta de 1988, a popular série de televisão River Elegy propunhaum elogio cifrado do Ocidente, emcontraste com as austeras tradições chinesas, do qual qualquer zapadnik teria se orgulhado,embora incluísse até mesmo um retrato lisonjeiro de Zhao Ziyang, evocando o futuro grandiosoprometido ao país, e fosse amplamente criticada pelos estudiosos como reconstituição histórica.

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Nessa altura, o clima entre os estudantes variava. Entre a geração dos que não haviam sidodiretamente afetados pela Revolução Cultural, a animação era grande e as ideias, menos rígidas.Poucos não tinham sido tocados pelos ideais originais da Libertação; alguns eram influenciadospor professores liberais, outros por mais ortodoxos; a maioria, sintonizada com a cultura e asnovidades do estrangeiro - canções de Taiwan, música dos Estados Unidos; greves na Polônia,eleições na Rússia; todos embalados pelo élan de um país em movimento, excitados pela

abertura de seus horizontes e frustrados por seu prolongado imobilismo. Cientes do papelhistórico que haviam desempenhado na conscientização da nação em 1919 e novamente em1935, eles formavam a camada da população mais madura para a ação coletiva. Em 1985, elesmostraram sua característica fibra nacionalista em protestos contra o Japão. Então, no inverno de1986-1987, organizaram demonstrações pela democracia em Hefei e Beijing. Quando HuYaobang, o secretário-geral do partido, se recusou a dissolvê-Ias, os anciãos o demitiram. Omovimento foi contido, mas os sentimentos que o animavam não desapareceram.

No ano seguinte, a própria reforma da economia - até então, o para-choque contra asreivindicações de reforma política - defrontou -se com sua primeira crise séria, quando os preçosdos produtos básicos começaram a subir e os salários dos trabalhadores urbanos estagnaram.Quando Zhao e Deng deram a entender que a liberação geral dos preços seria iminente, seguiu-se a estocagem de produtos básicos provocada pelo pânico e a inflação disparou durante o verão,

alcançando uma variação média anual de 50%. Mas, napercepção do povo, esse não foi o único efeito nocivo do sistema de preços dual. A corrupção,desconhecida durante o período de Mao, aumentava, com funcionários se aproveitando de seuscargos para explorar a diferença entre os preços tabelados e os preços de mercado dos mesmosprodutos, e era abominada. A combinação entre dificuldades materiais inesperadas e revoltadiante da injustiça social era uma mistura explosiva, gerando uma atmosfera de tensão nascidades.

Em Beijing, os estudantes já estavam preparando demonstrações para coincidir com oaniversário dos 70 anos do Movimento Quatro de Maio, quando, em abril de 1989, a morte de HuYaobang - caído em desgraça por tê-los apoiado - proporcionou um catalisador mais imediatopara a manifestação de seus sentimentos sobre o fechamento político. Os estudantes marcharamem passeata até a praça da Paz Celestial para homenagear Hu, pegando o governo

desprevenido. zhao tinha desempenhado um papel na queda de Hu, a quem substituiu comosecretário-geral do PCC, Confrontado com o tumulto, porém, ele agora contemporizou e o ComitêPermanente rachou, deixando as autoridades sem ação. O movimento estudantil, que mostrou umexcelente nível de organização, foi capaz de mobilizar todas as universidades da cidade e manterpressão contínua sobre o governo. Noinício de maio, as passeatas deram lugar à ocupação da praça pelos estudantes, que exigiammudanças democráticas e eram apoiados por grandes manifestações da população de Beijing,exasperada pelo agravamento de sua situação econômica e solidária com as principaisreivindicações políticas dos estudantes. Protestos semelhantes irromperam em todo o país, ondehouvesse universidades para deflagrá-los. Milhões de pessoas saíram às ruas,num movimento social sem precedentes na história da República Popular.

 As agitações de 1989 na China, por sua escala e intensidade, superaram todas as outras

registradas na Europa do Leste, para não falar na Rússia, naquele ano ou posteriormente. Aenergia rebelde e o idealismo dos estudantes do país, bem como a solidariedade ativa dapopulação urbana, não tiveram paralelo em outros lugares: um testemunho, a seu modo, davitalidade política de uma sociedade ainda próxima de suas origens revolucionárias. Na China,porém, dois tipos de energia diferentes colidiram. Quando estourou a crise, a liderança pós-revolucionária responsável pelo funcionamento diário do Estado e do partido titubeou e rachou.Mas os anciãos, veteranos de décadas de luta armada para conquistar o poder, não iriam perdê-lopor indecisão. Eles permaneceram os combatentes que sempre haviam sido, não hesitando emcontragolpear aquilo que viam como uma ameaça ao poder

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do partido, tão logo a força necessária para tanto foi mobilizada. Em junho, o ELP recebeu ordensde esvaziar a praça e o movimento foi esmagado em uma noite de violência.

2 A repressão custou caro ao PCC. Ele perdeu mais legitimidade com o Quatro de Junho do

que com a Revolução Cultural, que em certo momento não apenas desfrutou de

apoio efetivo, mas também deixou uma reserva de líderes respeitáveis para assumir o governo,uma vez superada. Em 1989, nenhum setor da nação apoiou a repressão enenhuma oposição sobreviveu no partido - Zhao, exonerado por não ter votado em favor da leimarcial, morreria no anonimato 16 anos mais tarde, ainda sob prisão domiciliar. Por outro lado, oregime ainda conservava o trunfo do crescimento econômico. Gastas as antigas credenciaisideológicas, daí em diante seria isso que bancaria todo o resto. Uma dose de austeridade paracontrolar a inflação vigorou até 1991. O que viria em seguida?

Nesse ponto, Deng se distanciou de seus colegas e de seu próprio passado. Em maio de1989, ele tinha declarado: "Naturalmente, há os que pensam que 'reforma' significaum movimento rumo ao liberalismo ou capitalismo. O capitalismo é a quintessência da reformapara eles, mas não para nós. O que nós entendemos por reforma é algo diverso, ainda sujeito adiscussão15". Em janeiro de 1992, Deng percorreu o sul da China e em Shenzhen, a maior das

Zonas Econômicas Especiais, declarou que o principal perigo quea China enfrentava era a oposição, não da direita, mas da esquerda, contra o aprofundamentodas reformas, cuja inovação exemplar era a bolsa de valores local. Embora ainda sustentasseque a China precisava mais do socialismo que do capitalismo, ele agora se recusava a "falar decapitalismo com 'c' maiúsculo e socialismo com 's' maiúsculo" como algo fútil, explicando que,como as desigualdades são funcionais para o crescimento, a acumulação individual de riquezasnão era algo condenável, mas louvável: "Ficar rico éuma glória". Enterradas as esperanças de liberdade coletiva, a compensação estaria naprosperidade individual. Tudo o que importava era o crescimento, sem especificaçõesanacrônicas, como rezava o lema oficial buzinado aos ouvidos céticos: "O desenvolvimento é oargumento irrefutável".

O desenvolvimento veio, de fato, e a um ritmo espetacular. O crescimento da China nos

anos 1990 superou inclusive o dos 1980, conforme a liberalização da economia se intensificava.No final da década, a paisagem industrial tinha se transformado graças a uma reestruturaçãomaciça das empresas estatais. Ainda em 1996, o setor estatal era responsável pelo grosso dospostos de trabalho nas cidades. Mas, a partir de 1997, os funcionários provinciais foramautorizados a dispor da maioria delas como bem entendessem, fechando, remodelando ouprivatizando-as. No decorrer do processo, a cada ano cerca de 7 milhões de trabalhadoresperderam seus empregos; finalmente, por volta de 2004, os postos de trabalho nas empresasprivadas eram quase o dobro dos do setor público. No mesmoperíodo, as Empresas de Comunas e Aldeias (TVES) foram privatizadas numa escala aindamaior, ficando apenas 10% delas sob alguma forma de propriedade coletiva. O mesmoaconteceu com 80% dos imóveis residenciais urbanos. Mas, "conservando o grande edescartando o pequeno", o Estado não abriu mão daquilo que considerava o pináculo estratégico

da economia: energia, metalurgia, armas e telecomunicações. Responsáveis por um terço dototal de vendas de produtos manufaturados e apresentando altas margensde lucro, suas megaempresas nesses setores-chave correspondem a cerca de três quartos dopatrimônio global das empresas estatais16.

Estruturalmente, se o despojamento gradual foi uma das duas mudanças fundamentais dosegundo período de reformas PÓS-1989, a outra foi a maximização do comércio

15 The Tiananmen Papers, p. 325.

16 Naughton, The Chinese Economy, pp. 186, 106, 286, 303-304.

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exterior. A rapidez e o grau de abertura nesse setor tiveram poucos precedentes. No início donovo século, as tarifas industriais médias eram de menos de 10%, cerca de um terço das daÍndia; as tarifas agrícolas não ultrapassavam 15%. Fomentado por investimentos externos - emque capitais não mais da "diáspora", mas norte-americanos, japoneses e europeus, emboraminoritários, desempenhavam um importante papel -, as exportações de manufaturadosaumentaram vertiginosamente - sobretudo, de tecnologia avançada, embora estes últimos

envolvessem basicamente montagem. De fato, no espaço de uma geração, a China tornou-se anova fábrica do mundo: a fatia correspondente a comércio exterior de manufaturados no seu PIBé de dois terços, cifra sem precedentes para um grande país, duas a três vezes superior à dosEstados Unidos ou do Japão. Mas, tal como ocorreu com a indústria doméstica, o Estadomanteve até agora uma alavancagem decisiva no terreno do comércio exterior, controlando ataxa cambial, a conta de ativo fixo e o sistema bancário.

O sucesso material desse modelo de desenvolvimento transformou a RPC na maravilha domundo contemporâneo. Com uma taxa de investimento superior a 40%, em 15 anos, de 1989 a2004, seu PIB quadruplicou. Nas cidades, a renda das unidades familiares aumentou a uma taxaanual de 7,7%; no campo, em cerca de 5%17. Do início da Era da Reforma até2006, o padrão de vida médio dos chineses aumentou oito vezes, expresso em dólar. Numa únicadécada, a população urbana registrou um salto de 200 milhões18. Ela corresponde agora a dois

quintos da população do país e alimenta o maior mercado automotivo do mundo. Ultrapassandode longe até as reservas japonesas, os títulos em carteira do comércio exterior somam mais de1,3 trilhões, superando o PNB do Canadá. A China chegou, e com força total.

IV. O NOVUM Mas seria "chegada" o termo correto? Não seria "retorno" talvez o mais apropriado? Afinal, a

China havia sido por muitos séculos a civilização mais rica e mais avançada do mundo: comcerteza, deve existir alguma relação entre esse passado grandioso e as formidáveis realizaçõesdo presente. Essas questões nos levam para um terreno mais abrangente e mais obscuro do queo campo relativamente delimitado das comparações entre duas revoluções modernas. Aqui,poderíamos caracterizar em linhas gerais três correntesde pensamento antagônicas, embora não tenha havido até agora nenhum confronto sistemático

entre elas. A primeira, atualmente mais em voga entre os historiadores, atribui oacelerado crescimento da RPC essencialmente aos legados milenares de seu passado imperial -dinamismo comercial baseado na agricultura intensiva; profunda divisão do trabalho; redesurbanas desenvolvidas e expansão do comércio interno; crescimento populacional recorde; uma"revolução industriosa". Sob esse ponto de vista, a economia chinesa, havia muito a maior e maissofisticada do mundo, exibindo um clássico padrão smithiano de crescimento, era tão ou maisplenamente desenvolvida quanto a da Europa Ocidental, pelo menos, até a Guerra do Ópio.Desviada de seu curso por mais de um século pela penetração estrangeira e pela desordeminterna, ela agora retornava à sua posição natural no mundo.

Para uma segunda corrente, predominante entre os economistas, o passado imperialoferece poucas pistas para compreender o presente moderno, quanto mais não seja porque -como enfatizou Smith - a ausência de intercâmbio comercial com o estrangeiro privou a economia

17 As cifras globais dissimulam uma brusca guinada tanto no modelo de crescimento quanto

na distribuição de renda após 1989, favorecendo as cidades em detrimento do campo, e

as empresas estatais e estrangeiras em detrimento das empresas privadas. Para uma

análise dessa mudança, ver Yasheng Huang, Capitalism with Chinese Characteristics:

Entrepreneurship and the State, Nova York, 2008, que argumenta ainda que o fator total

de produtividade vem declinando na economia chinesa como um todo: pp. 228-290.

18 Fred Bergsten, Bates Gill, Nicholas Lardy e Derek Mitchel, China: The Balance Sheet,

Nova York, 2006, pp. 5 e 31.

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tradicional de estímulos competitivos, e a proteção deficiente dos direitos de propriedade inibiu aatividade empresarial, restringindo o desenvolvimento chinês a limitespróximos do padrão malthusiano. Segundo essa interpretação, o acelerado crescimento atual éresultado da integração tardia da China à economia capitalista mundial, de cuja formação elaesteve historicamente ausente. Com a abertura de seus mercados aos investimentos externos e ogradual fortalecimento dos direitos de propriedade, os fatores de produção foram finalmente

liberados para um novo dinamismo. A combinação de oferta abundante demão-de-obra barata com fartos capitais e tecnologias estrangeiros construiu uma máquina deexportação sem precedentes no passado da China.

Para uma terceira corrente, encontrada (não apenas) entre os sociólogos, a chave para aascensão econômica da China estaria, pelo contrário, na Revolução Chinesa. Segundo essaversão, foram as realizações do período de Mao que lançaram os fundamentos para as façanhasda Era da Reforma. Esse legado traz no seu bojo a criação, pela primeira vez na história modernada China, de um Estado soberano forte, que pôs fim à sujeição semicolonial do país; a formaçãode uma força de trabalho treinada e disciplinada, com altos índices de alfabetização e deexpectativa de vida, numa sociedade sob outros aspectos ainda retardatária; e o estabelecimentode poderosos mecanismos de controle da economia - planejamento, setor público, contas do paíscom o exterior - dentro de um marco

institucional relativamente descentralizado, que deixava uma margem de autonomia para asprovíncias. O desempenho do período das Portas Abertas só teria sido possível com base nessesfatores de transformação19. Obviamente, nenhuma dessas interpretações é absoluta. Encontram-se tanto misturas, quanto casos puros. Em geral, porém, elas não tentam avaliar o peso relativodas variáveis em jogo. Em termos analíticos, a hierarquia dos fatores determinantes buscada nãose cristalizará de uma hora para outra. Nesse ponto, é suficiente indicar um termo de comparaçãopertinente para as hipóteses conflitantes, o qual pode ser formulado da seguinte maneira. Emque, e como, o acelerado crescimento da RPC se diferenciou ou se assemelhou ao do Japão,Coreia do Sul ou Taiwan? Se a experiência chinesa foi um tanto parecida com a deles, então, ashipóteses, sejam de capitalismo pré-moderno ou de capitalismo tardio, ganham impulso; se diferiusubstancialmente deles, a hipótese revolucionária parecerá  prima fade mais plausível. O quesugerem as evidências?

Uma olhadela nas estatísticas revela um paradoxo. Apesar de sua impressionante rapidez,o crescimento da RPC não foi tão mais veloz que o de seus vizinhos do ExtremoOriente em etapas comparáveis de seu desenvolvimento, embora fosse mantido por uma décadaa mais. As suas respectivas bases econômicas tampouco diferiam significativamente: em todos oscasos, o modelo de desenvolvimento era essencialmente voltado para a exportação. Nesses doisaspectos, as semelhanças entre os membros da família sãofortes. Noutros cinco, porém, o contraste é marcante. A partir da década de 1990, a RPC passoua depender muito mais das exportações do que o Japão, a Coreia do Sul ou Taiwan; a parcelacorrespondente a consumo no PIB chinês tem sido muito inferior; a dependência do capitalestrangeiro tem sido muitíssimo maior; a disparidade de renda - e de investimentos - entre o

19 Para os argumentos da primeira corrente, ver Kenneth Pomeranz, The Great Divergence:

Europe, China anad the Making of the Modern World Economy, Princeton, 2000, e Sugihara

Kaoru, “The East Asian Path of Economic Development: a Long-Term Perspective”, in

Giovanni Arrighi, Hamashita Takeshi e Mark Selden (ed.), The Resurgence of East Asia:

500, 150 and 50 year Perspectives, Londres, 2003, pp. 78-117; para uma ilustração da

segunda, ver Jim Rowher, “When China Wakes”, Relatório Especial de The Economist,

28.11.1992; para exemplos da Terceira, ver Chris Bramall, Sources of Chinese Economic

Growth 1978-1996, Oxford, 2000, e, especialmente, Lin Chun, The Transformation of

Chinese Socialism, Durham, 2006.

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campo e a cidade, muito mais acentuada20,» Por fim, e não menos importante, a escala e o papeldo setor estatal na economia foram e continuam a ser, em termos estruturais, muito maiores.Essas características que distinguem o crescimento chinês no contexto do Extremo Oriente estãointerrelacionadas e apresentam uma explicação simples. No Japão, na Coreia e em Taiwan, osEstados emergentes no pós-guerra foram uma criação da ocupação ou da proteção norte-americanas, formando uma das linhas de frente da Guerra Fria. Estrategicamente, eles continuam

até hoje sob a tutela de Washington - incrustados de bases militares ou cercados por belonavesnorte-americanas-, sem contar com verdadeira autonomia diplomática ou militar. Carentes desoberania política e, no entanto, necessitadosde autonomia no plano interno, seus governantes - o partido Liberal Democrata, Park Chung Hee,o Guomindang - buscaram uma compensação implementando políticas de desenvolvimentoeconômico autossustentado, mantendo o capital estrangeiro à distância, por um lado, epromovendo as corporações nacionais, por outro. De modo análogo, temendo a radicalização nocampo, confrontados com o espectro da Revolução Chinesa, eles implementaram políticas dereforma agrária - nisso, os EUA os apoiaram - e cuidaram para que o campo nunca ficasse muitoatrás das cidades, à medida que o crescimento acelerava.

 A configuração contrária prevaleceu na RPC. Nela, o Estado pós-revolucionário eratotalmente soberano na arena internacional- a ponto de arrancar um cessar-fogo dos Estados

Unidos na Coreia - e bastante forte no plano interno desde o início. Por isso mesmo, quandochegou a Era da Reforma, a RPC foi capaz de assimilar um influxo maciço de capitalexterno, sem receio de que este pudesse lhe trazer descrédito ou subversão. Como Estadototalmente independente, em pleno comando de seu território, ele podia confiar tanto nasua capacidade de controlar fluxos de capital estrangeiro por meio do poder político - um poucocomo Lênin pretendera nos tempos da Nova Política Econômica (NEP) -, quanto nasua capacidade de dominar ou manipular o capital nacional, graças a seu controle contínuo sobreas instâncias estratégicas da economia - financeiras e industriais. Além do mais, oEstado podia conter o consumo no campo, impelindo camponeses destituídos para as cidadescomo uma força de trabalho migrante, algo inviável para os governos em Tóquio,

Seul ou Taipé, cujos agricultores precisavam ser bem tratados como condiçãode sobrevivência dos regimes locais. Se o PCC foi capaz de conseguir isso sem

perder o controle sobre a urbanização - a proliferação de favelas planetárias no sul e no sudesteda Ásia -, foi graças ao sistema de hukou, que segregava as cidades do campo, estabelecidodurante o Grande Salto Adiante. Durante o período de Mao, os camponeses também tinham sidovítimas de acumulação primitiva em benefício das cidades. Uma vez que a saúde pública e aeducação nas aldeias foram desmanteladas após Mao, e que na gestão de liang Zeming osinvestimentos foram redirecionados para longe do campo, as disparidades de renda entre aspopulações urbana e rural aumentaram aos saltos. Os pressupostos históricos tanto dos altosíndices de inversões externas diretas, quantodos baixos índices de investimentos em infraestrutura rural na RPC são os mesmos - um regimeoriginado de uma revolução, num país com população mais de sete vezes maior que a do Japão,Coreia do Sul e Taiwan juntos, capaz de jogar duro seja com os camponeses, seja com osestrangeiros. O preço de ambas as coisas ainda não foi pago. Mas os custos diretos ou indiretos

de uma e outra têm aumentado visivelmente - de modo ainda desarticulado, porém espalhandoinquietação nas aldeias; de modo ainda administrável, masgerando crescente dependência do Tesouro dos EUA.

2O partido que comandou essa transformação do país foi transformado por

ela. Os Imortais já passaram. Mas não as vantagens de ser o segundo, e não o primeiro, a mover

20 Ver o surpreendente estudo, com os respectivos gráficos, de Hung Ho-fung, “America´s

Head Servant?”, NLR 60, nov-dez. 2009.

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as pedras. Tirando as lições necessárias da sorte final reservada ao brezhnevismo, o rccinstitucionalizou a renovação de seus quadros dirigentes, impondo limites para o exercício doscargos e regulando a transferência de poder de uma geração para outra. Sem quaisquerantecedentes revolucionários, os atuais e os próximos detentores do poder possuem umaeducação mais formal e, como nunca antes, dispõem - tal como os imperadores dispunham dosletrados - de recursos técnicos e intelectuais mais amplos e diversificados, de painéis de

especialistas e consultas informais com peritos ou partes interessadas. O crescimento econômicoe o sucesso diplomático restauraram a reputação política: o partido atualmente conta com umgrau de legitimidade popular como não contava desde a década de 1950. O mandato que adquiriué a um só tempo poderoso e frágil. O poder: prosperidade no plano interno e dignidade no planoexterno são apelos a que poucos resistem. A fragilidade: desenvolvimento econômico sem justiçasocial, afirmação no plano doméstico e percalços na arena internacional, são aspectos quedificilmente se enquadram nos ideais da Revolução que o partido reivindica como sua. Onacionalismo de consumo é um constructo ideológico raso, no qual ele não pode se fiarinteiramente. Despolitizado como o discurso dominante do PCC se tornou, expurgá-lo de todosocialismo seria contraproducente. A reivindicação transmitida de uma outra legitimidade, aindainscrita no seu nome, continua a ser uma reserva necessária. Pois os sentimentos revolucionáriosdiante da injustiça e as demandas por equidade não desapareceram das mentes dos cidadãos.

Nem tampouco os riscos de ignorá-los.Explicação é uma coisa, classificação outra e avaliação, uma terceira. Em termostaxonômicos, a RPC do século 21 é um novum histórico-mundial: a combinação daquilo que,segundo qualquer critério convencional, é no momento uma economia predominantementecapitalista, com aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda é incontestavelmenteum Estado comunista - ambos, em seus respectivos gêneros, os mais dinâmicos jamais vistos 21.Politicamente, os efeitos dessa contradição deixamsuas marcas por todo o espectro da sociedade, onde eles se fundem ou se mesclam. Nuncatantos saíram tão rapidamente da pobreza absoluta. Nunca indústrias modernas e infra-estruturasultramodernas foram implantadas em escala tão vasta, em tão pouco tempo, nem nunca umaclasse média florescente emergiu tão rapidamente junto com elas. Nunca a hierarquia daspotências foi alterada tão dramaticamente, alimentando tão espontaneamente

o orgulho popular. Nem, nos mesmos anos, a desigualdade atingiu tão rapidamente tetos tãomirabolantes, a partir de um piso tão baixo. Nem a corrupção se alastrou tanto, ali onde aprobidade era algo subentendido. Nem os operários, ao menos em teoria, os senhores do Estadoaté ontem, foram tratados de modo tão abusivo e impiedoso - extinção de postos de trabalho, nãopagamento de salários, afrontas escarnecidas, protestos sufocados22. Nem os camponeses, aespinha dorsal da revolução, foram tão esbulhados de suasterras e meios de subsistência, alijados de uma área equivalente à das regiões montanhosas daEscócia por empreendedores imobiliários e burocratas. Usuários da internet emnúmero superior ao de qualquer outro país, nenhum terror, ampla liberdade em suas vidasprivadas; um aparato de vigilância moderno e eficiente, como nunca se viu. Para asminorias, ação afirmativa e repressão política e cultural, de mãos dadas; para os ricos, todos osluxos e privilégios que a exploração pode comprar; para os fracos e desenraizados,

21  Para a mais lúcida análise recente da estrutura da economia, ver Joel Andreas,

“Changing Colours in China”, NLR 54, nov-dez. 2008, pp. 123-152; sobre o continuísmo

no partido, ver David Shambaugh, China´s Communist Party: Atrophy and Adaptation,

Bekerley/Los Angeles, 2008, que destaca a sua capacidade de tirar lições das

consequências do colapso do PCUs.

22 As vicissitudes da velha e da nova classe operária chinesa são o objeto de uma obra-

prima da sociologia: Ching Kwan Lee, Against the Law: Labor Protestes in China´s

Rustblet and Sunblet, Bekerley/Los Angeles, 2007.

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migalhas ou menos que isso; para os dissidentes, a mordaça ou a masmorra. Em meio aoconformismo ideológico formal- nem sempre, de todo irreal- energia social e vitalidade humanaformidáveis. Emancipação e regressão não raro estiveram associadas no passado; mas não demodo tão vertiginoso como na China que Mao ajudou a criar e tentou evitar.

 A apreciação de um processo histórico tão descomunal, ainda no seu estágio inicial, estásujeita à falibilidade. Um tanto complexo para aqueles que o vivem de dentro, abarcá-lo na sua

totalidade com firmeza e clareza de vistas e chegar a uma síntese dialética talvez seja uma tarefasimplesmente impossível para os que o observam de fora. No Ocidente, mania e fobia da Chinatêm alternado com regularidade desde o Século das Luzes, o pêndulo ora oscilando desta paraaquela, em meio a uma nova onda de chinoiserie popular e erudita, não necessariamente maisesclarecida que a original. Na China, suas contrapartes são climas recorrentes de atração peloOcidente e de chauvinismo Han. Um espírito sóbrio de comparação, raramente alcançado, é aúnica salvaguarda contra tais tentações. Isso também vale para o futuro. As projeções detendências futuras, otimistas ou pessimistas, ouvidas de tempos em tempos entre seus cidadãos,são frequentemente tiradas de Taiwan ou Cingapura: provável democratização, à medida que opadrão de vida e as expectativas políticas aumentam, ou paternalismo autoritário in perpetuo, comuma fachada eleitoral. Nem um nem outro são particularmente atraentes. Em Taiwan, ademocracia resultou não tanto de uma gradual mudança de disposição do GMD, quanto de sua

necessidade de um novo tipo de legitimação internacional, uma vez que os Estados Unidosdeixaram de reconhecer a ilha. O regime monopartidário de Cingapura está fundado sobre umsistema de bem-estar social que só é tão previdente porque foi construído em função de umacidade-estado, não de um Estado de proporções imperiais. Beijing não necessita do primeiro, nemé provávelque venha a reproduzir o segundo. Rumo a quais paragens o megajunco da RPC está sedeslocando, é algo que resiste ao cálculo, pelo menos dos astrolábios ora conhecidos.