292

ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ANDRADE, Aurelio l - Avaete
Page 2: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

2

Page 3: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Um

3

Page 4: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Eu jamais imaginaria que uma animensagem pudesse me inquietar tanto. Ainda mais aquela. Para qualquer outro professor universitário, aquilo não teria nenhum significado extraordinário. Mas não para mim. Pelo menos não naquele momento. Passava discretamente pelo rodapé da tela. Capturei-a rapidamente com o olhar. Ela veio para o foco central.

“Participe do IV Colóquio Mundial da GBuNGO

Inovação e sustentabilidade através dos negócios, ciência, artes e religião

17 a 20 Janeiro – El Calafate, Patagônia

Focalize aqui para inscrever-se.”

Fosse apenas pela chamada em si, não me atrairia. Mais um congresso na carreira com direito a turismo? Encontrar gurus grandiloqüentes? Já bastava. Mas, e quanto à chance de encontrar alguém realmente interessante pelos corredores? Bom, aí estava algo que valia a pena. Mas não era só isso. Tinha algo a ver comigo. Um transtorno. Uma angústia. Uma sensação de que algo mais radical precisava ser feito. Comigo? Com o mundo? Sei lá.

Volta e meia você faz um balanço geral. Às vezes faz o balanço e o deixa de lado. Outras vezes muda completamente o rumo. Ou sobe um degrau. Conquistei muita coisa na vida nos últimos anos. Tornei-me um catedrático respeitado. Fui convidado inúmeras vezes para ministrar palestras. Eu próprio me tornei um aspirante a guru. Escritor de livros sobre negócios sustentáveis. Os alunos me adoram. A maioria. Bem, uma parte deles. Oriento dezenas de trabalhos acadêmicos. Sou consultado por empresas e governos. Viajo pelo mundo todo. Amo o que faço. Tenho uma vida equilibrada. Jogo tênis. Isto é sagrado. Dou o máximo para ser respeitado como um bom ecoengenheiro. Você sabe, quando se é professor de ecoengenharia, você é muito cobrado. Os alunos não perdem a oportunidade de se vingar. Imagine se descobrem que você gasta 5,2 megawatts de energia por ano. Ou que descarta 7.200 litros de lixo. É a sua morte.

4

Page 5: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

É, mas aquela mensagem mexia com alguma coisa mais do fundo. É como pressentir que coisas importantes estão por acontecer. Algo maior que tudo isto. Como estar para descobrir uma chave. Uma chave que resolve todos os conflitos. Uma chave que dissolve as ansiedades. Uma chave que mostra o caminho.

É, uma chave ajudaria. Poderia ajudar o mundo. Ajudar a salvar o mundo. É definitivamente do que o mundo precisa: uma chave salvadora. No caminho de desesperança que tudo vai, só algo salvador. Uma chave oracular, divina. Alguém para quem perguntar: “Ó Mestre, abandonemos a tecnologia e vivamos uma vida de simplicidade voluntária ou nos entreguemos com toda energia ao poder tecnológico que temos nas mãos?” “Criemos uma sociedade sistemática e eficiente ou livre e diversa?” “Ofereçamos a outra face à violência ou a atacamos com fúria?”

Perdi-me em pensamentos divagantes sobre os conflitos mais profundos que a civilização vive, até que saí daquele torpor com um tapa na cara. “Mas que besteira!” – pensei. Uma chave mágica? Não era exatamente o que meus clientes e alunos sempre pediam? E o que eu respondia? “Não existe uma solução mágica para seu problema, meu caro. Ele foi gerado em um processo, a solução só ocorrerá através de um processo.” – com aquele ar de sábio. Ok, que não haja uma chave salvadora. Mas algo importante vai acontecer por lá e eu não posso estar fora dessa. Nunca perdi a oportunidade de fazer a coisa certa. Zoom.

2

A escolha de El Calafate não é inadvertida. Óbvio, muita gente aproveita para passear. El Calafate encontra-se na região da Patagônia, às margens do Lago Argentino, este nascido de inúmeras geleiras. O lago é de um turquesa leitoso esplêndido e os tours levam os interessados por um mar de têmpanos, ilhas de gelo que se desprendem de glaciais outrora fenomenais, como o Perito Moreno. O fato é que os glaciais estão mirrados. Por todos os motivos que todos sabem e por muitos outros que ninguém imagina. Bem, uma coisa é falar do assunto, outra é ver aquela coisa magnífica desaparecer. Por isso, aquele era o lugar.

5

Page 6: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Analisei todos os detalhes. O período era de férias, mas havia muitos trabalhos em andamento. Pelo menos três projetos de pesquisa estavam “pegando”. Todos envolviam a academia, algumas empresas patrocinadoras, governos e comunidades locais. Eram projetos de que me orgulhava. Não poderia deixá-los assim. Mas não poderia haver escolha. Contei com a ajuda dos meus assistentes Ângelo e Márjorie. Gosto deles. Crianças com quem vale a pena trabalhar. E que se pode confiar. Bela escolha a minha. Incluindo o fato de terem nomes proparoxítonos.

Tratei dos trâmites burocráticos, atropelei fluxos de sistemas de informação, coletei eu próprio vistos eletrônicos. Avisei quem precisava, convidei quem merecia e toquei para casa fazer as malas. Escolhi um pequeno bando de livros, empacotei meu note, separei roupas multiuso, úteis para os auditórios e para uma eventual caminhada, e pé na estrada. Algumas horas de trem da cidade universitária até o aeroporto mais próximo, outras poucas horas num vôo com destino final a Rio Gallegos, e depois até El Calafate em um aerobus bacana. Os aerobus estavam em experimentação em algumas regiões mais desérticas do globo, por isso tínhamos à disposição um transporte moderno até aquela região turística.

Não foi possível passar irreconhecível pelos trechos. Quanto mais perto do destino, mais gente “da tribo” vai se encontrando. A maioria dos livros ficou intocada. Sem problemas, a volta normalmente é mais longa.

A chegada ao local do evento foi sem surpresas. Avisos virtuais de “Reduza, Reuse, Recicle”, café orgânico, nada de descartáveis, camisetas e mochilas feitas de embalagens diversas reutilizadas. Procedimentos já comuns aos congressos. Não havia mais novidade nestes detalhes.

Aproveitei que era fim de tarde, deixei minhas coisas no quarto e fui dar uma volta na cidade. A gente “da tribo” teve a mesma idéia e encontrei alguns parceiros também pelas ruas e pelos bares. O clima era um pouco nostálgico, pois estive aqui vários anos atrás conhecendo a região. Era diferente porque parte da beleza natural dissipou-se, mas recompensador por ver novamente aquele maravilhoso e potente deserto. A cidade estava maior, não pelo crescimento da população local, mas pelo aumento do número de negócios diversos que europeus rodavam. Eram bem cuidados e

6

Page 7: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

traziam um ar cosmopolita a esta região por eles “descoberta” no Séc. XIX.

Entre alguns “Olá!” e “Como vai você?”, pus-me a imaginar que ainda estaria cedo para começar velhas conversas sobre green business, liderança e inovação nos negócios, liga dos cientistas para o desenvolvimento, etc. Por isso, optei por ficar caminhando pela rua mesmo, até chegar a um local um pouco mais afastado e alto da cidade para contemplar o movimento. Fui e voltei pela Av. Del Libertador e depois peguei o rumo sudeste até os limites do povoado.

Buscar instintivamente lugares altos é algo que aprendi com o passar do tempo. Uma visão mais ampla. Perspectiva. Mirei o pôr do sol, aquele laranja-acinzentado maravilhoso, deixando que a paisagem tomasse posse do que era seu. A grande expiração começava a tomar vulto e uma predisposição de espírito calmante surgia.

Estrelas, uma a uma, reapareciam para a negra travessia. Em número muito, muito superior ao que posso assistir do meu apart. Da minha casa, só sou capaz de observar algumas poucas estrelas. Isto acontece, em parte, porque só vejo o que está à minha volta e mesmo acima pelas frestas de prédios. De resto, a iluminação da cidade compete de maneira implacável com o brilho da noite. Só as mais potentes vencem a batalha.

Aqui ainda não há tal pressão. Vejo pontos brilhantes aos milhares. É algo que ajuda a diminuir a sensação de solidão. Como uma demonstração diária, porém pouco vista, de magnitude, de propósito, de realização, pelo simples fato de estar vivo. Não é à toa que as estrelas nos trazem imagens de orientação, de norte, de direção do movimento do universo. Iluminaram os ensejos de tantos povos e viajantes. Será que serão capazes de iluminar o caminho destes milhares de cegos-surdos-não-mudos aqui reunidos?

3

Fora uma noite tranqüila de sono. De volta ao hotel, um lanche leve, uma cama confortável, um pouco de diversão barata na tela, um chá quente e nada de pesadelos. Apesar da ausência de sobressaltos, notei a calma subitamente transformar-se numa ponta de expectativa sensível na parte superior do estômago. Isto ocorreu

7

Page 8: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

diante do espelho fazendo a barba. Havia alguns anos que não sentia mais esta excitação prévia a um evento. Com o passar dos anos você passa a sentir-se mais seguro de si, autoconfiante, senhor das situações. Desaparecem as incertezas, as expectativas e as surpresas. O coração quase não dispara mais. Mas aquela sensação era esquisita, não porque não a esperava, mas porque já não estava mais acostumado e ela.

Voilà, sigamos em frente. Com o motor em aumento de giro, agi inconscientemente precipitando ações e pensamentos. Tomei um café da manhã sem propriamente degustá-lo e parti rapidamente para as providências iniciais do dia. A primeira coisa a fazer era o check-in do evento. Ao chegar à grande ante-sala de onde se adentrava aos locais dos trabalhos, garotas o atendiam com polidez e distanciamento. Uma vez recebidas as orientações e o crachá, fui orientado a dirigir-me à sala Agassiz, uma das maiores do centro de convenções do hotel. Cinco cafés-colóquio ocorriam simultaneamente nas diferentes salas com nomes de geleiras. Todos contavam com figuras importantes. A idéia era uma manhã de debates sobre grandes temas, com a meta de tratar de propostas objetivas para problemas mundiais.

O café-colóquio que escolhi reunia quatro expoentes e um mediador. Havia uma motivação para estar ali, pois vislumbrei naqueles convidados maior potencial para um debate produtivo. Estávamos diante de um tablado circular mais alto que a platéia, em que figuravam o presidente da maior empresa de multienergia do mundo, um artista rupestre vanguardista, um dos grandes neurocientistas nobelistas da década e o bispo-mor da Igreja Messiânica Mundial.

O mediador dá a deixa para iniciar os debates.

- Caros participantes deste IV Colóquio, sejam muito bem-vindos. Como todos sabem, vivemos enormes conflitos em várias esferas no globo terrestre. Infelizmente, estamos diante de um desafio que urge por uma escolha de caminhos que nos permita prosperar e salvar o planeta ao mesmo tempo. Para catalisar nosso diálogo, gostaria de colocar a seguinte questão aos nossos ilustres convidados: “Há uma maneira de reconciliar humanidade e planeta nos nossos tempos atuais? Há, senhores, tempo de salvar o planeta e a raça humana? Pagaremos pelo que viemos fazendo nos últimos séculos?”

8

Page 9: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Achei a pergunta genérica demais, para dizer o mínimo. Imaginei alguém falando alguma frase de efeito logo a seguir, mas o pessoal ainda não estava aquecido o suficiente. Um que outro movimento de cadeiras dos mais inquietos, mas nenhuma manifestação mais efusiva. Resolvi dar uma vasculhada na audiência para ver se encontrava algum outro inquieto como eu.

Havia cerca de setenta pessoas na sala, dispostas em mesas de cinco a oito “cabeças” cada uma. O que eu podia notar era uma saudável diversidade, porém uma injusta maioria pertencente à ciência e aos negócios. Isto era esperado. Os artistas estão morrendo de fome. Os religiosos missionários estão preocupados demais combatendo demônios que se avizinham. A ciência manda no mundo. E os negócios mandam na ciência.

As manifestações do palco foram dentro do esperado. A primeira fala foi da ciência. Os neurocientistas no mundo inteiro alcançaram uma supremacia tal, que todos os que podem ler jornal ou revistas de pop-science neste mundo sabem das suas teses básicas.

- Há algumas idéias presentes no imaginário popular que dificultam a nossa capacidade de dar respostas aos desafios mais fundamentais com os quais nos defrontamos. A primeira destas idéias nefastas, secularmente defendida pela pub-psychology e apoiada pelo senso comum, defende que o ser humano só é mau porque é ensinado. Ela sugere o ser humano como dotado de uma memória computacional “limpa” pronta para receber os mais variados programas desde cedo e executar estes programas de maneira mais ou menos inconsciente. Softwares como nazismo, democratismo, revolucionarismo, salvacionismo, machismo se desenvolvem em algumas máquinas-mestras e instalam-se nos demais computadores da rede como se fossem vírus. Esta tese denomina-se "RAM", em referência aos chips de memórias de rápida e livre gravação. Já a segunda idéia...

O mediador, jornalista de renome precocemente nervoso, aproveitou um momento de hesitação do neurocientista e interrompeu:

- Você poderia justificar por que essa seria uma “idéia nefasta”, se me permite usar suas próprias palavras?

9

Page 10: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Em seguida, meu caro. Deixe-me primeiro enunciar as três teses básicas mais danosas para a humanidade. Em seguida, as justificarei. A segunda diz respeito a...

Não me contive a fazer uma careta e coçar a cabeça. Comentei com meu vizinho, um biólogo indiano que se remexia na cadeira:

- Que tal? Saímos daqui hoje, ou o evento deveria chamar-se solilóquio?

Meu companheiro de mesa piscou o olho e manteve-se impassível. Uma maneira discreta de dizer: “Fica frio que a coisa vai longe”. Ok, vamos em frente.

A intervenção do nosso amigo estudioso das entranhas cerebrais durou mais de trinta minutos. Quase tão longa quanto discurso de ditador. E ainda havia mais três respeitáveis senhores por manifestar-se! Que batalha para nosso mediador. A platéia, já àquelas alturas, tinha um misto de parcial enfadamento com total aborrecimento.

O segundo foi o presidente da McSquare Energy Corp. Apesar de mostrar-se um sujeito muito mais direto, fui confirmando minha profecia particular de que estas manifestações não levariam a nada. No caso do nosso amigo executivo, o tom motivacional para “uma mudança do mundo através dos negócios” causou na platéia circundante aquele comportamento típico das massas alienadas, um “é isso aí, é isso aí”. Sua frase mais ovacionada foi: “Temos todos os instrumentos necessários para uma mudança fundamental neste planeta. Tudo o que nos falta é o comprometimento com uma visão comum que somente um planejamento estratégico mundial pode nos dar!”.

“Palmas” – pensei. Acho que todo mundo pensou isto. Ninguém o fez por uma questão de moral esquerdo-intelectualóide: não entregar a mente (a liberdade) ao capital estrangeiro. Pelo menos não em público.

Minha inquietude foi dando lugar a uma resignada desesperança. Naquele estado de torpor, passou batido para mim a obra que nosso artista litófilo preparou para o colóquio. Ele a apresentou num tom de suspense, inicialmente coberta por um pano. Assim que ele silenciosamente obteve a atenção da platéia, sacou rapidamente a coberta, provocando um “Oh!” coletivo. Não falou palavra. Deixou que a obra falasse por si. Pensando em retrospectiva,

10

Page 11: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

passei a gostar deste: pelo menos nos poupou vários minutos de linguajar oco.

O grand finale ficou para o bispo messiânico, que surpreendentemente (ou não) ressoou as idéias do executivo empresarial, evitando citar versículos de quaisquer escrituras.

- Bem, já temos um início de consenso: a igreja concorda com os negócios – ressaltei.

- Se você ainda não tinha prestado bem a atenção, pelo menos há uns três séculos! – cochichou o vizinho biólogo.

Uma manhã pouco produtiva até então. Será que todas as minhas expectativas de algo radical acontecendo eram falsas? De onde poderá surgir um raio iluminador de inteligência? Bem, restam os corredores e os bares. Mantenhamos a esperança.

4

Resumo da ópera: o que estava previsto para ser um diálogo diverso e produtivo, virou uma passarela de idéias de alguns poucos “estilistas” afetados. A platéia pouco teve tempo para manifestar-se e, quando o fez, reproduziu o modelo. No fundo, todo mundo também quer ser um “estilista” de renome. Incluindo eu.

Almoçamos num grande e moderníssimo salão em estilo sustentável. Eu estava mais curioso para conhecer as pessoas do que a fim de falar do assunto principal do evento. Amenidades, curiosidades a respeito do trabalho de cada um, avaliações quanto às dificuldades ecológicas e humanas no planeta eram o que rolava. Sobre isso, a pergunta mais comum era: “O que vocês (bantus, mongóis, andinos, etc.) estão fazendo a respeito dos nossos recursos ecológicos planetários?” Um tom meio inquiridor, uma coisa meio culposa a partir da própria pergunta. Quando me perguntaram isso, titubeei numa resposta de contra-ataque que também provocasse alguma dose de culpa compartilhada. Por isso, fiquei irritado comigo mesmo.

Resolvi fugir das conversas disfarçadamente e fui buscar uma sobremesa. Aproveitando que estava de pé, dei uma olhada geral nas mesas para achar algum conhecido e orientar-me sobre a escolha de algum dos eventos da tarde. Encontrei um grupo de caribenhos muito

11

Page 12: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

divertido que também comia sobremesa em pé. Perguntei por que o faziam, e eles saltaram rapidamente a explicar: “las chicas!” E caímos na gargalhada.

Após um cafezinho descontraído, concluímos pelos anúncios que a tarde estaria reservada para atividades mais experienciais que ocorriam pelo mundo afora. Recursos de mídia diversificada estavam à disposição para demonstrar ações locais. Minicolóquios estavam previstos em vários ambientes semicomunicantes. Fui orientado pelos meus amigos divertidos a assistir a simulação interativa de uma cidade modelo ecológica “bolada” pelos highlanders. Agradeci, mas avisei que pretendia fazer uma busca mais ampla. Estava à procura de vínculos entre o resto do mundo e o que fazíamos na universidade. Meus amigos desejaram-me sorte, persistência e bom humor.

Enquanto navegava por aquele desfile de experiências, notei o movimento de algumas pessoas que também se moviam da mesma maneira. Como era um número não desprezível de indivíduos, formava uma espécie de corrente que parecia viver e divertir-se nas frestas e entremeios dos ambientes. Comecei a ficar intrigado com aquele movimento. Quem seriam estes seres que viviam nas frestas, nos canais, à margem dos fluxos?

Comecei a achar que era alguma “gente do bem”. Algo que contrastava com o tom mais paroquial e messiânico dos ambientes oficiais. Uma coisa mais diversa e tolerante e menos arrogante e autoritária. Um livre ir e vir de pessoas e idéias. “Viu esta idéia? Leve, se lhe for útil. Conosco funciona. Se eu tenho certeza? Não, apenas funciona há algum tempo. Se é inovador? Não sei do que você está falando.” É, gostei do papo.

Mas a questão era: quem são os protagonistas “deste papo”? Perscrutando um pouco, achei todo tipo de malucos de tudo quanto era parte do mundo. Espécie de “turistas do saber”, a fim de estar ali, curtir, trocar, aproveitar e experimentar. Na maioria, sem muita preocupação em “ter certeza”, em “fazer o que é certo”, ou em intervalos de confiança estatísticos. Com algumas coisas definitivamente em comum: não pertenciam a nenhuma maioria, não investiam em nenhum marketing massificado, não tinham maior poder econômico ou legal. Pequenos empreendimentos sociais ou ecológicos, grupos culturais, artesãos ou artistas locais, agentes organizadores de movimentos sociais, professores realmente

12

Page 13: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

aprendizes em escolas periféricas, líderes comunitários e vagabundos de vários tipos, no mais positivo sentido da palavra: cidadãos ricos de liberdade, indivíduos com uma propensão vital para mover-se livremente.

Resolvi interagir. Ali estava uma oportunidade de achados que poderiam reacender a chama. Falei com todo tipo de maluco. Aquilo era um tipo de rescaldo distante de beats, hippies, bruxas aquarianas, gerações índigo, mutantes rebeldes e pessoas que percebem seres de outras dimensões. Com duas diferenças básicas: eram reais e estavam sobrevivendo por este mundo afora.

Eu me identificava de alguma forma com estas pessoas. Mas elas desconfiavam que eu não pertencesse à tribo. Que era uma espécie de antropólogo das horas vagas a fim de um estudo meio científico. Tentei várias aproximações, mas elas não passaram de quase-entrevistas. Será que eu era algum tipo de extraterrestre de um planeta maligno querendo dominar o mundo livre? Ou portava algum tipo de vírus contagioso para o qual não existe vacina? Não sei, mas não tomei isto como um ataque ou indiferença ao meu ego. Parecia-me uma rejeição valiosa que me faria ter algum tipo de aprendizagem.

5

No passado, já fui mais hábil em entregar-me à intuição. Antigamente, tomava muito mais decisões à luz de vislumbros de uma inteligência que eu não sabia de onde vinha. Como a mente racional não entende isto, resolve tomar este espaço, mandando um oficial à sua casa não só proibindo que você tome “decisões intempestivas”, mas também impedindo que os relâmpagos iluminem a escuridão. Ela vai se apossando e dominando o terreno, até que você seja seu escravo. Escravo das decisões racionais.

Resolvi contrariar o grande senhor e entreguei-me àquela piscadela intuitiva. Decidi permanecer então na área que me permitiam: observar contemplativamente o fluxo. Passei a olhar rostos, depois a observar comportamentos e a buscar padrões que permitissem distinguir as tribos. O que era mais notável era a heterogeneidade étnica: nativos americanos de vários povos, mediterrâneos de várias tonalidades de peles, afrodescendentes

13

Page 14: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

espalhados pelos cinco continentes, tipos arábicos heterodoxos, eslavos, indianos, saxões branquelos, asiáticos, tipos caribenhos sorridentes, entre tantos outros que não tenho a menor idéia de onde vêm. O mundão velho sem fronteiras. Depois da Emenda Global número 1, que erradicou a necessidade de vistos de entrada entre quaisquer localidades e instituiu uma menos hipócrita liberdade de ir e vir, cruzar fronteiras tornou-se um processo muito mais fácil.

Aproveitei o que deu, de maneira que não notei o passar das horas. Entretido com aquele jogo de adivinha solitário, olhei o relógio e notei que já marcava seis horas da tarde. Aos poucos, o burburinho de gente aumentou, com o término dos eventos simultâneos e o deslocar-se de grupos que discutiam o que acabavam de testemunhar. Juntaram-se os que estavam confinados com os que estavam fluindo durante a tarde. Mas isto não durou, de modo que em cerca de meia hora todos já estavam de volta aos seus quartos para descansar um pouco.

Fui também para o meu quarto, fiz um balanço rápido no diário de congresso, para que meus colegas na base pudessem ter uma idéia do que ocorria, e vesti uma presença de espírito alternativa para a noite. Tomei uma dose de uísque e preparei-me para o verdadeiro colóquio que estaria por começar: o que se faz do cair da noite até as 4 horas da madrugada seguinte.

Optei por ir a um bar onde pudesse estar em contato com um mix de nativos e forasteiros. Saí a pé na direção norte, buscando as imediações da cidade. Na Rua Los Tehuelches encontrei o “Delante del Arroyo”. Pareceu-me aconchegante, com lareira, meia luz, poucas mesas e servindo vinho ótimo. Pedi uma porção de copa para aperitivar e procurei relaxar. Estava só, mas disponível para um papo com os nativos.

Olhei para os lados e observei que ninguém se preocupava com minha presença. Todos comiam, bebiam e conversavam de maneira tranqüila. Uma música regional tocava em volume agradável. Uma única mesa me chamou a atenção: quatro nativos americanos que, pelas feições, só poderiam ser oriundos da faixa andina, pelos adornos de cabeça em prata que as mulheres usavam. Eles me observavam discretamente, principalmente os dois homens. Podia quase jurar que os havia visto hoje à tarde. Teriam eles me notado? Se sim, que curiosidade despertava nestes distintos companheiros?

14

Page 15: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Não tardei a descobrir. Acabei de servir minha terceira taça de vinho ao mesmo tempo em que recebi a visita de um dos homens:

- Importa-se que eu sente à sua mesa por um momento?

- Por favor, fique à vontade. Na verdade, esperava poder conversar sobre algo proveitoso com alguém esta noite. Qual o seu nome?

Estava desejoso por uma boa conversa. Alguém com quem compartilhar as impressões sobre o que acontecia. Minha ansiedade impedia de surpreender-me sobre o porquê daquele sujeito me procurar de maneira tão direta.

- Olá, sou Pedro Ruca. É um prazer conhecê-lo. Creio que não é adequado você saber muitos detalhes a meu respeito neste momento. Talvez você esqueça-os por completo até amanhã pela manhã...

- Não entendi. Por que esqueceria? – indaguei com uma ponta de desconfiança de que se referia à quantidade de vinho na minha garrafa.

- Não me leve a mal. Existem alguns motivos pelos quais não desejo alongar nossa conversa. Não fique na defensiva, não quis ofendê-lo.

“Estou aqui por causa de um amigo seu. Ele também está na cidade e imaginou encontrá-lo aqui. Na verdade, ele tem tentado encontrá-lo há algum tempo, mas parece que você tem afazeres muito importantes que o tornam incapaz de notá-lo. Seu amigo, que é também um grande amigo meu, pediu-me que o avisasse do seguinte: amanhã, ao anoitecer, ele estará esperando por você no Cerro Huyliche.”

Um amigo meu? Há muito tempo à minha procura? Quem será? Alguém em apuros? Precisando ajuda? Não quer se mostrar, pois corre algum perigo de vida? Não quer ser visto comigo? Represento algum perigo para ele? Um adversário intelectual que deseja uma trégua? Enquanto me fazia todas estas perguntas, mal notei o adeus e a retirada educada de Pedro Ruca.

Decidi não insistir. Não via motivo para ser deselegante e me intrometer na mesa em que conversavam. Apesar de notar que eram descendentes de nativos sul-americanos, não conseguia ter a menor

15

Page 16: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

idéia de onde seriam, seja pela fala muito distinta, seja por seus traços. Eram apenas muito discretos, mas claramente francos.

Bebi mais algumas taças do meu vinho mergulhado no ar agradável daquela pequena cidade turística, buscando escapar das imagens daquele encontro com um quê de mistério. Ele deveria provocar em mim alguma expectativa. Mas minha mente vagava entre a perspectiva desesperançada de um congresso sem essência, as preocupações com projetos sem fim que me esperavam em casa, os muitos alunos que não sabem bem o que querem da vida e o desconforto com meus próprios rumos. Uma sensação ensimesmada de “o que é que eu estou fazendo aqui?” que eu já sentira outras vezes. Entre uma preocupação e outra, acabei com minha bebida e saí um bocado alto do bar até o hotel.

Acabou sendo uma noite difícil de dormir. O vinho, dificultando a digestão de toneladas de proteína e gordura, gerou uma sensação de estar à beira de uma explosão. Os poucos cochilos foram agitados, até que às três horas consegui um relaxamento mais longo.

O tempo foi suficiente para um sonho. Sonhei ser o comandante de um navio cargueiro que transportava algo pesado. O interessante era que, quanto mais peso e mais carga, maior se tornava o navio e isto permitia colocar ainda mais carga e peso. Até um momento em que o cargueiro começou a afundar. Mas o processo não tinha fim: mesmo totalmente submerso, continuava empilhando mais carga, apesar de estar afogando os tripulantes e a mim mesmo. Estava no limite de morrer afogado, quando acordei sobressaltado e com falta de ar.

Acordar desta maneira o deixa realmente desperto, por isso resolvi levantar e tomar banho para enfrentar o dia de evento. Não fiquei especialmente interessado pelos significados do sonho e me deixei tomar durante vários minutos pelas sensações da hidromassagem e do pesar estomacal.

O relaxamento do banho quente acabou por levar-me a uma decisão ineficiente, porém necessária: voltar para cama, ainda que já fosse seis e meia da manhã. Estava na cara que não acordaria a tempo para as primeiras atividades do evento. Fechei completamente as cortinas do quarto e mergulhei num reconfortante sono.

16

Page 17: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

6

Só acordei às onze horas da manhã. Apesar da sensação de consciência pesada, cheguei com uma cara muito descansada, o que contrastava com as dos primeiros participantes do colóquio que encontrei: enfadamento, cinismo, indignação, ironia, cansaço, entusiasmo ingênuo, desesperança. Parecia que já no segundo dia se perdia a perspectiva de algo positivo.

Como eu estava renovado, interagi com energia desproporcional com vários participantes e conhecidos. Encontrei representantes de negócios dizendo-se incapazes de mudar suas organizações, cientistas conscientes preocupados com o rumo dos investimentos, artistas alheios fazendo considerações críticas aos descobridores dos novos mundos, esses “destruidores de culturas e biodiversidades”, pastores com fórmulas salvacionistas e o tipo que mais me irritava: cidadãos cumpridores das suas obrigações culpando a falta de controle dos governos.

Cheguei a discussões bastante acaloradas em vários grupos que conversavam e tomavam cafezinho na grande ante-sala. Fui gentilmente expulso de alguns deles e me auto-ejetei de outros. Porém, o ápice foi quando inadvertidamente critiquei a atuação de ONGs poderosas em territórios com riquezas biológicas a pretexto de suporte social. Por azar, estava diante do diretor de uma organização que, para minha surpresa, copatrocina um de meus projetos:

- Tenho acompanhado sua trajetória em projetos do qual somos patrocinadores, nas entrevistas que você tem dado e nos artigos que você tem escrito. Pelo que estou vendo até aqui, acredito (e não é minha opinião isolada) que você tem assumido posições um tanto perigosas, e reagido de forma muito emocional quando confrontado educadamente. A esta confrontação, tenho notado que você articula suas razões de maneira extremamente pueril. Dá opiniões generalizantes e não sustenta nenhum dos seus argumentos. Usa poucos dados concretos e chega a conclusões de fé. Não creio que terá qualquer tipo de sucesso em influenciar o pensamento vigente e menos ainda em assumir qualquer posição de liderança na sua área. Você não acha que está na hora de recolher seu time de campo e ir fazer algo mais apropriado? Que tal algum turismo na região?

Nossa, aquilo me pegou. Vindo daquele distinto cavalheiro, aquilo significava que meu trabalho estava sendo avaliado de perto

17

Page 18: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

por pessoas das quais não imaginava estar ligado. Não tinha a clareza burocrática a respeito de quem estava por trás dos projetos em que atuava tecnicamente. Imaginei que o incidente seria divulgado em fóruns de poder político, e que isto iria me trazer vários tipos de incomodações.

Senti como um contragolpe no rim, de dor aguda, depois de uma esquiva elegante ao meu ataque. O fato é que eu costumo disparar alguns tiros de festim a esmo, mais para assustar, e nunca espero receber um tiro de revide com intenção de ferir. Sem resposta imediata, senti-me de fato um infantil, meu sangue ferveu e tudo o que me restou foi xingar de volta.

Foi um balde de água fria nas motivações para tirar algum proveito daquele dia. Decidi que me dedicaria mesmo a algum tipo de turismo neste dia. Não por sugestão do cavalheiro, mas porque sabia que seria uma das únicas maneiras de recolocar as idéias no lugar. A outra seria o álcool, o que rejeitei por ser cedo demais. De qualquer maneira, pensei de maneira cínica: além das conversas nos corredores não havia algo que realmente merecesse minha presença na agenda.

Troquei minhas roupas logo após o almoço e peguei o primeiro barco que saísse para navegar no Lago Argentino. A tarde estava aquecida por um sol brilhante que era refletido nas mais variadas formas pelos têmpanos navegantes do lago. Ao passar diante dos glaciais, o azul e o branco intensos e a grandiosidade daquele rio de gelo traziam alguma paz momentânea.

Aquela sensação baixou a intensidade com que meu coração vinha batendo, até ser tomado por uma visualização sobre o que vinha ocorrendo. Desde aquele misterioso encontro no dia anterior, fiquei muito mais tempo tomado por minhas próprias preocupações e pensamentos particulares, e pouca atenção dei àquele que poderia ser o momento que estava esperando. Estava tão isolado dentro de mim mesmo que já não tinha percepção consciente para coisas importantes que aconteciam à minha volta. Apesar de parecer preocupado com o mundo, estava mesmo era ocupado com desejos egoístas. Será que não era esta a mudança necessária: passar a uma vida mais interdependente, mais aberta, mais fluída? Será que aquele encontro não teria alguma chama a reacender? Isto ativou uma expectativa que não imaginava para aquele encontro de logo mais à noite.

18

Page 19: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Descemos do barco e o grupo de turistas seguiu em um trekking rumo a outros glaciais. Entretive a minha tarde com esta gente mochileira, tentando fazer uma troca mais honesta de sentimentos, caminhando, conversando e fazendo um esforço para ouvir através do coração. Estava definitivamente usando músculos atrofiados. Quando retornamos ao hotel, sentia as pernas e algo mais doendo.

A preparação tinha que ser rápida. Não poderia me tardar em aprontar-me para o encontro que logo viria. Não houve tempo nem para um banho. Peguei minha carteira e rumei rapidamente para uma locadora de automóveis 4 x 4, onde aluguei o único veículo disponível. Obtive algumas orientações sobre como chegar ao Cerro Huyliche e parti no rumo sul.

As orientações eram claras: havia algumas estradas de rípio até certo ponto, mas depois teria que transitar pelo campo aberto sem uma via demarcada. Na locadora, perguntei se teria dificuldades em achar uma pessoa que marcara um encontro comigo naquela localidade. As informações eram de que eu me orientasse pelas fogueiras que os caminhantes acendiam no local ao cair da noite.

Passei por algumas porteiras de estâncias até chegar ao final do sopé da montanha. Dali ainda se avistava a cidade e o lago. A cidade já estava começando a ficar tomada de luzes e a vista para oeste apontava os picos gelados da Cordilheira dos Andes, com um pôr do sol estonteante. Diante de mim, o pequeno cerro.

Não parecia haver qualquer sinal de alguém acampado junto ao morro. Pelo menos eu imaginava haver alguém acampado. Imaginei que poderia estar no local errado, até que uma raposa desceu por detrás de umas pedras e barrancos, olhando alternadamente para frente, para mim e para o local de onde veio. Não estava assustada, mas parecia não querer meter-se com gente. Imaginei que do lugar de onde viera poderia haver alguém.

Tive que caminhar um pouco além do que gostaria, perdendo de vista o carro e com dores que me lembravam a caminhada da tarde. Escalei algumas pedras pequenas até descortinar um pequeno platô, logo abaixo do cume, onde havia um homem solitário com um cachimbo na boca ao pé de uma fogueira.

Aproximei-me e fui tendo uma sensação de frio misturado com espanto e esvaziamento. A subida havia me esquentado o corpo, mas, diante da visão, estacionei alguns segundos o suficiente para

19

Page 20: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

que o vento me congelasse. Sem o sol, aqueles locais ficam um pouco frios à noite. Meu espanto dizia respeito a não acreditar poder estar diante de alguém realmente importante para minha vida, mais no sentido potencial do que real, mais pela força do homem do que pelo que ele faz. E esvaziamento, porque fui incapaz de canalizar aquela força que já havia testemunhado antes para mudanças realmente positivas em minha vida.

Aquele que estava diante de mim era Avaeté.

20

Page 21: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Dois

21

Page 22: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Conheci Avaeté na Serra da Canastra há quase dez anos atrás. Naquela época, eu e meus colegas costumávamos fazer trilhas longas e acampar. Vivíamos de uma energia alegre de curtir a natureza e pensar em mudar as coisas. Sentávamos à beira de fogueiras e conversávamos coisas abstratas e teóricas que, acreditávamos, poderiam fazer alguma diferença.

Nos dias finais de uma longa aventura, estávamos acampados em Araxá. Era noite. Nós estávamos todos em volta do fogo, conversando. Porém, alguém mais se acercou. Avaeté chegou sorrateiramente e juntou-se a nós. Sem necessidade de convite, como se já fosse de casa. Nunca tive idéia clara de onde morava, nem de como seu povo levava a vida. Os Guarani estão espalhados por este continente em situação terrível, à beira de vias e cidades. Mas Avaeté nunca mencionou sobre sua vida passada.

Avaeté sempre foi muito direto, simples e sereno. Digo sempre, porque nosso encontro, apesar de breve, cunhou uma mudança em minha vida, o que a colocou em rumos completamente diferentes. Eu perecia de uma enfermidade arrogante e ingênua. Hoje, ainda tenho sinais disto, mas abri bastante espaço para a dúvida que dissolve as certezas. Mudei muito desde então. Parece que ele me acompanha desde sempre.

Naqueles poucos dias, Avaeté nos falou sobre alguns princípios da Vida. Pareceram-me princípios para os nativos americanos, mas eram muito mais que isto. Agora, muito tempo depois, ele está aqui novamente. E eu também: mirando o horizonte, na direção oeste, buscando novos ares.

- Avaeté!

- Pyá. Quando nos vimos da última vez, não houve tempo para dar-lhe um nome Guarani. Agora você é Pyá. Venha me abraçar.

Foi um abraço apertado e cheio de tapas. Avaeté gargalhava como um condenado.

- Pyá, você está gordo.

- E você está muito bem! Parece que nem se passaram dez anos! Mas o que faz aqui?

22

Page 23: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Você está cheio de gordura no coração e na alma. Alma gorda. Coração confuso.

Poderia debater-me em contra-argumentos de todos os tipos para defender-me. Mas de que valiam? Era uma profunda verdade. Avaeté continuou:

- Tenho enviado sinais disto há tempos. Infelizmente, você é teimoso e surdo. Fala muito, pensa muito, silencia pouco. Mas agora chega. É preciso recuperar o Pyá dentro de você.

Indaguei Avaeté o significado de “Pyá”.

- Pyá é menino. Mas Pyá também é coração, é ânimo, é espírito e é consciência. As crianças são isto, e os adultos devem nutrir para serem também.

- Como posso reencontrar-me, Avaeté. Você sabe, sinto-me um pouco perdido.

- Você não está perdido. Apenas não sabe que está no caminho. O caminho de arandu. Arandu é o caminho correto, o caminho da sabedoria. Você está apenas confuso.

- Sabe Avaeté, sempre recusei pedir ajuda. Sempre achei que minha missão neste mundo era ajudar. Mas sou eu que preciso ajuda. Eu preciso de ajuda para equilibrar minha vida...

- Pyá, você aprendeu muito. Transcendeu ao que o limitava. Desapegou-se de coisas muito caras a você. Só que achou que isto se faria pela mente. Exercitou a mente e esqueceu o seu lado Pyá. Agora está gordo e inflexível. Sabe qual é o homem mais inflexível? O homem morto. Está na hora de exercitar seu coração e sua alma. É para isto que eu voltei.

2

Àquelas alturas da noite a fogueira se fazia muito útil. O vento e o frio gelavam os ossos. O céu, muito limpo. Mas algo em mim estava sendo reaquecido. A presença de Avaeté é aconchegante. Ele tratou de arrumar mais material para o fogo e aqueceu um bule com chá. Aquilo era o céu.

- Como você me encontrou, Avaeté?

23

Page 24: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Eu sempre estive por perto. Conheço seus hábitos. Saberia onde encontrá-lo. Apesar de não compartilhar seus espaços e suas atividades, tenho amigos em muitos lugares. Nesse evento, por exemplo. Estou com meus amigos Mapuche. Os Mapuche são povos araucanos que vivem do outro lado da cordilheira. Eles estão aqui para expor as suas lutas. Querem que o mundo conheça sua luta com os negócios madeireiros. Eu o descrevi para eles. Por isso, Pedro o procurou naquele bar.

- Eu jamais imaginaria que era você. Na verdade, nem pensei muito. Estou muito triste e indignado com o que acontece aqui. Você imagina por quê?

- Não tenho interesse pelo que tratam aqui, Pyá. Estou aqui por causa dos meus amigos. E por causa de você.

- Mas o que acontece aqui, acontece comigo e acontece com seu povo, Avaeté! Você não pode ficar alheio!

- Não preciso do seu falar panfletário. Isso é arrogante e inútil. Uma postura do tipo “errado é você, certo sou eu, vamos à luta.” Esqueça.

- Não posso, Avaeté. Cada vez a civilização tem mais tecnologia e poder econômico, criando devastação sobre a natureza e sobre os povos nativos. É isto que está errado. Temos que parar com esta corrida de ratos devastadora.

- Meu caro Pyá, você parece um pobre cachorro com medo de largar o osso e morrer de fome. Se não largar o osso, não terá seu focinho livre para achar comida. Abandone essa mente teorizante e olhe para o que está diante dos seus olhos. Largue as coisas abstratas. Civilização. O que significa isto em termos práticos? Um conceito de uma vastidão abstrata que não serve de nada. Culpar a civilização? Culpar os americanos? Culpar os europeus? Culpar os primeiros agricultores de dez mil anos atrás? De que serve?

Avaeté sempre foi direto e econômico. Mas creio que agora precisaria usar da lógica do meu mundo para expulsar-me dele. Continuou:

- Devastação da natureza? Natureza, o que é isto? Ninguém no seu mundo tem uma idéia clara do que significa “proteger a natureza”. Se tivesse, estava morrendo de rir do absurdo da idéia.

24

Page 25: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Veja, a idéia não é brega. A idéia é absurda. Só que no mundo abstrato, você não sabe por quê.

“Povos nativos? O que são? Um mar homogêneo de selvagens do bem? Uma idéia romântica que muitos de vocês nutrem de uma volta ao paraíso? Isto é absurdo, Pyá.”

Parando para pensar um pouco, noto que Avaeté tinha razão. Criamos cruzadas contra inimigos lá fora. E o pior é que são inimigos impessoais. Criamos conceitos abstratos e os transformamos em inimigos para manter uma pseudo-educação e impessoalidade para com indivíduos de carne e osso que estão “do outro lado”. Não consegui ter oportunidade de concordar com Avaeté. Em seguida adotou um estilo menos irado e passou a um tom mais socrático:

- Vejamos onde esse raciocínio o levará. A natureza e os povos nativos estão sendo arrasados pelo poder tecnológico e econômico, correto?

- Bem, em princípio sim, mas você está me colocando em dúvida...

- Finja que você acredita no que acabou de falar. Isso não leva a um conflito do tipo homem versus natureza? Ou civilização versus povos nativos? Ou, no final, a necessidade de escolher entre tecnologia e simplicidade no viver?

- Sim, é isto! Este é o conflito básico: tecnologia ou simplicidade!

- Errado, Pyá! Sabe por quê?

- Me diga por que, Avaeté?

- Pense, Pyá! Use a parte mais musculosa e desenvolvida do seu corpo!

- Eu não sei por onde começar, Avaeté. Apenas me parece que é um conflito básico que vivemos.

- Vou ajudá-lo. Pelo seu raciocínio, tecnologia é ruim. Logo ausência de tecnologia é bom, e ausência de tecnologia significa simplicidade, levar uma vida simples como a dos índios. Certo?

- Colocado de maneira tão clara parece estranho, mas basicamente é isto.

25

Page 26: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Aprenda a usar o nariz, Pyá. Se algo cheira mal, pode estar estragado. Onde está o furo do raciocínio? O que embasa essa idéia que pode estar equivocado?

- Por favor, Avaeté, eu preciso de uma pista.

- Vocês, “civilizados”, se acham descobridores e donos da tecnologia? Que idéia absurda, Pyá. É tão absurda quanto dizer que um italiano a bordo de um navio espanhol descobriu a América em 1492. A tecnologia é algo presente em todas as raças e gêneros humanos e na maioria, se não em todas as espécies animais.

- É Avaeté, nos achamos donos da América, do conhecimento e da tecnologia.

- Grande equívoco. Os nativos já viviam aqui antes e tinham sua própria tecnologia. Isto os fazia maus? Isto os fazia bons? Isto fazia dos europeus bons ou maus? Nada a ver. Não há sentido nesse julgamento.

- Está certo, Avaeté. Creio que posso enxergar seu ponto. Não existe um problema inerente à tecnologia, porque ela não é separada da natureza. Tecnologia, no sentido mais profundo, como arte, habilidade, instrumento e conhecimento é inerente ao humano, ao animal e até mesmo extensivo à natureza. Logo, se a natureza é boa, a tecnologia não pode ser má.

- Você estava indo bem, mas deu uma escorregada. Não há problema, chegaremos lá. É essa sua triste mania de julgar. Você tem o vício de carimbar as coisas como boas ou más.

- Mas não é assim que se julga a maneira correta de viver? O que é certo e o que não é certo?

- Pyá, você não sabe o quanto é nociva essa idéia. Mas, no momento, é difícil falar sobre isto. Precisamos estar mais preparados. Continuemos nosso desafio para iniciantes. Você percebeu? O problema não é a tecnologia. Tecnologia não é um problema, Ok?

- Ok, e você não sabe o quanto isso me alivia.

- Então, se existe um, qual é o problema?

- Deixe-me mostrar-lhe os fatos.

- Oh, que maravilhoso, não vamos falar abstratamente!

- Não seja irônico, Avaeté. Eu estou falando sério.

26

Page 27: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Ok, continue.

- As geleiras aqui do parque. Elas quase desapareceram. Isto não foi terrível? O uso de tecnologia para criar embalagens e eletrodomésticos e o uso de tecnologia para produzir todo tipo de bens, décadas atrás, inundou este planeta de gases e aumentou a sua temperatura. Um problema estético? “Ah, não teremos mais nossas maravilhosas geleiras!” Não é só isso: todos aqueles que sobreviviam destas águas estavam em perigo. Quem é o culpado?

- “A tecnologia!” Palmas! Agora vá lá e atire-a na fogueira! Pronto!

- Você me faz parecer idiota.

- É mesmo, Pyá? Não era minha intenção... Rá, rá, rá, rá, rá! Você não é idiota, Pyá. Apenas se comporta como um. Rá, rá, rá, rá, rá!

Avaeté às vezes gargalhava como uma criança, de maneira tão sórdida e intensa que o que restava era rir com a mesma vontade. Tentei ainda argumentar sobre os problemas concretos que a tecnologia trazia, exemplifiquei vários casos, até que Avaeté me interrompeu:

- Não estamos em condições de levar adiante esta conversa sobre os problemas da tecnologia nesses termos. Se você quer alguém para brincar de boxe retórico, encontrou a pessoa errada. Volte amanhã ao colóquio e procure um bom cientista executivo de uma empresa de tecnologia médica e faça queda de braços com ele. Agora, se você quer saber, de uma maneira muito simples e direta, onde reside a questão que põe por terra esse dilema, continuemos nossa conversa amanhã. Agora já está tarde, eu desejo dormir, e aconselho que você também faça o mesmo.

- Puxa, Avaeté, agora que estava esquentando...

- É justamente a hora de parar. Há pouca lenha para o fogo, e você está adquirindo aquela arrogância intelectual inflada. Há um longo caminho até que essa tendência desapareça para dar lugar ao seu coração. Se você deseja esta busca, volte aqui amanhã, ao entardecer. Eu estarei sobre o cume do cerro. Lá é um lugar de poder. Lá poderemos ir mais fundo na sua “noite”.

27

Page 28: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Despedi-me amavelmente de Avaeté, sem dizer, mas transmitindo a alegria de rever meu velho amigo. Notei o mesmo no seu abraço e nas suas risadas.

A descida do morro foi um pouco mais difícil, pela falta de luz. Orientei-me apenas pelas luzes da cidade, tropeçando às vezes em algumas pedras e escorregando pelos barrancos. Consegui localizar o carro e rumei com faróis altos até as cercanias da cidade.

Sentia certa euforia enquanto rememorava meu encontro com Avaeté. Apesar de ter sido um guia por aquelas terras de Araxá anos atrás apenas por uma ou duas noites, sinto-o como uma luz que, de uma forma ou outra, sempre esteve presente. Agora ele está aqui! Isto é maravilhoso.

Porém, percebi que nossa conversa rumou numa direção que não revelou o propósito de Avaeté, ou mesmo do porquê de ter me procurado. Como eu sou desligado. Nem fui capaz de insistir. No final das contas, que desejava Avaeté?

Minha sorte é que nos encontraríamos na noite seguinte. Mas será que ele pretendia passar as demais noites aqui? E depois do fim do evento? Iria para outro lugar? Poderia encontrá-lo novamente? Estas poucas noites seriam o que eu estaria esperando de uma mudança radical na vida? Já na cama, a euforia e os pensamentos me mantinham em vigília e em expectativa. Procurei induzir um estado de maior tranqüilidade até a chegada do sono.

3

Não havia planejado uma atividade para aquele terceiro dia de eventos. Depois dos acontecimentos do dia anterior, fiquei meio desinteressado por acompanhar mais de perto o que ocorria. Enquanto tomava café da manhã, passei os olhos pela agenda. Nada em especial chamava a atenção pelos títulos, até dar-me conta de que tal diversidade presente tinha que ter muita riqueza e aprendizagem a oferecer. Passei a imaginar, entre um gole e outro de café, que talvez algo estivesse escondido sob os títulos. Passei a focalizar os nomes.

Para ser sincero, eu estava me esforçando para extrair algo daquilo tudo. Mas o que realmente dominava minhas expectativas

28

Page 29: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

era a possibilidade de reencontrar Avaeté logo à noite. Senti que o dia demoraria demais a passar, mas procurei manter a calma.

Vasculhando os nomes, localizei algo que me chamou a atenção. Líderes Mapuche estariam em uma mesa redonda com representantes de negócios agroflorestais, de extração de minérios e de petróleo fazendo um balanço sobre as conseqüências locais da expansão ocorrida nas décadas anteriores. Será que Pedro Ruca estaria presente? Encontrá-lo seria uma maneira de estar próximo a Avaeté. Se ele é seu amigo, deve ser uma pessoa formidável.

Concluí rapidamente o café e dirigi-me a sala Torres a fim de chegar a tempo. Passei pelos corredores com a cabeça baixa, para evitar ser notado pelas indelicadezas do dia anterior. Adentrei a sala e sentei-me ao fundo. Prestei atenção às pessoas que também entravam, e identifiquei claramente nativos e representantes de negócios pelas vestimentas e pela cor da pele.

Pedro Ruca e seus amigos chegaram poucos segundos antes do início da sessão. Fiquei feliz em localizá-lo. Seu grupo acompanhava um líder de seu povo que, depois descobri, esteve escondido, exilado e depois preso por vários anos. Hoje está de volta, tem voz ativa e é um dos representantes na mesa redonda. Pedro acompanhou-o até a mesa e depois se sentou na primeira fila da platéia. Como identifiquei assentos vagos na segunda fila, dirigi-me até lá.

O presidente da mesa iniciou os trabalhos relendo os primeiros parágrafos do acordo “Repacificación de Araucanía” assinado há quase uma década, como que instilando um clima de paz para o encontro. Eu aproveitei que Pedro e seus amigos não prestavam atenção à abertura e cumprimentei-os:

- Olá, Pedro. Que prazer em revê-lo.

- Olá, Pyá. Desculpe, mas creio que não se importa em chamá-lo pelo seu nome índio.

Fiquei intrigado sobre como tiveram a oportunidade Avaeté e Pedro de comunicar-se sobre isso.

- Claro que não me importo, apenas fico surpreso com a velocidade com que você descobriu.

- Amigo Pyá, você ainda terá que aprender muito sobre a natureza do tempo, a natureza de antü. Digamos que eu sempre soube de “Pyá”.

29

Page 30: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Numa atitude de respeito pela sua sabedoria, resolvi não fazer muitas perguntas. Acreditava que em algum momento poderia entender isto, entender como outras culturas vêem o que está à volta, a natureza do mundo e do tempo. Avaeté já havia me ensinado um pouco sobre como os Guarani enxergavam isso e é um tanto diferente do que nós, civilizados, pensamos.

Enquanto conversávamos, os debates foram se aquecendo, com cada um dos participantes fazendo um repasse histórico das relações entre os negócios, os governos e as comunidades Mapuche na região da Araucanía. Pedro sugeriu que prestássemos atenção, mas foi gentil em convidar-me para almoçarmos juntos mais tarde, ficando próximo ao seu grupo durante aquele dia.

A mesa redonda teve a maior parte da sua atenção voltada para a discussão das compensações sociais e ambientais que as empresas vinham cumprindo, apesar do alto custo das mesmas. A posição dos grupos empresariais era de que vinham cumprindo com o que era exigido, apesar da perda de competitividade global que isso implicava. Os governos vinham tentando elaborar leis de proteção e de compensações, mas isto aparentemente não ia ao encontro do sistema de vida das comunidades indígenas. Os conflitos foram muitas vezes a custo de vidas humanas e parece que está longe de haver paz na região.

Pedro fazia comentários vez por outra com seus companheiros, dando a crer que “não é por aí”. Comentou comigo:

- Creio que você entenderá se eu lhe disser que os conflitos que ocorrem na superfície não serão resolvidos na superfície. Temos que escavar a terra para reconhecer as raízes mais profundas.

Aquilo fazia todo sentido para mim, é claro. Este é o princípio básico de trabalho de um ecoengenheiro. Fiz algumas anotações para explicitar o conflito aparente e tentei enumerar algumas causas, a partir da exposição dos palestrantes. Pedro olhou e disse:

- Um dia você terá que largar tudo o que aprendeu, para entender coisas mais profundas. O dia em que isto acontecer, você olhará para si mesmo com outros olhos.

Pedro referia-se a uma mudança que estaria por vir. Eu já a havia notado, mas imaginava que este desenvolvimento seria acumulativo: aprendendo mais, sabendo mais. Mas a mensagem que Pedro me passava apontava em outro sentido: largar muitas das

30

Page 31: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

coisas que eu acumulei ao longo dos anos. Como estas minhas anotações.

O encontro caminhou para o seu final com a idéia de que se deveriam criar mais algumas leis e fazer cumprir outras. Ninguém pareceu sair realizado assim que se encerrou a sessão. Empresários com mais cargas sociais e tributárias, comunidades locais tendo a impressão que nada mudaria e governos com mais tema de casa por fazer.

Pedro aguardou que se desfizesse a mesa para despedir-se de seu líder. Foi até ele enquanto eu assistia do meu assento.

- Faça uma boa viagem de volta. Ficaremos aqui até o último dia, temos mais alguns trabalhos a fazer. – informou Pedro.

- Fiquem em paz. Fico triste por não termos avançado, mas o caminhar é longo. Até breve.

- Até breve.

Pedro e seus amigos acenaram e vieram ao meu encontro. Sugeriu que almoçássemos em outro lugar, saindo do hotel. Caminhamos alguns quarteirões até o que parecia uma ampla casa residencial. A casa possuía uma grande varanda nos fundos, com várias mesas. Era uma espécie de restaurante familiar que não constava em qualquer guia turístico. Uma música que misturava acordes eletrônicos e bandoneon alegrava o ambiente. Não havia um cardápio, apenas um ou dois pratos eram servidos. O amigo de Pedro pediu que fosse servida a todos a especialidade do dia. Em poucos instantes saboreávamos um assado de tiras com batatas e salada, acompanhados de vinho.

Enquanto o almoço era saboreado, Pedro e seus amigos conversavam num tom muito tranqüilo, porém firme, sobre o que haviam concluído do encontro da manhã. Avaliaram como positivo, ao final das contas, não pelos resultados objetivos, mas pelo avançar do diálogo. Permaneci apenas escutando o assunto, até que encerramos nosso almoço com um chá.

Os amigos de Pedro sugeriram uma pausa para a sesta. Pedro informou-lhes para ir adiante, pois desejava permanecer um pouco mais. O que descobri era que Pedro desejava conversar mais comigo.

- Sabe, Pyá, Avaeté pode ter uma incumbência para você que pode estar além dos seus interesses ou da sua força para executá-la.

31

Page 32: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté não está aqui apenas para aconselhá-lo até o final deste colóquio. Ele está aqui para algo mais intenso.

- Você sabe o que Avaeté pretende?

- Honestamente, não sei seus propósitos, mas sei o que ele está para lhe pedir. Avaeté não é mais um homem jovem. Como um homem maduro que é, terá sua vitalidade diminuída a cada dia. Por isso, precisa fazer o que tem que ser feito.

- E o que é que tem que ser feito? No que isso me afeta?

- Não posso adiantar esses detalhes que só Avaeté poderá informar-lhe. Mas suponho que é algo pelo qual você tem estado esperando na sua vida. Talvez isto só possa acontecer agora. Talvez só agora você esteja pronto para a incumbência. Na nossa tradição também temos passagens que não podem ser precipitadas.

“Quase todo modo de vida nativo neste continente tem isto. Estas passagens são rituais de religação. Você se reconecta com sua natureza e com seu tempo. Você se dá conta de quem é e ao que está unido. Você tece o fio da vida e passa pelo ritual para dar-se conta disso.”

Pedro ficou horas me falando sobre seus rituais e seu jeito de viver. Dei-me conta que outro viver implica não só o que está explícito, como os rituais, a arte, a tecnologia ou os costumes, mas toda uma maneira diversa de conceber a si mesmo e a vida. Pedro insistia que estava na hora de novas experiências, porque o que eu pretensamente vivia como algo diferente em minha vida cotidiana era apenas superficial.

- Mas, Pedro, eu tenho mudado muito. Dedico-me à busca de um mundo melhor, mais limpo, mais justo...

- Sua mudança tem sido superficial. Se todos fossem como você (aliás, você não admite, mas gostaria que todo mundo fosse igual a você) haveria muito mais catástrofes por este mundo. Ainda bem que ainda há diversidade. Faça as contas. Quinze bilhões de gafanhotos “ecologistas” iguais a você. Já parou para imaginar?

Não era preciso. Intuitivamente sabia o que isto significava. Você apenas não pensa para não sentir o peso.

- Culpa não o ajudará a ter mais consciência. Mais tarde você entenderá o porquê – surpreendeu-me Pedro.

32

Page 33: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Parece que você lê pensamentos – disse eu.

- Eu não leio pensamentos. Eu percebo sentimentos.

Ficamos conversando naquele tom manso, sob uma brisa refrescante, até quase o fim da tarde, quando Pedro sugeriu:

- Vá novamente ao encontro de Avaeté. Leve seu corpo, seu coração e seu espírito. Deixe a cabeça no hotel.

Sorri com a imagem de um sujeito sem cabeça vagando pelos campos patagônicos.

- Isto! Leve seu bom humor. Você vai precisar muito – continuou, sorrindo.

Pagamos nossa conta e tomamos rumos distintos. Fui ao hotel e troquei a minha roupa por algo mais confortável e aquecido para enfrentar a noite. Preparei algo para levar na mochila, coisas como água, alimentos rápidos, capa, agasalhos, lanterna, estas coisas. Peguei a estrada logo em seguida. Não imaginava o tamanho do que me aguardava, mas tinha receio que talvez não fosse capaz.

4

Cheguei um pouco antes do combinado ao pé do morro, mas havia um propósito. Apesar de estacionar no mesmo local, seriam necessários alguns minutos a mais para alcançar o topo, como Avaeté recomendou. Ele havia mencionado que aquele era um “lugar de poder”. Nunca tinha ouvido Avaeté falar nisso, mas não era uma idéia de todo estranha: “lugar de poder”. Coloquei a mochila nas costas e comecei a escalada. Havia alguns trechos mais escorregadios, mas não era preciso ser alpinista para chegar até o cume. Cheguei a ter um pouco de falta de ar pelo despreparo, mas em menos de uma hora alcancei o patamar final. A vista era ainda mais bonita do que a dos pequenos refúgios abaixo, um deles onde encontrei Avaeté no dia anterior. Fiz uma visualização de trezentos e sessenta graus e notei Avaeté à distância, aproximando-se com algum material para o fogo.

- Avaeté! – gritei com intenção de cumprimento.

- Venha, ajude-me. Temos que ter suprimento suficiente para manter o fogo até a madrugada. Já está anoitecendo.

33

Page 34: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Ajudei-o sem muita conversa, até que ele sentiu-se satisfeito. Sentei-me junto a uma pedra e imaginei se aquele seria um bom lugar para permanecermos.

- Parece adequado? – perguntou.

- Acho que sim, mas preferia algo mais protegido.

- Protegido? Em que sentido?

- Mais no centro do morro. Sabe, acho que seria melhor se a cidade não estivesse à vista.

Aquela sensação era esquisita, mas por algum motivo a cidade poderia me trazer algum desconforto durante nossa conversa.

- Se você acha melhor, eu acho melhor – sentenciou Avaeté.

Buscamos um local de onde houvesse uma vista ainda ampla, mas não ao alcance das luzes da cidade. Ali fiquei mais à vontade.

- Buscar um lugar de poder é assim, Pyá. É onde você sente-se centrado. Você está mais centrado aqui?

- Creio que sim.

- Isto é bom. Você vai precisar estar bem plantado no seu centro, mas despregado de seus conceitos.

- Como isso é possível, Avaeté? Eu sou meus conceitos.

- É o que você pensa. Você pode se despregar de tudo o que quiser. E vai precisar disto hoje.

Avaeté começava a me preparar para a nossa conversa. Preparou tabaco para seu cachimbo e mate para nos aquecer.

- Este cachimbo é sagrado. Fumamos para fortalecer o espírito. Sente-se e aquiete a alma.

Avaeté baforou fumaça sobre minha cabeça e sentou-se concentrado. Em seguida começou:

- Lembra do que conversamos ontem? Aquilo não era nada importante. Apenas uma amostra do que serão seus dias e noites.

- Uma amostra? O que você quer dizer? – questionei.

- Não se apresse. Saberá na hora certa. Pensou no assunto?

34

Page 35: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Assunto? Ah, conversamos sobre alguns assuntos, mas a questão girou em torno de um conflito, certo?

- Prossiga – recomendou Avaeté, fingindo-se paciente.

- Sim, o conflito da tecnologia ou da simplicidade. Confesso que não pensei de ontem para hoje, mas tenho pensado muito sobre isso.

- Não pense. Pensar mascara o que você sente. Rá, rá, rá – gargalhou.

- Não vejo nada de engraçado. Perguntou se pensei no assunto. Imaginei que você desejasse que tivesse pensado.

- Não! Imaginou mal. Hoje não quero que pense. Quero que contemple.

- Não é a mesma coisa?

- É claro que não! Pensar é atividade do raciocínio lógico. Contemplar é atividade da alma. Examine sua língua: contemplar vem do latim templum, lugar sagrado. Contemplar é estar junto ao sagrado, notar sua presença, perceber seus sinais. Portanto, contemple e dialoguemos.

Não entendi como poderia ser contemplativo ao invés de lógico, mas tratei de tentar obedecer.

- Você quer saber que direção tomar nesse conflito. Oscila entre um pólo e outro. Quer uma resposta. Pois lhe digo está no caminho equivocado. Contemple o conflito, e você chegará ao construtor de caminhos.

- Construtor de caminhos?

- Sim. Aquilo que produziu o conflito e colocou você lá. Sabe quem foi? Algum demônio que se diverte vendo-o perdido? Não. Você mesmo fez o caminho e se colocou lá. Você e seus comparsas. Suas idéias. Para um índio, não faz sentido essa questão. Ambas são partes de um mesmo caminho. Vivemos outros conflitos, mas nunca perdemos de vista quem os construiu. Sabe como vemos esse seu conflito?

- Estou ansioso por saber, Avaeté – falei com a curiosidade e a abertura de uma criança.

- Mbyacuí – sentenciou.

35

Page 36: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Como assim, mbyacuí?

- Mbyacuí – repetiu. É assim que vemos vocês, Pyá. Gente do pó.

- Não estou entendendo.

- Vocês, Pyá, autodenominados “civilizados”, são gente do pó. Sabe como chamamos areia? Itacuí. Pedra fragmentada. Vocês são um povo fragmentado, Pyá. Partiram o ser humano em corpo, mente, alma e coração. Partiram o mundo em países. Partiram a terra em propriedades. Partiram o sagrado, e apartaram Deus, ser humano e natureza. Todos irreconciliáveis. Todos em conflito.

Aquela era uma visão arrebatadora. Nossa faca analítica, durante séculos e séculos, partindo e repartindo tudo o que via. Partimos para nos apropriar. Apropriar-nos por força do conhecimento, nos apropriar por força do desejo de possuir, nos apropriar por força de estar no controle da nossa própria vida. Não queríamos mais estar nas mãos de deuses caprichosos. Queríamos o poder de estar acima das incertezas. Por isso, partimos, repartimos e nos apropriamos.

- Pyá, vocês são gente do pó. Gente isolada nos seus interesses próprios e nos seus apartamentos. Que imagem vem a você um local de enorme quantidade de areia?

- O deserto.

- Sim, o deserto. Seu mundo é um deserto, Pyá. Você é um grão de areia num deserto. Isolado. Isolado no meio da multidão. Assim como seu vizinho. Solitários. Vocês, Pyá, civilizados, são seres solitários, isolados, desconectados. E da desconexão nascem os seus conflitos.

- Como assim, Avaeté?

- Eu tenho uma maçã para você! – e remexeu sua bolsa até achar uma maçã, estendendo-a para mim.

- Não fique de brincadeira, Pyá. Eu estou falando sério.

- Não fale a sério. A vida não é séria. Rá, rá, rá, rá. Tome esta maçã!

Tomei a maçã, mas achei que era troça. Fiquei desconfiado.

- Vamos, faça o que tem que ser feito.

36

Page 37: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Tomei a maçã e apoiei-a sobre uma pedra lisa. Apanhei meu canivete e partia-a ao meio. As duas metades começaram a rolar, mas fui rápido o suficiente para salvar uma delas de cair no chão.

- Viu o que eu disse? – inquiriu Avaeté.

- Não vi nenhuma ligação entre o que aconteceu e o fato de sermos gente do pó, Avaeté.

- Não seja preguiçoso. Quando você colocou a maçã sobre a pedra, ela rolou?

- Não, ela estava em equilíbrio.

- E quando você partiu a unidade, o que ocorreu?

- Ela não era mais uma unidade. Eram duas metades, cada qual com o seu centro de gravidade alterado.

- E...?

- Cada uma foi para um lado.

- Conflito! Cada uma tem o seu interesse, agora. Cada metade quer encontrar seu novo equilíbrio. Cada uma quer ir para um lado. E o que você, mbyacuí, faz? Culpa! Culpa a metade que caiu no chão, culpa a pedra que permitiu esse desequilíbrio, culpa o agricultor que produziu maçãs irregulares, culpa o governo por permitir uma sem-vergonhice dessas e culpa até mesmo a lei da gravidade! Culpa todos, menos sua mão e seu canivete. Que vergonha, Pyá! Você não está envergonhado?

Falou isto num tom tão sarcástico, que desatei a rir. Gargalhei muito até quase chorar.

- Ok, Avaeté, sua idéia é muito clara. Mas o que isso tem a ver com o conflito de que falamos, o conflito da tecnologia?

- É a mesma coisa. Você culpa a tecnologia, culpa a metade da maçã que caiu no chão. É um equívoco! Olhe para todos os seres que usam tecnologia neste mundo, exceto vocês, Pyá. Eles parecem infelizes por isso?

- Não, não parecem.

- É claro que não! Sabe por quê? Porque a tecnologia, como vocês assim a chamam, é o veículo para o sagrado, Pyá. Sabe o que fazemos quando produzimos ou usamos o arco, a flecha, os

37

Page 38: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

instrumentos de pesca, as técnicas de plantio e colheita? Sabe o que acontece quando obtemos sustento através deles?

- Diga-me, Avaeté.

- Rituais. Para quê? Porque é bonito? Não: porque isto religa. O ritual é uma maneira de religar-se ao sagrado. De reconhecer que não estamos perdidos. Que estamos no caminho de ser uma unidade com o divino. Vocês, Pyá, perderam a conexão. São gente desconectada. Desconectada de Deus? Não. Nunca houve tanto cristão, judeu ou muçulmano na face da Terra. Desconectada, isto sim, do sagrado. Desconectada da grande fonte de energia. Desconectada da Vida.

5

Avaeté tinha o poder de esclarecer as coisas de uma maneira tão direta que me assombrava. Que clareza! Enquanto a gente fica aqui, amarrado por uma teia de pensamentos incoerentes, existem seres iluminados que, com um comando ao nosso olhar, nos tira daquele emaranhado. Ah, como eu gostaria de ter uma clareza tranqüilizadora como essa...

A idéia presente no que Avaeté demonstrou dissolve por completo a idéia de um conflito entre o uso do poder tecnológico como contrário a uma vida simples e boa. A vida pode ser simples e sofisticada desde que você...

- Esteja conectado, Pyá. Esteja conectado em tudo o que você faz. Esteja conectado no seu dia-a-dia. Reconecte-se em cada coisa que você faz. Reconecte-se com as origens daquilo, reconecte-se com as conseqüências dos seus atos, reconecte-se com todas as pessoas e seres que ajudaram a criar aquele momento.

- É, na fragmentação da nossa vida civilizada, perdemos a conexão. Isto é triste.

- Não se torture, Pyá. Não há nada de inerentemente errado com você e seus semelhantes mbyacuí. Só esta pequena questão: vocês são desligados.

Dito isto, Avaeté fumou mais algumas baforadas do seu cachimbo. Eu olhei para o horizonte e notei que já havia anoitecido por completo. Aquele mar de estrelas estava novamente presente.

38

Page 39: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Naquele escuro destacavam-se apenas as estrelas, o fogo e nós, à sua volta. Fiquei admirando o dançar das labaredas.

Nossa busca pela certeza, na ânsia por tomar o controle da vida nas nossas próprias mãos e tirá-la das mãos dos deuses, nos levou a um caminho de busca de conhecimentos e verdades absolutas. Saímos pelo mundo à cata de emancipação, na busca pela verdade, inventando instrumentos para ajudar nesta busca. Nossos olhos voltaram-se para o conhecimento definitivo, a verdade.

- Mas, veja, Pyá. Mbyacuí só considera verdade o que pode ver. Se mbyacuí não enxerga, não existe. Só que ele só vê o que é do seu tamanho. Por isso, só se ocupa do que mede entre um grão de areia e um Monte Everest. Só considera o que dura entre um piscar de olhos e uma geração. Essa é a dimensão de mbyacuí.

- Pois é, Avaeté, na nossa obstinação por encontrar a verdade, utilizamo-nos de métodos que fragmentaram o tempo e o espaço, criando um mundo do aqui e agora, que nos afastou da vida, tal qual ela é, muito maior que aquilo que vemos. Estas fragmentações, que levaram a conflitos dentro das nossas cabeças e dentro da nossa vida coletiva de povos e nações, estão nos levando a inúmeras mazelas. Por isso, diante das mazelas da nossa civilização, notamos um debate e uma dúvida sobre uma volta à experiência da vida, tal qual ela é, ou se continuamos a construção do castelo do conhecimento.

- Essa é a mesma dúvida sobre continuar a criar um mundo de tecnologia ou um mundo de retorno à natureza. Pyá, abra seus olhos. A pergunta não faz sentido, pois traz em si a semente da fragmentação e a dicotomia.

“Meu querido, vocês são uma sociedade de construtores de fortalezas. Fortalezas de certezas que cada um pretende dominar. Fortalezas de uma só pessoa. Hordas de fortalezas. Hordas de ilhas de solidão. Reconecte-se, Pyá. Religue-se.”

6

Ficamos em silêncio por um razoável tempo. O diálogo criou em mim sentimentos confusos. Sentia alívio pelo distensionar do conflito, por um lado, e um abismo exatamente pela idéia que o dissolveu. Lembrei-me das faces das pessoas que participavam do evento. Indignação, desesperança, cinismo, hipocrisia contrastando com

39

Page 40: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

fanatismos, paroquialismos e idolatria a gurus. O que mais me abismava era como eu estava identificado com tudo isto. Nos rostos que via, um reflexo de mim mesmo. Era como se a repulsa àqueles que me rodeavam fosse uma projeção da minha própria miséria, uma repulsão de mim mesmo. Fiquei mergulhado nestes devaneios psicanalíticos até ser acordado por Avaeté.

- Pare com essa autocomiseração, Pyá! – exclamou Avaeté, irritado.

“Pare de sentir pena de você e dos seus colegas. Você acha que autocompaixão pode salvar seu mundo. Você quer salvar o mundo, Pyá? Isso é de uma demência completa. De onde você tirou essa idéia estapafúrdia? Você anda vendo muito filme ‘anti-american-way’. Eles estão loucos e estão enlouquecendo você. Caia fora! Desfrute!”

- Mas como, Avaeté?

- Crie uma nova maneira de fazer as coisas.

- Os hippies tentaram e se deram mal.

- Eles não se deram mal. Apenas não sobreviveram. Quer ver como eles não se deram mal? Estamos aqui falando deles. O espírito hippie está aqui, agora, nos aconselhando.

- Ok, mas no que isso nos ajuda, Avaeté?

- Os hippies, assim como a maioria das almas iluminadas, não estão em conflito entre salvar o mundo ou salvar a si mesmos e desfrutar. Não há carga. Não há culpa. Apenas experiências plenas de viver que podem oferecer caminhos.

- Sua vida é uma dessas experiências?

- Sim. Eu preciso achar saídas para meu povo. Mas não sou o único. Muitos no meu povo estão experimentando saídas. Há alguns de nós, por exemplo, que buscam saídas por dentro do seu mundo, Pyá. Eles estão estudando no seu sistema. Buscando saídas por dentro do seu sistema.

- E isso não representa um peso para você e todos esses? Não é algo muito grande, ser responsável pela sobrevivência de todo um povo?

- Sim e não, Pyá. Compreenda que não há dicotomia: eu vivo uma vida plena, assim como os índios que estudam direito ou

40

Page 41: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

filosofia nas suas escolas. Minha vida plena é uma vida de experiências. Sem compromisso de ter certeza. Apenas buscando mais um caminho. Se este caminho der certo, meu povo agradece. Senão, agradece também, pois foi um caminho de aprendizagem. Como os hippies, os beats, e tantos outros.

- E o que isso tem a ver comigo, e com você estar aqui, Avaeté?

- Meu caminho cruzou seu caminho, Pyá. Não podemos fugir disto. Eu sou um homem que vive nas frestas dos modos de viver deste mundo. Entro e saio deles, sobrevivo através deles. Sou um homem só, mas não solitário. Agora, chegou a hora de ensinar a alguém este viver. A Vida o colocou aqui, Pyá.

O que significava tudo isso? Que Avaeté havia me escolhido para ser seu seguidor? Seu discípulo? A idéia em si era maravilhosa. Desfrutar da companhia de Avaeté, estar junto com ele, isto era fantástico. Mas em que bases isto seria? Ele iria viver na minha cidade? Trabalharia comigo? Daria conselhos nos meus projetos?

- Avaeté, você está dizendo que para me ensinar estaria disposto a viver no meu mundo?

- Você é muito engraçado, Pyá – disse, às gargalhadas. – Quer mudar sua vida, mas não está disposto a mudar seu estilo de vida. Isto é muito engraçado.

- Falo sério, Avaeté.

- Ensinarei o que você precisa em outro mundo. O mundo das frestas para uma nova vida. Um mundo viajante.

“Ao longo da história, nós Guarani sempre tivemos um quê de nomadismo. Nossa tradição indica a existência da terra sem males, yvy maraney. Do outro lado do oceano é a terra sem males. É yvy maraney que buscamos. É uma busca não só geográfica, mas temporal, filosófica e religiosa.

- Um mundo viajante?

- Pyá: o que eu tenho para propor a você exige uma decisão profunda em sua vida. Para aproveitar tudo o que há neste mundo maravilhoso você terá que abrir mão das migalhas que você dispõe. Você acha que essas migalhas são tudo o que você tem e não pode abrir mão delas. Para aproveitar a vida, você terá que largá-las. Se você o fizer, experimentará a vastidão sem fronteiras da liberdade

41

Page 42: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

suprema. No mundo viajante, você conhecerá locais de poder e beleza, povos de poder e lições de vida.

- Mas como é essa vida, Avaeté? Terei que deixar meus amigos, meus colegas? Terei que deixar para trás meus projetos, minha profissão, meus planos?

- O que eu estou propondo é uma viagem. Uma viagem de aprendizado. Você vai aprender a viver como eu. Depois que aprender, faça o que quiser da sua vida. Enquanto isso, terá que abrir mão do que tem.

Tendo dito isso, Avaeté apagou seu cachimbo e esticou-se sobre uma pequena esteira, com o intuito de descansar numa posição horizontal. Imaginei que desejasse dormir. Imaginei que Avaeté não falaria mais sobre o assunto.

Tinha muitas dúvidas. Mas não eram só dúvidas. Eram medos. O que Avaeté propunha era como um atirar-se num abismo, do qual nada se leva, e no qual não se sabe o que há. Exigia um ato de fé. Exigia um desapegar-se fundamental. Era isto pelo que eu tanto ansiava? Esta era a mudança? Assim, radical?

42

Page 43: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Três

43

Page 44: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Debati-me na cama. Não havia como ser diferente. Não queria, mas ficava alternando entre imaginar como seria essa viagem com Avaeté e entender o que significava abandonar tudo o que tinha.

De um lado, os meus projetos pessoais, meus amigos e familiares, minha reputação, minha segurança profissional, isto sem falar na minha segurança financeira. De outro, uma vida de aventuras, de aprendizagem, de sabedoria e de expectativa pelo desconhecido. Passaria a viver no fio da navalha, completamente nas mãos da Vida. Sem planejamento. Sem previsibilidade. Medo. Esta era uma palavra que acreditei não existir no meu dicionário. Sempre me senti destemido, corajoso, com iniciativa. Mas agora eu estava diante dele: o medo.

“Medo de quê?” – me perguntava. Você cria sua fortaleza pessoal para não ter medo. Busca estar protegido do ridículo, da exclusão social, do passar necessidades, de precisar ajuda, das incertezas, do sofrimento. Agora Avaeté está sugerindo: saia de dentro da sua fortaleza e viva! Não é assim tão fácil.

Levantei com uma cara péssima. Olheiras visíveis denunciavam uma má noite de sono. Estava desconcentrado do que fazia. Nem lembro o que tomei no café. Não sabia para que lado iria ou o que faria. Era a última manhã do colóquio, muitos já haviam deixado a cidade. Arrastei-me como um zumbi até o salão central. Havia alguns poucos grupos conversando. Alguns se despediam. Sentei-me numa poltrona, das várias colocadas ao redor do salão, e fiquei lá, aéreo. Alguns conhecidos passavam, cumprimentavam-me, mas davam-se conta que havia um ser autômato do outro lado.

- Você está bem? – perguntavam.

- Ãhn? Ah, não se preocupe, está tudo bem – dizia eu, despistando.

Dificilmente alguém conseguiria tirar-me daquele torpor, até que uma voz feminina quebrou o timbre comum de vozes e “olás”:

- Você tem dificuldade para abrir-se. Precisa arejar o que há aí dentro. Caso contrário, em breve tudo estará mofado.

- Como? – levantei os olhos e percebi diante de mim Miguelina Toledo, uma das amigas de Pedro Ruca.

44

Page 45: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Em casa fechada o vento não é capaz de expulsar os demônios. Abra suas janelas.

- É o que lhe parece?

- Você só tem aberto sua fortaleza para enviar cavaleiros em batalhas. Sua riqueza interior está trancada.

Decidi que não iria argumentar com Miguelina. Nos últimos dias isto tem sido difícil. Parece que todo mundo que se aproxima tem alguma verdade reveladora incontestável para me contar. Miguelina continuou:

- Talvez exista uma janela entreaberta. Ajude-me a localizá-la.

- Há muito tempo não me defrontava com meus demônios interiores. Alguma coisa os colocou em polvorosa.

- Deixe-me contar-lhe uma coisa. Quando eles exageram, acabam intoxicando tudo, inclusive a eles próprios. Se você for capaz de escapar, pode salvar-se de ir para o esgoto com eles.

- Ok, ajude-me a assoprar um pouco através dessa janela.

Miguelina pediu-me que a abrisse um pouco mais. Eu aproveitei e expus o dilema:

- Estou diante de uma proposta sedutora, mas que exigirá um desprendimento que nunca tive na vida. Gostaria de viver uma nova vida, mas não gostaria de abandonar as coisas que me são caras.

- Você tem filhos? – perguntou Miguelina.

- Não – disse eu.

- Sim, você tem. Mas eles são de outro tipo. Você sabe... Eu sou mãe. Meus três filhos têm mais de vinte anos. Eles são adultos. Já passaram por todos os rituais necessários para tornarem-se adultos. Sabe para quem eu os criei? Para mim? Não, é claro que não. Eles foram criados para a Vida. Para dar seqüência ao milagre. Você imagina um desapegar mais dramático que entregar seus pequenos para a Vida?

- Imagino que não.

- Definitivamente, não, Pyá. Porém, esse momento de entrega é muito mais doloroso se você os cria para você. Se você se considera dono dos seus filhos. Como dono dos seus filhos, você os

45

Page 46: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

superprotege, criando fortalezas das quais eles não ganham a própria liberdade. Sua missão é dar-lhes a chama da vida, não grilhões. Quando isto não acontece, quem está falando mais alto é seu medo egoísta de perda. Seu ego fala: “Ora, fui eu quem gerou e criou aqueles pequenos. Eles são meus!”

Não conseguia ter uma idéia vivencial daqueles sentimentos, mas acreditava poder compreendê-los. Ela prosseguiu:

- Você também tem medo de perder seus filhos. Seus filhos são o que você nutriu: os projetos de vida, as relações familiares, os amigos, os alunos, a reputação, os colegas de trabalho, os livros, as palestras, a fama. Agora, tenha uma coisa em mente: eles não são seus, no sentido de sua propriedade. Eles são capazes de viver sem você. Você não é importante para eles. Entendeu? Existe uma interdependência entre você e eles, mas você não é essencial para que eles sobrevivam. Tem noção da extensão disso?

- Miguelina, isso é tocante. A pequenez que você não quer assumir.

- Somente assumindo esta pequenez é que você pode fazer o trabalho essencial. É aí que você se torna grande. Deixe-me contar uma história. Você já ouviu falar dos Terena?

- Sim, é um povo nativo do Pantanal, no coração do continente, correto?

- Isto. Você sabia que eles não possuem pronomes possessivos na sua língua? Não existe “meu”, “teu“ ou “nosso“. Tem uma idéia do que isto significa? Não existe “minha mulher”, “meu marido” ou “seu cavalo”. Propriedade, em qualquer sentido, não faz sentido para os Terena.

Disse para ela que achava isso “muito doido”. Miguelina continuou dizendo que era verdade, e que naquele momento eu deveria pensar nos meus “filhos” como os Terena.

- Eles não são “seus” – ponderou ela.

- Entendo, Miguelina. Porém, uma coisa é compreender isso racionalmente. A outra são os próprios sentimentos. E os dos outros. Veja: se eu abandonar tudo o que tenho, as pessoas vão ficar decepcionadas, vão se sentir como que deixadas “na mão”. As pessoas que o amam ficarão magoadas. Você estará agindo mal.

46

Page 47: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Para fazer uma viagem como essa, não se pode ser bom amigo, bom filho, bom irmão. Veja você: preocupado com a auto-imagem. Quer ser considerado uma pessoa boa, por isso precisa ficar.

- Você precisa ser bom para aqueles que ama!

- Quem o ama de verdade quer o melhor para você. Quem o ama de verdade não quer que você seja bom. Quer que você seja livre!

- Como eu disse, Miguelina, falar é fácil. Sentir é outra coisa. Sentir tristeza, saudade, melancolia, arrependimento...

- Amigo Pyá: não tenha medo de sentir tristeza. A tristeza o faz crescer. O apego à tristeza é que o mata. Fique triste. Sinta com todo o coração a tristeza. Depois abra a porta e deixe-a sair. Ela não terá como ficar.

“Veja: falo isto para que você possa sentir uma brisa renovada na sua janela. Não é a verdade absoluta. É apenas uma maneira diferente de enxergar as coisas. Aceitar esta maneira é algo que só seu reizinho interno pode decidir. Converse com ele. Decida. E não se arrependa. Nós confiamos em você.”

Dito isto, Miguelina pegou meu rosto entre suas mãos e beijou-me a testa. Em seguida, saiu em direção à porta principal. Abanou-me através do vidro e desapareceu.

2

Fiquei por ali um pouco mais, observando o movimento que se desfazia, tomando vez por outra um café, um chá ou um refrigerante. Quando aproximou-se do meio-dia, estava um pouco sem fome. Subi ao quarto e sentei-me junto à janela, mirando parte do lago. Servi uma dose de uísque, comandei um pouco de música e mantive-me ali, a meditar.

Estava claramente ponderando. Fazendo um balanço de lucros e perdas de cada opção. Esta ponderação levava, ao final das contas, a um balanço dos meus medos mais interiores.

Medo do incerto. Medo da falta de domínio. Medo de expor-me. Medo da perda de controle. Medo da perda de poder. Medo de estar

47

Page 48: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

procedendo mal. Medo de estar errado. Medo de entrar num beco sem saída. Medo de não haver volta. Medo da falta de grana. Medo da solidão. Medo de sofrer. Medo de levar uma vida não-significativa. Medo de não ser “o cara” (que eu acho que sou). Medo de perder a identidade. Medo de não ser ninguém.

Coisas acumuladas dentro da fortaleza. Vejo na minha avaliação patrimonial como acumulei lixo. Avaeté tem razão. Estou gordo. Gordo de apegos que vão atrofiando-o. Imobilizando-o. Tornando-o inflexível.

Mas, e agora? Para deixar de ter medo, não basta saber da sua existência.

Ah, que droga! Dane-se! Chega dessa conversa chorosa. Chega de lamentos.

- Turn the music on.

- Album, open.

- Genre, sort.

- Rock and roll.

- Shuttle.

- Play.

“…I'm more afraid of living

Than I am scared to die...”

Guitarras aéreas. Baterias bombantes. Baixos a mil. Mais uma dose. Uhuuuu!

Velhos tempos de sonzeira. Velhos parceiros de trago. Tardes, noites e madrugadas. Ah, o gosto da juventude. Estrada, barraca, rango. Violão, danças célticas ao fogo. Viagens alucinantes na madrugada. Vaga-lumes em barracas infladas como balão. Monstros à solta.

“…What have you found? The same old fears.

Wish you were here…”

Ah, meu velho! Que saudades. Como eu queria te ter aqui, pacificando meu coração. Os velhos conselhos. Falar de filmes e

48

Page 49: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

discos. Assar churrasco. Comer feijão à beira de cânions esfumaçados.

- Stop.

- Find “Eric Clapton“.

- Play.

- Replay.

- Find “The Band”.

- Play forever.

“... Tchudjá, tchumdjum, tchudjá, tchumdjum, tchudjá, tchumdjum,”

Não! Não dá! Vamos parar com este enlouquecimento. Isto não está acontecendo. Ninguém me convidou para nada. Minha vida vai continuar igual a sempre. Vai seguir seu curso. Sem explicações. Sem elucubrações. Sem rompimentos. Fazer o que tem que ser feito. Resolvido.

- Turn the motor on.

- GPS on

- Route, open route list #6.

- Turn radio on.

- Seek, “metal station”.

- Go.

Planejar discurso a apresentar a Avaeté. Não deixar expressão de dúvida. Manter a voz calma. Passar a sensação de centramento. Decorar um argumento irrefutável. Desligar o motor. Trancar o carro. Nunca se sabe.

Escalar a montanha. Que frio! Tremo de frio! Sim, tremo de frio! Só pode ser o frio! Andar mais rápido. Correr. Aquecer-se. Olho para o céu e vejo um caminhão espacial. Alucinação? Não agora, não! Manter a calma. Inspirar. Um, dois, três, quatro. Expirar. Um, dois, três, quatro, cinco, seis. Baixar ritmo cardíaco. Ir com calma. Beleza.

- Jogue sua máscara no penhasco. – falou calmamente Avaeté.

- Ãhn?

49

Page 50: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Máscara – apontou o próprio rosto. – Penhasco abaixo.

- Não, Avaeté. Pare com isso. Você quer me desestabilizar. Isto eu não vou permitir.

- Jogue. Jogue o personagem montado fora. Aqui não é um palco. Somos só você e eu. Não há platéia. Não há direção. Não há roteiro. Não é preciso máscara. Não é preciso personagem.

- Não há máscara nem personagem.

- Tipo durão? É você mesmo que está aí?

- Vá se danar, Avaeté. Você veio até aqui para me tirar dos trilhos. Dos trilhos de uma vida com propósito?

- Na vida não há que se ter propósito. Uma vez que não haja, só aí o propósito é útil. Na vida você tem que viver fundo aquilo que você está aqui para viver. Isto é tudo.

- Mas eu levo uma vida honesta, céus! Eu vou fundo! Você quer me confundir. Decidiu me trazer para cá para me confundir!

- Não. Foi você que veio. Você que acha que tem que mudar. Você que acha que está confuso. Você que está inquieto. Sua voz interior que lhe diz que há algo errado.

Droga! Chutei várias pedras penhasco abaixo. Uma, duas, três, droga! Aaaaaaahhhhhh! Gritei bem alto. Perito Moreno deve ter escutado. Sentei-me. Longe daquele demônio.

3

Observava o resto de sol emitindo raios por baixo das nuvens. Sem saída, a não ser pedindo ajuda. Onde está você, meu velho? Um sinal. Envie-me um sinal qualquer. Se não houver um, desço e deixo esse índio aqui. Deixo esta cidade e pronto. Nunca mais pensar no assunto. Um relâmpago, um trovão, uma voz do nada, qualquer coisa improvável.

Estava sentado junto à beira do penhasco no mesmo lugar onde já estivera nas noites passadas. Havia uma imensidão à minha frente. Apoiava-me sobre meus dois braços estendidos para trás, com o peito aberto recebendo o vento noroeste, gelando minhas pernas. Tudo o que havia era aquele vento frio.

50

Page 51: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

De repente, senti um sopro leve em uma de minhas mãos estendidas. Uma brisa localizada, como a de insetos rondando. Insetos, não há muitos por aqui, mas isto não é um sinal. Puxei de leve a mão sem olhar. De novo. Era mais como uma baforada. Olhei para minha mão. Um cão! Ah, não! Um vira-lata. Magro. Assustou-se quando puxei repentinamente a mão. Mas logo voltou. Mas que diabo faz um cão aqui?

Olhei fixo para ele. Ele pôs-se em posição de querer brincar. Correu para um lado. Parou. Correu para o outro. Parou mais uma vez, agachado sobre as patas dianteiras. Saí correndo atrás dele. Fugiu. Escondeu-se. Retornou. Trouxe um graveto na boca. Tomei dele. Atirei longe. Foi. Buscou. Não me devolveu. Mágico!

- Rá, rá, rá, rá! – riu Avaeté de maneira incontida. Não se elocubre em excesso com a presença de um cão. Um cão não é um sinal. Afinal, para que foi feito um cachorro? Para “cachorrar”! Hi, hi, hi! Ele pertence à estância aí do pé do morro. Resolveu me acompanhar até aqui, hoje. Nada demais.

- Você tem uma ironia esquisita, Avaeté! Quando algo é mágico, você diz que é corriqueiro. Quando é corriqueiro, faz com que seja mágico. Não entendo você.

- Não fui feito para ser entendido. Sua triste mania de tentar entender. Não entenda. Viva!

- Avaeté, você não merece. Mas tomei este cão como um sinal, vindo de um local que eu confio. Das poucas coisas que aceito que cuidem de mim. Das poucas coisas irracionais que aceito na minha vida.

- É uma fresta, mas acho que podemos começar com ela. Precisa expandir essa fresta.

- Já sei, já sei. Aceitar que eu preciso aceitar ajuda. Aceitar o irracional.

- E muito mais. Aceitar o incerto. Aceitar que você não sabe. Aceitar a liberdade de não saber. Experimentar estar nas mãos dos deuses. No fio da navalha. Experimentar ser ninguém. Jogar-se no abismo. Conhecer as cavernas do centro da Terra. Seus monstros. E seus paraísos.

- E as pessoas que amo?

51

Page 52: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Elas o amam. Desejam o melhor para você. Como esse cachorro, que o ama. Não precisam de você. Você não é indispensável. Apenas amam você. Um dia você morreria de qualquer forma. Um dia voltará, contará as aventuras e festejarão como nunca o grande milagre do viver.

Fiquei caminhando com as mãos nos bolsos e os olhos na abóboda celeste acima de mim. Caminhei para disfarçar minha aflição e meus tremores. Estava ali, diante do maior amigo que poderia ter nesta vida, a ponto de dizer-lhe sim ou não. A ponto de partir o coração de alguém com uma resposta ou outra. E a ponto de fazer uma decisão radical que mudaria para sempre o curso.

4

- Muito bem. Quando partimos? – perguntei num impulso.

Cheguei a ter uma vertigem. Não acreditei que tinha realmente dito aquilo. Acho que meu cérebro encheu-se de vários químicos com nomes que terminam com “-mina”. Agachei o tronco, pus minhas mãos sobre os joelhos e procurei respirar mais fundo. Não funcionou, meu corpo pendia para um lado e outro e então me sentei. O cão lambeu minha mão direita, latiu duas vezes e abanou o rabo.

- Estou orgulhoso de você, Pyá. Passou num teste difícil, talvez o mais difícil, dado seu despreparo. Não há problema, você vai se preparar para uma nova vida.

- Não sabia que teria testes para cumprir.

- Não são testes como os que você passa para seus alunos. Seus alunos têm que aprender sem prazer para depois serem testados com temor de ser reprovados. Não é nada disso. São muito mais que isso. São provas de libertação. A aprendizagem é a prova. Você não precisa ser testado. A liberdade é sua medida de auto-aprovação.

- Entendo. Atemorizante, mas instigante. Quem sabe um dia posso voltar e criar um sistema de ensino para meus alunos que seja assim.

- Seria a glória – sentenciou Avaeté.

- Ok. E para essa viagem-aprendizado, o que teremos que levar?

52

Page 53: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Comecei a imaginar a necessidade de conseguir vários materiais de viagem e acampamento. Pensei numa mochila grande o suficiente para levar roupas, suprimentos, equipamentos, medicamentos, barracas, pertences pessoais, livros e guias. É, teria que ser uma mochila grande, mais uma bolsa para caber tudo.

- Tudo o que você precisa já está entre seu cabelo e a planta de seus pés. Quanto ao adicional, coloque tudo o que conseguir ou desejar numa pequena mochila de trinta litros – orientou Avaeté.

- Mas isso é impossível, Avaeté! Não sobreviveremos mais de uma semana com suprimentos de uma mochila de trinta litros!

- Não viveremos do que você carrega nas costas. A Vida nos suprirá do que precisamos.

- Mas como teremos certeza de achar o que precisamos pelo caminho? A menos que tenhamos muito dinheiro...

- Ah, as certezas. A viagem que faremos não precisa de muito dinheiro nem de muito suprimento. Lembra que eu falei que seria uma viagem de libertação. Como você quer se libertar carregando o que mais o aprisiona?

- Não entendo como isso pode ser possível.

- Não entenda, apenas confie. Olhe para mim. Tenho cara de principiante no assunto?

Como poderia ter esquecido isto? Avaeté é um homem vivido. Tem marcas que denunciam o tipo de vida que leva. Seria capaz de viver em condições muito adversas. E ainda, por cima disso tudo, deve ter amigos por vários lugares. Deve ter amigos muito legais, assim como Pedro Ruca e Miguelina Toledo. Gente muito boa.

- A vida na estrada requer leveza, Pyá. Se você não está leve, só sobram duas opções: ou você morre, ou você se estabelece.

“Deixe-me contar-lhe uma coisa. A vida existente nas frestas do mundo é muito rica. Rica de alimentos para o corpo, rica de alimentos para a alma e rica em vida. Os que estão nas bordas da transformação não são poucos, Pyá. Se você prestar bem atenção, verá milhares de seres, senão milhões, vivendo nas mãos dos deuses. E eles escrevem livros, estão em comunidades reais e virtuais, e podem ser encontrados facilmente. É só saber procurá-los. Seres caminhantes de várias espécies, viajantes em tempo integral,

53

Page 54: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

nômades por iniciativa própria ou por necessidade de sobrevivência, mambembes, voluntários e grupos tribais nas mais diversas formas. E também fazem parte deste mundo seres humanos estabelecidos que ajudam os andarilhos. Você visitou um restaurante na cidade que poucos conheciam, certo? Foi lá com Pedro. Pois lá é lugar de gente que ajuda os andarilhos deste mundo. Foi barato comer lá, não foi? Mesmo se você não tivesse dinheiro, haveria como comer em troca de algum favor.”

- Nunca prestei atenção, Avaeté. Acho que sempre andei em outra freqüência.

- Desligado, na verdade. Não importa, agora você vai ligar seu rádio. Lembre-se: como não queremos morrer nem nos estabelecer, você levará pouca coisa consigo.

- Ok. Mas existe algo essencial? Algo que não pode ser esquecido? – indaguei, pegando rapidamente meu caderno de notas digital.

- Sim. Há duas coisas essenciais.

- Estou pronto para anotar.

5

- A primeira coisa importante que você deve levar consigo é sua língua.

- Ãhn? – resmunguei, boquiaberto.

- Sua língua. Não sua língua física. Estou querendo dizer sua linguagem. Chamamos de avanhe’em. Língua de gente.

- Mas uma linguagem é algo intrínseco a todos nós, Avaeté. Eu não precisaria lembrar de pegá-la e carregá-la. Nós somos feitos de linguagem, assim como de carne e osso. Você não precisaria me lembrar de separar meus ossos para viagem, correto? – ironizei, esboçando um sorriso de canto de boca.

- Quer bancar o engraçadinho, mas por hora isto é prerrogativa minha.

- Ok, Avaeté. Desculpe. Prossiga – disse, sem deixar o ar “engraçadinho”.

54

Page 55: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- A resposta é sim e não, Pyá. Há certas coisas na sua cultura que são tão intrínsecas que vocês sequer estão cientes da sua influência. A linguagem é uma das mais importantes.

- Por que, Avaeté?

- É um dos substratos mais fundamentais de uma cultura. Vou dar alguns exemplos. Começarei pelo meu povo.

- Estou prestando atenção.

- Você sabia que até termos contato com os não-nativos, nós, os Guarani, não tínhamos uma palavra para o verbo “mandar”? Para nós, não existe sentido no mandar. Não existe a noção. Um índio acharia muito estranho outro índio dando ordens. Só viemos a ter noção do que isto significava no contato com juruakuery, com os brancos. Por isso, hoje usamos emprestado esse termo da sua língua.

- Como pode isso, Avaeté? Vocês não têm hierarquia? Não existem pessoas que dizem a outras o que fazer?

- Podemos dizer que sim, mas as coisas não eram feitas através de ordens. Mandar, na sua língua, vem do latim manus, que significa “mão”. Manda quem tem o poder nas mãos, seja por força das armas ou do conhecimento.

- Mas os índios também possuem armas e conhecimento, não é mesmo?

- Sim, mas a vida tem seu rumo e seu fluir pela força da nossa tradição, dos nossos costumes, que seguem os princípios da Vida. Este é o poder. É de acordo com isto que fazemos as coisas.

- Entendo. É por isso que a escravidão significava a morte para os índios. Uma violência que ia contra os princípios da Vida. Melhor deixar-se morrer...

- Deixar-se levar pela morte era o único caminho que restava para encontrar a terra sem males. Mas a escravidão dos índios é uma história que não nos interessa no momento. Entendeu? – perguntou Avaeté.

- Entendi. Mas creio que preciso de mais alguns exemplos para entender o quanto a língua influencia uma cultura.

- Você lembra que Miguelina falou-lhe sobre os Terena?

55

Page 56: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Claro. Surpreendeu-me saber que eles não possuem pronomes possessivos na sua língua.

- Pois é. Isto significa que não existe posse. Pelo menos não no sentido de propriedade como a temos. A propriedade é um conceito muito novo na história humana e remete aos primeiros agricultores sedentários estabelecidos cerca de dez mil anos atrás. No caso deste continente, é um conceito de pouco mais de meio milênio.

“Os nativos americanos, de uma forma geral, não são donos de suas terras. São como formigas ou cobras ou marmotas ou ursos: vivem num território, mas não são seus proprietários.”

- Entendo. Fale-me de outros exemplos dos povos nativos. É um assunto que me fascina. Novos modos de ver o mundo...

- O ponto relevante é o seguinte: os “civilizados” têm a noção de que a linguagem é feita apenas para transmitir idéias. Mas a linguagem faz mais que isto. Ela cria idéias. Cria visões. E, por isso, cria realidades. A linguagem estabelece maneiras de olhar para o mundo. Veja, por exemplo, uma árvore. O que é uma árvore para você, Pyá.

- Devo falar como um ecoengenheiro ou como pessoa comum?

- Deve falar como a maioria entende o que seja uma árvore. Não desejo uma descrição técnica. Dê-me uma descrição a partir de sua intuição de “civilizado”.

- Bem, Avaeté, vou tentar ser o mais intuitivo possível. Uma árvore é um vegetal que possui tronco com ramificações superiores como galhos, folhas, frutos e flores, além de ramificações inferiores como raízes.

- Prossiga.

- Serve para oferecer frutos para alimentação animal, fornecer sombra ao solo e sustentação contra erosão. Não é uma descrição completa, mas creio que satisfatória.

- Para nossos fins, sim. Veja como você vê uma árvore. Uma estrutura que é subdividida em partes e que possui funções. Aliás, se eu pedisse para descrever uma cadeira, um violino ou um coelho, assim você o faria, certo?

- É verdade.

56

Page 57: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- É assim que vocês vêm o mundo, Pyá. Não é bom nem mau, apenas é. Sua língua foi desenvolvida assim. Uma língua que descreve, em sua maioria, os objetos. Agora veja outra maneira. Sabe como chamamos árvore?

- Diga-me, Avaeté.

- Yvyrã. Futura terra. Yvy quer dizer “terra”. Rã, “o que será”, “o futuro”. Uma visão processual. Árvore é o que será terra. Que será árvore. Um processo sem fim. Para vocês, todos os objetos têm fim. Uma árvore morre. Fim. Para nós, fim é recomeço. Terra, árvore, terra. Infinitamente.

- Puxa! Vejo como isso tem uma ligação com o sagrado, Avaeté. Vocês enxergam tudo unido por processos infinitos e vocês fazendo parte de tudo isto...

- ... Que é a Vida. Por força da nossa linguagem e cultura.

“Meu caro Pyá, a experiência do divino, do sagrado, está no dia-a-dia do meu povo, de uma maneira muito direta na caça, na coleta, no cultivo, na tradição oral. Você esqueceu isto, pois dividiu e subdividiu o seu mundo, criando intermediários para auxiliá-lo na tarefa de conhecê-lo e controlá-lo. Hoje, vocês estão desconectados da Vida porque quem faz as coisas por vocês são as máquinas e os sistemas que vocês criaram. As máquinas e os sistemas são ruins? Não. É como a tecnologia. O deixarão em apuros somente enquanto você estiver desconectado.”

- Entendi, você já disse isso.

- Pois muito bem. Agora precisa experienciar isto. E o fará começando pelo que tem de mais fundamental: sua língua. Você vai experienciar novas formas de entender o mundo através de outras línguas que estão por aí no mundo. Talvez até mesmo experienciemos novas línguas, línguas que nem mesmo existem. Para finalizar: sabe que palavra usamos para designar “alma”?

- Imagino algo surpreendente.

- Para você, sim. Nhe’em. A mesma palavra para “linguagem”. O espírito de um povo começa pela sua língua.

- Isso é realmente profundo, Avaeté. Estou entendendo a importância. Acha adequado que eu leve um dicionário etimológico na nossa viagem? Você sabe, não estou acostumado a compreender

57

Page 58: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

as origens das palavras da minha língua. Não vai pesar. Está dentro do meu caderno digital.

- Para mim, está ótimo.

- E agora, a segunda coisa a levar na viagem?

6

Ainda refletia sobre como sua própria língua é capaz de mediar seu interior e o mundo. A visão de uma pessoa, e de todo um povo, em relação à sociedade, à natureza e ao transcendente. Já tinha ouvido falar que na Ásia Oriental as pessoas se comunicam por línguas visuais que dão uma visão fluída ao mundo, mas nunca havia tomado contato. Era uma idéia abstrata para mim. Agora isto estava ficando mais concreto, através dos ensinamentos de Avaeté...

- A duração da nossa viagem não será medida em “luas”. É mais adequado dizer que serão “estações”. Neste tempo, visitaremos muitos povos amigos, mas talvez encontremos outros não tão amigos. Com uns ou outros, aprenderemos muito.

- Entendo, Avaeté. Já estou preparado (pelo menos mentalmente) para passar meses nesta aventura. Não sabe como isto me atemoriza cada vez que verbalizo.

- Quanto mais experiência, maior aprendizagem. Aprender, do latim prendère, significa “tomar, prender, atingir, apreender, compreender”. Você atinge e é atingido por aquilo que aprende. Suas entranhas se modificam. Você já não é mais o mesmo. Experiências transformadoras... Por isso, a segunda coisa importante a levar...

Fez uma pausa para verificar se eu estava prestando atenção e anotando e continuou:

- ... É a abertura para aprender.

- Mas Avaeté, isso eu já tenho. Sou um estudante voraz!

- Não estou certo disto. Lembra que eu falei que você e seus semelhantes estão isolados? Se você está isolado, você não aprende. Você só aprende quando faz parte. Só fará parte se estiver aberto. É isto. Você precisa estar aberto. Aprender é daquelas coisas sagradas que a Vida tem a nos oferecer. Quem aprende com abertura da alma é livre e feliz. Só quem é livre pode aprender profundamente.

58

Page 59: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Pronto. Está escrito. Tentarei me lembrar. Será assim tão difícil?

- Seus velhos hábitos e conceitos lutarão para sobreviver. Será outro teste. Se estiver livre deles, poderá aproveitar e ser feliz.

- Ok, Avaeté. Estarei alerta. E agora, uma pergunta importante para mim. Qual será nosso roteiro?

- Eu não tenho noção – disse Avaeté, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

- Como assim? Viajaremos meses e você não sabe aonde iremos?

- Não tenho noção. Na hora saberemos.

- Assim não é possível, Avaeté. Você precisa dizer onde andaremos, se será frio ou quente, seco ou chuvoso. Precisamos saber onde pisaremos.

- Seus velhos hábitos falando alto. Já se esqueceu da abertura para aprender? Aprenderá a não ter planos.

- Mas não há um mínimo que precisamos saber? Temos que dar o primeiro passo em alguma direção!

- Tudo o que sabemos é que serão locais de poder. E sabemos por onde começaremos.

- E por onde começamos, Avaeté?

- Cruzando a cordilheira. Esteja pronto amanhã no momento do desaparecimento das sombras. Isto nos trará sorte. Encontre-me na saída norte da cidade.

Que loucura! Terei que providenciar tudo até o meio dia! Não vai dar tempo de fazer tudo. Ainda não acredito que esteja fazendo isto...

59

Page 60: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Quatro

60

Page 61: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Tentei providenciar tudo o que fosse necessário e possível para poder me entregar àquela viagem maluca. Antes de dormir, procurei fazer uma lista do que seria preciso fazer e me vi louco. Imagine só: encaminhar projetos em andamento, providenciar substitutos para minhas aulas e orientações, avisar profissionais que dependiam de algum tipo de trabalho meu, providenciar andamentos burocráticos e legais para contratos em vigor, avisar os amigos, avisar os familiares, deixar alguém autorizado a cuidar das minhas questões profissionais, deixar alguém autorizado a cuidar das minhas questões pessoais, encaminhar licença junto à universidade. Isto só com o que eu me lembrei. Que confusão. E se eu estiver esquecendo algo importante?

Fiz o que podia aproveitando-me da interatividade tecnológica. Enviei mensagens e processos eletrônicos para tudo o que foi possível. Conversei em tempo real com aqueles que precisava. Deixei Ângelo e Márjorie responsáveis por tudo o que era possível. Bons meninos. Saberão se virar. E mais: crescerão com minha ausência. Para algo deve servir toda esta loucura. O maior problema era explicar. Ninguém entenderia. Ninguém entendeu. Nem eu. Procurei várias maneiras. Sempre que possível, apresentei as menos traumáticas e entristecedoras explicações. Tentei racionalizar a minha decisão. Demonstrei preocupação para com os outros. Não funcionou muito. Talvez fosse melhor a verdade mais nua e crua. Sem máscaras. Talvez fosse mais crível. Sem personagens. Acho que seria o que Avaeté recomendaria. Bem, não tenho sua sabedoria.

Separei a mochila. Ela estava ridiculamente incompleta. Enviei para casa meus pertences pelo correio. Cancelei meus vôos de volta e dei check out no hotel.

Havia dois sentimentos concorrentes em meu coração. O primeiro era de um aperto, um machucamento em forma de pressão. Era uma sensação de perda misturada com saudades por antecipação. Algo sentido numa despedida. Por outro lado, sentia uma leveza. Como um esvaziar das preocupações e responsabilidades. Uma experiência de liberdade. Andava pela rua transmitindo isto. Leve e triste. Pés no ar, lágrimas no chão. Parece que tudo isto é natural. Quando se deixa, se deixa o que há de bom e o que há de ruim. Em quase tudo na vida, sentimentos controversos.

61

Page 62: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Encontrei Avaeté, mas ele não estava sozinho. Com ele encontravam-se Miguelina e o casal companheiros de Pedro Ruca. Estavam ao lado de uma antiga van. Foi uma surpresa:

- Avaeté! O que os amigos de Pedro fazem aqui?

- O que você acha? – perguntou sorrindo.

- Sei lá! Vieram se despedir?

- Claro que não! Você está vendo este carro?

- Sim. Pertence a eles?

- Claro.

- Eles irão conosco? Também farão a nossa viagem? – perguntei eu.

- Não. Nós é que vamos com eles. Seremos seus companheiros de viagem. Precisamos de uma carona. Acha que atravessaríamos a pé a cordilheira? – provocou Avaeté com seu tom sarcástico.

Para ser sincero, não pensei como o faríamos. Havia muitos detalhes que não imaginava como seriam. Eu estava nas mãos de Avaeté. Era um território completamente novo. Bem, isto é bom. Numa das primeiras vezes na vida madura não estava no controle, nem precisava fingir estar. Não seria esta a verdadeira liberdade?

- E Pedro? Ele não vai conosco?

- Pedro já está a caminho. Iremos ao seu encontro no final da jornada.

Acenei com a cabeça, transmitindo a idéia de que havia entendido. Atirei a mochila, primeiro no chão, para que perdesse o ar de “novinha em folha”, e depois no porta-malas. Dei um abraço firme e prolongado em Miguelina e em cada um dos demais. Todos entraram na van. Antes de entrar, olhei para o sul, em direção ao Cerro Huyliche, abri os braços e inspirei fundo. Procurei soltar o coração, o peito e o nó da garganta. Expirei e saltei para dentro.

62

Page 63: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

2

- Para onde, senhores? – indagou o motorista, fingindo não saber. – Sou Federico, muito prazer. Este condutor está às suas ordens – informou, dirigindo-se a mim e logo após a Avaeté.

- Para Mapucheland – ordenou Avaeté.

- Mapucheland? – repeti interrogativamente.

- Vamos para o povoado onde vivem Pedro e seus companheiros. Fica do outro lado da cordilheira, a centenas de quilômetros a noroeste de onde estamos. No coração da grande nação Mapuche. Levaremos alguns dias até lá.

Seria uma longa viagem. Federico deu a partida e engatou a primeira marcha. Saímos da cidade pela Ruta 11, nos primeiros de milhares de quilômetros de estrada de rípio. Eu estava sentado no lado esquerdo do carro, que possuía instrumentos de bordo muito simples. Era a última carreira de bancos, a mesma de Avaeté. Entre nós, sacolas e bolsas diversas. Olhei pela janela, encostei a cabeça no vidro e fiquei admirando o deserto e o lago. Foram pouco mais de vinte quilômetros até encontrarmos a Ruta 40, uma carretera mítica que seria a nossa companheira por longo tempo.

Viramos à esquerda. Não havia muita conversa entre os cinco ocupantes. Uma ou outra troca de idéias em mapudungun, a língua dos companheiros. Apontávamos então para o norte. Nesta direção, iríamos costeando a cordilheira pelo meio do deserto patagônico até que o rumo oeste indicasse o passo certo a cruzar a cadeia rochosa.

Federico pôs a rodar uma música muito suave e melódica, com notas new age misturadas com acordes e instrumentos norte-africanos. Isto levou minha mente a imaginar as paisagens que veríamos e as pessoas que encontraríamos. Aquele muro a oeste como que fantasiosamente escondia um mundo novo, inexplorado. Aprenderia coisas fantásticas do outro lado? Como reagiria? Que experiências me aguardavam?

Olhava o deserto infinito e a mente ia se esvaziando. Tão vazia e leve quanto o vôo dos condores sustentado pelo vento patagônico. Abri a janela e senti a liberdade vindo de encontro ao meu rosto. Sorvi com o nariz e a boca todo aquele ar. Deixei que meu cabelo ficasse esvoaçado. Precisava mais e mais daquilo. Coloquei a cabeça

63

Page 64: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

para fora da janela e gritei muito alto, esperando que as montanhas ouvissem: “Que beleeeeezaaaaa!”

Logo em seguida fechei a janela, um pouco envergonhado com meus novos amigos. Dignaram-se apenas a alguns cochichos e risadinhas contidas. Avaeté sorria de canto de boca sem me olhar:

- Se alguém perguntar, direi que não o conheço! – exclamou ele.

Alguns quilômetros mais à frente e já não víamos mais o Lago Argentino. Acho que aí surgiu a verdadeira sensação de viagem. Daqui por diante, não haveria mais nada familiar. Havia passado alguns dias na companhia daquele lago, e agora não estava mais à vista.

A estrada segue junto ao Rio La Leona, com seu azul característico. Avistam-se ao longo do rio algumas raras estâncias e um ou outro hotel. A paisagem é de vegetação rasteira e dourada. A estrada segue em linha reta na direção norte, onde se encontra o Lago Viedma. Próximo a ele, cruzamos o Rio La Leona na direção nordeste, costeando-o, deixando para trás também o acesso ao Monte El Chaltén. Visando um pouco de distração, fizemos uso dos nossos pensamentos e da tentativa de iniciar alguma conversa. Diante do autocentramento da minha condição, quem começa é Miguelina:

- Os povos patagônicos nativos deste lado da cordilheira são os Tehuelche. Logo mais ao norte e principalmente a oeste da cadeia de montanhas encontraremos os Mapuche. A língua dominante destas regiões é o mapudungun. “Che” significa gente. “Mapu”, terra. Gente da terra. Já os Tehuelche são a “gente brava”. Você sabia que os habitantes desta terra deram muito trabalho a todo tipo de colonizador? – perguntou Miguelina, chamando minha atenção.

- Desculpe por minha desinformação a respeito dos Mapuche. Eu realmente não conheço muito do seu povo. Por favor, prossiga – estimulei.

Avaeté ressaltou:

- Os Mapuche resistiram bravamente ao domínio de várias expedições de conquistadores. Entretanto, quanto maior a força de resistência, mais violento o contra-ataque. Depois de décadas de confrontos, os Mapuche foram obrigados a recolher-se a reduções

64

Page 65: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

durante o Século XIX para dar lugar aos colonos europeus. Miguelina prosseguiu:

- A batalha para preservar o corpo e a alma do meu povo é constante. Infelizmente, isto cria a noção que somos povos guerreiros e violentos. Não é verdade. Não vivemos em guerra. Somos povos felizes que vivem a vida, os rituais e o dia-a-dia na sua plenitude.

Eu disse que ansiava por conhecê-los e reencontrar Pedro Ruca. Adicionei que me interessava por compreender as lutas que os Mapuche travam hoje com os negócios.

- Nós não lutamos contra os negócios. Lutamos para sobreviver. Nossa batalha não é a favor ou contra uma bandeira, mas pela vida. A alma Mapuche e as almas de muitos outros povos são a alma nativa. Se nos matarem, matarão a alma nativa. Se nos matarem, matarão nossa terra. Assim como se matarem nossa terra, nos matarão – falou Miguelina com um tom de voz sereno e firme.

Encantava-me essa visão que Miguelina expressava. Nela, você não aniquila seu adversário. Não pode matá-lo. Você luta para permanecer tecendo a teia da vida. E não impede que os outros o façam.

Isto também afasta a crença ingênua do bom selvagem, pensei. Os povos nativos não são “bonzinhos”, no sentido que nos acostumamos a dividir o mundo, os bons e os maus. É uma noção equivocada. Entre os nativos, por exemplo, guerras não é algo incomum. Só que são guerras de afirmação integrativa, não de domínio exclusivo ou de extermínio. A diversidade, que é o fundamento da teia, é mantida.

Rodamos mais um bocado. Não tardou a aproximação ao Lago Cardiel. Este lago possui cor turquesa e praias circundantes estriadas. Em plena Patagônia é surpreendente encontrar um lago cheio de peixes como este. Paramos para conversar um pouco com pescadores e obter alguns peixes para o jantar. Já estava chegando o final da tarde e era hora de preparar-se para a noite.

Não foi preciso armar barracas. Apesar de um pouco fria, a noite não impunha maior rigor. Por isso decidiram-se que alguns dormiriam na van, ao passo que outros ficariam ao relento. A outra moça companheira de viagem, mais reservada, foi a última com quem tive o prazer de trocar algumas palavras:

65

Page 66: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Beti Mestiza, encantada – estendeu-me sua mão morena, apresentando-se afinal. – Mas me chame apenas Mestiza. Sua nobre cozinheira. Que tal ajudar-me a preparar estes peixes?

Apanhei uma faca bastante afiada que me alcançara e comecei a trabalhar sob sua orientação. Faríamos os peixes assados, de modo que precisávamos limpá-los e temperá-los. Ainda havia um pouco de luz proveniente do poente em seu tom alaranjado, ao passo que já notávamos um azul-escuro para o lado do nascente.

- O céu azul é onde moram nossos antepassados. É o país azul. Jamais nos esquecemos deles. Sua alma está em contato diário com nossa alma através do portal azul do céu – esclareceu Mestiza.

Não pude deixar de notar a constância deste contato. Você olha para o céu e sente seus antepassados suportando-o. É reconfortante. Você e sua história são um. O tempo todo.

Exatamente como prenunciara Avaeté, eu estava começando a experimentar a maneira de outros povos enxergarem a vida. Não posso deixar de olhar para minhas mãos alvas e macias como um sinal de isolamento. Nunca preciso limpar um peixe. Nunca preciso cozinhá-lo. Raramente lembro que tenho antepassados.

Comemos em um sereno clima de cumplicidade por esta primeira tarde juntos e pelo compartilhar da estrada e da comida. O som da van agora tocava alguns ritmos sul-americanos que não conseguia distinguir, assim como tons ritmados que imaginei serem de música do povo de Miguelina, Federico e Mestiza. Descansávamos recostados em pedras e no próprio automóvel, quando Miguelina tratou de atualizar-me das notícias:

- Nas últimas décadas, temos tentado retomar as terras onde os nossos ancestrais viveram. Na maioria das vezes é uma tomada apenas simbólica, pois não temos sua posse legal. Por isso, freqüentemente, alguns dos nossos irmãos são presos. Porém, hoje, nossa maior fonte de preocupação é com negócios que se estabelecem e impactam de diversas maneiras destrutivas a nossa sobrevivência – ponderou.

“Negócios como os de barragens, florestais e mineiros tomam territórios fundamentais das nossas comunidades. A maioria destes negócios possui poder de influência sobre políticos e governos. Por isso, muitas vezes, nossos irmãos recorrem a meios violentos, o que nem sempre é desejável, pois isto provoca uma escalada. Por outro

66

Page 67: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

lado, nós, das comunidades do Conguillío, buscamos meios políticos pacíficos, como o debate no colóquio de El Calafate.”

- Apesar de certa descrença com relação ao que ocorreu naquele evento, Miguelina, admiro sua fé em procurar mudar o estado das coisas por meios menos ortodoxos – comentei.

Ao terminar o jantar tratei de recolher os pratos para lavá-los. A conversa continuou:

- Temos alguns líderes muito hábeis na interlocução com empresários e gerentes “ligados” num mundo mais saudável e humano. Com estes é possível conversar frente a frente, criar algum tipo de empatia e compaixão mútua. A maioria dos outros líderes empresariais e políticos com quem tentamos dialogar escondem-se atrás de máquinas dos mais variados tipos: sistemas políticos e legais, burocracias arcaicas ou altamente sistematizadas, aparatos policiais ou de guerra, protocolos, acordos e documentos diversos. Como você sabe, não é possível argumentar com máquinas. Nem mesmo ativar qualquer tipo de sentimento de sistemas impessoais.

“É verdade” – pensei, enquanto lavava a louça. Neste nosso mundo cada vez mais sistematizado e maquinizado, não há mesmo muito espaço para um bom diálogo. E silenciamos. “O que eu poderia fazer para ajudar?” – meditei.

Encerrado o serviço, sentamo-nos um pouco. Falamos sobre avanços e retrocessos da luta Mapuche e de outros povos, até rarear um pouco as intervenções de cada um e surgir apenas o silêncio da noite. Cada um puxou a coberta e caiu no sono.

3

O dia amanheceu com algumas poucas nuvens. Dormi um sono só por toda a noite. Os primeiros raios motivaram um abrir de olhos definitivo. Em meia hora todos já estavam levantados. Avaeté preparou mate e ofereceu a cada um. É interessante como esta bebida quente traz um bem-estar quando tomada assim, em jejum.

- Tomamos mate para facilitar a digestão, nos aquecer e nos unir – explicou Avaeté.

Federico e Mestiza colocaram sobre uma toalha estendida no chão o que havia disponível para o desjejum: café, pão amassado,

67

Page 68: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

empanadas, tunas. Comemos e conversamos brevemente, o suficiente para perceber que nosso motorista era o mais bem humorado da turma. Conversava alegremente, fazia brincadeiras vez por outra e ironizava suavemente situações. Sem contrastar demasiadamente com o estilo araucano mais reservado. Isto era bom: deixava a todos mais à vontade naquele reinício de jornada.

Federico avisou que seria um dia “puxado”, pois sairíamos bastante cedo, rodaríamos praticamente o dia todo e só pararíamos à noite, o mais próximo possível de Esquel, mais de setecentos quilômetros ao norte. Pelas suas explicações, desejava estar próximo de um centro menos isolado para qualquer emergência.

- Não é bom ficar próximo de aglomerados urbanos. Eles cheiram mal. Mas quando você está em apuros, o que mais deseja é um pouco de fedor – completou Federico com uma boa risada.

Apesar de seu carinho com a van, nosso motorista demonstrava vez ou outra inconformidade com algum comportamento do carro. Não via tal preocupação nos demais, de modo que procurei relaxar.

De fato foi um dia duro, ainda que belo. As paisagens da Ruta 40 mantinham-se invariáveis. Deserto, rochas e vegetação rasteira dourada eram entremeadas eventualmente por estâncias com casas protegidas do vento por álamos. Vez por outra se notavam montanhas em gradações de cores, como se fossem a paleta de um pintor. O céu não estava completamente azul, pois algumas formações de nuvens nos davam algum refresco do sol. Mesmo assim, a grandiosidade daqueles coloridos não era diminuída em nada.

Alguns povoados também iam ficando pelo caminho. Gente morena e gente branca entretecida em pueblos e cidades por onde, décadas atrás, antigas estradas de ferro cruzavam. As estações permanecem lá. Relembrando os moradores dos tempos idos.

Rios, guanacos, lagunas, arbustos iam desfilando pela janela do carro. Procurei ver como meus companheiros reagiam à paisagem. Miguelina e Mestiza olhavam fixamente cada elemento em silêncio. Avaeté mantinha uma posição ereta, como que a observar a direção que seguíamos. Já Federico, apesar de bom motorista que era, não tinha os olhos apenas fixos na estrada. Fazia um rastrear com a cabeça e os olhos, alternadamente para a direita e para esquerda, como a escanear algo que lhe interessasse. Perguntei o que fazia:

68

Page 69: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Coelhos. Estou com vontade de comer coelhos. Na falta, pode ser nhandu – disse, sem interromper sua busca. Procurava por algo para caçar entre as moitas e tufos.

A estrada não tinha fim. Havia muito cascalho no seu leito, alguns perigosos pelo tamanho. O risco de um pneu estourado é permanente. Ainda bem que tínhamos dois estepes.

Não tardou para que Federico parasse o carro ao avistar uma lebre. Parou, desligou o carro, apanhou uma espingarda calibre .22 e lançou-se sorrateiramente por entre os tufos vegetais. Ficamos silenciosos até ouvir um pequeno estampido. Logo em seguida, Federico entrou no carro e disse:

- Precisamos mais um ou dois destes para o jantar. Será o banquete que ofereceremos a nosso amigo Pyá.

Confesso que aquela harmonia interior, aquela sensação de liberdade, só era quebrada por uma espécie de mal-estar. Não estava totalmente à vontade por não estar contribuindo de maneira importante para aquilo. Eu sentia uma sensação de ser hóspede, de estar atrapalhando algo. Quando você sente isto, fica ansioso para retribuir, para ajudar na mesma medida.

Paramos próximo às três da tarde para descansar e lanchar. Estávamos num posto de serviços de beira de estrada, num local improvável de haver um. Havia sanduíches, mas como o dia estava quente, achei que cairia bem um refrigerante. Ofereci-me para pagar, o que foi gentilmente aceito por todos. Aquele lanche caíra bem e os refrigerantes estavam bastante refrescantes. Assim que terminamos, alguns foram ao toalete. Prontifiquei-me a cobrir também os gastos com o combustível. Neste momento Avaeté chegou próximo e assentou:

- Todos ficarão felizes com suas gentilezas. Isto porque todos são igualmente gentis. Só que você precisa ter uma idéia clara do porquê faz esse tipo de gentilezas...

Fiquei um pouco contrariado com a frieza de Avaeté, mas, novamente, não havia motivo para argumentar. Poderia ter ficado mais magoado, irado ou sentindo-me injustiçado, mas não era o caso. Fazer gentilezas é bom, é claro. Faz bem a você, faz bem aos outros, o faz humano, parceiro, companheiro de empreitada. Mas pode haver motivos sob a superfície para seu ato gentil.

69

Page 70: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Alguns o fazem em avanço para ter algo que cobrar depois. Como uma garantia. Uma maneira de obter um “rabo preso”. Ou por medo da solidão. Sei lá. Não estou interessado nesta análise agora. No meu caso é diferente. Avaeté sabe. É que eu não gosto de “ficar devendo”.

Noto como soa estranho isto. Uma coisa meio absurda. Quando você verbaliza, a coisa toma outra dimensão. No seu íntimo, o que acontece é que você fica com um desconforto em ser ajudado. Você sente-se depreciado. Sabe por quê? Porque você próprio, inconscientemente, provoca depreciação quando ajuda. Você é quem ajuda. Você é quem está por cima. Você é que é o maioral. Um altruísmo egoísta. Ajuda os outros para inflar seu ego. Para confirmar ao mundo que é você quem dá as cartas. Quer ficar sempre no crédito. Nunca no débito. Nunca por baixo.

Avaeté pegou “na veia”. Um comportamento absurdo. É como se a vida fosse um balanço patrimonial. Débito, crédito. Linha final azul, você é o bacana. Abastado. Eficiente. Linha final vermelha, devedor. Necessitado. Deficiente. Avaeté completou:

- Na vida verdadeira, esse jogo é o fim, Pyá. A morte. Nenhuma comunidade saudável faz esse tipo de contabilidade. Isso leva a uma hierarquia dos favores completamente inócua. Ao isolamento dos balanços individualizados. À solidão, à falta de amor.

Fiquei imaginando pais e filhos acertando as contas. Uma coisa meio fria e sem sentido. Pedi a Avaeté que continuasse.

- Veja: a grande teia das comunidades vivas e humanas troca milhares de coisas em uma complexa rede. Por sua vez, cada uma dessas milhares de coisas é valorada por padrões também complexos. O que não serve para mim pode ser, e é, muito importante para outros seres. Já essa contabilidade tacanha é incapaz de avaliar esta complexidade. No final das coisas, há um enorme fluxo de amor entre todas estas comunidades que não cabe nesse tipo de balanço.

Tentei argumentar que era preciso objetivar e quantificar algumas coisas, exemplificando alguns dos fundamentos do sistema jurídico moderno, mas Avaeté manteve-se impassível.

- O amor é imensurável, Pyá. Não quantifique o sagrado. Você só fará depreciá-lo.

70

Page 71: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Mas você tem que ter uma medida do que é certo, Avaeté. Precisa ter noção daquilo que é justo e daquilo que não é! – tentei demonstrar.

- Contemple o insondável com a alma, Pyá. Não com a mente.

Fiquei em silêncio ao pular para meu banco no carro. Pus-me a refletir sobre o que disse Avaeté. O carro arrancou logo após ter sido abastecido. Neste ponto, dei-me conta de algo subjacente ao nosso diálogo e à minha visão de mundo. Raramente, na minha vida, fiz uso da palavra alma. Ouço-a com alguma freqüência, mas nunca a usei deliberadamente. Já me referi ao espírito. Mas nunca à alma. Seria algum preconceito religioso? Não cheguei a nenhuma conclusão imediata. Não precisaria, creio. Haveria muito tempo para isto.

4

Nossa segunda noite juntos se aproximava. Já era bem tarde quando paramos diante das luzes de Esquel. Estávamos em um cerro das cercanias, ainda há alguns quilômetros de distância. Todos saíram do carro e esticaram os músculos e articulações. Sem comandos, em poucos minutos havia fogueira e carne de lebre sendo assada. Federico só encontrou mais uma pelo caminho. Mas seria o suficiente.

As estrelas e uma lua nova faziam-nos companhia. Ainda tentava imaginar como a noção de alma me faria alguém melhor.

- Pyá, todo e qualquer povo nativo vive a vida conforme uma tradição – retomou Avaeté, num tom muito manso. – Infelizmente, as pessoas em geral têm uma idéia equivocada do que seja tradição. Pensam que é algo estático, coisa dos velhos. Como se os velhos buscassem uma maneira de engessar o mundo que deseja avançar.

- É isso mesmo que acontece, Avaeté. É um tremendo equívoco. As pessoas crêem que o tradicional é ultrapassado – concordou Miguelina.

Acenei com a cabeça admitindo também, ao mesmo tempo em que dava uma olhadela no dicionário:

- Vejam, pessoal – chamei a atenção. – Tradição tem menos a ver com regras estáticas e mais com transmissão, transferência. Tem origem na palavra latina tradère que significa “dar em mãos; entregar, confiar; transmitir, ensinar”.

71

Page 72: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Você entrega tudo o que é aprendido. Toda a sabedoria acumulada. Esta sabedoria é aprendida em toda e qualquer geração. E depois ela é confiada à próxima. Um patrimônio dinâmico. Para os Guarani é nhandereko – expôs Avaeté.

- Para os Mapuche, az mapu. Um patrimônio que não é só de conhecimento, mas de sabedoria. O patrimônio da alma de um povo – disse Miguelina.

Avaeté continuou:

- Como eu lhe disse, Pyá, essa é sua jornada de enriquecimento da alma. Você enriquecerá sua alma abrindo-se para outras almas. Seus ensinamentos e experiências já começaram, mas haverá coisas mais fortes do outro lado desta cordilheira.

Sentia que, de fato, eu já estava recebendo ensinamentos. Confessei que era um mundo muito novo para mim, mas que me esforçaria em estar aberto a ele. Avaeté me perguntou se via alguma convergência entre sua repreensão de hoje à tarde e o que acabara de explicar. Disse que sim. Que o que eu estava recebendo não era para ser considerado uma dívida, muito menos para ser paga economicamente. Falei que imaginava que os nossos companheiros e mesmo Avaeté faziam isto por amor e pela tradição.

- Por amor a você e por amor à tradição dos nossos povos, o que no fim é a mesma coisa – concluiu misteriosamente meu benfeitor.

Avaeté tinha a mania de concluir desta maneira seus diálogos, sem explicações. Deixa um mistério no ar para que você fique sondando. Tem que tentar achar as ligações. Pelo menos isto poderia ser feito em boa companhia. Neste caso, de uma lua nova.

O dia seguinte seria mais um dia cheio. O trecho entre Esquel e Zapala deveria ser feito o mais rapidamente possível se quiséssemos cruzar a cadeia antes do anoitecer. Seria preciso vencer estes cerca de quinhentos quilômetros em meio dia.

Acordamos às cinco horas da manhã. Meu corpo estava um pouco dolorido, mas Avaeté me sugeriu que descesse rapidamente parte do cerro e regressasse escalando, pois isto faria bem. Fiquei constrangido em fazê-lo, assim do nada, mas o fiz. Observando como estava fora de forma e ofegante, meus amigos riram um bocado. Acabei rindo também.

- Viu como fez bem? – disseram-me e continuaram a rir.

72

Page 73: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Reunimos tudo rapidamente logo após o desjejum. Reabastecemos a van, obtivemos alguns suprimentos frescos nas cercanias da cidade e regressamos a Ruta 40. Fazíamos uma parada a cada duas ou três horas para necessidades e para os cuidados do motorista com a van. Ultrapassamos Zapala por volta de uma da tarde. Deixamos a Ruta 40 para ingressar naquela que nos levaria ao Passo de Icalma, a 1.400 metros de altitude: a Ruta 13. Este passo não representa uma travessia muito radical para efeitos dos Andes. Além disso, como era verão, havia menor o risco de que a neve fechasse o passo.

A estrada sobe, às vezes serpenteia e tem seu percurso ao largo de rios. É linda, não só por estes detalhes, mas porque você vê crescer à sua frente aquela cadeia de montes brancos. Vez por outra, paramos somente para admirar a paisagem.

Nas proximidades do passo cruzamos por pequenos povoados. De repente, você nota que a paisagem mudou. À medida que fica para trás a paisagem patagônica desértica, ocorrer um aumento progressivo do verde da mata mais úmida.

Observamos também a mudança de humor de nosso condutor, Federico. Desde Zapala começava a dar sinais de insatisfação com o automóvel. Por algum motivo ele estava preocupado com nossa travessia das montanhas. Vez por outra havia uma parada, em que eu acreditava que era mais por motivação fisiológica, mas cujo propósito principal era para que Federico revisasse algum aparato mecânico. Por fim, todos foram notificados do problema. O eixo da roda traseira esquerda descolou-se do seu centro. De alguma maneira a suspensão não suportou o rípio e o pneu passou a raspar no pára-lama.

Estávamos no meio da tarde diante do Lago Aluminé, um lindo manancial de águas azul-transparentes, com o carro enguiçado. Uma perspectiva não muito alentadora nos afligia, já que poucos automóveis estavam cruzando a cordilheira naquele dia. Vimos poucos deles ao longo do caminho. Contávamos que talvez algum caminhão pudesse parar para nos ajudar ou nos fornecer uma carona, mas não parecíamos estar com sorte. Ainda restavam entre vinte e trinta quilômetros até o passo e nada de qualquer movimento.

Sem perspectivas imediatas, acabamos nos dispersando ao redor do ponto onde a van estragou. Dava para notar que o lago era usado como área de camping e de balneário. Havia uma mata não

73

Page 74: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

muito alta nem densa, mas observavam-se algumas espécies mais altas.

- São exemplares de pehuen. A nossa araucária. Começo a sentir o gostinho de casa – deliciou-se Mestiza.

Após uma hora de espera, Federico resolveu meter-se sob o carro para tentar algum tipo de solução. Os demais foram orientados a ficar com os olhos na estrada.

Perdidas as esperanças de ele próprio providenciar conserto, Federico informou que seria necessário buscar ajuda. Disse que não estávamos a mais de cinco quilômetros de Villa Pehuenia e que iria até lá a pé. De lá, seria necessária uma carona até o passo, onde carabineros poderiam ajudar. Comprometemo-nos a ficar por perto até seu retorno. Pegou agasalho e desapareceu na primeira curva da estrada.

Imaginamos que em menos de duas horas Federico não regressaria. Fomos à beira do lago molhar um pouco os pés, depois caminhamos pelos arredores. Encontramos algumas pessoas, caminhantes e moradores, e fomos informados que aquela operação poderia ser demorada. Voltamos para junto do carro e sentimos a noite aproximar-se. Apesar da beleza do lugar, começou a ficar um pouco aterrorizante permanecer isolado em meio à travessia da Cordilheira dos Andes. Vêm à sua mente histórias de acidentes, contadas em livros e filmes sobre o assunto. Será que teríamos que passar por alguma privação ou risco de sobrevivência?

Olhei para Avaeté e, por algum motivo que desconhecia, não parecia estar aterrorizado com as circunstâncias. Talvez já tivesse passado por situações deste tipo. Ou piores. Com o temor pela situação, eu não conseguia relaxar o suficiente para aproveitar a paisagem. As nuvens eram de tons laranja e vermelho muito vivos ao brilho daquele sol poente. Pareciam que estavam a incendiar-se. Além disso, dispúnhamos de poucos alimentos e água para uma permanência mais longa no local. Decidimos por um jantar frugal.

O retorno de Federico só aconteceu depois de muita espera, cerca de quatro horas e meia depois. Sentimos um certo alívio. Veio em uma caminhonete de carona com um senhor moreno, um mecânico de Cunco, uma localidade situada quilômetros adiante. Àquelas alturas, já estava um tanto frio pela caída da noite. O termômetro da van marcava um e meio grau centígrado. Um vento

74

Page 75: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

proveniente do lago deixava a sensação ainda mais fria. Morrer de frio não era uma boa perspectiva. Puxa vida, problemas logo no começo da viagem?! Seria isso algum tipo de prenúncio negro para a aventura? Tentei afastar estes pensamentos. Não poderia desistir tão cedo.

Tentávamos encontrar algum calor tomando chá quente. Federico e o mecânico puseram mãos à obra para providenciar alguma solução. Nem que fosse algo temporário, que suportasse pelo menos até uma mecânica mais próxima. Estavam com ferramentas e lanternas sob o carro, batendo, torcendo e gemendo.

Calculamos estar a cerca de cento e cinqüenta quilômetros do nosso destino, o povoado de Pikuche, à margem norte do Lago Conguillío. Até que a suspensão estivesse consertada, ficaríamos ali. Estava realmente frio, obrigando-nos a usar cobertores, fogo e ficar próximos para não congelar.

Apesar da determinação do mecânico e de Federico, estava ficando claro que permaneceríamos parados ali durante aquela noite. Em alguns momentos ajudávamos os trabalhadores, segurando lanternas, alcançando ferramentas e oferecendo chá e biscoitos. Batíamos os pés no chão, dançávamos ou corríamos, tudo numa tentativa quase desesperada de aquecer-se. Seria uma noite de cão. Dificilmente conseguiríamos dormir com aquele frio.

Nestas horas você deseja um banho e uma cama quentinhos. Melhor nem pensar. Miguelina recomendou que tentássemos dormir onde fosse mais abrigado do vento. Cada um buscou a acolhida de uma pedra ou uma árvore mais larga. Eu batia queixo. Os dedos das mãos estavam quase imóveis e os pés estavam insensíveis. Vez por outra o mecânico, portando uma garrafa de pisco, bebericava de seu aquecedor. Federico acompanhava-o. Pedi um trago para acalmar o frio e o nervosismo. Brrr! Argh!

Não havia possibilidade de dormir. Tremia como um louco. Estava tenebroso o passar das horas, até que senti o cutucar de Miguelina:

- Você está bem? Acho que ouvi você gemer um tanto alto.

- Acho que estou delirando pelo frio – desculpei-me. O vento uivava ao passar por entre as árvores e pelos cantos da van.

75

Page 76: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Teremos que fazer como na altitude. Vamos nos aquecer mais próximos em bivaque. Retire suas botas e usaremos nossa coberta juntos.

Deitamo-nos num local mais abrigado do vento. Entramos os dois para baixo das cobertas e Miguelina veio pelas minhas costas entrelaçando seus braços ao redor do meu corpo. Encostou seus pés junto aos meus e senti seu calor. Como podia estar com os pés quentes? Agarrei seus braços junto ao meu corpo e comecei a sentir desaparecer aos poucos aquela sensação mais gelada.

Felizmente, depois de algum tempo consegui cochilar. Em seguida acordei quando Miguelina virou-se. Também troquei de posição para aquecer o outro lado. Cochilei novamente. Agora um sono mais profundo. E um sonho.

Sonhei que eu era um lago. Um lago de vinho. Eu mesmo poderia me ver no lago. Minha silhueta era visível, projetada em relação à superfície. Possuía um cálice na mão. Servi o cálice com vinho do lago e apreciei-o. Olhava-o contra a luz, cheirava-o e sorvia-o. Era aromático e delicioso. E repetia.

Isto durou até que me percebi, no sonho, inflado pela bebida. Apesar de aumentado, sentia-me fraco. Pela fraqueza, comecei a submergir até desaparecer no lago. Acabei sonhando também outros sonhos, mas apenas lembrava-me daquele.

Acordamos com o chamamento de Federico. Haviam consertado o feixe de molas provisoriamente, o suficiente para levar-nos ao destino. Viva! Pelo menos iríamos sair daquele lugar congelante. Recolhemos tudo ao carro e seguimos caminho pela noite escura.

A van seguia a baixa velocidade. Passamos por luzes de povoados e estâncias aqui e ali e dormíamos um sono entrecortado. Pobre Federico. Dirigiu o dia inteiro, teve que consertar o carro e ainda continuava firme. Foram ainda algumas horas pela noite.

Pelas seis horas da manhã, com a primeira luz do dia, amanhecemos em uma nova paisagem. Estávamos em um vale muito mais verde, cheio de araucárias e de montanhas cônicas com o topo branco. O céu estava muito azul e completamente livre de nuvens. Paramos em um povoado chamado Melipeuco. Federico despediu-se do mecânico e agradeceu por ter nos acompanhado até aquele ponto. Ele seguiu para oeste e nós tomamos a direção norte.

76

Page 77: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Entramos em uma estrada também de rípio, muito linda. Mestiza avisou que estávamos próximos do nosso destino, talvez a uma ou uma hora e meia de Pikuche. Apontou o Vulcão Llaima à esquerda e logo a seguir a Laguna Quililo. Logo adiante, junto à estrada, a formosa Laguna Arco-Íris e, finalmente, a Laguna Conguillío.

A Laguna Conguillío tem um azul profundo que, da estrada, reflete os picos da Sierra Nevada. Paramos o carro próximo a uma praia. Federico nos disse que seria preciso seguir adiante a pé, pois a estrada exigiria demasiadamente da van. Era um caminho bastante mais difícil. Pegamos nossa bagagem e seguimos caminhando pela beira do lago. Àquela hora da manhã, a luz solar oferecia um contraste maravilhoso para as cores verde, azul e branca da paisagem. Apesar da beleza, o cansaço exigia alguns bocejos. Federico guiava o grupo, primeiro pela beirada do lago e depois ao longo da mata. Seguimos uma trilha que ascendia até um platô mais amplo, onde localizamos o povoado.

Havia pouco movimento. Entramos em silêncio. Mestiza combinou com Miguelina que nos encontraríamos à noite para o jantar. Federico e Mestiza nos abraçaram e seguiram por uma viela. Miguelina tomou a frente e guiou-nos até sua casa. Conversávamos pouco. O cansaço era visível.

A casa onde nos instalaríamos era de madeira, como a maioria das demais. Não era muito grande, mas aconchegante pela decoração andina. Eu e Avaeté fomos guiados até nosso quarto. Miguelina apontou duas camas cobertas com mantas. Disse que pertenceram a seus filhos. Deveríamos nos instalar ali e descansar o quanto desejássemos. Saiu, apresentou o local ao final do corredor onde ficava o banheiro e fechou a porta. A casa está bem aquecida. Será gostoso dormir novamente em uma cama.

Retiramos nossos calçados em silêncio. Cobri-me até as orelhas. Avaeté deitou e virou-se para o canto. Eu fiquei ainda acordado por alguns minutos curtindo o calor da cama. Lembrava-me do sonho.

- Avaeté, eu tive um sonho muito estranho.

- É mesmo? – disse em tom sonolento.

- Gostaria de contar-lhe.

- Não se preocupe. Haverá muito tempo.

- Temo esquecer-me.

77

Page 78: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Você não esquecerá. Se isto fosse ocorrer, já haveria esquecido. Conte-me mais tarde. Isto é maravilhoso, Pyá. Sonhos são portais para a alma.

E passou a ressonar logo em seguida. Resolvi também entregar-me ao sono.

5

Acordei várias horas depois. Notei que Avaeté ainda dormia. Notei também um som contínuo. Algo como um chiado. Era chuva! Há quanto tempo não ouvia o barulho da chuva. Agora vejo como foi reconfortante este sono. A chuva foi a protetora do nosso adormecer.

Fiquei curtindo aquela sensação até ouvir um bater na porta. Emiti um som abafado para que entrasse. A porta abriu-se. Era Pedro Ruca. Estava acompanhado de Miguelina e ambos estavam abraçados.

- Levantem-se, homens! Venham me abraçar! Que satisfação me dão ao estar em minha casa!

- Pedro, Pedrito. Aguarde que levantemos e tomemos um banho – disse Avaeté, regozijando-se também.

- Aguardo-os na sala. Venham tomar um pouco de chá ou chicha.

Tomamos um banho de lavar o corpo e a alma e fomos encontrar Pedro na sala. Estavam sentados ele e Miguelina. Mostravam-se carinhosos um com o outro no seu conversar. Abraçamo-nos demoradamente.

- Então, Pyá, aqui está você. Estamos muito felizes pela sua decisão e pela sua visita – cumprimentou Pedro.

- Acredite, apesar da loucura disso tudo, estou encantado com sua gente. Só tenho recebido manifestações carinhosas até agora. Até o tempo foi carinhoso mandando esta chuva! – comentei.

- Aqui há muita precipitação – esclareceu Miguelina. – A Araucanía é uma região úmida. Chove em mais da metade dos dias do ano.

78

Page 79: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Vocês não ficam entristecidos com tanta chuva? Numa região muito nublada ou chuvosa as pessoas tendem a ficar mais aborrecidas – questionei.

- Não! De maneira nenhuma, Pyá – esclareceu Pedro. – Através dela, unem-se o país azul, no céu, e o país verde, na terra. Uma conversa harmoniosa que é parte disso que você vê à sua volta. Sem ela, nada disso aconteceria, e nós não seríamos Mapuche. Somos Mapuche por causa da chuva. A chuva que, como dizem nossos poetas, é o sonho das águas.

Não podia deixar de notar o encaixe disto com a cosmovisão deste povo. Imaginei a ligação do seu espírito com os ciclos naturais. Quando você é parte de algo maior, sente o sagrado naquilo e em você. O sol e a chuva não são elementos separados que você torce para que apareçam na hora certa. Não são elementos funcionais. É você. Assim este povo foi feito. Desta chuva.

- A araucária, a mata, a neve, as lagoas, os Mapuche são todos feitos desta água. E vice-versa. E também a chicha. Bebam! – bradou Pedro.

Ficamos bebendo e conversando até o final da tarde. Pedro e Miguelina explicavam como era a natureza nesta região onde vive a nação Mapuche.

- Aqui há serras, grandes montes e vulcões com até 4.000 metros de altitude. Alguns deles são ativos e podemos ver derramamentos de lava recentes – apontou Pedro para a janela. – Em certas oportunidades, influenciam tão dramaticamente a paisagem que acabam criando ou destruindo rios, lagos e florestas.

“Como você pode notar, a árvore predominante nas florestas é a araucária. Colhemos seus pinhões para alimentação. Deles fazemos pratos das mais variadas formas. Também são comuns nesta região as lengas e os coigües.”

- Note também a beleza das flores. Veja aquelas que estão no vaso sobre a mesa. São añañucas – apontou Miguelina para as flores cônicas amarelo-alaranjadas.

Enquanto reconhecíamos a natureza à volta, a chuva mantinha-se constante lá fora. Fiquei pensando como levavam a vida numa região tão chuvosa. Como fariam para produzir alimentos e trabalhar.

79

Page 80: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Meus pensamentos foram interrompidos por um toc-toc-toc ligeiro vindo da mata. Girei o ouvido na direção do som.

- Pica-paus. O carpinteiro negro. Por aqui se encontram também animais, como o puma, (cada vez mais raro), o pudú (uma espécie de cervo) e um pequeno marsupial chamado llaca. Além de patos, encontrados nos rios e lagos. – completou Pedro. – Por sinal, hoje haverá pato para o jantar.

“Antigamente se comia mais carne de caça. Hoje, o clima, a vegetação e as águas da região estão sofrendo transformações que têm influenciado fauna e flora aqui das altitudes. Agora temos adotado técnicas mais flexíveis em uma combinação cíclica de agricultura minifundiária orgânica e piscicultura. Tecnologias sustentáveis têm permitido manter nosso povo vivo.”

- A luta do povo Mapuche – interpôs-se Avaeté – é uma luta de sobrevivência, Pyá. Isto está acontecendo com muitos dos povos que encontraremos pelo caminho. É uma luta que não deveria ser somente do povo A ou B, mas uma consciência mais ampla da comunidade humana.

- Compreendo, Avaeté. Se a diversidade é uma riqueza na comunidade da vida, não poderia ser diferente entre nós, humanos. Não estamos a salvo das leis da vida ecológica – disse eu, relembrando leituras que fiz na ecologia e antropologia.

- O valor dos povos nativos tem várias dimensões, mas uma em especial é importante para você e seus irmãos “civilizados”. Ali estão conhecimentos preciosos sobre formas alternativas de viver. Se sua forma de viver estiver em perigo, o que acho que é o seu caso, Pyá, você tem à disposição uma riqueza imensurável testada pelo tempo.

- Tem razão, Avaeté. Podemos falar mais sobre isso?

- No momento, não. Você não está aqui para salvar seus irmãos. Está aqui para divertir-se! Rá, rá, rá, rá, rá! – gargalhou Avaeté.

- Sim, é hora do jantar – ressaltou Miguelina. – Vamos!

O jantar seria servido num salão, a poucos metros da casa de Pedro e Miguelina. Eu estava muito à vontade com a amistosidade dos novos amigos e com o carinho com que era tratado. A atitude de Miguelina foi muito amorosa na noite anterior e, apesar das diferenças de personalidade e de humor de cada um dos que conheci, todos têm oferecido uma amizade sincera.

80

Page 81: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

No salão havia cerca de uma centena de pessoas. Fui apresentado a muitas delas, desde pessoas maduras a crianças. Era algum tipo de celebração comunal que incluía nossa visita. Dei uma olhada nas faces. Notei haver algumas delas não nativas. Indaguei Pedro:

- Todos pertencem à comunidade?

- Não. Esta é uma festa que inclui nossas boas-vindas a muitos viajantes. Esta é uma localidade afastada, mas por isso mesmo muitas pessoas vêem aqui nos visitar.

- Nos incluímos nesta classe de viajante? – perguntei, pois talvez houvesse algum protocolo a ser seguido.

- Não. Você e Avaeté estão aqui como amigos visitantes. Mas são todos gente muito boa. Fique à vontade para integrar-se com eles.

Imaginei fazê-lo após o jantar. Poderia conversar com as pessoas da comunidade e depois com os viajantes.

Na grande mesa viam-se vários tipos de comidas. Miguelina ajudou na identificação:

- Aqui temos batatas cozidas, ervilhas e mote, um alimento feito de milho. Para beber, sucos e chicha. Mais adiante, tortillas de rescoldo (um pão assado em cinzas), fígado de cordeiro e pato assado.

Sentei-me próximo a Pedro, Miguelina, Federico, este já bem recomposto, e Mestiza. Avaeté aproximou-se de outras pessoas, uma delas tinha a impressão de ser o líder Mapuche que estava presente ao colóquio de El Calafate. Comemos e conversamos de forma descontraída. Falamos sobre o dia-a-dia da comunidade e as ações políticas da nação Mapuche. Falamos mais num tom de integração e relaxamento do que de preocupação na resolução dos problemas. Fui orientado por Avaeté a não querer “aconselhar” os locais. “Você está aqui para ouvir, não para falar.” – reiterou.

Ao final do jantar, havia rodas de conversa por todo o salão. A maioria estava fazendo planos para as atividades do dia seguinte, principalmente os viajantes. Alguns participariam em atividades da comunidade, ao passo que outros empreenderiam caminhadas ao vulcão e a outras localidades remotas. A maioria não poupava elogios à comunidade pela acolhida e oportunidade de convívio.

81

Page 82: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Indaguei alguns viajantes se estavam em férias. Para minha surpresa, muitos deles estavam em licenças sabáticas longas ou mesmo nem tinham vinculações de trabalho fixa. Parecia ser verdade o que Avaeté dizia. Há uma crescente onda de indivíduos nômades circulando por este mundo. Fiquei sabendo por intermédio de um desses, um viajante polinésio, que haveria um ritual na noite seguinte com a participação de alguns dos viajantes. Perguntou-me se estaria presente e eu informei que não sabia do tal ritual.

A certa altura da noite começou-se a notar o lento esvaziar do salão. O burburinho reduzia-se e as pessoas deslocavam-se para suas casas e alojamentos. Foi uma atividade de integração agradável. Aproveitei o clima de tranqüilidade e perguntei a Pedro:

- Obtive a informação de que haverá um ritual amanhã à noite aqui na comunidade. Poderia me falar um pouco a respeito?

- Claro. Será o ritual nguillatun. Você e Avaeté estarão presentes e assistirão à cerimônia. O nguillatun é um evento que ocorre uma ou mais vezes por ano. É uma oportunidade de realizar pedidos pelo futuro. É muito alegre, com cantos, danças e comidas. Vocês certamente apreciarão – concluiu Pedro.

- Nós certamente estaremos lá. Assistiremos com muita alegria – assegurou Avaeté.

- Ótimo. Fiquem à vontade para retirar-se assim que desejarem. Eu preciso ficar para algumas providências. Tenham uma boa noite – cumprimentou-nos Pedro.

Cumprimentamos reciprocamente Pedro e seus amigos e nos dirigimos à sua casa. Na preparação para dormir, contei a Avaeté meu sonho. O lago de vinho que era eu e que eu o bebia. Avaeté riu um sorriso maroto. O sorriso de quem matuta: “Eu já sabia.”

- Amanhã teremos muito tempo para meditar sobre seu sonho. Ele é importante. Diz muito sobre você. Acordaremos, tomaremos desjejum e caminharemos durante o dia inteiro. À noite, participaremos do nguillatun. Durma bem, Pyá.

- Boa noite, Avaeté.

E a luz apagou-se.

82

Page 83: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Cinco

83

Page 84: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Avaeté levantou-se bem humorado e disposto, assim como estava o dia. Não havia mais chuva. Havia apenas uma bruma que abrandava o sol. Nesse estado de espírito, desde cedo estava muito falante:

- Hoje será um dia muito bom. Entraremos na mata, nos renovaremos e iremos, à noite, a um lugar de poder.

- Lugar de poder? – o termo novamente chamou minha atenção.

- Você teve uma noção do que é um lugar de poder no Cerro Huyliche. Ele é o responsável por você estar aqui. Hoje entrará em contato com outro lugar de poder. Nossos amigos nos levarão até ele.

“Um lugar de poder é como um portal. Um portal de luz entre os mundos. Não importa que mundos. Céu, terra, wenu mapu, yvy maraney, toca do coelho. O nome não importa. Importa a passagem, a viagem. E a volta.”

Tomamos café e preparamos o material para a caminhada. Avaeté disse que andaríamos cerca de doze quilômetros em rota de ascensão. Partiríamos de uma altitude de 1.300 metros para chegar a cerca de 2.100 metros. Subiríamos a Sierra Nevada, de onde teríamos uma visão magistral do Vulcão Llaima.

Saímos logo em seguida. Levávamos lanche, água, capa de chuva e mantas para proteção contra o frio. Avaeté disse que provavelmente passaríamos a noite fora. Botas firmes nos pés, dirigimo-nos ao centro do povoado. Lá, um grupo de quatro outras pessoas nos aguardava. Eram três viajantes e um nativo, que, em seguida, se apresentou:

- Olá, sou Chiwai. Serei seu guia neste dia de caminhadas.

Apresentamo-nos uns aos outros e seguimos pelo norte do povoado. Todos caminhavam em silêncio. Para quebrar a monotonia, tentei puxar assunto. Os viajantes pareciam frios. Chiwai, como araucano, era um guia reservado. Limitava-se a dar as orientações necessárias sobre a trilha. Avaeté não estava preocupado com a companhia. Parecia conversar com as árvores, tamanha sua alegria ao caminhar. Eu puxava uma conversa ou outra com os viajantes. Coisas como “de onde você é?” ou “o que faz da vida?” Os viajantes

84

Page 85: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

até mostraram-se gentis em responder, mas não levavam adiante o assunto.

Avaeté olhou para mim e sorriu:

- Você não precisa bancar o facilitador aqui. Não precisa se preocupar, pois todos estão muito à vontade, do jeito de cada um. Aproveite o dia e não deixe que os personagens o atrapalhem... Sinta o poder do lugar!

De que personagens Avaeté estaria falando? Talvez se referisse a personagens internos. As máscaras que colocamos vez por outra nas relações sociais. Quando, por exemplo, você está numa reunião de trabalho e todos estão muito quietos, você precisa facilitar a comunicação. Você, digamos, banca o facilitador. É parte do meu trabalho. Às vezes é difícil desvencilhar-se dos seus personagens. Senti-me tolhido, mas compreendi que poderia aproveitar melhor o dia sem aquela conversa fiada. No fundo, era apenas tagarelice. Procurei então prestar mais atenção à paisagem.

Passei a notar como a mata possuía uma variedade de plantas rasteiras pouco espaçadas, entremeadas por arbustos e árvores pequenas ou jovens, além das maiores, araucárias e lengas. Pode-se observar como este tecido de mata protege e umidifica o terreno, tornando possível a sobrevivência e o deslocamento dos animais adaptados. Mas não é só isso. Os animais retribuem proporcionando limpeza, reprodução e controle das populações vegetais. Há uma sustentação através da mutualidade. Estendendo um pouco a visão, podemos notar a mutualidade por tudo: entre animais e vegetais, entre animais, entre vegetais e até entre predadores e presas. Sim, pois não é só a presa que dá alimento ao predador. O predador regula a população da presa. E vive-versa. Se há abundância de um, haverá também do outro. Se há falta, ambos irão regular-se. Fantástico. Isto sem falar na mutualidade entre os próprios elementos: terra, água, fogo e ar. A terra precisa da água. A água, da terra. E assim por diante. Comentei com Avaeté:

- Temos uma noção enganosa de que a natureza é uma grande cadeia alimentar. Mas creio que isto é equivocado, não é mesmo?

- Prossiga – estimulou Avaeté.

- Só vemos as coisas num sentido. A gazela alimenta a onça. Mas a natureza possui fluxos muito mais complexos. Em cada passagem de energia ou materiais, há a volta praticamente

85

Page 86: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

instantânea. A mutualidade. A árvore precisa da água e, exatamente nesta troca, a água precisa e faz uso da árvore para seguir seu caminho. A gazela precisa da onça e a onça precisa da gazela. A flor da abelha e a abelha da flor.

- Na natureza, ajudar é ser ajudado. Que tal uma consulta ao seu bloco eletrônico?

Imaginei que Avaeté referia-se ao termo “mutualidade”. Vem de mutùus, que significa “recíproco” e de mutáre, que significa “mudar, trocar”. O que vai e o que vem. Sempre que algo deixa, algo chega. Circuitos colaborativos. Enormes redes de vai-e-vem. Transformações contínuas que voltam ao ponto de partida. Evoluídas.

“Claro!” – pensei. A sustentação só poderia ter este desenho. Numa cadeia alimentar, só há fluxo numa direção. Se fosse assim, tudo desapareceria! Se tudo for numa única direção, desaparecerá. Precisa voltar.

Talvez tenhamos construído nossa sociedade sobre uma base linear equivocada. Tudo está tendo um único sentido. Da extração de matéria prima para a indústria. Da indústria para o consumo. Do consumo para o lixo. Da base da pirâmide para o topo. Da diversidade local para a homogeneização global.

- Por que não pensamos na vida ou na natureza como uma metáfora para nossas sociedades e comunidades? – perguntei a Avaeté.

- Para ter controle, vocês negaram a natureza. Negando, excluíram-na. Excluindo-a, apartaram-se.

- Mas não seria uma metáfora rica para uma sociedade mais saudável e viva?

- Responda você. Contemple e medite enquanto caminhamos.

Seguimos por entre a mata, às vezes de maneira ofegante devido aos aclives. Mantínhamos o olhar à frente e aos lados. De repente, na passagem por um platô, Chiwai chamou a atenção para que mirássemos o sul. Uau, soberbo! Estávamos a uma altitude que permitia ver o Vulcão Llaima refletido no azul do Lago Conguillío. A bruma havia se dispersado e o visual era nítido. Montanhas brancas anteriormente encobertas tornaram-se visíveis. Era um local ideal para o lanche. Paramos ali e comemos sanduíches e frutas. Descansamos e curtimos o visual.

86

Page 87: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Uma hora depois, já alimentados e descansados, regressamos à trilha. Pela conversa, consegui identificar que os demais viajantes eram agrônomos. Também falavam sobre a mata e as relações na natureza. Não faziam referências estéticas, mas estavam interessados em como ocorriam as interações de um ponto de vista mais funcional. Fiquei atento à conversação. Em certo momento, um perguntou a outro:

- Você considera a natureza eficiente?

- Claro que sim! É o que há de mais eficiente. Não há perdas. Tudo é aproveitado!

Natureza? Eficiente? Fiquei encucado com a idéia. Dentro de uma visão funcional, parecia correto. Mas algo me inquietava. Achava inadequado fazer tal atribuição. Eficiência é um termo da visão mecânica do mundo. E eu vejo o mundo mecânico como oposto ao mundo da vida. Uma máquina é feita para ser eficiente. Fazer o que foi projetado sem falhas ou perdas. Mas assim seria a natureza? Resolvi perguntar a Avaeté:

- Avaeté, você acha que a natureza é eficiente?

- Pergunta sem sentido.

- Ãhn? Como assim, Avaeté? É uma pergunta muito clara e direta.

- Obscura, abstrata e dicotômica.

- Por que dicotômica? – questionei.

- Leva a um conflito. Se ela é eficiente, não será algo oposto. Se for algo oposto, não será eficiente.

- E qual é esse oposto?

- Pense. De onde vem toda a diversidade que você vê no mundo?

Tentei pensar logicamente. Segundo o seu argumento, o oposto da eficiência é algo que leva à diversidade. O que será? Vejamos. Eficiência vem de fazer certo, correto, perfeito. Logo, há uma ligação entre os termos eficiência, certeza, correção e perfeição. Certo é algo fixado, firme, confiável. Correto vem de reto, direito, em oposição a tortuoso. Perfeito significa feito inteiro, completo, acabado, cumprido. Bem, nestes termos, a natureza não é eficiente. Ela não está fixada.

87

Page 88: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Está mudando permanentemente. Ela também não é reta. A diversidade é produto de experimentos aleatórios que estão permanentemente ocorrendo. E ela não está acabada. Ela não é completa. Está sempre se desdobrando para algo maior e mais diverso. E por que isto acontece? Porque ela é livre! É isto! A liberdade para experimentar é a base da evolução da natureza. Então o oposto da eficiência não é a ineficiência. É a liberdade.

Logo, a natureza não é eficiente porque é livre. Mas não posso deixar de acreditar que ela também é eficiente: nada é perdido. Tudo é feito com maestria. Que nó!

- Sua mente racional vai deixá-lo em apuros, Pyá. Viu como a sua pergunta e o seu raciocínio o levaram a um conflito?

- Sim, o conflito entre a eficiência e a liberdade. Sabe, Avaeté, este é inclusive um dos meus conflitos existenciais. Adoro encontrar a eficiência nas coisas que faço. Como fazer isto ou aquilo? Como fazer melhor? Como fazer perfeito? Mas isto acaba levando-o a uma cunha mental que impede as variações, a liberdade de experimentar. The one best way.

- Não queime demais seus neurônios. Está usando o órgão errado – sentenciou Avaeté.

- Não entendi...

Não adiantou não entender. Avaeté não continuou o assunto. Insisti, mas ele só fazia chamar a minha atenção para observar pássaros, frutos ou flores na mata.

2

Caminhamos em silêncio por mais algumas horas, passando através de córregos e cascatas. Em certo momento, chegamos à crista de uma das serras. Era uma crista inicialmente estreita que, logo à frente, alargava-se em um rochedo mais amplo desprovido de vegetação. Para minha surpresa, havia mais alguns pequenos grupos de pessoas reunidos. Pelos rostos, eram outros grupos como o meu que provavelmente tomaram outros caminhos, bem como algumas dezenas de pessoas da comunidade.

- Aqui será o local do ritual – informou-nos Chiwai. – Descansem. Ainda temos cerca de duas horas até o seu início.

88

Page 89: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Alonguei-me um pouco e recostei-me sobre uma pedra muito anatômica. Os demais caminhavam pela beira do rochedo e admiravam a paisagem. Era realmente deslumbrante, mas eu mantinha a atenção entre os pensamentos e as dores na panturrilha. Estávamos muito próximos da linha de altitude onde a vegetação torna-se escassa e a neve mais abundante.

Ainda ruminava as idéias. O conflito eficiência versus liberdade é análogo ao que nos faz oscilar entre uma metáfora mais mecânica e outra mais holística ou ecológica do mundo. Infelizmente, nos últimos trezentos e tantos anos, a visão mecânica tem vencido, nos fazendo construir sociedades muito eficientes e pouco humanas. Muito “máquinas” e pouco “vivas”. Vê-se isto aqui mesmo, entre os Mapuche: empresas “maquinizadas” e despersonalizadas que estão avançando sobre a vida. Indústrias desumanizadas e governos burocratizados contra comunidades humanas e biológicas.

Não sou contra os negócios. Eles nos ensinam o tamanho do potencial criativo humano. Sou é contra a ditadura dos negócios. Sou é contra a arrogância e a falta de compaixão. Avaeté interrompeu meu protesto:

- Contra ou a favor. Certo ou errado. Pobre Pyá. Esqueça isto e contemple a vida. Não pense. Saia da prisão. Contemple!

Achei que já estava começando a falar em voz alta. Tentei relaxar e respirar mais pausadamente, algo como preparando o espírito para sentir as energias do lugar e do ritual. Sentei-me com as pernas cruzadas o mais confortavelmente possível. Chiwai começou a demonstrar o que ocorreria ali naquela noite.

- Neste local depurado realizaremos o ritual do nguillatun. Ao centro, podemos ver o altar. Notem que junto ao altar estão dispostos galhos de araucárias e outras árvores, algumas frutas, além de canela. A bandeira que vocês vêem hasteada é a bandeira da nação Mapuche.

Chiwai continuou explicando que, de acordo com a cosmologia do seu povo, convivem na terra duas forças contrárias e complementares: uma positiva e outra negativa. A positiva chama-se pillán ou wangulén; a negativa, wekufu. Pillán ou wangulén trazem a criação e a vida; wekufu, a destruição e a morte. No mundo há um equilíbrio dinâmico de ambas.

89

Page 90: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- O ritual do nguillatun é feito uma ou mais vezes por ano e tem o propósito de entrar em contato com estas forças e pedir-lhes pelo tempo, pela semeadura e colheita, para que não haja doenças ou pela prodigalidade. Basicamente, aspectos ligados ao bem-estar – enfatizou nosso guia.

Aproveitei uma pausa para perguntar:

- Neste caso específico, por que ele está sendo realizado?

- Depois que cresceu a afluência de pessoas de poder espiritual que nos visitam, passamos a realizá-lo nesta época. A maioria dos que estão, hoje, aqui presentes é considerada “amigos de poder”. Pediremos por sua força espiritual – respondeu Chiwai.

Ele ainda prosseguiu dizendo que os Mapuche têm sido mais bem sucedidos e felizes desde que surgiu este fenômeno. Referia-se ao afluxo de viajantes de diversas áreas humanas, das artes à política, dos negócios a lideranças comunitárias.

- Viu? – perguntou Avaeté. – Está sentindo a força deste movimento silencioso?

Comecei a notar realmente uma força fluída e silenciosa brotando dos subterrâneos. Homens e mulheres, como se podia notar naquela reunião, em busca de vidas mais plenas, interagindo e vivendo na estrada. Aquela era mais uma manifestação. A primeira foi no colóquio.

- Já vamos começar – cochichou Chiwai.

Em seguida, as pessoas do povoado tomaram pacotes e cestas que traziam e distribuíram aos visitantes. Havia pães amassados, chicha, maçãs e outros alimentos. Fomos encorajados a colocá-los junto à mesa do altar. Em seguida, o fogo foi aceso devido à escuridão da noite que se aproximava. Um homem em trajes típicos chegou junto ao altar portando um cordeiro amarrado pelas patas. Chiwai disse que era o lonko, o líder da comunidade. Ele dirigiria a cerimônia. Quando começou a falar, identifiquei-o imediatamente. Era Pedro Ruca!

- Amigos Mapuche de coração! Estamos por começar o nguillatun. Queremos dizer-lhes que aquece nosso coração estar aqui com irmãos de tantas partes do mundo. Este ritual é feito por nosso povo como sinal de amizade, como resgate da esperança de um

90

Page 91: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

futuro mais feliz e, acima de tudo, para pedir a nosso pai Ngenechén que dê força espiritual a todos os nossos amigos!

Ao pronunciar estas palavras com maior ênfase, uma salva de palmas, gritos e assovios inundou o vale abaixo e o céu acima com alegria. Apesar de reservados, os Mapuche mostram-se intensamente alegres e confiantes no futuro. Isto foi ficando claro à medida que Pedro dirigia-se à audiência em sua abertura. Falou de esperanças, comunhão e paz. Não foi um discurso demorado, mas foi emocionante. Por fim, completou:

- Acima de tudo, celebramos aqui a inseparável união entre espírito religioso, natureza e arte! Por isso, rendemos tributos ao grande espírito azul. Viva a convivência pacífica e a comunhão!

Novas ondas de ovação retumbaram. Pedro então apanhou um punhal que estava sobre a mesa e pediu para que dois ajudantes içassem o cordeiro. Ao ficar suspenso no ar, Pedro cortou-lhe uma veia no pescoço e seu sangue passou a jorrar dentro de uma bacia. Parte do sangue foi preparada com outras misturas para ser oferecido a terra. Neste momento, algumas anciãs em trajes muito lindos começaram a entoar cânticos alegres. Logo em seguida, instrumentos musicais começaram a acompanhar as cantorias. Eram instrumentos de sopro, guitarras e tambores.

Enquanto ocorriam os cantares, as pessoas passaram a confraternizar-se e conversar livremente. Alguns dos visitantes tentavam acompanhar as músicas sem muito sucesso, pela dificuldade em reproduzir a língua mapudungun. No altar processava-se o carnear do cordeiro, após ter sido sangrado. Estava claro que aqueles alimentos seriam para que as famílias e demais pessoas fossem nutridas durante o ritual. Perguntei a Chiwai quanto tempo levaria a cerimônia.

- Pode levar de dois a quatro dias, conforme o clima, a disposição ou a necessidade. Neste caso, durará dois dias, pois precisa ser respeitada a capacidade dos forasteiros em acompanhá-lo – respondeu o guia.

Ficaríamos por ali dois dias. Avaeté avisou-me que seria muito prazeroso permanecer ali. Era preciso apenas deixar-se tocar pela alma do lugar.

- Vocês, juruakuery, esquecem de celebrar. Bebem, comem, dançam e divertem-se, mas não celebram – assentou Avaeté.

91

Page 92: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Celebrar é freqüentar a casa do sagrado. É tocar coletivamente a alma. “Vamos celebrar, celebrar, celebrar, vamos celebrar!” – e saiu rindo e dançando.

Bebíamos chicha e comíamos mote e pão assado. Trocamos experiências e idéias sobre a visão de mundo Mapuche, bem como comparávamos as visões dos vários povos ali presentes. Eu mais ouvia do que falava. Havia muita riqueza naquela celebração. Uma sensação leve e alegre ia tomando conta de mim. Um tipo de comunhão com aquelas pessoas, que celebravam tudo o que há de bom e nos desejavam sorte e ânimo em nossas empreitadas e viagens. Cada um falava sobre sua própria aventura e o que pretendia. Encontrei muitas pessoas em trabalhos voluntários. Já haviam vivido em várias partes do globo.

Logo a seguir, uma roda de danças chamou a atenção de todos. Chiwai nos disse que começaria a dança do pürrum, uma dança muito colorida, em função dos trajes dos dançarinos. Era cadenciado e compassado, com um movimento de vai-e-vem imitando a corrente dos ventos em diversas direções, assim como o movimento das nuvens.

Entremeados às danças ocorriam discursos que provocavam emoção e mais alegria. "Vivas" eram entoados a deuses, às forças criativas e destrutivas, à natureza e ao espírito azul. E mais dança e música. Era contagiante. Dava vontade de sair dançando em volta daquele fogo. Muitos o fizeram. Eu fiquei um pouco envergonhado. Avaeté, não. Apesar de dançar uma espécie de “outra dança”, estava junto dos demais dançarinos muito à vontade. Uns divertiam-se com as danças dos outros.

Cerca de três horas depois começou a ser servida a carne do cordeiro. Havia também outras carnes sendo assadas e servidas, como a bovina e a de caça. A música prosseguia enquanto saboreávamos cortes macios e deliciosos. Logo após foi servida uma sobremesa de frutas e trigo. Os músicos em seguida foram descansar e alimentar-se.

Havia burburinho e relaxamento. Alguns já estavam sob efeito da chicha, mas não havia exageros. Após alguns momentos de conversas e descanso, os músicos retomaram as canções, que agora se misturavam entre ritmos locais e outros ritmos andinos. Algumas mulheres jovens da comunidade entregavam penas de aves para que os visitantes as pusessem junto ao seu corpo. Chiwai me disse que as

92

Page 93: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

plumas concediam poder, dependendo do pássaro a que pertencessem. O condor concede força. O aguilucho, uma espécie de falcão, concede as virtudes da visão, elegância e serenidade. Outras, capacidade de enxergar no escuro. Ou velocidade ao correr. E assim por diante. Eu recebi uma pena de aguilucho. Avaeté recebeu uma pluma negra de condor.

Como as músicas andinas têm um ritmo muito apreciado em todo mundo, a maioria dos visitantes pôs-se a dançar. Não tardei a juntar-me àquele carrossel global de alegria, já que a bebida fez-me perder parte da vergonha. Avaeté incentivava-me a dançar muito, sem parar e de maneira ritmada. Aceitei sua sugestão. Passamos mais de três horas a dançar aqueles ritmos.

Apesar de diferentes músicas, o ritmo parecia manter-se constante. Entrava dentro da sua cabeça pelos ouvidos e espalhava-se pelo corpo. Quanto mais dança, menos pensa, e você começa a entrar numa espécie de transe prazeroso. Neste momento, alguns dançarinos passaram a dar galopes circulares e gritos ininteligíveis.

Aquele transe era delicioso, mas senti a certa altura uma impossibilidade total de continuar dançando, de modo que me atirei a um canto, de onde tinha uma visão dos acontecimentos. Parecia distanciar-me visualmente daquela massa de gente alegre, mas sentia uma proximidade auditiva enorme. Era como se os músicos e os bailarinos estivessem dentro da minha cabeça. Fui amolecendo o corpo. Os sons ritmados e pulsantes lembravam um martelar constante. O martelar parecia metálico, de aço contra aço. Comecei a visualizar gigantescas fábricas muito quentes. Elas emitiam muitas faíscas, e delas saíam enormes bolas incandescentes. Elas eram arremessadas na escuridão do céu, na vastidão do universo. Com a velocidade, as bolas resfriavam-se, tornavam-se às vezes vermelhas, às vezes cinzas e às vezes azuis. À medida que esfriavam entravam em um deslocamento circular mais suave, numa espécie de movimento orbital.

Tentava afastar estas imagens com um esforço enorme para abrir os olhos, mas via aquela dança muito ao longe, de maneira que desaparecia novamente e as alucinações voltavam a tomar conta da minha mente.

Nas alucinações, de repente, fui lançado para dentro de uma daquelas bolas azuis a uma velocidade impressionante, até materializar-me à frente de Avaeté diante de uma fogueira. Era o

93

Page 94: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

mesmo Avaeté que eu encontrara anos antes, em Araxá. Estávamos em Araxá. Avaeté disse-me algo. Foram duas frases. Ou, pelo menos, era somente disso que me lembrava:

“Em Araxá, não existem perguntas nem respostas. Apenas tudo em cada parte e cada parte em tudo.”

De súbito, fui então jogado dentro da fogueira. Tornei-me muito pequeno. Enxergava por dentro a enorme fogueira de lenha de floresta tropical. Ouvia os seus estalados. Mas escutando bem, notava que não eram estalos. Eram marteladas. Marteladas de pequenas fábricas que exalavam da própria fogueira. Marteladas ritmadas. Como daquela dança.

As frases de Avaeté ressoavam em minha cabeça. Eu suava muito. Não conseguia abrir os olhos, mas também não dormia. Novamente, de maneira repentina, fui extraído daquela fogueira e jogado de volta ao ritual. Senti-me novamente dentro do meu corpo, como se meu espírito tivesse sido transportado de volta ao meu lugar.

Como que num passe de mágica, recompus-me e passei a sentir o corpo novamente firme. Tive um relance de iluminação, acreditando que tinha compreendido aquelas palavras pronunciadas por Avaeté no transe.

Procurei Avaeté com o olhar. Ele estava sentado, com as pernas cruzadas, exatamente como na visão, na extremidade oposta à minha no círculo. Fitava-me com olhar de fogo. Fui até ele. Dei a volta pelo grupo de pessoas que ainda dançava. Avaeté não me seguiu com o olhar. Estava com o olhar fixo, também parecendo estar em transe. Não o perturbei. Apenas sentei-me a seu lado.

Dentro de poucos minutos, passou por um tremor corporal e tive a sensação que também voltara de seu transe. Levantou-se num único movimento e pediu que o acompanhasse.

Avaeté estava muito altivo e atento. Caminhamos por entre a mata, até que perdemos de vista a festividade e a fogueira. Ficou bastante escuro, mas Avaeté orientou-me para que caminhasse sobre suas pegadas. Informou que as cercanias eram perigosas, pois havia penhascos em ambos os lados da trilha. Quase caí algumas vezes, mas mantive-me o mais atento possível ao caminhar. Logo em seguida, descortinou-se a mata e ficamos diante de um rochedo que oferecia uma vista para o sul da serra.

94

Page 95: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Sentamo-nos juntos sobre o rochedo. Estava me sentindo muito bem, talvez como não me sentisse havia anos. Uma leveza incomum. Avaeté aproveitou o momento:

- Sei que você tem sentimentos controversos, Pyá. Sente-se com vitalidade racional, mas também é imaturo. É algo natural. Certas pessoas são naturalmente controversas. Talvez sejam as mais inquietas e as mais criativas. Mas está na hora de você transcender a essa vida controversa. O mais irônico é que, apesar de transcender, você continuará sempre controverso! Não é a ironia das ironias? – e desatou a rir.

- Estou pronto, Avaeté. Estou sereno, mas não sei por quanto tempo.

- É verdade. Vamos aproveitar essa janela. Sabe lá quando teremos outra! Rá, rá, rá, rá, rá, rá! – gargalhou um pouco mais.

Avaeté olhou para uma pedra. A visão estava se acostumando ao escuro. Perguntou então:

- O que aconteceu de essencial em seu transe?

- Foi aquilo que você falou no transe. “Em Araxá, não existem perguntas nem respostas. Apenas tudo em cada parte e cada parte em tudo.”

- É realmente algo essencial. Não esqueça que são apenas palavras. A visão toda é que é essencial.

- Mas você sabe que as palavras são importantes para que eu possa entender...

- Sim, mas você está aprendendo que elas podem ser insuficientes e, às vezes, traiçoeiras. Seu aprendizado poderá ocorrer através da mente, mas será principalmente através do seu corpo e da sua alma. Aquela visão foi um ensinamento desses novos veículos.

- É verdade, Avaeté. Mesmo assim, desejo elaborar um pouco a visão através das palavras.

- Ok. O que você deseja me contar? – perguntou Avaeté.

Levei algum tempo até chegar a alguma inquietude que, acreditava, poderia ser esclarecida pela visão. Elaborei-a em voz alta, sem maiores preocupações com alguma seqüência lógica:

95

Page 96: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Por exemplo, as questões que coloquei a você e você não me respondeu. Sobre ver o mundo metaforicamente como máquina ou como vida. Sobre se a natureza é eficiente ou livre...

- Já conversamos sobre essa forma dicotômica de ver o mundo, Pyá.

- Sim, eu sei. Agora noto como ela pode ser danosa. A visão me ajudou.

- Continue – estimulou Avaeté.

- O mundo é mais do que nossas classificações sobre ele. Separamos aspectos mecânicos de aspectos biológicos do mundo. Atribuímos característica “eficiente” ou "livre” a cada uma e tentamos caracterizar o todo por uma destas partes. Na visão eu vi que o mundo é mecânico e é vivo. Eu vi que ele é livre e é eficiente. Ao mesmo tempo. Não é coerente tomar o todo pela parte. O todo está nas partes, porque toda máquina tem aspectos vivos e todo ser vivo tem aspectos mecânicos. E as partes estão no todo: livre e eficiente ao mesmo tempo!

- Não desejo desestimulá-lo, mas você sabe que sua visão é muito mais rica que seu discurso. Não é mesmo, Pyá?

- É verdade. Talvez fosse melhor contemplar isso em silêncio. Mas eu preciso elaborar as coisas também em palavras. É meu jeito, Avaeté.

- Percebo que está se esforçando. Um dia, não terá mais tanto apego às palavras. Aí estará livre para usá-las mais criativamente.

- Anseio por isso.

- Tenhamos paciência. Fique aqui por um tempo e contemple sua visão. Você ficará em boas mãos.

- Como assim em “boas mãos”?

- Você saberá em breve. Estou com sede. Preciso de água. Não está com sede também? Espere aqui – falou, levantando-se e desaparecendo por entre a mata.

Fiquei ali, envolto por uma manta para proteger-me do frio. Apesar da escuridão, conseguia discernir vários montes ao redor. Abaixo, apenas a escuridão. Senti uma espécie de tranqüilidade interior com aquela visão. Naturalmente, não tive uma extensão

96

Page 97: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

completa do significado daquilo. Mas acreditei nela como um sinal e uma direção. Uma direção de pacificação. Não completa, mas encorajadora. De repente, uma voz feminina veio por trás:

- A visão que você teve ajuda pacificar seu espírito? – era Miguelina, oferecendo-me um cantil com água. – Avaeté contou-me rapidamente o que lhe aconteceu no ritual. Quer me contar o que está sentindo? – e sentou-se ao meu lado esquerdo.

- Sim, desejo muito. A visão foi reveladora. Por um lado, é maravilhoso entender a complexidade do mundo como tudo estando envolto em tudo. É como no meu sonho. Eu bebia de um vinho que era o lago do mundo e era eu, ao mesmo tempo. Eu e o mundo, um envolto no outro.

- Mas vejo que no seu tom de voz há também inquietude...

- Sim! Se for verdade que tudo está envolto em tudo, por que vemos conflitos no mundo, Miguelina? Quero dizer, conflitos de sobrevivência e morte. Por exemplo, entre brancos e índios, negócios e comunidades locais ou entre homens e mulheres?

- Pergunte ao seu sonho e à sua visão, Pyá. Eles estão aí para lhe responder.

- Você acha isso?

- Claro! Sabe por que acho isto?

- Diga-me – falei com curiosidade.

- O seu sonho e a sua visão vieram do seu coração e chegaram a você pela sua alma, Pyá.

Fiquei um pouco desconcertado. Tanto o sonho quanto aquela visão pareciam para mim como vindos de algum lugar exterior. Que alguém mais mandou. Não parecia ter nascido do meu interior. Miguelina continuou:

- Você não está acostumado a ouvir seu coração. Abra-se para ele.

Silenciei por alguns instantes para poder ter noção disso. Tanto quanto Avaeté, mas de formas diferentes, notava a manifestação de sabedoria em Miguelina. E também em Pedro Ruca, Federico, Mestiza e nos demais amigos Mapuche.

97

Page 98: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Como a gente se abre, Miguelina? Como abrimos o coração? – perguntei com sinceridade.

- Com desapego e poesia, Pyá.

- Como assim? – indaguei.

- Sua visão é pura poesia. O que você viu nela? Você crê que é um martelar mecânico. Eu acho que é mais como um pulsar. O pulso do mundo batia em sua cabeça e criava a vida. Era o coração do mundo criando a vida! É lindo!

- E o desapego?

- Falei em desapego porque, para ver de maneiras diferentes, você precisa se desapegar da sua própria visão. Esqueça seu intelecto um pouco. Use as emoções. Emocione-se ao entrar em contato com a fonte da vida. Nos seus sonhos e na sua vida. Emocione-se ao saber que tudo é diferente. Mas que, ao mesmo tempo, tudo está envolvido em tudo.

“Por exemplo, homens são diferentes de mulheres. Isto não é maravilhoso? Mas o que é mais maravilhoso é saber que estão, ambos, um envolto no outro. O que seria de um homem sem todas as mulheres envolvidas na sua vida. Pense em todas as mulheres que tocam a alma de um homem: mãe, avós, antepassadas, amigas, gerentes, professoras, agricultoras, amantes, operárias, abolicionistas, domésticas, líderes. O mesmo para as mulheres: elas são o resultado de milhares e milhares e milhares de homens. Homens e mulheres do passado, presente e futuro: resultados e resultantes uns dos outros! Isto é poesia pura! Isto é a alma buscando integrar-se. Homens envoltos em mulheres envoltas em homens envoltos em mulheres. Essa é a sua visão, Pyá. Sua emocionante visão. Seu emocionante sonho.”

Comecei a pensar em todas as mulheres que forjaram a minha vida. Algumas muito intensamente. Algumas efemeramente. Lembrei-me da minha mãe, da minha avó. Lembrei-me de minhas mestras. Lembrei-me das minhas amigas. Lembrei-me das minhas mulheres. E lembrei-me do amor de todas.

Lembrei das que não conheci. Senti saudades das que nunca vi. O nó na garganta foi subindo. Engolia para fazê-lo descer. Miguelina pôs a mão no meu ombro. E eu desatei a chorar. Não era um choro

98

Page 99: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

copioso ou convulsivo. Era um choro como o de um riacho pedregoso que se umedece com o desgelo lento da primavera.

Chorei pelo amor dessas pessoas. E pelo que isto deixou em mim. Chorei por quinze minutos. Meia hora, talvez. Chorei de tristeza e de alegria. De tristeza feita de saudade. E de alegria de saber que minhas entranhas eram feitas de amor.

Miguelina abraçava-me enquanto eu soluçava. Dizia:

- Chore o choro dos tempos. Chore o choro do final do inverno. Para que vire água dos rios, dos mares e dos picos nevados. E, então, chore novamente.

Miguelina era uma mulher de real sabedoria. E de poesia. Alguém para se ter como verdadeiro amigo. Amparou-me para que levantasse e regressássemos ao ritual. Cruzamos juntos a escuridão até onde havia novamente festa e confraternização. Uma fogueira renovada iluminava a noite através de uma coluna de mais de dez metros de altura.

Havia uma energia renovada também entre as pessoas. Estava ocorrendo uma dança muito diferente. Era movida por um violino e um violão, bem como por um pequeno tambor ritmado. Havia dez ou quinze dançarinos circundando um homem que andava em ziguezague no meio do círculo. Portava um bastão em uma das mãos. Conduzia-o a cerca de quarenta centímetros perpendicularmente ao chão. Lançava-o contra as pernas dos dançarinos, tentando fazer com que tropeçassem e caíssem.

Fiquei olhando aquela dança estranha e imaginando o seu propósito. Chiwai me cutucou e explicou:

- Avaeté está ensinando ao povo Mapuche o xondaro. Ele disse que é uma mistura de dança e arte marcial Guarani.

- Como ela funciona? – perguntei.

- Veja os movimentos de Avaeté. Ele é a natureza. Comanda a dança num certo ritmo, mas, aleatoriamente, ataca os participantes com o bastão. O dançarino deve manter-se atento e esquivar-se para não ser derrubado. Avaeté disse que o xondaro faz com que se tenha uma atenção consciente com relação à vida.

- Mas é uma dança muito alegre! – admirei-me.

99

Page 100: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Como a vida! Você deve viver alegremente, mas não descuidadamente. – concluiu.

Vi que alguns se esquivavam espertamente, enquanto outros, por falta de habilidade ou afetados pela bebida, tropeçavam e caíam. Quando isto acontecia, havia muito riso. Resolvi experimentar. Entrei na roda e passei a dançar de maneira ritmada no sentido do giro dos dançarinos. Avaeté notou, mas permaneceu impassível no seu próprio ritmo. Dei uma, duas, três voltas de maneira muito atenta. De repente, Avaeté tentou um ataque, do qual me esquivei com rapidez. Estava pronto para regozijar-me com Chiwai pela minha esperteza, quando Avaeté atacou novamente e me fez cair de costas. Ele seguiu dançando como se nada tivesse acontecido, enquanto a platéia achava muita graça. Também ri bastante da minha trapalhada, mas não me envergonhei. Avaeté gritou:

- Não esqueça: o seu corpo é que tem que aprender – e ofereceu o bastão para levantar-me.

Entrei novamente na dança, esquivando-me ou quase caindo no chão por vezes. Era muito divertido. À medida que ela se desenrolava, muitas pessoas entravam e saíam. Eu próprio entrei e saí do xondaro várias vezes. Fui ao chão por umas três vezes. Precisava de muito treino para ter mais destreza. Em seguida, a música cessou. As pessoas aplaudiram e Avaeté fez algumas considerações finais sobre a dança:

- Estas experiências são feitas para o corpo aprender. O nosso corpo precisa aprender que as forças da natureza estão aí, seguindo seus caminhos. Se você interpuser-se a elas, sofrerá ou morrerá. Por isso, seu corpo precisa estar atento a estas forças, fluir com elas e modificá-las no ponto certo, no tempo certo, com eficiência e maestria.

Todos aplaudiram e agradeceram a gentileza de Avaeté. Quando as palmas cessaram, Pedro Ruca aproveitou a pausa para agradecer:

- Obrigado, Avaeté, pelas lições de hoje. Creio que todos nós estamos exultantes com as demonstrações de sabedoria e felicidade ocorridas aqui hoje.

- Eu é que agradeço a acolhida de todos os irmãos Mapuche desta terra – reiterou Avaeté.

100

Page 101: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- É uma honra para nós, Mapuche. Com isso, creio que podemos relaxar os trabalhos para que todos possam descansar. Tenham todos uma boa noite! – despediu-se Pedro.

Houve ainda uma salva de palmas. Todos começaram a dirigir-se para locais abrigados, em pequenos grupos. Passaram a conversar em tom de voz suave e a recostar-se para dormir. Achei engraçado Pedro desejar “boa noite” quando já estava quase raiando o dia. Bem, cada um entraria na sua própria noite pessoal.

3

Não havia percebido o quanto aquela maratona tinha me deixado cansado. Os músculos quase não respondiam mais aos comandos. Localizamos um local na mata abrigado pela copa das árvores e estendemos mantas e cobrimo-nos com outras cobertas. Naquele local estávamos eu, Avaeté, Chiwai, os nossos companheiros de caminhada e dois ou três outros locais e viajantes. Era muito integradora a maneira como tudo se dava, pois compartilhávamos comida, bebida, dança, conversa, canto, alegria e adormecer.

Não tardei em estar em sono profundo. O mesmo ocorreu com a maioria. Aquele sono restaurador durou muitas horas. Quando os primeiros a acordar começaram a conversar e a acordar os demais, já passava do início da tarde. Uma brisa suave e refrescante soprava do sudoeste. Joguei sobre minha face e pescoço um pouco de água fria para estimular a circulação.

Serviram-se chá, pães, empanadas e mote. Logo em seguida houve um movimento coletivo de rearranjo e limpeza do local, para que iniciassem as celebrações da segunda noite do nguillatun. Nas conversas, descobrimos que seria uma noite de apresentações dos viajantes. De maneira livre, não programada, os viajantes poderiam mostrar seus dons.

Havia uma amistosidade muito declarada entre todos os participantes. Todos fizeram novas amizades. Trocaram idéias sobre viagens e maneiras de estar contribuindo voluntariamente em várias partes do mundo. Empreendimentos sociais eram discutidos, bem como idéias sobre ações e mobilizações políticas. Conheci pessoas que me falaram de diferentes culturas, sobre artes e sobre religião.

101

Page 102: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

A noite começou a chegar e a fogueira foi prontamente acesa. Novos suprimentos de alimentos e bebidas ficavam à disposição. Rodas de violão surgiam à medida que os instrumentos passavam de mão em mão. Pequenos shows eram realizados à beira da fogueira para audiências maiores ou menores. Era uma grande festa ao ar livre.

Músicas as mais diversas eram ouvidas. Às vezes, tons andinos. Outras, sons tropicais. Passava ainda por ritmos africanos e indígenas. Sons pop ou rock-'n'-roll eram obtidos do violão itinerante. Cantorias coletivas para uma ou outra música mais conhecida. Os visitantes estavam à vontade. Demonstravam danças locais adaptadas a sons cosmopolitas e vice-versa.

A festa varou a madrugada, como no dia anterior. Alguns se recolhiam mais cedo, sob efeito da bebida, enquanto outros resistiam. Minha mente estava mais despreocupada. Nem mesmo fiquei rememorando muito os acontecimentos da última noite. Aquela reunião foi de uma alegria muito fluída.

Estava ficando claro para mim que apreender um mundo novo não seria feito sob o controle da mente. Era preciso soltá-la para deixar aqueles ensinamentos e maneiras de viver diferentes penetrarem no corpo e na alma. Por isso, não ocupei a mente naquele dia. Apenas entreguei-me ao fluxo.

Veio a madrugada e as primeiras horas da manhã. Novamente, com os músculos exaustos. Dormimos sob a mesma proteção. E imaginamos como seriam os próximos dias.

Ao acordar, era hora de arrumar o local e descer de volta ao povoado. Todos ajudaram na limpeza, de modo que não restassem vestígios de presença humana. Ajudamos no transporte dos materiais e suprimentos e tomamos a trilha de volta a Pikuche.

Uma vez no povoado, despedimo-nos de alguns dos viajantes que estavam prontos para ir embora. Prometemos nos reencontrar pela estrada ou em alguma localidade deste mundo. Em seguida rumamos para a casa de Pedro.

Uma vez de volta à casa, tomamos um banho e fomos relaxar na varanda. Foram dois dias esgotantes das energias corpóreas. Avaeté preparou mate e compartilhamos daquela cuia. Falávamos de assuntos diversos e sobre o dia-a-dia do povoado. Avaeté, então, expôs suas idéias:

102

Page 103: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Caro Pedro, a celebração de ontem foi espetacular. Nosso objetivo principal em estar aqui com vocês é compartilhar e celebrar juntos, assim como várias vezes ocorreu entre nós...

- É verdade, Avaeté. É sempre uma emoção grande quando você retorna à nossa convivência. Já havia quase cinco anos que você não vinha nos visitar – lembrou Pedro.

- Havia um motivo importante em voltar aqui. Estou com meu novo companheiro de aventuras: Pyá. E tinha certeza que conhecê-los faria muito bem a ele.

- Sem dúvida. Nossos dias desde que deixamos El Calafate têm sido de aprendizagens e emoções fantásticas – confirmei.

Avaeté dirigiu-se a Pedro:

- Caro amigo: não teremos muitos dias para estar aqui na companhia de vocês. Pretendo ficar mais uns três ou quatro dias, não mais do que isto. A alma do mundo tem outras pontas que precisamos tocar. Pretendemos seguir no rumo norte, onde pararemos aqui ou ali. Nosso novo destino é San Pedro de Atacama. De lá, cruzaremos novamente os Andes para leste. Desejamos encontrar novos povos.

- Amigo Avaeté, você tem o tempo que quiser para ficar aqui e ser nossa companhia. Estamos felizes só de vê-lo – reiterou Pedro.

Avaeté e Pedro contaram-me de onde vem sua amizade. Ela é de tempos anteriores. Avaeté é um morador das estradas. Conheceu Pedro em Temuco, numa festa-manifestação pela formação de um partido Mapuche. Avaeté vagava pelas terras a oeste da cordilheira e soube da concentração de nativos Mapuche naquela cidade. Pedro comentou que a cidade havia sido tomada pelos moradores dos povoados ao redor.

- Pedro era então um jovem líder. Bradava com seus companheiros para que lutassem por uma vida melhor para o povo – explicou Avaeté. – Fiquei ali, observando o movimento, até localizar o grupo daquele líder. Como falava da alma, tinha que conhecer seus amigos. Foi aí que o conheci, sua esposa Miguelina, além de Federico e Mestiza, companheiros seus de longa data.

- É verdade, Avaeté – concordou Pedro. – É bom relembrar isso. Você chegou sem cerimônias e disse que gostaria de juntar-se a nós. Lembro-me do povo todo dormindo pelas praças naqueles dias. Nós

103

Page 104: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

fomos até o mercado, bebemos um pouco e conversamos sobre a luta. A conversa tornou-se acalorada e precisava ser refrescada com bebida. Acabamos passando da conta e dormimos dentro do próprio mercado público.

- Sim! Rá, rá, rá, rá! – gargalhou Avaeté. – Todos fecharam as portas e ficamos lá dentro trancados.

- Dormimos sobre palhas e sacos de linho. Foi muito divertido – disse Miguelina sorrindo. – Você lembra, Pedro, como escrevíamos naquele tempo?

- Sim, Miguelina, escrevíamos poesia. Mas são tempos idos...

- Os tempos são idos, mas não os sentimentos...

- Uma poetisa da vida, não é mesmo, Pyá? – cutucou-me Pedro.

- Uma poetisa da vida, com certeza – confirmei.

Conversamos e tomamos mate por várias horas. Vez por outra petiscávamos algum aperitivo ou bebericávamos um pouco de chicha. Avaeté indagou sobre as necessidades atuais do povoado. Pedro disse que várias coisas muito úteis já estavam sendo providenciadas pelos visitantes, como ensino de idiomas para as crianças e os adultos, organização de pequenos empreendimentos comunitários, registro digital da história do povo, bem como resgate de elementos de sua cultura. Citou uma série de assuntos nos quais os viajantes e voluntários colaboravam. Avaeté estimulou o assunto para que pudéssemos nos encaixar em alguma atividade comunitária. E adicionou:

- Para ser honesto, Pedro, desejamos colaborar em algum tipo de atividade mais básica, se é que me entende?

- Você quer dizer ligada a terra, correto?

- Exato – reforçou Avaeté.

- Muito bem. É uma época muito boa para ir plantar batatas, com o perdão do trocadilho – disse Pedro sorrindo e olhando para mim. Estamos na época da seleção das sementes, momento que antecede o plantio. Que tal vocês nos ajudarem nesta tarefa?

- Era o que eu imaginava. O que você acha, Pyá?

- É uma boa oportunidade para tirar das minhas mãos este branco denunciador da minha condição de almofadinha...

104

Page 105: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- É isso aí! – comentou Pedro.

- É isso aí! – reforçou Avaeté.

Foram, na verdade, quatro dias de trabalho intenso, da manhã ao anoitecer em contato com a terra. Os Mapuche tinham um sistema agrícola muito adequado, de maneira pouco extensiva, em rotação de culturas e entremeando vários tipos de plantas. Era uma forma muito em acordo com a própria natureza circundante. Primeiro trabalhamos selecionando sementes-tubérculo. Foram centenas que passaram pelas nossas mãos. Depois acompanhamos homens e mulheres que se dirigiam aos locais de plantio. O terreno já estava previamente preparado e o trabalho todo tratava de colocar as sementes na terra e cobri-las de maneira apropriada e carinhosa. Aliás, este era um aspecto interessante: o carinho com que homens e mulheres tratavam terra e sementes.

Neste tipo de atividade seu corpo está plantado na terra, mas seu espírito está livre como o condor. Conversávamos entre os trabalhadores sobre a maneira com que este povo enxergava o mundo. Falava com Avaeté também sobre os ensinamentos das experiências pelas quais passamos. Eu disse que estava muito longe de uma sabedoria tranqüila como a que Avaeté, os Guarani ou este povo possuíam. Avaeté disse que o que era aprendido não eram coisas definitivas. Muitas e muitas vezes revisitaríamos o que passamos, como forma de reelaborar e fixar o que aprendemos. Eu disse que, além disso, tinha muitas idéias de minha tradição “civilizada” que gostaria de testar. Avaeté disse para não ter pressa. Teríamos muito tempo. Como disse um companheiro de trabalho Mapuche: “Não se preocupe: pu-am, a alma universal, estará sempre ao lado daqueles que a buscam.”

4

Certo dia, perguntei a Avaeté, no meio da lavoura, como ele conseguia ser uma pessoa tão direta e aberta. Parecia-me que esse jeito direto e aberto era o que fazia de Avaeté um sujeito ligado. Disse a ele que admirava essa forma de portar-se, pois, no convívio social em que eu estava acostumado, era difícil você não assumir algum papel, personagem ou máscara no dia-a-dia. Avaeté surpreendeu-me:

105

Page 106: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Cuidado, Pyá. Você não tardará a defrontar-se com uma encruzilhada.

- Avaeté, fazia tempo que você não me dava uma resposta misteriosa como essa – reclamei.

- Fazia tempo que você não fazia uma pergunta dicotômica – replicou ele.

Fiquei tentando imaginar a que dicotomia Avaeté referia-se. Considerava Avaeté um sujeito puro. Aliás, olhava para as pessoas à minha volta e via-as como pessoas puras. Não via necessidade de que tivessem máscaras. Avaeté não esperou que eu chegasse a verbalizar o conflito entre viver a pureza ou viver de máscaras:

- Pyá, seu coração precisa de uma casa. Se você é incapaz de lidar bem com as emoções, fará uma fortaleza ao seu redor. E aí estará isolado. E seu coração mofará. Ou se transformará numa pedra. Por outro lado, se você não tiver uma morada para ele, estará à mercê do tempo e das forças destrutivas. Por isso, construa uma casa para seu coração. Uma casa muito arejada. E convide seus amigos a freqüentá-la! Sem máscaras, sem fortalezas, sem muros. Apenas uma morada arejada e aconchegante! Pyá tekoha!

- Perdão?

- Pyá tekoha. A morada do coração. Faça uma bem arejada – e continuou semeando batatas.

Pensei sobre todos os novos domínios que passei a viver desde meu reencontro com Avaeté. Foi pouco mais de uma semana e já vivia uma vida muito diferente da que levava. Aprendi coisas novas, tanto aqui, no contato com a terra, quanto em domínios que não estava acostumado a transitar: o domínio da alma e o domínio do coração. Territórios novos, uma imensidão a explorar. A mente é necessária e importante. Mas é apenas uma dimensão, às vezes árida, desta multidimensionalidade que é a vida.

Ficava imaginando o quanto havia para explorar nestes novos terrenos. Seria ainda uma viagem tão surpreendente quanto o foi até agora? Aprenderia ainda muito? Avaeté garantia que sim. O quão transformadora seria? No que me transformaria? O medo e a expectativa de continuar uma viagem radical é tão grande ou maior do que a de iniciar uma viagem desconhecida.

106

Page 107: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Nosso retorno à comunidade, à tardinha, era de extenuação física, mas também de leveza espiritual. Um banho rápido, um jantar frugal e nos deslocávamos para a rua para observar a noite e conversar. Certa feita, Pedro indagou-nos:

- Vocês têm uma idéia dos próximos destinos da sua viagem?

- Iremos a San Pedro. Mas creio que teremos algumas paradas pelo caminho. A passagem para o norte é muito linda. Do verde do sul ao deserto no norte – disse Avaeté.

- Como vocês pretendem deslocar-se até lá? É um longo trecho... – comentou Pedro.

- Como o fazem os verdadeiros viajantes: do jeito que der – falou displicentemente Avaeté.

Pedro, então, recomendou:

- Vocês poderão obter carona, mas evitem fazê-lo nas estradas. A polícia não permitirá. Peçam ajuda nas comunidades. Quanto menores, melhor. Se quiserem efetuar algum trecho a pé, evitem também as estradas principais.

- Não podemos pegar um ônibus ou trem, Avaeté? – indaguei, imaginando ser uma opção.

- Só tomaremos um transporte impessoal se for estritamente necessário. Por que se apressar se podemos aprender imensamente durante a viagem?

Pedro comentou com gentil entusiasmo:

- Caro Avaeté: desejo informar-lhe que precisamos estar em La Serena em poucos dias. A van já está em ordem. Federico, Mestiza, Miguelina e eu temos negócios a realizar no Vale do Elqui. Não deseja ir conosco?

Aprendi a gostar daquelas pessoas. Mostraram-se pessoas amorosas. Achei que prolongar o contato com aqueles novos amigos seria maravilhoso. Avaeté, percebendo minha inclinação a aceitar o convite, perguntou:

- O que você acha, Pyá? Estaríamos em boa companhia?

- Mas é claro! Adoraria que seguíssemos viagem juntos – afirmei.

107

Page 108: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Não era somente a idéia de estarmos em boa companhia na estrada. Acreditei que teria algo mais a aprender com aquela gente boa. Pedro sentenciou, então:

- Muito bem, está decidido. Tomaremos as providências necessárias e partiremos em três dias.

Foram mais três dias de convívio alegre em Pikuche. Além de trabalhar, também fizemos trilhas para conhecer os arredores. Federico disse que não poderíamos deixar o lugar sem subir o Vulcão Llaima. No dia anterior à nossa partida, Chiwai nos levou até o caminho de subida da montanha. Naturalmente, não subimos até o topo, mas foi uma experiência maravilhosa. Faltava o ar, tivemos dificuldades em escalar pedras, terrenos arenosos e neve, mas tivemos uma visão linda dos arredores. No meio do caminho, extenuado, pedi a Chiwai para que regressássemos, e assim foi feito.

Na última noite discutimos sobre a viagem. Repassamos o roteiro. Federico nos disse que não haveria alternativa a não ser tomar a principal estrada de ligação entre o sul e o norte: a Ruta 5. Disse que era uma longa e retilínea estrada, mas haveria oportunidade de sair dela e visitar locais de beleza natural e humana, como os pequenos povoados serranos ou litorâneos.

Terminado o planejamento da rota até La Serena, local onde nossos caminhos tomariam rumos distintos, recolhemo-nos aos aposentos e tratamos de preparar as mochilas. A de Avaeté era invariável. A minha foi brevemente aumentada por mantas e apetrechos que os nativos estavam acostumados a levar. Algum alimento de emergência poderia ser útil num aperto, como trigo ou arroz. E nada mais que isto.

Fiz um balanço com Avaeté do que acontecera até então. Disse que todo este mundo novo era maravilhoso, que sentia falta de algumas coisas da minha vida anterior, mas que tinha a esperança de uma abertura para coisas ainda mais maravilhosas à frente.

Uma coisa apenas me surpreendia. Disse a Avaeté que imaginava que nossas lições seriam mais como que palestras ou aulas que ele proferiria a mim e a eventuais outras pessoas. Contrariamente a isso, quantitativamente Avaeté havia falado muito pouco em comparação à minha expectativa. Avaeté limitou-se ao seguinte:

108

Page 109: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Não se aprende a viver por palestras. A única maneira é experimentando o viver. Boa noite, Pyá.

- Boa noite – desejei, puxando as cobertas.

109

Page 110: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Seis

110

Page 111: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Tomamos café com um misto de saudade e expectativa. As mochilas já estavam na sala à espera de pô-las nas costas e partir. Miguelina encostou a porta assim que passamos e fez uma pequena pausa para pedir por algo com os olhos fechados, em forma de reza. Acho que pedia pela sua comunidade e pela nossa viagem. Assim que me viu olhando para ela, apontou para o céu:

- O espírito azul, lembra?

Estava pedindo proteção aos antepassados. Quando nos dirigimos à companheira van, com nossos amigos Federico e Mestiza aguardando por nós, brinquei:

- Acho que estas pessoas têm alguma dificuldade com despedidas. Toda vez que partimos, eles nos acompanham.

- Não esqueça o que eu lhe disse: nós é que os acompanhamos... – corrigiu-me Avaeté em tom bem-humorado.

Federico estava orgulhoso do seu carro. Estava consertado e respondendo bem aos seus comandos. Regressamos pelo caminho que há dias atrás passamos, enxergando uma paisagem diferente. Estava ensolarado, mas nós estávamos mais alertas e descansados do que quando chegamos. O Vulcão Llaima estava grandioso à nossa direita. Ingressamos também à direita na estrada que leva a Melipeuco e cruzamos o povoado em direção à cidade de Temuco.

Temuco é uma espécie de capital cosmopolita da nação Mapuche. É a maior cidade da região e é destino intermediário de muitos viajantes que se aventuram cordilheira adentro, em direção aos povoados, montanhas, vulcões e lagos.

Nossa parada na cidade explicava-se. Desejávamos comprar alguns suprimentos para viagem. Ingressamos no mercado central e circulamos pelas vielas em forma de labirinto. Havia um clima de total intercomunicação entre vendedores e clientes, com altos brados, música, pechinchas e congregação. Compramos um ou outro mantimento e paramos na famosa banca onde Avaeté, Pedro e companhia tomaram “umas que outras” anos atrás, quando se conheceram.

Pedimos cerveja, pisco sour e aperitivos. Paramos ali por alguns momentos, brindamos aos “velhos tempos” e partimos logo a seguir.

111

Page 112: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Antes de sair da cidade, passei em uma livraria para comprar algo para ler. Fiquei feliz ao encontrar um livro de poesia e prosa Mapuche. Mostrei a Miguelina, que aprovou completamente: era Elicura, um dos maiores poetas do seu povo.

Tomamos a Ruta 5, uma rota também mítica. Ela é parte da grande Rodovia Panamericana, que liga o Alasca a Terra do Fogo. Não havíamos rodado mais que cinqüenta quilômetros, quando carabineros nos abordaram. Apresentaram-se documentos, trocaram-se algumas palavras de identificação e fomos saudados com um respeitoso e sincero “buen viaje”.

Logo em seguida começou a chover. Mestiza disse que, às vezes, a chuva estende-se por até vinte dias ininterruptos ou mais. “Ah... aquela gostosa sensação de proteção da chuva...” – pensei. Deixamos a estrada na altura de Collipulli e rumamos para oeste. O objetivo era, conforme noticiou Federico, passar a noite no Parque Nahuelbuta. À medida que penetrávamos no parque, notamos o adensamento da vegetação, predominantemente florestas de araucárias e carvalhos. Algumas destas árvores são gigantes, com até cinqüenta metros de altura, dois metros de diâmetro e idade de até 2.000 anos. Paramos para abraçar algumas delas e logo em seguida partimos em direção à costa. Seria uma emoção encontrar o Oceano Pacífico, com suas águas frias.

Pelos caminhos observamos a rara raposa de Chiloé. Era uma mãe com seus filhotes. Notamos também muitas orquídeas. Dos picos do parque, com até 1.500 metros de altitude, era possível mirar tanto o mar quanto os Andes. Foi possível realizar algumas caminhadas curtas antes de acampar.

Obtivemos orientações para nos instalar no camping Pehuenco, não muito distante da administração do parque. Comemos no jantar arroz com lingüiça, uma especialidade de Avaeté. Que louca sensação. Estava me acostumando àquela vida! Parecia algo que estava programado para acontecer! Boa noite, estrelas. Boa noite, lua. Boa noite pehuens.

2

Não foi preciso acordar muito cedo no dia seguinte. Por volta das oito horas e trinta minutos da manhã iniciamos o despertar, com

112

Page 113: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

o tradicional mate de Avaeté. Ele sempre tinha à mão sua cuia, sua bomba e erva mate. Aquecer água sem deixá-la ferver e sorver aquele estimulante matinal... Já estava habituando meu corpo àquela prática. Avaeté descreveu-o brevemente:

- Este hábito se cultiva em toda região sul da América do Sul. Ele é originário do povo Guarani, que utiliza a erva mate como digestivo e estimulante. É um hábito saudável pela manhã ou ao final da tarde.

Para deixar o parque, optamos por seguir para o norte até Concepción. Utilizamos rotas secundárias, costeando o oceano e passando por pequenas praias desertas e elevados rochedos. Não resisti a tomar um banho de mar naquelas águas geladas de doer. Os demais se limitaram a apreciar a vista. Ironizaram ao dizer que, se avistassem uma tsunami, avisariam com a devida antecedência.

Prosseguimos por estradas pequenas que ligam pequenos povoados costeiros, resorts e colônias de pescadores. Miguelina aconselhou que não poderíamos deixar de visitar Isla Negra. Esta pequena vila guarda uma das míticas casas que pertenceram ao poeta Pablo Neruda.

A casa é um tesouro. Aberta à visitação, se parece com um barco, com a proa apontando a direção sudoeste. Ele próprio pediu para que fosse enterrado lá. Sua sala é como um grande convés. Próximo à proa está uma escotilha, diante da qual se encontra a mesa de trabalho de Neruda. Federico mirou através da janela e sentenciou o mesmo que qualquer viajante diria diante da cena:

- Com esta vista diante da minha mesa, até eu viro poeta...

De fato, era uma vista maravilhosa do mar. A própria mesa de trabalho, contam, foi feita de uma tábua que chegou à praia pelo mar. Neruda costumava dizer que era presente das águas.

Fomos dar uma volta na praia. Sentamos sobre as rochas, admirando as ondas daquele azul profundo e enorme. Este lugar tem o poder de demonstrar que a vida é invulgar. Repentinamente, um cachorro escalou a pedra onde eu estava e farejou-me. Logo a seguir, deitou-se a meu lado. Dei uma olhadela para Avaeté, como que imaginando algum pensamento seu. Avaeté disse:

- O cachorro é seu animal protetor e guia. Mas não qualquer cachorro. Apenas aqueles que vivem na rua. Como esse vira-lata que

113

Page 114: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

está ao seu lado. Ele está dando um sinal. Um sinal de que você receberá um ensinamento. Alegre-se, Pyá!

Acariciei o cão safado e disse-lhe que agradecia por estar ali. Federico, bem-humorado, lascou:

- Se cachorros são bom sinal, você vai “fazer a festa” nesta terra. O que mais há por aqui são cachorros de rua. Rá, rá, rá! – riu.

Pedro emendou:

- Esta é a terra dos cães livres! Viva Neruda! – e ergueu uma taça de vinho imaginária. Todos brindaram.

Ficamos ali sentados por algum tempo sentindo a brisa e a maresia. Logo a seguir, já sentindo o estômago roncando, combinamos procurar um local para comer. Seria um almoço-janta. Outra pequena extravagância permitida. Seguimos até uma hostería pouco conhecida dos turistas, mas cujo restaurante servia um excelente curanto.

Pedimos pisco de aperitivo e depois vinho. O curanto veio a seguir, com seus mariscos, carnes de peixe, porco e frango, verduras, lingüiças e batatas. Uma delícia. Comemos maravilhosamente bem.

Não tardou para que Federico nos recomendasse retornar à estrada. Seriam mais de trezentos quilômetros ainda a percorrer, se desejássemos acampar do Parque Fray Jorge. Federico informou que haveria uma surpresa nos aguardando se chegássemos a tempo ao local. Para isto, pegamos a Ruta 5, visando ganhar tempo.

Recostei minha cabeça no vidro da janela e fui curtindo as paisagens. Elas foram aos poucos deixando de ser verdes para tornarem-se levemente amareladas, rasteiras e, muitas vezes, deixando à mostra a arenosidade do terreno e a cor das rochas vulcânicas. O deserto estava voltando aos poucos. Eu amo o deserto. Ele traz a sensação da vastidão do mundo e do quanto estamos à mercê das suas forças. É a mesma de quando você está em alto-mar ou no topo das montanhas. Além disso, o deserto é amplamente silencioso.

Avaeté serviu-nos mate para injetar um pouco de cafeína e manter-nos alertas. Era, sobretudo, para facilitar a digestão daquela extravagância alimentar. E oferecer um pouco de hidratação, retirada pelo deserto e pelo vinho. A tarde ia dando seus últimos sinais de vida. Em não mais que uma ou duas horas, seria noite escura.

114

Page 115: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Sentíamos certo cansaço, à exceção de Federico, que se mantinha altivo e alerta. Não tardou a chamar a atenção para que ficássemos atentos, pois a estrada poderia, às vezes, ser traiçoeira. Não sabíamos quanto a quê deveríamos ficar alertas, mas seguimos seu conselho. De repente, uma névoa espessa surgiu do nada, impedindo completamente a visibilidade diante do veículo. Olhei preocupado para Federico, mas ele estava com um leve sorriso no rosto. Parecia deliciar-se com a situação.

A coisa ficou feia e fantasmagórica. É que aquela névoa não era uniforme. Era como se nuvens tivessem baixado subitamente à estrada, em formatos pincelados, de maneira que cortávamos as mesmas, gerando pequenos intervalos de visibilidade entremeados com muita neblina à medida que o veículo deslocava-se. Algo como um formar-se e esvair-se rapidamente. A estrada às vezes serpenteava, mas não tínhamos a menor idéia de para onde, nem se haveria automóveis ou caminhões à frente. Comecei a ficar um pouco aterrorizado. Apenas os Mapuche não estavam preocupados. Eu e Avaeté nos olhávamos. Federico sorria.

- Gostaram da surpresa? – perguntou.

- Por favor, fique atento à estrada, Federico – disse eu, temendo por um acidente.

- Fique tranqüilo. Estamos voando no céu! – e sorriu ao olhar para mim através do retrovisor.

Era lindo e aterrorizante ao mesmo tempo. Perguntei, afinal, o que era aquela surpresa. Pedro respondeu:

- É a camanchaca! Ela aparece na costa do Pacífico pelas variações de temperaturas entre o oceano e o ar costeiro. Não é maravilhosa?

- E sinistra, também! – emendei eu, já me acostumando um pouco ao fenômeno.

- Neste caso, também é sinal de sorte. Estamos próximos à região de Fray Jorge – informou Pedro.

- Por aqui o deserto costeiro vai dar lugar a uma ilha de bosques úmidos alimentados pela camanchaca. A neblina fica presa neste local pela Cordilheira da Costa – continuou Mestiza.

115

Page 116: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- E aqui encontraremos em abundância várias espécies animais e vegetais, como a caneleira, nossa árvore sagrada – concluiu Miguelina.

Comecei a gostar do lugar pela maneira carinhosa com que se referiam à natureza. É maravilhoso! Adentramos ao parque e fomos até um cerro onde poderíamos acampar naquela noite. Foi ainda mais difícil deixar a estrada de asfalto e tomar a estrada de terra até o local onde passaríamos a noite. Mas Federico disse que valia a pena. Paramos a van em um lugar que pareceu adequado a ele. Do local, podia-se escutar o som do mar, com suas ondas indo de encontro aos rochedos. Tratamos de tomar chá quente e lanchar algumas empanadas. Por sorte, logo em seguida, o céu abriu-se e conseguimos vislumbrar as estrelas, em contraste à escuridão logo abaixo, na direção dos penhascos.

Logo após o lanche, Pedro convidou-me para uma caminhada exploratória noturna. Federico avisou para que tivéssemos cuidado com os rochedos, pois estávamos a uma altura considerável e muito próximos ao mar.

Andamos cerca de quinhentos metros com uma lanterna e sentamo-nos sobre uma pedra para sentir a brisa que vinha do oceano. Pedro puxou assunto:

- A mãe-terra é muitíssimo generosa, não concorda?

- Sim, não há dúvida. Longe da cidade é mais fácil sentir seu poder – respondi.

- Sentimos seu poder através da paisagem e das pessoas que vivem em contato mais direto com a natureza – adicionou Pedro.

- É uma pena que muitas destas pessoas estejam sucumbindo, não é mesmo?

- Sim, é verdade. Esse sofrimento o afeta?

- Eu diria que sim. Sinto a destruição em várias partes do planeta. Aniquila-se a flora em troca de lavouras gigantes, destruindo o habitat de inúmeros animais. E o pior de tudo, para mim, é que estão destruindo os seres mais ricos espiritualmente deste mundo: os povos nativos. São os maiores exemplos de uma vida sustentável que se pode ter.

116

Page 117: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Você fala como se fossem terceiros que estivessem fazendo essa destruição. Como se você não fosse responsável...

- É verdade, Pedro. Mas eu tenho consciência da minha participação nisto tudo. O simples fato de viver como um “civilizado” o torna responsável. Sinto realmente que colaboro com esta situação. Veja, por exemplo, aquele colóquio onde nos conhecemos. Muita conversa, pouco resultado prático. Inclusive de minha parte. Senti como era ineficaz a minha pretensa cruzada pela transformação do mundo. Por este motivo, entre outras coisas, aceitei o convite de Avaeté e abandonei tudo. Mas, além disso, o que é possível fazer?

- Creio que esse tipo de atitude só lhe trará angústia, Pyá. Deixe-me contar-lhe algo...

- Prossiga – incentivei.

- Você é uma pessoa iluminada e de sorte, Pyá. Poucas pessoas no mundo têm a chance de conhecer o que você está prestes a testemunhar através de seu benfeitor.

- É verdade. Até agora não compreendi porque Avaeté decidiu convidar-me para esta aventura.

- Um dia entenderá. O mais importante, neste momento, é viver intensamente o que está diante de você. Viva intensamente essa aventura.

- Mas, Pedro, viver esta aventura poderá acabar com minha angústia?

- Depende do quanto se entregará a ela. Vou mostrar-lhe como.

“Meu povo tem vivido centenas de anos de lutas. Para ser sincero, estamos bastante cansados delas. Já brigamos em várias batalhas, assinamos centenas de acordos, fizemos milhares de manifestações, mas nossa vida tem se reduzido paulatinamente, tanto em quantidade quanto em qualidade. Apesar disso, somos e continuaremos a ser profundamente o que somos em essência: um povo Mapuche. Poderão nos aniquilar totalmente um dia. Mas até lá, estaremos vivendo a felicidade da vida e a energia da sobrevivência.”

- Mas vocês pareciam tão felizes naquelas celebrações que testemunhamos!

117

Page 118: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Sentimos a felicidade de estar vivos e ligados a este mundo maravilhoso. Por isso, celebramos cada vez mais. Mas temos nossos momentos tristes, também, quando perdemos o direito a viver livres sobre a terra. Ela não nos pertence. Você sabe o que significa a palavra Mapuche?

- Não.

- “Gente da terra”. Isto significa Mapuche. Nós pertencemos a terra. A terra não nos pertence. E ninguém poderia ter o direito de adonar-se dela e nos expulsar. Isto não é um desrespeito aos Mapuche, apenas. É um desrespeito à própria terra...

- Compreendo. Isso vem acontecendo cada vez mais...

- Sim. Em primeiro lugar, através do Estado e suas instituições impessoais, como exércitos e sistemas legais e de propriedade. Depois, pelas grandes propriedades agrícolas. E, por fim, pelo poder dos grandes negócios.

- Você tem razão.

- Mas, pense bem, Pyá. Você acredita que isto ocorre apenas conosco? Você acha que isto só acontece ao povo Mapuche?

- Bem, creio que não, Pedro. Muitos povos vêm sofrendo esta pressão...

- Muitos. Muitos mesmo. Milhares de povos durante centenas de anos, por este continente e pelo mundo afora.

- Sim, é muito triste.

- Triste? O que você sente de verdade a respeito disto, Pyá?

- Não sei. Sinto uma espécie de compaixão. Sinto que deveria fazer algo, ajudar de alguma forma...

- Você sente pena?

- Não, Pedro. Não é pena!

- Não tenha pudor em sentir pena. Se for o que você sente, conscientize-se de que é isso que sente. Não negue esse sentimento por uma questão social. Sinta o que você sente.

- Sei lá. Acho que não é pena. É apenas compaixão...

118

Page 119: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Você não deve sentir pena, Pyá. Sabe por quê? Porque sentir pena o impedirá de integrar-se com aqueles por quem você sente pena. E, com isto, deixará de compreender o real valor do outro...

Ao terminar de dizer isto, silenciou por alguns instantes, como que para compreender consigo próprio a extensão daquelas palavras. Eu fiz o mesmo. Tentei entender como a pena o isola do outro. Depois de um tempo desse mergulho interior, Pedro disse com traços de melancolia e esperança ao mesmo tempo:

- Avaeté também sofre, Pyá. Avaeté é um homem vivido e de muita energia, mas ele sofre diariamente com o que fazem a ele e a seu povo, assim como aos Mapuche. Avaeté foi o único de sua família que decidiu por não ir viver na cidade, nem ser exterminado dentro do seu próprio território. Avaeté adotou uma dentre muitas alternativas. Foi viver na estrada, alimentando sua cultura e alimentando-se de outras culturas. Avaeté não teve autopiedade, nem jamais teve pena dos povos que ele conheceu. Ele mergulhou fundo no conhecimento dos povos da terra. Por isso, é um grande homem.

- Também sinto isso a respeito de Avaeté. Apenas acho que não tenho a total extensão do seu sofrimento...

- Nem precisa, Pyá. Como lhe disse, você não deve sentir pena. Permita-me dizer algo muito direto, Pyá?

- Claro! O mínimo que pode me acontecer é receber um grande ensinamento...

- Pena é sinal de arrogância, Pyá. Não sinta pena. Não seja arrogante. Caso contrário, você estará fechado ao valor daqueles por quem você sente pena. Abra-se para o verdadeiro valor que existe em cada uma das outras pessoas e povos.

Realmente, gente como Pedro e seus amigos são de uma sensibilidade impressionante. Mais uma vez, dão provas da capacidade em apontar nossas mais profundas cavernas. Por trás da sua pena e da sua vontade de ajudar – sentimentos, aliás, socialmente bem aceitos – esconde-se a arrogância daquele que acha que é mais e que pode mais. “Como você é arrogante, egoísta e ingênuo, Pyá!” – esbravejei comigo mesmo.

Antes de retornarmos ao acampamento, Pedro recomendou num tom mais descontraído:

119

Page 120: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Volte aqui ao amanhecer. Lembra-se da surpresa de que Federico mencionou?

- Claro. Mas achei que ela se resumia à camanchaca que vimos esta noite...

- A surpresa ainda não foi completamente desvendada. Volte aqui amanhã – recomendou, sorrindo.

Em seguida, regressamos ao acampamento. Antes que adormecesse, disse a Pedro:

- Obrigado pela sua sinceridade.

- Você pode contar com ela sempre – disse mansamente, enrolando-se na sua manta e adormecendo logo a seguir.

3

Acordei-me ao toque do meu alarme e do canto dos pássaros. Como recomendou Pedro, resolvi acordar um pouco mais cedo do que o normal para verificar a continuação da “surpresa”. Observei que todos, à exceção de Avaeté, ainda dormiam. Fui até a clareira onde conversamos na noite anterior e vislumbrei uma cena inusitada: estávamos sobre as nuvens! Do alto da montanha avistamos um mar de algodões se estendendo até o horizonte, cobrindo totalmente o mar. Você se surpreende porque, ao invés de enxergar um oceano azul à sua frente, o que você vê é um mar de nuvens brancas aos seus pés. Avaeté também se maravilhava com a visão. Disse-me que, apesar de ter visitado os amigos Mapuche várias vezes, jamais havia presenciado o espetáculo da camanchaca desta forma. Ficamos ali por vários minutos, mateando. Em breve, nossos companheiros também se achegaram. Federico era o mais orgulhoso.

Uma hora depois, já havíamos regressado à estrada. Não demorou que passássemos pela cidade de Coquimbo e por sua vizinha, La Serena, local de nossa despedida. A partir deste ponto, nossos amigos seguiriam seu rumo ao Vale do Elqui adentro, enquanto nós seguiríamos o rumo norte.

Fazendo as contas, não foram muitos os dias em que convivemos. Pouco mais de uma quinzena. Mas a percepção é de que foram meses. Tantas coisas aconteceram na companhia destes amigos, que despedir-se agora não era tarefa fácil. Saltamos nas

120

Page 121: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

cercanias do centro da cidade, junto à Rodovia Panamericana, e abraçamos demoradamente nossos amigos antes que partissem para oeste. Miguelina recomendou, como uma mãe ao filho:

- Aprenda muito, Pyá. Depois retorne e nos conte tudo.

Os amigos Mapuche tinham negócios a fazer e pessoas a visitar no Vale do Rio Elqui. O rio alimenta povoados e plantações de vários tipos, como uvas, de onde se produz o famoso pisco. É região também dos mais importantes observatórios astronômicos do mundo, pela pureza do ar deste deserto. Gostaria de poder ficar aqui mais um pouco. Pelas estrelas do céu e pelas estrelas da terra, os brilhantes amigos Pedro, Miguelina, Federico e Mestiza.

Senti meus olhos umedecerem-se ao partirem. Pela primeira vez em nossa viagem, estávamos por nossa própria conta: apenas eu e Avaeté. Ele me deu um tapinha nas costas e disse:

- Vamos, parceiro? Temos um belo trecho até o Deserto do Atacama e precisamos de uma boa carona. Já sente saudades dos amigos Mapuche?

- Claro. A companhia foi maravilhosa– agarrei seu ombro e balancei-o de leve.

À beira da Ruta 5, bem no meio da cidade, o movimento estava intenso. Carros, caminhonetes e caminhões passavam rapidamente à nossa frente.

Aprontamo-nos para obter alguma carona. Dedo polegar apontando a direção norte, ficamos ali por cerca de uma hora e meia. Obtivemos carona de um comerciante de Antofagasta que acabara de entregar alguns produtos na cidade e estava regressando. Perguntou-nos para onde rumávamos e informamos que, quanto mais ao norte, melhor. Informou-nos que dormiria em Caldera e partiria para seu destino final pela manhã.

- Está ótimo para nós. Daremos um jeito quanto à noite – disse Avaeté.

Dentro de quatro horas estávamos em Copiapó, logo após cruzar a ponte sobre o rio de mesmo nome. Nas horas em que passamos na estrada, conversamos sobre os negócios, na forma como o povo vive, sobre futebol e sobre o movimento na estrada. Chama a atenção a quantidade de pequenas grutas e tumbas em miniatura ao longo da rodovia. Nosso amigo comerciante, de nome

121

Page 122: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

António, disse que são animitas, em memória de pessoas mortas na estrada. Fiquei assombrado com a quantidade.

Mais uma hora e chegamos ao povoado litorâneo de Caldera. António deixou-nos junto ao cais da cidade e partiu para o seu hotel. Pretendíamos ficar em alguma hospedaria barata, por isso nos acercamos do movimento portuário para obter informações. Alguns pescadores indicaram uma casa de família que proporcionava hospedagem e comida baratas. Era bem próxima, junto à praia.

Alimentamo-nos e caminhamos brevemente pela areia à beira-mar. Crianças jogavam futebol e pelicanos chegavam para descansar. Avaeté disse que no dia seguinte ingressaríamos definitivamente no Atacama. Seria outra travessia importante. Comecei a preparar meu espírito para ela. Acho que parte da preparação exigia um revisar dos ensinamentos. Avaeté disse que teríamos muito tempo para isto.

No dia seguinte, conforme o combinado, encontramos António no cais. De Caldera a Antofagasta, mais três horas de viagem. A paisagem é muito seca nesta região. A estrada estende-se sobre um terreno arenoso, às vezes em linha reta por quilômetros e quilômetros. Você enxerga um ponto distante de estrada e leva vários minutos para alcançá-lo. Montes alaranjados situam-se a leste da estrada.

António nos informou que, apesar da secura, ocasionalmente chove, momento em que ocorre o fenômeno chamado deserto florido. Mostrou-nos uma foto com um tapete imenso de flores violetas, brancas, rosas, vermelhas e amarelas estendendo-se até o horizonte. Elas brotam como que “do nada” e explodem em cores. Fiquei imaginando. “Como pode?! Toda esta vida latente sobrevivendo na adversidade, somente esperando uma oportunidade de florescer...”

Depois de rodar muito, passamos por uma enorme escultura em forma de mão. Ela parece que está saindo da areia e apontando para o céu. “La mano del desierto”, informou António. Estávamos a apenas setenta quilômetros de Antofagasta. Perguntou onde desejaríamos nos acomodar. Como ainda era cedo, preferimos não nos instalar em um grande centro urbano. Seguiríamos até Baquedano. António disse que o tráfego até lá seria menos intenso, mas, ainda assim, seria possível obter outra carona. Deixou-nos no trevo de acesso à cidade e desejou-nos boa sorte. Caso mudássemos de idéia e permanecêssemos em Antofagasta, recomendou que não nos

122

Page 123: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

assustássemos com os terremotos. “Aqui a terra treme um pouco.” – disse, sorrindo.

Foi realmente mais difícil obter uma carona até nosso destino. Baquedano é uma junção ferroviária onde só se encontram a estação e um velho cemitério de trens. Para nossa sorte, um dos funcionários da estação estava em Antofagasta para buscar suprimentos e mostrou-se disponível para levar-nos até o local em sua velha caminhonete. Perguntou-nos por que desejávamos ficar em Baquedano. Avaeté disse-lhe que um velho cemitério de trens é um bom local para passar uma noite tranqüila. Acho que se referia à recusa de ficar em Antofagasta, uma cidade um tanto grande.

Obtivemos permissão para passar a noite numa das instalações da estação. Conversamos um pouco com nosso hospedeiro sobre sua vida nesse local afastado e tivemos uma amostra verbal do que é uma vida solitária e tranqüila. Acomodamo-nos em velhas camas.

No dia seguinte, acordamos cedo. Avaeté resolveu surpreender. Sugeriu que fôssemos a pé de Baquedano até Chacabuco, um velho vilarejo salitreiro abandonado, trinta quilômetros à frente. Pela distância levaria um dia inteiro de caminhada.

Devo confessar que seria a primeira vez que iria aventurar-me a pé numa região desértica, sem proximidade de qualquer recurso. A idéia me assombrava um pouco, mas acreditava que Avaeté sabia o que estava fazendo.

- Uma real sensação de estar livre e, ao mesmo tempo, nas mãos dos deuses, Pyá – disse alegremente.

Liberdade e sob controle dos deuses é uma contradição para nós, “civilizados”. Durante nossa caminhada, haveria muito tempo para ruminar o significado de tudo o que estávamos vivendo. Inclusive o próprio fato de viver em contradição, sem estar preocupado com isto.

Saímos dando os primeiros passos para nordeste com o sol logo acima do horizonte. Deixamos para trás a estação e os vários exemplares de locomotivas e vagões depositados no cemitério ferroviário. Seria um dia quente. Pelo menos não havia mais aquele visual almofadinha de calçados ou mochilas novas. Já estavam cobertos por poeira do deserto.

123

Page 124: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Optamos por caminhar afastados da estrada. O terreno tem um ou outro tufo de vegetação dourada. À nossa frente, a perder de vista, ondulações alaranjadas e marrons.

Coloquei-me a repassar alguns dos muitos ensinamentos que tive desde que começamos a viagem. Uma síntese volta e meia é importante, porque você pode colocar as coisas num todo coerente, vendo que os fragmentos fazem parte de algo maior. Queria a participação de Avaeté nisto:

- Alô. Aqui é Terra chamando Marte. Responda, Marte. Você está aí? – cutuquei Avaeté, imaginando que estava absorto em algum pensamento.

- Ah, o viajante estelar querendo contato... Normalmente sou eu quem tem que tirá-lo do seu transe mental – devolveu Avaeté.

- Imaginei que você estava em outra freqüência.

- Eu sempre estou conectado em várias freqüências. Ok, entendi. Você quer atenção. Pergunte.

- Na verdade, Avaeté, desejo sua ajuda para ter uma compreensão de todo dos ensinamentos que tivemos até agora – esclareci eu.

- Prossiga.

Nossa conversa tinha lugar naquela imensidão. Mesmo que você ache que seja a conversa mais importante do mundo, nota que, ao mesmo tempo, se dá como se fossem dois grãos de areia conversando naquele deserto. Uma coisa muito maior nos envolve, e somos diminutos diante dela. Apesar disto, continuei:

- Lembra, Avaeté, que eu buscava uma chave mágica que me ajudasse a resolver todos os conflitos?

- Lembro. E quem no seu mundo não deseja uma?

- Sim, é verdade. Queremos ter certeza e tranqüilidade sobre o que é certo e o que é errado...

- Se essa chave existisse, ela seria perigosa. Tudo se tornaria monótono e a vida deixaria de existir.

- É o que você acha, Avaeté?

124

Page 125: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- É só uma intuição. Mas o real perigo é outro. Quando existe uma chave, você não é responsável. Se quem decidiu por você não for você, não se sentirá responsável pelas conseqüências. E aí sabemos no que isto pode acabar.

- É, Avaeté, pode ser catastrófico. Sabe o que acontece? A gente não quer sofrer. Quando se está em conflito, a gente sofre.

- Já falamos sobre o construtor dos caminhos, não é mesmo? Aquele que constrói os conflitos.

- Sim. Agora compreendo que na nossa mente ou na nossa alma reside a semente dos conflitos.

- Mais uma vez, você é responsável. Isto não é maravilhoso? Isto é que é liberdade, Pyá. Se alguém pode consertar os seus conflitos, esse alguém é você mesmo! Liberdade! Autonomia! Responsabilidade! – disse Avaeté, com o dedo indicador em riste.

- Avaeté, eu poderia até mandar confeccionar a bandeira do novo iluminismo: liberdade, autonomia e responsabilidade – disse eu, imitando o tom irônico costumeiro de Avaeté.

- Muito engraçado. Nada de novos movimentos libertadores. O mundo está cheio dessa baboseira. Continuemos nossa conversa.

Os pés doíam um pouco, pois havia dias que não fazíamos trilhas. Resolvi parar para colocar uma segunda meia, de modo a tornar mais firme meu pé dentro da bota. “Ah, ficou bem melhor.” Agora estava firme, sem que roce e crie bolhas. Você tem que fazer isto o mais cedo possível. Depois que as bolhas aparecem, é tarde demais, e você vai sofrer um bocado. Prossegui relembrando os ensinamentos:

- Expressei durante nosso tempo juntos vários conflitos pessoais ou da vida civilizada. Sofisticação tecnológica ou simplicidade ao viver? Eficiência ou liberdade? Fico feliz em enxergá-los agora de maneira completamente diferente e nova...

- Sim, Pyá. Acho que tivemos uma conversa proveitosa sobre isso. Que maneira é essa?

- A idéia da conexão, Avaeté. Tendemos a ver as coisas em conflito porque as vemos isoladas. E porque nós mesmos estamos isolados. Se olharmos para os conflitos conectando-os e nos conectando, procurando transcender a eles, não só como idéia, mas

125

Page 126: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

como seres que transcendem, novas percepções muito luminosas nos ocorrem.

- Fico feliz com sua mudança de visão, Pyá.

- Mas, Avaeté, existem lições que foram muito mais avassaladoras para mim.

- Diga-me quais.

Vota e meia parávamos para tomar alguns goles de água. Sombra, nem pensar. Não há naquele deserto. Você tem que carregar consigo um bom chapéu, de preferência aqueles que protegem o pescoço e as orelhas, além de roupas leves, porém que o cubram razoavelmente.

- Sempre acreditei que eu tinha responsabilidade em ajudar aos outros. Sempre achei que eu deveria ter a atitude proativa para ajudar a salvar o mundo. Você sabe, não é mesmo?

- Uhum. Você é uma pessoa de índole boa, Pyá. Essa é sua essência, não a abandone jamais. Mas precisa também amadurecer – exprimiu positivamente Avaeté.

- É verdade, Avaeté. Aprendi com Pedro e Miguelina que o querer ajudar, de maneira unilateral, é uma atitude muitas vezes arrogante. Dentro da minha arrogância, eu não enxergava que quem realmente precisava de ajuda era eu. Se alguém precisa ser salvo, este alguém sou eu mesmo...

- Mais uma vez, você se transcende através da conexão. Agora, parceiro, você tem consciência por que essas foram aprendizagens mais profundas?

- Acho que sim, Avaeté. Foram lições aprendidas com a alma, não com a cabeça. Para mim, esta foi a maior descoberta até agora. O quanto se pode aprender quando isto é feito através do corpo, do coração ou da alma. São dimensões atrofiadas de mim mesmo.

- E você compreende que, para aprender com essas dimensões, você tem que fazer experiências de outra natureza? Que a linguagem e o pensamento nem sempre são suficientes?

- Este é, em si, um ensinamento arrebatador, Avaeté. Aprender com a alma, com o coração, através de experiências completamente novas. E perceber que os ensinamentos, muitas vezes, brotam de

126

Page 127: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

dentro de nós mesmos... Que nós já sabíamos o que era preciso saber...

- Nossa alma como parte da alma do mundo. O poder disso é imensurável, Pyá.

No deserto, assim como na montanha, se você verdadeiramente deseja ajudar seus amigos, precisa em primeiro lugar cuidar de si próprio o mais responsavelmente possível. Ao cuidar de si, você não está sendo egoísta, mas consciente da ligação entre você, seu equilíbrio e o equilíbrio dos demais. Se você pensa em si próprio, desta maneira, não está sendo egoísta. Está sendo mais colaborativo do que de qualquer outro jeito.

- No sonho que tive, em que me via como um imenso lago de vinho que, ao mesmo tempo, era o mundo, tive o ensinamento do poder de uma alma maior, Avaeté. Se você quiser se apropriar de todo o vinho, morrerá de sede, embuchado e enfartado. Entregar-se ao poder do lago é entregar seu poder pessoal e, ao mesmo tempo, ter todo poder do mundo.

- Assim é o poder da alma, Pyá. Quando você abre mão, tem todo o poder à sua disposição.

O caminhar estava começando a ficar sacrificante. O sol nos castigava e a poeira secava nossa garganta. O peso infinito daquele deserto dava seus sinais. Caminhávamos mais lentamente. Seu poder mental vai sendo drenado lentamente. Quem precisa da energia é seu corpo. Avaeté perguntou:

- Como você vê essas dimensões de si mesmo, agora, Pyá?

- Partes de um todo, umas envolvidas pelas outras. Corpo, coração, mente, alma. Todas como que possuindo tentáculos, tocando umas às outras e tocando outros corpos, corações, mentes e almas. Criando uma grande alma presente no mundo.

Alegrei-me com aquela visão em forma de uma dança. Nela havia som de música saída de uma harpa. As dimensões do meu ser eram como que tecidos a dançar, enrolando e desenrolando uns aos outros, em uma dança de muitos dançarinos.

O sol estava castigando demais. Comentei com Avaeté que estava sentindo um razoável desconforto. Avaeté sugeriu um pequeno descanso. Sentamos e tiramos mantas da mochila para cobrir a cabeça e o corpo. Ficamos ali por cerca de meia hora,

127

Page 128: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

recompondo um pouco os sentidos. Avaeté estava bem mais disposto e preparado do que eu. Disse-me que eu sairia desta bem, não havia motivo para preocupações. Disse a Avaeté que me esforçaria.

Enquanto descansávamos, fui, aos poucos, recuperando as forças. Então senti uma fagulha de energia e limpidez mental. Levantei os olhos na direção de Avaeté. Senti uma energia que vinha do seu olhar. Mas senti, também, que aquela energia em seu olhar era uma espécie de reflexo da energia do meu próprio olhar. Neste momento, tive um vislumbre da mutualidade que passava a existir entre mim e meu benfeitor. Sua energia vinha da minha energia. Em mutualidade. Reconheci o quanto Avaeté começava a significar para mim. E reconheci o quanto eu poderia significar para Avaeté. Mutuamente. Ao mesmo tempo. Em qualquer tempo.

4

De repente, avistamos Chacabuco no horizonte. Foi preciso reaproximar-se da estrada, pois o velho vilarejo está à sua margem. Era quase noite. Desejamos tanto por uma sombra o dia inteiro e, quando ela surge, já não é mais necessária. Adentramos a cidade abandonada à procura de alguma viva alma. Chegamos à antiga praça central e chamamos por alguém. Vimos movimento vindo do lado ocidental da cidade, um abrir lento de portas, e notamos a presença de um homem portando um rifle. Perguntou-nos o que desejávamos. Avaeté gritou três ou quatro palavras em mapudungun. Imaginei serem palavras de apresentação em tom amistoso. O homem aproximou-se menos defensivamente e perguntou:

- Que deseja, irmão?

- Sou um irmão nativo, mas não Mapuche. Desejamos um local para passar esta noite. Caminhamos o dia todo para chegar até aqui...

- Não é comum ver caminhantes por estas bandas. Todos vêm motorizados!

- Isto é parte da caminhada espiritual. Permita-nos dormir aqui.

O homem olhou para Avaeté e para meu jeitão meio de turista, com o vermelhidão do meu rosto, e acreditou que éramos pessoas de

128

Page 129: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

bem. Descontraiu a mão do rifle e convidou-nos a dirigir-se aos aposentos utilizáveis do vilarejo.

Havia sinal de abandono por tudo. Apesar de muitos turistas visitarem o lugar, o mesmo era cuidado apenas com parcos recursos e com o ímpeto daquele homem que nos recebera. Mostrou seus aposentos, cozinha e sala, todos improvisados em antigas construções.

Conversamos e compartilhamos um pouco de água, bebida e comida. Ele nos contou sobre a história do lugar, tanto aquela contada aos turistas, como as que ele ainda mantinha na memória, apesar de poucas vezes relatadas. Falou do lugar, do que fora no passado longínquo e no passado próximo, como o fato de ter sido uma prisão nos tempos da ditadura. Ele próprio havia mais de vinte anos que vivia ali. Narrou também as próprias histórias, contando com a presença de fantasmas ou não.

Perguntou-nos o que faríamos nos próximos dias.

- Pretendemos chegar a San Pedro de Atacama amanhã – respondeu Avaeté.

- Fiquem aqui o tempo que quiserem. Não tenho muita oportunidade de conversar com viajantes corajosos, como os que havia nos velhos tempos.

- Um dia voltaremos. Agradecemos sua hospedagem.

- Eu é que agradeço sua companhia. Contem-me suas histórias!

Avaeté contou algumas passagens de sua vida pessoal. Contou sobre viagens a vários lugares do continente e falou de algumas aventuras. Imaginei que, algum dia, as nossas próprias aventuras se transformariam em histórias a contar. E senti orgulho por estar ali, fazendo parte de uma aventura que seria um dia contada no futuro.

5

A manhã seguinte necessitava uma carona. Seguir adiante a pé seria loucura, pois não haveria muitas bases no deserto nos próximos cem quilômetros. Precisaríamos de uma carona pela Ruta 25 até a cidade de Calama, para depois tomar a estrada que se direciona para

129

Page 130: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

o Salar de Atacama, a sudeste. Nossa sorte é que esta rota é freqüente entre viajantes que vêm do sul para conhecer o salar.

Não demorou em que estivéssemos a bordo de uma moderna caminhonete 4 x 4. O casal que viajava vinha de Santiago e pretendia passar alguns dias em San Pedro. Diziam que era uma espécie de lua-de-mel. Informamos sobre o tipo de viajem que fazíamos e ficaram muito interessados. Prometeram algum dia viajar desta forma. No momento, precisavam cuidar de suas carreiras de advogados.

O aparelho de som tocava canções românticas, seguramente cantadas por uma cantora cuja primeira língua não podia ser castelhana. De qualquer forma, eram canções muito lindas, que perfumavam as visões que tínhamos da paisagem. Até chegar a Calama, você vai se aproximando lentamente da Cordilheira dos Andes. Então você não entra na cidade, pois toma a direita na estrada CH 23. Você acerca-se ainda mais das montanhas, com seus cumes brancos e bases vermelhas, laranjas, marrons, cinzas e roxas. Aos pés delas, grandes extensões de planície marrons e brancas, devido ao sal. Enormes montes e vulcões surgem. O mais imponente, o Licancabur. Você o avista a quilômetros de distância.

De repente, você cruza a Cordilheira de Domeyko e passa a vislumbrar toda a imensidão do Salar de Atacama. Ele descansa sobre a depressão andina, local de um antigo mar interno. Descendo a cordilheira, você chega à sua base. Antes de San Pedro residem o Valle de la Luna e o Valle de la Muerte. O casal nos informou que naquela noite poderia estar acontecendo algum tipo de reunião no vale da lua. Perguntaram se não desejávamos ir até lá. “Para quem não está fazendo nada mesmo, por que não?” Deixamos a estrada de asfalto e ingressamos, já no fim da tarde, numa estrada de rípio bastante castigada. O chão estava muito seco e víamos às margens da estrada enormes placas de terra, como que sextavadas, numa espécie de calçada a perder de vista até o horizonte. Uma visão maravilhosa.

Chegamos ao vale a tempo de subir as dunas e admirar o ocaso do sol no horizonte. Algumas poucas nuvens conferiam uma riqueza maior ao desaparecimento do astro. Dezenas de pessoas também curtiam o espetáculo. Depois desceram as dunas, sendo que a maioria resolveu permanecer num local não muito distante, onde uma fogueira enorme estava sendo preparada. Havia idosos, jovens e

130

Page 131: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

crianças. Alguém abriu o porta-malas de seu carro e surgiram enormes alto-falantes do interior. Temi por músicas muito altas ou estridentes, mas daquele porta-malas começaram a sair tons melodiosos e doces, vindos de flautas, violinos, sintetizadores, tambores e vozes muito suaves. Letras em inglês e gaélico denunciavam músicas de inspiração medieval, dos tempos em que a máquina não era uma visão dominante.

À medida que a noite escurecia e a luz passava a ser oriunda apenas da fogueira, pequenas rodas de conversa e trago formavam-se. Juntamo-nos a uma delas, compartilhando uísque e tira-gostos diversos. Descobrimos que a festa era em função da lua cheia. Ela acabara de surgir de trás da Cordilheira dos Andes. Que visão aplacadora. Uma bola laranja enorme surgia de trás da cadeia. Quando isto aconteceu, todos começaram a gritar, dar “vivas”, cantar e dançar. O tom ritmado da música instrumental inspirou todos a saltar à volta do fogo. “Isto é demais!” – gritavam alguns. Todos dançavam uma dança saltitante e alegre ritmada por um tambor bodhran que crescia à medida que a lua subia e os espíritos iam a seu encontro. Foi uma festa emocionante, pacífica e cheia de graça e congregação. Encontrei uma garota de cabelos negro-avermelhados e olhos escuro-amendoados, como o mel selvagem, e comecei a dançar com ela. Ela tinha um jeito tímido-gracioso, firme-esvoaçante de dançar. Dançamos e dançamos e dançamos por horas. Depois nos escondemos atrás das rochas, aonde apenas a luz do luar nos chegava. Despimo-nos lentamente e fizemos amor lentamente. Poderíamos ficar ali abraçados numa noite sem fim. Estava ali, apenas com as estrelas e a lua cheia como testemunhas, amando uma antiga desconhecida de alma amiga.

6

Quando acordei, estava coberto apenas com minha manta. Minhas roupas descansavam junto a uma rocha. Vesti-me preguiçosamente e subi na pedra para ver o cenário. Havia algumas poucas pessoas à volta do que sobrou da fogueira. Entre elas, Avaeté conversando com alguns malucos. Desci até lá e resolvemos seguir adiante. Sentíamos certa leveza corporal e espiritual. Era um dia perfeito para morrer, não tivéssemos outros planos.

131

Page 132: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Pegamos carona num microônibus de turistas e passamos a viagem conversando e rindo. Descemos finalmente em San Pedro de Atacama, onde caminhamos pelas vielas encontrando hordas de viajantes de toda parte do mundo. Esta cidade é como uma olhadela no futuro dos vilarejos turísticos. Uma Vancouver dos viajantes de beira de estrada. Casas de barro escondem ambientes modernos à luz quente de velas. Gente de todo tipo e de toda origem escutando tudo o que é tipo de música, comendo todo tipo de comida e falando todo tipo de língua só para compartilhar uma mesma natureza exuberante.

Curtíamos aquele ambiente, mas estava claro que não ficaríamos muito tempo por ali. Escolhemos o restaurante mais barato da cidade, mas nem por isso menos transado, para comer algo fora do normal. Encontramos algumas pessoas conhecidas, como o casal em lua-de-mel e velhos parceiros de outras épocas.

Localizamos pouso numa pequena hospedaria e dormimos a exaustão dos dias de estrada e a expectativa do cruzar de um novo limiar. Meu corpo doía em vários lugares. No outro dia, ainda não totalmente recuperado da estafa, tomamos café e fomos até o posto policial da saída da cidade, local de partida de várias excursões.

Avaeté disse que cruzaríamos a cadeia de montanhas para conhecer os vales do outro lado. Precisávamos conhecer os diferentes lados das questões. Por isso, cruzar de volta os Andes era nossa próxima aventura. Sentamos junto à estrada até que alguma alma caridosa estivesse disposta a ter-nos como companhia.

Nossa carona veio a bordo de um gigante caminhão. Transportava algo para a cidade de Salta. Subimos na ampla cabine e nos acomodamos confortavelmente. O seu condutor era um homem moreno e robusto, com típicos traços andinos, e muito cortês.

A beleza desta travessia é demais. Você passa por montes imponentes, salinas brancas que o cegam com o refletir do sol, lagos escuros de bordas amarelo-arroxeadas. Que novos mundos espetaculares!

Avaeté olhou pela janela do veículo. Viu condores desenhando vôos circulares. Apontou e disse:

- O vôo dos pássaros é um sinal. Sinais da mãe-terra. Eles nos dizem que o que vai, volta. Deixemos que volte. Para depois ir, novamente, renovado.

132

Page 133: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté voltou a agir misteriosamente. O que será que está farejando? O que será que quis dizer? Não adiantaria perguntar.

Fiquei imaginando se toda aquela beleza se explicava. Fiquei pensando se aquilo era uma obra deliberada ou puro acaso. Se fosse deliberada, que mente seria responsável por tudo isto? Caso fosse aleatória, estaria esta beleza apenas em nossa mente? Fiz menção de perguntar a Avaeté o que ele achava. Avaeté apenas respondeu:

- Guarde sua faca analítica para depois. Aqui nesta altitude pode provocar acidentes! Rá, rá, rá! Os condores têm razão. Os condores têm toda a razão! Rá, rá, rá! – gargalhou e silenciou.

Em tom de bom humor, fiz sinal para que o nosso motorista não desse atenção. Que era típico do meu amigo esse tipo de maluquice. Ele apenas sorriu, como se estivesse acostumado. Avaeté estaria me tolhendo de minha vontade de compreender este mundo curioso? Bem, estava a fim de deixar a mente solta por algum tempo. A natureza é muito inspiradora de vôos mais amplos da mente. Por que não?

Sentia-me renovado por todos os acontecimentos da passagem pelo deserto. Usar um pouquinho a faca racional... Fazer algumas perguntas inspiradoras... Usar o intelecto produtivamente... Não poderiam nos trazer bons pensamentos?

133

Page 134: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Sete

134

Page 135: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Mais uma vez a passagem através da cordilheira é maravilhosa. A sua pequenez fica evidente. Você é tão pequeno que fica indistinto visto do céu. Formigas. Microorganismos. Pequenos animaizinhos que se deslocam lentamente sobre a superfície de salares, região de punas, areia do deserto, subindo montanhas. Pequenos organismos admiráveis diante da força dos ventos, da neve, do sol, das nuvens, dos rios, dos glaciais, das lagunas. Forças estas também indistintas se vistas do cosmos. Engraçado. A distinção é um ponto de vista. Você distingue isto e aquilo dependendo do seu ponto de visão. Se você “voa” baixo, distingue certas coisas. Se você voa muito alto, distingue outras. Coisas muito maiores ou menores que sua capacidade de enxergar são indistintas...

Distinguir. Do latim distinguère. Separar, dividir. E este, por sua vez, da raiz proto-indo-européia stig. Picar. Ah! A faca analítica de que Avaeté falava. A faca que corta a maçã. Desde quando viemos cortando a maçã?

Desde sempre, claro. Mas nossas facas andam bem mais afiadas desde que “renascemos”. Desde que renascemos com os planetas e o sol de Copérnico. Desde as cidades perfeitas de Da Vinci. Desde as leis do poder de Maquiavel. Desde as torturas à natureza de Bacon. Desde o sonho geométrico de Descartes. E desde a maçã de Isaac Newton.

Desde que “renascemos”, quisemos nos emancipar da escravidão das trevas medievais e dos intermediários de Deus. Afiamos as facas analíticas (do grego analúó: “desligar, separar, examinar”). Apuramos nossa racionalidade (do latim ratìo: “cálculo, medida, causa, projeto, método”). Polimos nossa intelectualidade (do latim lego: “reunir, ver sucessivamente, resenhar, fazer leituras, explicar”). Assim, definimos um método. Com as ferramentas certas, separaríamos, mediríamos, calcularíamos e reuniríamos tudo novamente numa explicação coerente. Não houve dúvidas quanto à eficácia deste método. É por ele que possuo um dicionário eletrônico em minhas mãos a 4.500 metros de altitude. Mas isto é tudo?

É certo, o intelecto nos libertou. Mas depois nos aprisionou. Talvez porque tenhamos exagerado na dose. Quando o intelecto nos libertou, libertou-se. E olhou para si mesmo e disse: “Fui eu!” E ao

135

Page 136: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

dizer isto, recortou-se a si mesmo, apartando-se do corpo, do coração e do espírito. O ditador intelecto, com suas novas leis, suas novas verdades. Arrogando-se superior. Do seu trono, mal lembra-se ele que um dia era chamado mente, mens: “inteligência, juízo, índole, sabedoria e alma”. O intelecto apartou-se. Esqueceu-se do seu passado e do seu lugar. E tivemos alguns problemas...

Ah, já tive esta lição com Avaeté. Tecnologia ou simplicidade? Razão ou coração? Intelectualidade ou espiritualidade? Lembrei. “O conflito não faz sentido, Pyá. O problema é apenas a desconexão!” Ok, concordo. Mas, a pergunta é: como religar? “Amigo! Pode parar um pouco o caminhão? Gostaria de me aliviar atrás daquela pedra. Isto. Ótimo. Obrigado. Ahhhh!” Conexão.

- Pyá, você tem um longo caminho, assim como é o de nós todos. Mas tenha uma certeza: você está dando os passos na direção certa – sentenciou Avaeté quando subi novamente na cabine.

- Isso me anima, Avaeté. Você me assusta um pouco quando adverte para não pensar muito...

- Pensar é viver. Pensar demais é morrer. Lembra do velho ditado “como para viver, não vivo para comer”? É a mesma coisa. Pense para viver. E viva sem pensar muito! Rá, rá, rá, rá, rá, rá! Não funda a cuca!

Dei um soco de leve no seu ombro, fingindo contrariedade com aquela zombaria. Nisso, introduziu-se o amigo caminhoneiro:

- Faça como eu. Eu só dirijo e relaxo. Não penso. Já pensou no que daria? Acabaria maluco! Completamente doido! Louco de varrer! Um disparatado! Totalmente lelé da cuca!

- É isso aí, parceiro – confirmou Avaeté. – Pinel! Biruta por completo! Mentecapto! Baratinado “da Silva”!

- Lunático! Abilolado das idéias! Desnorteado! Um insano! – emendei.

- Alucinado! Tonto! Pancada da cabeça! Desvairado! – disse o motorista.

- Demente! Aloprado! Aluado! Zureta! – adicionou Avaeté.

– Zureta! Ah, não. De onde você tirou essa? Zureta passou dos limites! – ressaltei. E todos caíram na gargalhada.

136

Page 137: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

O caminho nos oferecia inúmeras oportunidades para esticar as pernas e apreciar a paisagem. Lagunas verdes e azul-escuras maravilhosas. Salinas brancas de cegar as vistas. Vulcões. Cadeias de montanhas. Primeiro você vai morro acima até 4.200 metros de altitude. No meio passa por alguns platôs. E depois segue serpenteando morro abaixo. Despenhadeiros. Gargantas. Lhamas. Neve. Povoados perdidos nas montanhas. Morros coloridos. Postos de fiscalização. Um pneu furado.

Com tudo isto, utilizando as Rutas 27 e 52, você pode levar tranqüilamente um dia inteiro para cruzar os cerca de 400 quilômetros entre San Pedro de Atacama e Purmamarca. Quando chegamos a este povoado, já era noite. Paramos para um lanche. Porém, não tardamos a seguir viagem, pois nosso motorista desejava estar em Salta o mais breve possível. Provavelmente chegaríamos pelo fim da noite ou início da madrugada.

2

Salta é uma cidade de tamanho razoável. É uma base para viajantes visitarem a Quebrada de Humahuaca, o Tren a las Nubes até San Antonio de los Cobres, os Vales Calchaquíes, o Parque Los Cardones, Cachi, Cafayate e as vinícolas da área. Segundo fomos informados, todos locais que valem uma visita. Avaeté não estava diretamente interessado em turismo. Dormimos na cidade em um albergue e tomamos café da manhã no Patio de la Empanada. Na cidade, Avaeté pretendia encontrar alguns conhecidos índios e fazer um pequeno abastecimento para os próximos dias. Os índios conhecidos de Avaeté eram da nação Coya. Eles estavam se preparando para as festividades carnavalescas em homenagem a pachamama, a mãe-terra. Convidaram-nos para que ficássemos para as festividades, mas não era o que Avaeté tinha em mente. Ele disse que gostaria de estar em Amaichá del Valle em breve.

- Em Amaichá também há festa boa! Não percam! – recomendou um dos Coya, enquanto mascava algumas folhas de coca.

A maioria por aqui masca folhas de coca. É estimulante e combate as eventuais agruras da altitude. Homens, mulheres e crianças preparavam fantasias, instrumentos, talco, chicha e alimentos para a festa que ocorreria em alguns poucos dias. Imagino

137

Page 138: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

que seria uma festa muito alegre. Eles festejam até mesmo durante os preparativos.

- Não se engane com a alegria dos povos em épocas de festa ou quando nos recebem – sentenciou Avaeté.

- Imagino que você esteja se referindo a sofrimentos e tristezas, como os que ocorrem entre os Mapuche – disse eu.

- Todos os índios neste continente sofrem. Esteja atento para os sinais. Eles farão parte da nossa aprendizagem – concluiu.

Passamos parte do dia com os amigos Coya, sem que eu pudesse notar sinais de tristeza naquele povo. Abastecemos nossas mochilas e passamos o restante do dia perambulando pelas ruas, praças e morros da cidade. Ao final da tarde subimos o cerro do teleférico e apreciamos as luzes da cidade tomando cerveja. A noite estava quente e agradável.

Na manhã seguinte, bem cedo, rumamos em direção à saída sul da cidade. Nossa idéia era tomar a estrada 68. Dali, com sorte, obteríamos alguma carona até nosso destino. Tivemos que esperar cerca de três horas. Muitos passavam, em automóveis, caminhões, ônibus ou motocicletas. Poucos paravam. Nenhum pretendia ir tão distante para o sul quanto desejávamos. Até que Sr. Acuña nos avistou.

Sr. Acuña é comerciante. Possui uma pequena mercearia próxima ao mercado de artesanato de Salta. Pretendia ir até Cafayate abastecer-se com bebidas. Vinho, especialmente. Perguntamos se não havia distribuidores na cidade. “Claro!” – respondeu. “Mas por que deixar de fazer uma bela viagem?” – perguntou em tom bem-humorado.

Concedeu-nos espaço em sua diminuta e antiga caminhonete Citröen. Estava um tanto avariada, mas nós não tínhamos qualquer objeção. Saltamos dentro dela e partimos. Subimos as montanhas ao sul da cidade em direção a Cerillos. Sr. Acuña era bastante falante. Comentou sobre o tempo, sobre Salta, sobre sua família e sobre sua descendência. Parecia contente com nossa companhia. Alguém com quem conversar numa viagem de duzentos quilômetros é ótimo.

- Desejam o caminho mais curto ou o mais longo? – perguntou Sr. Acuña, próximo à localidade de El Carril.

- Qual é a diferença? – perguntei.

138

Page 139: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Pela Ruta 68 passaremos pela Quebrada de Cafayate. É uma passagem linda, com montes muito vermelhos e formações fantásticas – respondeu, fazendo uma pequena pausa para minha próxima pergunta:

- E a alternativa?

- Ruta 33, pelo interior do Parque Los Cardones e depois pela Ruta 40. Tudo em rípio. Vistas maravilhosas dos cactos e do vale do Rio Calchaquí. Mais longa, mas hermosísima. Então?

Duas ótimas alternativas de paisagem... Hum, mas a Ruta 40... Belas lembranças... Aquela estrada mítica...

- Ruta 40, a carretera mítica? Aquela que vai até o sul? – lembrava-me de Pedro e seus companheiros.

- Essa mesma. Agrada ao amigo?

- Agrada. Tomemos a rota dos cardones! – sentenciei.

As paisagens são realmente lindas. Subimos até 3.350 metros de altitude. Encostas íngremes ao lado. O velho Citröen apanhando, mas firme. E lentamente descemos novamente. Uma paisagem mais desértica, próxima ao parque, contrasta com os arredores verdes de Salta. Cardones são cactos gigantes, existentes em profusão por estas bandas. Seu tronco é muito firme, duro. Muitos o usam para fabricar móveis. Aqui pelas bandas do parque eles são protegidos. De repente, um platô abre-se à direita da estrada e uma longa reta mostra a imensidão da paisagem. “Esta é a reta Tin Tin, com quase vinte quilômetros de extensão” – informou Sr. Acuña. Disse também que o local é preferido por ÓVNIS. Contou que certa vez a polícia foi acompanhada por um deles. E desferiu uma profusão de histórias sobre o lugar. Passamos a reta toda ouvindo e imaginando as histórias.

3

Já era final da tarde quando chegamos a Cachi. Uma cidadezinha simpática, com sua praça central cheia de gente. Vendedores e... seres de tez muito branca e botas de caminhadas desembarcando de ônibus.

139

Page 140: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- São viajantes europeus. Eles adoram estas bandas – informou Sr. Acuña.

Tomavam praticamente toda a praça, além dos bares e restaurantes à sua volta. Comemos o especial da casa no “Del Sol”: milanesa. Depois, eu, Avaeté e Sr. Acuña esticamos as pernas ao redor da praça, agora iluminada. Finalizamos a caminhada na igreja. Chama atenção seu teto feito em madeira de cardon. Arrumamos pouso num galpão, indicado por Sr. Acuña, pertencente a um velho amigo seu.

Pela manhã, levantei e verifiquei que a instalação dava fundos para o vale do Calchaquí, um rio pedregoso, como costumam ser os rios andinos, com água proveniente do degelo. Pomares e parreirais são plantados às suas margens. Interessante como se vive de fenômenos que ocorrem a centenas e milhares de quilômetros. O Pacífico, o vento, a chuva, o inverno, a neve, os Andes, o verão e os rios. E as pessoas. Incluindo nós, aqui, desfrutando deste vale.

Tomamos um café leve e retornamos à estrada. De volta à Ruta 40. A mitificação desta estrada, neste ponto, deve ser devido ao seu estado. O rípio é bem mais espesso e há muitas pedras pontiagudas. Não é difícil ter um pneu furado por aqui. Serpenteamos junto com o vale do rio, passando por pequenas estâncias e pueblitos, onde crianças pastoreiam ovelhas, cruzando freqüentemente a estrada. Paramos diante de algumas lindas visões das montanhas e da beleza das pessoas, principalmente dos pequenos.

Nosso pneu furado surgiu, claro. Sr. Acuña substituiu-o rapidamente, enquanto sinalizávamos a estrada. Não teria sido necessário. Ninguém passou por ali em quinze minutos que estivemos parados. Rodamos mais alguns quilômetros, agora torcendo para que não houvesse outro pneu furado.

Entramos no povoado de Molinos para achar uma borracharia. Enquanto o conserto era feito, caminhamos pelo povoado. Poucas pessoas pelas ruas, nuvens escuras no céu. Uma chuva passou rapidamente pela localidade, borrifando água e logo seguindo adiante. Enquanto ia-se, permitia apenas o passar de poucos raios divergentes de luz solar, formando visões divinas. Avaeté comentou:

- Vê aquilo? É sinal de que, por trás da escuridão, há luz.

- Tudo para você é sinal, Avaeté?

140

Page 141: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Nem tudo. Mas aquele é. Diz que apesar de passarmos por tempos de sombras, sempre haverá luz.

- Está tendo o pressentimento de que vamos passar por algum tipo de sofrimento?

- Estejamos sempre preparados. E com fé na luz sempre presente.

Fico em dúvida se Avaeté não inventa este negócio de sinais. Os cães do Cerro Huyliche e de Isla Negra. Os condores na cordilheira. Bem, até agora, todos os seus sinais se confirmaram.

- Os sinais estão sempre presentes. Esteja aberto para eles e seus significados – disse Avaeté.

- Seu amigo tem toda razão. Eu apostaria meu lindo carro como aquilo é um sinal – completou Sr. Acuña, sorrindo.

Que sombras estariam à nossa espreita? Não perguntei a Avaeté. É uma pessoa de sabedoria, não um adivinho. Seguimos nosso rumo para o sul. Passamos pela entrada de Angastaco e, logo após, em San Carlos de Animaná, retornamos ao asfalto. Começavam a tomar conta da paisagem as videiras. Esta é uma região de produção de vinhos e observamos os trabalhadores deslocando-se das plantações para suas casas. Sr. Acuña informou:

- Vê como as pessoas usam bicicletas por aqui?

- Gostaríamos de chegar até Amaichá del Valle. Isto pode ser feito desta forma? – perguntou Avaeté.

- Certamente! A estrada é segura e a paisagem vale a pena. Aluguem duas em Cafayate.

E lá estava: Cafayate. Uma bonita cidadezinha. Simpática. Sr. Acuña desejou-nos sorte e desapareceu na primeira esquina. Precisava adquirir seus suprimentos e iniciaria o regresso a Salta ainda esta noite. De nossa conta, caminhamos um pouco pelas ruas e praças, obtivemos algumas informações necessárias, comemos algo, tomamos uma cerveja e procuramos pelo local onde se poderiam alugar bicicletas. Já estava fechado, mas os rapazes responsáveis foram gentis em realizar o aluguel. Saímos eu e Avaeté na direção da saída sul da cidade, onde se localizava um camping. Estendemos nossas mantas sob uma cobertura abrigada e descansamos da agradável viagem com Sr. Acuña.

141

Page 142: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Com o sol começando a raiar do outro lado do vale, levantamos e aprontamos a viagem de bicicleta. Alojamos as mochilas firmemente e tocamos em frente pela Ruta 40. Desceríamos o vale, com ambos os lados tomados por montes de pouca neve, devido ao verão, e hectares de plantações de uva. Acompanhamos vários trabalhadores pela estrada, que saíam de suas casas em direção às plantações. Deveríamos pedalar cerca de duzentos quilômetros até Amaichá. Provavelmente não seria possível fazê-lo num único dia, porque pretendíamos visitar antes as Ruínas de Quilmes.

A não ser pelas terras junto ao rio, a paisagem é bastante seca. Avistam-se apenas os cardones, ao longe. Pedalamos várias horas, encontrando vez por outra viajantes de bicicleta, vindos de localidades muito mais distantes que a nossa. Igualmente com destino incerto. Com as únicas certezas de que viajar de bicicleta decreta uma liberdade inigualável, simbolizada pelo vento no rosto, e de estar na velocidade que a paisagem merece.

Encontramos a entrada para as ruínas dos índios que bravamente resistiram ao completo domínio, tanto de antigos impérios como dos conquistadores da América. Os Quilme, assim como os Mapuche, foram resistentes. A diferença é que não restou um para orgulhar-se disto.

As ruínas estão localizadas numa reentrância dos cerros, local de onde se pode perfeitamente mirar todo o vale. São milhares de cômodos nas ruínas, testemunhando o tamanho do povoado. Hoje, os habitantes destes cômodos são as lhamas e os cactos. Subimos até o topo dos morros circundantes para ter uma idéia mais ampla do local. Sentamos numa pedra mais saliente, como provavelmente sentavam os sentinelas e sábios de outrora destas bandas.

- Avaeté, ontem você mencionou o sinal das sombras cobrindo o sol...

- Aqui é muito seco, elas não chegam até aqui. Mas poderão estar em Amaichá.

- Entendo. Por quê?

- Em nossa viajem, conhecemos os Mapuche e um pouco de suas lutas. Mas não experienciamos seu sofrimento, apenas sua alegria. Você precisava testemunhar isto. Agora testemunhará o sofrimento. Em Amaichá há conflito e sofrimento. Os povos nativos deste continente estão em maior ou menor grau de fragmentação.

142

Page 143: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Você verá amanhã um destes povos. Faz alguns anos que não venho aqui, mas tenho tido notícias.

- Para o que precisamos estar preparados, Avaeté?

- Para experienciar isto. Mas apenas isto. Não é nosso papel interferir no que acontece. Pelo menos, não agora – disse, tornando-se taciturno.

- Compreendo. Procurarei estar aberto para perceber o que acontece.

Tomamos um pouco mais de água e apreciamos a vista até que o sol se pusesse às nossas costas. Descemos pela trilha até nossas bicicletas e rumamos até a hospedagem existente junto às ruínas. Acampamos cobertos por um mar imenso de estrelas, tão abundantes e algumas tão pequenas que pareciam poeira. Poeira estelar. E as “magrelas”, ali ao lado, deitadas como nós.

No dia seguinte regressamos pela estrada de acesso até retomarmos a Ruta 40 e, alguns quilômetros adiante, tomamos a 357 em direção ao outro lado do vale. Em breve, adentraríamos Amaichá.

4

Sua entrada não é a típica de uma comunidade indígena. Há casas construídas em concreto e um museu. Avaeté disse que os antigos ressentem-se da ocidentalização. Avaeté questionou alguns transeuntes pela Madre Córdoba. Imaginei ser alguma de suas velhas conhecidas, assim como Pedro Ruca, Miguelina e os outros. Indicaram alguns quarteirões à frente e à direita. Localizamos a casa indicada e batemos palmas. Uma senhora certamente nonagenária atendeu. Era a própria Madre Córdoba. Abraçou demoradamente Avaeté, parecendo seu filho ou neto. Abraçou-me como a um bisneto. E convidou-nos a entrar.

Madre Córdoba era morena, com poucos dentes, olhar um pouco turvado pelos anos, mas com vitalidade e firmeza. Chegamos no momento em que preparava empanadas. Sentamo-nos na cozinha. Ela ofereceu-nos café.

- Querido Avaeté, quantos anos! Que bom revê-lo!

143

Page 144: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Saudades, madresita! É maravilhoso vir visitá-la. Como estão todos? – perguntou Avaeté.

- Todos com muita saúde, graças à pachamama. Infelizmente, não são tempos pacíficos...

- Sei, tenho tido algumas notícias...

Avaeté estava um pouco a par dos problemas. Nestes vales viveram povos da grande nação Diaguita: os Amaichá e os Quilme, entre vários outros. Hoje são poucos. A chamada “pacificação” da área foi catastrófica para eles. Já não são mais que dez por cento daqueles de então.

Séculos atrás, os Quilme foram retirados à força e postos em marcha de 1.200 quilômetros até os arredores de Buenos Aires. Os Amaichá, não tendo participado dos conflitos, foram deixados em suas terras, mas foram reduzidos e ocidentalizados. Muitos foram escravizados no trabalho em minas, nas plantações e como empregados de senhorios.

Hoje, sua força se dilui pela falta de autonomia na educação dos pequenos e nas questões administrativas. As recentes gerações foram perdendo a cultura nativa. Madre Córdoba falou, aflita:

- A maioria já não quer ser chamada de indígena. Têm vergonha...

Comentou que a política tem corrompido a vida nos povoados. Caciques desonestos perpetuam-se e rodiziam-se no posto por práticas clientelistas. Acabam apoiados por entidades estatais e não-governamentais que deveriam justamente proteger a cultura nativa. Promessas não são cumpridas e a cultura desvanece. Madre Córdoba continuou:

- O maior exemplo disto é a corrupção da tradicional festa a pachamama. Hoje em dia, tornou-se um espetáculo comercial, incluindo, muitas vezes, cobrança de ingressos que a própria comunidade não tem dinheiro para pagar. Isto se dá pelo turismo “gafanhoto” que, ao trazer seu dinheiro, corrompe a cultura local. Além disso, as empresas patrocinadoras, nunca antes necessárias, são hoje quem manda na festividade...

Avaeté perguntou:

144

Page 145: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Como andam o conselho dos anciãos e a mobilização da juventude, Madre?

- As manifestações têm sido rechaçadas com violência. Tivemos nos últimos anos dezenas de pessoas presas arbitrariamente e muitas assassinadas. Os assassinos nunca aparecem. Você sabe... Os assassinos e a polícia...

- Claro, entendo, Madre – baixou os olhos Avaeté.

Madre Córdoba e Avaeté permaneceram falando várias horas sobre o assunto. Madre disse que o conselho dos anciãos tentou várias vezes destituir caciques déspotas, mas suas decisões sofrem com o medo e impotência da comunidade. Muitos vão embora. Vão para grandes cidades fazer trabalho quase escravo e viver vidas pobres, econômica, cultural e espiritualmente. Quase não há mais para quem passar a tradição.

- Nossa cultura está escorrendo por entre nossas mãos. Está se dissolvendo. Aqueles que buscam fortalecê-la sofrem violências. Você sabe, Avaeté? Meu sobrinho foi assassinado há três meses atrás...

- Puxa vida, Madre, não sabia disto. Fernando?

- Sim, Fernando. Apareceu morto. As investigações não avançaram.

“Fernando estava tentando tornar pública uma ação de impacto nefasto sobre a comunidade. Uma organização não-governamental de promoção do turismo e promoção da proteção natural tem explorado as festividades e as belezas naturais da região. Por detrás de uma saudável promoção da cultura e proteção ao meio ambiente, tal organização, associada com empresas e estâncias da região beneficiadas por este turismo, tem se apropriado de terras não demarcadas onde viveu e vive nosso povo. Esta apropriação tem sido feita a pretexto de protegê-las. Pois é justamente nessas empresas e estâncias, que se apropriaram e se apropriam de nossas terras, que trabalham nossos filhos e netos, forçados a tal pela ausência de solos adequados nas reduções. Mas isto só é levado totalmente a cabo porque tais empresas, organizações e até os governos corrompem pessoas dentro da própria comunidade, facilitando sua ação em troca de favores. Mas a coisa não acaba aí. Tais operações têm suporte legal, governamental e de empresas globais para operar. As empresas globais investem em tais organizações através de incentivos governamentais. E veja quem patrocina as festividades?

145

Page 146: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Estas próprias empresas globais. E porque elas querem se beneficiar desta publicidade? Porque as pessoas desejam conhecer a nossa festa. Nossa celebração. Veja a situação, Avaeté.”

Mapeei mentalmente a situação e percebi que todos têm benefícios mútuos na rede. Exceto a comunidade. Madre concluiu com ar profundamente triste:

- Quem matou Fernando? Quem puxou o gatilho? Jamais saberemos. Mas quem tem as mãos sujas, Avaeté? Ah, isto sabemos. Vários e vários têm as mãos sujas pela violência ao meu povo...

Madre Córdoba em seguida nos ofereceu café e ficamos conversando durante algumas horas sobre os acontecimentos. Durante nossa estada na sua cozinha, filhos, netos e bisnetos passavam para cumprimentar sua madre e ver-nos e cumprimentar-nos, também.

Avaeté disse que se sentia profundamente triste com a situação. Madre respondeu dizendo que compreendia seu sentimento. Que era muito bom tê-lo presente e que sua ajuda espiritual era o que lhe bastava:

- Você é um companheiro de resistência. Cada um segurando sua própria cultura, mas todos pelo espírito nativo. Manter o céu suspenso, meu caro Avaeté, é uma luta diária...

- Sim, Madre. Assim é a nossa dança.

Noto como Avaeté é admirado pelos irmãos nativos. Assim como as histórias que Avaeté tem com os Mapuche, deve ter várias outras com inúmeros povos neste continente. Avaeté é um daqueles que leva as vozes nativas entre os povos. E me dá isto tudo como presente. Um maravilhoso presente.

Avaeté disse a Madre Córdoba que pretendíamos ficar no povoado por apenas dois ou três dias. Perguntou se Madre sabia de algum lugar para o pouso. Madre ofereceu a casa de um dos filhos, que passaria alguns dias longe da cidade. Muito próximo dali, aliviamos o peso das bicicletas e mochilas, tomamos banho e descansamos da jornada. Comemos um jantar simples, mas caseiro e muito saboroso com Madre e sua filha mais nova e sua família. Bebemos um pouco de chicha, conversamos um tanto mais e recolhemo-nos à pousada.

146

Page 147: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

5

Durante o dia seguinte estivemos à disposição da comunidade para trabalhar na preparação das festividades em homenagem a pachamama. Trabalhamos lado a lado com homens e mulheres que, ao celebrar, mantém viva a alma Amaichá. Montamos arquibancadas, preparamos mesas e cadeiras, auxiliamos na construção de quiosques, puxamos eletricidade para a praça e vimos o preparar do agujero, o buraco onde seriam oferecidas comidas e bebidas a pachamama. As festividades dar-se-iam dentro de poucos dias, mas a preparação estava em bom termo.

Naquela mesma noite visitamos artistas e artesãos locais, com trabalhos muito lindos. A maioria com motivos da cultura Diaguita, bem como réplicas alusivas aos desenhos rupestres da região, cuja presença humana tem sido reportada como existente há pelo menos 12.000 anos.

No dia seguinte, auxiliamos um pouco mais nos trabalhos de preparação da festa e, à tarde, Avaeté dedicou seu tempo para visitar as escolas da região. Vi Avaeté dar palestras às crianças de um modo muito descontraído e divertido, incentivando-os a perguntar e comparar a sua cultura com a de Avaeté. Depois levava as crianças para a rua e ensinava-os o xondaro. Havia muita diversão e risadas. Por fim, Avaeté abraçou as crianças e desejou “boa sorte” a cada uma delas. Avaeté tinha um jeito muito carinhoso com os pequenos. Por isso, eles também o admiravam.

Ao cair da noite, Avaeté sugeriu subirmos até as montanhas ao redor do vale. Levamos abrigo para a passagem da noite e nos embrenhamos pelas trilhas usadas pelos Amaichá. Paramos por duas ou três vezes, ofegantes, até localizar uma clareira em boa altitude para mirar o povoado lá embaixo. O que se via era uma pequena teia de luzes.

Avaeté estimulou a conversa:

- Que sentimentos lhe ocorrem nesta nossa visita, Pyá?

- Bem, Avaeté. Gozo da alegria de compartilhar a sua companhia e a companhia destes povos. Mas estou triste pela sua situação. Uma tristeza que eu não alcançaria se alguém apenas me contasse o fato. Mas, neste caso, é diferente. Eu vi a tristeza nos

147

Page 148: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

olhos de Madre. Eu senti a sua tristeza, não na mesma intensidade, mas a experimentei.

- É isto que precisamos, Pyá. Experimentar para conhecer. Sem a experiência, não há contato, compaixão ou sentimento profundo.

- Claro, e isso me fez sentir também uma vontade profunda de ajudar. Não sabia como, mas imagino que você não apoiaria uma ação mais engajada.

Nossos olhos, depois de todas estas noites passadas com pouca luz, já têm uma maior capacidade de enxergar com pouca luz. Apesar de a noite ter se tornado repentinamente nublada, podíamos nitidamente notar as nuances dos cerros ao redor, bem como sua vegetação, levemente mais esverdeada e úmida, denotando uma espécie de transição entre os Andes e os esteros e charcos a leste. Avaeté continuou:

- Como já conversamos, Pyá, primeiro temos que fazer o nosso tema de casa. Ajudamos com o pouco que temos, que é nosso apoio e força, tanto física quanto espiritual. Eu estou fazendo o meu tema de casa, você está fazendo o seu. Isto é tudo. Por hora.

- Veja, Avaeté, como as coisas são imbricadas. Você notou o relato de Madre Córdoba? A rede de ligações entre negócios, política, governo e comunidades provoca fenômenos que influenciam locais distantes. Por exemplo, a maneira como esta comunidade é afetada. Organizações diversas em relações com empresas globais, ambas ligadas a políticos e governos, trabalhando em prol dos seus próprios interesses (legítimos, diga-se de passagem), afetando a vida desta pequena comunidade e os negócios vizinhos. Um indivíduo qualquer que compra um produto do outro lado do globo está ligado a esta comunidade perdida, aqui, no sul do continente, encostada nos Andes.

- Digamos que nossas mãos estão “sujas”.

- É verdade, Avaeté. É o que nos disse Madre Córdoba. Porém, não nos sentimos culpados...

- Nem faria sentido. A culpa não resolve o problema, só cria mais problemas.

- Acho que compreendo. O melhor seria experienciarmos essa rede. Tomar ciência dela. Sabe, Avaeté, acho que há uma idéia nas

148

Page 149: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

nossas cabeças, entre outras, que dificulta um pouco isto, este experienciar...

- Prossiga.

A cidade, lá embaixo, era apenas uma pequenina teia de aranha. As luzes cintilavam fracamente, como uma pequena constelação enfraquecida, esvaindo-se lentamente. As vidas de algumas dezenas de pessoas pulsando, ainda, através do tênue fio de suas próprias tradições, festividades e amor a terra e aos seus familiares. Os fios de uma vida simples, quase todos visíveis daqui de cima. Conforme o pedido de Avaeté, continuei:

- Na nossa vida diária, tomamos as transações que temos com o mundo numa base muito restrita. Toma lá, dá cá. Entende? Sem muita aproximação. “Faça bem e barato seu produto e eu pagarei honestamente.” E é isso. “Eu pago em dia meus impostos, por isso cuide para que não haja buracos nas estradas.” “Sou um turista, está aqui minha grana, sirva-me com cortesia.” O outro lado é um objeto, uma caixa-preta. Não tenho tempo para vasculhar. Faça seu serviço, que eu faço o meu. Cuide do seu lado que eu cuido do meu.

- Não sei aonde você quer chegar.

- Vou tentar explicar. A idéia é a seguinte: eu sou um ser importante, preciso cuidar das minhas preocupações. Você é como um objeto, deve me oferecer o que eu quero. Eu estou pagando. Dê-me o que eu quero. Ponto. Entendeu?

- Não. Você está um pouco enrolado. Seja mais direto.

- Sei lá, Avaeté. Não estou conseguindo articular algo mais direto para expressar a idéia. A idéia de que você não quer saber o que há do outro lado, se o outro lado é ético ou não, se está fazendo algo prejudicial ou não, estas coisas.

- Muito bem, vou ajudá-lo a organizar sua idéia. Você usou uma palavra para referir-se ao outro lado. Você disse o outro lado é como...

- ... Um objeto. É como nos relacionamos na vida diária. Os outros são objetos dos meus interesses.

- Ok... E objeto significa o quê?

- Um objeto? Um objeto é coisa física ou mental. Algo discriminado pelo seu ato de percepção.

149

Page 150: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Discriminado, é? Separado, digamos?

- Sim, um objeto é algo que você discrimina e separa de você. Não é você, é outra coisa.

- Sei. Acho que já conversamos sobre o assunto, não é? A velha faca?

- Sem dúvida. Um pouco de história das palavras? Você gosta disso, não é mesmo, Avaeté? Vamos lá. Objeto vem de objectus: ação de pôr diante, interpor; pôr um obstáculo, uma barreira.

- Ah, entendo. Você põe uma barreira entre você e o objeto. E diz: “Aquele lá fora, do outro lado.”

- Isso! E não se responsabiliza pelo que há “do outro lado”. Não é problema meu. “Passe-me o que eu quero por cima do muro.” Não interessa se há sofrimento do outro lado. Não é problema meu.

- Vocês pensam assim, Pyá? É essa a sua maneira de enxergar o mundo?

- Sim, creio que sim, Avaeté. Nós vemos o mundo como objetos. É esta a idéia central. Tratamos o mundo como objetos. Obrigado, Avaeté. Você me ajudou a sintetizar minha percepção.

- Certo. Vamos adiante, então. Você propõe algo?

- Sim... Bem, não sei.

- Vamos lá, articule o que você está pensando.

- Não sei... Acho que a gente deveria derrubar o muro!

- Derrubar o muro? Ah, que novidade! “Hey! Teachers! Leave the kids alone!”

- Avaeté, estou falando a sério!

- Eu já lhe disse, não fale a sério! Rá, rá, rá, rá, rá! Cante! Escreva uma canção sobre o assunto! Rá, rá, rá!

- Ok, ok, Avaeté, só para satisfazê-lo, no dia que eu tiver talento escreverei uma canção e lhe enviarei. Por hora, fiquemos na prosa.

- E nas experiências!

- Muito bem. O que quero dizer com “derrubar o muro” tem mais a ver com “olhar por cima do muro”. Eu creio que só compreenderemos a complexidade do nosso mundo se tivermos a

150

Page 151: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

predisposição de olhar por cima dos muros e ver a imensa teia em que estamos envolvidos. Não nos basta ser informados dos problemas pelo jornal. Acho que precisamos ir além dos sintomas, além do que nos contam, além do “toma lá, da cá” e nos envolvermos um pouco mais. Envolver nesta teia de relacionamentos...

- Ok, você está sugerindo mudar o tratamento do mundo de objetos “lá fora” para...

- Relacionamentos “aqui dentro”! Quando você olha por cima do muro, você vê mais do que o objeto. Você vê em tudo o que você e os outros estão ligados, e isto leva a outras e outras ligações...

- ... Até encontrar no final da teia...

- Você mesmo! Coisas do tipo o quanto você mesmo contribui para a violência, coisas que as pessoas até falam, mas não vivenciam.

- “A coruja empoleira-se sobre si mesma para criar a sabedoria.”

- Hein?! – exclamei, sem entender nada.

- Nada. Deixe para lá... Você se saiu razoável na sua prosa, Pyá! Acabou fortalecendo a minha tese. Para nos encontrarmos, precisamos vivenciar o mundo à nossa volta.

- Fico feliz com isso, Avaeté.

- Bem, pelo menos sua faca analítica não o deixou em apuros desta vez... Às vezes ela é útil... Afinal, você precisa descascar alguns abacaxis de vez em quando...

Neste momento, um vento mais forte soprou a ponto de obter nossa atenção. Não havia assobios ou barulhos de folhas, pois a vegetação é rasteira, mas um barulho intenso da própria movimentação do ar. Acho que até meus ouvidos passaram a ouvir diferente depois de todos estes dias vivendo no íntimo da natureza. Avaeté fez uma pausa, ergueu um dedo e notou que soprava para oeste. Depois, fez uma advertência:

- A mudança na direção dos ventos é um sinal. Nossos avôs e avós xeramoi kuery diziam: “O que tem que morrer, morrerá.”

Fez uma pausa para compreender o alcance destas palavras e disse:

151

Page 152: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Basta! Chega de papo furado. Hora de dormir! Boa noite, Pyá.

- Mas logo agora que a “coisa” estava esquentando?

- ...

- Ok. Boa noite, Avaeté.

6

Não tinha sono, por isso apenas recostei-me protegido do vento e meditei sobre nossa conversa. Pensei sobre o alcance do abandonar a objetificação do mundo. Chegamos a extremos de gerar categorias falsas como “natureza”, “civilização” ou “nativos”, produzindo generalizações fantasiosas de caráter duvidoso. Idéias como “proteger a natureza”, “ser civilizado é bom” ou sua contraparte “a civilização está matando a natureza e os povos nativos”, “os nativos são selvagens do bem”, além de várias outras, provocam mais confusão do que clareza. Já que é difícil não pensar nestas categorias, pelo menos é preciso fazer um esforço para olhar por cima dos muros delas e enxergar o que é concreto: a rede de relacionamentos reais entre as pessoas. E disso tirar algum rasgo de iluminação. Uahh... Que sono! Zzzzz...

A manhã seguinte ainda amanheceu nublada. Foi uma noite mais ou menos agitada, acho que pela constância do vento. Ele ainda soprava, só que agora mais brandamente. Avaeté tomava seu mate e eu juntei-me silenciosamente a ele. Depois disso, apagamos as nossas marcas no terreno e descemos até o povoado. Avaeté estava decidido a partir brevemente e precisava avisar Madre Córdoba.

Despedimo-nos longamente dela e de alguns de seus parentes, desejando força e sorte. Saímos a pé pela cidade, empurrando nossas bikes e acenando para alguns novos conhecidos. Diziam para que voltássemos em breve. Sorríamos em retribuição.

Ao chegar à estrada, voltamos a pedalar. Regressaríamos pela mesma rodovia que nos colocou na rota de Amaichá e das Ruínas Quilmes e dos trabalhadores dos parreirais. Em algumas horas estávamos de volta a Cafayate. Devolvemos as bicicletas e tentamos providenciar transporte para o leste. Avaeté sugeriu que tomássemos esta direção, pois estava na hora de ter um encontro com seu próprio povo. Nossos próximos passos seriam cruzar o chaco, adentrar o

152

Page 153: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

pampa e, depois, encontrar o oceano, do outro lado do continente. Estávamos por entrar em território Guarani e de muitos outros povos.

Obtivemos no escritório de turismo de Cafayate indicações para realizar este percurso de ônibus. Primeiro cruzamos a Quebrada de Cafayate até Salta em um ônibus com turistas. Foi divertido e agradável, pois paramos em vários dos lindos lugares ao longo da estrada, com morros e formações muito alaranjadas, devido ao solo ferroso. Os turistas, muito alegres, foram gentis em conversar e trocar experiências. Próximo a Salta pernoitamos, de maneira que no dia seguinte pudéssemos tomar um ônibus de linha até Resistência e Corrientes, passando por 700 quilômetros de linha reta em meio ao chaco, esta espécie de deserto quente e úmido. Depois, mais ônibus de Corrientes, a leste do Rio Paraná, até Posadas. E, por fim, cruzando o Rio Uruguai. Combinamos que após cruzar o rio, empreenderíamos nossa jornada a pé.

Avaeté chamava a atenção para os nomes das localidades e acidentes geográficos: se não eram nomes cristãos, eram, na sua maioria, nomes Guarani. Pirapó, Ijuí, Piratini, Bossoroca, Icamaquã, Itacurubi, Tupantuba, Carovi, Caibaté, Ubiretama, para citar alguns. Passamos dias dormindo em estâncias, estábulos, pequenas residências e povoados indígenas.

Ao adentrar algumas destas aldeias, você começa a entrar em contato com alguns dos sintomas das doenças dos povos nativos em vários locais deste continente: tristeza, depressão, alcoolismo, miséria, más condições de saúde física, alimentação pobre, sub-habitações, falta de perspectivas. Não que os nativos necessitem de perspectivas, na noção a que estamos acostumados, como objetivos de vida, mas no sentido da descaracterização de sua cultura.

Avaeté chama minha atenção para os paradoxos. Ao mesmo tempo em que é um povo alegre, intimamente alegre, mergulha na tristeza de ver desvanecer-se esta mesma alegria. Ao mesmo tempo em que é entendido como um povo guerreiro, perde a batalha da vida para as forças do abraço da morte. Enquanto alimenta a chama da terra sem males, vê a própria terra sendo usurpada. Bebe para celebrar, ao passo que no fundo desta celebração encontra a destruição das suas entranhas. Avaeté indicou:

- Há um lugar nesta região que é o símbolo das dicotomias do meu povo, Pyá. Lá, você verá opressor virando oprimido. Lá, verá heróis controversos admirados pela esquerda e pela direita. Símbolos

153

Page 154: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

de luta e de submissão. Construção de “utopias” sobre “utopias” anteriores. A pretexto de serem melhores, “mais boas”, “mais divinas” que outras. O poder missionário varrendo o poder nativo. E o poder total esmagando ambas. As ruínas jesuíticas é este lugar.

Avaeté falava das ruínas jesuítas de São Miguel das Missões. Poderiam ser quaisquer reduções na face da terra. A história é conhecida. Missionários cristãos, apoiados pelo poder imperial português e espanhol, aliciando e purificando nativos “pagãos” sob o pretexto de salvá-los. Arrebanhados, “domesticados” e organizados, viraram o símbolo de uma “comunidade socialista”. Virou tal símbolo depois de martirizada pelo próprio poder concedente: os impérios ibéricos. Sepé Tiaraju, o mártir símbolo. Símbolo do orgulho Guarani. Símbolo do orgulho jesuíta. Símbolo do orgulho socialista. Símbolo do orgulho regional caudilho. Símbolo do orgulho de qualquer um. Quem não deseja apropriar-se de um mártir que está aí, “dando sopa”?

Sentamo-nos sob a solene cruz defronte às ruínas de uma imensa igreja. Era tardinha e o sol poente tornava ainda mais alaranjada a construção. Apesar de protegida da destruição por um parque, o próprio poder natural a consome. Árvores alojam-se e adonam-se de frestas nas paredes, muros e torres.

- O encontro entre nativos e juruakuery é irreconciliável dentro do sistema de qualquer um dos dois. É um embate entre concepções de mundo, entre sistemas de vida. Quando se encontram, o mais voraz e apropriador vence.

- Mas aqui, não houve vitória de um sobre outro. Ambos transformaram-se num terceiro, Avaeté...

- O fato é que dificilmente o sistema indígena sobrevive. Ele é esmagado ou desfigurado. Esse sistema experimentado aqui não era mais indígena. Claro, também não era mais branco, em essência. Foi aí que entrou em conflito com os interesses imperiais. Enviaram bandeirantes e exércitos e varreram a experiência do mapa – explicou Avaeté, taciturno.

- Você parece demonstrar desesperança, Avaeté? – questionei.

- Não! Estou é triste. Não confunda com desesperança. Estou aqui, vivendo minha própria vida Guarani. Livre! Um sobrevivente!

E Avaeté saltou de seu acento em um pulo. Apontou seu cachimbo para o alto como se fosse uma espada e gritou: “Podem

154

Page 155: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

nos matar, mas não acabarão com a terra sem males. Viva yvy maraney!” E soltou uma gargalhada.

155

Page 156: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Oito

156

Page 157: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

É, Avaeté tinha razão. Aquele é um lugar paradoxal. Lá, você pode se alegrar e celebrar, mas também pode se entristecer e sentir pesar. Foi lugar de heróis e de bandidos. Claro, tudo depende de seu ponto de vista. E da sua predisposição para erguer muros.

O que importa agora é sentir esta liberdade da dissolução dos muros. As ruínas de São Miguel logo ficarão para trás. Avaeté me adverte para os próximos passos da viagem. Iremos às bordas desta terra, nos campo de cima da serra geral, a leste, desceremos suas encostas cheias de cânions e buscaremos o litoral do Atlântico. Lá, vamos entrar em contato com aldeias Guarani em várias situações: de povoados empobrecidos até aldeias experimentais. A idéia é entrar em contato com o povo de Avaeté no Parque da Serra do Tabuleiro.

Nas cercanias das ruínas nos deparamos com um grupo de motoqueiros viajantes pelas Américas. Estavam voltando para casa de uma viagem de três meses. Era um grupo de vinte pessoas em quatorze motocicletas, com alguns casais e adolescentes viajando juntos. Voltavam da visita às ruínas. Entraram em contato conosco num desses bares das cercanias, no momento em que almoçávamos. Conversamos sobre ambas as viagens, a deles e a nossa, e tivemos a sorte de descobrir seu paradeiro final: Criciúma.

A cidade localiza-se próximo à estrada 101, entre o Parque da Serra Geral e a do Tabuleiro, nosso destino. Ofereceram-nos carona, o que foi uma agradável surpresa.

Recompuseram-se e pusemo-nos na estrada 285 até Vacaria. O grupo curtia acampar, de maneira que, a cada parada para pernoite, um muro de potentes motocicletas servia como nosso abrigo. Durante o dia, o vento no rosto e a total entrega nas mãos da Vida limpa seu interior. Refresca seu radiador como o faz com o da moto.

Vamos seguindo por estradas vicinais até o cânion do Itaimbezinho, no Parque dos Aparados da Serra. Você continua se refrescando com o vento das beiradas da garganta. O ar está muito limpo e a visão que se obtém é estupenda. Os campos são cobertos por gramíneas verdes, um pouco mais para o dourado nesta época. Cobrem as pequenas elevações, que são como ondulações formadas na terra pela ação do vento. Pelas estradas você cruza rios e arroios

157

Page 158: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

pedregosos, com águas marrons ou azul-escuras. Muitas cascatas. São refrescantes. Todos banhamo-nos em várias destas passagens.

A grande surpresa deste local são as araucárias. Diferentes da região dos Mapuche, aqui se encontram as araucaria angustifolia, com longos galhos localizados somente no topo. Capões de mata de araucárias cobrem parte das ondulações gramadas. De longe, parecem palitos com cabelo rastafári fincados na terra.

Seguimos adiante pelos campos de cima da serra, costeando a grande borda da Serra Geral até encontrarmos inúmeros outros cânions, incluindo o Fortaleza, de onde se pode avistar o mar a dezenas de quilômetros. Tudo o que você precisa fazer aqui é abrir os braços, como se fosse uma antena. Mil metros de altitude separam a borda da serra e a área litorânea, lá em baixo.

Desta altitude, neste estado de liberdade, não há conflitos, não há divisões, não há caminho certo nem errado. Não há antes, não há depois. Não há aqui, não há lá. Só a liberdade. Lá embaixo, não se vêem muros, paredes, divisões ou estradas. Daqui de cima, não há certo nem errado. Certo ou errado é uma noção que só há lá embaixo.

- Está na hora de descer e saber o que está acontecendo. Há coisas que você precisa ver com os próprios olhos – Avaeté disse isso e acenou para os companheiros de viagem, avisando que estávamos prontos.

2

Cruzamos em estradas de terra por povoados como Cambará, São José dos Ausentes, Silveira e São Joaquim. Logo depois, a estrada 438 nos oferece a descida da Serra do Rio do Rastro. É um ir e vir constante e lento, um serpentear realmente radical ao longo de seus quinze quilômetros por dentro de um cânion que desce os 1.460 metros até o nível do mar.

Despedimo-nos dos nossos companheiros em Lauro Müller. Dali, seguiriam até sua cidade natal, depois de meses de jornada sobre o selim das motos. Para merecidamente entregá-las aos artistas da manutenção de motocicletas.

158

Page 159: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

De nossa parte, resolvemos nos afastar da cidade para acampar próximo ao Rio Tubarão. Puxei assunto com Avaeté, dizendo que havia notado que estava mais quieto desde que passamos por São Miguel. Avaeté comentou:

- É natural, Pyá. Nestas terras viveram meus antepassados. Dentro do sistema nativo, éramos ricos. Ricos de vida, ricos de liberdade. Hoje, vivemos às margens do sistema jurua. Dentro dele, somos pobres.

- Compreendo, Avaeté. Isso estava planejado? Passarmos por aqui e vermos isso? – perguntei.

- Sim, Pyá. Planejei passarmos por aqui para você conhecer meus irmãos e para que eu me realimente da minha cultura. E para trazer energia. Ficaremos aqui alguns dias.

- Aonde iremos?

- Visitaremos duas aldeias. A primeira fica ao sul do Parque da Serra do Tabuleiro. Há cinqüenta anos atrás era uma aldeia isolada ao pé do morro. Mas a abertura de uma estrada deixou-os à vista dos brancos. Hoje, com a valorização da área, eles estão sendo expulsos morro acima. É a aldeia do Morro Mirim de Dentro. Esta aldeia está doente.

- E a outra, Avaeté?

- A outra se chama aldeia Tekoha Guatá. Fica ao norte do parque. Ela também esteve doente, quase morreu. Mas agora, uma nova experiência está sendo feita lá. Encontraremos alegria e renascimento.

- Essa nova experiência, você acredita que será um caminho para sobrevivência do seu povo, Avaeté?

- Há muitas experiências sendo feitas por este mundo afora. É claro que acredito nelas. Elas renovarão este mundo maravilhoso que temos à frente.

Estávamos a cerca de quarenta metros do rio, numa área com algumas árvores um pouco afastada da cidade. Fizemos uma fogueira discreta e armamos a barraca para proteger-nos. Tomamos chá e comemos um sanduíche de pão e produtos caseiros comprados na serra. Na manhã seguinte iríamos a São Martinho, a localidade mais próxima da aldeia do Morro Mirim de Dentro.

159

Page 160: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Enquanto comíamos, senti um pequeno desconforto físico, um cansaço e uma friagem corporal. Era a primeira vez na viagem que sentia algum tipo de desconforto deste tipo. Já havia sentido muito frio, muito calor e outros tipos de desconforto, mas este era diferente. “Ah, deixa para lá, não deve ser nada” – pensei.

Olhando para Avaeté, noto vestígios de dois estados de espírito. Apesar de haver um Avaeté amargurado, há outro energizado. Ele próprio declarou sua crença numa reenergização e renovação. Torço para que este seja um ciclo de renovação para o povo de Avaeté e para todos os povos nativos deste planeta. Torço para que as forças que renovam os rios, florestas e animais tenham impulso aqui. A força que renova.

- Avakue ojere oo rupi – falou misteriosamente Avaeté.

- Ãhn? – indaguei.

- “Os homens dão a volta ao redor de casa.” Quando voltam, retornam evoluídos, renovados. Nós estamos voltando aqui, Pyá.

Retornar, voltar, circular. A idéia do círculo é poderosa. A sabedoria muitas vezes refere-se a ela. Mutualidade, evolução, sustentabilidade. Círculos de pedra. Rituais circulares. Danças circulares. O eterno, o início e o fim, a transformação, a totalidade, os opostos e os unitários. O acampamento em volta do fogo, o horizonte, o ninho, as estações, nascer e morrer, o dia e a noite. Tudo circularidade.

Cânions são cânions por causa de círculos. Círculos de intensificação entre rio e rocha. A fenda da rocha que se desgasta e produz uma cunha para água mais concentrada passar. Água mais concentrada significa mais erosão da rocha e a fenda torna a se aprofundar. Deixa de ser uma pequena fenda. Torna-se uma garganta mais profunda.

Rios também são rios por causa de círculos. Águas que fluem e que alimentam lagos e mares evaporam e precipitam-se sobre lençóis que alimentam nascentes que alimentam rios.

Como o círculo é um símbolo poderoso na natureza, tornou-se também na mitologia, na filosofia e na psicologia. Os Guarani são Guarani por causa de círculos. São culturas que dão certo e evoluem e que, por isso, reproduzem-se e transmitem uma tradição. Mas também deixam de sê-lo por causa de círculos. Círculos de poder

160

Page 161: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

destrutivo dos jurua. Mais exploração da terra significa maior poder econômico para explorar mais terra. E isto é igual a menos terra para os nativos.

- Ava ojere guigua. Gente feita de anéis – arrematou Avaeté.

O dia seguinte ainda nem havia amanhecido quando escutamos trovoadas. Levantamos rapidamente. Era melhor desmanchar o acampamento ainda seco. Assim que terminamos de guardar tudo, começou a chover. Não era uma chuva torrencial, mas era forte. Encharcou-nos em instantes. Colocamo-nos na estrada na direção nordeste, tentando algum transporte até São Martinho. Após caminhar por meia hora sob chuva, um caminhão vazio parou para que subíssemos na carroceria. Cobrimo-nos com uma lona. O motorista falou que quando chegasse à cidade nos avisaria.

Na pequena cidade de origem germânica quase não havia movimento de pessoas a pé. Um ou outro automóvel deslocava-se pelas ruas. Sentia um pouquinho de frio por estar molhado, mas Avaeté sugeriu que devêssemos por o pé na estrada para chegar o mais breve possível à aldeia de Morro Mirim de Dentro. Tomamos a rodovia com asfalto recente e caminhamos cerca de doze quilômetros até sairmos da estrada e tomarmos a trilha em meio à mata.

A trilha sobe por entre a mata atlântica, onde encontramos uma riqueza vegetal impressionante. A quantidade de espécies é formidável. Subimos cerca de cem metros durante uma hora e meia de caminhada. De repente, vimos fugir alguns vultos por entre as árvores. Assustei-me, mas Avaeté disse para ficar calmo. Eram crianças brincando na mata. Em breve, avisariam da nossa chegada.

3

Em mais alguns minutos de caminhada pela mata úmida chegamos à aldeia. Havia casas com paredes trançadas de taquara e forro de fibras, misturadas a algumas outras construídas em madeira comum. A mais típica era a casa central, a opy, a casa de rezas. Houve um pouco de algazarra das crianças. Logo a seguir, um homem idoso nos recebeu.

- Avaeté! Que surpresa nos dá sua visita!

- Karay Porã! Meu velho Karay Porã! – abraçaram-se ternamente durante alguns segundos.

161

Page 162: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

A aldeia fora construída numa clareira, no lado oeste do Morro Mirim de Dentro. Logo a sudoeste avistava-se a estrada de que Avaeté falara. Passa próximo da aldeia, realmente. O barulho dos caminhões chega até aqui. Como Karay Porã notava minha atenção para os arredores, comentou:

- Esta aldeia foi construída há quatro anos. Vivíamos mais próximos da base do morro. Agora estamos aqui. Empoleirados.

Karay convidou-nos a entrar em sua casa, ao lado da casa de rezas. Lá encontramos sua esposa preparando mandioca para o jantar. Sentamo-nos e o velho homem convidou-nos para tomar mate. Enquanto preparava a cuia com a erva e aquecia a água, atualizou Avaeté das notícias do povoado:

- Avaeté, quanto tempo se passou sem você aparecer, hein?

- Sim, Karay. Muito tempo. Voltei porque senti saudades.

- Traz um amigo...

- Sim. Amigo companheiro de viagem. Este é Pyá.

- Seu amigo é uma pessoa simples? Aqui tudo é muito simples...

- Sou uma pessoa simples, não se preocupe, Karay. Pelo menos, tento ser – falei sorrindo.

Karay sorriu discretamente:

- As coisas pioraram um pouco depois que você nos visitou pela última vez, Avaeté. Agora somos menos gente na aldeia. Os jovens estão abandonando a nossa vida.

- Para onde estão indo?

- Para as cidades vizinhas. As maiores. Mas passam mal. Estão nas favelas. Algumas das nossas meninas estão até se prostituindo. Outras pedem esmolas nas ruas. E nossos meninos vendem drogas...

- Eu sei, Karay. A situação é a mesma em vários lugares. Tenho visitado muitos dos nossos. Não está muito melhor que aqui.

- Isto é grave, Avaeté – julgou Karay, chupando o primeiro mate da cuia e cuspindo-o.

- Você tem falado com o povo? Como enxergam o que está acontecendo?

162

Page 163: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Falaremos sobre isso depois. Por hora, tirem suas roupas molhadas. Emprestarei algo para vestirem.

Recolhemo-nos a um aposento vazio, apenas com colchões pelo chão. Penduramos nossas roupas e outros apetrechos para secar. Secamo-nos e retornamos à cozinha.

- Venham. Vou levá-los à opy para conversarmos – disse Karay, pegando o mate e a chaleira com água quente, além de um cachimbo.

Dirigimo-nos até a casa de reza. Eu estava sentindo ainda parte daquele desconforto físico. Sentia dores também. Um pouco de dor pelo corpo. Nada de mais sério, eu achava. Sentamo-nos no chão, sobre esteiras trançadas. Karay começou a falar:

- Muitos vêm aqui, Avaeté. Imprensa, representantes oficiais, polícia, ONGs, pesquisadores. Alguns têm uma postura indiferente. Eles vêm, tiram fotos, filmam, perguntam e vão embora. Outros querem ajudar, mas é uma ajuda que nos faz sentir como se fôssemos animais em extinção. Outros vêm com más intenções. Ninguém vem aqui como amigo. Os únicos amigos que recebemos são os irmãos nativos de outras aldeias e povos. E algum ou outro viajante.

- Compreendo, Karay. Explique-me a situação. Desde a última vez em que estive aqui, sua aldeia diminuiu – estimulou Avaeté, tomando pela sua vez o mate.

Karay baforou seu cachimbo:

- Muitos morreram. Outros foram para cidades como Tubarão, Criciúma ou Palhoça. Foram viver como o branco. E outros estão transferiram-se para as comunidades evangélicas das redondezas.

- Nunca tentaram migrar, Karay? – perguntou Avaeté.

- Uma vez. Mas não há mais mata. Esta aqui é a única que resta. Tentamos a mata do oeste, mas houve conflito com outros povos. Alguns morreram lá. Tivemos que voltar e subir o morro. Sabe como é, aqui é difícil plantar. Só tem pedra.

Noto que a alimentação deve ser mais pobre nestas circunstâncias. Todos na aldeia estão muito fracos. As crianças estão magras e barrigudas. Os mais velhos, esqueléticos. Não há jovens. Poucos são os adultos maduros.

163

Page 164: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Karay continuou:

- Antes, alimento era abundante. Tínhamos caça na mata, roça próximo, frutas, tínhamos de tudo. Aqui, no morro, é mais difícil. A maioria prefere fazer artesanato e balaios e ir vender na estrada. Ganhar dinheiro do branco. Comer comida do branco comprada na venda. Comida que nos faz mal. Mas, o que fazer? A mata sempre nos deu de tudo: alimento, remédio. Agora, não temos mais remédio. Temos que ir no doutor dos jurua. Remédio mau. Parece que quanto mais usamos suas comidas e remédios, mais doença e epidemia há.

Baforou um pouco mais do seu petynguá e serviu-me uma cuia de mate. A água aqueceu-me por dentro. Depois, falou:

- O contato com os brancos tem nos feito muito mal. Mas tenho consciência de que não é qualquer contato. Só o contato “paternalista”, como branco gosta de falar. Há contatos com brancos de espírito bom. Estes não nos fazem mal. Fortalecem-nos. São os que nos ajudam a revigorar nossa própria cultura e jeito de viver, como inúmeros antropólogos, ecologistas, estudiosos, líderes de organizações da sociedade civil, artistas, viajantes e gente livre que vagam por este mundo.

- Por outro lado, que tipo de contato tem sido prejudicial, Karay? – perguntou Avaeté.

- No passado, nos procuravam para sermos escravos. Nos caçavam, entende? Como a um cavalo selvagem. Agora nos caçam para catequizar. Incutir religião de branco. Tudo o que é tipo de religião de branco. Vêm aqui, nos vêm nesta situação e acham que precisamos ser salvos. Mas nos dão o que não precisamos. E nos tiram o que nos é essencial: terra e mata para viver.

Imagino a crise de identidade e a descaracterização a que isto leva. Os jovens ficam a pensar se devem ficar na tradição e viver neste estado, ir atrás de comunidades religiosas, onde recebem tratamento paternalista, ou ir para a cidade, com seus atrativos duvidosos e sua “modernidade”.

- Muitos bebem, Avaeté. Bebida do branco é comprada na venda, junto com a comida. Bebem porque estão em crise. Deprimidos. Os seus bem-queridos estão se indo. Suicidam-se. Ou são mortos, presos ou assassinados. Morremos até atropelados pelas estradas, como os cachorros também são.

164

Page 165: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté tem razão quando fala do abraço da morte. Ela vem por todos os lados. Cerca o povo, que não tem para onde escapar, a não ser para seus braços. As cercas são seus sinais. Cercas de propriedades, de exploração imobiliária, de reservas ecológicas e parques, de estradas, de negócios, de cidades. Todas elas vão se expandindo, até empurrá-los. Hoje, muitos vivem entre a estrada e a cerca. Ou estão subindo os morros. Indo para os rochedos. E para os despenhadeiros.

Faz sentido pensar que é um abraço. São forças que se realimentam. Sem terras, ou migram, ou entram em contato com o branco. O contato com o branco debilita-os, enfraquece-os e empobrece-os. A migração tem cada vez menos locais alternativos. No contato com os brancos, adoecem, ficam subnutridos, descaracterizam-se, entram em crise. Migrar, só para a cidade. Na cidade, serão pobres, subnutridos e doentes. Além de serem aliciados pelo tráfico ou prostituição. Não migrar é entrar em depressão. O resultado é a morte ou ser pressionado para o contato com o branco. O branco, fortalecido, apropria-se de mais terras. Sobram menos terras e menos alimentos e remédios vindos da mata.

- Infelizmente, Karay, muitos brancos bons que tentam ajudar não têm consciência inteira do que acontece. Eles vêem os problemas dos índios de maneira fragmentada, picada. Acha que índio sofre com exploração de terras, catequização, que é forçado a migrar, com conflitos, doenças, epidemias, subnutrição, pobreza, dependência, alcoolismo, tristeza, estresse, vulnerabilidade, prostituição, homicídios, atropelamentos, cobiça de terras onde vivíamos, “depopulação”. Cada um chega aqui e acha que tem o diagnóstico do problema do índio. O problema é X. O problema é Y. E quer tratá-lo de maneira isolada. O problema é tudo isto. E nenhum, ao mesmo tempo. A questão é nosso tipo de interação, a relação entre dois sistemas de viver: o branco e o nativo.

Avaeté já tinha falado sobre isto. Nas ruínas, falou da interação entre brancos e Guarani do passado. Agora estou aqui, frente a frente com os resultados da interação no presente. Sempre fico tentado a perguntar a Avaeté se há alguma solução para o problema. Uma saída para a situação. Avaeté é avesso a esse negócio de solução. Karay logo concordou:

- Sim, Avaeté. Temos muitos amigos. Eles querem ajudar, mas não tocam na semente que cria esta situação.

165

Page 166: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Para tocá-la, é preciso cavar o lodo e sujar as mãos. A maioria não tem coragem ou discernimento suficiente para tal – decretou Avaeté.

- Vemos a coisa de maneira muito simples, Avaeté e Pyá: precisamos de mata. Como qualquer animalzinho da floresta. Não queremos ser dono da mata. Não interessa quem é o dono, se é que haverá dono. Queremos é mata.

Tomamos mais alguns mates enquanto Karay Porã e Avaeté baforavam o petynguá. Ficamos todos em silêncio. Aos poucos a casa de rezas ia ficando mais escura pela noite que chegava. Em breve, seria hora de alimentar-se e deitar. Sentia necessidade de dormir um pouco mais cedo. Retornamos à casa de Karay, onde sua mulher servia mandioca cozida com picadinho de carne e molho. Bebemos um pouco de água e recolhemo-nos ao nosso quarto.

4

No dia seguinte, Karay Porã convidou-nos para conhecer todo o entorno da aldeia. Pretendia fazer-nos testemunhar o que havia mencionado na noite passada. Caminhamos por vários quilômetros de trilhas e estradas. Muito próximo da aldeia pudemos notar vários aspectos que a afetam. Havia atividades madeireiras ocorrendo nas matas junto ao parque; expansão de áreas cercadas de fazendas aproximando-se da aldeia; atividades oficiais dos batalhões de proteção ambiental vasculhando a área para evitar a expansão do aldeamento Guarani; a estrada, recém construída, a mesma que “descobriu” a antiga localização da aldeia; as comunidades evangélicas e os cultos com várias pessoas de origem Guarani ou de outras nações vizinhas; escolas de educação ocidental sendo implantadas por estas comunidades; a expansão urbana das cidades vizinhas, principalmente de Imbituba, com sua explosão imobiliária. Por fim, avistamos as barracas onde muitos índios vendem artesanato e cestaria na estrada.

- Sabe, Avaeté, nós, os índios, sempre fomos pensados como seres “inferiores”, como em transição para a “civilidade”, para a cristandade, para a “evolução” e a “salvação”. Se isto não acontece, acham que merecemos mesmo é morrer por recusar a oferta. Mas o

166

Page 167: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

que somos é um povo autônomo, dinâmico. Temos nosso caminho. Nosso caminho não é o caminho do branco.

- Eu sei, Karay Porã. No nosso sistema, somos ricos. Mas os brancos acham que somos pobres infelizes.

Passamos ainda um par de dias na aldeia do Morro Mirim de Dentro, convivendo com homens e mulheres de olhar cansado e crianças alheias aos problemas do seu mundo. Com elas, Avaeté e eu passamos a maior parte do tempo brincando, passeando pela mata e tomando banho de riacho. Avaeté contava-lhes histórias de antepassados, as quais ouviam com atenção e alegria. Quanto a mim, não tinha muitas histórias a contar a uma criança, mas procurava ser alguém com quem pudessem brincar e respeitar. Um deles, adolescente dos mais velhos da aldeia, era um parceiro em todas as aventuras. Seu nome era Jaxy Pyau. Significa “lua nova”. Transformou-se em nosso amigo e companheiro.

Caçamos juntos, pescamos juntos e Jaxy parecia conhecer bem a região. Soube que pretendíamos partir em breve, para o norte, ao encontro da aldeia Tekoha Guatá.

- Eu conheço o caminho para a aldeia. Nunca estive lá, mas sei como chegar. Pelo caminho mais lindo!

- Como assim, Jaxy? Que caminho é esse? – questionou Avaeté.

- O caminho da costa. Há uma trilha linda que liga as praias, da Ribanceira até o Sonho. Deixem-me acompanhá-los até lá!

- Não sei, Jaxy. Karay é quem sabe. Você não tem que ajudar a cuidar dos outros meninos e meninas?

- Há outros que podem fazê-lo. Deixem-me falar com Karay. Se ele permitir, posso acompanhá-los?

- Sim, pode sim, Jaxy – concordou Avaeté.

Avaeté disse que era bom que os moradores daqui entrassem em contato com a aldeia Tekoha Guatá. Talvez houvesse um intercâmbio positivo. Eu não entendia positivo em que sentido. Avaeté disse que há uma experiência importante sendo realizada em Tekoha Guatá. Também estou curioso para conhecê-la.

Até o norte do Parque da Serra do Tabuleiro, onde fica Tekoha Guatá, seriam cerca de setenta quilômetros de distância. Isto representa perto de uma semana na trilha. Quer dizer, achei que

167

Page 168: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

seria interessante fazer tudo isto a pé. Em primeiro lugar, banho de mar seria absolutamente necessário, tão próximos estamos do oceano. Segundo, de acordo com Jaxy, as paisagens litorâneas são lindas. E, terceiro, não temos pressa. Chegar lá em um, dois ou sete dias não faria a menor diferença. Por que apressar-se?

Karay Porã não se opôs. Jaxy pulava de alegria. Aquilo também nos alegrava. Acho que teríamos boa companhia por vários dias de caminhada.

5

Preparamos alguns poucos mantimentos e materiais e pusemos novamente o pé na estrada, depois de alguns dias de convivência com este povo amável de crianças alegres. Jaxy seria nosso guia, cruzando as matas, estradas e dunas entre a Serra do Tabuleiro e o mar.

A chegada ao mar foi esplêndida. A praia chama-se Ribanceira. No canto sul, encontramos uma casa bucólica de pescadores e o merecido banho de mar. De lavar a alma. O mar azul estava refrescante demais. Jaxy e Avaeté também se divertiram com a água e as ondas. Finalizado o banho, hora de seguir a trilha. Ribanceira encontra-se, ao norte, com a praia de Ibiraquera.

Esta, mais populosa, mistura veranistas e pescadores. Possui uma lagoa e uma barra. A lagoa de Ibiraquera é praticamente uma lâmina d’água, onde deslizam barcos de pesca e pranchas de windsurfe. O sol alto denunciava o meio dia. Paramos para almoçar num bar de pescadores. Conversamos com os locais e partimos assim que a digestão dos peixes estava a bom termo. Em seguida, tomamos a trilha que margeia o norte da lagoa, até chegar ao topo do morro que separa Ibiraquera da Praia do Rosa. Alguns pequenos gaviões faziam seu vôo panorâmico. Já no fim da tarde, sentia um pouco de cansaço, mas resolvemos cruzar o morro para chegar à praia e acampar para passar a noite.

Havia outras pessoas pela praia à noite. Na pequena baía, viam-se os sinais de fogueiras e festas aqui ou ali. Jaxy foi ver todos os que estavam ao longo da praia enquanto descansávamos próximo à beira-mar.

168

Page 169: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Na manhã seguinte, vimos o sol nascer no oceano e pusemo-nos a andar cedo. Seria um dia quente. Antes de deixarmos o Rosa, notamos o quanto é paradisíaca. Apesar de cheia de casas e pousadas, a mata as esconde, e você tem a impressão de um paraíso perdido. Cruzamos a trilha que liga o Rosa a Praia Vermelha e depois a que leva ao Ouvidor. São trilhas refrescantes e, quando não o são, caímos no mar. Vermelha é uma pequenina praia, acessível apenas a pé. Ao longe, a água parece uma pequena língua azul que lambe a areia, emoldurada pelo verde à volta. Os pássaros típicos da região da Serra do Tabuleiro estão por aqui, como saíras azuis, cardeais, pica-paus e papagaios. A trilha sobe e desce morro, as pernas reclamam e a visão agradece. Chagamos a Praia da Barra para “esticar o esqueleto”. Instalamo-nos no canto da praia para passar a noite. Jaxy ainda teve tempo para pescar algo para o jantar. Pouca coisa. Praticamente um tira-gosto.

A caminhada pela Barra em direção a Praia da Ferrugem é cheia de dunas e rochas. Há também algumas sombras de árvores à beira-mar, boas para descansar, depositar as mochilas e tomar banho. Você poderia ficar por estas praias o resto da vida, deitado numa rede e refrescando-se nas sombras ou em casas bem ventiladas feitas com teto de palha. Perguntei a Jaxy se havia, hoje em dia, alguma aldeia à beira-mar. Jaxy disse que desde tempos antigos não se vivia mais na praia. Tiveram que migrar para o interior, para dentro das matas. Imagino a vida paradisíaca que tinham os nativos por aqui em tempos remotos.

Da Ferrugem ao Silveira percorre-se por uma longa trilha. Ela passa pelo interior de uma mata deliciosa e revigorante. Muitos morros e algumas vistas indescritíveis. Acampar dentro da mata foi o que sugeriu Jaxy. E assim foi feito. Pela manhã acordamos do sono da floresta ao som de pássaros. Havia milhares deles. Gralhas azuis em maior abundância. Guardamos o material nas mochilas e saímos pela trilha. Depois de algumas curvas da trilha e de saltar por sobre troncos e raízes, senti um súbito mal-estar, caí no chão e “apaguei”.

Fiquei desmaiado por alguns segundos. Mas pareceram-se horas. Acordei com água sobre a testa despejada por Avaeté. Um pouco desnorteado, perguntei o que havia acontecido. Avaeté disse que tropecei em uma raiz de guapuruvu. Caí e bati a cabeça num tronco. Eu disse que não era deste tipo de “mancada”. Avaeté e Jaxy se olharam. Avaeté sentenciou que meu corpo estava sob efeito de

169

Page 170: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

doença. Vinha dando sinais. Precisava ser tratada, mas não com urgência. Deveria apenas ter cuidado.

Levantei e seguimos pela mata. Realmente vinha sentindo alguns mal-estares e dores, mas acreditava ser apenas cansaço. De qualquer maneira, continuei achando que não era motivo para preocupação. Seguimos adiante em direção à Praia do Silveira. Percorremos com certa dificuldade as areias da longa praia, sob sol escaldante e buscando refresco no mar. Alguns surfistas compartilhavam o oceano. Da saída da areia se adentra uma trilha que percorre morros, passa por casas suntuosas e praias semiparticulares. As vistas são majestosas, tanto para o sul quanto para a próxima passagem: Garopaba.

Garopaba, o paradeiro das canoas, ainda o é por força de alguns pescadores guerreiros. Na maior parte, é terra de mochileiros, campistas e veranistas. Agitadíssima, obtivemos alguns peixes e cruzamos as areias. Paramos na ponta norte, antes de Siriú, num camping, onde tivemos oportunidade de conversar sobre viagens e aventuras com a tribo do trailer e do motorhome. Assamos nossos peixes e apreciamos as sombras de pinheiros exóticos até o final da tarde, curtindo o pôr do sol.

De Siriú a Gamboa, praias separadas por trilha, cruzamos contemplando a mata e as rochas. Boa e longa caminhada. Andar sobre as rochas é uma aventura para as articulações, mas vencida a passagem, você cruza a pequena praia e chega a Guarda do Embaú. A água é mais verde, a areia mais branca. O Rio Madre tem sua foz aqui, descendo em direção ao mar e, de repente, quase desistindo, fazendo uma curva de noventa graus, correndo perpendicular à costa para, no fim, entregar-se no cantinho da praia. Subimos numa pedra para mirar a paisagem. Jaxy é contemplativo e alegre ao mesmo tempo. É um guia fabuloso, pois conhece as histórias destas passagens, muito antigas, do tempo dos seus ancestrais, do tempo da colônia, do tempo dos primeiros malucos dos anos sessenta e setenta e de tempos imobiliários. Jaxy seria um grande companheiro numa viagem mais longa. Tem a avidez do aprender, a simpatia do seu povo e a chama da sabedoria.

Descemos e retornamos à praia e tomamos o último banho. Jaxy disse que este seria o ponto para adentrar novamente o continente e o Parque da Serra do Tabuleiro. Descansamos e tomamos uma pequena estrada, a 433, entre o mar e a 101, de onde se tem uma

170

Page 171: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

vista agravável da serra. Depois, cruzamos esta movimentada rodovia na direção oeste, até localizar uma trilha pouco visível. A trilha da aldeia Tekoha Guatá. Estávamos, depois de alguns dias, a poucos quilômetros de uma experiência nova.

Jaxy nos disse que a aldeia se relocalizou havia uns dois anos. Antes, estavam um pouco mais no centro do parque, mas agora estavam numa nova área, mais ao norte.

Enquanto caminhávamos, Avaeté esclareceu um pouco mais como era o sistema original Guarani. Em essência, o Guarani é metade nômade, metade fixado. Uma aparente dicotomia, mas a essência disso é a maneira como as coisas funcionaram por milênios. O jeito Guarani: sobreviver livremente, em busca de uma terra sem males.

- Yvy maraney, Pyá, não é uma utopia incessante. Yvy maraney é viver o aqui e agora, unidos a terra presente, que é nossa mãe e nos fornece o que precisamos. Mas, se formos mesquinhos e quisermos crescer e extrair tudo o que a terra tem e quisermos acumular, ela morrerá. Se ela morrer, nós morremos. Por isso, yvy maraney é também uma nova terra, sem os males que poderíamos estar incutindo sobre ela.

“Ao passo que buscamos terras melhores para, de novo, subsistir temporariamente, deixamos a terra que vivíamos para ser tratada e curada pela própria terra. Nesta cura, a própria terra se renova. Veja, somos assim, seminômades, porque a terra e a mata nos querem assim. A mata é assim porque somos assim. Uma coisa única. Fazemos isto por cultura. Fazemos isto por natureza. Logo, nossa cultura e a natureza são um só.”

Estava começando a compreender o radicalismo da idéia. Pessoas livres, que se estabelecem e migram para proteger aquela que os protege. Parece que a natureza quer que sejamos assim. Infelizmente, não estamos agindo muito de acordo. Estamos nos fixando e nos multiplicando demasiadamente.

- Sempre fomos livres sobre a terra, Pyá. Mas sua apropriação das matas está impedindo nossa liberdade. Não podemos pescar nos rios que sempre pescamos, caçar nas florestas que sempre caçamos, nem podemos morar nas matas em que sempre moramos. Ser dono da terra é imoral. A terra é que nos tem.

171

Page 172: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Interessante o seminomadismo. Isto faz com que sejamos adaptáveis, na medida da nossa natureza e da natureza onde vivemos. Logo, estes povos, por certo, eram povos dinâmicos. Recriam sua identidade e modo de viver em acordo com o seu modo de viver e a sua busca. Acho que os “civilizados” fantasiam a necessidade de preservar os povos nativos para manter sua “ingenuidade” e “pureza”.

- Pyá, não somos seres intocados para ser conservados em museus e reduções. Somos povos dinâmicos. Vocês devem nos ajudar justamente pelo nosso dinamismo. Deixar que ele flua. Um dinamismo diferente dos jurua. Movimento é parte da cultura Guarani.

Movimento. Dinamismo. Do grego dúnamis: “potência, força, poder”. A força do dinamismo nativo. Não a velocidade ou a voracidade jurua. Acho que é isto que Avaeté gostaria que experienciássemos nesta aventura.

6

Chegamos à aldeia Tekoha Guatá ao final da tarde. Eu estava exausto dos vários dias de caminhada pela praia. Excesso de sol, terrenos difíceis e estas dores e febre. Vez por outra sentia calafrios.

Quando você adentra a aldeia, logo sente a diferença para Morro do Mirim de Dentro. A aldeia é formada em semicírculo, numa clareira. De um lado, a mata, concentricamente menos compacta até tornar-se densa e intocada. É a área de caça e coleta. Do outro, também concentricamente, as casas, a produção artesanal ou semi-industrial de vários artefatos, as plantações e, novamente, a mata densa. Por entre a mata densa, várias trilhas em todas as direções.

Fomos recebidos com alegria e boas-vindas de diversas pessoas. Circulamos por vários locais da aldeia, desde a casa de reza até algumas moradias. As casas são feitas de materiais naturais encontrados na região, mas têm estilos arquitetônicos menos tradicionais, arredondados, com abóbodas, clarabóias e respiradouros. Muitas destas construções foram feitas aéreas ou suportadas pelas árvores. Muitos dos caminhos são aéreos também, assim construídos para permitir o livre transitar de animais e plantas.

172

Page 173: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

A comunidade é bem maior que a de Morro Mirim de Dentro. Ali vivem algumas centenas de pessoas, junto com algumas poucas dezenas de brancos. Os brancos são guarda-parques, ecologistas, biólogos, antropólogos e viajantes diversos. Os Guarani são vistos em todas as idades, desde crianças brincando livremente, jovens treinando a caça, a pesca e os rituais, homens e mulheres maduras trabalhando ou brincando ou conversando e idosos orientando a todos. Se havia uma palavra para caracterizar aquela gente, ela seria força. Uma comunidade com força.

Para nossa surpresa, quem nos recebeu mais “formalmente” foram os guarda-parques. Apresentaram-nos a aldeia como algo experimental. Principalmente para os próprios brancos. Estavam experimentando algo novo. Aqui, um sistema colaborativo ajuda no zelo, manutenção e renovação da reserva natural. Ajuda também na experimentação de inovações de sistemas construtivos e produtivos. É colaborativo também na geração e sistematização do conhecimento, tanto branco, quanto Guarani.

Disseram-nos que a aldeia se relocaliza de tempos em tempos dentro e nos arredores do parque. A comunidade cultua e revigora os preceitos dos antepassados e ensinamentos a respeito do mundo supranatural. Também preserva a organização social e o sistema de casamentos endogâmicos. Pratica uma economia de reciprocidade entre as aldeias vizinhas, as comunidades brancas e entre si. Trabalham em mutirão. Segundo eles, muito menos horas, em média, do que no sistema jurua. “Veja só: tendemos a classificá-los como preguiçosos...” – pensei. “É uma idéia estúpida. Mas entendo porque pensamos assim...”

Os índios orgulhavam-se em dizer que viviam para a aguyje. Diríamos que é como a procura da perfeição, mas tem mais o sentido de buscar a transformação e a renovação para amadurecer. Neste amadurecimento, unem-se cada vez mais os processos naturais, sociais e culturais. Os pesquisadores brancos chamam isto de desenvolvimento ecossistêmico. Certa vez, em Araxá, referi-me a um termo parecido numa conversa com Avaeté. Ele disse que o termo era pomposo demais. Disse que preferia “princípios da Vida”. Viver em acordo com os princípios da Vida. A idéia não é nova, mas parece revolucionária.

Então, uma comunidade Guarani com força busca uma perfeição dinâmica: um desenvolvimento renovador. Em pleno acordo com os

173

Page 174: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

princípios da Vida, da natureza. Pois assim também é o próprio sistema medicinal praticado aqui. Os Guarani possuem e renovam um corpo estruturado e dinâmico de procedimentos sistemáticos para estudar a eficácia das plantas. “É, talvez eu comece a precisar desse sistema. Minha cabeça dói um bocado.”

Os líderes da comunidade disseram que vínhamos em muito boa hora. Dentro de dois dias receberiam amigos de outras tribos do norte e haveria comemoração. Reservaram-nos uma casa na área branca da aldeia, muito agradável e fresca. Lá descansamos, eu, Avaeté e Jaxy dos dias de caminhada.

No dia seguinte não pude levantar da cama. Estava com muito frio, muita dor no corpo, a cabeça estourando e uma fraqueza geral. Mal conseguia abrir os olhos. Avaeté mandou Jaxy chamar Karay Katu, o líder e curandeiro da aldeia. Karay chegou, olhou-me demoradamente e disse a Avaeté que era preciso trabalhar o dia todo para ajudar na cura:

- Seu amigo Pyá está enfermo do corpo e da alma, Avaeté. A doença que o toma desde pequeno manifestou-se agora. Há uma luta dentro dele. Precisamos fortalecer seu lado puro. Vamos trabalhar!

Karay Katu saiu e chamou sua esposa. Ela recolheu chás e tabaco e trouxe-os na companhia de duas filhas. Chegaram à casa onde eu estava alojado e puseram-se a aprontar os chás. Foram preparados dois tipos. O primeiro para que eu bebesse, a intervalos regulares, muito quente, mas doce, devido ao mel. Eu recebia-o numa pequena cabaça. A cada vez que o tomava, um fogo ardia-me por dentro. As mulheres fumavam tabaco, baforando-o na minha cabeça vez por outra. O segundo chá, feito das demais ervas, era usado para banhar-me. Fui mergulhado numa banheira com a água das ervas. Que gelada! Tremia completamente de frio.

Avaeté e Jaxy acompanharam Karay Katu à opy. O líder ainda chamou dois idosos. Puseram-se a cantar e invocar a minha cura a Nhanderu Tenonde, o Pai Primordial. Rezavam intercaladamente à cantoria, fumando o petynguá. Isto durou o dia todo.

Sentia o calor amoroso destas pessoas em prol da minha cura. Não sabia o que tinha ocorrido, mas tinha fé que aquilo tudo pudesse me ajudar. Cheguei a perder a consciência e a ter delírios. Comecei a ver passar pela minha cabeça cenas de destruição, principalmente da cidade onde morava, da minha casa e de tudo o que havia no meu

174

Page 175: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

trabalho. Via as pessoas que havia deixado chorando e fugindo dos desastres. Milhares de pessoas fugindo de suas casas pelas estradas, de maneira desordenada e confusa. Via muita fumaça e sentia calor e frio alternadamente.

Debatia-me, falava sem consciência e ofegava durante aquele tratamento. A noite chegou e as mulheres retiraram-se da casa. Chegaram Avaeté, Jaxy e Karay Katu. Aos poucos a fumaça foi esvaindo-se e o retorno da minha consciência se deu com um último lampejo de delírio: na direção das luzes das velas, eu vi o vôo de um gavião. Então, dormi um sono mais tranqüilo.

Acordei somente na manhã seguinte. Tentei avaliar minha situação. Ainda tinha dor de cabeça, bem como tinha dificuldade em mover meu corpo. Mas sentia como se um peso me fora retirado de sobre meus ombros. Avaeté achegou-se e disse:

- Seu corpo tem saudades da velha vida. Mas não se preocupe. Tudo está bem. Entre os seus e com você mesmo.

- Avaeté, tive muitos sonhos. Sonhos de destruição de tudo o que havia na minha vida.

Contei-lhe os detalhes. Finalizei com a descrição do vôo do gavião.

- Um carcará! Isto é um maravilhoso sinal. Sinal de que está tudo bem! – e soltou uma gargalhada. Depois continuou:

- Sinal também de que você precisa usar bem seu coração. Abra-se para sentir. Sinta saudade. Sinta amor. Sinta tudo o que é para sentir.

Entraram a seguir Karay, sua mulher, suas filhas e Jaxy. Todos tinham sorrisos nos rostos. Demonstravam amabilidade e afeto. Parecia que haviam feito aquilo como uma missão que lhes foi dada. E a cumpriam com prazer e amor. Vi o brilho no olhar de cada um. E notei que Jaxy tinha o mesmo brilho de Karay Katu. Talvez um dia ele também seja um Karay.

- Avaeté, seu amigo não está curado. Está bem remediado, mas não curado. Precisa ver uma pessoal especial. Vocês deverão encontrar a xamã Elisa Moneiro. Nós remediamos o corpo de Pyá. Ela ajudará remediando sua alma.

175

Page 176: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Karay deu as instruções a Avaeté para localizá-la. Ela vive semi-reclusa nas montanhas, ao sul da ilha de Santa Catarina. Era bem próximo e seria fácil tomar um barco até lá.

Depois todos pediram licença para continuar a providenciar as festividades. De onde estava, podia ver pela janela a movimentação próxima à opy. Uma enorme fogueira, gente cozinhando, instrumentos musicais sendo afinados. Tentei avaliar minha situação para participar daquilo, mas, apesar de bem melhor, sentia fraqueza. Passei o dia tomando caldos nutritivos enquanto meus companheiros de viagem engajavam-se nos preparativos.

Havia uma energia muito positiva naquele movimento. Parece que a vida toda deste povo estava em aproveitar cada dia, para depois celebrá-lo nas festividades. Gente jovem, adulta e madura circulando, conversando e trabalhando animadamente. Pelo meio da tarde começaram a chegar convidados. Eram Guarani, mas também representantes de outros povos, pelas feições e língua. Já estava ficando acostumado ao jeito Guarani de falar. Não entendia a maioria das palavras, mas sabia quando era e quando não era a língua Guarani.

Havia perto de quinhentas pessoas à volta do fogo quando ele foi aceso. Avaeté e Jaxy puseram-me numa cadeira e me levaram para fora. Eu tinha dificuldade para andar. Depois colocaram uma manta sobre meus ombros. Um dos pesquisadores brancos que vivia na aldeia trouxe um copo com um líquido alaranjado. Falou com sotaque inglês carregado, como se fosse escocês ou irlandês:

- Não beba sem antes olhar bem para ela e depois sentir bem seu perfume. Deixe a bebida tocar sua alma.

Observei a bebida e notei que ela vertia lágrimas nas paredes do copo. Era alcoólica, certamente. Lágrimas que corriam lentamente. Levei o copo ao nariz e senti seu perfume. Um perfume de madeira e um quê de mel. Verti um gole da bebida e identifiquei inequivocamente:

- Uísque!

- Puro malte das ilhas escocesas! Feitas pelas mãos de gente pura! Rá, rá, rá, rá! – e bebeu um grande gole de sua bebida também.

176

Page 177: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

A leveza do ar fresco da noite contagiava a todos. De longe, verifiquei que três músicos aprontavam-se para iniciar a música para a dança. Um portava um violão, outro jovem um rave, espécie de violino pequeno e, ainda, uma menina com o takuapu, uma taquara grossa usada como instrumento de percussão ao ser batido no chão.

Em breve comecei a ouvir os acordes do xondaro. Karay Katu comandava a dança, exatamente como os passos dados por Avaeté na festa Mapuche. Dezenas de dançarinos passaram pela roda. Entravam e saíam animadamente. O meu amigo escocês animou-se em apresentar-se:

- Esse mundo é muito diferente do meu. Um mundo admirável. Sou Jeff – falou, estendendo sua mão.

- Olá, sou Pyá. O que você faz aqui?

- Não é fácil explicar. Mas, no final das contas, sou um homem livre que ajuda os que desejam minha ajuda. Sou um viajante deste mundo, compreende. Não solitário, pois aqui e ali estou a serviço de alguém de alma boa. No momento, estou aqui trabalhando pelo fortalecimento da medicina nativa.

- Você é médico?

- Você quer dizer no sentido estrito? Já fui um dia. Agora, não sei mais o que sou. Uso meus conhecimentos médicos, mas o que está à disposição para curar as pessoas por esse mundo é muito maior, entende?

- Acho que sim. Desde ontem tenho tido uma amostra disto – afirmei.

- Sim, é verdade. O conhecimento da farmacopéia destas pessoas é notável. Mas isto não é tudo. Elas tratam você como um ser integral. Seu corpo e seu espírito. Veja esta celebração. Isto é cura! – e ergueu seu copo para brindar.

Enquanto as pessoas dançavam e cantavam, tive uma agradável conversa com Jeff. Perguntei se conhecia Elisa Moneiro. Ele disse que sim, que era uma mulher admirável. Levou sua vida como pedagoga durante vários anos, até que foi viver na América Central e adquiriu todo o conhecimento que tem com os índios de lá. Hoje é uma xamã respeitada e admirada.

177

Page 178: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Conversamos também sobre as experiências que tomavam lugar naquela aldeia. Jeff disse que não via todo o alcance que poderia derivar daquela experiência de colaboração entre índios e brancos, mas que coisas importantes aconteciam ali. O próprio Jeff reportava nas redes públicas de conhecimento o que ocorria ali com ele próprio: o seu aprendizado médico. Havia também aprendizagem mútua sobre cultivo e manejo da terra, além de algo fora do comum: presença humana e co-gestão em áreas de proteção ambiental.

- Sabe, Pyá, não há melhor guardião da natureza que os nativos. Eles monitoram e dão relatos das condições de todo o parque. Cuidam melhor do que qualquer profissional assalariado. Sabe por quê? Porque a terra, a mata, é a essência do seu viver. Como eles dizem, “sem tekoha, não há teko”. Teko é o jeito de viver, seus hábitos, suas leis, sua cultura. Tekoha é moradia, no sentido amplo, abrangendo a aldeia, as plantações, a floresta. É teko a base da sua vida, assim como as cidades são a base da vida ocidental. Sem a mata, não há morada para o índio.

A dicotomia homem-natureza é fundada na visão de que a cultura não é natural. Que ela é derivada de seres superiores à natureza. “Isto é uma farsa!” – pensei, olhando para a dança que acontecia à volta do fogo. A cultura é a maneira como o homem se relaciona com a natureza e faz parte dela. Cultura é prática na natureza. É prática com a natureza. Uma mútua relação, uma faz a outra, uma está dentro da outra. A sociedade é parte da natureza. A natureza é parte da sociedade.

É realmente uma experiência radical o que ocorre aqui. Radicalmente libertária. No senso comum, se o homem destrói a natureza, ele deve ser erradicado das áreas de preservação. Qualquer humano. Mesmo os nativos. Acho que isto também é um tipo de arrogância e apropriação indevida, às avessas.

Foi uma noite memorável. Muita diversão, muita música, comida e bebida usada de maneira equilibrada. Eu mesmo não tomei mais que aquele copo de néctar escocês. Quando a lua pôs-se atrás da floresta, recolhi-me. Estava cansado e com a cabeça levemente dolorida. Arrastei-me até a porta da casa e atirei-me na cama. Ouvi ainda os barulhos da festa por algum tempo, bem como as sombras das pessoas e reflexos das chamas da fogueira. Relaxei com aquele espetáculo de fogo sobre o fundo branco da parede e transportei-me para o mundo do sono.

178

Page 179: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Nove

179

Page 180: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Dormi uma noite conturbada por causa dos acessos de calor e frio que alternadamente me ocorriam. Cheguei a acordar, já com a festa terminada e silêncio na aldeia, pelo mal-estar. Tentei imaginar o que havia acontecido comigo, que doença havia me acometido. Esqueci de perguntar a Jeff qual seria seu diagnóstico. Seria fraqueza pela ausência de algum nutriente? Ou tinha tomado sol demais? Ou estava infectado com algum vírus? Será que não precisaria algum tipo de antibiótico? Claro, estes eram raciocínios alopatas. Os nativos não fazem raciocínios desse tipo. O diagnóstico de Karay Katu era de que havia algo errado com minha alma. Assim também pensava Avaeté. Tenhamos fé no sistema nativo.

Acordei com o sol alto. Estava cinqüenta por cento melhor, mas ainda sentindo fraqueza e dor de cabeça. Karay chegou e me examinou. Avaeté e Jaxy entraram logo após. Para minha surpresa, Jeff entrou na casa também, e me olhava de longe. Karay dirigiu-se a Avaeté e Jeff:

- Pyá não vai melhorar além deste ponto sem ser examinado pela xamã Elisa. Ele precisa ser levado até ela o mais breve possível.

Perguntei a Jeff o que eu tinha. Jeff foi breve:

- Você tem o que Karay lhe disse ontem. Alma que precisa ser tratada.

Perguntei se uísque ajudaria, procurando dissipar alguma desconfiança em relação a Karay com uma brincadeira. Jeff sorriu e abanou a cabeça positivamente. Depois avaliei minha situação para sair da aldeia:

- Karay, acho difícil eu conseguir sair daqui. Sinto uma dor de cabeça que vai me matar se eu ficar muito tempo ao sol. E com minha fraqueza, não dou dez passos na trilha.

- Você vai precisar de ajuda. Seguirá com Avaeté, Jaxy e um dos meus. Pegarão um barco no Rio Maciambu e irão até a praia do Pântano do Sul, na ilha de Santa Catarina.

Esta situação acabava deslocando os destinos de algumas pessoas. Jaxy acabaria impossibilitado de voltar para sua aldeia. O companheiro de Karay largaria seus afazeres para levar-me até a ilha. Nós, que poderíamos passar alguns dias aqui aprendendo e

180

Page 181: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

ajudando a comunidade, teríamos que partir rapidamente. Avaeté desviaria o destino de nossa empreitada por causa da minha doença. Que chato isto... Por que eu não mantinha uma condição saudável para aproveitar a aventura e não atrapalhar ninguém?

- Não há tempo a perder. Devem partir em breve – reforçou Karay Katu.

Recebemos alguns mantimentos e uma garrafa de chá. Recebi recomendação de tomá-lo quatro vezes por dia. Um índio forte aprontou-se para nos acompanhar. Eu coloquei uma manta leve sobre a cabeça, já que o sol estava forte. Despedimo-nos rapidamente daquela boa gente, desculpando-me por minha enfermidade e pela necessidade de partirmos. Disseram que voltássemos em breve e sempre que desejasse.

Começamos a descer a trilha que leva até o Rio Maciambu. Jaxy e nosso acompanhante me apoiavam para que eu pudesse me deslocar. O ar estava úmido e quente e isto fazia minha cabeça latejar. Descer por entre as pedras não era fácil. Levamos quase três horas até chegar ao rio. Lá, uma canoa descansava sob as árvores da margem. Entramos todos nela e os três amigos começaram a remar. Era uma canoa ampla. Assim, consegui deitar-me. Navegamos rio abaixo e entramos no mar. Estava calmo, mas o leve balanço me enjoava. Passamos a Ponta do Papagaio, a praia de Naufragados e uma velha fortaleza. Depois, contornamos a ponta sul da ilha de Santa Catarina para entrarmos na baía da praia de Pântano do Sul.

Desembarcamos junto à colônia de pescadores. Alguns deles vieram nos ajudar. Descansamos todos sentados na praia. Depois, Avaeté ordenou a Jaxy que retornasse com o companheiro índio:

- Jaxy, você deve voltar para Tekoha Guatá. Fique o tempo que quiser, mas não deixe de retornar logo a Morro do Mirim de Dentro.

Jaxy, com um olhar triste, perguntou a Avaeté:

- Será que eu poderia viajar com vocês? Estou há muito tempo vivendo em minha aldeia sem conhecer novos mundos, sem receber visitas de outras gentes. Por favor, deixem-me viajar com vocês!

- Você tem sido um ótimo companheiro. Mas temo que você passe por perigos desnecessários na sua idade, Jaxy.

- Por favor, eu já sou bem crescido. Ainda não sou adulto, mas sei me virar.

181

Page 182: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Disso eu tenho certeza. Faremos desta forma: você deve retornar a Tekoha Guatá e à sua gente. Lá, converse com seus pais. Se eles permitirem, nos encontraremos em duas semanas na aldeia Itajapukai, próximo a Praia Grande. Você acha que consegue?

- Claro, Avaeté. Nem que eu tenha de ir voando! Rá, rá, rá! Vamos nos encontrar lá. Façam uma boa viagem! Pyá: força e ternura! – desejou-nos.

Jaxy e o gentil companheiro de viagem partiram de volta na canoa. Abanamos até os perder de vista na ponta da baía. Depois conversamos com os pescadores e explicamos nossa situação e nossa necessidade de localizar xamã Elisa Moneiro. Um amável pescador tirou da sua garagem um velho carro e levou-nos até a encosta dos morros onde vive Elisa. Deixou-nos na frente da sua casa. Agradecemos ao pescador, que saiu com um sorriso e desejo de boa sorte.

Batemos na porta da casa, cuja varanda continha vários filtros de sonho ao vento. Ninguém respondeu. Poderia estar para as bandas da vila ou da cidade. Perguntamos a uma vizinha, que nos informou que Elisa tinha ido comprar algumas frutas e verduras na venda próxima e não demoraria. Sentamo-nos junto às escadas da varanda. Avaeté perguntou sobre como me sentia:

- Enjoado e com frio. Estou precisando de um banho e uma cama, Avaeté.

- Tome o chá de ervas. Vai aliviá-lo. E trate de abrir sua alma. Só assim você poderá aproveitar tudo o que Elisa tem para oferecer.

- As pessoas têm sido muito boas, Avaeté. Estou até envergonhado.

- Nós temos buscado as pessoas boas. E elas sempre estiveram lá, à nossa espera. Abra-se para elas.

- Mas deve haver algo que possamos fazer para agradecer...

- Apenas seja carinhoso. Eu já lhe disse. Sua retribuição não será dada a elas.

- Você acha que Jaxy virá ao nosso encontro? – perguntei a Avaeté.

- É muito provável. Aquele garoto tem determinação e brilho.

182

Page 183: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Ficarei muito contente com sua companhia. É um bom menino.

- Eu também acho. Não planejei alguém mais na nossa viagem, mas acho que isto será muito bom. Para mim e para você.

Enquanto esperávamos, a noite chegou. As poucas luzes da estrada de chão batido iluminavam aqui e ali. De repente, ao longe, avistamos uma mulher magra, mas de firmeza, trazendo algumas sacolas. Avaeté foi até ela, imaginando ser Elisa. Eu aguardei. Sentia-me abatido. Acho que minha feição denunciava isto. Elisa chegou e abriu a porta. Soltou as sacolas. Ajudou-me a levantar e sentamos na sua sala de estar.

- Quem os enviou? – perguntou Elisa, num tom muito terno.

- Karay Katu. Meu amigo foi medicado, mas precisa de um trato na alma – disse Avaeté.

- Meu velho amigo Karay Katu. Estiveram em boas mãos e na companhia de boa gente. Como é seu nome? Você pertence à tribo de Karay?

- Ah, desculpe, não nos apresentamos. Eu sou Avaeté. Homem Guarani de todas as tribos. E este é Pyá, meu companheiro de viagem.

- O que você tem?

Descrevi os sintomas. Disse como haviam me cuidado na aldeia. Elisa afirmou:

- Você foi bem tratado. Mas precisamos evoluir para você estar limpo dessa doença. Faremos três coisas. Primeiro, vou tratá-lo esta noite com reiki. Isto vai dissipar amarras e fazer fluir melhor sua energia. Depois, faremos o ritual do temascal para “destampar sua panela”. Preciso buscar ervas amanhã para isto. Por fim, você terá que ser batizado com seu nome Guarani. Você ainda não foi batizado, não é mesmo?

Fiquei intrigado como sabia disto. Confirmei o fato. Avaeté falou:

- Ah, eu sei. Isto será uma tarefa minha. Estou em dívida com esta tarefa. Teremos que executá-la em breve.

Fiquei lembrando o momento em que recebi meu nome Guarani. Avaeté me deu ele no Cerro Huyliche. Apenas me chamou de “Pyá”. Foi sua primeira saudação. Eu o aceitei com naturalidade. Não senti

183

Page 184: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

repulsa nem impropriedade no ato de Avaeté. Parecia que sempre estivera ali.

Elisa e Avaeté me falaram sobre o que ocorre com um jovem Guarani enquanto ele não é batizado. Pode ficar doente mais facilmente. Por isso, ser batizado significa fortalecer-se.

2

Alojamo-nos na casa de Elisa, que fez com que nos sentíssemos muito à vontade. A casa de Elisa é bastante simples, rústica, feita em madeira e com um avarandado por toda a volta. Está bem incrustada no meio da mata, tendo poucas outras casas por perto. De todos os cômodos da casa se pode enxergar o mar. Há várias redes para dormir.

Elisa contou um pouco de sua vida. Foi professora universitária e pesquisadora respeitada, chefe de departamento e vice-reitora. Aposentou-se e, de repente, viu-se na iminência de dedicar-se a algo profundo, como a entrega a uma missão. Disse que, assim como nós, ela viajava. Viajou por muitos lugares, até conhecer seu mestre na América Central. Ele a ajudou a encontrar esse caminho. Viveu lá por alguns tempos, iniciou-se e graduou-se como xamã. Agora, recebe aqueles que dela necessitam, procurando tratá-los com dedicação e carinho.

Avaeté começou a falar sobre a nossa viagem. Enquanto isso, fui tomar banho. Quando voltei, sentei-me à mesa da cozinha, onde conversavam e tomavam mate, enquanto Elisa preparava uma canja. Comemos canja de galinha antes de me recolher. Eu estava um pouco febril.

Elisa recomendou que fosse para o quarto, mas que não adormecesse. Sentei-me na cama e passei os olhos por alguns jornais das semanas anteriores. Não havia muita novidade. Há quase dois meses na estrada, você rememora a quantidade de lugares por onde passou e o que aprendeu.

Elisa chegou e avisou que Avaeté já estava deitado. Ligou um aparelho de som com uma música relaxante e ordenou para que deitasse de costas. Acendeu alguns incensos e passou a cantar baixinho, acompanhando a música. Fui entrando num estado muito agradável. Em certo momento senti um calor na altura da coluna

184

Page 185: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

lombar. Virei a cabeça para identificar de onde vinha aquele calor, mas só conseguia enxergar o espelho. Através dele, notei as mãos de Elisa flutuando a dois centímetros das minhas costas. Ela sussurrou:

- Meu mestre costumava dizer: “Reiki é a arte de convidar a felicidade a entrar pelos poros do seu corpo. A felicidade é o remédio miraculoso para todas as doenças” – e continuou cantando.

Elisa era uma mulher dos seus cinqüenta e poucos anos, magra, morena como se fosse índia e com olhos verde-água. Parecia mais magra ainda dentro de seu moletom largo. Sorriso amplo, mas sereno. Cabelos curtos. Ar tranqüilizante. Acho que só sua presença já cura.

Senti aquela quentura subir da minha coluna lombar até o centro de minhas costas e pulmões. Era abrasador e acalentador. Depois levou suas mãos às omoplatas, e senti uma expansão do meu tórax e ombros. Senti como se eu pudesse abraçar o mundo, não para me apoderar dele, mas para envolvê-lo, de modo que ele fosse eu. Senti uma expansão de mim mesmo, e era uma expansão dissipadora, como se ao aumentar, estivesse me diluindo. Depois Elisa subiu as palmas de suas mãos até a coluna cervical e nuca. Quando chegou aí, tive um relaxamento ainda maior e apaguei por total a mente. Como se uma chave fosse desligada. Senti uma iluminação emanando do meu corpo, e eu estava assistindo àquilo. A iluminação era azul e púrpura, em camadas, sobre um fundo negro. Senti um fluir de dentro para fora desta energia e, quanto mais ela fluía, mais revigorado ia me sentindo.

Poderia deixar o corpo flutuar e ele talvez flutuasse. Mas me foquei na sensação de desligamento da mente e no fluir de uma energia majestosa. Era algo que tiraria tudo de mim, até me deixar vazio. Vazio, eu seria apenas o que era, sem a preocupação de ser o que era ou não era. Sem julgamento de certo e errado. Um aspirador tomava conta de mim, não para extrair minhas “impurezas”, mas para extrair o julgamento a respeito delas.

Quando sentia este insight tomar conta, Elisa deu um pequeno toque no meu pescoço, abaixo da orelha direita, e saiu. A sala estava com a meia luz de uma vela que se extinguiria em minutos. Antes disso, extingui-me.

185

Page 186: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

3

Acordei ainda fraco, mas sem dor de cabeça. Que maravilha. A dor de cabeça pesava quinhentos quilos. Sem ela, sentia leveza. Encontrei Elisa e Avaeté na varanda, tomando mate e apreciando o mar e disse-lhes:

- Miraculosa!

Elisa me convidou para sentar no chão da varanda. O caminho já trilhado foi bom, mas agora era preciso aprofundar. Disse que se surpreendeu com minha resposta ao reiki. Poderíamos naturalmente avançar. Disse que eu estava preparado.

Precisávamos entrar no temascal. Ele só era realizado para grupos, uma ou duas vezes por mês. Mas faria uma exceção para dois novos amigos com energia interior. Era a primeira vez que alguém me dizia que possuía energia interior. Já fui elogiado como possuidor de força e bondade. Mas era a primeira vez que alguém dizia que tinha energia vinda de dentro. O que seria capaz de ser ou fazer com esta energia interior? Não sabia. Não tinha a menor idéia. Elisa descreveu o que potencializaria esta energia, para canalizá-lo como poder autocurador:

“Temascal. O temascal é o recinto e é, também, a atividade. O recinto é uma pequena tenda fechada ou uma caverna. O recinto é purificado com fumaça de copal. Fumaça de incenso de resina da árvore sagrada para o povo nahua. O fumo de copal converte um lugar de poder em um lugar sagrado.

“Você entra na caverna. A temascaleira coloca pedras aquecidas em brasa dentro. Eu sou a temascaleira. Eu colocarei sobre elas uma infusão de plantas medicinais para gerar vapor. Temascal, em dialeto nahualt é temaz, que significa vapor, e calli, que significa casa.

“Eu conduzo o ritual. O seu objetivo é abrir o corpo. Destampá-lo. Para isto, você estará sob o poder dos quatro elementos: a terra onde se apóia; o fogo do calor das pedras; a água de ervas que se eleva sobre as pedras; e o vapor que representa o ar.

“O seu corpo é purificado pelas essências das ervas…

Elisa pronuncia algumas palavras em nahualt. Novamente despojam-se as vozes da mente. Elisa conduz cantos. Elisa induz visualizações e meditação. A noite está iluminada pela lua. Passamos o dia caminhando em direção ao fundo da lagoa. Elisa disse que no

186

Page 187: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

fundo da lagoa, no fundo da trilha da Lagoa da Conceição, haveria um lugar de cura. Lá chegamos ao final da tarde. A tenda já estava preparada. As ervas, a temascaleira as carregava.

Entramos no temascal. É como regressar ao ventre materno. Escuro, quente, seguro, solitário. O ventre da natureza nos recebe para nos curar. E dali sairemos purificados ao renascer.

Ali, você está em contato direto com o poder da natureza. Alguém tocava instrumentos de percussão. Alguém cantava canções emocionantes. É como ser banhado pela mãe terra. As pedras estão ali, em brasa. As infusões evaporam-se delas. Você vive uma sensação de harmonia e paz pelo escuro e pelo silêncio. Você não nota, mas quatro horas podem passar-se.

Sua descarga física e emocional promove uma sensação de liberdade. Sua sabedoria pessoal é liberta, como a fuga de um passarinho da gaiola. Você expressa livremente o que deseja. “Um agradável fluxo de palavras líquidas” vem à sua mente, como se fossem suas. Não são suas, e você se dá conta que o seu poder pessoal não é seu... É de Carlos, é de Peter, é de Daniel, é de Elisa, é de Avaeté. E é, novamente, de Pyá.

Você se pergunta por que há conflito. Por que há falta de amor. Aqui, no fundo da lagoa, você encontra os monstros, seus e dos seus. Você transpira ao calor dos dragões e se evapora até o teto do temascal. E se condensa em experiência de sacrifício, de doação, de impacto psicológico, e é uma experiência de conexão. De novo, e ainda assim surpreendente, uma aventura de conexão com o sagrado.

Enquanto você é vapor, você é um pássaro. É um pássaro que tudo vê, que a tudo assiste. Que vê a loucura da corrida diária. Que vê milhares de seres humanos construindo pirâmides, uns sob o comando de outros, que são comandados por outros, que são comandados por outros, que são comandados, não sabem por quem. Pirâmides sobre pirâmides sobre pirâmides.

Ao mesmo tempo, você é o pássaro que vê a aranha tecer sua teia. Nhandu kya. A teia da aranha. A pequena teia da pequena aranha. E vê a grandeza e o alcance disto. Nhandu kya. Eu mesmo sou capaz de falar Guarani. Eu sou Guarani. Eu sou da espécie de Avaeté. Eu sou da espécie de Jaxy. Eu sou da espécie de todos os

187

Page 188: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Karay. Eu mais que amo a eles. Eu sou eles. Eu não ajudo a eles. Eles não me ajudam. Eles são a mim. E eu sou a eles.

4

A certa altura, saí do temascal. Fui tomado pela necessidade de sair do meu transe e caminhar. Fui até a beira da lagoa. Notei que a água estava completamente parada e como um espelho. Uma brisa soprava apenas mais ao alto, movimentando a copa das árvores sobre o morro. Não pensava em nada, apenas olhava para aquele espelho dourado ouvindo o canto dos pássaros madrugadores.

Caminhei um pouco pela beira e sentei-me sob um salgueiro. Na outra extremidade, via movimento de pessoas e carros, mas seu som não chegava até mim. Não havia sons além dos naturais. Não havia vozes. Não havia roncos. Aspirei o perfume fresco da madrugada. Deixei meus pensamentos correrem soltos. Por estar ali, sentado sob uma árvore diante daquela lagoa, lembrei da cena do filme “O Pequeno Buda”, de Bertolucci. Nela, o Buda encontra-se sentado sob uma árvore diante de um pequeno lago ou poça d’água. Está incólume, meditativo. A cena desvenda uma busca. Buda insere sua mão na água, onde há um reflexo de si mesmo. Apanha sua própria mão, como que para encontrar-se, desvendar-se. Mas quanto mais Buda esforça-se para puxar sua própria mão para fora, mais a mão em reflexo o puxa para dentro do próprio lago. Quando está a ponto de ser tragado para dentro do lago, tem a iluminação de soltar a própria mão, momento em que se desvanece a sua imagem refletida, o lago, a árvore e o cenário.

Para mim, é uma cena significativa. Se sua busca é uma busca apegada, você estará perdido. Mas se você se desapegar dela, o paraíso se desvenda. Um paraíso de liberdade.

Fiquei ali durante vários minutos, meditando sobre aquilo, até que chegou Elisa. Perguntou-me como me sentia. De repente, senti que não possuía mais a maioria dos sintomas que vinha sentindo nos últimos dias. Estava revigorado, fortalecido. Tinha apenas uma sensação de cansaço nas juntas. Elisa disse que isto era maravilhoso e que estava contente com o ocorrido. Disse que gosta muito de realizar o temascal, que trazia muita alegria para ela.

188

Page 189: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Ficamos em silêncio, sentados, um ao lado do outro. Comecei a pensar na forma como você imagina que a iluminação se dá na sua vida. Você fantasia que ela ocorre como um flash que o transforma de todo, num momento único. Mas parecia que comigo não era bem assim. Tudo o que de importante eu vinha aprendendo era como um processo, em que os flashes são momentâneos, rápidos, pequenos, como ultra-sons em uma terapia que vai dissolvendo algo. Você não se ilumina de uma hora para outra. Você aprende aos poucos. Numa longa caminhada.

A teoria do flash único avassalador não é coerente com o seu desenvolvimento como ser humano. Todas as experiências o transformam, o iluminam, se você estiver aberto. E, aos poucos, você cresce. Não de uma só vez. Aos poucos. Como uma pessoa que aprende, como uma criança. Como um pyá.

- Você acha que está pronto para ser batizado? – perguntou Elisa.

- Acho que sim – respondi, olhando diretamente em seus olhos.

- Pois então vou chamar Avaeté.

Avaeté retornou com seu cachimbo aceso. Sentou-se sobre as raízes do salgueiro e baforou fumaça para o alto. A fumaça subia em direção aos ramos da árvore. Então falou:

- Você escolheu sentar sob essa árvore e isso é um sinal. Essa árvore será sua árvore. Ela representa proteção e imortalidade. Assim será você: aquele que protege e que é protegido, e aquele que aprenderá enquanto viver, e não morrerá enquanto houver algo a aprender.

“Descobri seu nome em um sonho, Pyá. Neste momento, eu não estarei dando-lhe oficialmente esse nome, porque nome não se dá, nem se tem. Nome se é. O que precisa é ser descoberto. Por isso, o seu tera kaaguy, o seu nome do mato, Pyá, não lhe foi atribuído. Foi apenas descoberto.

“Seu batismo, que agora ocorre, é apenas o conscientizar-se disto. Conscientizar-se do que você é. Que você é seu nome.”

Avaeté levantou-se. Elisa afastou-se três passos. Acendeu uma vela e começou a cantar baixinho. Avaeté deu três voltas ao redor de um círculo que incluía a mim e ao salgueiro. Fumava muito enquanto

189

Page 190: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

caminhava. Fumou até engasgar-se. Depois escarrou e cuspiu. Passou a cantar juntamente com Elisa aquela melodia lenta.

Em seguida, Avaeté agachou-se a meu lado e massageou minha cabeça e ombros. Fez isto vigorosamente para depois baforar fumaça várias vezes na minha cabeça. Parou diante de mim, novamente de pé, e disse:

- Pyá. Você é Pyá. Coração, menino. Coração de menino.

Elisa então se aproxima da lagoa, pega em suas mãos água e borrifa-a sobre nós. Apenas disse:

- Haevei. Assim seja. Que a água que jogo sobre vós seja como o orvalho que renova a flor.

Avaeté olhou para mim e, ternamente, ordenou:

- Você deve dizer apenas “haevete”. Significa “é bom mesmo para mim”. É seu agradecimento.

E falei, com lágrimas correndo pela minha face por todo amor daquela cerimônia:

- Haevete!

5

Descansamos por entre a mata pela madrugada afora até o meio do dia seguinte. Levantamos todos e nos preparamos para regressar ao Pântano do Sul. No povoado próximo, tomamos um táxi de volta, visualizando a Praia da Armação antes de chegar à casa de Elisa. Descansamos o restante daquele dia, sentados em redes e tomando mate durante a tarde toda. À noite, prontifiquei-me a assar carne numa churrasqueira improvisada, onde comemos e bebemos, celebrando à boa saúde e à felicidade de viver.

Mais tarde, Avaeté avaliou a situação das madeiras do avarandado de Elisa. Disse que precisavam de uma reforma. Olhou também para o mato, que tomava conta das cercanias da casa. Precisava ser limpo. Elisa entendeu e disse a Avaeté que fizéssemos como achássemos adequado. No dia seguinte providenciamos materiais e ferramentas e começamos a fazer a manutenção da sua casa. Primeiro, passamos três dias trabalhando na retirada da madeira podre e na preparação e colocação de novas madeiras. Em

190

Page 191: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

seguida lixamos e envernizamos tudo. Depois partimos de enxada, pá, facão, serrote e foice para cima do mato circundante até deixar o terreno limpo. Isto durou mais dois dias. Dos galhos preparamos pilhas de lenha. A casa ficou com um aspecto muito mais saudável e habitável.

Ao final, celebramos com um jantar no bairro de Ribeirão da Ilha. Fomos amavelmente servidos pelo dono do restaurante, amigo de Elisa, numa mesa ao ar livre, com direito a pôr do sol, ostras cultivadas no local e espumante. Colocamos algumas roupas leves e limpas, em algodão. Todos de branco, numa cerimônia de paz.

Conversamos alegremente sobre os mais diversos assuntos, sobre as histórias de Elisa professora e Elisa xamã, Elisa neta e Elisa avó. Falamos sobre infâncias e sobre sonhos. Falamos sobre os planos de partida e os próximos passos. Na manhã seguinte, voltaríamos à estrada. Prometemos encontrar Jaxy dentro de uma semana em Itajapukai. Elisa disse que nos levaria até a estrada 101, no continente, de onde poderíamos seguir como bem desejássemos nossa viagem.

Partimos para o norte na manhã seguinte, bem cedo. Despedimo-nos de Elisa, agradecendo todo seu carinho. Olhando nos olhos de Elisa, lembramos o carinho que recebemos de Karay Katu, Karay Porã, Madre Córdoba, Pedro Ruca, Miguelina e todos os nativos e brancos amigos que encontramos pelo caminho. Todos unidos por uma teia única: a teia do amor.

Conseguimos uma carona de uma caminhonete para seguir viagem. Na estrada, víamos o movimento intenso de carros, ônibus e caminhões. Avistamos também algumas praias. E muitos e muitos arranha-céus pela costa. O motorista aproveitou que olhávamos com certo atordoamento para aqueles aglomerados urbanos e lascou:

- Vivemos em caixas, não é amigo?

- Perdão? – disse eu, retornando do meu transe.

- Isolados por muros. Não concorda?

- Prossiga... – falei, de maneira que estimulasse seu raciocínio.

- Nossa casa, nosso transporte, nosso trabalho. Saímos diariamente das caixas onde vivemos para ser transportados por outras caixas que nos levam à caixa onde trabalhamos.

191

Page 192: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Ah, compreendo. Acho que concordo. Vivemos um tanto isolados, não é mesmo?

- Vocês índios é que são felizes. Vivem lá, direto, em contato com a natureza... – concluiu nosso novo amigo, sem tirar os olhos da estrada. Agradeci mentalmente por referir-se a “índios” no plural.

Olhei para Avaeté e ele piscou o olho. Entendi sua piscadela como desejando assumir um papo mais “cabeça” com o motorista. Iria me livrar dessa, pois eu estava convalescendo. Então Avaeté deu “corda”:

- Você quer dizer fisicamente, não é, amigo? Em caixas físicas...

- Sim, caixas com muros difíceis de transpor – adicionou.

- Mas, socialmente, vocês não vivem em caixas. Vivem em pirâmides. Correto?

- Puxa, você tem toda razão. Diga-me: qual o seu nome?

“Ah, Avaeté. Muito prazer. Sou Luís Augusto. Trabalho na empresa dona deste veículo. Estou levando alguns papéis e amostras até a matriz. Sabe, sou gerente de operações. Tenho tido a oportunidade de estudar. Estas coisas, especialização em gestão, MBA, você sabe...

“Pois então, Avaeté. Você disse que vivemos em pirâmides... É o que eu vivo falando para minha mulher! Sabe como é... Eu gosto de ler filosofia. Mas ela não é muito ‘chegada’, você entende, não é mesmo?”

Avaeté novamente olhou para mim e eu sorri. O gerente continuou:

- Por exemplo, as nossas famílias. Elas são patriarcais. Quem manda é o pai. Quem provê tudo é o pai. Pai, não no sentido machista, mas no sentido do chefe da família, seja homem ou mulher. Ó, viu? Até o nome: chefe de família.

“Outro exemplo: as empresas, organizações em geral, em que trabalhamos e com que nos relacionamos. São pirâmides. Hierarquias. Chefes que mandam. Proprietários sobre chefes sobre chefes sobre chefes sobre trabalhadores.

“E mais. O clube a que pertencemos... é uma pequena pirâmide. O partido com que simpatizamos... É uma pirâmide. O governo... É uma enorme pirâmide. A igreja que freqüentamos... É uma tremenda

192

Page 193: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

pirâmide. Em qualquer uma delas, crescer significa subir na hierarquia. Bacana é quem sobe na pirâmide. Mais bacana ainda é quem tem sua própria pirâmide. Sabem, amigos, acho que não devíamos ser enterrados em tumbas. Deveríamos ser enterrados em sarcófagos...” – e regozijou-se intimamente pelo pensamento com um meio sorriso.

Só para provocar um pouco mais, perguntei:

- O que você tem lido ultimamente, amigo?

- Ah, gosto de Nietzsche, Habermas, Castells. Gosto também de física quântica. Mas ultimamente tenho me interessado pelo filósofo da complexidade: Morin. Conhece?

Preferi negar. A corda era para ele se enforcar. Não era para ser um enforcamento coletivo. Desta vez, eu “tô fora”. De qualquer maneira, Avaeté cutucou:

- O que o amigo Morin anda falando ao seu ouvido?

- Que o mundo é complexo. Criamos complexidade social fabricando redes e pirâmides. Estas coisas são muito complexas e nosso pensamento linear não é mais capaz de alcançar sua apreensão cognitiva de todo. Criamos estruturas complicadas que nos afastam da experiência direta.

“Mantemos um sistema muito complexo de vida e de conhecimento que nos afastam da experiência da vida. Estes sistemas complexos já não servem mais às pessoas – eles servem-se das pessoas, ainda que formado por pessoas, para servir a si próprios. Os ‘gigantes’, você entende?”

Comecei a ficar preocupado com o rumo da conversa. Primeiro, porque o amigo aí era bem capaz de arrebanhar alguns malucos e formar alguma seita. “Filosofia em certas mãos, às vezes, é perigoso” – pensei com ironia. Depois, o cara estava ficando animado demais. Estava começando aquele desfile de citações e uma prosa toda remendada e mal amarrada, como é comum na academia. Não importava. Avaeté estava se divertindo:

- Prossiga amigo, você está indo bem!

- Você é um índio bem informado! – surpreendeu-se o motorista.

- Você ainda não viu nada... – brincou Avaeté, com um tom cínico.

193

Page 194: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Sabe como é, amigo... Se você eliminasse toda essa selva de complexidade, teria contato com a experiência direta.

“Ãhn?” – emiti um som com a cara pasma. De repente, vi-me na pele daquele homem quando repetia expressões e frases que pareciam minhas. Por alguns momentos, tive a impressão de, um dia, já ter conversado com aquele sujeito. Ele prosseguiu sem dar atenção à minha expressão:

- Na experiência direta, amigo, você reconhece idéias muito mais verdadeiras da essência de tudo. Você está mais cara a cara com a verdade. Ninguém lhe diz. Você está lá. Contemplando o todo, na infinitude do tempo e do espaço...

“Neste lugar você estará bem mais próximo da essência das coisas. Muito mais próximo do que analisando, separando e focalizando nos detalhes do aqui e agora. Ao analisar, separar e categorizar, você cria um sistema hierárquico e complexo de conhecimento que o afasta da essência. Hierarquias, de uma maneira ou outra, sempre existirão... A sabedoria está em torná-las mais “flat”. Entende?”

Aquele reflexo de mim mesmo, falando como se fosse um pregador, me assustou. Ou me enjoou. Comecei a ver como você pode se tornar um chato, às vezes. Olhei para Avaeté e ele pareceu divertir-se ainda mais com minha repulsa. Seu danado. Preparou a situação para me dar uma lição. Preparou uma cama-de-gato. Admito, uma boa lição. Acabei dando uma risada.

- Rindo de quê, amigo? – perguntou o motorista.

- Ãhn? Nada, não. Desculpe. Estamos muito próximos do nosso destino. Isto me alegra.

- Hei, amigos, é verdade! Vocês estão muito próximos do seu destino. Daqui a dez quilômetros deverão saltar. Que pena! Estava gostando da sua companhia...

Saltamos na estrada e agradecemos a carona. Desejamos boa viagem e boas leituras. Quando se distanciou, dei um tapa de leve no ombro de Avaeté, que segurava a boca para não desatar a gargalhar. Não foi preciso palavra. Tudo estava muito claro.

Logo conseguimos outra carona rumo à costa. Nossa primeira parada seria nas comunidades Guarani de Ilha da Cotinha e de Guaraqueçaba. Fazendo paradas por aqui e por ali, seguindo o rumo norte pela costa do Atlântico, encontramos outras aldeias, como as

194

Page 195: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

da Ilha do Cardoso, do Rio Branco, de Sete Barras, do Bananal e de Aguapeí.

Avaeté recomendou que testemunhássemos o sofrimento, mas que não sofrêssemos a sua dor. Assim foi feito. Vimos a pobreza e o abandono. Às vezes, até condições de completa insalubridade. Mas vimos também a beleza, a sabedoria e a humanidade.

Estava me apaixonando por esta vida na estrada. Nela, você enxerga através de inúmeras frestas o fluxo da civilização, os acontecimentos do seu tempo, os rostos de pessoas das mais variadas espécies. Estava me apaixonando em ser um “largador”, um tipo suave de beat.

Chegamos, por fim, próximo à aldeia de Itajapukai, partindo de Praia Grande, pela estrada de chão batido, até chegar às margens do Rio Aguapeí.

Ao nos aproximarmos da aldeia, a cerca de cem metros dela, um garoto veio nos receber. Seria um morador? Não. Era Jaxy Pyau. A lua nova com um sorriso enorme foi quem veio nos receber.

195

Page 196: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Dez

196

Page 197: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Já fazia dois dias que Jaxy estava à nossa espera. Quando nos enxergou, dava pulos de alegria:

- Avaeté! Pyá! Que alegria! Vejam, estou aqui! Vamos viajar juntos!

Avaeté estava curioso para saber como fez para conseguir a proeza.

- Ah, Avaeté! Eu parti de Tekoha Guatá no dia seguinte com uma carona. Falei para Karay Porã que desejava muito aprender com você e Pyá sobre o mundo. Karay foi muito bacana! Ele disse que aprenderia mais sobre o teko Guarani com você do que de qualquer outro modo. Então me desejou boa sorte, deu-me um abraço e mandou que minha mãe preparasse o que eu necessitasse numa bolsa. Bem, aqui estou – disse, abraçando Avaeté e a mim com força e ternura.

- Como estão todos aqui em Itajapukai? – perguntou Avaeté antes empreender a entrada na aldeia.

- Aqui estão todos bem, Avaeté. Mas creio que há perigos nas aldeias mais ao norte. Não sei bem o que está acontecendo, mas há preocupação entre os líderes.

Avaeté tomou a frente para adentrarmos a aldeia. Como sempre, as primeiras imagens são de crianças brincando e correndo. Jaxy foi buscar o líder de Itajapukai. Chamava-se Karay Mirim, era o mais baixo de todos os líderes que encontramos, mas era muito firme no andar e no falar.

- Avaeté! O grande guerreiro das trilhas! – saudou Karay Mirim.

- Karay Mirim! Que alegria! – respondeu Avaeté à saudação. – Estes são meus novos companheiros de viagem: Pyá e Jaxy. Ah, este você já conhece...

- Amigos! Que prazer, honra e inveja! Eu fui companheiro de viagem desse homem – apontou Karay Mirim para Avaeté. – Aprendi muito com ele. Assim vocês também devem estar aprendendo – concluiu.

Ao mesmo tempo, eu e Jaxy respondemos:

197

Page 198: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Claro!

Convidou-nos a entrar na sua casa. Ofereceu-nos biscoitos enquanto Avaeté preparou o mate. Conversamos sobre a aldeia e as novidades. Por fim, Avaeté quis saber das notícias que Jaxy havia antecipado. Karay esclareceu:

- Avaeté, os conflitos na beira da Amazônia e no sul da Bahia e norte do Espírito Santo estão irrompendo com força. Há anos se fala sobre uma bomba social. Ela agora está explodindo. A situação é mais crítica no sul da Bahia.

- Que comunidades estão sendo afetadas, Karay?

- Pataxó, Tupinambá, Tupiniquim, Guarani, além de quilombolas.

- O que está acontecendo por lá, Karay Mirim? – perguntei eu.

- Venham – disse Karay. – Quero que conversem com cacique Jozilda, dos Tupinambá.

Levou-nos até outra casa, onde Jozilda estava hospedada. Cacique Jozilda é uma mulher de corpo forte, pele muito morena e olhar terno. Veio trazer as notícias do norte e buscar ajuda. Karay Mirim apresentou-nos e estimulou para que Jozilda contasse o que está ocorrendo.

- O povo está em um dilema, amigos. Não sabemos se enfrentamos de frente o conflito de terras que ocorre na nossa comunidade, assim como com muitos dos povos vizinhos, se apelamos para o sistema legal ou se pereceremos. Nossa força está na rede de amizade entre os povos de toda esta região, daqui até o norte baiano. Estamos conversando e trocando idéias com nossos irmãos. Conversamos sobre nossas dores. Sabemos onde está nossa dor. Como somente nós sabemos, somente nós sabemos curar. Não serão quaisquer intermediários que poderão falar por nós.

Jozilda referia-se aos homens ligados à lei, a instituições diversas e a pessoas que pretensamente falam em nome dos povos nativos. Continuou num tom firme:

- Quem provoca o conflito é o branco, pois sabe que na base do confronto ele vence. Ele tem as armas. Ele tem o poder. Ele tem o dinheiro. Ele tem o sistema a seu lado. Se o sistema não está a seu lado, sabe como corrompê-lo. A história tem sido assim. Os brancos entram em empreitadas e peleias que fazem do índio um joguete. Até

198

Page 199: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

nos usam, muitas vezes. Depois, pé na bunda. É como aconteceu com os Terena e os Guarani, na Guerra do Paraguai. Foram aliciados para a guerra em cada um dos lados do confronto. Tiveram seus territórios usurpados pelo Estado vencedor. Troncos e aldeias foram dissolvidos. Depois, as terras foram entregues pelo Estado a terceiros. Fazendas foram criadas. Índios que combateram ficaram sem terra, sem mata, e acabaram escravizados ou transformados em trabalhadores volantes nos próprios territórios, que passaram a ser fazendas. Os que não se escravizaram foram reduzidos às pressas em reservas muito menores. Perderam-se sementes ancestrais de plantações. Perderam-se valores. Começaram os conflitos entre índios e fazendeiros pelas demarcações. E as disputas judiciais foram freqüentemente desfavoráveis aos índios. Como disse certa vez um líder Terena: “recebemos do governo imperial apenas três botinas por lutarmos ao lado do exército: “duas no pé e uma na bunda.”

- Conte a eles, Jozilda: quem está no centro dos conflitos hoje? – estimulou Karay Mirim para que a líder contasse o estado atual das coisas.

- As coisas estão feias perto das fazendas, das barragens, das estradas e das cidades...

Virei-me para Avaeté e propus uma generalização destas áreas:

- Senhores: são regiões onde ocorre a expansão da fronteira agrícola, os investimentos energéticos e de infra-estrutura e as áreas de expansão urbana.

- Em resumo: onde o branco diz que é “para onde avança o desenvolvimento” é que há estes conflitos com os povos nativos – arrematou Karay Mirim. – Quem está envolvido? – questionou.

- Ah, não são poucos. Vêm de todos os lados. Governos, fazendeiros, grileiros, empresas, mineradoras, igrejas, gente que polui os rios, moradores de cidades, empreendedores turísticos, traficantes, garimpeiros e a polícia, a serviço destes. O que tem ocorrido é invasão e apossamento indevido de terras, obras, aniquilação da mata, mudança nos rios, poluição, violência, epidemias, abusos de mão-de-obra. Fazem alguns dos nossos quase de escravos.

- Há alguém a nosso favor, Jozilda?

199

Page 200: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Temos tido ajuda de organizações da sociedade civil, entidades ligadas à igreja, alguns movimentos sociais, do próprio poder público em algumas circunstâncias e da bravura de alguns líderes comunitários. Mas a maior força é dos povos irmãos. Alguns povos, como os Tumbalalá, têm vindo ao nosso encontro para ajudar em algumas questões...

- Este é o ponto que gostaria de informar-lhe, Avaeté – esclareceu Karay. – Neste momento está se formando um movimento para fortalecer a região dos conflitos. Alguns povos do centro e do norte do continente estão se dirigindo para a região da Amazônia para uma caminhada pacífica de resistência à sua destruição. Nós, aqui do sul e sudeste, precisamos reforçar os nossos irmãos do sul baiano. A idéia de uma caminhada pacífica pelos irmãos índios está ganhando força. Creio que dentro de poucas semanas estaremos na estrada.

- Puxa, Karay, notei uma movimentação e uma preocupação nas aldeias do sul até aqui, mas não imaginei que isso estivesse sendo preparado – disse Avaeté, com certa surpresa. – Como será a marcha?

- As aldeias mandarão representantes. Será a “Marcha dos Guerreiros sem Armas”. Ainda não precisamos a data, mas será em breve. A marcha visa levar força aos nossos irmãos e trazer alguma atenção para a necessidade de respeito às culturas e formas de vida nativas – concluiu Karay.

Passamos mais algum tempo conversando com Karay Mirim e Jozilda, sob o olhar atento de Jaxy. A situação não era nada boa e, apesar do caráter pacífico da marcha, sentia-se um tom de expectativa com o seu desenrolar.

Mais tarde ficamos a sós, eu, Avaeté e Jaxy. Discutimos como aqueles acontecimentos poderiam afetar nossa viagem.

- Avaeté, acho que é preciso que estejamos engajados neste movimento. Podemos ajudar de alguma maneira? – indaguei eu.

- Sim, é possível. Vamos olhar o mapa. Quero contar-lhes nossos próximos passos de viagem.

Avaeté apontou nossa posição atual. De onde estávamos, iríamos para o norte, passando pelas aldeias do Rio Silveira, Boa Vista, Nimuendaju, Itariri, Parati, Araponga e Sapukai, esta última em

200

Page 201: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Angra dos Reis. Avaeté disse que levaríamos as notícias sobre a marcha. Depois de Angra, partiríamos na direção de Araxá.

- Araxá?! – exclamei.

- Sim, meu caro. Agora que você é um Guarani, voltará a Araxá para se fortalecer ainda mais e dar um passo importante na sua viagem pessoal. Jaxy sentirá a força da Serra da Canastra. E quanto a mim, preciso renovar-me no local onde nasci.

Fiquei encantado e ansioso com a idéia de retornarmos a Araxá. Foi lá que conheci Avaeté. Lá eu tive minhas primeiras experiências místicas e senti o poder do lugar. Foi neste ponto que se iniciou minha transformação.

- E depois? – questionei.

- Lá seremos iluminados sobre nossos próximos passos e sobre o que fazer quanto à marcha.

2

Na aldeia era noite de realização do ritual do avati kyry, ou o batismo do milho novo. O milho é uma planta sagrada para muitos povos americanos. Quem o conduziria era Karay Mirim. Iniciou-se no momento do pôr do sol e só terminaria no dia seguinte. Karay cantava um longo canto repetido pela comunidade. Alguns músicos tocavam mbaraka e takuapu. Pelo amanhecer, assim que findasse o canto comprido, a colheita sobre o altar seria batizada. Depois do batismo, Karay esclareceu que o amor pelas plantas é o que faz o espírito delas entrar naqueles que as utilizam. “O milho é o alimento do corpo. O amor, do espírito” – e Karay deu por encerrada a cerimônia.

Partimos no dia seguinte. Reabastecemo-nos de alguns suprimentos e retornamos à praia, de onde seguiríamos até as próximas aldeias. Às vezes pela praia, às vezes pelas estradas e trilhas em meio à Mata Atlântica. Em uma semana deveríamos percorrer as aldeias até Angra dos Reis. De lá, tomaríamos o rumo da Serra da Canastra.

Encontramos as mais diversas reações nas aldeias. Algumas delas estavam enfraquecidas, empobrecidas. Não tinham força para juntar-se à marcha. Outras demonstravam compaixão e vigor para

201

Page 202: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

engrossar o movimento. Às vezes ouvíamos o lamento, às vezes inflamados discursos em apoio. Um líder disse certa feita:

- Nossa terra foi recortada inúmeras vezes por fronteiras e cercas. Houve guerras pela posse de terras e expulsaram-nos. Por isso nosso povo vive dividido. Mas, para nós, não pode haver fronteiras. Precisamos viver e comungar com nossos irmãos de sangue, aqui e acolá. Precisamos continuar a andar livres, como sempre o fizemos no passado. Mas temos sido impedidos de viver deste modo. Ainda assim, precisamos continuar lutando por nosso jeito de viver e pelo fim de todo tipo de cerca ou muro que nos impede de vivermos livres.

Outro líder descreveu:

- Continuamos vivendo e lutando pela mata, que é o fundamento de toda vida e de toda cultura. Nascemos na mata e fomos por ela criados. Por isso ela está ao nosso lado. Ama-nos e nos alimenta. Temos certeza que a mata e os animais e toda natureza estarão conosco nesta marcha. Temos o compromisso de continuarmos lutando pela natureza. Por isso, nos unimos a todos os que trabalham por um mundo mais justo e humano, para que haja diversidade e respeito e para que se erga esta grande morada chamada “terra sem males”.

É interessante que, apesar dos discursos conclamando uma marcha, uma luta, a idéia presente não era de confronto. Nos olhos e nas ações da maioria dos líderes que encontramos havia mansidão, firmeza e sentido de missão. Como nos disse um Karay: “Vamos para a cidade para ajudar a pacificar os brancos”.

Passamos a semana viajando entre aldeias e lugares majestosos. O litoral e a mata na região são lindos, paradisíacos. E vivíamos os sentimentos contraditórios de estar neste lugar majestoso e, ao mesmo tempo, viver a aflição de conflitos eminentes.

- A poesia pode ser sua mestra nos momentos de incerteza – recomendou Avaeté. – Você vive como se desejasse que o conflito não existisse. O fluir do rio da vida é cheio de forças opostas. Todo poeta sabe disso e expressa isso em sua poesia.

- Mas é difícil conviver com o sofrimento, Avaeté. Seu sofrimento e dos outros...

202

Page 203: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Sofrimento é como dor. Se não existisse, você não saberia que está doente. Sofrimentos são sinais da alma. Veja a água que desce a cachoeira. Ela “não pergunta se pode passar”, como diz um dos poetas desta terra. Quem estiver no caminho da água, perdido, inconsciente do seu fluir, sofrerá e morrerá.

- Você acredita que o sofrimento nativo é natural, Avaeté? Que ele teria que acontecer de qualquer forma? Uma conseqüência da evolução? Da civilização?

- A vida tem seu fluir, Pyá. Você tenta julgar se algo é certo ou errado, bom ou mau, natural ou não-natural. Isto não é produtivo. Pense desta maneira: o mundo humano está seguindo o fluxo de um grande rio. Era um rio dinâmico e sereno e passou a ser muito veloz e turbulento. Nesta turbulência, muitos nativos pereceram. Hoje, nosso povo precisa reencontrar seu lugar em relação a este grande fluir.

- Mas e as crenças sobre encontrar a terra sem males? É preciso desistir dessa busca?

- Você precisa compreender que, mais importante que o porto de chegada, o que vale é a viagem, Pyá. Yvy maraney é a busca constante. Você não está atrás dos fins. Os fins é que são os meios. Entende? Por isso, yvy maraney não é um lugar fixo. É algo dinâmico. Que precisa, justamente hoje, ser compreendida e redefinida no contexto da vida humana e de todos os povos que vivem sobre esta terra. Nossa cultura, qualquer cultura, é um eterno fluir, um eterno destilar. Maantykyra: maã é “coisa”, tyky é “que destila, escorre”...

Viver uma vida “mantiqueira”. Era o que Avaeté recomendava. Como aquela serra. Depois de deixarmos a aldeia de Sapukai, seguimos para noroeste, com destino a Serra da Canastra. Para chegar a ela, passaríamos pelo Parque Itatiaia, na Serra da Mantiqueira. Recebeu este nome pelas cascatas e córregos que vêm das montanhas. No caso, “montanhas que choram”. O eterno fluir.

Enquanto caminhávamos pelas trilhas de mata e montanhas do parque, Avaeté mantinha um estado animado e alegre. Conversava conosco, ensinava detalhes sobre as plantas e os animais da região. E também conversava com os próprios animais e plantas.

“Alô, urubu-rei!”

“Oh, você, sempre-viva, que majestosa!”

“Olá, macaco-prego, como vai você?”

203

Page 204: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

“Ipês-amarelos! Que prazer em vê-los,...”

Avaeté tem a incrível capacidade de estar presente. Sabe que há uma preocupação. Que há necessidade de juntar-se à marcha e do que isto pode representar. Mas, neste exato momento, está com sua mente ali, muito consciente daquelas belezas. Este tipo de aprendizado você só tem vivenciando. É difícil alguém lhe dizer: “Não viva do passado!” “Esqueça as preocupações.” “Viva o presente!” Uma coisa é falar. Outra é testemunhar. E viver. E Avaeté é um precioso amigo, justamente por oportunizar-nos viver isto. Um verdadeiro amigo. Assim como Jaxy.

Os amigos andaram juntos por quilômetros. Passaram por pés de serra, fazendas, rios e riachos, cascatas, pequenas cidades, florestas de serrado, campos, vilarejos, gente jogando futebol, gente tomando cerveja nos botecos, criançada indo e voltando do colégio, gente construindo casa, gente sentada na praça, plantações, estradas asfaltadas e de terra batida, pores do sol, lagoas, açudes, cavalos, vacas e ovelhas, carroças, carros e caminhonetes, motoqueiros, viajantes. Viajaram em carona de carro, caminhão, caminhonete, no lombo de cavalos, a pé, de todo jeito. Até que, finalmente, avistaram a Serra da Canastra.

204

Page 205: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Onze

205

Page 206: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

É uma serra que parece uma enorme chapada. Até avistá-la, percorremos cerca de uma hora desde o camping, situado a oeste de São Roque de Minas. Pelo caminho, passamos por cascatas de vários tamanhos. A estrada é de rípio e chão batido. O céu estava de um azul luminoso e havia algumas nuvens bastante brancas, em razoável contraste com o céu. O ar, muito limpo. Mais alguns quilômetros adiante e estávamos diante da nascente do Rio São Francisco. O “Velho Chico”. Banhamo-nos aqui, onde o velho ainda é criança, e seguimos adiante, passando por inúmeras escarpas, penhascos e paredões.

Caminhar pelos campos desta serra é uma experiência majestosa. Eles estão amarelados em certas partes e muito verdejantes em outras. Avaeté por vezes abria os braços, como a abraçar aquela linda paisagem. Era como se abrisse os poros para deixar aquilo tudo adentrar-lhe. Naquele estado de plena presença, mirou um ponto atrás de algumas pedras, levantou o dedo para chamar a atenção e cochichou:

- Vocês viram?

- O quê, Avaeté? – perguntei sobressaltado.

- Um animal. Atrás daquelas pedras. Está nos acompanhando...

Fiquei um pouco assustado, imaginando algo feroz, talvez uma onça. Jaxy não parecia amedrontado. Perguntou a Avaeté:

- O que você acha que é?

- Uma cauda larga... Certamente é um tamanduá. Isto é muito bom. Um bom sinal.

- Sinal de quê? – perguntei.

- De proximidade de um lugar de poder. Vamos! Temos que segui-lo.

E pôs-se a caminhar com certa rapidez na direção em que apontava. Dizia algumas palavras em voz baixa, como a chamar o animal e pedir-lhe algo. Não entendia o que dizia, mas repetia as palavras “kaguare guaxu” vez por outra. Perguntei a Jaxy o que significavam. Ele disse:

206

Page 207: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Tamanduá-bandeira. O mais magistral dos tamanduás. Um animal de poder. Avaeté está pedindo para mostrar o lugar.

Seguimos o pretenso animal por cerca de dois quilômetros e meio até chegarmos à beirada de um penhasco muito alto, com uma vista maravilhosa. Mirávamos a direção norte, mas tínhamos à disposição um visual de praticamente duzentos e setenta graus, pelo formato do penhasco. Abaixo havia matas, montes, vales e rios. Respirei fundo e entreguei-me à força daquilo tudo. Avaeté limitou-se apenas a dizer, sorrindo:

- Aqui faremos acampamento. Será nossa morada nos próximos dias.

2

Preparamos o acampamento em menos de uma hora. Sob a sombra de algumas pedras e poucas árvores típicas de cerrado, arrumamos tudo o que seria necessário. Não demorou a aproximar-se o fim da tarde e, com ele, o ocaso. Sentei-me na beira do penhasco para apreciar o espetáculo. Cores púrpuras e alaranjadas iam-se formando aos poucos. As esparsas nuvens formariam um quadro ainda mais rico.

Olhei à volta e notei o quanto uma serra ou chapada são produtoras de vida. A Serra da Canastra divide o terreno em duas extensões continentais, para sudoeste e para nordeste. Eu olhava nesta direção, para onde o Velho Chico levaria vida. A serra é como um ninho permanente de onde surge o sopro vital.

Avaeté e, em seguida, Jaxy sentaram-se à beira do rochedo. Jaxy subiu pulando e fazendo malabarismos até chegar a uma pedra mais alta, onde se sentou, orgulhoso de suas proezas. Pelo caminho que fizemos, esse era sempre o seu comportamento: pulando, correndo, saindo e voltando à trilha, especulando e mapeando o terreno na nossa frente. O garoto explodia em vitalidade.

Olhei para Avaeté e depois para o mundo sem fim à nossa frente. Então comecei a lembrar de quando estivemos aqui. De quando conheci Avaeté. Então eu disse:

207

Page 208: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Retornando a este lugar, Avaeté, eu estou fechando um ciclo. Muito do que sou agora, neste exato momento, começou aqui, anos atrás.

- Eu também, Pyá. Estou voltando aqui para renovar meu caminho. Estou aqui para que Nhanderu Tenonde, nosso Pai Primordial, me dê sinais dos próximos passos.

Rememorei as passagens daquele momento. Lembrei-me quase literalmente das palavras de Avaeté:

“Este é o lugar onde meu povo, desde os mais imemoriais tempos, reúne-se para preparar-se para os próximos sóis e luas. A este local chamamos de ara’exá’ua. Vocês chamariam de Araxá. Para vocês é apenas o local mais alto de uma região, um terreno plano e elevado. Um planalto ou chapada. Mas é muito mais que isto...

“O termo ‘ara’, para meu povo, significa o tempo, o dia, a luz, o sol, mas também o espaço, a terra, o mundo, o céu, o firmamento, o horizonte. Veja: não é apenas o tempo e o espaço, na sua visão. É muito mais. Não há uma palavra na sua língua para significar isso. É como tempo-que-passa-mundo-que-muda-nós-que-participamos.

Lembrei-me também das minhas palavras de encantamento com aquela visão: “É verdade, Avaeté. Não temos nada que tenha essa idéia assim de todo.” Avaeté continuou:

“Já ‘xá’, que vem de ‘exá’, significa ver, vista, observar, considerar, ponderar. Araxá é o que fazemos no nosso dia-a-dia, de observar o mundo, o tudo, e agir de acordo. Araxá também é o lugar sagrado de onde avistamos o mundo. Em Araxá estamos mais purificados e preparados para ver ‘o tudo’.

“Em Araxá vemos a primeira e a última luz do dia. Vemos a primeira e a última estrela no firmamento. Aqui percebemos como tudo está interligado e como nós, povo Araxá, estamos ligados a terra, à natureza, ao tempo. Falo nestes termos porque são os termos que você entenderá. Mas não nos vemos como separados e interligados. Nós somos a terra. A terra é os Araxá. Uma só coisa.”

- Avaeté, aquelas lições mudaram minha forma de ver o mundo e minha vida. E, até hoje, a palavra mais impressionante em qualquer língua que já conheci é “araxá”.

- Sim, eu disse que, na sua visão, isto era como tempo-que-passa-mundo-que-muda-nós-que-participamos...

208

Page 209: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Eu nunca havia visto tamanha síntese, tamanha visão.

- Há muita sabedoria em muitas línguas, Pyá. Nem só a Guarani ou as suas línguas indo-européias. Em quase todas as tradições deste planeta você poderá notar os sinais da sabedoria e do espírito do povo através da sua língua. Lembra o que eu lhe falei sobre a palavra Guarani nhe’em? A mesma para significar “linguagem” e “espírito”? Pois é da linguagem que vem muito da essência de um povo.

“Por isso, Pyá, se você quer experienciar novas formas de ver e vivenciar o mundo, uma maneira é experimentar novas linguagens. Você tem vivido nos últimos meses a vida Guarani, a língua Guarani. Esteja aberto para inúmeras outras. Ou invente uma!”

- Como assim, “invente uma”? – indaguei, incrédulo da possibilidade.

- Invente uma língua! Invente palavras e gramáticas para experimentar novos mundos! Seus mais recentes filósofos estão começando a ficar cientes disso. “Você não fala sobre aquilo que vê. Você só vê aquilo sobre o qual pode falar.”

- Impressionante... Dê-me exemplos.

- Ara é o exemplo. Para você, tempo é tempo, espaço é espaço. São coisas distintas. Mas ara é os dois. Mas não uma simples junção dos dois. Ara é uma coisa só, o desdobrar eterno. Você não tem esta noção porque não tem palavras para isto. O mundo sendo tecido como se tece um cesto... E é a sua mão que o tece!

- Quando você une espaço e tempo, você dá uma noção de movimento a tudo.

- Exatamente, Pyá. E quando você dá movimento, os “objetos” deixam de ser “objetos”. As coisas tornam-se “líquidas”, fluídas, eternas, circulares, e você, partícipe disso.

- Mas alguém já fez experiências com isso, línguas que promovessem essa visão?

- Há um dos seus que criou uma língua muito divertida que arranha esta noção. Ele chamava-se Bohm. David Bohm. Criou uma modificação lingüística muito lúdica chamada “reomodo”. Vá saber por que optou por um nome tão excêntrico para seu brinquedinho... Rá, rá, rá, rá, rá! – gargalhou Avaeté, como era do seu estilo.

209

Page 210: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- E como se brinca com a linguagem? Como poderíamos pensar uma linguagem mais fluída?

- Bem, o começo de tudo é conscientizar-se de que linguagem e pensamento são coisas únicas. Processos entretecidos. De um modo muito essencial, o humano é derivado disto: alma-que-flui-pela-mente-que-sopra-pela-linguagem-que-veicula. Em Guarani, isto seria nhe’em...

- E em reomodo?

- Não sei... Mas experimentemos. O reomodo trata de criar a fluidez do pensamento. Objetos não existem.

- Como assim? Sem objetos? Isto é bastante radical.

- Usemos esta idéia radical para cunhar uma língua experimental. Vamos chamá-la de reonhe’em. Nesta linguagem inventada, não haverá objetos ou sujeitos separados. Somente verbos. Os objetos e sujeitos ficarão, por assim dizer, de alguma forma fluidificados, generativos, freqüentativos. Eles transformam-se num verbo no gerúndio.

- Estou compreendendo, Avaeté. O gerúndio provoca uma sensação de algo que ocorre, sem início ou fim determinado. Um processo contínuo. Agora, dê-me um exemplo.

- Ok. Você vê aquela árvore lá embaixo? Aquela maior?

- Sim. Não sei seu nome, mas vejo que é uma das maiores espécies do vale.

- É o jatobá. Possui tronco, folhas e frutos duros. Por isso, a chamamos de yvyra hi'a hatã'i va'e: “árvore com fruta dura”. O que você conhece do jatobá?

Quem respondeu do alto, de imediato, foi Jaxy:

- O jatobá é uma árvore que vive na Mata Atlântica e no cerrado. Na mata, ele é enorme. Pode ter a altura de oito a doze homens, uns sobre os ombros dos outros. Aqui no cerrado, ele é menor e tem a casca mais grossa.

- Isso mesmo, Jaxy – confirmou Avaeté. – Além disso, posso lhe dar inúmeras outras informações. A madeira é forte e por isso é usada para fazer casas, móveis e ferramentas. Seus frutos são comestíveis. Os animais o usam como vivenda e alimento. Da casca

210

Page 211: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

se faz um chá que é fortificante e atua contra várias doenças. E assim por diante. Só que, para que você pudesse ficar satisfeito, teria que lhe fornecer um sem número de detalhes, se ele é assim ou assado, o porquê de ter ficado assim ou assado, de onde veio, para onde vai, etc., etc., etc. Essa é a sua linguagem dos detalhes e dos objetos. Já em reonhe’em...

- Em reonhe’em o jatobá seria?... – estimulei para que seguisse.

- “Jatobando”!

- Uau! – exclamou Jaxy. – Que palavra!

- “Jatobando” é a compressão mais admirável que poderia haver para descrever aquela árvore. “Jatobando” sintetiza tudo o que foi, é e será aquele jatobá, lá embaixo. “Jatobando” são todas as conexões temporais que fizeram aquele específico jatobá ser o que ele é. A água e a terra que o nutriu. O sol que o energizou. A semente que o gerou. O jatobá-mãe que gerou sua semente. O animal que trouxe a semente para cá. As condições climáticas que o fizeram adaptados ao cerrado. Todos os jatobás que morreram neste processo para que este mesmo vivesse. Assim, assim, assim, desde um passado imemorial.

“‘Jatobando’ é também todos os seus tentáculos conectivos com o futuro. São seus frutos vindouros. Suas sementes. Aqueles animais que dele farão morada ou alimento. O terreno sobre o qual vive, viverá e manterá imune à erosão. A sua sombra. A proteção a todas as plantas que sob ele viverão. As mutações genéticas que sofrerá. Os novos seres vivos que dele evoluirão. As idéias filosóficas que, ao admirá-lo, surgirão. Os seres humanos que o celebrarão e o sacralizarão. “Jatobando” é tudo isto e muito mais, e é a nossa participação no processo de estar “jatobando”. Compreende, Pyá?

- É uma idéia muito maluca, Avaeté. Isso cria uma noção muito diferente de realidade...

- Em Guarani, temos uma noção deste dinamismo através da palavra yvyrapuera. Yvyra é árvore. Mas yvy é “terra” e -ra é “o que será”, o futuro. Então, literalmente, yvyra é “o que será terra”. “Ao pó voltarás...” Lembra?

Fiz uma interjeição positiva e aguardei atento para que continuasse.

211

Page 212: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Por fim, o sufixo -puera significa “o que foi”, o passado. Logo, yvyrapuera tem o sentido de “o que foi árvore”. O que, no fim das contas, significa “o que foi e será terra”. Yvyrapuera é traduzido grosseiramente como “pau podre”. Aquele que se encontra nas matas. Mas, para nós, yvyrapuera encerra muito dinamismo, eternidade, circularidade. A eterna fluidez da mata. Terra, árvore, pau podre, terra.

- Puxa, Avaeté! É uma noção de dinamismo que, digamos, rompe com os limites do objeto. Isto representa uma queda das fronteiras daquilo que uma coisa “é”. Aquele jatobá deixa de ser somente aquele objeto jatobá, lá, e passa a ser muito mais. “Jatobando” é como uma compressão do tempo e do espaço que faz aquele jatobá individual, lá, ser um tipo de “nada” infinitesimal e, ao mesmo tempo, estar ligado a tanta coisa, a tantos processos, até que no início e no fim de tudo,...

- Diga, Pyá...

- Volta a estar ligado a...

- Vamos, prossiga...

- Esta coisa tão grande, tão primordial, isto que se chama...

- Nhanderu Tenonde, para os Guarani – disse Jaxy.

- Deus, para os cristãos – disse Avaeté.

- Vida, em qualquer povo – disse eu.

3

Começo a entender como o linguajando, a nhe’em de um povo, é capaz de ligar o mundo e o sagrado. Se você derruba um muro, o muro de cada objeto distinto, todos os demais muros caem em seqüência. E você, despido de você mesmo, encontra o sopro da vida, encontra a alma e, no fim, encontra a Deus. E depois a você mesmo novamente. Eternamente. Efemeramente.

- “Pyazando”. Eu sou “Pyazando”. Sou o alimento que comi ontem. Sou o ar que agora respiro. Sou a trilha que seguirei amanhã. Sou a camada de ozônio. E a sua ausência. Sou todos aqueles que me tocam e todos aqueles a quem eu toco. Sou minhas origens e meu destino. Sou meu povo e minha língua. Com minha língua toco a

212

Page 213: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

todos os seres, toco minha mente e minha própria língua. E ela, dentro de si própria, cria um mundo completamente novo.

Um mundo completamente novo. Não onde não há conflitos. Sim, haverá conflitos. Mas aonde os conflitos se dissolvem. Onde sofisticando é simplificando. Onde abrindo-se, você está protegendo. Onde separando-se, você se inteira. Onde ajudando é ajudar e ser ajudado. Onde uma vida significativa, criativa, com objetivos a cumprir, é, ao mesmo tempo, uma vida fluída, sem obrigações nem fins a alcançar. Onde civilizando, “nativando”, humanizando e “naturezando” podem ser a mesma coisa, ainda que distintas, coexistentes e harmoniosas. Onde salvando é salvar a si próprio e, por isso mesmo, salvar o mundo. Onde libertando-se é libertar. Onde mentando é “almando”. Onde se pode ser certo, correto, direito, perfeito e, ainda assim, ser livre para ser imperfeito, inacabado; livre para não seguir regras preestabelecidas; livre para experimentar, transgredir e criar. Onde o absoluto é efêmero e o efêmero, ainda assim, é. Mesmo sem ser absoluto.

Neste lugar, você toca o conflito com a sua língua. Ela é a varinha mágica. E... Puff! O conflito se dissolve! Branco, índio. Que categorias mais bizarras. No final das contas, “brancando” é “indiando”. E vice-versa.

– Agora já conhecemos o caminho para Araxá. Voltaremos aqui amanhã e vamos visualizar o que está por vir – disse Jaxy.

Saí instantaneamente da minha viagem. A frase era esperada, mas não o emissor.

- Foi você que disse isso, Jaxy?

- Foi. E, ao mesmo tempo, acho que não. Agora fiquei confuso com sua pergunta, Pyá... Ah, lembrei! Avaeté foi dançar ao redor daquele capão de mato e pediu-me que, no momento certo, dissesse exatamente isto: “Agora já conhecemos o caminho para Araxá. Voltaremos aqui amanhã e vamos visualizar o que está por vir.” Não sabia quando seria o “momento certo”, mas fiz quando tive vontade. O que estas frases significam, Pyá?

- Significam que dormiremos, sonharemos e precisaremos nos lembrar dos sonhos no dia seguinte. Voltaremos aqui amanhã à noite com eles para compreender nosso destino.

213

Page 214: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

4

Da beirada do rochedo até o local do nosso acampamento eram poucos metros. Mas os segundos que os separavam revelaram-se uma eternidade. Enxerguei uma luminosidade vinda do capão, ao longe. Avaeté dançava uma dança luminosa, fosforescente. Ele dançava muito rapidamente e, da sua dança, brotava um rio luminescente, como a lava de um vulcão. O rio fluía em direção aos penhascos e, ao invés de cair como uma cascata, dissolvia-se em milhares de córregos de luz em várias direções. Um dos córregos fluía até o horizonte, a leste. Avaeté começou a dançar mais rapidamente, tão rápido que quase não se viam seus passos, apenas um desenhado contínuo. Aquele fluxo que corria para leste dilatou-se e trouxe o sol da manhã. O sol saiu muito rápido. Aquilo tudo começava a me assustar. O sol seguiu com a rapidez de um dia que vira um minuto. De repente já era o entardecer, a hora em que Avaeté recomendou que regressássemos aos rochedos. Tive medo e pensei no medo de Jaxy. Ele estava também ao meu lado, surpreso, mas não amedrontado. Peguei seu braço e escondemo-nos atrás do tronco de um ipê amarelo. De lá, vi o anoitecer chegar, agora mais lento, dado que Avaeté agora dançava mais lentamente. Quanto mais anoitecia, mais aquele rio que emanava da dança de Avaeté iluminava a noite. De súbito, percebi duas pessoas junto ao rio de luz: uma em cada margem do rio de luz. Não saí de onde estava, mas meu olhar foi capaz de focalizar dois seres em conflito. Dois adversários. Dois rivais. Olhei para Jaxy e ouvi-o sussurrar:

- Rivais, Pyá. Rívus, “rio”. Rivális, “do rio”.

Rivais: os que estão em margens opostas do rio! Que idéia! Resolvi olhar ainda mais de perto... E os rivais eram eu! Eu, eu mesmo e os conflitos. Meus conflitos. Os rivais e o rio. Tudo uma coisa só. Como disse Avaeté!

Avaeté agora dançava à velocidade da luz, engrossando espantosamente aquele rio. Repentinamente, aquele ipê amarelo sob o qual nos protegíamos, transformou-se numa mulher. Uma linda mulher. Procurei por Jaxy. Jaxy correu na direção de Avaeté para aprender a sua dança. Começou a dançar junto. Mais luz tornou mais caudaloso aquele rio. Virei-me para aquela mulher, que começou a beijar-me o pescoço, o peito, as coxas. Arrancou minhas roupas. Despiu-me completamente sob aquele céu estrelado. Nossos corpos iluminados pelo rio de luz. Deitou-me no chão. Colocou-se sobre meu

214

Page 215: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

corpo. Encaixou seu ventre no meu e passou a se movimentar com vigor e, ao mesmo tempo, com suavidade. Era maravilhoso e cadenciado, como uma música eletrônica. Ela começou a cantar baixinho. De repente, a música que cantava e que embalava a dança de Avaeté e Jaxy tornou-se mais rápida, assim como o movimento daquela linda mulher. Oh, eu estava a ponto de morrer de tesão e de amor... E aquela deusa cantava mais e mais alto... E eu a ponto de gozar... Até que distingui, no seu cantar, dentro do meu ouvido, uma palavra que se repetia... Rheo... Rheo... Rheo... Entrava nos meus circuitos e traduzia-se... Deslize... Dilua-se... Flua... E mais alto... Rheo... Rheo... Rheo... Perca-se... Derrame-se... Dissolva-se... Quase a ponto de explodir de amor, olhei para mim mesmo e já não me distinguia daquela mulher. Meu último gesto foi olhar para o rio e ver os rivais retribuindo meu olhar. Por fim, enquanto eu gozava o amor daquela mulher, os rivais pularam dentro d’água e tudo se acabou.

5

Acordei sobressaltado sob um céu azul claro do início da manhã, salpicado por flores amarelas. Sentei-me e olhei à volta. Avaeté e Jaxy estavam ainda deitados, mas não estavam mais adormecidos. Desconfiado de que aquelas imagens da noite anterior fossem sonho ou viagem da minha cabeça, perguntei:

- Avaeté, há quantas noites estamos aqui na serra?

- Aqui, onde? Neste acampamento?

- Sim, desde que você avistou o tamanduá?

- Em que escala de tempo? – perguntou, com uma ponta de ironia no sorriso.

- Ora, Avaeté, na escala real! – repliquei.

Avaeté continuou seu sorriso, mas falou num tom sério:

- É a primeira noite, por quê?

- Ah! É que eu tive um sonho muito maluco...

- Por certo sua visão é significativa – afirmou Avaeté, extinguindo o sorriso. – Pense nela enquanto trabalhamos...

- Trabalhar? O que faremos, Avaeté?

215

Page 216: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Precisamos achar uma planta de poder.

- Por que precisaremos dela, Avaeté? – perguntei.

- Hoje será uma noite especial, Pyá. Precisamos estar com o poder pessoal revigorado. O lugar está fazendo seu efeito. Seu estado de espírito também. Sua visão ajudou. Agora precisamos nos fortalecer ainda mais com uma planta sagrada. Desceremos ao vale para encontrar a árvore paricá.

Tendo dito isto, Avaeté fez uma descrição para mim da árvore. Disse que eu deveria colher algumas folhas, nem muito jovens nem muito desgastadas. Depois chamou Jaxy e, em particular, também fez uma descrição. Incumbiu-o de apanhar as sementes que se depositam nas vagens. Quanto a ele próprio, iria à procura da casca do caule.

Fiquei imaginando que usos teriam aquelas três partes da planta. Provavelmente provocariam visões ou alucinações de diversas formas, mas confiava, como sempre, na administração de ervas por Avaeté.

Avaeté recomendou que saíssemos por três rotas distintas. Avaeté seguiu para o leste. Eu saí para o norte e Jaxy caminhou para oeste. Deveríamos regressar até o meio da tarde para haver tempo de preparar as ervas.

A trilha começava esparsa, com arbustos e árvores baixas e de tronco retorcido. Aos poucos, à medida que descia em direção à parte mais baixa do vale, havia maior quantidade e variedade de plantas, reduzindo a insolação sobre a trilha, mas não impedindo seu curso. Você olha para a mata e vê a maior variedade existente aqui e nota que é porque há mais umidade. Esta variedade cobre o espaço, retendo a própria umidade e impedindo a desertificação. Um círculo de sustentação da vida.

Mas você se dá conta que não é uma sustentação estática. Se você voltar daqui a vinte anos a este lugar, ele estará diferente. As árvores que hoje são maduras terão caído... Hum, como aquela que estou vendo agora. Caída, podre, morta e... Ao mesmo tempo... Olhando um pouco mais de perto... Cheia de vida. Liquens, fungos e pequenas plantas brotando de um tronco podre. Olhei para aquela mata toda e repeti a palavra que Avaeté me ensinou: yvyrapuera.

216

Page 217: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Imaginei aquela mata toda como se estivesse num filme em câmera rápida. As sementes brotando, as plantas crescendo, atingindo o cume, caindo, apodrecendo, brotando, crescendo, caindo, apodrecendo, ainda mais rápido, brota-cresce-cai-apodrece-brota-cresce-cai-apodrece sem fim, muito, muito rápido, comprimindo o tempo, comprimindo o tempo...

Um fluxo verde constante, que se desloca em direção ao sol e que se desloca também na direção do curso do rio. Mas também vejo um fluxo constante de branco, em direção à nascente. São nuvens, ventos e sementes voando serra cima. E um fluxo constante de transparência cristalina serra abaixo. São rios de várias cores. Rios de um fluxo muito intenso... Já não consigo mais distinguir objetos... Não existe mais “aquela árvore”, muito menos “aquela nuvem”. Só se distinguem fluxos, processos. O fluxo verde, o fluxo branco, o fluxo cristalino. Somente eu, naquele filme, parecia que não me havia transformado. Estava à velocidade de sempre, caminhando por aquela trilha, assistindo.

Pensei em como conseguiria apanhar as folhas de paricá naquela correnteza. Pensei em pescá-las. Foi o que tentei. Tinha em minha mochila fio, um pequeno bastão e improvisei um anzol. Mas seria necessário um peso para usar como chumbada. Procurei por uma pedra, mas não havia. Também as pedras estavam fluídas. Eram um rio negro e cinza e âmbar. Não teria sucesso em obter uma pedra naquelas circunstâncias. Então desisti de pescar e pensei em entregar-me àquele fluxo, mergulhar nele e apanhar alguma folha no próprio fluir. Despi-me, coloquei minha faca entre os dentes e mergulhei.

Era difícil mirar alguma folha de paricá em específico, porque eram milhares de formas de plantas e folhas, aparecendo e desaparecendo muito rapidamente. De repente, focalizei e firmei meus olhos sobre o fundo do rio e distingui o que necessitava: uma folha espalmada de paricá. Mergulhei até o fundo, peguei minha faca e parti sua bainha. No momento em que a folha desprendeu-se do galho, o filme parou. E voltou ao “normal”.

217

Page 218: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

6

Encontramo-nos no acampamento com o sol bastante alto. Estava quente e soprava apenas uma brisa muito suave, criando pequenas ondas sobre o campo.

Avaeté recolheu o material que eu e Jaxy havíamos coletado e colocou-os dentro de um círculo. Dividiu-o em três partes e colocou cada um dos materiais nestas divisões de cento e vinte graus. Depois acendeu seu cachimbo e baforou sobre eles.

Avaeté nos disse que tínhamos ali à disposição as três formas de uso do paricá. As sementes, as folhas e a casca. As sementes seriam moídas e, eventualmente, misturadas a alguma bebida. Deveriam ser moídas e torradas. As folhas seriam secas ao fogo e também moídas. Resultaria num pó para ser fumado no petynguá. Da casca cortiçada seria feito um pó para ser aspirado.

Perguntei se usaríamos todos os componentes no ritual. Avaeté respondeu severamente:

- Não, nunca! Cada um de nós usará aquele para o qual estiver preparado.

Avaeté deu as instruções para a preparação de cada um dos materiais. Depois ordenou a cada um de nós para que os preparasse individualmente. Eu fiquei responsável pela preparação do pó da casca. Jaxy secaria, torraria e moeria as folhas. Avaeté trataria das sementes.

Ficamos ali, à volta de um fogo preparado para as lidas com as plantas. Silenciosamente, horas que pareciam dias passaram-se. Quando estavam todas prontas, já era final de tarde. Avaeté disse para tomarmos banho no córrego para purificar-nos.

Depois do banho refrescante, sentamo-nos à beira do mesmo penhasco da noite anterior e começamos tomando mate. Avaeté rompeu o silêncio momentâneo:

- Hoje será noite de revelações para você e para mim, Pyá. Jaxy será nosso guardião. Nada será a Jaxy revelado, mas sua presença manterá nosso balanço e a razão de retornarmos.

Entendi que Jaxy seria o guardião da nossa presença no mundo “normal”. Ele estaria ali à nossa espera, visando dar-nos ciência da necessidade de retornar do transe ou das visões.

218

Page 219: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

O sol pôs-se majestosamente. A oeste havia muita claridade. Em oposição, a leste, havia algumas nuvens mais escuras. Avaeté disse para nos aproximarmos do fogo.

A cerimônia começou com Avaeté baforando novamente sobre o paricá. Disse algumas palavras xamânicas em Guarani e começou a preparar o pó resultante das folhas. Colocou-o dentro do cachimbo, socando bem e começou a fumá-lo. A fumaça da sua baforada elevava-se alto, só desfazendo-se a cerca de dez metros de altura. Fechou os olhos e começou a cantar uma canção repetitiva e ritmada, batendo no chão com o takuapu.

Depois fez Jaxy aspirar um pouco do rapé feito do caule. E continuava sua canção, fazendo uma ou outra alteração aparentemente aleatória no compasso. A música começou a parecer meio sonolenta. Neste momento Avaeté administrou-me uma porção de cachaça com o pó das sementes do paricá.

Dentro de pouco tempo eu estava começando a ter visões e sensações muito estranhas. Senti um grande inchaço no nariz, como se ele estivesse crescendo desproporcionalmente. Ele cresceu e foi tomando conta da boca. Meu rosto tornou-se afunilado pelo meu nariz-boca. Meus olhos aguçaram-se e comecei a ter visões. Primeiro comecei a ver o céu trocar de cores, passando a amarelo, azul, púrpura, vermelho, alternadamente, em ondas coloridas como uma aurora boreal. Cada vez que via o espectro passar, era como se um ciclo de tempo estivesse se passando, um dia ou um ano, não sei. O ciclo passou a ficar cada vez mais rápido, até o ponto em que as cores que se alternavam foram modificando e eu não distinguia mais um ciclo, mas um constante e aleatório pulsar de cores. Era uma sensação exultante, maravilhosa, apesar de estar ali, no meio da incerteza e da confusão.

Olhei para meus amigos e tive uma visão assombrosa. Jaxy era Jaxy, estava inerte, mas bem postado. Já Avaeté transformara-se num tamanduá-bandeira. Um tamanduá de luz. Seu corpo tinha contornos em forma de luz, como os contornos que emprestam as luzes natalinas a árvores e prédios. Era um tamanduá brilhante, mas ainda sim, um tamanduá que fumava um cachimbo. Avaeté continuava a fumar o paricá. Mirei bem a sua tromba e imaginei que o inchaço do meu nariz também tenha me transformado... Num tamanduá! Eu também era um tamanduá iluminado. Já não podia mais tomar minha bebida, mas acreditava também que não era preciso.

219

Page 220: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté então começou a balançar sua cauda. Indicou para que também fizesse o mesmo. Abanei-a lentamente e, depois, cadenciadamente, até entrar no ritmo da cantoria de Avaeté. Quando isto aconteceu, a luz que emanava da minha cauda passou a entrar em contato com as luzes do céu. Era maravilhoso. Eu sentia-me em completa sintonia com o céu, com suas cores e energia, e com o ritmo ditado por Avaeté. Sentia uma sensação de pertencimento e de liberdade. Avaeté então começou a recitar, num ritmo poético, algo que não era um poema, mas alguma outra forma de discurso melódico:

“Pyazando tamanduando.

Tamanduando universando.

Descobrir não ilhando.

Revelar contendo-continente.

Pelo fluir do Orinoco.”

Instantaneamente uma melodia passou a processar-se dentro da minha cabeça.

“Navegar, navegar, orenocando

Praiando, atlanticando, mediterrando,

Celtificando, babiloneando, fertilizando

Pegar, largar

E aqui estamos nós, nós e eles...”

Olhei para mim novamente e eu pegava fogo. Eu era um tamanduá em chamas, ardente, que apertava a mão de Avaeté. No momento que sacudi a mão de Avaeté, num movimento repentino, todo o cenário sumiu. Estávamos novamente só eu e Avaeté, com nossos corpos reais. Parecia tudo “normal”, mas senti que ainda estava em transe quando Avaeté pronunciou algumas palavras. Elas estavam como sendo pronunciadas dentro da minha cabeça. Avaeté fez uma pergunta:

- Pyá: devo marchar?

Não sei se compreendi a totalidade do significado da pergunta de Avaeté, mas apenas tive vontade de responder:

- Da mesma maneira que o Orinoco marcha para o oceano.

220

Page 221: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Isto é bom – respondeu Avaeté. – Qual é sua pergunta?

Pensei um pouco e achei que estava a ponto de fazer a pergunta da minha vida, e da minha morte, a pergunta total:

- Qual é o meu caminho, Avaeté?

- Seu caminho é tornar-se um guerreiro txucarramãe. O guerreiro sem armas. E você levará consigo seu protegido.

Dito isto, ouvi o canto lamentoso de um pássaro. Perguntei a mim mesmo o que era e eu mesmo, com a voz de Avaeté, respondi: “Este é o canto do kuchiu. O kuchiu canta em lamento por algo que está por acontecer.”

Uma tristeza se abateu sobre mim. Entendi perfeitamente o que significava o canto daquele kuchiu. Era o prenúncio de que Avaeté me deixaria. Era o prenúncio de que Avaeté tomaria um rumo e eu, outro. Era o prenúncio de que eu estaria sem a presença reconfortante, amiga e orientadora de Avaeté. Era o prenúncio de que Avaeté achara que já fizera o bastante por mim. Era o prenúncio de que teria que me tornar um adulto. Era o prenúncio da separação.

Tomado daquela tristeza profunda, Avaeté saiu de dentro da minha mente, mas ainda assim falou através da minha boca: “Não se separa o que é uno. Não tenha medo nem tristeza. Tudo o que eu sempre quis ensinar a você, você aprendeu porque foi um bom aluno. Foi capaz de aprender não apenas de mim, mas do todo, da natureza, dos irmãos. Por isso, escute atentamente a sua última lição esta noite.”

E dissemos juntos numa voz muito mais firme: “Não pretenda mudar o mundo. Primeiro, viva uma vida livre e, com sua liberdade, aí sim, você poderá mudar o mundo.”

E, dito isto, olhei para Jaxy, que dormia. Adormeci também o sono da vida livre.

221

Page 222: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Doze

222

Page 223: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

As notícias sobre a situação no sul da Bahia não eram animadoras. Cerca de cinco mil pessoas punham-se em marcha em direção ao local dos conflitos. O povo que sofria as maiores conseqüências da exploração de terras e matas era o Tupiniquim. Havia informações de que, assim que se iniciou a marcha, o clima cresceu em hostilidade e houve mortes.

Em outras épocas, a invasão de terras indígenas não tinha maior repercussão pública. Porém, hoje, o processo de união entre comunidades, lideranças, sociedade civil e movimentos sociais é mais sincronizado. Isto de um lado. De outro, o poder de governos locais, fazendeiros e empresas é mais bem articulado. Também o é entre o crime organizado.

A região está ardendo em chamas. Literalmente, pois a mata está sendo queimada pela urgência em implantar agronegócios para suprir, em escala mundial, mercados de alimentação, energia e extração de materiais em estado mais ou menos bruto. A situação é mais crítica no interior da Amazônia. Mas o sul da Bahia não perde muito longe.

A marcha ultrapassou a região do Rio Doce e dirige-se para o norte. Indígenas, quilombolas, líderes de pequenas comunidades, representantes de setores da sociedade civil, como os “cientistas pela responsabilidade mundial”, ONGs diversas e movimentos sociais e religiosos têm se juntado ao longo do caminho. A tensão é crescente.

Comecei a temer pela decisão de Avaeté. Comecei a imaginar que um massacre poderia ser iminente. Nestes tempos de convivência com meu amigo, passei a dar-me conta da capacidade de liderança de Avaeté. Era conhecido e reconhecido por todo o continente. Dificilmente não se colocaria na linha de frente para articular e negociar. Temia pela sua vida.

- Avaeté, não estou gostando de você ir nessa marcha. Temo que algo ruim possa acontecer...

- Não há com o que se preocupar, Pyá. Quando você escolhe a vida na estrada, você cria um compromisso com os irmãos da estrada. Meu caminho é estar com esta gente.

223

Page 224: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Mas você e muitos outros poderão perder a vida.

- “Perder” ou “ganhar” não se aplicam ao nosso novo entendimento sobre o mundo. A Vida não lhe pertence. Você é que pertence à Vida. Neste caso, foi a Vida quem escolheu que eu seguisse nesta marcha e você seguisse na direção da sua liberdade.

- Você tem certeza, Avaeté? E se você morrer, o que será daqueles que você cativou, daqueles que o amam? O que será de mim, Avaeté? Eu preciso de você me guiando nesta vida...

- Você estará bem. Estará nas mãos da Vida e dos irmãos de estrada. Não se apegue, Pyá. A liberdade está no desapego.

- Então me deixe ir com você! – bradei, numa outra tentativa de não me afastar do meu benfeitor.

- Isso não será possível, Pyá. O seu destino está traçado, assim como o meu. Mas não se preocupe. Vou me cuidar, assim como cuidarei dos meus irmãos. Talvez nos encontremos em breve.

- Como assim, Avaeté?

- Vou tratar dos assuntos da marcha durante o tempo necessário. Depois disso, irei ao seu encontro. Até lá, você e Jaxy percorrerão o caminho que eu lhes disser. Estarão em mãos amigas.

Avaeté sugeriu que nossa viagem prosseguisse pela Chapada Diamantina, Serra da Capivara, Sete Cidades, Lençóis Maranhenses e, depois, para o norte, até o Monte Roraima. Mostrou-me no mapa os locais. Disse que eram locais de poder. Prometeu encontrar-nos em Lençóis Maranhenses, ou a seguir, no Monte Roraima.

Assim que disse isto, vasculhou na sua bolsa alguma coisa. Depois de remexer o fundo, retirou um pedaço de couro enrolado como se fora um pergaminho. Entregou-me como quem entrega um tesouro próprio e me ordenou:

- Você deve guardar este pedaço de couro como quem guarda a vida de um amigo. Ele nunca esteve nas mãos de mais ninguém, mas é chegada a hora de repassar-lhe.

- O que é isto, Avaeté? – perguntei curioso. Estava amarrado com um barbante, também de couro, com uma inscrição exterior: mbegueguata.

224

Page 225: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- “O segredo dos viajantes.” Este é meu amuleto e, ao mesmo tempo, o tesouro que deve ser revelado e, a seguir, enterrado junto comigo, logo após minha morte. Só abra-o e leia-o se eu não encontrá-los nos locais que recomendei. Se eu não os encontrar, abra-o, leia-o e envie mensagens com o conteúdo para todos os amigos. Por fim, enterre-o junto ao meu corpo – sentenciou Avaeté.

Olhei para aquele pedaço de couro com melancolia. Tentei, mas não havia margem para negociar uma mudança de planos com Avaeté. Comecei a sentir uma queimação no estômago pela aflição. Era uma agonia pelos riscos que Avaeté corria e pelo desconhecido de estar a sós, eu e Jaxy, na vida da estrada.

Comecei a sentir uma solidão profunda. Uma sensação de vazio, de falta de perspectivas, da falta da chama que era a companhia daquele amigo. Passei o dia olhando para o nada, chutando pedras no chão e com ar preocupado. Avaeté apenas limitou-se a dizer:

- Não sinta solidão. Solitário você vivia na sua vida anterior. Fechado dentro dos próprios muros. Os jurua são solitários. Bilhões de seres solitários. Agora, você tem um sopro de liberdade no coração. Com ele, você tocará aqueles que estão com as janelas abertas. Aproveite!

Procurava alento nas palavras de Avaeté, mas sentia o gosto amargo da despedida na ponta da língua. Melodias tristes de despedida passavam pela minha cabeça: “Adeus, céu azul.” Na caverna mais profunda, no fundo do lago, medo, apego e desapego. “Você consegue ver o medo que eles têm? Adeus, adeus.”

Desarmamos o acampamento e seguimos o rumo de retorno a São Roque de Minas. De lá, seguiríamos direções separadas. Avaeté, para o leste. Eu e Jaxy, para o norte. Foi triste o percurso. Eu tinha um mau pressentimento. Achava que poderia nunca mais encontrar Avaeté, apesar da sua promessa de encontrar-nos e da sua confiança. Sentamo-nos num bar, no centro da cidade. Pedimos uma dose de aguardente. Cada um de nós dois tomou a sua dose de uma única vez. Como que para dar coragem para cada uma das odisséias pessoais que enfrentaríamos a seguir. Não tinha mais palavras a dizer. Se as dissesse, explodiria em lágrimas. Avaeté rompeu o silêncio:

- Não estamos nos separando, Pyá. Nossas almas sempre estiveram e, agora mais que nunca, estão entretecidas para o resto

225

Page 226: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

dos tempos. Minha alma, sua alma e a de Jaxy são uma só. Eu sou você. Você é eu. Não se esqueça disto.

Abraçamo-nos os três terna e firmemente. Longamente. Eu estava em lágrimas. Avaeté despediu-se:

- Adeus, “coração de menino”. Adeus, “lua nova”.

E pegou sua bolsa, seguindo na direção da estrada 50, sem esperar palavra. Eu apenas disse baixinho:

- Adeus, “gente boa”. Que a Vida o conserve.

2

Eu e Jaxy conseguimos carona da cidade até a estrada 262. De lá, seria preciso conseguir outra forma de cruzar as paisagens de cerrado até chegar ao nosso próximo destino: a Chapada Diamantina. Apesar de meu corpo estar seguindo este curso, fiquei imaginando a viagem e os desafios que Avaeté teria que enfrentar. Contavam-se que coisas desumanas estariam ocorrendo por lá. Seqüestros, desaparecimentos, confrontos armados, caos. Grileiros, jagunços e “cabras mandados” agindo em nome de grupos instituídos “legalmente”. Os “bacanas” não poderiam sujar as mãos.

Meu entorpecimento foi quebrado por aquele garoto de energia:

- Pyá, devemos encontrar alguém em especial na Chapada Diamantina?

Aquela pergunta foi como se o presente desse sinal de sua existência. Tentei ficar o mais consciente possível do momento atual, pois a partir de agora não seria mais responsável apenas por mim próprio, mas também pelos destinos daquele jovem índio. Respondi a Jaxy:

- Não tenho certeza, Jaxy. Avaeté foi vago quanto a quem encontraríamos na Diamantina. Disse apenas para confiar que, no momento certo, encontraríamos as pessoas certas.

- Bem, então não há porque se preocupar, Pyá. Você parece aflito...

- Você não está, Jaxy? Com o nosso destino, com o destino de Avaeté?

226

Page 227: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Não, Pyá. Não, mesmo. Se Avaeté disse para não se preocupar, porque deveria? Eu estou curtindo demais tudo o que estamos vivendo...

De repente, tive a sensação de que perdi um benfeitor para achar um pequeno mestre...

Eu e Jaxy já estávamos muito hábeis em conseguir carona. Era uma espécie de prazer diário encontrar desconhecidos e conversar. Sempre nos perguntavam aonde ir e fornecíamos uma idéia geral dos objetivos mais próximos e uma idéia mais concreta do objetivo mais amplo. No final das contas, queríamos chegar em cerca de uma semana a Ibicoara, no sul da Chapada Diamantina.

Transitamos por várias estradas: 354, 176, 135, esta última em mau estado. Da 135 saímos da rodovia na direção de Curumataí. Tudo por estas bandas é zona histórica dos garimpos e da mineração de preciosos. Resolvemos ficar uns dois dias no Parque das Sempre-Vivas. Aqui você pode admirar a quantidade enorme de flores. Localizado também numa serra, a do Espinhaço, é berço de inúmeros rios e riachos. Os banhos de cachoeira não poderiam faltar.

Na região encontram-se a mata mais densa dos vales e os campos rupestres serranos. Os campos são cheios de flores e, em especial, de sempre-vivas, cuja colheita é uma tradição dos moradores dos arredores. Caminhamos muito por entre estes campos, até chegar a alguma borda de onde se pudesse mirar o horizonte. Antes de achar o local ideal para acampar, tive a impressão de ter visto um tamanduá-bandeira. “Isso é bom!” Quase ouvi a própria voz de Avaeté.

Era o final do dia. O entardecer com suas cores esmaecidas me atraem muito. O crepúsculo é este momento, mas é também uma metáfora. Uma metáfora para o limiar existente entre estar acordado e estar dormindo. Entre o consciente e o inconsciente. Entre o dia e a noite. Entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Entre a luz e as trevas.

O momento chama por colocar a mente neste limiar. O limiar que a meditação pode proporcionar. Há muitos anos não medito, mas senti uma inequívoca vontade de fazê-lo. Sentei-me confortavelmente sobre uma pedra plana e, equilibradamente, coloquei meu corpo na direção norte.

227

Page 228: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Tentei acalmar a mente, mas ela estava como que passando por corredeiras. Resolvi começar com um foco. Aquilo que me afligia. Aquilo que me toca os sentimentos. A perda de um amigo.

Pensei: “O que significa perder um amigo?” Passei por rever as imagens do meu grande amigo. Rever passagens. Rever momentos. Através destas imagens transcorriam pensamentos, frases, palavras. Em alta velocidade. O turbilhão de pensamentos e palavras. Parecia que não me levaria onde poderia haver iluminação.

De repente, dos espaços entre as palavras, dos silêncios e vazios existentes nas frestas, uma voz sem palavras disse:

“Você não me encontrará em imagens físicas. Você não me encontrará em passagens. Você me encontrará em outras forças.”

Aquilo me deixou abismado e silencioso. A voz que se elevou por entre as palavras cessou o turbilhão. Na passagem por este limiar, abaixo dele, enxerguei um fluxo de água corrente escura. Não suja ou turva. Apenas escura. Ouvi o amigo perguntar:

“Você quer ver como é?”

Então ele aponta e mergulha no poço de água escura. Então, você mergulha... Na verdade, não, você não mergulha. Você vê, estando dentro e fora, e talvez nem dentro nem fora, mas vê que existe um poço e um labirinto de águas escuras. Este labirinto são galerias subterrâneas. Galerias e galerias e galerias ricamente conectadas, que sobem e descem, vão para cá e para lá, abrem-se e escondem-se.

São galerias ricamente conectadas. Você não é o observador. Você também não é uma galeria, nem um conjunto delas. Você não é o fluxo de água. Você é o fluxo e as galerias, e os outros seres humanos também o são, unificados. A água sobe, sai de um bueiro, entra num buraco, jorra através da chuva, sai e entra onde há luz consciente. Você é a água, o canal e o observador do fluxo. Ela penetra nas entranhas das galerias, no escuro do inconsciente. E o complexo emaranhado de galerias e lençóis faz fluir toda água.

“Embaixo” é um lugar escuro, inconsciente. Dele brotam nascentes. Na nossa ingênua primazia do consciente, apontamos uma nascente. Mas ela nasceu antes. Nasceu no obscuro. Onde também há nascentes, que brotam de inúmeras outras galerias. Não há nascentes em absoluto. Só há o eterno.

228

Page 229: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Apenas uma pergunta surgiu no final de tudo. “Quem é, o que é, afinal de contas, este meu amigo que foi para o mundo obscuro?” E apenas uma expressão reonhe’em restou: “Avaetendo”.

3

- Jaxy, você não tem saudades dos seus parentes da aldeia? – puxei assunto enquanto alimentávamos a fogueira do nosso acampamento.

- Sinto, Pyá. Sinto falta das mães e dos pais da aldeia. Sinto falta também dos cães, nossos amigos protetores. Você sabe, brincamos muito na aldeia. Mas não tem importância, não. Aqui, com você e Avaeté estou aprendendo muito sobre reko, sobre o bom modo de proceder. Tenho certeza que, com vocês, posso ser um Guarani verdadeiro.

- Fico feliz que você esteja feliz. Você alegra muito nossa aventura.

- Alegro-me em poder compartilhar isto e ajudar, no que eu puder. Na aldeia, eu já ajudava a cuidar de todos os meus irmãozinhos menores. Desejo ajudá-los aqui, também.

- Conte-me mais sobre sua vida na aldeia, Jaxy – estimulei.

- Nossa vida é muito boa enquanto somos crianças. Corremos e brincamos livres pela aldeia e pela mata. Brincamos e tomamos banho no rio. Fazemos brincadeiras imitando os adultos. Brincando de caçar. E, aos poucos, somos iniciados em todos os aspectos da vida adulta, como cantar, dançar, tocar instrumentos musicais, participar nos rituais. E somos iniciados, mais tarde, na manutenção da tekoha, da nossa vivenda, sempre em mutirão. Sabe, Pyá, mutirão, de potyroina: “muitas mãos trabalhando juntas”.

- Você também é um Guarani eté, como nosso benfeitor, Jaxy. É bom tê-lo por perto. Estaremos sempre juntos na empreitada. Agora estamos a sós. Nosso companheiro nos deixou. Precisamos cuidar um do outro.

- E a Vida cuidará de nós, não é Pyá?

- E a Vida cuidará de nós. Cada vez tenho mais fé nisto.

229

Page 230: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Conversamos mais sobre a vida de Jaxy e eu contei um pouco de como era minha vida antes de empreender a aventura desta viagem. Jaxy achou muitas coisas um tanto diferentes, mas não as rejeitou ou criticou. Apenas ouviu curiosamente.

No dia seguinte, partimos para Ibicoara. Retomamos a estrada 135 e, de carona em caminhão, seguimos até a estrada 116 até chegar às beiradas da grande cidade de Vitória da Conquista. O nome da cidade faz lembrar de coisas amargas para os nativos Mongoyó, Ymboré e Pataxó. Bandeiras, europeus, conquista, territórios, vitória, derrota e subjugo. Pretendemos não ficar na cidade, mas continuar pela 407. Por todo o caminho, entremeavam-se campos rupestres, fazendas de gado, paisagens mais secas de cerrado e matas de vales e encostas de serra. Em breve chegaríamos a Ibicoara.

Nossa carona nos deixou na 142, de onde seguimos um trecho a pé até encontrar uma caminhonete de turistas com destino à cidade. Subimos na cabine e conversamos com o guia turístico, um homem baixo de cerca de cinqüenta e poucos anos de idade, de pele tostada e um pouco enrugada pelo sol. Seus cabelos longos e escassos denunciavam um velho companheiro de estradas.

Não sabia por onde começar para descobrir alguém que pudesse ser das amizades de Avaeté. Conversamos assuntos mais genéricos sobre o que fazíamos e como estavam as coisas pela Chapada. Perguntei se conhecia alguém na cidade que mantivesse amizade com nativos, mas não soube precisar. Disse que conhecia a maioria das pessoas por estas bandas, à exceção de alguns moradores reclusos ou “diferentes”, como se referiu.

Perguntei que tipo de “seres diferentes” havia em Ibicoara. Informou-me que havia um ou outro artista, um ufólogo, um antropólogo aposentado e um alienista.

- Alienista? – perguntei, espantado com o uso do termo.

- Bem, é como se apresentou numa das raras aparições públicas – informou o guia.

- Mas ele “toca” algum manicômio na região?

- Não, veio para cá em busca de paz e tranqüilidade. Trata de um ou outro raro paciente. O senhor sabe, não é, psicoterapia. Tem gente que precisa. O pessoal aqui de Ibicoara, não. Nem os turistas.

230

Page 231: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Quem vem se tratar é oriundo da cidade grande. Também já o vi na companhia de índios. Mas não sei quem são...

Resolvi fazer visitas a algumas destas pessoas “diferentes”. Comecei visitando, nos arredores da pequena cidade, dois artistas plásticos que compartilhavam um atelier. Não encontrei ninguém que algum dia conhecera Avaeté, mas deparei-me com esculturas e pinturas majestosas. Foi uma tarde agradável na companhia de pessoas arejadas.

Resolvemos passar a noite numa pequena, mas confortável pousada. Conversamos com os donos, mas não obtivemos maiores informações sobre pessoas que tivessem relacionamento com nativos. Nossa próxima visita seria ao antropólogo e ao alienista. O dia seguinte seria dedicado a esta busca.

Tomamos café no dia seguinte e rumamos em seguida para a casa do suposto antropólogo. Recebeu-nos com muita dedicação. Usava um cachimbo permanente no canto direito da boca. Mas foi taxativo ao dizer que jamais convivera com qualquer nativo. Visitara e estudara inúmeros aldeamentos de diversos povos e convivera com eles por alguns tempos, mas nunca se tornou amigo permanente de nenhum deles. Nem mesmo recebera a visita de quaisquer nativos algum dia. Duvidou que pudesse encontrar alguém que conhecesse meu suposto amigo pois, segundo seus relatos, não é típico dos Guarani o comportamento estradeiro que descrevi como pertencendo a Avaeté. Agradecemos a acolhida e partimos para a última possibilidade. O alienista.

Fomos até sua casa, que ficava mais afastada das demais, próximo a uma região de mata. Aproximamo-nos da porta e batemos. Era por volta do meio dia e um homem de camiseta e bermudas nos recebeu:

- Em que posso ajudá-los?

- O senhor é o “alienista”?

- Eu mesmo. Engraçado como o povo daqui gosta de se apegar a certos rótulos... Não tem importância. Isto é culpa minha. O que desejam?

- Eu sou Pyá. Este é Jaxy. Estamos à procura de um amigo de um amigo nosso.

231

Page 232: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Entendo. Um jurua com nome Guarani, acompanhado de um jovem índio... Hum, vocês são amigos de Avaeté, não é mesmo?

- Sim! O senhor o conhece?

- Não me chame de “senhor”, apesar da minha barba branca. Nem de Papai Noel. Chamem-me apenas por Tiago. Sim, meu velho amigo Avaeté! Sejam bem-vindos amigos de um velho amigo!

Tiago contou que conheceu Avaeté no Peru. Durante uma viagem, Avaeté aproximou-se de Tiago e começaram a conversar. Criou-se uma amizade durante os dias seguintes, com Avaeté como espécie de guia de viagem pelas terras peruanas. E que guia. Acho que eu estava em total acordo com isto.

Depois disso, Tiago abandonou a cidade onde morava e mudou-se para a Chapada Diamantina. Deixou de ser um terapeuta especializado. Passou a trabalhar com todo tipo de linhas alternativas disponíveis. Acabou por adquirir tal visão ampliada do que é doença mental que, hoje em dia, nem mais acredita que os termos “doença”, “mente” ou “terapia”, como são comumente conhecidos, aplicam-se ao que ele faz. Diz ser uma espécie de xamã, sem sê-lo de fato.

- A língua inglesa é útil neste caso para explicar minha nova visão. Note a origem comum das palavras: heal (curar), health (saúde) e whole (todo). Elas vêm de um termo ancestral comum, hale, que significa “todo, inteiro”. Assim como holy: “sagrado”.

- Impressionante – disse eu. – Estar saudável, curado, é estar inteiro.

- Sim. E veja também as palavras “medicina” e “meditar”. Também têm um ancestral comum, que se relaciona com a palavra “medida”. “A medida correta das coisas.” O equilíbrio interno das coisas. É isto que eu ajudo a encontrar. O ser inteiro, que é um ser saudável, equilibrado.

- Entendo. E sua transformação tem a ver com você ter conhecido Avaeté? – perguntei eu, achando o “papo” muito familiar.

- Em grande medida, sim. Ele foi uma espécie de catalisador disto que sou hoje. Ah, desculpe, estava enchendo seus ouvidos com uma ladainha pessoal que talvez não seja do seu interesse. O que vocês desejam?

232

Page 233: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Para ser honesto, nada em especial. Se puder nos conceder alguns dias de companhia e parceria, pretendemos ficar aqui na Diamantina por algum tempo.

- Claro! Sejam meus hóspedes. Como já o fui em inúmeras oportunidades dos amigos de Avaeté espalhados por este mundo. Se desejarem, os levarei a conhecer maravilhas desta região. Isto será um prazer.

Acomodamo-nos na sua casa, felizes finalmente por encontrar esta boa alma que nos acolheu. Avaeté não está aqui para nos guiar, mas suas pegadas nos acolhem. Isto não é maravilhoso? Espero que esteja bem. A estas alturas, já está na região dos conflitos.

4

Mais tarde, Tiago nos mostrou um mapa detalhado da região, com seus relevos, vegetações e trilhas.

- Cruzaremos de sul a norte a Chapada Diamantina, através da trilha da travessia que, no fundo, é um troncal de ligação de uma intrincada teia de trilhas. Ela começa aqui perto de Ibicoara, no chamado Baixão, e terminaremos no Vale do Capão, perto de Palmeiras. De lá, visitaremos ainda a Gruta Azul e o morro do Pai Inácio. No total, mais de centro e trinta quilômetros de trilhas nos aguardam.

- Puxa! Serão pelo menos sete dias de caminhada. Isto é o máximo! - bradou Jaxy.

Tiago adicionou:

- Ou mais, se quisermos desfrutar as belezas da Chapada. Há alguns meses não faço esta trilha. Será muito bom retornar a estes lugares mágicos.

Tivemos até o final do dia para a preparação da travessia. Seria necessário sair cedo no dia seguinte. Combinamos a partida para antes do amanhecer.

A madrugada estava fresca. Saímos de Ibicoara caminhando pela estrada. Um ou outro morador vinha até a janela ver quem eram os transeuntes matutinos. Logo depois da saída da cidade você entra em um vale iluminado. Em seguida, toma o atalho para a Cachoeira

233

Page 234: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

do Buracão. Linda, tanto por cima quanto por baixo. A queda d’água é alimentada por um rio de beleza negra e espumante. O acesso inferior da cachoeira é através de um cânion venturoso.

Tiago é um camarada do tipo bom companheiro de viagem. Falante sem excessos, equilibra, nos seus discursos, sua visão pessoal das coisas com uma noção muito clara de realidade. Educado e letrado, é capaz de ilustrar seus pontos de vista com relances de sua cultura. Nem parece aquele personagem recluso que pintaram na nossa chegada a Ibicoara. Nisso, vai se mostrando também um excelente guia da região, pelo seu conhecimento do local:

- Sabe, Pyá, converso muito com algumas pessoas. Mas só as pessoas certas. Elas me contam as histórias. Toda esta região viveu da extração de pedras durante alguns anos. Na verdade, não foram muitas décadas, de modo que o garimpo veio e se foi. Por isso é chamada Diamantina. Por causa do garimpo de diamantes. Você ainda pode ver seus resquícios próximo a Igatu.

Descansamos um tanto, tomando aquele banho que refresca do calor e o energiza para por o pé na estrada. Retornamos do atalho e seguimos chapada acima próximo ao Riachão. Andamos no meio do vale durante horas, até que se estreita, em função da proximidade da Serra do Sincorá, a leste, e das Gerais de Mucugê, a oeste. Antes que o vale se tornasse mais fechado, próximo à Cachoeira da Fumacinha, armamos acampamento.

No dia seguinte, continuamos no rumo norte, passando por mais cachoeiras, buracões, paredões, campos, aclives, pequenos passos e declives. E novamente ficamos na companhia das sempre-vivas.

Tiago nos contou que os descampados a oeste são terras cheias de lendas e fonte de inspiração para poetas, contadores de causos e inventores de histórias de todos os tipos. Os mais freqüentes são os ligados à existência de campos de pouso de ÓVNIS e os relacionados às energias do lugar, em função do relevo e da presença de cristais e pedras preciosas.

Bem, quanto às energias, melhor repô-las à beira dos rios e riachos. Água fresca o faz sentir-se fluidificado, desobstruído. Comemos algo leve e, sob recomendação de Tiago, caminhamos um pouco e logo depois recostamo-nos à sombra das árvores:

234

Page 235: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Alimentar-se, caminhar trezentos passos e fazer a sesta, de lado, por vinte minutos. Truques da medicina aiurvédica – disse sorrindo.

Jaxy me disse que estava surpreso com o conhecimento médico de Tiago. Eu estava também admirado. Referia-se a noções de saúde, tanto das bandas do oriente, quanto xamânicas de várias vertentes, quanto ocidentais. Reconhece ervas pelo campo para os mais variados usos.

Neste clima de amizade e relaxamento, passamos as horas e os dias caminhando nas trilhas, terrenos de arenito, de terra vermelha e por entre campos de flores; escalando terrenos acidentados, paredões, escarpas e gargantas; explorando poços, cavernas e grutas, muitas com maravilhosos salões repletos de estactites, estalagmites e cristais; nadando em rios cristalinos ou escuros – não importava, refrescavam da mesma maneira; tomando banho em grandes cachoeiras ou pequenas quedas d’água; subindo montes e admirando a vista maravilhosa dos vales; enfim, curtindo.

Pelo caminho iam ficando algumas poucas casas de agricultores, as estradas, as pontes, os viajantes e trilheiros, as pequenas cidades, as ruínas do garimpo, as inscrições rupestres ancestrais e um ou outro incêndio na mata.

As noites passavam-se também, à beira ou não de fogueiras, às vezes sob chuva, às vezes sob céu estrelado. Conversávamos sempre de maneira animada. Contei sobre nossas aventuras e sobre nossas conversas, entre eu, Avaeté e Jaxy. Tiago finalmente perguntou:

- O que é feito de Avaeté? Estamos há vários dias na trilha, mas vocês quase não têm me contado sobre o que está fazendo Avaeté agora.

- Não é muito agradável contar-lhe o que está acontecendo. Avaeté foi juntar-se ao pessoal da “Marcha dos Guerreiros sem Armas”.

- Eu sei dessa marcha. Ela está nos noticiários. A coisa está muito quente por lá – informou Tiago.

- O que você sabe?

- Ela havia recém chegado aos locais dos confrontos quando saímos de Ibicoara. Noticiou-se que, já na chegada, houve trocas de tiros e certa dispersão, com muitos embrenhando-se nas matas.

235

Page 236: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Você sabe se houve mortes?

- Não souberam precisar, mas houve algumas, pois os participantes foram recebidos em emboscadas.

Aquilo reacendeu o isqueiro em meu estômago. Lembrava-me vez por outra de Avaeté, mas procurava não pensar muito.

- Então foi por isso que evitaram falar em Avaeté? Quero dizer, no que ele estava fazendo agora?

- Sim. Estamos preocupados – respondeu Jaxy.

- Conhecendo Avaeté, duvidava que ele não se metesse nesse negócio. Por isso que vocês estão continuando essa aventura sozinhos.

- Exatamente – respondi. – Ele recomendou que seguíssemos adiante e que nos encontraria mais adiante.

- Compreendo. Bem, acho que vocês devem tranqüilizar-se. Ele com certeza os encontrará. Avaeté é muito astuto, sabe se virar bem. Caso contrário, se ele não aparecer em breve, de uma forma ou de outra, vocês estarão na sua companhia.

- É isso – afirmou Jaxy. – De qualquer maneira seu espírito está conosco, não é mesmo Pyá?

Era verdade. O espírito de Avaeté estava presente de inúmeras maneiras. Pelas suas pegadas e pelas lembranças que ele deixou nos lugares por onde passaremos. Por aqueles que ele conquistou e que retribuirão a nós, seus seguidores. Pelas lições e lembranças. Pela transformação que gerou em cada um de nós. Por nos ajudar a revelar quem, de fato, somos.

Nossa última noite na Diamantina foi no alto do Morro do Pai Inácio. Subindo, escalando e nos apoiando nas pedras e árvores retorcidas, chegamos ao seu cume de 1.120 metros de altitude. O sol poente alaranja as matas dos vales e os morros chapados das redondezas. A chuva freqüente deixa poças pelos caminhos de pedra de arenito, siltito e basaltito. As poças revelam reflexos celestes.

Ficamos a apreciar a vista em estado de araxá, como sugeriria Avaeté. Mas ele não me saía da cabeça:

- Sabe, Tiago, às vezes sinto uma sensação de culpa por estar aqui, neste estado de êxtase e contentamento, sabendo das

236

Page 237: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

dificuldades de Avaeté, ou do seu povo, ou de todos aqueles que sofrem.

- Vou contar-lhe uma história, Pyá. É uma velha e conhecida história, mas creio que vale recontá-la. Certa vez um monge e seu discípulo caminhavam em direção à aldeia vizinha, quando se viram na iminência de atravessar um riacho. Ao chegar à margem, notaram uma linda moça, que tinha dificuldades em cruzá-lo. O monge ofereceu auxílio, pegou-a no colo e ajudou-a a cruzar o riacho. Depois cada um tomou seu caminho, sob a estupefação do discípulo. De imediato, este não falou palavra. Porém, aquela linda moça não saía de sua cabeça. Não saía também o conflito que surgiu em sua mente, pois seu mestre dizia para não aproximar-se ou tocar uma mulher e, ainda assim, tomou em seus braços aquela moça. Não se contendo, questionou o mestre como poderia ter feito aquilo. O mestre apenas disse: “Eu tomei aquela moça em meus braços e deixei-a do outro lado do riacho. Você ainda a está carregando.”

Fiquei em silêncio por alguns momentos elaborando aquelas palavras. É certo que Tiago tem razão quanto a deixar que Avaeté cuide de seus assuntos e que nós sigamos o caminho sugerido por ele. Se assim foi decidido, não há mais porque pensar no assunto. Apenas fazer o que é preciso.

Conscientemente eu sabia disso, mas meus sentimentos vinham à tona em forma de uma espécie de culpa. É como um senso de responsabilidade que eu deveria ter, uma necessidade de estar junto naquela batalha, junto aos meus companheiros.

Conversamos um pouco sobre isto. Via que Jaxy tinha uma rica simplicidade, um rico desapego, o que o fazia estar atento, mas não apegado à própria preocupação.

- Elabore seus pensamentos e sentimentos, Pyá. Isso será saudável.

- Sinto culpa, Tiago. Uma culpa não racional. Um sentimento que não consigo afastar.

- A culpa é positiva, Pyá. Isto mostra que você é responsável. Mas ela também é destrutiva, se transformar-se em apego. Se alguém está apegado, seu corpo não está no mesmo lugar que sua mente. Você fica ausente do lugar onde você é mais necessário: o presente.

237

Page 238: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Compreendo. Se você está ausente, não está íntegro, está fragmentado. E, fragmentado, cometerá maus atos.

- Sua ausência e a tentativa de estar presente mental ou espiritualmente ao lado de Avaeté tenta curar, no fundo, uma espécie de negligência...

- É isso, Tiago. Essa palavra que você usou. Acho que ela toca o âmago. Quero compensar uma negligência minha. Uma falha minha. Uma imperfeição.

Ditas estas palavras, lembrei-me de diálogos que tive com Avaeté. Certa vez me disse que perfeição ou imperfeição não são palavras adequadas para se referir à Vida ou à natureza ou mesmo à humanidade. Conversamos sobre a impropriedade da necessidade da certeza, da correção, da perfeição ou da eficiência, todas as palavras que passaram a ter um sentido muito duvidoso quando passaram a referir-se a medidas externas do que isto seja. Estas medidas, muitas vezes ditadas e não refletidas perante a verdadeira medida interna das coisas, tornaram-se destrutivas e fragmentárias.

A mente eficiente que tem nos levado ao caos. A busca da verdade. “A” verdade. “A” única verdade. “O” único caminho. The only one right way.

“Num mundo livre, isto não faz sentido, não é mesmo, Tiago?” Os diversos sistemas de viver, os teko, são tão variados quanto o número de formas de vida. Não há um perfeito. Não há um único. Na variedade existe a riqueza. “Você, Pyá, com sua responsabilidade e sua liberdade, pode encontrar criativamente uma maneira de viver.” Assim como os inúmeros povos e seres que vivem e viveram neste planeta. Com sua liberdade, você pode criar. Com sua responsabilidade, você pode evitar destruir. Com ambas, você deixa a liberdade dos outros existirem. Você deixa. Você larga. Você se torna um largador. Você cria sem destruir. Você cria e deixa criar. Você protege o caminho dos outros. Você dá espaço.

- Acho que posso assumir a responsabilidade de criar o que eu estou aqui para criar e deixar Avaeté criar o que ele precisa criar – disse eu, finalmente.

- Creio que é um bom começo, Pyá. Siga seu caminho. Ele certamente reencontrará o de Avaeté. Ciente de que jamais se separaram.

238

Page 239: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Já estava escuro há um bom tempo, mas nossa vista já estava bem acostumada à noite. Quando você convive e visita a noite mais freqüentemente, seu olhar se acostuma, e já não há mais uma visão indistinta. Você distingue árvores, relevos, céu, terra, sombras e luz, sons e cheiros noturnos. Você deixa de temer os seres obscuros, porque a maioria deles é pertencente apenas à sua imaginação ou fantasias.

5

Pela manhã acordei numa espécie de leveza. Não conseguia descrevê-la, apesar de inconfundível, mas sabia de onde vinha. Vinha de uma nova postura. Com ela, seria possível emanar energia positiva que, tinha certeza, se estenderia a quilômetros de distância. Chamei Jaxy e Tiago, informando a eles que seria nossa última manhã juntos.

Senti vontade de contar a Tiago sobre todos os benfeitores que encontramos no caminho. Neste curto caminho que iniciei com Avaeté, já colecionamos um sem número de almas bondosas que nos ajudaram a crescer interiormente. Disse a Tiago que ele era mais uma destas almas. E que eu estava imensamente agradecido.

- Não me agradeça – disse Tiago. – Isto é retribuição. Por todas as almas bondosas que eu também encontrei.

Abraçamo-nos à beira da estrada e demos um “até breve” a cada outro. Tiago ainda deu-me instruções sobre como chegar a Sete Cidades. A partir de agora, a viagem passaria por outra paisagem. A caatinga.

- Sigam para o norte, para Sento Sé e Remanso, na Represa de Sobradinho, e depois para noroeste. Não deixem de passar na Serra da Capivara. Depois, a Transpiauí os levará a Sete Cidades. Vá, meu amigo. Siga seu caminho. E mandem notícias. Suas e do nosso amigo.

- Adeus, Tiago. Que a Vida o conserve.

- Adeus, Pyá. Adeus, Jaxy.

E rumamos para o sertão.

239

Page 240: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Treze

240

Page 241: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Tomei em minhas mãos o pedaço de couro que Avaeté me confiou. Segurei-o bem firme como que a apertar a mão de meu amigo. Guardei-o novamente em minha mochila e seguimos viagem. Da janela do ônibus, eu e Jaxy íamos nos dando conta da crescente secura da paisagem. Íamos, aos poucos, deixando matas irregulares do cerrado para ingressarmos numa área mais agreste, mais poeirenta, mais quente. Também as pessoas se transformavam. Passavam a usar mais chapéu, a ter a pele mais queimada e enrugada, usando sandálias de couro ou de borracha. Estas últimas, produzidas na base de dez pares por segundo.

Ouvia-se o rádio de um ou outro viajante. Pagode, axé, baião, xaxado, xote. “Minha vida é andar por este...” Mundão velho sem fronteiras. Quilômetros e quilômetros de estradas, rodoviárias, lugarejos e gente simples.

- Veja só, Jaxy, as pessoas. Você não encontra uma beleza simples nelas?

- Desculpe, Pyá, mas não entendo bem o que é isso, simples ou não simples. O que você quer dizer com isso?

Dei-me conta da mancada imediatamente. Simples ou sofisticado são noções minhas, não de Jaxy. Abandonei a idéia de imediato:

- Ah, bem, quero dizer apenas que elas são diferentes de todas as que já vimos em nossa viagem.

- Já estudei sobre eles, Pyá. Vocês os chamam de sertanejos e caboclos. São tipos mestiços, mistura de branco com índio.

- O que mais você sabe sobre eles, Jaxy?

- Tudo o que todos sabem no modo de estudo dos jurua, eu acho. Mas, no meio desta “massa de gente indistinta”, como vocês acham que elas são, há pessoas de muitas tribos que viveram por aqui, Pyá.

- Imagino que sim, Jaxy. Imagino estas terras, num certo momento, começando a ser cortadas por estradas de vaqueiros que vieram do litoral, talvez brancos pobres, entrando no agreste e no

241

Page 242: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

sertão, encontrando os nativos e mestiçando-se. Também se mestiçaram pelas bandeiras, que caçaram os nativos para escravizar.

- Aqui havia os Pimenteira, Cariri, Icó, Sucuru, Calabaças, Coremas, Payayá, Sapuya, Massacará e incontáveis outros. É o que me contou Karay Porã. Hoje, há meia dúzia em algumas terras indígenas demarcadas.

Seguimos olhando pela janela e para aquela gente companheira de viagem. A cada rodoviária, muitos desciam, muitos subiam. De Sento Sé, cruzamos a enorme represa de Sobradinho e seguimos por Remanso, por um misto de paisagem verde, serrana e desértica. A secura vai aos poucos sendo denunciada pela presença do mandacaru e do xique-xique.

Bastante tempo depois chegamos a São Raimundo Nonato. Paramos na cidade apenas o tempo suficiente de obter outro transporte até o Parque da Serra da Capivara. Tínhamos curiosidade em saber por que Avaeté nos recomendou a Serra da Capivara.

Não tardou em descobrirmos. No parque há uma espécie de museu a céu aberto, com lindas formações e, principalmente, onde há sítios arqueológicos e paleontológicos em profusão. Através deles, imaginam-se presença humana muitíssimo antiga, além de animais ancestrais.

O que é especialmente admirável, além da magistral caatinga, são as inscrições e desenhos rupestres. Um guia local disse, entretanto, que tanto uma quanto outra destas belezas sofreram desgastes acelerados em tempos recentes. A mata e os animais acabaram sendo quase extintos da região, colocando em risco os próprios sítios.

Mas o poder emana de tudo, ainda. Não pretendíamos acampar na área, por isso, aproveitamos o dia recebendo as energias e influências de homens e mulheres que viveram há milhares de anos.

- Você não tem a sensação de que pode quase tocar as pessoas que fizeram estas inscrições rupestres, Jaxy?

- É verdade. É como se o pincel, ou o que quer que a criatura que fez estas pinturas tenha usado, recém tivesse feito estes traços. Como será que viviam? O que pensavam?

- Não temos muita noção, Jaxy, mas dizem que este lugar árido foi floresta um dia.

242

Page 243: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Uma beleza diferente, mas, ainda assim, uma beleza divina... Talvez celebrassem isto.

- É provável. Vamos. Está ficando tarde e precisamos voltar à cidade – disse eu, já que a noite se aproximava.

Retornamos à cidade de cerca de 30.000 habitantes. Localizamos uma pousada simples e barata, mas aconchegante. Tomamos banho e jantamos no local. Logo a seguir, resolvemos descansar junto a uma varanda, com sofás e redes. O dono logo em seguida nos chamou:

- Sr. Pyá? Há uma mensagem para o senhor.

Mensagem? Quem teria nos descoberto neste local. Desconfiei que pudesse ser de Avaeté. Corri até o balcão. Abri rapidamente:

“Pyá:

Escrevo a pedido de Avaeté. Ele me pediu que enviasse esta mensagem alguns dias atrás. Pede que relate os acontecimentos a respeito da marcha. Tem havido sangrentos confrontos nos últimos momentos. Cerca de trezentas pessoas foram mortas e mais de mil feridas até agora. Mas o número certamente crescerá. Veja as imagens no vídeo anexo. [...]”

As imagens eram pavorosas. Um arrepio sombrio subiu por minha espinha e couro cabeludo. Milícias haviam atacado acampamentos de integrantes da marcha, sem poupar mulheres nem crianças. Explosões, incêndios e cadáveres apareciam nas imagens.

“Os eventos que culminaram no massacre começaram com uma tentativa de dispersar a marcha antes que chegasse ao ponto central dos conflitos de terras no sul da Bahia. Os participantes embrenharam-se nas matas para proteger-se. Como o caso ganhou notoriedade, mais pessoas de várias etnias agregaram-se, formando um contingente de cerca de 10.000 pessoas dirigindo-se e acampando ao redor da região. Pelo temor de perder o controle da situação, milícias ligadas extra-oficialmente aos fazendeiros e corporações fizeram ataques surpresa aos acampamentos, provocando o massacre. [...]”

Fiquei aterrorizado com o que acontecia. Pensava em Avaeté, mas também em todas aquelas pessoas.

243

Page 244: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

“[...] Ataques concomitantes ocorreram também às aldeias e comunidades de origem dos participantes da marcha. A autoria destes ataques não foi assumida, mas suspeita-se de uma ação das mesmas milícias. [...]”

Pelos relatos, o clima parecia de guerra civil. O evento, que era para ser uma mobilização pacífica, acabou tornando-se um conflito armado. Acabaram no meio do fogo cruzado mulheres, crianças e anciãos.

“[...] Os feridos, além dos mais velhos, mulheres e crianças, estão sendo encaminhados para uma zona global neutra, próximo a São Luís do Maranhão. Aqueles que não estão rumando na direção de São Luís estarão se juntando a outro movimento, com destino à Amazônia. Veja outras imagens. [...]”

As imagens de várias aldeias pelo continente eram horríveis. Casas em chamas, pessoas mortas pelo chão, caos. Os alvos dos assassinatos foram principalmente as lideranças. Temi por alguns daqueles que conheci durante nossa viagem. Temi pela vida de Avaeté.

“[...] Avaeté manda dizer que seu paradeiro e condições são desconhecidos. Manda dizer também para não se preocuparem e para que cuidem do seu tesouro. E que vocês serão necessários na ajuda aos feridos. Pediu para que sigam em direção a São Luís. Isto é só.

Atenciosamente,

Um amigo.”

- Jaxy, isto é terrível. Como saberemos do paradeiro de Avaeté?

- Não sei, Pyá. Eu nunca vi nem imaginei atrocidades como estas.

- Aproveitaram que as aldeias estavam desguarnecidas e atacaram. Que covardia!

- Por que isso acontece, Pyá?

- Eu não sei, Jaxy. Um ódio injustificável.

Injustificável, seguramente. Inexplicável, talvez não. Depois do enfraquecimento e incapacidade de sobrevivência dos Estados nacionais e regionais, criaram-se forças paramilitares para defender

244

Page 245: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

interesses particulares. Assim ocorreu com proprietários de terras, corporações e criminosos. Mesmo não ligadas diretamente a estes grupos, as milícias são custeadas por eles como serviço terceirizado de defesa.

Como os grupos comunitários e os governos locais estão em ascensão, incomodam cada vez mais aos grandes proprietários de terras. Um acirramento do conflito era uma questão de tempo.

Eu estava arrasado. Jaxy chorava por sua aldeia. Depois me perguntou:

- O que faremos, Pyá?

- Não podemos ficar aqui parados. Faremos o que Avaeté recomendou. Precisamos ajudar de alguma forma. Mas precisamos também descobrir o paradeiro de Avaeté.

- Como podemos ajudar?

- Não podemos correr perigo de vida. Avaeté não apoiaria isto. Não estamos preparados. Devemos evitar o local dos conflitos. Creio que devemos ir ao encontro dos feridos na região de São Luís.

2

Partimos na manhã seguinte para a região de São Luís. Tomamos um ônibus que seguia para o norte, em direção a Teresina, e depois seguia pelas estradas 316 e 135 até São Luís. Cerca de duzentos quilômetros antes do destino, começamos a ver os sinais da tragédia. Pessoas vindas das regiões em conflito deslocavam-se por centenas de quilômetros até ali. Vinham de várias maneiras possíveis, em veículos automotores, carroças ou a pé. Transportavam os feridos para aquela que seria a única zona pacífica no momento.

As cenas eram terríveis. Pessoas com queimaduras sérias, com membros quebrados ou extirpados e feridas sangrentas. Havia dor e desespero. Mulheres e crianças marchavam chorando. Choravam por suas aldeias, por seus entes queridos, por seus amigos, pela sua vida, pela injustiça e pela falta de perspectivas. Diziam que havia gente presa e desaparecida.

Próximo a São Luís a situação ia se tornando caótica. Apesar da presença de entidades de ajuda global, o número de necessitados

245

Page 246: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

crescia a cada dia. Havia hospitais de campanha para tratar dos feridos. Os demais eram encaminhados para ginásios, escolas e acampamentos. Alimentação também era provida, vindo tanto do interior do continente como de fora. A população local auxiliava como podia. Muitas vezes, seu maior apoio eram o carinho e a alegria no cuidado com as pessoas.

Procuramos de imediato colocação para ajudar nos hospitais improvisados. Passamos a fazer de tudo um pouco. Ajudávamos na logística, na organização dos medicamentos e suprimentos, no controle das informações dos pacientes e, quando necessário, como auxiliares no atendimento aos enfermos. À noite, servíamos de companhia a alguns pacientes.

Nas conversas, descobrimos os detalhes do que aconteceu. Cenas sórdidas nos eram descritas, envolvendo abusos, torturas, violência física, moral e sexual. Mulheres e até crianças foram estupradas. No caso das aldeias, casas e plantações foram queimadas e destruídas.

Nem todos os mortos puderam ter o destino que seus entes queridos desejavam. Muitos corpos não foram encontrados. Entre os localizados, poucos puderam rumar para suas comunidades de origem. A maioria seguia para São Luís, onde estão sendo sepultados, ou foram enterrados nos próprios campos de batalha.

Há muitos desaparecidos e poucas são as informações sobre o seus paradeiros. Conversamos com pessoas de aldeias que visitamos e, aos poucos, fomos entrando em contato com pessoas que conhecemos e que nos acolheram em nossa viagem. Uma delas nos disse:

- Acabaram com muitos de nós. No meu grupo éramos trinta. Sobraram dois.

Eram de muitas etnias. Estavam ali, com corpos rasgados e alma dilacerada. Grandes famílias desfeitas. Um a um dos sobreviventes eram tratados por equipes locais e estrangeiras e por xamãs. Casas de reza improvisadas foram erguidas para que houvesse orações e cantos pelos enfermos. Toda espécie de ervas e chás eram providenciados.

Sempre que podíamos, íamos de cama em cama conversar com os feridos. Naquele cenário horroroso e lamentável, entrávamos em contato com a descrição e os resultados daquelas repugnantes

246

Page 247: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

batalhas. De repente, Jaxy passou por uma das camas e reconheceu um homem ferido no abdômen. Senti seu rosto torcer-se de pavor e tristeza:

- Karay Porã! Meu querido Karay! – e pegou sua mão e desatou a chorar copiosamente.

Era Karay Porã, líder da aldeia de Morro Mirim de Dentro, a aldeia de Jaxy. Olhei para aquele homem desfigurado e moribundo e vi nele todos os Karay, todos os xamãs, todos os sábios e todos os amigos de todas as aldeias que nos acolheram e de todas as demais aldeias deste continente. Vi, no seu sofrimento, a perda da atenção, do cuidado, do carinho e da sabedoria que se iam com estes homens e mulheres que cuidaram de nós e que trataram de cultivar e manter sistemas de vida que poderiam servir de exemplos para o mundo. Vi esvair-se uma riqueza sem fim, como o sangue que se esvaia daquele corpo. Vi os guardiões da vida derrotados. Como uma capivara atropelada, morta na beira de uma estrada.

Jaxy chorava como quem chora a morte de um pai. Suas lágrimas misturavam-se no chão ao sangue derramado por Karay Porã. Tudo o que poderia ser feito havia sido com aquele homem. Ele estava nos últimos suspiros. De repente, entreabriu os olhos. Seu rosto estava desfigurado e inchado. Jaxy falou com voz terna:

- Meu bom e sagrado líder. Você é seu nome e, assim sendo, é a medida de si mesmo, meu Karay.

Imaginei que as palavras de Jaxy foram, de alguma maneira, ritualizadas, pois havia uma reverência amorosa nelas.

- Tupã o proteja, meu filho – respondeu Karay Porã, com voz fraca.

Perguntei a Karay, desolado:

- Por que isso tudo, Karay? Por que esse horror, essas atrocidades?

Apesar da debilidade de Karay, passou a falar com firmeza:

- Não fique desconsolado, Pyá. Apesar da tristeza do que está acontecendo, isto tudo tem um caráter simbólico e educativo. Este evento é a síntese do que vem acontecendo há muitos anos. É como que o ápice de um mundo em colapso. Um pingo que sintetiza, um

247

Page 248: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

momento que condensa, um acontecimento que comprime uma marcha, um movimento. O movimento de séculos.

Impressionei-me como Karay, naquelas circunstâncias, pudesse ter tal visão tão transcendente daquilo tudo. Imaginar que deveria estar sentindo tristeza, melancolia, desespero ou ódio. Mas não transparecia nada disso. Perguntei-me como poderia aquilo. Karay falou:

- Quando você vê a sua morte, Pyá, você vê sua liberdade. Quando você a vê, nos olhos do seu rival, você fica diante do seu próprio reflexo. Este é o momento em que se diferencia um homem comum de um guerreiro. Para o guerreiro, este é o momento em que tudo se dissolve definitivamente. Não há mais bom nem mau. Não há mais separação ou integração. Não há mais quantidades a serem contabilizadas. Apenas o fogo que tudo queima e tudo transforma. Esta é a liberdade suprema.

Eu e Jaxy ouvíamos atentos a voz daquele homem sábio. Parecia que tratava de dar-nos sua última grande lição.

- Estou lhes falando como um guerreiro que sou, porque meus benfeitores assim designaram. Um guerreiro não é aquele que vive da guerra. Um guerreiro não é um herói que a todos os males vence. Um guerreiro é um homem comum que não é comum. E não é comum porque foi capaz de viver a liberdade até a sua morte. Que é quando encontrará a liberdade sem medidas.

Então se dirigiu a mim:

- Seu benfeitor, Pyá, colocou-o no caminho do guerreiro. Esse é um caminho sem volta. No caminho do guerreiro, você está na constante busca da iluminação e da liberdade. Não a liberdade relativa, de poder fazer aquilo que bem quiser. Você estará sempre à busca da liberdade verdadeira, aquela que existe somente dentro de você mesmo. Avaeté é o maior exemplo do que pode ser um verdadeiro guerreiro. Não pelas suas atitudes exteriores. Mas pelo seu caráter interior. Tudo o que você vê como manifestações e comportamentos de Avaeté não é uma fachada arquitetada. São as manifestações de uma vida interior rica e livre. Assim como ser um viajante de verdade não é uma atitude exterior. É um profundo aspecto do seu próprio interior. E ninguém é isto na sua forma mais exemplar do que Avaeté.

248

Page 249: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Apesar de estar com meu amigo presente na memória constantemente, passei a pensar nele de maneira muito transformadora. Sentia-o, agora, mais que nunca, uma parte de mim mesmo. Senti um contentamento interno ao perceber que, se por acaso Avaeté estiver morto, ele na verdade jamais morrerá enquanto viver em mim. Avaeté não é mais apenas um grande amigo. Ele é uma parte indistinta de mim mesmo. Karay continuou:

- Sinto que se ele estiver, agora, cara a cara com a sua própria morte, ele estará pronto. Assim como eu, neste exato momento. Não sei do seu paradeiro, mas sinto que há poucas esperanças de encontrá-lo com vida. Só há um lugar onde isto pode ocorrer. Esse lugar é num ponto alto, numa confluência de fronteiras, de difícil acesso. Você sabe onde é. Se você deseja vê-lo, tem que ir a esse lugar e saber. De qualquer maneira, Pyá, se Avaeté está ou não morto, continue seu caminho.

Então se virou para Jaxy:

- Um dia você também terá um benfeitor, Jaxy. Ainda é muito jovem, não é capaz de compreender o que é o caminho do guerreiro. Mas tem a chama e isto me conforta. Daqui a alguns anos você receberá o bastão. Receberá o teko de um guerreiro.

De repente, sua voz ficou muito fraca. Suas últimas palavras foram as seguintes:

- Foi um prazer ter conhecido e vivido com vocês. Sigam em paz e no caminho do coração. No país azul nos encontraremos.

E cerrou os olhos, dando o seu último suspiro.

3

Eu e Jaxy rumamos para a casa de rezas. Pessoas de muitas tribos rezavam ou cantavam, cada uma à sua maneira. Jaxy se sentou no chão e rezava e cantava um lamento em Guarani. Rezei da forma que eu sabia pelo espírito de Karay Porã e de todos os que se foram naqueles dias sangrentos. Passamos a noite na opy.

No dia seguinte, acompanhamos o enterro de algumas pessoas, entre elas Karay Porã. Este líder deixa órfãos vários filhos da aldeia de Morro Mirim de Dentro e vários filhos adotivos, eu entre eles. Logo

249

Page 250: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

após o enterro, reuni-me com Jaxy para determinarmos quando partiríamos para Monte Roraima:

- Nosso Karay disse que se desejarmos encontrar Avaeté, isto seria em um lugar alto, uma “confluência de fronteiras, de difícil acesso”. Só pode ser o Monte Roraima, Jaxy. No caminho, provavelmente encontraremos aqueles que marcharam e refugiaram-se na Amazônia.

- Estou com saudades de Avaeté, Pyá. Avaeté não pode morrer!

- Eu também sinto muito sua falta, Jaxy.

- Quando partiremos?

- Ajudaremos aqui por mais três ou quatro dias e depois nos abasteceremos para a longa travessia até nosso destino.

Assim foi dito e assim foi feito. Sem ter mais notícias de pessoas conhecidas, só notávamos a chegada de mais e mais refugiados e feridos que vinham do sul da Bahia. O hospital de campanha e os acampamentos dos refugiados estavam lotados. Ajudamos como pudemos, dormindo poucas horas por noite, ainda por quase uma semana, quando decidimos que era hora de partir. Passamos a última tarde e noite com os preparativos. No dia seguinte, bem cedo, colocamos o pé na estrada para encontrar Avaeté.

250

Page 251: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Quatorze

251

Page 252: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Desta vez, colocar o pé na estrada tinha uma conotação diferente. Não iríamos em busca do asfalto ou da estrada de terra, mas da estrada de ferro. Compramos passagens para nos embrenhar pela Amazônia, pelo menos até Marabá, na beira do Rio Tocantins, junto à represa de Tucuruí.

Na sua idéia de penetrar a Amazônia, você acha que, de uma hora para outra, vai topar com uma mata impenetrável, onde você só consegue ir adiante pelo rio. Mas a coisa não é bem assim.

Quem nos ajudou a entender isto, bem antes de chegar ao local onde as coisas acontecem, foi um jornalista que estava a caminho de Paraupebas. O conhecemos a bordo da classe econômica do trem de passageiros. Era distinto da maioria, menos pelas roupas do que pelos óculos e pelo bloco de anotações.

Não se identificou, mas foi uma ótima companhia de viagem. Primeiro, trocamos impressões sobre os acontecimentos do sul da Bahia. Ele esteve presente em São Luís para buscar informações sobre os fatos e conectá-los às suas investigações sobre a situação na “fronteira agrícola” amazônica. Para ele, o que aconteceu no sul da Bahia deve acontecer ainda multiplicado várias vezes, na medida em que o “desenvolvimento” chegar ao coração do norte do continente.

- Falo “desenvolvimento”, assim, entre aspas, porque é um tipo de progresso do Século XIX. Veja como as coisas acontecem – chamou a minha atenção e de Jaxy para sua explicação.

“A primeira coisa que se faz é rasgar tudo com estradas. Rodovias e ferrovias. Rasgar é uma palavra bastante literal. São rasgados ecossistemas e suas gentes. Você divide tudo com a estrada, afetando populações nativas, animais, entrelaçamento de vegetação e cursos d’água. É como uma cerca, uma barreira, que você coloca ao longo de quilômetros e quilômetros.

“Analisemos, em específico, o caso da ferrovia. Típico transporte da idade do ferro. Sabia que esta estrada em que viajamos é como uma bomba de sucção? Pois é, você pode pensar assim. Ela é uma bomba de sucção que extrai da sua volta minério de ferro e muitos outros metais, além de madeira, cimento, combustível, fertilizantes, produtos siderúrgicos e agrícolas, principalmente soja. Mas, note

252

Page 253: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

bem, é uma bomba de dois sentidos. Porque ela também leva, no sentido inverso, contingentes enormes de carne humana. Carne humana miserável, que precisa do emprego barato que existe no interior da bomba.”

Rapaz, que imagem. Esta lombriga sugadora de mil quilômetros de comprimento alimenta lombrigas asiáticas que, por sua vez, nos alimentam de tudo o quanto é maravilhoso: carros, eletrodomésticos, comida. Tudo bem embaladinho, com bastante papel e plástico. E as lombrigas se alimentam de quê? Do metal que tem debaixo da terra, da mata e da carne humana.

Enquanto nos deslocávamos pacientemente por aquela estrada sem fim, olhávamos para os passageiros, famílias inteiras pobres, comprando um prato de comida barato pelas paradas do trem, a única alimentação possível. Um prato tinha que servir para quatro pessoas. Elas iriam, nos destinos, sonhar com uma vida nova em cidades novas inchadas de miséria. Nosso amigo jornalista seguiu, fazendo a parte do guia turístico daquelas atrações deprimentes:

- As pessoas sonham trabalhar nas mandíbulas do verme. Você pode vê-las ao longo destas terras. São, por exemplo, fornos high-tech ou primitivos queimando mata. Esta mata é retirada por motoserras e tratores da volta das estradas. Você vê também as enormes áreas de plantio e pastagem que depois se instalam no lugar. Note a quantidade enorme de fazendas aqui neste mapa.

Apresentou-nos um mapa dinâmico mostrando o que vem acontecendo com a área. Vistos de cerca de trezentos quilômetros afastado da crosta terrestre, parece realmente que vários vermes estão devorando a região. O padrão que deixam é de áreas raspadas se alastrando perpendiculares a infinitas estradas. Vêem-se também imagens diurnas de massas de fumaça, e noturnas com pontos laranja e vermelho ardendo nos mesmos lugares.

- Meu amigo, o massacre do sul da Bahia é um massacre visível. Este aqui, que é várias vezes mais potente, não aparece porque ainda é silencioso. Mas creio que não o será por muito tempo. Pelo menos é para isto que trabalho.

Ele descreveu-nos por horas e horas coisas que estão abaixo da superfície dos acontecimentos, falando da história, dos padrões e do que motiva todo esse processo, tudo de uma maneira muito dinâmica. Disse-nos, ainda, que é difícil trabalhar honestamente com

253

Page 254: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

esta visão, pois a imprensa e as pessoas em geral não estão interessadas em entender profundamente as coisas. Elas apenas querem consumir manchetes e tirar conclusões definitivas e apressadas. Ninguém tem tempo nem disposição para levantar o tapete. Correm o risco de enxergar seu próprio rabo sob ele.

De repente, olhei para o lado e vi Jaxy chorando. Ele estava com o olhar vidrado para fora da janela, a cabeça encostada no vidro e com as lágrimas rolando pelo rosto e peito.

- O que foi, Jaxy? O que aconteceu? – perguntei, surpreso com a sua expressão.

- Você não imagina, Pyá, o que significam estas manchas na terra. Com elas, desaparecem milhões de vidas. E com a morte de toda esta vida, vão-se meus irmãos...

Jaxy olhava o mapa e acariciava cada mancha esbranquiçada de terreno. Aquelas áreas eram como que manchas na pele de um ser vivo, como se fossem o câncer. Sob seus dedos imaginava milhões de plantas, dezenas de milhares de animais e incontáveis vidas humanas que acabavam aniquiladas, expulsas ou reduzidas. Jaxy pensava nos irmãos índios, na sua sabedoria, seu patrimônio, sua riqueza, seus sistemas de vida, sua cultura, seus cantos, suas alegrias, sua feliz ingenuidade. Tudo isto destruído pela completa falta de coração e consciência de um gigante verme onipotente.

Senti sua tragédia pessoal mais minha do que nunca. Sentia-me irmão dos irmãos de Jaxy. Enxerguei-me segurando nos braços estes irmãos. Vi Avaeté nos meus braços. E abracei Jaxy para nos confortarmos.

2

Marabá é uma cidade de 200.000 habitantes que, meio século atrás, não passava de 12.000. O povo é de uma alegre morenice. Não se importa muito com elucubrações a respeito do fim da floresta. Apenas vive. Fomos até a praia para esticar as pernas daquela viagem que parecia sem fim. Dormimos onde conseguimos e zarpamos na manhã seguinte para a estrada 230, a Transamazônica.

Nossa carona era de uma 4 x 4 antiga. É uma estrada medonha. De terra e com pontes de madeira, tem trechos intransitáveis por

254

Page 255: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

quilômetros devido à lama. Nossa carona nesta viagem era feita de um viajante acompanhado do seu irmão. Prometeu que seriam vários dias de travessia. Perguntei se tinha notícias dos acontecimentos das últimas semanas. Disse que pouca coisa.

- Já vivo rodeado de informações demais. Não tenho disposição para jornais.

Informou que ele e o irmão eram investigadores particulares, mas que no momento estavam desfrutando suas férias. Falei-lhes um pouco sobre o que estava acontecendo e o que testemunhamos em São Luís, mais em conta de manter uma conversa do que de fazer um relatório detalhado dos acontecimentos. Informei que talvez houvesse movimentações na direção da Amazônia, de modo que poderia haver caminhantes pela estrada.

- Duvido, amigo – retrucou o investigador. Esta estrada é muito visível. Se seus amigos de marcha são espertos, estarão se deslocando dispersos para algum ponto de encontro. Deslocar-se por aqui não é uma boa idéia para um movimento desse tipo. A estrada estaria toda bloqueada por quem não iria gostar da coisa.

Não tardamos em notar isto. Poucos quilômetros antes de uma cidade chamada Parajá, um grupo de homens armados parou nossa caminhonete. Tivemos que fazer com que Jaxy se escondesse para não levantar suspeitas. Foram alguns momentos de respiração presa e susto. Os homens, por fim, acreditaram que éramos pescadores, por todo o material que havia no carro, e deixaram-nos seguir viagem.

Comecei a achar aquilo um pouco assustador e comecei a ficar preocupado com nossas andanças por estas terras. O investigador alertou:

- Amigo, esta é uma terra sem lei. Ou melhor, as leis daqui são diferentes. Fique atento.

Conversamos um pouco sobre a realidade daquele lugar. Os irmãos nos informaram um pouco do que ocorre:

- Os primeiros a se apossar da terra são os madeireiros. Eles abrem estradas floresta adentro e extraem as árvores mais valorizadas. Esta é a atividade de maior ganho, empregando muita gente. Isto acontece durante cerca de cinco anos. Depois disso, a mata, que já não possui mais madeira valiosa, mas que ainda é

255

Page 256: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

densa, é repassada a fazendeiros, muitos com ligações com os próprios madeireiros. Os fazendeiros, então, põem fogo na floresta para plantar soja ou pasto para o gado. O número de trabalhadores diminui. Enquanto isso, providenciam-se títulos de terras clandestinos. Ãhn? Você perguntou sobre o que acontece com os animais? Pouca gente sabe. Acho que evaporam...

- É sempre assim que acontece? – perguntei, lembrando das imagens de gigantescos tratores derrubando a floresta.

- Não. Às vezes eles não têm tempo de retirar a madeira mais valiosa. Tocam fogo direto. Outras vezes, a derrubada é feita por imensos bulldozers que, aos pares e com uma corrente entre eles, derrubam a floresta. Depois, fogo.

Rumávamos por aquela estrada desoladora escutando rádio e conversando. Tempos depois, comecei a sentir uma secura intensa e irritação na garganta. Imaginei que era por causa do tempo ou do diesel do motor, mas descobri que era outro o motivo:

- A zona de queimadas está bastante próxima da estrada neste trecho, amigos. Veja, há até uma bruma.

Era verdade. O sol estava mais fraco e tinha uma luminosidade laranja-esbranquiçada. Os irmãos ficaram um pouco surpresos com esta proximidade da fumaça. Disseram que a expansão da zona agrícola há muito já havia adentrado perpendicularmente à estrada. Pouca floresta restava às margens da rodovia. Perguntaram se gostaríamos de testemunhar a queimada. Dissemos que sim.

Pouco adiante, dobramos à esquerda e entramos em uma estrada precária. Rodamos cerca de uma hora até enxergar alguns focos. De longe, parece fumaça de cogumelos atômicos curvados pelo vento. De perto, enxergamos a floresta ardendo rapidamente, mais rápido que imaginava. Árvores de várias alturas iam-se consumindo.

Jaxy, assim como eu, nunca havia testemunhado de perto uma queima de floresta tão gigantesca. Estava transtornado. A fuligem colava nos nossos rostos pelo suor, transfigurando-os. De repente, Jaxy apontou para uma árvore em chamas, com quase trinta metros de altura. Era uma castanheira agonizante. É uma espécie símbolo da região e sagrada para muitos povos. Jaxy, em lágrimas pretas, apenas lamentou:

256

Page 257: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Meus irmãos estão ardendo no interior daquela castanheira...

3

Nesta viagem longa e morosa, temos tempo de sobra para remoer e rememorar a vida. Desde que Avaeté me convidou para esta aventura, eu experimentei muitas formas diferentes de olhar para as coisas e muitas maneiras diferentes de sentir. Várias experiências de vida me foram proporcionadas pelo meu amigo. Agora, eu estou aqui, vivendo uma nova experiência: a violência a acontecer diante dos meus olhos.

Você tem sentimentos controversos. Sente, por um lado, a impotência de reagir a isto. Você deseja que as coisas sejam mais justas, mas não tem os instrumentos para tal. Sente que a injustiça irá adiante. E fica com raiva por isto.

De outro lado, seu julgamento apressado faz você acreditar que tenha que se dedicar a alguma causa estabelecida. Algum “-ismo” que o una a outros que também estejam inconformados. Ambientalismo, socialismo, empreendedorismo, estadismo, liberalismo, mecanicismo, cientificismo, racionalismo, biologismo. “Ideologia-a-a, eu quero uma para viver...”

Escolhemos para passar aquela noite à beira de um dos rios da região. Armamos acampamento e preparamos fogueira. Estabelecemo-nos junto à curva do rio. Os investigadores puseram-se a pescar. Eu e Jaxy fomos fazer reconhecimento da área.

Como um guerreiro sem armas veria a situação? O que faria? O que faria Avaeté? Quase consigo tocar seu pensamento: “Um guerreiro sem armas reconhece o conflito e se reconhece nele. Depois, transcende-o.”

Encontramos um local alto para contemplar a região. O rio onde estamos acampados serpenteia por quilômetros. Suas águas são escuras. Correm, ainda em paz, para o norte.

- Jaxy, um guerreiro sem armas luta contra seu desejo de vingança, contra sua vontade de fazer justiça unilateral. Um guerreiro sem armas reconhece as forças que existem no mundo e reconhece seu próprio caminho.

257

Page 258: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- O que você quer dizer com isso, Pyá? Fala sobre o que deveríamos fazer a respeito destes massacres diários?

- Sim, esta violência que temos testemunhado. A gente se sente responsável. Acha que precisa fazer alguma coisa. Ao mesmo tempo, se vê impotente para mediar ou julgar o conflito.

As águas daquele rio vão se engrossando ao longo do seu caminho. Encontram-se com outros rios e riachos. Muitos de águas barrentas que, ao encontrarem-se, correm lado a lado até entrelaçarem-se, o turvo com o barrento, trazendo à vista um novo tom.

- Talvez não seja isso que deva ser feito, Pyá – alertou Jaxy.

- Você tem razão. A gente acha que tem que agir bem aqui, no local do conflito. Mas isto tudo são apenas os sintomas de muitas coisas que estão sob a superfície.

- Temos que achar nosso caminho neste mundo, não é mesmo Pyá?

- É, precisamos fazer isto. Nosso lugar, meu, seu, de Avaeté, não é aqui, no fervor dos acontecimentos, mas nas suas raízes. Nossa responsabilidade deve ser uma responsabilidade esclarecida.

Aquelas águas caudalosas, que vão se engrossando pelo encontro de outras águas, vai finalmente encontrar o mar. O mar verde as receberá e se entrelaçarão. Na parte de cima, ondas de poder poderão até derrubar árvores. A estrondosa onda, a pororoca, há milênios vive das forças do fluxo das águas.

- Compreendendo a natureza profunda deste mundo, Jaxy, compreenderemos que o mundo saberá cuidar de si mesmo, sem a necessidade de o controlarmos. Nosso papel é cooperando, influenciando e agindo de maneira não-violenta em outros níveis.

- Meus antepassados há séculos sonham com a pacificação dos brancos – lamentou Jaxy.

- Essa pacificação só ocorrerá com esclarecimento. O esclarecimento que liberta e pacifica.

Ficamos ali por horas a conversar sobre o mundo e sobre reconhecer o próprio papel nele. Perdemos totalmente a noção do tempo. Não sentimos o cair da noite nem mesmo a picada dos mosquitos. Quando nos demos conta, era escuro e estávamos com a

258

Page 259: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

pele completamente empipocada. Retornamos ao acampamento para nos abrigar ao fogo e comer peixe.

No dia seguinte, partimos novamente por aquela estrada poeirenta, barrenta e fumacenta. Estivemos nela por horas e dias. Dias que pareciam desoladoramente extensos. Às vezes sentia enjôo, sem saber se era pelo cheiro de diesel e outros “cheiros” da estrada, ou se eu estava de alguma forma debilitado. Precisava descansar em uma cama abrigada para compensar os vários dias nos bancos duros daquele veículo.

Alegramo-nos um pouco quando avistamos as placas com a distância até Itaituba informando menos de duzentos quilômetros para o destino. De Itaituba pretendíamos tomar um barco e subir os rios Tapajós, Amazonas e Trombetas, até chegar à localidade de Porteira.

Ao chegar a Itaituba, nos despedimos daqueles irmãos que nos ajudaram a chegar ali. Desejaram-nos sorte e, antes que partíssemos, recomendaram:

- Sabemos que pretendem ir até a região do Roraima. Tenham cuidado. A coisa aqui, no sul e sudeste da Amazônia, está complicada. Mas lá, no norte, passou a ser um lugar pior. Há municípios que chegam a ter mais de 2.000 focos de queimadas por ano. Mais de metade da floresta já se foi. E a violência pode ser mais cruel. Cuidem-se e boa viagem, amigos.

- Obrigado pelo conselho. Boa viagem, investigadores. Sigam em paz – dissemos, despedindo-nos.

4

Nossa passagem por Itaituba durou uma tarde e uma noite. O suficiente para recuperação daquela jornada transamazônica. Jantamos num boteco próximo ao cais e dormimos numa paragem para viajantes. A cama foi um presente. Apesar de feita de palha, foi maravilhosa para recuperação das costas. No dia seguinte, partiria a chalana para Santarém, através do Rio Tapajós.

Chegamos ao cais do porto bem antes da partida da condução fluvial. O barco possuía uma área central com redes e bancos, uma área superior apenas com bancos e uma área inferior com

259

Page 260: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

instalações precárias. Famílias numerosas se deslocavam por aquele meio de transporte, descendo o Tapajós.

Pelo curso do rio havia ilhas, igarapés, bancos de areia e praias. Dezenas de comunidades ribeirinhas se destacavam na paisagem, tanto de dia como de noite. Nomes pitorescos como Lago do Limão, Brasília Legal, Sumaúma e até Fordlândia desfilavam pela beira do rio.

Você acompanha tudo isto deitado numa rede, sendo embalado pelo balançar da chalana. Seguido chove. É uma chuva por vezes intensa, mas tranqüila.

Conversava com Jaxy sobre o ir e vir daquela gente cabocla através do rio. Toda a Amazônia se desloca desta maneira. Alguns poucos voam. Outros poucos se aventuram pelas estradas. E por falar nisso, por quais estradas andaria Avaeté? Coloquei a mão dentro da minha mochila para certificar-me de que o tesouro que Avaeté me confiou ainda estava lá. Sim. Estava lá. Lembrar de Avaeté e da possibilidade de ele estar passando por dificuldades me trouxe um gosto amargo na boca. Ou seria azedo? Não, acho que o azedume da minha boca é de enjôo. “Uh, acho que estou passando mal, Jaxy.” Comecei a visitar as bordas do barco com maior freqüência.

O pôr e o nascer do sol no rio são lindos. Um roxo-alaranjado colore o céu. Mas eu não estava em condições de apreciá-los. Nem chá parava no estômago. Tudo era devolvido ao rio. Na medida em que avançávamos por aquelas águas, meu estado foi piorando e passei a sentir calafrios, tremores e dores de cabeça. A febre subiu. Mas, depois de algum tempo, baixou.

O fato é que aqueles sintomas iam e vinham. Às vezes parecia bem. Outras vezes, eles voltavam. Algumas pessoas disseram que poderia ser malária. Imaginei o mesmo, porque, acompanhado disto, havia fraqueza, aspectos de desidratação e pressão baixa.

Chegamos a Santarém e a primeira providência foi buscar um posto médico. O diagnóstico parecia inequívoco. O doutor orientou-me para o uso de um determinado medicamento que deveria ser administrado sem interrupção. Prontifiquei-me a seguir suas orientações e seguimos novamente para o cais. Precisávamos alcançar Porteiras, a última posição navegável subindo o rio Trombetas.

260

Page 261: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Deixamos a movimentada Santarém encontrando o grande Rio Amazonas. Depois, saímos para o Trombetas para chegar à localidade de destino, o que implicaria ainda em mais duzentos e sessenta quilômetros.

Se o Amazonas é gigante, o leito do Rio Trombetas é, por sua vez, mais estreito e dividido por várias ilhas finas e compridas. Vários barcos enormes de carga são vistos navegando por aqui, principalmente portando minério.

Navegando por este rio, tive a impressão de me sentir melhor. Mas foi uma impressão passageira. De súbito, um vento oeste fez a chalana balançar forte e isto me enjoou novamente. Voltei a ter sintomas fortes da enfermidade. Comecei a me sentir fraco. Jaxy lembrou os sinais da natureza:

- Não gosto disso, Pyá. O vento está soprando na direção oeste, do lado que o sol se põe. É a direção da extinção, da partida, do perecimento. É o sinal da morte.

- Não se preocupe, Jaxy. Eu sobreviverei. Creio que a medicação ainda não fez efeito completo.

- Eu não acredito por completo na medicina jurua. Você precisa ser examinado por um xamã.

- Eu sei, Jaxy. Mas precisamos chegar logo ao Monte Roraima. Assim que encontrarmos Avaeté, poderemos ir ver um xamã.

- Está bem. Mas que fique registrado que eu o avisei.

Ele ficou um pouco preocupado com minha postergação. Pensou um pouco, olhou para o rio e disse:

- Pyá, você precisa se conservar e ajudar os outros a conservá-lo. Hoje minha vida depende da sua e talvez a sua da minha. Nosso futuro depende de deixar-nos cuidar uns dos outros. Eu gostava e admirava demais Avaeté, e isto ainda acontece, mas nestes dias todos encontrei um novo benfeitor. Este benfeitor é você, Pyá. Você é um tremendo amigo.

Fui tomado de surpresa por aquela declaração. Sentia-me responsável por Jaxy e procurava ser um bom companheiro de viagem. Mas só agora começava a compreender que também já vivemos algumas aventuras juntos e, em todas elas, um dependia do outro. Começamos a ser mais do que simples companheiros de

261

Page 262: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

viagem. Éramos amigos, como se fôssemos irmãos, quase que como pai e filho.

Abracei forte Jaxy e disse:

- Nós vamos achar o caminho que nos levará de volta a Avaeté. Seguiremos juntos. E quando isto acontecer, seremos uma família. Uma família que visita seus outros muitos familiares, em aventuras por este mundo afora.

5

Porteira é como a porta de entrada para um destes muitos fins-de-mundo que existem. Dali, o negócio era pegar carona em algum dos raros caminhões que seguem pela 163 e Perimetral Norte. A estrada é praticamente uma trilha perdida na floresta, que ruma para o norte ao longo do Trombetas e faz uma curva acentuada para oeste, cruzando o rio. Dali, asfalto só muitos quilômetros adiante, depois de Caroebe. A viagem foi difícil, tanto pela estrada, quanto pela solidão e medo que o sentimento de isolamento passa, assim como pelos acessos cada vez mais freqüentes de fraqueza e dores que a doença trazia. Sentia que estava numa corrida contra o tempo, pois precisava chegar ao Monte Roraima o mais breve possível. Tinha certeza que a presença de Avaeté iria me fazer melhorar.

Às vezes, sofria um “apagão”. Não sei se desmaiava ou dormia. A verdade é que a viagem foi ficando entrecortada. Às vezes tinha razoável consciência do transitar, da estrada, dos acontecimentos. Outras vezes, não sabia se o que via era sonho, realidade ou uma mistura tenebrosa de ambos.

Disse a Jaxy que precisávamos chegar primeiro a Boa Vista. De lá, precisaríamos informações sobre alguma caravana de viajantes que chegasse ao Roraima. Sabia que teríamos que caminhar um bom trecho a pé, e isto me preocupava, pois não sabia se teria condições para fazê-lo.

Três dias depois de passar por Porteira, chegamos a Boa Vista. Não foi difícil localizar um ponto de informações sobre expedições ao nosso destino. Além disso, tivemos a sorte de nos unir a uma expedição que partiria em dois dias. Jaxy providenciou algumas provisões enquanto eu recebia algum tratamento no hospital. O diagnóstico continuava sendo o de malária e fui ordenado a fazer

262

Page 263: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

repouso. Fingi que obedeceria e saí de lá com mais uma carga de químicos.

Na hora e local indicados, encontramos o pequeno grupo de viajantes que incluía tipos diversos. Nosso deslocamento incluía acesso a algumas aldeias até a aldeia de Paraytepui. De lá, os nativos Pemón nos ajudariam na rampa de acesso ao monte.

Consegui me manter relativamente altivo, para que o grupo não percebesse sinais de que estivesse enfermo. Não gostaria de ser deixado para trás àquelas alturas. Precisava, e muito, encontrar Avaeté.

A trilha é de savana, com um terreno irregular que castiga o viajante. A caminhada até a base do morro seria de vinte e dois quilômetros, exigindo dois dias até lá. Depois, até o cume, mais dez horas.

Minha primeira queda aconteceu quando já havia se passado seis horas de caminhada. Os companheiros de viagem perguntaram se havia algo errado. Eu disse que havia tido uma queda de pressão pelo calor e que não se preocupassem. Os nativos Pemón que nos acompanhavam permaneceram quietos, com olhar desconfiado. Acho que tinham uma noção mais concreta do que se passava, mas não interferiram.

A paisagem é linda, apesar da camisa enrolada sobre a cabeça que usava como proteção, impedindo uma visão mais panorâmica. Às vezes tinha alguns calafrios, mas procurava me manter impassível. A caminhada à tarde é mais dura e começava a sentir uma fraqueza crescente que dificultava até contornar uma pedra ou árvore retorcida pelo caminho.

Voltei a cair e praticamente perder a consciência por alguns segundos. Jaxy me segurou para que não me espatifasse no chão. Uma fratura não era aconselhável, pelas dificuldades do terreno e por impedir-nos de chegar ao cume.

Tentei me recuperar o mais brevemente possível para não atrapalhar a caminhada. Um dos viajantes perguntou por que estava determinado a chegar ao cume naquelas condições. Para economizar energia, apenas respondi:

- Vou ao encontro do meu amigo índio.

263

Page 264: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Você marcou um encontro no topo do Roraima? Por que não escolheu um local de mais fácil acesso?

- Ele estará lá. Aquele é o lugar – resumi, sem maiores explicações.

Mais alguns quilômetros de caminhada e paramos para montar acampamento. Armaram-se as barracas e preparou-se o fogo. Enquanto a madeira ardia, eu procurava aconchego e calor. Então, logo após o jantar, o líder da expedição anunciou:

- Vou lhes contar uma lenda sobre este local. Aqui, no Monte Roraima, tem seu lugar a morada de Macunaíma. Ela começa assim:

“O sol e a lua eram dois seres apaixonados, mas que nunca conseguiam se encontrar. Milhões de anos viveram desta forma. Sempre a iluminar, dia e noite, os mais recônditos lugares da terra. Dentre estes lugares, uma montanha enorme e azul. Sobre ela, vales e um lago de água cristalina, que escondiam os mistérios da natureza.”

Uma lua era visível por trás das árvores. Todos ouviam em silêncio e atentos.

“Certo dia o sol atrasou-se em sua trajetória e um encontro em forma de eclipse, tão ansiosamente aguardado, ocorreu. Os raios de ambos entrelaçaram-se e refletiram no misterioso lago. Deste encontro sobrenatural nasceu o guerreiro Macunaíma.

“Macunaíma era um garoto hábil. Nascido no Monte Roraima, possuía magias, cresceu forte e tornou-se bravo. Era justiceiro, mas não usava armas.

“Pois bem,” – prosseguiu o líder – “eis que próximo à montanha havia uma árvore diferente. A Árvore de Todos os Frutos. Dela nasciam todas as frutas tropicais. Mas ninguém estava autorizado a apanhá-las. Somente Macunaíma colhia os frutos, dividindo-os entre todos.

“Porém, houve dia em que a ambição tomou conta dos homens da tribo. Acabaram mexendo na árvore, arrancando os frutos, quebrando os galhos, extinguindo folhas e cascas. As sementes, tomaram todas para plantar, já que queriam eles próprios ter suas árvores e eles mesmos colherem os próprios frutos.

264

Page 265: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

“Acabou que a árvore sagrada perdeu a sua magia. Macunaíma se enfureceu. Como forma de justiça, queimou a mata e petrificou a árvore. Da imensa floresta verde, só restaram cinzas.

“E então, até hoje, no Monte Roraima, existe a árvore petrificada como símbolo desta história. E Macunaíma repousa lá – no topo do monte.”

Todos se regozijaram com aquela história. Falavam do que ela representava nos dias atuais. Eu fiquei lembrando as muitas histórias, lendas e mitos de muitos de nós, povos existentes sobre a face deste planeta, em que a justiça natural volta-se contra aqueles usurpam a terra. A expulsão do éden.

Um dos viajantes comentou:

- Acho que esse amigo com seu pequeno companheiro índio estão à procura de Macunaíma – falou em tom de humor, no que os demais sorriram.

Eu reservei-me o direito de sentir saudades do meu amigo Avaeté e ficar em silêncio. Puxei minha coberta e procurei sonhar com o monte azul.

265

Page 266: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Quinze

266

Page 267: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

A noite mal dormida definitivamente não foi azul. Acordei-me de manhã com dor de cabeça intensa, um pouco de febre e muitas dores pelo corpo. Fiquei imaginando se conseguiria até mesmo levantar. Não podia haver alternativa. Levantei num impulso e quase caí tonto. Jaxy, já de pé, perguntou-me se eu estava bem. Respondi em voz baixa o que tinha que ser respondido:

- Preciso estar bem. Ainda temos dois dias até chegar ao cume.

- Você precisa agüentar firme, Pyá. Parece muito abatido. A expedição poderá deixá-lo para trás. E, sem você, eu não prosseguirei.

- Cada minuto, cada hora, uma batalha. Vamos em frente.

Comemos algumas frutas, chá e biscoitos para partir para mais um dia de caminhada. Um dos companheiros Pemón chegou próximo e falou:

- Você não tem malária, amigo. Os doutores brancos sempre confundem. O que você tem é o “mal de manso”.

- “Mal de manso?” Como assim? Então a medicação que estou tomando não serve?

- Não amigo. De nada. Precisa consultar um xamã. Se tivesse dito, teríamos conversado com ele na aldeia. Agora é tarde. Rezemos para haver um no topo. Senão você estará em perigo.

Apanhei os químicos que me acompanhavam e joguei-os no fundo da mochila. Droga! Não estavam servindo de nada. Eu só contava com meu sistema imunológico.

Preparamo-nos para a partida em mais um dia pela trilha em savana. O calor era insuportável. Havia trégua apenas quando surgiam nuvens, muito comuns por estas bandas. Apesar das dificuldades da caminhada durante a manhã, consegui passar incólume. Mas à tarde a coisa se tornou mais difícil.

Partirmos logo após um descanso do almoço. Havia, porém, um sol de rachar. Comecei a perder a consciência apenas uma hora após o reinício da caminhada. De uma hora para outra, estava estatelado no chão. Só descobri isto quando dois ou três companheiros de expedição lançaram-me água de seus cantis. Perguntei o que havia

267

Page 268: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

acontecido e onde estávamos. Suas expressões não foram animadoras:

- Esse homem não poderá prosseguir. Não terá forças para subir ao cume. Atrasará o grupo. Porá em risco os demais. Ele terá que regressar até a aldeia.

Pulei bravo com aquela decisão tomada à revelia da minha vontade:

- De jeito nenhum. Preciso chegar ao cume. Alguém está à minha espera lá em cima.

- Mas você não tem condições. Está enfermo. Tem que ser tratado.

- Estarei bem. Podem seguir adiante. Apenas indiquem-me o caminho. Não desejo atrasá-los. Seguirei logo adiante.

- Isso não é possível. Todos devem ir juntos.

Enquanto este diálogo prosseguia, os três membros nativos da expedição conversaram entre si. Um deles falou:

- A expedição não necessita de três guias índios. Eu seguirei com o jovem branco e seu pequeno amigo índio. Os demais seguirão à frente.

Aliviou-me aquela decisão. O grupo, ansioso, prosseguiu logo a seguir. Demoramo-nos cerca de meia hora para que eu pudesse me recuperar. Depois nós prosseguimos, em passo lento. Agora éramos apenas eu, Jaxy e o companheiro Pemón.

Uma pena estar indisposto para apreciar a paisagem. A única vista que apreciava era a trilha e meus passos sobre ela. Jaxy falava de formações impressionantes. Pedras “do segredo” equilibradas pelo desgaste erosivo. Camelos. Olhei à volta e era como se fossem alucinações. Pareciam seres espaciais. Robôs saídos da guerra nas estrelas.

Sentia que minha vista não estava cooperando também. Estava começando a ter perda de visão. O que enxergava já não possuía mais o mesmo contraste e nem as mesmas cores. Pedi a Jaxy que encontrasse um bastão comprido. Ele passou a segurá-lo por uma ponta e eu pela outra. Assim, Jaxy poderia guiar-me pela trilha.

268

Page 269: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Em determinado momento, os dois companheiros de caminhada avistaram a chapada grande que formava o Monte Roraima. Descreveram-no como de uma beleza sem igual. O sol punha-se a oeste, sob as nuvens, emprestando ao azul do monte tonalidades brasis. Minha visão de longe era péssima. Comecei a ter que imaginar o que os amigos descreviam, como os vários montes com aspectos sobrenaturais à volta, os chamados tepuis.

Àquelas alturas, o grupo já estava se preparando para acampar. Depois disso, ainda seguimos por mais três horas de caminhada até alcançar o acampamento. Nossa chegada provocou certo silêncio. Eu estava exausto. Não houve palavra proferida. Eu apenas tomei uma xícara de caldo quente. Logo a seguir, deitei-me, sentindo muito frio.

2

Depois de uma noite muito entrecortada de sono, acabei acordando um pouco mais tarde. Mal distinguia os vultos, mas notei que só havia dois. Àquela hora, todos já haviam partido para o ataque ao cume. O companheiro Pemón esteve ausente nas primeiras horas da manhã. Estava procurando chás. Quando regressou, preparou uma infusão com algumas ervas e ofereceu-me:

- Tome. Essas ervas não o curarão da enfermidade nem da falta de visão. Mas o ajudarão a manter-se forte para a subida. Beba tudo.

Fiz o que recomendou. Logo após, apressamo-nos em levantar acampamento e seguir adiante. Começaria a subida da rampa de acesso final, curta e íngreme. Pelo caminho há muitas pedras, mas, no geral, é uma trilha segura.

O monte é aplainado no topo, formando uma mesa de cerca de quinze por cinco quilômetros. De longe, avistam-se seus paredões verticais de arenito com mais de quinhentos metros de altura.

Em condições normais, a subida ao cume levaria cerca de dez horas. Mas era provável que levássemos até quinze. Tive que ser orientado em todo passo ou pequena escalada necessária. Jaxy ia adiante, orientando-me. O índio Pemón atrás, cuidando para que eu não caísse.

269

Page 270: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Uma fraqueza intensa me acossava. Quando me sentia tonto, precisava sentar, descansar e tomar água. Isto ocorria freqüentemente. Procurava buscar forças dos lugares mais recônditos do meu corpo. Com pouca visão, ia mergulhando, aos poucos, numa escuridão cada vez mais profunda.

“Não posso desistir. Não posso desistir. Preciso chegar ao fim. Preciso chegar ao fim.” De repente, escorreguei e caí para frente, batendo a testa em uma rocha. Perdi a consciência novamente por alguns segundos. Quando voltei a mim, estava sendo erguido por meus companheiros de viagem, com o rosto ensangüentado. “Droga!”

Meus companheiros providenciaram uma bandagem com o tecido de uma camiseta para estancar o sangramento. O local começou a inchar, mas não havia nada frio que pudesse ser colocado sobre o ferimento. Tratamos de prosseguir para evitar uma escalada noturna ou a necessidade de passar a noite na trilha.

Passaram-se os minutos e as horas em um sofrimento físico extremo. Procurava me concentrar e meditar, sorvendo aquelas dores como se fossem algo importante que meu corpo precisava aprender. Às vezes, tornavam-se quase insuportáveis. Mas procurava respirar e deixar tudo aquilo ter sua fluência. Concentrava-me na imagem de Avaeté para me dar forças.

Algumas horas já haviam passado desde que Jaxy anunciara o final da tarde. Começava a fazer frio e ainda faltavam cerca de duas horas até o topo. Prosseguimos sob um vento forte e gelado ainda por aquele tempo, até que o companheiro Pemón avistou fogueiras:

- Vejam! Estamos próximos. As fogueiras dos acampamentos estão começando a ficar visíveis. Vamos!

Seguimos com mais ímpeto, mas havia ainda a perigosa travessia de uma cachoeira. Teríamos que desligar as lanternas para fazê-la, o que tornava as coisas ainda mais complicadas. Ingressamos na sua travessia, que tinha que ser feita vagarosa e cuidadosamente. Ficamos encharcados de uma água fria, com efeitos intensificados pelo vento. A exaustão era enorme. Meus companheiros e eu estávamos com fome e extenuados, mas não poderia haver vacilo neste ponto. Escorreguei sobre uma pedra com limo e tive que ser seguro pelos aliados para não ser tragado pela correnteza. Depois de

270

Page 271: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

momentos aterrorizantes, conseguimos atravessar completamente o obstáculo. Faltariam, então, poucos metros até o plano superior.

Chegamos, finalmente, ao cume, cerca de dezesseis horas depois da partida. Abraçamo-nos naquela escuridão, sem poder apreciar a paisagem. Depois de nos congraçarmos, seguimos pelo planalto até localizar nosso acampamento.

Todos já estavam dormindo. Sentamos junto à fogueira para que nos secássemos e comemos os restos da comida do jantar. Depois disso, com dores extremas no corpo, fomos descansar.

3

Pelas fogueiras da noite anterior, podiam-se notar sobre o planalto do Monte Roraima mais de quinze acampamentos. Tínhamos que ir a cada um deles verificar se Avaeté estaria em algum deles, ou se alguém sabia do seu paradeiro. Enquanto subíamos o morro, fizemos as contas dos dias e imaginamos que, por certo, Avaeté estaria no topo naquele momento. Não sabíamos se ele estava bem ou não. Se estivesse, certamente nos encontraria antes que o encontrássemos. Mas ele poderia estar ferido ou com alguma enfermidade. Por isso, era preciso sair à sua procura.

Saímos eu e Jaxy para uma varredura aos acampamentos. Jaxy ia à frente, guiando, e eu atrás, tateando o solo com um cajado. Cada um dos acampamentos possuía entre três e vinte pessoas.

Na nossa chegada ao primeiro dos acampamentos, perguntamos pela presença de um índio Guarani maduro. Descrevemos seus traços físicos e comportamentais, mas ninguém sabia do paradeiro de tal pessoa. Agradecemos e seguimos então adiante, fazendo o mesmo conjunto de descrições e perguntas a respeito do paradeiro de Avaeté. A resposta também foi negativa. Apesar das procedências diversas, ninguém tinha ouvido falar em tal índio.

Passamos, assim, de acampamento em acampamento, sem obter nenhuma pista. O relato mais próximo que obtivemos foi de uma expedição exploratória da Amazônia, em que os viajantes encontraram alguns grupos pequenos de participantes da marcha que, expulsos da região do sul da Bahia, rumavam para a reserva indígena Mundurucu.

271

Page 272: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Perguntei qual o motivo de tal deslocamento. Os viajantes nos informaram que os grupos viajavam para locais onde havia novos conflitos em potencial. No caso da reserva Mundurucu e de muitas outras Amazônia afora, há conflitos entre os índios e mineradores, estes últimos interessados na extração de minerais do subsolo das reservas.

Agradecemos pelas informações e seguimos adiante. Conversamos com vários grupos, de várias etnias. Havia pessoal da América do Norte, da Europa, do extremo norte e oeste da América do Sul. Em determinado momento, encontramos um grupo de feições distintas da maioria dos viajantes ali presentes. Quem chamou a atenção para o fato foi Jaxy:

- Pyá, você notou esse último grupo que contatamos? Pareciam estranhos.

Era verdade. Jaxy descreveu-os como tendo aparência de jagunços e, diferentemente da maioria dos demais, portavam armas. Mostraram-se demasiadamente solícitos e atenciosos. Disseram que nos ajudariam a procurar nosso amigo e que, se, por acaso, nós o encontrássemos, deveríamos comunicar-lhes, pois, assim, poderiam ficar mais tranqüilos e cessar sua própria busca.

Resolvemos nos afastar daquele grupo e continuar a busca mais adiante. Passamos por um sem número de pessoas, sem deixar de questionar ninguém pelo paradeiro de Avaeté. Já se aproximava o final da tarde e começávamos a perder as esperanças de encontrá-lo. Será que teve algum contratempo? Será que, por algum motivo, se atrasara? Ou teria algo mais grave acontecido? Começamos a ficar entristecidos com a perspectiva de não encontrar Avaeté.

Já não havia muito mais a fazer. Falei a Jaxy:

- Só nos resta uma coisa a fazer, Jaxy. Esperar um sinal de Avaeté...

- Mas isso poderá levar tempo. Você não pode ficar muito tempo aqui, Pyá. Precisa ser tratado.

- Eu sei, Jaxy. Mas precisamos esperar algum sinal. Eu tenho uma forte intuição de que teremos, em breve, algum sinal sobre o paradeiro de Avaeté.

- Mas como esse sinal vai nos encontrar?

272

Page 273: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Eu tenho uma idéia. Está próximo do anoitecer. Venha. Guie-me até o ponto mais a oeste do monte.

Seguimos na direção que eu indiquei, com Jaxy à frente orientando sobre o caminho. Chegamos à beira do penhasco e sentamo-nos próximo a uma das muitas quedas d’água do monte. Ficamos ali, numa reentrância em forma de caverna, em silêncio, como recomendam os deuses da montanha. Havia apenas o barulho constante da cachoeira.

Fizemos fogo para nos aquecer. A temperatura havia caído muito. Recostei-me para descansar. Estava exausto e à beira de cair completamente em função da doença, mas precisava de algum sinal do paradeiro de Avaeté.

Ficamos ali por algumas horas. O sol se pôs no oeste e a noite chegou sem estrelas, pelo repentino nublar. Jaxy adormeceu sem sentir. Estava exausto também. Cansado física e emocionalmente. Eu ainda fiquei acordado, enxergando apenas brilhos e sombras desfiguradas da fogueira.

De repente, uma inesperada voz me tirou do meu estado:

- O garoto já dormiu. Precisamos conversar, Pyá.

Uma voz completamente desconhecida. Mas era de alguém que nos conhecia. Seria alguém com notícias de Avaeté? Ou alguém à sua procura, desejando fazer algum mal?

- Quem é você? O que deseja? – questionei.

- Fique calmo. Sou um amigo. Você recebeu minha mensagem em São Raimundo Nonato.

Recordei instantaneamente a mensagem e as imagens que continha. Era o amigo de Avaeté que nos deu orientações sobre o que fazer quando estávamos na serra da Capivara.

- Como é seu nome? Quem é você, realmente?

- Não posso me identificar. Acredite, terá que confiar em mim. É para o seu e o meu bem. Estão à caça das pessoas que participaram da marcha.

Aquele homem corria perigo, assim como Avaeté. Fiz menção de perguntar a respeito dele, mas, antes disso, fiz uma avaliação em retrospectiva do tom de sua voz. Passado o susto e com dificuldades

273

Page 274: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

para enxergar, me restava ter uma atenção consciente aos sons. Seu tom de voz era melancólico, taciturno e fúnebre. Aquilo parecia terrível. Algo que talvez jamais desejasse ouvir estava por ser dito.

- Avaeté, o nosso grande amigo. Ele está morto, Pyá.

Aquele foi o soco no estômago mais potente que jamais levei na vida. Coloquei a mão na boca com muita força para conter um grito muito alto e grave, mas o grito pulou através dos meus olhos e caiu sobre meu peito e chão, umedecendo-os:

- Nãããããããooooooo!!!

4

Isso não pode estar acontecendo. Avaeté não pode estar morto. Avaeté jamais poderia morrer! Aquela voz fúnebre está mentindo! Não pode ser verdade que meu amigo Avaeté, aquele me trouxe à vida, tenha se ido!

- Pyá, vou falar uma vez só e não me peça mais detalhes. Muitos líderes nativos foram assassinados no movimento. Foram caçados, seqüestrados e torturados até a morte. Eu, pessoalmente, vi os corpos de muitos deles. Avaeté conseguiu escapar e esconder-se na mata. Antes que fizesse isso, pediu-me que enviasse aquela mensagem a você. Eu estava em sua companhia a maior parte do tempo, mas precisamos nos separar para poder escapar. Até que, num dia, do meu esconderijo, já faminto e cansado por todos aqueles dias escondido, vi os jagunços carregando um homem morto completamente desfigurado. Não foi possível identificá-lo à distância, mas um sinal inequívoco demonstrou ser aquele o meu companheiro de lutas, o grande e bom Avaeté. Segurava seu cachimbo, o petynguá, com seu símbolo característico.

Descreveu-me o símbolo. Reconheci-o imediatamente. Desanimei completamente e chorei como uma criança que, subitamente, fica órfã. O que eu vou fazer agora da minha vida? Como poderei viver sem meu benfeitor, sem meu guia, sem meu mestre? A voz deixou suas últimas palavras:

- Avaeté, antes de nossa separação, me pediu que, se algo desse errado, eu devesse encontrá-los e fazer um último trabalho. É o que eu estou aqui para fazer. Não se mexa, Pyá, nem fale mais

274

Page 275: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

palavra. Tudo o que você precisava saber, já sabe. Jamais diga que você me encontrou. Tudo o que você precisa saber agora é que precisa ter fé, pois, do fundo desse poço, você se reerguerá renovado.

A voz prosseguiu dizendo que realizaria um ritual que envolvia a defumação de nossos corpos, meu e de Jaxy, e do local onde nos encontrávamos. Pegou algumas ervas que carregava consigo, amassou-as e iniciou uma reza em forma de canto, numa língua completamente desconhecida. Pegou um pedaço de madeira em brasa e colocou-o sobre uma pequena bandeja, que também carregava consigo. Pôs as ervas sobre a brasa e uma fumaça branca começou a subir até o teto da caverna.

Eu estava arrasado, segurando minhas entranhas, deitado em posição fetal, com lágrimas constantes correndo até o chão da caverna. O ser que nos trouxe os sinais fúnebres de Avaeté começou a defumar a caverna com uma dança e uma cantoria. Passava aquela bandeja pelas paredes da caverna. Quando achou suficiente, passou a defumar o corpo de Jaxy, que continuava dormindo. Proferiu algumas palavras, das quais algumas eu identifiquei:

- Sonhe, Jaxy, o sonho dos guias. Sonhe, pequena lua nova, o sonho da luz-mestra. Sonhe, Jaxy, o sonho dos mestres dos caminhos deste mundo. Sonhe com a grande roda mágica. Através dela, você saberá para onde rumar...

A fumaça que tomava conta do ambiente vinha de ervas sobre a bandeja e também do interior da fogueira. A fumaça que saía de ambas era, de certa forma, entorpecedora. Estava sentindo formigamento no corpo e uma leveza interior. Então a voz se aproximou de mim e começou a defumar meu corpo. Cantava, dançava e rezava. Por fim, proferiu algumas palavras novamente compreensíveis:

- Sonhe, Pyá, o sonho da extinção dos conflitos. Sonhe, menino Pyá, o sonho da transcendência, da sabedoria, da pacificação da alma. Sonhe, coração de menino, o sonho do círculo eterno da renovação...

E aquelas foram as últimas palavras que ouvi.

275

Page 276: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Avaeté

Dezesseis

276

Page 277: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

1

Não sabia se estava acordado, sonhando ou vivendo em outro mundo. Por entre um fio de consciência notava um teto com caibros e forro feito de juta e outras fibras tramadas. Havia também tecidos coloridos. Aquela visão, como se fosse um cone de consciência que só notava aquilo, foi a primeira noção perceptível de existência.

Aos poucos, outros elementos foram se unindo àquelas imagens, como algo em movimento à volta do cone. Com o movimento, via nuvens brancas que subiam ao teto. Depois daquelas nuvens, havia períodos de nada. Isto ocorria intercaladamente, por várias vezes, até que observei que poderia sentir aquela fumaça como uma espécie de ardência no meio do cone. Sentia, depois disso, uma espécie de prolongar da sensação de ardência, não mais como uma ardência, mas como um calor. Às vezes agradável, às vezes abrasantemente desconfortável. Não sabia como controlar aquelas sensações. Sentia junto com aquele queimor um pesar, um dolorido geral. O cone tinha um corpo. Um corpo dolorido.

Uma a uma, após um tempo incomensurável, fui notando novas fontes de sensações, como o ouvir do movimento em torno do cone e uma sensação deliciosa e refrescante, quando algo que escorria para dentro. Até que chegou o dia em que o movimento esperou uma reação do corpo que via o cone:

- Como você se sente? – perguntou a voz.

A voz não tinha correspondente no cone. Ela estava além dele. O mundo se escureceu sem mais movimento. Até que a voz voltou a se pronunciar. “Como você se sente?”

Numa reação instintiva, toquei com as mãos meus quadris e pernas e percebi uma sensação recíproca entre mãos e corpo. Notei uma espécie de separação entre o “você” a que a voz se referia e a própria voz. Então, também instintivamente, virei a cabeça na direção de onde vinha a voz e vi alguém:

- Você consegue falar? – perguntou.

Acho que meus olhos responderam de alguma maneira, pois a voz, que agora possuía um corpo, uma origem, resignou-se:

- Você vai ficar bom logo. É só ter paciência.

277

Page 278: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

E o movimento deixou um vazio silencioso onde havia antes ali um corpo com uma voz.

2

Os sentidos vinham se recuperando aos poucos, ao passo que comecei a perceber que o movimento tinha uma ciclicidade. Ocorria alternadamente, na intensidade do colorido do cone e também numa espécie de escuridão parcial. Daquela ciclicidade, me dei conta do tempo. Percebi a seqüência, o fluxo com o que o movimento se desenrolava, a alternância entre prazer e dor. De que antes do prazer houve a dor. E que antes da dor houve o prazer. E, aí, comecei a lembrar de coisas.

Não sabia se eram lembranças vividas ou sonhadas. Talvez ambas. Lembrei do sol nos meus olhos. Lembrei que ele piscava. Piscava por causa de folhas e ramos de árvores que desfilavam ao largo. Lembrava que também havia intercalação de sol e de uma luminescência fraca. A lua. Sol e lua e sol e lua e o piscar sob a sombra das árvores. Havia solavancos e um som quaternário que vinha de sobre minha cabeça deitada. Depois dos vários ciclos de solavancos, as árvores afastaram-se perpendicularmente ao caminho. Os solavancos foram substituídos por um ondular constante.

Aquelas imagens começaram a se povoar, dentro da minha cabeça, com sons, palavras e linguagens. Entoações de certa concretude como “cavalo”, “carroça”, “estrada”, eram pronunciadas na fase dos solavancos, e após, “canoa” e “rio”, na fase das ondulações.

Com o tempo, recuperei a memória de sons ligados a aspectos mais conceituais, como “ajuda”, “doença”, “direção” e “cura”. E também sentimentais: “por favor”, “amigo”, “melhorar”, “sofrimento”. E por fim, a lembrança dos nomes próprios que se dispunham em seqüência: “Roraima”, “Amazonas”, “Içá”, “Putumayo”, “Imbabura”, “Ibarra”, “La Esperanza”.

As memórias foram tomando um sentido de todo. A seqüência dizia respeito ao movimento, à disposição no tempo e no espaço. Havia um “onde” e um “quando”. O todo de que me apropriava era que fora transportado de um local onde antes não havia consciência, Roraima, em carroça, até um rio, o Amazonas, e depois através dele,

278

Page 279: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

subindo em canoa até outros rios, como Içá e Putumayo. Adentramos a Amazônia para “oeste”, noção razoavelmente complexa, até chegar a uma região serrana, de cordilheiras, e depois até encontrar o Vulcão Imbabura, a cidade de Ibarra e, por fim, o pueblo de La Esperanza.

Ao longo do caminho, muitas vozes intercalavam-se. Duas delas eram constantes. De quem seriam aquelas vozes? Notando o meu relativo estado de consciência, a voz de outrora voltou a perguntar:

- Como você se sente?

Outra voz, fraca, respondeu em forma de questionamento:

- Onde estou?

E a voz de outrora, de um homem de chapéu marrom de abas estreitas e óculos, respondeu:

- Este lugar é Pukyu Pamba, também conhecida como Hacienda San Clemente.

- A que distância estamos do Vulcão Imbabura?

- Poucos quilômetros. Quando você estiver mais forte, irá até aquela janela e admirará todo o seu poder ao amanhecer.

- Quem é você? - perguntei.

- Um amigo. Amigo de um amigo. Meu nome é Sumak Mashi. É o nome pelo qual sou conhecido aqui no meu povo. Os Caranqui. Na língua geral, chamam-me Don Laurencio.

- Don Laurencio. É um prazer...

- Pyá. Eu já sei. Você é muito bem vindo aqui. É um milagre que tenha chegado vivo. Deve isto a seus amigos.

- Meus amigos?

- Sim. Jaxy Pyau e o outro, que não deixou nome. Esse já se foi.

Um novo vetor de consciência se abriu. Jaxy Pyau. Jaxy Pyau era meu companheiro de viagem! Todo um passado se descortinou. Eu e ele estávamos viajando!

Fui então lembrando que havia um “antes de Roraima”. Que, antes de Roraima, havia uma viagem. Mas não era apenas viajando. Era também procurando... Então, uma imagem visual intercalou e

279

Page 280: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

desintercalou Jaxy e outra pessoa, como quando você envesga o olhar... A outra pessoa era... Era Avaeté! E lembrei-me da triste realidade. A realidade mais profundamente triste que poderia reaver.

3

Foram vários dias de tratamento. Eu recebia defumações, infusões, caldos, cânticos e rezas. Tinha altos e baixos. Nos altos, eu tinha a lembrança de Jaxy. Nos baixos, a de Avaeté. Nestes, eu me sentia de tal forma exaurido da vontade de viver, com tal indiferença, que não havia mais ligação, esperança ou destino. Apenas esperar o definitivo apagar-se.

Mas era, por outro lado, uma ciclicidade de altos e baixos paradoxalmente ascendentes. Os baixios passaram a não ser tão fundos, e os altos, cada vez mais elevados. Sentia que poderia, em um momento qualquer, praticamente tocar o cume do Imbabura. A primeira vez que senti esta possibilidade foi com a visita de meu jovem amigo:

- Pyá! Olhe para você. Está melhorando! Isto é esplêndido!

Falou isto subindo ofegante as escadas que terminavam no lastro de minha cama. Achei estranho Jaxy chegar a mim como se não houvesse muito tempo que não me via. Inquiri:

- Você não vem me dar um abraço? Estou com saudades de você, Jaxy.

Jaxy me olhou desconfiado. Apenas limitou-se a dizer:

- Você realmente está melhor. Agora se dá conta que existe o verbo “abraçar” – e deu uma gargalhada que achei familiar.

- Como assim? Não entendi – falei ironicamente contrariado.

- Eu o abraço diariamente, Pyá. Mas você esteve este tempo todo inerte. Agora você está voltando à vida – limitou-se a dizer isto e voltou para seus afazeres.

Jaxy ajudava na manutenção da fazenda. Notei isto desde a primeira vez em que a janela do meu quarto fora finalmente aberta. Uma senhora vestida em trajes andinos olhou para mim com olhos profundamente castanhos e deixou entrar os raios da manhã. Ao longe, via Jaxy, Don Laurencio e mais dois jovens carregando pasto,

280

Page 281: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

guiando cavalos e lhamas e juntando lenha. Aquela senhora era a esposa de Don Laurencio, uma pessoa querida que atendia por Doña Rosaura.

Àquele cuidado precisava responder com o esforço para curar-me daquela enfermidade. Aos poucos, senti vontade de me sentar, depois de levantar e ir até a janela e, por fim, descer as escadas. Quando desci, um novo mundo descortinou-se. Era entardecer e consegui visualizar, através da imensa janela da varanda, uma multidão de luzes acenderem-se lá embaixo, no vale, com um lago ao fundo. Era a cidade de Ibarra e, mais acima, o povoado de La Esperanza. Mais para a direita existe uma laguna: Yahuarcocha. Notei isto tudo pelo mapa que havia junto à lareira. Sentei-me junto a ela com um cobertor sobre as costas, tomando um álbum de fotografias deixado displicentemente sobre uma cômoda lateral. Abri-o e vi um desfilar de pessoas das mais variadas colorações e origens, abraçados à família que residia naquela casa de amizade. Notava como aquela família poderia ser feliz, com seu ar visivelmente alegre, humano e tocante, trocando energias com aqueles seres estranhos, viajantes por certo. Aquela era uma espécie de casa de paragem para viajantes. Também uma casa de cura.

Vários recados dos viajantes viam-se em outros álbuns ou colados às paredes e murais. Àquele lugar, outra espécie de fim-de-mundo, convergiam energias de lugares distantes como Ártico, África, costa do Pacífico e Oceania.

Fui retirado daquele absorvimento pelo chamado ao jantar. Era a primeira vez, depois de muito tempo, que iria me alimentar à mesa. Acompanhado de uma família. Don Laurencio sugeriu que me sentasse à cabeceira, logo a seu lado. Logo se juntaram Doña Rosaura, mais Jaxy e os dois jovens, filhos do casal.

O jantar consistia de uma sopa de milho de entrada, depois pratos diversos, como quinoa, tortillas, fritada de porco, humitas, saladas e suco de maracujá. A família estava muito silenciosa enquanto se alimentava, olhando alternadamente para o próprio prato e para mim, como a me observar. Fiquei em dúvida se o silêncio durante as refeições era costume ou se era por haver um estranho à mesa. De qualquer forma, fomos sorvendo aquele jantar delicioso. Assim que os pratos salgados foram retirados, fitei Don Laurencio e fiz menção de puxar assunto, no que fui estimulado. Comentei, então:

281

Page 282: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

- Don Laurencio, Doña Rosaura, desejo agradecer imensamente a hospitalidade com que venho sendo recebido em seu lar. Sei que mereci cuidados especiais pela minha enfermidade e isto não deve ter sido fácil. Senti a vida esvair-se totalmente de meu corpo e, agora, estou aqui, tendo o prazer de um maravilhoso jantar.

Don Laurencio respondeu:

- Meu caro, Pyá. Este é o lugar certo para isso. Você foi trazido para cá por que assim foi designado. Não fique constrangido. Nossa família tem o maior prazer em recebê-lo aqui com seu amigo, Jaxy. Ajudá-lo é minha dívida de gratidão com nosso infelizmente finado amigo.

Falava de Avaeté. Ele também deixou amigos por aqui. Ao citá-lo, baixamos todos os olhos. Depois de alguns instantes, Doña Rosaura serviu-nos a sobremesa. Era geléia de amora feita em casa. Don Laurencio continuou:

- Este local, Pukyu Pamba, é uma terra ancestral. Nestas terras, onde está situada esta fazenda, comunitária como todas as deste vale, vivem há centenas de anos este povo andino chamado Caranqui. Vivemos aqui, sob as sombras e a proteção da sagrada montanha de Imbabura.

“Aqui, nestas encostas, se cultivam plantas de clima frio, como trigo, cevada e batatas. Já nos terrenos mais baixos, mais próximos do pueblo, cultiva-se milho. Nosso povo também produz artesanato em profusão, como cerâmica, bordados e tecidos.”

Enquanto sorvíamos a deliciosa sobremesa, aquele homem de pele morena e lisa, rosto arredondado e alegre, continuou descrevendo tudo o que ocorria naquela fazenda, com aquele povo e com os animais que ali viviam. Demonstravam viver uma vida feliz, tanto pela manutenção dos costumes, quanto pela convivência com viajantes, que vinham para os mais variados propósitos, de apenas relaxar numa região de grandiosa beleza, conviver com pessoas que cultivam hábitos nativos e conectados a terra, escalar a montanha ou contribuir para a melhoria da vida nestas paragens.

Don Laurencio falou da rotina da casa e dos habitantes do povoado. Informou que, no dia seguinte, por ser sábado, haveria uma pequena apresentação do grupo de jovens músicos locais. Recomendou que eu devesse tratar de esticar as pernas durante o

282

Page 283: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

dia para podermos ir até o galpão comunitário para assistir à apresentação.

Concluído o jantar, passamos todos à sala, onde todos, além de Don Laurencio, falaram sobre seus hábitos e rotinas na casa e no povoado. Doña Rosaura e os dois jovens comentaram, alegre e intercaladamente, sobre a vida neste lugar. O orgulho era notado a olhos vistos. Você realmente sente-se muito bem acolhido neste lugar.

Jaxy falou sobre o como se integrou àquela rotina durante as últimas semanas, tempo desde que aqui chegamos. Perguntei, interessado, se estava se portando bem, e Don Laurencio foi enfático em elogiar Jaxy:

- É um jovem notável. Aprende muito rápido, é inteligente e tem ótimo senso de orientação.

- É verdade, Pyá. Até já subi sozinho a montanha. A cavalo, é claro. Precisamos subir a montanha, Pyá. Dizem que o amanhecer no cume é deslumbrante.

- Puxa, Jaxy. Não vejo a hora de reaver minhas forças e podermos fazer isto. Eu realmente preciso fazer isto. Ir ao topo. Você precisa me contar tudo o que aconteceu desde minha queda. Talvez você possa fazer isto quando estivermos a caminho do vulcão. E, lá em cima, preciso encontrar alguém... – disse, baixando o tom de voz.

- Eu sei, Pyá – disse Jaxy, também com tom triste.

Ficamos em silêncio alguns momentos. Então, agradeci o delicioso jantar e a agradável conversa e pedi licença para me retirar ao meu quarto. Estava cansado, de modo que subi as escadas e, quase instantaneamente, adormeci.

4

Sentia-me incrivelmente melhor no dia seguinte. Minhas pernas não estavam mais tão fracas e eu podia até mesmo sentir a manhã, ao ar livre, caminhando por entre os jardins e as pastagens da fazenda. Conseguia ter uma vista muito mais ampla de todo o vale, das montanhas e do grande vulcão na direção sudoeste. Caminhei por entre caramanchões e árvores, até chegar ao galpão aberto onde Doña Rosaura assava pães. Ela me permitiu que a ajudasse na

283

Page 284: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

preparação. Depois de prontos, entramos na casa principal para tomar café da manhã.

Enquanto tomávamos a refeição, a família continuava a descrição dos seus hábitos. Contaram-me que as mulheres eram as principais transmissoras da tradição, através das danças e cantorias em forma de coplas, as canções populares. Falaram-me também sobre a principal festa da tradição, o Inti Raymi, que, por sinal, estava próximo. Ocorria no solstício de verão do hemisfério norte, que é quando se comemora o ano novo. A Festa do Sol, na tradução, venera o milho, símbolo do trabalho e da ligação do homem com a natureza. O sol transforma-se em milho e, este, em gente.

Para a festa, que traz pessoas de várias localidades, as comunidades preparam alimentos festivos, como o mote, a colada e a chicha. O Inti Raymi representa a renovação, a purificação e a revitalização da ligação com a natureza. É o momento em que ela oferece seus frutos, ou seja, a época da colheita.

Ocorre uma explosão de cores, músicas, tradições e feliz congregação. Como é aberta a todos, congrega indígenas e não-indígenas, regionais e estrangeiros, portando coloridas roupas típicas, chapéus, pequenos palas, vestidos, dançando com pés no chão, alguns portando máscaras que representam, entre outras coisas, o tempo.

Enquanto descreviam, imaginei a festa ocorrendo e senti saudades de estar ao relento, acampado, sentindo o frio da noite, aquecendo-me junto à fogueira e dançando danças com os amigos. Senti saudades de estar em contato. Mencionei este sentimento. Doña Rosaura comentou:

- Você ainda levará algum tempo para estar bem novamente para voltar à estrada. Nossos xamãs cuidaram bem de você, limpando-o e purificando-o. Agora, a natureza fará o resto. Sua renovação completa está a caminho. Poderá ficar conosco pelo tempo que desejar, trabalhar aqui e aproveitar o lugar. Mais tarde, quando estiver preparado, voltará à estrada.

- E quando será isto, Jaxy? – olhei para meu amigo, querendo saber como se sentia.

- Quando você assim desejar, Pyá – falou amistosamente Jaxy.

284

Page 285: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

O dia foi de exploração dos arredores da fazenda, com seus currais, hortas, pomares e animais. Conheci gaiolas cheias de cuye, pequenos roedores que são uma espécie de iguaria local. O ar local era renovador e fresco. O sol, cálido, dando a coloração morena ao povo que tem faces rosadas e pele muito lisa.

À noite, após o jantar, fomos convidados a ir até o galpão comunitário, onde havia um grande salão aquecido por uma lareira. Jovens vestidos em trajes típicos aguardavam a platéia, sentados com seus instrumentos à mão. Alguns locais e viajantes reuniram-se para apreciar a atuação. Nas mãos dos jovens, instrumentos musicais nativos aliados a violões, violinos e tambores. De sua atuação saíam ritmos andinos típicos e outros, com toque caracteristicamente regional. Foi uma noite alegre, em que todos nos arriscamos a dançar em rodas junto às pessoas. Conhecemos várias delas e conversamos por horas. Até que se tornou hora de dispersar e ir para as casas.

À medida que se passam as horas e os dias neste lugar, você começa a sentir também vontade de fixar-se com esta gente ligada. Ligada na sua terra e ligada na grande Terra. Você vê que vivem uma vida simples e sagrada ao mesmo tempo. Pessoas que celebram as coisas que trazem paz e conexão.

É claro que a estrada também o atrai. Talvez seja isto que eu acabei encontrando nesta aventura. Uma espécie de seminomadismo. Um jeito diferente de poder ser. Uma forma de viver num equilíbrio dinâmico entre ficar e partir. Entre fixar-se e aventurar-se. Entre conhecer o novo e reconhecer o sagrado.

E mais dias passaram-se e fui recuperando minha vitalidade. Ia elaborando aquela doença e ia elaborando também a morte de Avaeté. O homem que me ensinou este estilo de vida e me ensinou sobre o sagrado e sobre a conquista interior, que não está mais aqui, mas que é parte inseparável de mim. E de muitos a quem tocou na sua vida. Entregou a todos quanto possível seu legado. E entregou-o também a mim. E por isso, tornava-me um ser rico. Rico da vida que recebi como herança. Enriquecido de espírito e sentimento.

Quando consegui concluir a maioria das tarefas que eram feitas na fazenda, encontrei-me preparado para escalar o Imbabura. Comuniquei isto a Don Laurencio. Ele disse, então, que iríamos dentro de dois dias. Naqueles dois dias, só pensava em poder subir àquele ponto mais alto para descobrir ainda algum segredo que a Vida pudesse me ofertar. Até que a madrugada marcada chegou.

285

Page 286: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

5

Apanhamos mochilas com alimentos, água e abrigos para alcançar o topo do Imbabura e passar a noite no cume. Deixamos a casa eu, Don Laurencio, ou melhor, Sumak Mashi, Jaxy e os dois filhos. O mais velho chamava-se Atik e o mais novo, Tupac. Seguimos pela trilha que parte do fundo da casa, até localizar uma estrada por aonde os pastores e pastoras conduzem seus rebanhos de ovelhas ou lhamas.

Estava escuro e a lua ainda brilhava fracamente próximo ao horizonte formado de montanhas. Seguimos em silêncio, com Jaxy e eu ao final da fila. Nos primeiros passos, o corpo vai-se aquecendo com a ascensão da trilha, até que você entra numa espécie de piloto automático. Sua mente libera-se e você tem pensamentos relaxantes.

Lembrei-me, então, do sonho daquela noite. Era a primeira vez que me lembrava de um sonho, depois de muitos e muitos dias. No meu sonho, havia uma criança à beira de um rio. Ela estava agachada, mirando o movimento. Então ela levantou-se e, ao levantar-se, ficou de um tamanho gigante. Sua vista mirava por cima das árvores da floresta e por cima dos cumes das montanhas. Mirou longe, em um lugar inimaginavelmente distante. Depois, voltou a agachar-se, e ficou pequena novamente. Passou a tocar o chão e encontrou folhas, raízes e sementes de plantas. Mas coletou apenas as sementes. Olhava para elas, uma a uma, e lançava-as no rio. Fez isto por horas. Depois olhou para mim, mostrou-me uma semente e o sonho acabou-se.

Fiquei tentando imaginar o significado daquilo. Parecia, à primeira vista, uma ação inócua, lançar sementes ao rio. Elas, por certo, apodreceriam ou jamais fixariam raízes. Pensei mais um pouco, mas não via significado naquilo. Dei de ombros e segui caminhando.

À medida que subíamos, o sol, mesmo ainda escondido, iluminava levemente a trilha. Aos poucos, a visão mais alta sobre o vale mostrava a vegetação, o relevo e o início do movimento matutino das casas nas encostas.

A luz do dia que se aproximava inspirou-me a perguntar a Jaxy sobre a travessia desde Roraima até Pukyu Pamba. Não havíamos

286

Page 287: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

conversado sobre aquilo, mas devia minha vida àquela aventura, empreendida pelo meu jovem amigo e por aquele desconhecido que viera me trazer notícias do meu benfeitor.

- Sabe, Pyá, foi uma aventura e tanto. Temi por sua vida e não via a hora de chegarmos ao lugar onde o mensageiro indicava como nosso destino final. Disse que em San Clemente, ou melhor, em Pukyu Pamba, você poderia ser curado dos seus males e onde estaríamos seguros.

- Sabe, Jaxy, me lembro de poucos detalhes. Apenas de sentir estar sendo transportados por estradas, trilhas e rios.

- Esta passagem daria um livro de histórias, Pyá. Mas posso lhe dizer que tudo acabou bem. Só para que você tenha uma idéia. Pelo caminho, fomos atacados por abelhas e, como se isto não bastasse, a canoa onde você era transportado soltou-se e você ficou só e à deriva.

- Mas como fui resgatado? – perguntei, curioso e assombrado.

- Não há explicações apenas no mundo dos homens. Você deve sua vida a Tupã, Pyá.

- Devo minha vida a milhares e milhares de seres e deuses, meu caro amigo Jaxy...

Seguimos ascendendo pela trilha, às vezes parando para tomar água e, mais freqüentemente, para tomar ar. A atmosfera ia ficando cada vez mais rarefeita pela altitude.

Voltei a pensar em todos os seres que me salvaram durante toda a minha vida. Eles todos se fundiam numa só imagem. Avaeté. Teriam estes seres todos, em seus propósitos de vida, a finalidade de me salvar, ou de salvar a tantos quantos pudessem? Mais que isto, um propósito profundo seria algo necessário, até mesmo indispensável, na vida de uma pessoa?

- “A finalidade da vida é viver” – disse Sumak Mashi, como se também lesse pensamentos.

- Ãhn? – resmunguei, sendo retirado do meu torpor.

- “A finalidade da vida é viver.” Você não acha, Pyá? Veja como é rica a vegetação ao longo da trilha – e apontou para algumas plantas em forma de arbusto.

287

Page 288: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

Aproximou-se de uma delas e mostrou suas folhas. Parecia um arbusto qualquer. Mas não era.

- Esta é a quina roja – disse ele. – Este arbusto milagroso ajudou a salvar sua vida, Pyá. Foi uma das ervas que você tomou na sua recuperação.

- É mesmo?! – exclamei, tendo uma vontade irresistível de ajoelhar-me diante dela e agradecer sua existência. – E qual é sua indicação?

- A quina roja é tradicionalmente empregada como tonificante, antitérmico, antiinfeccioso, antimalárico e na convalescença. Mas também pode ser digestivo, aperitivo, anti-séptico e cicatrizante.

- Puxa, a quanta finalidade essa plantinha se serve! – exclamei, acariciando suas folhas.

- Não, Pyá, não são estas as finalidades desta plantinha. Como eu lhe disse, o seu propósito de vida é viver. Servir para propósitos humanos é uma questão nossa, dos humanos. Quanto a ela, atender a um propósito humano a ajuda a viver e perpetuar-se, mas não é sua finalidade de vida, compreende?

Abanei com a cabeça afirmativamente, sem, é claro, entender profundamente todas as implicações daquela poderosa afirmativa. “A finalidade da vida é viver.” Teria que ter todo o tempo da subida ao Imbabura para entender um pouquinho do tudo que aquilo significava.

À medida que subíamos, notávamos cada vez mais descortinar-se a vasta imensidão das encostas daquele vulcão de 4.600 metros de altitude. Parávamos de quando em quando para apreciar a visão e as localidades, seus povoados, fazendas, plantações e formas de vida. Apreciávamos as várias plantas ao longo do caminho, com seus usos medicinais e utilitários, como, por exemplo, tingir tecidos.

Sentia-me bem, fortificado, renovado. Fazia-me bem aquela caminhada vulcão acima. Uma sensação de alívio também fazia parte. Estava aliviado, leve. Aliviado daquela enfermidade. Mas havia também uma sensação de alívio com relação a Avaeté. Não sabia o porquê, mas pensava nele de forma leve. Por que seria?

Acho que começava a compreender que Avaeté foi meu benfeitor para que eu reconhecesse que não importam as finalidades. Não importam os propósitos. Importa é viver. Viver com toda

288

Page 289: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

intensidade. Ser, com toda a força, o que você foi feito para ser. Avaeté viveu assim, até morrer. E ele passou este tempo todo comigo ensinando-me isto. E agora eu estou aqui, sentindo a intensidade do viver, sem um propósito, sem uma finalidade, mas fazendo deste meu novo meio de vida uma maneira valiosa e honesta de viver intensamente. Sabendo que não precisa haver propósito, você abre mão do controle, da razão, e entrega-se a este fluxo de sabedoria maior que é a Vida. Você cede lugar a ela. E ela retribui entregando a você, de presente, a plenitude e a leveza de ser.

Dormimos aquela noite num estábulo muito organizado e limpo, tomado emprestado de uma família da comunidade. Alimentamo-nos frugalmente e fui dar alguns passos na direção da noite. Luzes cintilavam lá embaixo, na cidade, e acima de nossas cabeças, no céu. Uma lua nova subia de trás de algumas montanhas. As estrelas apareciam aos milhares, em forma de uma bela poeira cintilante sob a abóboda celeste. O ar estava gelado, mas refrescante ao ser aspirado. Fiquei sentado a admirar aquelas belezas incansáveis, até que senti sono e me rescostei abrigado, como os demais.

6

Acordamos alegres e muito dispostos a seguir adiante na subida à montanha. Tomamos um café temperado por muita conversa e saímos imediatamente para a estrada. Já era manhã e víamos o movimento de pastoreio de crianças e jovens. Todos sorriam com a nossa passagem. Sorríamos também.

Estas trocas de sorrisos e de olhares me fizeram lembrar o meu sonho. O sonho da criança que atirava sementes ao rio. Lembrei-me de que aquela criança, ao olhar para mim, também sorria. Lembrei-me, também, de lembranças mais distantes, de quando vivia na cidade grande, na “terra das luzes”, como falam os nativos. Você passa por milhares de pessoas no transcorrer de um dia sem dar nem receber um sorriso. Não é culpa das pessoas, é claro. O sistema de vida é que produz isto.

Nossa história, a história dos jurua, é uma história de apartamento, de separação. Não olhar para o outro e não sorrir é o resultado mais direto. Avaeté foi o homem que foi capaz de tirar-me

289

Page 290: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

deste sistema. Deu-me uma vida onde poderia olhar para os outros, sorrir e obter retribuição.

Avaeté era aquela criança na beira do rio. Ele tomou sementes que não sobreviveriam ou que se fixariam e deu a elas uma vida nova. Uma vida transformadora. Uma vida itinerante, onde a própria semente precisaria se reinventar para sobreviver no fluxo.

Lá na frente, no fluxo, você não retorna. Não retorna a uma cruzada romântica. Não retorna a ser como foram nossos antepassados. Você vai para algo novo e religado. Neste lugar novo, você não faz “mais”. Nem é “mais”. Neste lugar novo, você faz menos.

Neste novo lugar, mais do que fazer inclusão, você deixa de excluir.

Neste novo lugar, mais do que salvar a natureza, você deixa de destruir.

Neste novo lugar, ao invés de achar tempo para fazer, você acha tempo para não fazer.

Nele, mais do que buscar o todo, deixamos que o todo se apodere de nós. Porque ser inteiro é ser in-tactum: não partido, não cortado, não tocado. É deixar de apartar-se para criar novamente raízes. Raízes que não o fixam, mas que o religam ao grande fluir, ao grande movimento.

Religar, aqui, não é voltar para trás. Nada volta para trás no grande fluxo. Mas o grande fluxo circula. Nossa religação tem outro sentido. Você se religa ao porvir. Você se religa ao futuro. Planta suas sementes no rio.

É por isso que Avaeté olhou para mim no rio. Para que eu aprenda, um dia, a também jogar sementes ao rio. Algum dia serei capaz de fazer isto?

Naquelas paradas que você dá para recuperar o fôlego montanha acima, além de tomar ar e água e até mesmo comer algo, você senta no chão cheio de capim alto e pode ficar quase imperceptível ali. Sentado, você aproveita o momento para curtir a vista. Sentado, você vaga. Vaga o caminhar. Vaga a mente. Vaga tudo. Fica cheio do vagar. Vagabundo. De vacáre: “estar vazio, desocupado, ser livre” e -bundus: “cheio de, rico de”. Que idéia paradoxalmente maravilhosa. Estar cheio do vazio! Exatamente como

290

Page 291: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

falam os orientais. Sem as culpas e cargas de significados negativos da palavra. Uma vida vagabunda. Uma vida vivida livre.

Isto! Minha finalidade é viver. Viajar é apenas o meio. Vagabundear como um meio de viver plenamente. Um novo mundo pertencerá (sem ser sua propriedade) aos vagabundos que sabem viver felizes do pouco, que sabem viver nas frestas e arrabaldes e que trabalharão cada vez menos. Estes não salvarão o mundo, mas poderão ser os sobreviventes. Não serão os mais belos, mais intelectuais, mais fortes, mas, como as baratas, serão os que permanecerão.

Só chegamos ao cume ao entardecer. Estava frio e ventoso, um vento norte, mas o céu estava azul e límpido. Estávamos exaustos, mas energizados e renovados com a aventura. Chegamos ao ponto mais alto e abraçamo-nos num abraço coletivo de regozijo e alegria. Estava se acabando aquela jornada de amizade e companheirismo.

7

Armamos o acampamento num local abrigado, mas de vista espetacular. Dele, mirávamos o norte, a direção dos ventos. Sumak Mashi disse que o vento norte o fazia lembrar os ancestrais. Começou a contar várias daquelas histórias, mas emocionou-se especialmente com a que o fazia lembrar-se do seu pai e do seu avô:

“Meu pai costumava me contar que descobriu o nome que me daria quando um viajante subiu com ele e meu avô este vulcão. O viajante perguntou a meu avô como era, na nossa língua, as palavras para ‘homem bom’. Ele pensou e lhe disse: ‘Sumak Mashi’. E, no mesmo instante, o filho de meu avô, meu pai, reservou este nome para mim.”

Sumak Mashi era realmente um homem bom. Você vê estes sinais nos seus olhos. São sinais que viviam presentes em Avaeté e, agora, que os vejo em Jaxy. Neste momento, sem que ele estivesse entendendo, abracei-o ternamente. Apenas me limitei a esclarecer:

- Jaxy, em um homem bom, você vê a transparência e a profundidade do olhar. Isto não é maravilhoso? Na transparência você pode enxergar os seus segredos profundos.

291

Page 292: ANDRADE, Aurelio l - Avaete

O sol estava se pondo. Pensei então que todo o homem bom tem segredos que, no fundo, não são segredos. Revelam-se um tesouro acessível a qualquer ser humano aberto. Então tomei na minha bolsa o pedaço de couro de Avaeté e o desenrolei. Nele estava escrito:

Mbegueguata (ou, O segredo dos viajantes)

Como podem os juruaSeu paraíso algum dia encontrar Se com passos apressados matam floresDaquele justo jardim que buscam deslindar

Como podem os juruaSeu éden algum dia revelar Se com mãos nervosas derramam o sangueDaqueles mesmos que direções vivem a apontar

Como podem os juruaÀ terra sem males algum dia chegarSe na sua agoniada obstinação não compreendemQue esse mesmo caminho por onde estão a transitarÉ ele próprio yvy maraney.

292