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AcidenteVascular Cerebral

ANDRÉ DA ROCHA

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ACIDENTE VASCULAR CEREBRALANDRÉ DA ROCHA

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{prelúdio}

 Agarrar_

 _na identidade caída no chão, com a face circunspecta e pingada

pela chuva do peito, é o ajoelhar da consciência às circunstâncias.]

[As circunstâncias da consciência se ajoelhar, são o peito da chuva

pingada e circunspecta, na face do chão caído da identidade_ 

Acidente Vascular Cerebral

{lugar-comum}

 Agarrar_ 

 _no que resta da nossa entrega ao outro, tendo vivido esse sentimento

como se fosse a nossa salvação é, por si só, o início de uma viagem.

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 Ao gotejar teimoso do céu que o molha como tolo, junta-se o som

inócuo de peças de roupa a abrirem-se, asas, na queda, alando

em beleza lúgubre de m o tempo da suspensão. Os transeuntes

espantam-se, de risos boquiabertos, à medida que, peça por peça,recolhe a pele que o cobriria do embaraço dessa vergonha. Não da

que resulta da nudez da exposição, mas sim daquela que lhe pesa

no silêncio anuído e compreensivo do seu coração.

Os olhos do espírito selvagem e livre daqueles cabelos voltam aalvoraçar o parapeito, atirando algumas notas, tão sujas como o

pagamento deixado no amanhecer de um móvel de cabeceira, para

ajudar nas despesas de combustível. Perante a esmola cuspida da

paixão, gelam-se as suas veias.

 Atira o regaço da roupa contra a frustração do banco. Demora o

segurar desse seu cartão de identidade, comparando a escala

de cinzentos que colora a sua fotograa com o ritmo da rua e a

ausência da janela. Senta-se ao volante da ignição. Olha para a

sua imagem no retrovisor. Vítrea, como o reexo da partida para lá

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desse lugar-comum.

{viagem}

Quando começa a percorrer os quilómetros que o separam do

regresso a casa, a mecânica da condução resulta do choque daquele

estado de náusea. À distância a que está de si mesmo, o primeiro

oco de neve que cai no pára-brisas parece-lhe ser a garganta damontanha a engoli-lo em ironia.

O cuidado daquela lentidão acautelada pelo medo, daquela

concentração que dói o cansaço do sobrolho, daquela subida

esforçada do carro, assemelha-se aos últimos meses da sua relação.

Ferida de morte pela chantagem do m e por uma fragilidade moral

imensa, derrapara a cada curva e contracurva das personalidades,

ameaçando constantemente o abismo.

 À medida que a estrada vê o negro do seu alcatrão cobrir-se por um

manto branco, começa a orientar-se pelos farolins de presença dos

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carros que seguem à sua frente. A claridade típica dos nevões, uma

auréola luminosa de fotograa envelhecida pelos anos, desfoca-lhe a

visão. O som do vento a ecoar na penumbra dos túneis da montanha,

candeeiro após candeeiro, numa intermitência cor-de-laranja que oembala como se fosse um vagão de comboio, alterna com o disparo

desse fash que o cega de alvura.

Nesse compasso, a realidade rende-se à memória...

{margem}

Os olhos fechados ao (dis)correr da brisa ribeirinha, num abraço

afagado pelo calor do espelho de água do cais, abriram-se ao

arco-íris solar que desenhava o sorriso do olhar de uns cachos de

cabelo rebeldes a fazerem-lhe cócegas na face. Por todo o lado se

estendiam corpos a contemplar o delta desenhado pela silhueta da

urbe, no silêncio cantado pela bossa nova da guitarra da voz gingada

de um artista de rua.

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Ela, aceitando-o na dúvida provável do que sentia. Ele, provavelmente,

duvidando do conceito generalista de eternidade. (Perpétua é a

intensidade com que se grava um momento, em nós. O resto é a

recordação a entregar-se às leis da mecânica.)O passeio das brincadeiras pueris e da conversa de carinhos

partilhados aumentava o espaço dessa distância entre o vagar da

ondulação que desagua na foz e o caudal das pessoas vivendo a

pressa das suas rotinas. Nesse tempo sem relógio, os seus cheirosatraíam-se sem explicação. Os corpos aproximavam-se, na métrica

dos tacões que calcorreavam a rua. Os olhos foram-se fechando,

até que o ritmo dos corações fosse uníssono com o eco dos outros,

ao longe.

Inspiração. Silêncio. Arritmia. Beijo! Tocou o sino da igreja, no vale...

 Abriram-se os olhos. Ele abraçou. Ela fugiu. Abandonaram-se!

Olhou ainda para trás, o instante honesto de uma lágrima, antes de

ser apenas mais um sapateado de rotina na calçada. Ele viu os seus

braços apertarem-se na solidão do regaço e expi(r)ou a alma à dor.

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Nesse instante, soube-a miragem. Soube-se, ele mesmo, margem.

{viagem}

... Ouve-se um troar a rasgar a noite, entretanto caída sobre a la

indiana, que lhe desperta a atenção hipnotizada pelo ritmo do relanti .

De entre a cortina de constantes rajadas oblíquas de neve, vê-se o

contorno de uma enorme massa negra em movimento. O coraçãoaperta-lhe a garganta do peito. O carro imediatamente anterior a si,

guina o volante do susto para lá da segurança do rodado e embate, a

travagem derrapada, no rail de protecção. Perante isso, o arregalar

dos seus olhos rma a direcção, enfrentando o encandeamento de

dois faróis... A sirene dessa traição fá-lo tremer, à passagem do

limpa-neves em contramão.

O batimento cardíaco vai regressando à normalidade, à medida que

a sua atenção se concentra no breu. Está perante um vortex de ocos

de neve que bombardeia a penumbra das luzes do seu carro e lhe

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tolda a tomada de direcção. O cansaço de frontear a marcha da la,

pesa-lhe na vista e dói-lhe na fronte. Por um segundo, assegura-se

de si, no retrovisor.

{espelho}

Na subida da colina para lá do rio, pegou no telemóvel, esbaforindo

o amargo da rejeição sofrida:

 – Está na hora de nos conhecermos!

 Ao m de quinze minutos, estava perante uma rapariga de cabelos

compridos e olhos provocadores, sentada à porta de uma tasca, na

berma do passeio. A sua juventude recebeu-o com um sorriso de

lábios curvados que lhe mediu o avanço da gura... De cima a baixo.

Bebeu o último trago da cerveja e apresentou-se. O segundo dos

beijos do “olá” foi um toque quase imperceptível de cócegas no canto

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dos lábios. Num plano fechado de proximidade, esses respirares do

galope enfrentaram os seus olhares, como dois cavalos livres.

Desceram a teia caótica de pequenas ruas, até desaguarem na

avenida principal, desenrolando um novelo de palavras que não eramais do que cio a balbuciar. Na rua dos turistas, correram um atrás

do outro, no crescendo do nervoso miudinho em gargalhadas. A

perseguição acabou com ele a agarrar-lhe a cintura. Deitou-lhe um

pouco de água no cabelo, num trejeito travesso. Ela, torceu o nariznum abrir de boca pasmada, como quem cala o insulto, perante a

insolência. Roubou-lhe a garrafa à mão, em repente que acabou

com um banho frio no lusco-fusco do Verão.

Os olhares brilharam o riso. Os dentes dela morderam o lábio. A

língua dele lambeu o seu, pronunciadamente. Aproximaram-se.

Pararam, verticais. A estática dos seus corpos a ameaçar o beijo,

era um desaforo para os homens-estátua que se maquilhavam de

fotograa, pelo adiante da rua. Como se os seus seres fossem as

polaridades de um íman, detiveram-se... Espelho.

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{viagem}

Sente um ardor de sono nos olhos. Uma calma mortal remói-lheconstantemente o semblante, em ladainhas. Coça várias vezes a

cara. Sopra o ar em beicinho de lágrimas secas pela incredulidade.

Sobe-lhe o fel pelo peito. A lembrança da forma torta como se haviam

conhecido, fá-lo parecer incauto perante a antiguidade dos ditadospopulares, como se a paixão se prevenisse ou houvesse nela outra

estupidez que não a cegueira.

 Apetece-lhe ouvir música. Quando dirige a atenção para a consola,

vê, no banco deserto ao seu lado, o espectro das feições dela. No

desvario, a janela é um ecrã onde se projectam as imagens do seu

sorriso e das suas expressões de felicidade a percutir o ritmo das

canções no tabliê. Sobre o volante coloca a mala dos cd e atenta

num título.

 Ao som daquele tema tinham uivado em uníssono, com a cabeça fora

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da janela, uma descida vertiginosa, na direcção de um rio. Lembra-se

de ter dançado, no seu embalo, a nudez que antecedeu o mergulho

e a emersão berrada em êxtase, como se o auge da felicidade fosse

o próprio sol e não o voo rasante de Ícaro. Abre a janela ao nevão e, de dentro da sua dor, grita... Até que a

rouquidão de uma garganta esforçada pela raiva, se tussa, esgotada.

{tango}

Cheiro a verniz empoeirado e elevador gradeado avariado há mais de

uma década__Escadas amplas de beijos em saia subida de encontro

à parede__Alça rasgada por sorrisos de ombros mordidos no agarrar

do cabelo do desejo__Chave a abrir a porta, na sofreguidão das

tentativas turvadas pela penumbra da clarabóia__Apartamento de

estantes vazias e chão repleto de objectos, caminhados aos chutos e

tropeções__O abrir da intimidade do seu quarto, coberto a padrões de

roupa e livros abandonados um pouco por todo o lado__O desaguar

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da intensidade dessa busca no vislumbre da janela, aberta ao fundo

da cama, no entrar do sufoco enfeitiçado da noite.

 A constância daquelas pequenas imagens captadas pelos sentidos,

quase como se fora um lme em stop motion, invadia-lhe o coração.Quando se deitaram seminus, sobre a cama, o som oco da madeira

de uma guitarra amparou-lhes a queda. Pegou-lhe. Sentou-se na

moldura da parede, com a Lua crescente a desenhar-lhe o desejo.

Tocou uns acordes e ela, sentando-se no canto oposto da cama, amastigar o prazer do fumo de um cigarro, trauteou-os.

Lá fora, os gatos miavam, nos telhados. Do outro lado da rua, ouviu-se

o som distante das pampas, saído da janela de uns cabelos grisalhos

e olhos de rugas tristes encobertas pela cortina da noite. Pegaram

na mão um do outro. Ela encostou a cabeça no seu ombro, quase

ronronando o percorrer do cabelo pelo peito, no conar do balanço.

 As mãos desenharam o corpo um do outro, como pincéis, enquanto

os beijos se entrelaçavam com o esfregar dos cheiros das faces.

 A posse agarrava-se... Puxando, chamando, mordendo o tesão...

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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA

Ele agarrou-lhe o cabelo e voltou-lhe a face para a janela. Ela

ondulou, tremendo. Colocou-lhe uma mão no colo, enquanto a outra

descia, lentamente, desde o pescoço até aos seios. Depois, abriu o

movimento, elevando-lhe os braços. Olhando o céu, os dois, voarama nudez de um tango.

{viagem}

Na lentidão da travessia do planalto, tenta distrair-se a contar as

indicações de saídas cortadas, de desvios forçados e sinalizações

luminosas que piscam a informação da intempérie. À medida que

os quilómetros passam, o cansaço aumenta e, perante o fechar

incontrolável dos olhos, procura uma estação de serviço onde possa

beber um café e comer qualquer coisa. A neblina densa e as pingas

pesadas da chuva substituem a neve.

O uxo do trânsito começa a regressar à normalidade, com alguns

condutores a arriscarem as ultrapassagens. A velocidade aumenta e

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a tensão acumulada liberta-se com o tactear dos dedos no volante.

Vê o aviso de uma saída e desvia-se. Estaciona o carro em frente

a um café. Massaja a dor dos ombros. Mexe o pescoço para um e

outro lado. Depois coça o cansaço da face. Vê as olheiras negras aoretrovisor e puxa as pálpebras para baixo, avaliando a extensão do

raiado vermelho do lacrimejar.

Entra e pede um café e uma sanduíche. Senta-se na mesa, ao canto,

na solidão insípida do mastigar mecânico e demorado.

{jantar romântico}

 Acordaram para o nal da tarde, num abraço de corpos. Olhando

para a cama, através da luz cansada do sol, a brancura dos lençóis

era opaca, perante o brilho do suor da pele. Havia mimos de dedos

a desenharem o contorno dos cabelos e ar soprado a acalmar o

alvoraçar da testa. Lá em baixo, o trânsito apitava a falta de paciência

da hora de ponta. A preguiça esticava as cãibras dos corpos aos risos.

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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA

O silêncio era um lugar de cumplicidade onde todas as entrelinhas

existiam enquanto comunhão.

Levantaram-se e foram até à banheira de uma casa de banho coberta

de ladrilhos desenhados a marcador, como se todas aquelas peçasfossem um post-it e a parede a estória resultante desse cruzar de

memórias. Tomaram duche juntos, banhando-se em carinho e beijos.

Saíram de mãos dadas para a cidade, já a noite coloria de candeeiros

as vielas do bairro. Subiram a encosta, entre convites de menus ecantares das casas de fado. Contaram os trocos dos bolsos e, na

falta de dinheiro, compraram dois hambúrgueres e cerveja, num café

perto do miradouro.

 A vista do banco em que se sentaram era soberba. Estendia-se pelovale, em desníveis de luzes e prédios. O movimento do tráfego era

constante e a cidade parecia nunca dormir. De vez em quando, a

vida alertava-se com o ecoar de sirenes e, por um instante apenas, a

alma lembrava-se de que há um lugar de solidão na existência. Para

lá do rio, o Cristo-Rei abria os braços à ponte desse momento.

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Ele fechou os olhos e inspirou, profundamente. No canto do jardim,

uma harpa loira, de cabelos entrançados por um vestido de veraneio,

era acompanhada por um violino de longas barbas trajadas de jaqueta

e cachimbo a espreitar através da lapela. A rapariga cantava emgaélico o enfeitiçar de um sussurro ventoso e o idoso ria a disposição

de diabrete.

Sentiu a cabeça dela auscultar-lhe o batimento do coração e, era

felicidade o que sentia, quando viu uma estrela rasgar os céus, nacadência de um desejo. Deu-lhe um beijo demorado e longo que

acordou de si mesmo com o fash  de uma fotograa que alguém

captou. Riram-se e tiraram, das caixas de  prêt-à-porter , o jantar

romântico.

{viagem}

Levanta-se, combalido. Deixa o tabuleiro no balcão. Ausente e

distraído, vai aos lavabos. Enquanto lava as mãos, baixa o olhar,

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evitando a confrontação com o seu reexo. Esfrega vigorosamente a

face, na tentativa de que a vergonha escoe pelo ralo. Tenta agarrar o

uxo da água, como quem estanca o sangue de uma ferida. Salpica o

espelho. O retesar dos braços apoia-se sobre o mármore do lavatórioe ele vê a sua cara diluir-se, como o tempo que persiste na memória

de Dalí. Mima caretas perante a distorção do reexo e, no auge da

dor, puxa o couro ao cabelo e a barba à cara, em choro. Deixa-se

cair no chão da casa de banho. À medida que o corpo tomba, é oespelhar da luz que há nesse espaço que escorre pelo vidro...

{pôr-do-sol}

 Acordou-a, servindo-lhe o pequeno-almoço na cama. Enquanto ela

bebia o sumo, embevecida, deixou-se car ao canto, sentado numa

pilha de roupa, a olhá-la e a dedilhar acordes na guitarra. Quando ela

terminou a refeição, estendeu-lhe uma coroa de ores. Malmequeres

brancos costurados entre si durante a noite, a fazerem-na soltar uma

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lágrima de espanto. Depois pegou-lhe na mão e segredou-lhe que o

Verão acabava nesse dia. Queria celebrar o Equinócio.

Chegaram à praia, quando a maior parte dos banhistas fazia o

movimento inverso. Detiveram-se no passeio e olharam para o Sola descer no horizonte. Correram de mãos dadas na areia e deram

um mergulho refrescante na preia-mar do nal da tarde. Depois

estenderam-se no areal deserto. Quando o ocaso começou a colorir

de dourado a paisagem, ele agarrou no djembé que levara. A violência primitiva do seu corpo a percutir aquela pele; sugeriu-lhe que

colocasse a coroa de ores na cabeça. A sensualidade ondeava-lhe

o vestido de veraneio e o som ondulava-lhe o movimento do corpo.

Ele gingou o compasso, como se fosse a raiz do tronco esculpido doseu instrumento e, ela, em tribalismos intuídos, cultuou uma qualquer

deusa da feminilidade, despindo, no pincel do vento, cada uma das

peças da sua roupagem.

Os seus mamilos erectos de areia e arrepio de sal tocaram nas costas

dele. Voltou-se e beijou-a. O lusco-fusco embalou-lhes a entrega

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dos corpos, até que a noite cobrisse, com o manto das estrelas, o

pôr-do-sol.

{viagem}

Limpa as lágrimas com as costas das mãos. Ergue-se a custo, na

vergonha de outra pessoa entrar nos lavabos. Afastando, de forma

brusca, a palavra de preocupação, dirige-se para o carro. Mete a chavena ignição e bate com a palma das mãos no tabliê, violentamente.

Volta a chorar raiva e incompreensão, mordendo a língua ao grito.

Cruza as mãos sobre o volante e deixa a testa repousar nelas.

Olha em redor. Por todo o lado se acumulam objectos que evocama presença dela. As toalhitas na consola. As beatas no cinzeiro. As

garrafas de tisanas amontoadas no chão. Os pauzinhos do chinês

que usava para comer enlatados nas viagens. O kit de primeiros

socorros que deixara sob o banco do pendura...

O arranque do carro abre o vidro ao frio da noite. Deixa que a

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velocidade galopante da viagem espalhe, aos quatro ventos, cada

uma das recordações. Pelo retrovisor vai vendo a gravidade estilhaçar

esse rasto de encontro ao alcatrão da estrada.

{cavalgar}

 Amanheceu a maresia. A preparação da faina era um reboliço sobre o

areal. Várias mulheres carregavam os barcos com redes. Os homens,esses, iam substituindo os toros na proa dos barcos, empurrando-lhes

o movimento em direcção à zona de rebentação.

Eles acordaram o bem-estar. Passearam, segurando os chinelos nas

mãos. O cansaço enterrava os pés nas dunas, enquanto o movimentodo corpo enfunava o rodopiar da roupa, como um cata-vento. Beberam

um café demorado, numa esplanada, ofuscados pelo prateado do

espelho de água que se estendia a bombordo das embarcações.

Levantaram-se remoinhos de pó, com a nortada. Ela riu imenso ao

ver passar um chapéu a voar a rebeldia dos cabelos idosos que o

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ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL | ANDRÉ DA ROCHA

perseguiam pelo areal.

 – Anda. Vou mostrar-te uma coisa!

Levou-o até ao topo de um dos passadiços, assegurando-se de que

era rectilíneo. Depois explicou-lhe...

 – Dá-me os teus braços. Eu guio-te porque vais estar de olhosfechados. Começamos a andar e depois damos saltinhos. Quando

te disser para andares mais depressa, saltas cada vez mais alto.

Olhou para ele, demoradamente. Esperou que deixasse de se rire se acalmasse. Olhou-lhe as dúvidas, até que o seu semblante

percebesse a solenidade do momento, e acrescentou, com uma voz

doce que lhe rmou o agarrar das mãos de encontro ao seu peito:

 – Cona em mim!

É

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ANDRÉ DA ROCHA  | ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL

Ele fechou os olhos e o vento empurrou-lhe as costas, a cooperar

com a brincadeira. Começaram a andar. Havia nele uma insegurança

gritante que parecia apalpar cada passada. Antes que tivesse tempode se habituar ao estado de cegueira, ela impeliu...

 – Mais depressa.

... E os passos abriram a amplitude. Depois sentiu-a dar pequenos

saltinhos. Imitou-a no trote. A confusão emocional que sentia

causava-lhe um certo desconforto, mas recusou-se a abrir os olhos,

para não a desiludir. Os saltos eram cada vez mais pronunciados. Ovento soprava cada vez mais forte. O cabelo dela batia-lhe na face,

como se fosse uma crina, e ele mordeu os lábios a recordar o dia em

que se haviam conhecido. Às tantas, o coração gritou-lhe, de entre

a liberdade que há na conança:

| É

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 – Estou a cavalgar!

 

{viagem}

 A descida da cadeia montanhosa dá descanso à idade do carro.

 A estrada, apesar de molhada, parece ser uma pista de velocidade. A

constância da chuva, o nevoeiro tornado intermitente pelo alaranjado

dos quatro piscas e as fantasmagóricas informações luminosas asurgirem de entre o nevão, caram para trás. Mas nenhuma dessas

circunstâncias lhe alivia a pressão em que viaja.

O lapso entre a expressão completamente áspera das suas feições

e as emoções que devastam o seu sistema nervoso, em variaçõesimprevisíveis de humor, não coincide com a erupção constante de

memórias no seu espírito. Numa vigilância exaustiva do seu reexo

ao espelho, castra qualquer laivo de sensação ou arrependimento,

como se negasse, à estória vivida, a possibilidade de ter cometido

algum erro.

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Na tona dos seus esgares, bóia a culpa, face à puricação da tristeza

pelo choro. Mói-o devagarinho, em movimentos circulares. Estreita-lhe

o redil moral. Ferroa-o com o seu veneno.

 Avista, pela primeira vez, um sinal com a informação da distância quefalta percorrer até à sua cidade. No meio termo entre a consciência

do que ca para trás e do que terá ainda de enfrentar, ensaia um

sorriso, ao avistar um desvio de emergência que lhe oferece um

hipotético abrigo, face à inclinação vertiginosa dessa queda.

{cais}

 _Uma voz de nuances metálicas, ecoou na estação, anunciandouma partida. Ouviu-se um apito demorado e um comboio seguiu a

sua marcha_

Estavam assustados, perante o desconhecido daquela despedida.

Enquanto ela foi ao guichê comprar o bilhete, ele carregou os sacos,

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arrastando as sapatilhas pelo chão, como quem pontapeia uma lata,

com as mãos nos bolsos da acomodação frustrada.

Quando ela voltou, com o sorriso a empunhar o bilhete que a levaria

através da Europa, durante três meses, para realizar um Interrail ,deparou-se com o desamparo triste daquela gura. Percebeu, no

seu coração, que estava a enfrentar o início de um processo de

distanciamento irreversível. Mantendo a calma, dissimulou a alegria.

Perante a felicidade dela, o seu coração sentiu-se atraiçoado naentrega. Várias vezes, ao longo do Outono, a alertara para aquele

desapego que iria experimentar, com medo de o perceber como

abandono.

Deram um beijo agridoce. De entrelinhas de m e de intensidadedas vivências partilhadas. Abraçaram-se, na demora do tempo que

não queria acabar.

 _Uma voz de nuances metálicas, ecoou na estação, anunciando

uma partida. Ouviu-se um apito demorado e um comboio seguiu a

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sua marcha_

Ela partiu no seu embalo, chorando. Pela segunda vez, na sua vida,

ele cou a enar a mão nos bolsos do olhar baço, na indiferençado cais.

{viagem}

Chega a casa. Ao estacionar o carro, inspira profundamente,

agarrando o volante, com força. Abana-se para trás e para a frente,

ensaiando um grito mudo. Depois, devagar... expira. Conta de dez

até um e pega na roupa, aconchegando-a no colo. Ao entrar pela porta, atira o peso do regaço para um canto. As paredes

abatem-se sobre a sua solidão. As sombras dos espaços pesam-lhe

o silêncio. Deita-se na cama, com a barriga para cima e as mãos

cruzadas sob a nuca, a remoer a luz do tecto. Sem saber o que fazer

para que a dor passe ao lado do tempo, vai tomar um duche.

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 A água quente massaja-lhe as cãibras do cansaço da condução. A

determinado momento, a cortina tépida lava o sal que lhe escorre

compulsivamente pela sua face. O choro, assim disfarçado, não

o envergonha. Ao m de largos minutos, desliga a torneira eembrulha-se numa toalha.

Perdido na neblina do vapor, limpa o espelho e vê-se, longe do

 julgamento de valor ou da dicotomia que há entre a negação e a

aceitação... difuso, baço, (dis)torcido... na nudez da fragilidade.

 _Sente uma violenta dor física no peito_ 

{postais}

 Ao m de três dias, começou a receber postais. Pequenas fotograas

de locais por onde ela passara, notas repletas de recordações, textos

com as suas vivências, citações de autores de que ambos gostavam,

referências a letras das suas bandas preferidas... Sentia-se, naquele

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hábito, um cuidado a que não se conseguia car indiferente. Um

envelope por dia. Religiosamente.

 Ao m da primeira semana, duvidou que esse gesto se prolongasse

por um mês. Passado esse tempo, já não conseguia disfarçar aexpectativa provocada pela espera do carteiro, na cadência daquela

abnegação. Por altura do último mês da viagem, ela conseguira

fazê-lo sentir que não tinha existido um único momento de ausência

daquilo que, no amor que há na entrega, signica “estar presente”.Por m, nas costas de uma fotograa que eles tinham tirado na

intimidade do quarto dela, leu:

 – Vem ter comigo, meu amor... Estarei em minha casa, à tua espera,no dia seguinte a receberes esta fotograa, o último dos nossos

postais.

{viagem}

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Ela abre a porta do prédio e ouve-lhe os passos da respiração

esbaforida de quem sobe degraus, de par em par. No último lanço

ele detém-se. Estão um perante o outro, como se o tempo passado

desde o abraço dado na estação não tivesse existido. Quando osolhos brilham o consentimento do último passo que lhes anule a

distância, são os corações que se estão a permitir encontrar a paz

da felicidade, num beijo. Chama-o, no alvoroço do desejo.

Rasgam-se__arranham-se__mordem-se__lambem-se__despem-se__ murmuram-se__calam-se__choram-se__riem-se.

Deitam-se na cama, completamente despidos, a desenharem os

contornos do corpo um do outro, entre carícias. Ela faz-lhe juras

eternas, como quem segreda as palavras da alma. Ele torna-seprogressivamente distante. Assustada, tenta chamá-lo para o seu

colo. Afasta-a. Senta-se na beira da cama, voltando-lhe as costas,

como quem se prepara para partir...

 – Eu traí-te!

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|

Perante o baque, ela tenta falar, mas o único discurso que lhe sai

do peito é um carpir demorado de gemidos. É um murmúrio de dor

remoída e convulsa que se abre, sobre as mãos que lhe escondema vergonha à cara, em catadupa de lágrimas.

 _Sente uma violenta dor física no peito_ 

Ele sai, numa calma mortal, batendo a porta. Pára. Coloca a mão

na consciencialização do passado que encerra. Ainda duvida da

decisão tomada, por um instante. Depois, dá um passo na direcção

das escadas e inicia a viagem. 

{acidente vascular cerebral}

[Agarrar a consciência do peito, é a chuva pingada das circunstâncias,no ajoelhar da face circunspecta, perante o chão da identidade caída.]

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ILUSTRAÇÃO

FÁBIO VIEIRA | WHO