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ANDRÉ HENRIQUE MARIZ SALMERÓN A ORDEM DO MÉRITO: Um estudo sobre o atravessamento do discurso neoliberal no debate acerca das cotas raciais PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA São João del-Rei 2017

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ANDRÉ HENRIQUE MARIZ SALMERÓN

A ORDEM DO MÉRITO: Um estudo sobre o atravessamento do discurso neoliberal no debate acerca

das cotas raciais

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

São João del-Rei 2017

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DELAC – Departamento de Letras, Artes e Cultura Programa de Pós-graduação em Letras – Teoria Literária e Crítica da Cultura Programa de Mestrado em Letras

ANDRÉ HENRIQUE MARIZ SALMERÓN

A ORDEM DO MÉRITO: Um estudo sobre o atravessamento do discurso neoliberal no debate acerca

das cotas raciais Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura

Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social

Orientador: Prof. Dr. Ivan Vasconcelos Figueiredo

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

São João del-Rei 2017

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, aos meus familiares. Em especial: meu pai, Marcus; minha

mãe, Maria Estela; meu irmão, Gustavo. Este trabalho não seria possível sem seu apoio

constante e profundo.

Aos amigos e amigas que, por generosidade do destino, são demais para citar

individualmente. Agradeço de coração por todos os momentos que compartilhamos e, espero,

ainda iremos compartilhar. Gostaria de fazer um agradecimento especial a Igor Damasceno e

José Elenito Teixeira Morais, pelo auxílio decisivo na minha preparação para a prova de

ingresso no mestrado.

Ao Prof. Dr. Ivan Vasconcelos Figueiredo, deixo meu mais sincero agradecimento.

Sua orientação, conhecimento e senso crítico foram fundamentais para a conclusão deste

trabalho. Principalmente, agradeço pela confiança na minha capacidade, traduzida na

liberdade que me cedeu para o desenvolvimento dessa proposta.

Gostaria de agradecer também aos professores e professoras do Programa de Mestrado

em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, por me introduzirem ao campo da

análise do discurso. Em particular, enfatizo a importância das aulas dos professores Antônio

Luiz Assunção e Edmundo Narracci Gasparini, pelos debates ricos, estimulantes e frequentes.

Finalmente, agradeço ao apoio da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (Capes), pelo auxílio financeiro prestado.

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RESUMO

Esta dissertação se presta a um estudo da influência exercida pelo discurso neoliberal

no debate acerca das cotas raciais em universidades públicas brasileiras, com especial atenção

para o papel discursivo desempenhado pelas noções de mérito e meritocracia. Estas, são

compreendidas, respectivamente, como aquilo que expressa o merecimento e um sistema de

organização social pautado pelo merecimento. Por discurso neoliberal, compreendemos um

processo pela qual busca-se determinar um arranjo ideal de sociedade, capaz produzir o

funcionamento ótimo do mercado e de seus efeitos positivos – definição embasada pela leitura

que fazemos de “Nascimento da Biopolítica” (FOUCAULT, 2008). Para darmos cabo dessa

proposta, lançamos mão do arcabouço teórico da arqueologia do saber, conforme apresentada

por Foucault (1986). Dela, extraímos dois operadores analíticos principais: a formação

discursiva e o enunciado. O primeiro diz respeito às regularidades que regem um campo vasto

e disperso de fenômenos discursivos; o segundo, diz respeito às unidades mais básicas do

discurso, que se organizam e interagem para formar unidades mais amplas. Ambos foram

mobilizados para um estudo feito em duas frentes consecutivas: primeiro, em nível macro, nos

detemos naquilo que caracteriza o neoliberalismo enquanto fenômeno discursivo. Em seguida,

mobilizamos essa mesma análise em nível micro, tomando como material de análise

comentários feitos em resposta à matérias jornalísticas que tratam das cotas raciais, feitos em

quatro portais de notícia de grande porte (Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, UOL e G1).

Isso nos permitiu observar que, longe de constituir um ponto de dissenso, mérito e

meritocracia são pontos de consenso entre quem se opõe e quem defende as cotas raciais.

Através de uma série de procedimentos discursivos, ambos grupos buscam se adequar a

construção de um projeto ideal de meritocracia, capaz de isolar, em sua pureza, o mérito

individual. Isto ocorre na medida em que produzem e evocam uma série de saberes a respeito

dos mecanismos de concorrência que, na prática, visam produzir esse mérito – inclusive para

atenuar as distorções que pode comportar. Nessa medida, se ligam ao funcionamento do

discurso neoliberal, já que a instrumentalização da concorrência para tentar produzir uma

meritocracia pura serve justamente para auxiliar na consecução do projeto de mundo

neoliberal. Em suma: um arranjo de sociedade que comporte o funcionamento ideal do

mercado passa pela distribuição de papéis, funções e recompensa com base no merecimento

individual, que em tese se traduzirá no uso mais eficiente possível de recursos escassos

(incluindo-se aqui os próprios sujeitos).

Palavras-chave: neoliberalismo, cotas raciais, meritocracia, mérito, arqueologia do saber.

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ABSTRACT

This dissertation studies the way neoliberal discourse influence the debate regarding

the use of racial quotas in Brazilian public universities, with special regard to the discursive

role played by the notions of merit and meritocracy. We comprehend these as, respectively,

that which expresses why a certain person deserves something and a system of social

organization that focuses on rewarding based on deserving. By neoliberal discourse, we refer

to a process by subjects try to determine an ideal arrangement for society, that is capable of

producing the optimal functioning of the market and its positive effects - a definition that is

based upon a reading of Michel Foucault’s “The birth of biopolitics” (FOUCAULT, 2008).

In order to so, we rely upon the framework of an archeology of knowledge, as presented by

Foucault (1986). From said framework, we extracted two key concepts: the discursive

formation and the statement. The first is used to designate the forms of regularity that

permeate a vast and disperse array of discursive phenomena; the latter indicates the most

basic unities of discourse, that are nonetheless capable of organizing themselves and

interacting in ways that produce lengthier unities. We used both of them to create a study that

has two consecutive fronts: first, in macro level, we analyze what constitutes neoliberalism as

a discursive phenomenon. Next, we bring these analyses into the micro level, evaluating their

pertinence with regard to comments made by users on four different news regarding racial

quotas, made on four major Brazilian news outlets (Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo,

UOL and G1). That allowed us to see that, far from being a point of disagreement, merit and

meritocracy are actually a consensus among those who oppose and who support the use of

racial quotas. Through a series of discursive procedures, both groups seek to conform to the

construction of an idealized meritocracy. That is, one which is capable of isolating, in its pure

form, individual merit. This process takes place as they produce and evoke different

“knowledges” (savoirs) regarding the competition mechanisms that, in practicality, are

intended to produce said merit - including forms of reducing possible distortions the exist

therein. In that sense, they can be considered as part of a neoliberal discourse, since the way

they use competition mechanisms in an effort to produce a pure-form meritocracy contributes,

precisely, to the successful construction of a neoliberal world-project. In essence: a social

arrangement that allows for the optimal functioning of the market relies upon the distribution

of roles, functions and rewards based on individual merit, since (in theory) they will translate

into the most possibly efficient way of using scarce resources (including the subjects

themselves).

Keywords: neoliberalism, racial quotas, meritocracy, merit, archeology of knowledge.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 3

CAPÍTULO 1 – BREVE PANORAMA SOBRE AS COTAS RACIAIS NO BRASIL ........... 9

1.1. Considerações iniciais .................................................................................................................. 9

1.2. A implantação das cotas raciais nas universidades brasileiras ..................................................... 9

1.3. O debate entorno das cotas raciais ............................................................................................. 12

1.4. Ação afirmativa e cotas raciais ................................................................................................... 19

1.5. Racismo, raça, ações afirmativas ............................................................................................... 20

1.6. Histórico de implantação das cotas raciais na USP .................................................................... 22

1.7. Considerações finais ................................................................................................................... 28

CAPÍTULO 2 - POR UMA ANÁLISE ARQUEOLÓGICA DO DISCURSO ...................... 29

2.1. Considerações iniciais ................................................................................................................ 29

2.2. Análise arqueológica do discurso ............................................................................................... 29

2.2.1. As formações discursivas .................................................................................................... 35

2.3. Os enunciados e a função enunciativa ........................................................................................ 42

2.4. A análise arqueológica ............................................................................................................... 47

2.5. Considerações finais ................................................................................................................... 54

CAPÍTULO 3 - A FORMAÇÃO DISCURSIVA NEOLIBERAL ........................................ 55

3.1. Considerações iniciais ................................................................................................................ 55

3.2. Características do neoliberalismo ............................................................................................... 55

3.3. Do liberalismo ao neoliberalismo .............................................................................................. 56

3.4. Neoliberalismo: definições e críticas ......................................................................................... 59

3.5. Mérito e meritocracia: a problemática do merecimento ............................................................. 63

3.6. A formação discursiva neoliberal ............................................................................................... 68

3.6.1. Da formação dos objetos ..................................................................................................... 68

3.6.2. Da formação das modalidades enunciativas ........................................................................ 72

3.6.3. Da formação dos conceitos ................................................................................................. 76

3.6.4. Da formação das estratégias ................................................................................................ 82

3.7. Considerações finais ................................................................................................................... 87

CAPÍTULO 4 - ANÁLISE ................................................................................................... 89

4.1. Considerações iniciais ................................................................................................................ 89

4.2. Caracterização do material de análise ........................................................................................ 96

4.3. Procedimentos de análise ......................................................................................................... 101

4.4. O mérito enquanto objeto ......................................................................................................... 102

4.5. A materialidade do mérito ........................................................................................................ 119

4.6. Considerações finais ................................................................................................................. 123

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 125

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 128

ANEXO A – Matéria publicada pela Folha de S. Paulo ...................................................... 136

ANEXO B – Matéria publicada pelo Estado de S. Paulo .................................................... 139

ANEXO C – Matéria publicada pelo UOL ......................................................................... 141

ANEXO D – Matéria publicada pelo G1 ............................................................................ 143

ANEXO E – Comentários feitos na matéria publicada pela Folha de S. Paulo .................... 146

ANEXO F – Comentários feitos na matéria publicada pelo Estado de S. Paulo .................. 147

ANEXO G – Comentários feitos na matéria publicada pelo UOL ....................................... 149

ANEXO H – Comentários feitos na matéria publicada pelo G1 .......................................... 150

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INTRODUÇÃO

Ao longo das últimas duas décadas, uma das principais discussões realizadas no Brasil

tem sido aquela que diz respeito às políticas de ação afirmativa em universidades públicas.

Em especial, as que visam, especificamente, a população negra, sob a forma das cotas raciais

– medidas que reservam certo número de vagas a esse grupo, garantindo sua presença nas

instituições de educação superior públicas. Apesar de serem adotadas desde o início dos anos

2000, essas políticas são, ainda hoje, consideradas polêmicas: não há efetivo consenso a seu

respeito e o tema frequentemente desperta reações exaltadas tanto por parte de quem defende

quanto de quem rechaça sua existência.

Essa falta de consenso contribui para o surgimento, nesse contexto, de um conjunto

considerável de dizeres que versam sobre diferentes aspectos da cota racial, tais como: o

racismo e seus efeitos, a legitimidade dos auxílios públicos, a função social da competição, a

importância do educação superior na trajetória profissional. Esse processo, é bom lembrar, se

desenrola no estepe de uma crescente globalização. Como tal, se imbrica em processos

discursivos de alcance também global, que influenciam a maneira pela qual esses

posicionamentos são formados e as dinâmicas que engendram.

É o caso com determinado conjunto de saberes e práticas que, com as devidas

ressalvas, se inscrevem naquilo que veio a ser conhecido como neoliberalismo. Esse termo

designa, em linhas gerais, um processo pelo qual os antigos temas do liberalismo foram

reformulados e difundidos através do mundo no período posterior a Segunda Guerra Mundial,

ligando-se a fenômenos de ordem diversa: econômicos, políticos, institucionais etc.

Uma das várias facetas desse processo é o progressivo aumento do grau de

responsabilização individual pelas condições de existência, consequência mais ou menos

natural do aumento no espaço de atuação dos sujeitos privados e diminuição do espaço de

intervenção do Estado. Isso parece embasar a construção de um mecanismo de saber que

possa ser capaz de explicar fenômenos de mobilidade ou estagnação social em função das

características individuais. Referimo-nos, aqui, às noções – bem populares atualmente – de

mérito e de meritocracia, respectivamente compreendidas como forma difusa de merecimento

e como uma organização social que se pauta nesse mesmo merecimento.

Nesse sentido, mérito e meritocracia ligam-se a questão das cotas raciais e mostram-se

particularmente relevantes em vista da maneira pela qual encaram a temática do racismo e da

desigualdade racial. Como, na prática, o binômio mérito-meritocracia tem servido como

principal crivo de legitimidade das ações afirmativas, nos parece também necessário avaliar

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como ambos são discursivamente construídos no interior do debate sobre cotas. De um modo

geral, partimos da afirmação sobre a existência de determinada influência e atravessamento do

discurso neoliberal em ambos lados da contenda, manifesta no modo como articulam tais

noções.

Para dar consistência a esse entendimento, realizamos, na presente dissertação, um

estudo que segue em duas direções. Num primeiro momento, nos remetemos a uma dimensão

bastante geral, que visa descrever algumas características-chave do discurso neoliberal e o

papel exercido pela noção de mérito. Num segundo momento, focalizamos nos comentários

realizados em portais de notícia on-line para permiter uma investigação, em termos concretos,

daquilo que argumentamos em caráter mais abstrato e teórico.

Tais comentários foram feitos em matérias jornalísticas publicadas por quatro portais

brasileiros de grande porte. A saber: Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, UOL e G1. Todas

tratam do mesmo tema: a aprovação das cotas raciais na Universidade de São Paulo (USP),

em publicações veiculadas entre 3 e 4 de julho de 2017. Decidimos por comentários feitos em

matérias a respeito da Universidade de São Paulo (USP) tendo em vista a particularidade do

trajeto de aprovação das cotas nessa universidade: ao mesmo tempo, foi a que tendeu a

oferecer mais resistência à implantação desse tipo de política e a que mais parece ter insistido

em alternativas que não interferissem diretamente no seu processo seletivo vestibular com o

intuito de preservar o mérito acadêmico.

A USP, na condição de universidade estadual, não foi afetada pela legislação que

determinava a implantação de cotas em universidades públicas federais – aprovada em 2012 e

sancionada no mesmo ano. Isso permitiu a ela gozar de uma autonomia diferenciada no que

diz respeito à implantação ou não das cotas. Além disso, levamos em consideração o peso

simbólico da USP: é uma das universidades mais prestigiadas e tradicionais do país, liderando

também o número de estudantes1 dentre as universidades públicas brasileiras. Como é

frequentemente tomada como referência em educação, a aprovação das cotas raciais nessa

instituição representa um importante marco na história das políticas de ação afirmativa.

Para orientar nossa pesquisa, lançamos mão do quadro teórico desenvolvido por

Foucault (1986) para uma arqueologia dos saberes discursivos. As particularidades dessa

premissa teórica, que lida com o discurso justamente em sua condição de fenômeno disperso e

heterogêneo, alicerça a proposta em questão, tendo em vista que nos permite lidar com a

natureza complexa do discurso neoliberal. Além disso, a abordagem descentralizada, um dos

1 Dados de 2015 apontam um total de aproximadamente 94 mil estudantes. Disponível em: <https://uspdigital.usp.br/anuario/br/tabelas/PDF/2014/usp_em_numeros.pdf>. Acesso em 10 out. 2017.

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traços do arcabouço foucaultiano, nos permite atentar para diferentes facetas do processo

discursivo e investigá-lo segundo diferentes perspectivas.

Para embasar aquilo que compreendemos por “neoliberal”, apoiamo-nos em outro

trabalho de Michel Foucault: “Nascimento da biopolítica” (2008). Nele, o autor se detém

longamente sobre os pontos centrais que caracterizam a formação do neoliberalismo ou, em

outros termos, os diferentes processos que marcam sua diferenciação do liberalismo clássico.

Esse conjunto específico de transformações permite mostrar como a noção de mérito encontra

suas condições específicas de existência no mundo contemporâneo, onde ganha ares

prerrogativa moral e se torna objeto de uma disputa discursiva contínua.

Com isso em mente, podemos remeter a questão da representatividade do material

analisado. Como nosso trabalho foi organizado em duas frentes – macro e micro –, nos cabe

esclarecer a relação que se estabelece entre as duas. Ao tratarmos da primeira, consideramos

uma variedade relativamente grande de textos – em conformidade com a proposta

foucaultiana de arqueologia. Resultam daí apontamentos que têm caráter bastante geral:

lançamos um olhar disperso sobre o funcionamento do discurso neoliberal e o modo como

atravessa o debate sobre cotas raciais através das noções de mérito e meritocracia.

Ao tratarmos da segunda, nos detivemos em um material de análise bem mais restrito.

Como a primeira extrapola a segunda, existe certa discrepância que não nos permite dizer que

os comentários que analisamos sejam representativos do debate como um todo, tampouco que

atestam a validade geral dessas afirmações. Como a arqueologia foucaultiana envolve tratar

de fenômenos dispersos e heterogêneos, é forçoso falar em representatividade de um material

que não seja, no mínimo, igualmente disperso e heterogêneo. A análise efetuada nesta

pesquisa trata-se, portanto, de um olhar pontual e restrito ao objeto e contexto investigativo.

Por representatividade, compreendemos aquilo que nos autoriza presumir que as

características observadas em um número reduzido de elementos é extensível a todos os

outros elementos de natureza similar, mas que não foram considerados no estudo. Se

compreendida dessa forma, ela aqui perde força porque não trabalhamos com elementos

representáveis entre si. Em paralelo, analisar um corpus dessa natureza excederia em muito os

limites desta pesquisa.

A esse respeito, o material que foi coletado e analisado serve para ilustrar uma

validade local do nosso estudo, que é dada com relação apenas aquilo que foi recortado. Em

pesquisas futuras, caso sejamos capazes de demonstrar que essa validade local ocorre em

vários pontos do mundo social (portanto, em diferentes corpora, refletindo a dispersão do

discurso), poderemos nos dizer mais próximos de uma comprovação. Até lá, nos contentamos

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com a confirmação parcial, tomando o cuidado de indicar as restrições cabíveis na sua

validade e que foram indicadas adiante.

Tal limitação não significa que o material coletado não tenha importância ou

relevância acadêmica, social e política. Primeiro, porque ilustram certos posicionamentos que

nos parecem comuns a uma parcela significativa da sociedade brasileira – temos confiança de

que nenhum deles soará totalmente estranho aos(às) leitores(as). Em segundo lugar, porque

esse primeiro estudo nos provém base para uma futura pesquisa sobre as relações discursivas

que permeiam a defesa e o repúdio às cotas raciais em outros contextos.

Com tais pontos em mente, podemos elencar considerações prévias para nosso estudo.

O neoliberalismo, que rearticula relações e formas de organização social para adequá-los a

uma série de entendimentos a respeito do funcionamento do mercado e da ação humana frente

aos mesmos, nos parece exercer influência considerável no debate sobre as cotas raciais. A

esse respeito, traçamos quatro hipóteses, que buscamos desenvolver e consolidar ao longo

deste trabalho. Todas elas foram organizadas ao redor dos quatro eixos de análise propostos

por Foucault (1986) como parte de sua arqueologia.

A primeira diz respeito a maneira pela qual o mérito, enquanto objeto discursivo, se

constrói em relação direta com o estabelecimento de mecanismos de concorrência entre

indivíduos. Engendra, assim, uma disputa discursiva em torno dos princípios de equivalência

entre eles – mormente, na polarização do mérito de cotistas versus o de não-cotistas – para

legitimar ou deslegitimar as cotas raciais.

A segunda: existem certas condições discursivamente impostas aos sujeitos para que

possam se inserir no mérito e se declararem detentores do mesmo. Estas se relacionam a

construção de um aparato institucional que vise barrar o acesso a esse mérito, tendo na

concorrência seu instrumento principal.

A terceira hipótese dá conta de que dois conceitos-chave nesse debate, dívida histórica

e vitimização, se constituem frente ao horizonte discursivo do mérito. A dívida histórica

refere-se ao entendimento de que cabe à sociedade e ao Estado prestar reparação às mazelas

perenes da escravidão. O segundo, insiste, por vias diversas, que não há reparação possível e

que a demanda por políticas públicas voltadas para negros(as) é mera vitimização: um suposto

artifício para tentar obter vantagens competitivas indevidas e se eximir da responsabilidade de

melhorar, por conta própria, as condições de vida. A nosso ver, ambos, contudo, promovem

uma leitura histórica da concorrência e do acúmulo (ou não) de mérito, tendo em vista

explicar as condições de existência (precárias ou privilegiadas) de grupos contemporâneos.

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Das diferenças no modo como traçam esse percurso, instauram-se diferentes entendimentos

no que tange a legitimidade de políticas de ação afirmativa.

A quarta e derradeira hipótese estabelece que o jogo no debate sobre cotas é

determinado pela possibilidade de limitar ou anular as concepções de mérito do grupo rival.

Na prática, isso envolve inibir a aceitabilidade de certos dizeres que tocam a produção

discursiva do mérito, responsáveis por lastrear a legitimidade das cotas raciais perante uma

parcela significativa da população. Logo, afetando, as possibilidades de mobilidade social de

quem delas usufrui. Portanto, algo que constitui um objetivo estratégico relevante para ambos

lados da contenda e que se liga aos interesses dos vários grupos que se inserem nesse debate.

Antes de darmos prosseguimento ao nosso estudo, gostaríamos de ressaltar que a

presente dissertação possui certa vocação teórica e abstrata, razão pela qual buscamos nos

ancorar em um fenômeno concreto: o da discussão em torno das cotas raciais. Entretanto,

leitores(as) notarão que, em alguns momentos, existe certo grau de tensão entre a ancoragem

em fenômenos empíricos e a inclinação ao debate abstrato.

O trabalho foi dividido da seguinte forma: o capítulo 1 propõe traçar um breve

panorama do debate sobre as cotas raciais no Brasil. Começamos com um resgate histórico

das ações afirmativas no país, seguido de uma discussão na qual elencamos os principais

argumentos apresentados contra e a favor de sua existência. Ao fim, analisamos a trajetória

específica da USP e as particularidades que precederam a adoção das cotas raciais na

instituição.

O capítulo 2 é dedicado a exposição das premissas teóricas da arqueologia de Foucault

(1986), com especial atenção para sua especificidade em relação a outras abordagens de

análise do discurso. Buscamos estabelecer as bases para a compreensão de dois operadores

teóricos principais: a formação discursiva e o enunciado. Juntos, compõe a noção foucaultiana

de discurso (enunciados regidos por uma mesma formação discursiva), designando, assim,

uma forma regular de dispersão. Essa discussão é atravessada por referências às três primeiras

obras de Michel Foucault, consideradas por ele como aplicações preliminares da arqueologia,

lhe servindo de ponto de partida para “A arqueologia do saber” (FOUCAULT, 1986).

O capítulo 3 se dedica ao estudo do neoliberalismo e de sua caracterização enquanto

formação discursiva, compreendendo, com isto, a forma pela qual rege um conjunto

específico de dizeres. A esse respeito, indicamos como se manifesta e gera efeitos no debate

sobre as cotas raciais, dando corpo às hipóteses apresentas acima. Estas se remetem a

processos de construção discursiva do mérito com base nos quatro eixos de análise propostos

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por Foucault (1986): de um sistema de formação dos objetos discursivos, das modalidades

enunciativas, dos conceitos e dos desenvolvimentos estratégicos.

O capítulo 4 traz uma série de análises de comentários feitos em portais de notícia –

para efeitos de análise, cada um foi tomado como um enunciado. Devido ao volume do

material (300 comentários), foram selecionados apenas alguns, em vista de sua

representatividade em relação ao conjunto em questão – e não, como ressaltamos acima, do

debate sobre as cotas como um todo. O objetivo é mostrar como o neoliberalismo afeta a

produção discursiva do mérito no contexto micro: no nível das interações virtuais cotidianas,

nos mantendo aqui num caso específico. Logo, se orienta pelos mesmos quatro eixos de

análise usados no capítulo anterior, que nos permitem mostrar como esses comentários se

ligam a dimensão mais geral de uma formação discursiva neoliberal.

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CAPÍTULO 1 – BREVE PANORAMA SOBRE AS COTAS RACIAIS NO BRASIL

1.1. Considerações iniciais

Como dissemos, o presente capítulo serve a função de situar o(a) leitor(a) no contexto

atual do debate sobre as cotas raciais no Brasil, considerando também o caso específico da

Universidade de São Paulo (USP). Buscamos fazer isso de forma diversificada, promovendo

tanto um resgate histórico a respeito da sua implantação como uma apresentação dos

principais pontos levantados tanto por quem é contra ou quanto quem é a favor dessas

políticas. Essa contextualização prévia é necessária para que, mais a frente, possamos avançar

de forma desimpedida na discussão desses temas, centrais para essa dissertação.

1.2. A implantação das cotas raciais nas universidades brasileiras

A discussão sobre as cotas raciais ganhou substancial notoriedade no Brasil no fim dos

anos 1990 e início dos anos 2000. Num período relativamente curto – cerca de dez anos –,

passaram de ação isolada e pontual para uma política pública de alcance nacional. O ponto de

partida para esse processo foi a promulgação da lei nº 3.524, do Estado do Rio de Janeiro, que

determina a reserva de 50% das vagas em universidades públicas estaduais para

candidatos(as) que cursaram a integridade do ensino fundamental e médio em escolas

públicas fluminenses.

Tratava-se, no caso, de medida então inédita na educação superior brasileira. Graças a

ela, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) se tornou a primeira universidade de

grande porte a adotar uma política institucional de reserva de vagas. As cotas raciais só seriam

adotadas na UERJ a partir do vestibular de 2003, em vista da Lei Estadual 3.708 (de 2001) e

do Decreto Estadual 30.766 (de 2002), que a regulamenta.

Mais ou menos no mesmo período (2003 - 2004), a Universidade Estadual do Mato

Grosso do Sul (UEMS) realizou seu primeiro vestibular com cotas raciais – a reserva foi da

ordem de 20% do total de vagas oferecidas, equivalentes a 3.588 vagas nos diversos cursos

oferecidos pela instituição (CORDEIRO, 2013). Caso também da Universidade Federal da

Bahia (UFBA), que aprovou, em 2004, reserva de 43% do total de vagas para candidatos(as)

que cursaram os três últimos anos do ensino médio e, ao menos, um dos anos do ensino

fundamental em escolas públicas. Destas, 85% eram reservados a quem se autodeclarava

negro(a) ou pardo(a). (DOS SANTOS; QUEIROZ, 2013).

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Apesar de adotadas por diversas outras universidades federais ou estaduais, a política

de cotas raciais adotada pela Universidade de Brasília (UnB) foi a que mais causou

repercussão no cenário nacional. A proposta foi formalmente apresentada ao Conselho de

Ensino, Pesquisa e Extensão, em 2002, pelos professores José Jorge de Carvalho e Rita Laura

Segato, ambos vinculados ao Departamento de Antropologia. Aprovada em 2003, determinou

a reserva de 20% das vagas da universidade para negros(as), sem referência à condição

socioeconômica. A medida passou a vigorar no vestibular de inverno do ano seguinte

(segundo semestre de 2004).

A polêmica principal surgiu quando a UnB definiu as regras para participação de

candidatos(as) que desejem concorrer como cotistas. No ato da inscrição, deveriam ser

fotografados(as), tendo suas respectivas fotos anexadas à documentação e, posteriormente,

submetidas à avaliação de uma comissão que deveria deferir ou indeferir sua na reserva de

vagas. Na ocasião, 212 pessoas, de um total de 4.385, não tiveram suas candidaturas

homologadas (equivalente a 4,8% dos(as) inscritos(as) para a modalidade de cotas raciais)

(FOLHA DE S. PAULO, 2004). Três anos depois (2007), a UnB voltou ao centro dos debates

sobre cotas raciais ao dar pareceres diferentes para dois irmãos, gêmeos idênticos (BASSETE,

2007; PINHO, 2007). Após entrar com recurso contestando a decisão, o candidato

prejudicado foi autorizado a participar da seleção como cotista. Em 2008, ano seguinte a esse

incidente, a UnB modificou as regras para participação de cotistas e abandonou o uso de

fotografias. No lugar delas, seria realizada uma entrevista com uma banca responsável por

confirmar a autodeclaração após o fim dos exames de seleção (UNIVERSIDADE DE

BRASÍLIA, 2013).

Por volta de 2008, as cotas (de diferentes tipos) já haviam sido adotadas de maneira

bem mais ampla. Conforme indica a Folha de S. Paulo (GOIS, 2008), com base em dados

produzidos pelo Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, 22 das 53 universidades federais

brasileiras utilizavam alguma modalidade de cota (42%); 18 universidades estaduais, de um

total de 35, faziam o mesmo (51%). Desse total, 33 delas (64%) também adotavam políticas

de cotas voltadas especificamente para a população negra. Estas incluíam importantes centros

de ensino superior, como a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a Universidade

Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),

Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS).

Em 2009, o partido Democratas (DEM) deu entrada em uma Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 186) no Supremo Tribunal Federal

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(STF) (NOTÍCIAS STF, 2009). De forma sucinta, a ADPF é um processo que visa reparar

uma possível lesão a um preceito fundamental da Constituição. Especificamente, o documento

sugere a violação dos:

[...] princípios republicano (artigo 1º, caput) e da dignidade da pessoa humana (inciso III); dispositivo constitucional que veda o preconceito de cor e a discriminação (artigo 3º, inciso IV); repúdio ao racismo (artigo 4º, inciso VIII); Igualdade (artigo 5º, incisos I), Legalidade (inciso II), direito à informação dos órgãos públicos (XXXIII), combate ao racismo (XLII) e devido processo legal (LIV). (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2009).

Além destes, sugerem ainda a violação dos:

[...] princípios da legalidade, da impessoalidade, da razoabilidade, da publicidade e da moralidade, corolários do princípio republicano (artigo 37, caput); direito universal à educação (artigo 205); igualdade nas condições de acesso ao ensino (artigo 206, caput e inciso I); autonomia universitária (artigo 207, caput); princípio meritocrático – acesso ao ensino segundo a capacidade de cada um (artigo 208, inciso V). (Idem)

A maior parte dos argumentos legais feitos pelo Democratas giram em torno de uma

leitura específica do princípio constitucional de igualdade. Em síntese, estaria vetado ao

Estado brasileiro discriminar determinado grupo para torná-lo objeto de uma política pública

– ainda que esta vise explicitamente corrigir desigualdades concretas. O argumento do partido

procura sobrepor, assim, a igualdade formal, expressa no texto constitucional, à igualdade

substantiva, aquela passível de ser constatada no mundo social.

Esse mesmo processo incluía o pedido de uma liminar2 que suspendesse a matrícula de

candidatos(as) aprovados(as) pelo sistema de cotas raciais no vestibular de 2008 da UnB.

Alguns dias depois, o pedido de liminar foi negado pelo então presidente do STF, ministro

Gilmar Mendes. Contudo, o desfecho do processo só se daria três anos mais tarde. Na ocasião,

26 de abril de 2012, a corte decidiu, por unanimidade, pela constitucionalidade da reserva de

vagas com critério étnico-racial.

Em 29 de agosto de 2012, cerca quatro meses após o julgamento da ADPF 186, a

então presidenta, Dilma Rousseff, sancionou a lei 12.711 – que ficou popularmente conhecida

como Lei das Cotas. Com ela, determinou a obrigatoriedade da reserva de vagas em todas as

instituições federais de ensino superior e regulamentou o funcionamento das políticas de

cotas, que anteriormente variavam de uma instituição para outra.

A lei dispõe que 50% das vagas oferecidas por instituições federais de ensino superior

sejam reservadas para alunos(as) oriundos(as) de escolas públicas. Dessa reserva, 50% deve

2 A liminar é uma ordem judicial temporária, geralmente estabelecida logo no início de um litígio.

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ficará destinado àqueles(as) que tiverem renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo.

Desse montante, fica reservado aos(às) autodeclarados(as) negros(as), pardos(as) ou

indígenas, um total de vagas no mínimo igual a proporção desses grupos na Unidade

Federativa em questão, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE).

Segundo dados da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial,

150 mil estudantes foram beneficiados(as) pelas cotas raciais entre 2013 e 2015. De 1997 a

2013, a porcentagem de alunos(as) negros(as) com idade entre 18 e 24 anos que cursaram ou

concluíram o ensino superior saltou de 1,8 para 11%; entre pardos, essa cifra passou de 2,2%

para 11%.

1.3. O debate entorno das cotas raciais

O debate sobre as cotas raciais passa por uma série de questões delicadas,

estabelecendo polêmicas nos vários campos de conhecimento que delas tratam. Contudo,

ainda que dê origem a uma profusão de dizeres, certos argumentos – ou, melhor dizendo,

diretrizes argumentativas – parecem se repetir. Feres Júnior (2007), atento a essa tendência,

traça um panorama bastante interessante das formas pela qual as ações afirmativas, dentre elas

as cotas raciais, são justificadas no Brasil.

O autor cita três argumentos que, “[...] têm sido historicamente os pilares sobre os

quais se assenta a justificação de tais políticas, seja no Brasil ou em outros países onde essas

políticas já estão em funcionamento há mais tempo” (FERES JÚNIOR, 2007, p. 1). A saber: a

reparação, a diversidade e a justiça distributiva. Com as devidas ressalvas, todos os três

refletem no plano nacional aquilo que foi objeto de longo debate nos Estados Unidos –

destarte, atente-se para o fato de que as cotas raciais foram proibidas nesse país por decisão de

sua Suprema Corte; demais formas de ação afirmativa são, tecnicamente3, permitidas.

Entretanto, há diferenças marcantes no debate público realizado nos Estados Unidos e

no Brasil. Uma das principais diferenças, como destaca Feres Júnior (2007), é o fato de que

nos Estados Unidos esses três eixos argumentativos foram trabalhados ao longo de algumas

décadas, com cada um deles ganhando preponderância no debate público. No caso do Brasil,

os três se apresentaram de forma simultânea e súbita: apenas nove anos separam as primeiras

políticas locais de ação afirmativa da publicação da lei que instituiu sua obrigatoriedade em

todas as instituições federais de ensino superior.

3 Do ponto de vista constitucional, são permitidas. Mas os Estados que compõe a União podem, graças ao grau de autonomia que lhes é dispensado, proibir o uso de ações afirmativas no seu território de jurisdição.

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Outra diferença crucial, esta não ressaltada pelo autor, está na diferença considerável

na maneira como as instituições brasileiras e estadunidenses selecionam seus(as) futuros(as)

estudantes. Nesse último, tanto para universidades públicas quanto privadas, o processo

envolve a consideração de uma série de fatores: notas em exames padronizados e histórico

escolar, atividades extracurriculares, entrevistas, cartas de apresentação ou indicação,

habilidade atlética ou musical (para integrar equipes esportivas ou orquestras), para citar

alguns. Em meio a essa profusão de fatores, a identificação racial ou origem étnica (negro,

branco, asiático, latino etc.) surge como um fator dentre outros -- e pode ou não ser

considerado para efeitos de composição do corpo estudantil. No caso do Brasil, o acesso é

condicionado a uma disputa muito menos complexa, à partir do resultado obtido em uma

única prova.

Quanto às três formas de justificação citadas por Feres Júnior (2007), as

compreendemos não como argumentos em si, mas como eixos de deliberação e conflito

discursivo: lócus onde diferentes sujeitos se enfrentam para reforçar ou anular a validade

desses argumentos segundo dinâmicas discursivas diversas. Partindo dessa concepção,

podemos explorar com maior profundidade cada uma dessas linhas de argumentação.

As justificativas que se apoiam na reparação histórica são, em larga medida,

autoexplicativas: “[...] visam restituir ou mitigar perdas provenientes de injúria ou crime do

passado – a escravidão é o exemplo mais claro e também mais significativo” (FERES

JÚNIOR, CAMPOS, 2013). Ademais, “[...] é um argumento de grande apelo moral e que

justifica medidas compensatórias tanto para descendentes de africanos, que foram trazidos

para esse país à força e escravizados, como para indígenas e seus descendentes” (FERES

JÚNIOR, 2004, p. 11). Entretanto, o autor atenta para alguns problemas de ordem prática, que

põe em risco a plausibilidade de ações que se lastreiam, exclusivamente, sobre a ideia de

reparação.

Em primeiro lugar, porque o direito a reparação “se torna cada vez mais difuso à

medida que os crimes do passado se distanciam no tempo” (p. 73). Paralelamente, ressalta

Feres Júnior (2007), esse direito não é facilmente transferível, tampouco a imputação de

responsabilidade por eles. Dois outros empecilhos-chave envolvem o conhecido grau de

miscigenação no Brasil e a consequente identificação dos(as) recipientes da reparação. Isso,

contudo, caso levássemos ao pé da letra a ideia de reparação. Na prática, a reparação tem

efeito muito mais simbólico e difuso – como veremos adiante, fornecendo um respaldo apenas

lateral a construção dos argumentos pró-cotas, sustentado principalmente pela noção de

justiça social.

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No que tange a questão da diversidade, ela parte essencialmente da compreensão de

que as instituições (públicas e privadas) de uma sociedade devem refletir, em alguma escala, a

sua constituição populacional. Nesse sentido, diz respeito mais a uma representatividade,

capacidade de espelhar, de forma fidedigna, a diversidade que caracteriza uma dada

sociedade: os vários grupos religiosos, étnicos, econômicos, culturais etc. Esse tipo de

argumento foi historicamente decisivo para a manutenção das ações afirmativas nos Estados

Unidos e, em alguma medida, no Brasil.

No que toca a realidade estadunidense, essa valorização é possibilitada e alimentada

pelo próprio processo de seleção de futuros(as) alunos(as), que permite alvejar a origem

étnica ou cultural e incluí-la como elemento de consideração no processo seletivo, sem a

necessidade de utilização de cotas ou de bonificações sobre as notas em exames padronizados

(ambas práticas consideradas inconstitucionais pela Suprema Corte do país). Como a maior

parte das universidades do avaliam individualmente as candidaturas, segundo regras e

parâmetros próprios, podem buscar qualquer composição étnica que julgarem desejável (dado

que esse não seja o único critério utilizado, nem que seja expressamente preponderante4).

Contudo, vale lembrar que o respaldo dado a esse tipo de argumentação não remete

necessariamente nem a reparação histórica, nem a questões de justiça social. Como apontam

Feres Júnior e Campos (2013), “[...] a justificativa não é a justiça em si ou a luta contra a

desigualdade, mas sim o aumento da qualidade do serviço educacional prestado pelas

universidades” (p. 87). Portanto, tem caráter utilitário: é válido porque, do ponto de vista

concreto, é benéfico para a sociedade como um todo na medida em que melhora a qualidade

da educação e da formação profissional. No Brasil, este argumento opera de modo similar,

conquanto mais difuso do que no caso estadunidense. No geral, o entendimento é de que a

inclusão de grupos desfavorecidos na universidade é positiva para todas as partes envolvidas.

Contudo, esse não chega a ser o pilar principal da justificação das ações afirmativas.

A justiça social é que parece ser, hoje, o principal pilar para a justificação das ações

afirmativas no Brasil. Feres Júnior (2007), à época, sugeriu que esse ponto não recebia a

devida atenção, mas, de lá para cá, a situação parece ter se invertido e ele agora desponta

como princípio-chave para a defesa das cotas raciais. Ainda que careça de uma definição

precisa no texto em questão, ela é retificada em outro trabalho do autor, com base no princípio

de que: “qualquer desigualdade injustificada constitui de fato uma injustiça que

4 Uma vez que isso implicaria na possibilidade de barrar a entrada de candidatos(as) com base na cor, abrindo claro precedente racista e constituindo prática segregacionista.

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potencialmente deve ser de alguma maneira mitigada por ação estatal” (FERES JÚNIOR;

CAMPOS, 2013, p. 87).

Esse entendimento serve para embasar a noção de igualdade substantiva, que Feres

Júnior (2007) aponta como “fulcro normativo da ação afirmativa” (p. 4). Por esse termo,

entenda-se a suspensão localizada do princípio de igualdade formal (ou seja, que dispensa

tratamento igual a todos) em prol de uma igualdade a se buscar, a se produzir – no caso, por

meio de ações que corrijam desigualdades injustificadas, como aquelas que tem embasamento

racial.

De modo simplificado: como a população negra não é tratada em termos iguais,

havendo correlação estreita entre cor e condições precárias de existência em vários âmbitos da

vida, dispensar-lhe tratamento formalmente igual caracterizaria mais uma omissão ou

passividade por parte do Estado do seu respeito às liberdades civis. Gostaríamos de ressaltar

que essa questão foi alvo de extenso e interessante debate no contexto dos Estados Unidos,

sobretudo entre cientistas políticos ligados a ciência política de viés liberal.5

A predominância do argumento em torno da justiça social entre defensores(as) das

cotas raciais foi indicada também por Campos (2012), em estudo que considerou as

contribuições de acadêmicos(as) para os jornais Folha de S. Paulo e O Globo – os dois de

maior circulação no país – a respeito do tema, entre os anos de 2001 e 2007. Em seguida, os

dois com maior incidência são, como havia destacado Feres Júnior (2007), a reparação

histórica e o reconhecimento/estímulo à diversidade.

Esses três elementos, apesar de representativos do debate sobre as cotas raciais, não

levam em conta certas controvérsias que são particulares ao Brasil. Conforme indicado em

Campos (2012), uma parte significativa da querela nacional em torno das cotas raciais tem a

ver com posicionamentos divergentes em relação a certas premissas do pensamento de

Gilberto Freyre6 a respeito das relações raciais no Brasil. Em especial, a tese segundo a qual

as particularidades do processo de formação social e histórica do Brasil fizeram dele uma

democracia racial. Isto no sentido de que o país nunca chegou a estabelecer critérios rígidos

de pertencimento racial.

5 Os trabalhos de Feres Júnior, Campos (2013) e Campos, Feres Júnior (2013), fornecem uma excelente introdução a esse tema. O primeiro, abordando a relação entre ação afirmativa e a teoria da justiça de John Rawls; o segundo, se detendo na relação entre ação afirmativa e teorias multiculturalistas e comunitaristas, com especial atenção ao modo como foram articuladas no pensamento acadêmico brasileiro. 6 Gilberto Freyre (1900 – 1987) é um sociólogo brasileiro, amplamente reconhecido como um dos mais influentes autores a respeito das relações raciais no Brasil. Dentre suas obras mais famosas, destaca-se “Casa-Grande e Senzala”.

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Para Freyre (2003, 1948), ainda que o preconceito de cor exista, a animosidade racial

nunca chegou a caracterizar um ponto de tensão, divisão ou exclusão explícita na sociedade

brasileira, tal como ocorrera nos EUA e África do Sul, por exemplo. Pelo contrário, surgiu

como um elemento étnico dentre outros, que se juntavam para compor uma identidade

nacional fundada em torno da pluralidade, da proverbial mistura de todos os povos. Em última

instância, isso serviu para avançar, no decurso do século XX, o entendimento de que a

sociedade brasileira não precisa realizar uma integração racial porque estas nunca chegaram a

se constituir.

Campos (2012, p. 65) lembra que é muito raro se deparar com alguém que defenda a

existência plena de uma democracia racial no Brasil – com isto, compreendendo a

inexistência de racismo. Entretanto, atenta o autor, isso não impediu que “alguns cientistas

sociais engajados na controvérsia [das cotas raciais] utilizassem a expressão como forma de

referir-se a um ideal utópico de nação que, como ideal, não deveria ser abandonado”.

Presumindo-se que o país caminhava para a consolidação desse projeto, as cotas

seriam um desvio no avanço dessa meta. Por outro lado, respaldando-se na falta de evidências

de que o país de fato caminha para uma democracia racial, essa noção desponta como um

mito a ser superado e cujos efeitos nocivos devem ser postos à mostra. Essas questões

implicam diretamente no debate sobre as cotas raciais.

Caso se compreenda que a democracia racial de fato se aplica a realidade social

brasileira, a exclusão - em vista da ideia de raça - não se concretiza e as ações afirmativas para

negros(as) se mostraria desnecessária. Paralelamente, negar que exista uma democracia racial

significaria admitir que a exclusão ocorre também em termos raciais, o que justificaria a

necessidade de ações que visem especificamente o impacto do racismo.

Para melhor esclarecer como essas diferentes perspectivas a respeito da realidade

social brasileira são transpostas ao debate sobre cotas raciais, sugerimos tomar os trabalhos de

Maggie e Fry (2004) e Munanga (2001; 2007). Escolhemos esse grupo de autores(a) em vista

do protagonismo que exerceram e exercem nessa discussão no plano acadêmico – no caso de

Yvonne Maggie e Peter Fry, também midiático7. Os dois últimos partem da ideia de que o

Brasil efetivamente caminhava para uma democracia racial – tal como a vislumbrava Gilberto

Freyre. Porém, as cotas raciais teriam interrompido tal processo na medida em que:

7 Ambos assinaram diversos artigos de opinião publicados em jornais de grande circulação, como O Globo e Folha de S. Paulo.

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[...] rompem não só com o a-racismo8 e o anti-racismo tradicionais, mas também com a forte ideologia que define o Brasil como país da mistura, ou, como preferia Gilberto Freyre, do hibridismo. As ações afirmativas implicam, evidentemente, imaginar o Brasil composto não de infinitas misturas, mas de grupos estanques: os que têm e os que não têm direito à ação afirmativa, no caso em questão, “negros” e “brancos”. (MAGGIE; FRY, 2004, p. 68).

Seguindo nesse sentido, os autores elencam uma série de críticas às políticas de ação

afirmativa. O primeiro, de que a Constituição Federal teria sido escrita em consonância com a

ideia de uma democracia racial. Assim, “[...] discriminar, mesmo que positivamente, é uma

forma de racismo e corre contra a ‘tradição brasileira’” (MAGGIE; FRY, 2004, p. 70). Como

vimos, o Supremo Tribunal Federal (STF), instância jurídica máxima no Brasil, discordou

desse argumento e determinou, por unanimidade, a constitucionalidade das cotas raciais. De

toda forma, não são raras as situações em que esse tipo de argumento é reativado, ignorando

ou questionando a decisão da Corte.

Munanga (2007), jogando com a referência a letra fria da lei, aponta que é possível:

“inverter o raciocínio e ver na cota medidas de correção das desigualdades geradas pela

discriminação que, apesar da lei, existe efetivamente e não como introdução de uma nova

injustiça” (p. 14, grifos nossos). Entre respeitar uma democracia racial que não dá sinais da

sua existência e intervir no contexto da discriminação racial – vetado pela mesma

Constituição – Munanga (2007) opta pelo segundo caminho, indagando se: “não está na hora

de rever os paradigmas deste direito que nos acostumou a tratar igualmente seres desiguais?”

(MUNANGA, 2007, p. 14).

Outra crítica bastante comum e reverberada por Maggie e Fry (2004), está na

consideração de que não seria possível distinguir quem é branco e quem é negro no Brasil.

Ademais, que “[...] os formuladores das leis estão cientes desse problema, tanto é que não

definiram quem é branco ou quem é negro a partir de dados “objetivos”, deixando a definição

para quem se candidata” (MAGGIE, FRY, 2004, p. 100). Remetem, mais uma vez, ao tema

da miscigenação enquanto traço fundador da identidade nacional, que corrobora o argumento

em torno da existência de uma democracia racial.

Munanga (2007), mais uma vez se pautando pela realidade mais prontamente

observável, ressalta que essa suposta dificuldade em se distinguir brancos e negros no Brasil

é: “[...] uma flagrante inverdade, pois num país onde a discriminação existe e é aceita, no

mínimo quem discrimina sabe distinguir os discriminados.” (MUNANGA, 2007, p. 12). Se

muito, “a questão se colocaria na situação extrema do mestiço que fenotipicamente apresenta

8 O trabalho em questão não fornece uma definição para o termo “a-racismo”. Provavelmente, designam uma não-referência a questões raciais, da qual decorreriam práticas racistas.

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todas as características brancas”. Mas, para todos os efeitos, “é branco, pois nossa

classificação racial é de marca e não de origem” (p. 12 – 13). Como a aparência física é o

critério que rege o processo discriminatório, pode servir também para reger o processo

reparatório.

No geral, a suposta inexistência de tensões de cunho racial no Brasil leva ao

entendimento de que a exclusão experimentada pela população negra tem caráter quase que

exclusivamente econômico. Se temos em mente a noção de uma democracia racial, o processo

histórico de não-integração da população negra na estrutura social brasileira no período

posterior a Abolição não pode ser explicado por uma conjugação entre racismo e pobreza,

mas tão somente esta última, que exerceu seus efeitos e limitou as oportunidades disponíveis

à população em geral – incluindo-se aí pessoas não-negras.

Natural, portanto, que a solução para o problema não passe por uma política de ação

afirmativa, mas por medidas que incidam sobre a pobreza. Se melhoram as condições de

existência da população negra, o fazem de modo indireto: como a maior parte da população

pobre é negra, ela seria a maior beneficiada por ações de cunho universal. É o que Maggie e

Fry (2004, p. 77) chamam de políticas racialmente não neutras: “[...] aquelas que, dirigidas a

determinadas áreas de pobreza, automaticamente atingem grande número de negros”.

Inclusive para garantir o acesso ao ensino superior, através da melhoria das escolas públicas e

eventuais ações afirmativas de alcance universal.

Há divergências quanto a razoabilidade desse argumento. Tragtenberg (2006) realiza

diferentes simulações estatísticas considerando o caso específico da Universidade Federal de

Santa Catarina, tendo em vista diferentes cenários e visando a inclusão da população negra do

Estado nessa instituição. Mesmo se o número de vagas fosse dobrado e reservado a alunos(as)

da rede pública – em síntese, uma medida racialmente não neutra –, o aumento da proporção

de estudantes negros(as) por curso seria pequeno – em alguns casos, inclusive diminuiria.

Mostra, assim, que esse tipo de argumento é mais frágil e menos óbvio do que pode parecer.

Reforça também que os fenômenos de exclusão e desigualdade experimentados pela

população negra tem uma natureza que não é apenas socioeconômica, como também racial.

Por isso, sugere Munanga (2007), o caminho correto para lidar com a questão passa pela

consideração da “a especificidade do negro duplamente excluído pela condição

socioeconômica e pela discriminação racial.” (MUNANGA, 2007, p. 18, grifo nosso). Em

suma, através de ações que combinem esses dois critérios. Caso, vale lembrar, da lei que

atualmente regulamenta o funcionamento das cotas, levando em conta a renda familiar, a

escolaridade e a identificação étnico-racial.

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1.4. Ação afirmativa e cotas raciais

Não é raro que o termo “ação afirmativa” seja tomado como sinônimo de “cotas

raciais”. Trata-se de um equívoco: as cotas são uma modalidade de ação afirmativa, mas não a

única – o bônus sobre a nota do vestibular, utilizado pela USP, é um exemplo concreto. A

Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) define as ações

afirmativas como: “[...] políticas públicas feitas pelo governo ou pela iniciativa privada com o

objetivo de corrigir desigualdades raciais presentes na sociedade, acumuladas ao longo de

anos.” (SEPPIR, on-line).

No caso específico da população negra, lista três tipos principais de ação afirmativa:

“[...] com o objetivo de reverter a representação negativa dos negros; para promover

igualdade de oportunidades; e para combater o preconceito e o racismo.” (Idem). Nessa

medida, as cotas raciais em universidades públicas são, de fato, especialmente ilustrativas –

talvez, razão pela qual se consolidaram como principal instrumento de ação afirmativa no

Brasil. Vejamos como se ligam simultaneamente a esses três propósitos.

Dados do MEC, divulgados pela Seppir (2016) mostram que em 1997 a porcentagem

de estudantes pretos(as) e pardos(as) da educação superior era de 1,8% e 2,2%,

respectivamente. Em 2016, quase 13 anos depois das primeiras políticas de cotas serem

implantadas, representavam 8,8% e 11%. Contribuem ainda para a construção da igualdade

de oportunidades na medida em que implantam condições mais adequadas de competição

entre quem disputará vagas no ensino superior.

Como vimos, a população negra é acometida não só pelo impacto da pobreza, que

sobre ela incide de modo desproporcional, como também das mazelas oriundas do racismo. A

falta de oportunidades em vista da situação econômica é superável: malgrado precária, existe

aí espaço para mobilidade, para uma superação mais imediata da condição de pobreza. Não é

o caso com a desigualdade racial, que foge de qualquer controle de quem sofre seus efeitos:

não há mobilidade no interior de uma estrutura racista, ainda mais quando ele se exerce em

vista dos traços físicos. A supressão da desigualdade econômica não implica na supressão da

discriminação racial.

Ao impactarem nessas duas frentes, corrigindo uma sub-representação no âmbito do

ensino superior e de nivelando as condições de acesso ao mesmo, as cotas avançam também

no sentido de atuar como ferramentas de combate ao preconceito e ao racismo. De fato, se

voltam mais os efeitos do racismo do que sua causa: mas é justamente porque não é possível

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indicar nem incidir diretamente sobre a fonte do racismo, visto que não ele possui um núcleo

central. Isso é especialmente relevante no caso de um país como o Brasil, no qual esse tipo de

exclusão opera de modo endêmico, mas difuso.

Em todo caso, mesmo se atribuirmos ao racismo uma causa fundamental e

solucionável – a ignorância ou a desinformação, por exemplo –, é necessário levar em conta

quanto tempo levaria até que ocorresse sua eventual superação. Decerto, ela não seria rápida.

O que nos leva de volta à questão: o que fazer a respeito de quem sofre agora com seus

efeitos? Não nos parece razoável ou moralmente aceitável deixar essas pessoas à própria sorte

por zelo à ideia de que o Estado não pode discriminar, mesmo positivamente, certos grupos –

que na prática, são descriminados de toda forma.

Além do mais, se nos determos numa perspectiva de longo-prazo, a inserção de

pessoas negras na universidade contribui para a superação do racismo na medida em que

trata-se de um espaço privilegiado de construção e difusão de conhecimentos. Como tal, a

presença de pessoas negras contribui para pesquisas que explorem, com maior propriedade,

suas condições de existência – enquanto grupo cultural, econômico, social, político, enfim. O

mesmo vale para a convivência entre alunos(as) que vem de realidades profundamente

discrepantes, cujas vivências específicas podem ser confrontadas. Numa perspectiva

foucaultiana, significa dar poder através da fala e dar equilíbrio a um jogo desigual de forças,

que pune um dos lados muito mais severamente do que outro.

Em último lugar, as cotas auxiliam no combate ao racismo e ao preconceito ao

aumentar o contingente de profissionais qualificados(as) e professores(as) negros(as). Logo,

pondo fim – salvo casos de gritante hipocrisia – à velha explicação de que a presença quase

insignificante dessas pessoas em cargos mais prestigiados é explicada pela pura e simples

falta de pessoas com a formação necessária. Além disso, a presença mais significativa dessa

população entre quem disputa vagas no mercado de trabalho especializado provavelmente

contribuirá para um aumento também em sua representatividade em empresas e cargos

públicos especializados – promotores(as), delegados(as), juízes(as) etc.

1.5. Racismo, raça, ações afirmativas

Gostaríamos de dedicar um breve trecho ao esclarecimento de um ponto central a

respeito das cotas raciais e outras medidas de ação afirmativa. Trata-se da relação que mantém

com as noções de raça e racismo. O primeiro designa uma condição genética e os traços –

físicos, comportamentais, cognitivos etc. – que lhe são correlatos. Como as ciências

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biológicas já cansaram de mostrar, esse princípio não se aplica à espécie humana. O segundo,

diz respeito à práticas discriminatórias que se sustentam na ideia, errônea, de que existem

diferentes raças humanas, cada qual com suas particularidades.

É importante que façamos essas distinções porque as cotas raciais e demais ações

afirmativas não dizem respeito à raça, mas ao racismo. Portanto, não visam corrigir uma

suposta inferioridade genética, mas uma desigualdade socialmente estabelecida e

historicamente situada. Foi muito comum, no desenvolvimento de nossa pesquisa, nos

depararmos com críticas às políticas de cotas que confundiam as duas coisas. Em síntese, ao

invés de atuar sobre o problema do racismo, elas serviriam para oficializá-lo, fazer da divisão

racial uma política de Estado.

Trata-se de uma meia verdade. De fato, instaura uma divisão baseada num critério

racista: determinar quem será considerado, para fins de concorrência, negro(a) e não-negro(a).

Mas isso é mera implicação lógica: se a medida visa aliviar os impactos do racismo, é natural

que se separem as pessoas entre quem provavelmente foi, ou não, tratado(a) de modo racista.

Não significa, com isso, que se esteja atestando uma condição genética, uma identidade

cultural ou uma ancestralidade específica. O requisito não é pertencer a uma “raça”, mas se

adequar (com algum grau de tolerância) a proposta da lei de cotas: beneficiar quem foi

sistematicamente excluído em vista da presunção de que as raças existem.

Eis também a razão de ser dos comitês que verificam a autodeclaração de

candidatos(as). Não só porque todos(as) querem se valer das brechas deixadas pelo mas

também porque há certa confusão a respeito de quem está apto(a) a participar da política de

cotas. Em resposta aos possíveis questionamentos jurídicos ou constitucionais, gostaríamos de

lembrar que a utilização de comissões de verificação da autodeclaração tem respaldo legal.

O processo que culminou com a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF)

pela constitucionalidade das cotas raciais girou em torno do modelo adotado pela

Universidade de Brasília (UnB). Isso é relevante na medida em que, desde que a política foi

implantada (em 2004), a instituição verifica as autodeclarações de candidatos(as) – num

primeiro momento, à partir da (infeliz) análise fotográfica e, a partir de 2008, através de

entrevistas presenciais e tele-presenciais (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, 2013). Esse

aspecto do sistema de cotas foi colocado em pauta nesse julgamento, tendo sido

também considerado constitucional. A esse respeito, deixamos aqui o parecer dado pelo

ministro-relator Ricardo Lewandowski:

Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto

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possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2012, p. 39).

A heteroidentificação nada mais é do que uma identificação por terceiros(as), realizada

em conjunto com a autodeclaração e tendo em vista garantir a idoneidade do processo como

um todo. Ikawa (2008), citada pelo ministro Lewandowski, aponta para uma coincidência da

ordem de 79% entre essas a identificação feita pela própria pessoa e por uma banca de

terceiros(as) (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2012, p. 38). Trata-se de uma

porcentagem que consideramos bastante tolerável, tendo em vista que serão descartados os

casos de evidente má-fé e que nos casos em que existam dúvidas, prevaleça o benefício ao(a)

candidato(a).

1.6. Histórico de implantação das cotas raciais na USP

Apesar do avanço considerável das políticas de cotas, tanto raciais como

socioeconômicas, determinadas instituições de grande prestígio no contexto brasileiro só as

adotaram em anos recentes. O caso de maior destaque é o da Universidade de São Paulo

(USP) que, atualmente, conta com cerca de 60 mil estudantes (FOLHA DE S. PAULO, 2016).

Desde 2006, por via de seu programa de inclusão (Inclusp), a instituição fornece um bônus na

nota de alunos(as) de escolas públicas. Inicialmente fixada em 3%, a bonificação passou por

reformulações nos anos seguintes, podendo chegar a 25%. O programa, contudo, não gerou os

resultados esperados – em 2010, o número de ingressantes vindos de escolas públicas chegou

a diminuir (TAKAHASHI; TAFFAREL, 2010).

Foi somente em julho de 2017 que a USP decidiu adotar uma política geral de cotas,

tanto sociais quanto raciais, que passam a vigorar no vestibular de 2018. Na ocasião,

planejam-se destinar 37% do total de vagas para cotas dirigidas a alunos(as) de escolas

públicas; até 2021, a meta é que 50% delas sejam reservadas para esse grupo. Desse

montante, será reservada uma fração equivalente à porcentagem de negros (autodeclarados

pretos ou pardos) na população do estado de São Paulo – atualmente, 37%. Na prática,

portanto, 13,7% das vagas da universidade seriam destinadas ao preenchimento via cotas

étnico-raciais (NEVES, 2017).

Na qualidade de maior centro universitário do país, a Universidade de São Paulo

(USP) comporta certo número de particularidades. Primeiro, que é mantida pelo Governo do

Estado de São Paulo – não sendo regida, portanto, pelas determinações vigentes em esfera

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Federal. Nesse sentido, acompanhar o trajeto da USP no que tange a adoção de ações

afirmativas é particularmente interessante, pois é possível notar como a questão do mérito foi

continuamente articulada ao seu projeto de inclusão social, orientando as diferentes

configurações do Programa de Inclusão Social da USP (Inclusp).

O debate sobre a inclusão de negros(as) no Brasil, como vimos anteriormente, não é

recente. Uma matéria publicada pela Folha de S. Paulo em, 2 de julho de 1996, faz menção ao

“surgimento de movimentos como o que defende 10% das vagas da USP para descendentes

de africanos” (ROSSETTI, 1996). Apesar disso, as primeiras políticas concretas de ação

afirmativa em universidades públicas só foram implantadas por volta de 2003. Nesse meio

tempo, a USP parece ter se mantido mais ou menos indiferente à questão, que só veio se

tornar objeto de efetivo debate na instituição por volta de 2005, durante a gestão da ex-reitora

Suely Vilela – que teve na inclusão uma de suas principais bandeiras de campanha.

A esse respeito, chegou a afirmar, em entrevista à Folha de S. Paulo, que era

necessário “traçar uma meta, que seja atingida de forma gradual. Temos de chegar aos 50%

[de alunos da escola pública na universidade] dentro dos próximos dez anos” (TAKAHASI;

MELO, 2005). De acordo com Takahashi e Melo (2005), na época “esse percentual mal chega

a 20% dos aprovados no vestibular, apesar de eles representarem 85% dos alunos do ensino

médio paulista.” (TAKAHASHI; MELO, 2005). Interessante notar que essa meta ambiciosa

não se traduziu em ações igualmente ambiciosas: na prática, as propostas para atingi-la foram

um pouco tímidas – característica que se manteria ao longo da década seguinte.

A primeira delas, um bônus de 3% nas notas de candidatos(as) que tenham cursado o

ensino médio em escolas públicas. O bônus seria aplicado nas notas finais das duas etapas do

processo seletivo. A outra consistia de um projeto de avaliação seriada, modalidade na qual

alunos(as) realizam provas ao fim de cada ano do ensino médio. Essa medida, contudo, só

veio a ser implantada a partir de 2008. A bonificação na nota, apesar de pequena, foi

suficiente para gerar reações mistas.

O Estado de S. Paulo (2006) relata que integrantes da ONG Educafro, que mantém

cursos pré-vestibulares para alunos carentes em várias regiões periféricas de São Paulo,

tentaram (sem sucesso) “invadir” a reunião do Conselho Universitário no dia da votação

(AGÊNCIA ESTADO, 2006). Segundo a matéria, o motivo para se oporem ao modelo era

que ele não contemplava medidas específicas para a população negra. Cerca de um mês

depois da aprovação do Inclusp, um grupo de 97 professores publicou um manifesto9

9 Disponível em: <https://www.ime.usp.br/~tausk/Manifesto.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2017.

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criticando as mudanças no vestibular da instituição – ainda que sem fazer referência direta às

mudanças acarretadas pelo Inclusp (que determinou, ainda, a redução do número total de

questões da prova, de 100 para 90).

Tudo isso parece se explicar em vista do apreço que a USP nutriu para com a ideia de

que a integração social não poderia sobrepor o mérito produzido pelos resultados do seu

vestibular, um dos mais tradicionais do país. Nesse sentido, merece destaque outra fala da ex-

reitora, desta vez em entrevista ao jornal O Globo, em 06 de junho de 2006. Perguntada sobre

por que não implantar um programa de cotas, destaca que:

A USP entende que você tem de preservar o mérito acadêmico. Selecionar os melhores alunos. Fomos buscar um projeto que articule o mérito acadêmico, a autonomia universitária e a inclusão social. É possível fazer a inclusão social com mérito (FARAH, 2006, grifos nosso).

Ela referia-se justamente ao Inclusp, cujo bônus passaria a valer naquele mesmo ano

(2006). A expectativa para com os resultados a serem gerados na nota era relativamente alta.

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, a ex-reitora escreve: “simulações indicam que esse

mecanismo tem condições de elevar de 23,6% para 30% o número de ingressantes oriundos

do sistema público” (VILELA, 2006), acentuando “que esse impacto deverá ser maior nas

carreiras mais disputadas, como medicina, direito e jornalismo.” (Idem). Contudo, na prática,

os resultados foram aquém do esperado.

Uma reportagem da ONG jornalística Repórter Brasil mostrou um aumento superficial

no número de alunos(as) de escolas públicas: de 24,6%10 para 26,7% (CAMARGO, 2007) –

dado corroborado por outras publicações mais recentes (JORNAL DA USP ESPECIAL,

2016, p. 5). A repórter traça algumas considerações a respeito desses resultados:

[...] na comparação entre ingressantes de 2006 e 2007, dos 322 estudantes de escola pública que não teriam entrado sem a bonificação, 87 são negros. O total de ingressantes na USP em 2007 soma 10.189. Os beneficiados pela política afirmativa representam, então, 3,2% do corpo estudantil que entrou este ano na primeira chamada do vestibular. Os negros que entraram pelo Inclusp somam apenas 0,85% desse total. (CAMARGO, 2007).

Em matéria publicada pelo Estado de S. Paulo, Cafardo (2007) faz uma análise

semelhante:

O bônus de 3% dado pela primeira vez neste ano na prova da Fuvest ajudou 12% dos 2.719 estudantes de escolas públicas aprovados e matriculados na Universidade de São Paulo (USP). Os outros 88% - cerca de 2.400 deles - teriam ingressado na instituição de qualquer maneira. (CAFARDO, 2007).

10 Entre 2006 e 2007, informações relativas a essa porcentagem variaram entre 23,6% e 24,6%. Por isso a diferença entre esse dado e o que foi citado por Vilela (2006) no parágrafo anterior.

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Finalmente, reportagem da Folha de S. Paulo ressalta que o bônus quase não alterou a

proporção de pessoas carentes entre os(as) aprovados(as). Comentando o aumento de

estudantes de escolas públicas entre os(as) aprovados(as) para a segunda etapa do vestibular

da USP, Takahashi (2006) nota que isso:

[...] praticamente não significou alteração no perfil socioeconômico dos vestibulandos aprovados. Na prova passada, 22% dos classificados para a segunda fase tinham renda familiar mensal de até R$ 1.500 (menor faixa considerada). Neste ano, foram 22,5% (variação de 2,3%).

Em posse desses dados, nos parece seguro dizer que, ao menos nesse primeiro

momento, o Inclusp pouco fez para modificar o contexto da instituição. Na época, mais

pessoas chegaram à mesma conclusão. Listamos aqui alguns depoimentos, retirados de

publicações desse período: “‘Os resultados, até o momento, são insuficientes. Praticamente

não houve inclusão’, disse a promotora Érika Pucci da Costa Leal, do grupo de inclusão social

do Ministério Público Estadual” (TAKAHASHI, 2008). Frei David Santos, ativista do

movimento negro e então presidente da Educafro11, declara: “Ocorreu o que já prevíamos. O

pacote da USP só privilegiou a classe média que está na escola pública” (SANTOS, 2006

apud TAKAHASHI, 2006). Ressalta também que: “As ações precisam beneficiar claramente

pobres e negros. O projeto da USP é insuficiente.” (Idem).

No vestibular seguinte (2007), o programa continuou funcionando da mesma forma:

fornecendo bônus de 3% sobre a nota de alunos(as) de escolas públicas, nas duas etapas da

seleção. Os resultados, expressos nas matrículas realizadas em 2008, foram praticamente os

mesmos, se não piores: houve queda de 0,4% no total de estudantes vindos(as) de escolas

públicas, segundo o Jornal da USP (Jun. 2016, p. 5). Publicações da época relatam um recuo

similar, variando entre 0,2% (AGÊNCIA ESTADO, 2008) e 1,2% (FOLHA DE S. PAULO,

2008).

Em 2008, podemos destacar a primeira mudança significativa no funcionamento do

Inclusp: com a implantação do vestibular seriado, o bônus na nota poderia chegar a 12%.

Enfatize-se o poderia, visto que esse seria o bônus máximo a ser recebido. Procedamos em

partes. Alunos de escolas públicas que estivessem cursando o terceiro ano do ensino médio

poderiam realizar uma prova com 55 questões, elaborada pela própria Fuvest e aplicada nas

escolas. Quem obtivesse aproveitamento máximo, receberia um bônus de 3%. Além deste,

seria possível obter outro bônus, proporcional ao resultado obtido na prova do ENEM,

11 ONG que mantém vários cursos pré-vestibulares gratuitos em regiões periféricas de São Paulo, voltados para a população negra e pessoas carentes.

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chegando a um máximo de 6%12. Ambos se somariam aos 3% garantidos a alunos de escolas

públicas (JORNAL DA USP, 2008).

Logo, esse aumento aparentemente significativo no bônus concedido a estudantes de

escolas públicas (de 3% para 12%) é mais modesto do que parece. Na prática, seria necessário

realizar e ter um aproveitamento excepcional em duas avaliações extras, sem levar em conta a

necessidade de um rendimento básico alto o suficiente no vestibular da Fuvest. Em todo caso,

tiveram impacto suficiente para elevar a 30,1% o número de alunos(as) de escolas públicas

aprovados(as) no processo seletivo – a maior porcentagem na série histórica 2006 – 2013,

segundo dados do Jornal da USP.

No entanto, o bônus não garante um percentual mínimo de inclusão, como fazem as

cotas, e, em 2009, houve nova queda significativa no número de estudantes de escolas

públicas aprovados(as). Detendo-nos nos dados do Jornal da USP, o número de matrículas

desse grupo, retrocedeu de 30,1% para 25,8%. A respeito desses montantes, não encontramos

especificações a respeito da identificação étnico-racial ou da condição socioeconômica, mas

nos parece seguro dizer que não se afastam muito dos anos anteriores.

No vestibular a ser realizado em 2010, o Inclusp foi mais uma vez modificado: o

vestibular seriado da USP, antes disponível a todos(as) que realizaram o ensino médio em

escolas públicas, ficava agora restrito à quem também cursou todo o ensino fundamental na

rede pública. O cenário, contudo, continuou o mesmo: em 2011, o incremento na porcentagem

de alunos(as) de escolas públicas subiu pouco menos de 1%, chegando a 26,2% (JORNAL

DA USP, 2016).

Esse cenário persistiu, com oscilações para mais ou menos, até os dias atuais. Elas

podem ser atribuídas às modificações, quase anuais, que foram realizadas no Inclusp. Em sua

forma mais recente, o programa prevê bônus máximo de 25%: são garantidos 15% para quem

fez ensino fundamental e médio na rede pública; 12% para quem fez apenas o médio e mais

5% para quem autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. Além destes, quem realizar provas

do vestibular seriado tanto no segundo quanto no terceiro ano do ensino médio poderá receber

bonificação adicional de 5%. Sem entrar em mais detalhes, todas essas modificações elevaram

o número de matrículas feitas por estudantes de escolas públicas em 2016, mas de modo

tímido: 34,6%.

12 Cabe lembrar que essa política de bônus na prova do ENEM era válida para qualquer candidato(a). (AGÊNCIA ESTADO, 2008) Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,usp-cria-prova-na-rede-publica-como-bonus-para-fuvest,153775>. Acesso em 09 out. 2017.

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Tudo isso serve para dizer que o complicado programa de bonificações da USP logrou,

em uma década, aumentar em apenas 10% a presença desse grupo na instituição – lembrando

ainda que esse programa não tem componente socioeconômico. Nesse período, as cotas até

chegaram a ser discutidas: em 2012, o Conselho Universitário discutiu a possibilidade de

adotá-las, mas não chegou nenhum consenso além da necessidade de realizar mais debates

(FOLHA DE S. PAULO, 2012).

Em 2015, foram feitos avanços na implantação das cotas graças à adesão da USP ao

Sistema de Seleção Unificada (SiSU), que utiliza a nota do ENEM. Entretanto, a instituição

deixou à cargo de cada unidade de ensino quantas de suas vagas seriam disponibilizadas e se

usariam, ou não, cotas de alguma natureza. Cursos tradicionais, como o de Medicina (no

campus Ribeirão Preto) e Direito (campus de São Paulo) reservaram, respectivamente, 20%

(92 vagas) e 10% (10 vagas) para seleção de alunos(as) de escolas públicas.

Ficou aberta também a opção de simplesmente não aderir ao sistema. Foi o que

ocorreu com alguns dos cursos mais concorridos: como Medicina (no campus da capital) e

Odontologia, as engenharias oferecidas pela Escola Politécnica (Poli-USP) e da Faculdade de

Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP). Ainda que apenas 10 das 42 unidades

de ensino e pesquisa da instituição tenham ficado de fora desse processo (JORNAL DA USP,

2016b), isso fez com que o impacto gerado pelo SiSU (Sistema de Seleção Unificada), com

suas respectivas modalidades de reserva de vagas, fosse fragmentário e variasse bastante de

curso a curso.

Em 2017, o Conselho Universitário da USP aprovou a implementação progressiva de

cotas, a partir do vestibular de 2018 – quer dizer, aproximadamente 15 anos depois das

primeiras políticas desse tipo terem sido implementadas no Brasil. A determinação foi a de

que, nesse primeiro momento, 37% das vagas de cada unidade de ensino sejam destinadas a

estudantes de escolas públicas, ficando 14% desse montante reservado à população negra e

indígena. Em 2019, aumentam para, respectivamente, 40% e 15% e assim por diante, até

chegar a 50% e 19%, em 2021 (NEVES, 2017).

Só o tempo dirá qual o efeito dessas medidas a longo prazo. Entretanto, se tomarmos

como referência outras universidades que adotaram o sistema de cotas, podemos dizer que

elas irão contribuir significativamente para o aumento da diversidade na USP e para a

inclusão de grupos que foram historicamente excluídos da instituição – dentre os quais,

destacamos a população negra.

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1.7. Considerações finais

Neste capítulo, traçamos um panorama geral das cotas raciais no Brasil, visando captar

os pontos principais de sua discussão. Começamos, nesse sentido, com um resgate histórico

que se volta tanto para o contexto mais amplo de sua implantação, como naquilo que regeu o

caso específico da USP. Em seguida, nos detivemos nos principais eixos de justificação de

sua existência, destacando algumas das particularidades que regem o estudo das relações

raciais no Brasil. Em paralelo, buscamos desfazer certas confusões comuns sobre racismo e

raça no contexto das cotas raciais.

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CAPÍTULO 2 - POR UMA ANÁLISE ARQUEOLÓGICA DO DISCURSO

2.1. Considerações iniciais

Neste capítulo, propomos apresentar e discutir os fundamentos teóricos utilizados em

nosso estudo. Apoiamo-nos, principalmente, nas proposições feitas por Foucault (1986) a

respeito daquilo que chama de uma arqueologia do saber: abordagem que mescla reflexões

sobre o funcionamento dos discursos e a sua variação na história. Após uma contextualização

a respeito desse tema, nos aprofundamos na discussão acerca dos principais instrumentos

conceituais dessa abordagem: a formação discursiva e o enunciado. Por fim, esses elementos

serão mobilizados para especificar algumas das hipóteses que foram trabalhadas ao longo do

desenvolvimento de nossa pesquisa.

2.2. Análise arqueológica do discurso

Primeiramente, gostaríamos de esclarecer aquilo que compreendemos como uma

análise arqueológica do discurso: uma abordagem teórica que se fundamenta naquilo que

Michel Foucault propôs chamar de método arqueológico. Método, conforme coloca Machado

(1981, p. 14), “não no sentido de um número determinado de procedimentos invariáveis a

serem utilizados na produção de um conhecimento”, mas como forma de se questionar sobre o

discurso, seu funcionamento e sua relação com a história.

O motivo que nos levou a buscar fundamentar uma análise centrada nessa perspectiva

é que ela nos permite tratar de fenômenos discursivos complexos que se manifestam de modo

descentralizado. Esse é precisamente o caso do discurso neoliberal e o modo como afeta

diferentes campos discursivos, dentre os quais aqueles que se voltam para o debate sobre as

cotas raciais e a problemática do mérito.

Num outro sentido, chamamos essa abordagem de arqueológica para delimitar um

terreno específico dentro daquilo que Diaz-Bone et al (2008) denominam como “análise

foucaultiana do discurso”. Isto porque, ao enfatizarmos o aspecto arqueológico, queremos dar

conta do fato de que buscamos nos manter no nível específico do que Foucault (1986) chamou

de arqueologia. Evitando, assim como sugere Gutting (2005), a tentativa de organizar a vasta

bibliografia foucaultiana segundo algum princípio único, pressupondo a continuidade

progressiva de seu pensamento.

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Isso não significa ignorar o conjunto de sua obra, mas tomá-los como elementos

descontínuos entre si, anulando o princípio unificante do autor e sua trajetória biográfica ou

acadêmica. Ao tratarmos a arqueologia como um conjunto anônimo de proposições, nos

vemos livres da obrigação de conciliá-la com as várias oscilações – temáticas, teóricas,

metodológicas – que marcam o trabalho de Foucault simplesmente porque se trata de um

mesmo autor. Por outro lado, livres indagá-las a respeito daquilo que podem oferecer a

arqueologia, ainda que não integrem a fase “arqueológica” da obra de Michel Foucault.

Notadamente, nos referimos ao fato de que, após a publicação de “A arqueologia do

saber”, o autor passará a focar-se no desenvolvimento daquilo que chamará genealogia – cujo

foco, em nosso entendimento, não é tão direcionado ao discurso. Nessa medida, é comum o

entendimento de que essa mudança marca o fim do projeto arqueológico, como destacam

Dreyfus; Rabinow (1995) e Machado (1981). De fato, Foucault raramente voltará a falar de

uma arqueologia. Porém, isso não significa que ele detenha sobre ela direito exclusivo,

fazendo dele o único autorizado a retomá-la ou retificá-la. Nem, por outro lado, que devemos

hierarquizar retroativamente seus trabalhos, com os mais recentes ditando a pertinência

daqueles que os precederam.

Tal apontamento é especialmente relevante para esta pesquisa porque a caracterização

que buscamos fazer do discurso neoliberal é essencialmente sustentada por uma análise

realizada por Foucault, mas que não é considerada parte de sua trajetória arqueológica. No

caso, “Nascimento da biopolítica” (FOUCAULT, 2008), curso que ministra cerca de dez anos

depois da publicação de “A arqueologia do saber”, mas que oferece um número considerável

de apontamentos valiosos para uma análise arqueológica do discurso neoliberal.

Por fim, gostaríamos de nos abster, nessa dissertação, da necessidade de nos

remetermos a certas polêmicas e promessas que envolvem o desenvolvimento da arqueologia.

Como detalham Dreyfus e Rabinow (1995), a grandiloquência de Foucault (1986), aliada à

ambição teórica do projeto arqueológico, contribuíram para seu posterior – e relativo –

abandono. De um lado, pois malgrado as críticas que faz à história, no geral, e à história das

ideias, em específico, Foucault lança mão de procedimentos similares aos dessas áreas. Por

outro, porque a arqueologia não conseguiu escapar dos mesmos problemas que o autor havia

identificado no estruturalismo e na hermenêutica. Falhara, assim, em representar, como

desejava Foucault, a superação dessas abordagens (DREYFUS, RABINOW, 1995).

Levando esses pontos em consideração, podemos dar corpo a essa noção de uma

análise arqueológica do discurso. Comecemos com aquilo que, em nosso entendimento,

demarca sua especificidade frente a outras abordagens. Trata-se da relação do discurso com

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uma concepção bem particular de história, na qual busca-se rejeitar qualquer forma pré-

concebida de continuidade e privilegiar a natureza descontínua dos acontecimentos. Portanto,

o fato de que podem e devem ser considerados como unidades independentes entre si, que não

estão ligadas por nenhuma continuidade prévia.

A tensão que resulta dessa oposição é expressa por Foucault (1986) ao descrever o

papel que formas mais tradicionais de história atribuem à descontinuidade:

Para a história, em sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo tempo, o dado e o impensável; o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos – decisões acidentes, iniciativas, descobertas – e o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos. A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história. (FOUCAULT, 1986, p. 9)

O que esse tipo de história faria, então, é tentar superar a descontinuidade dos

acontecimentos, dispersos no tempo e no espaço, para mostrar como se integram numa

continuidade que lhes escapa, indicar como têm seu lugar específico na ordem de uma

sucessão. Para Foucault (1986), a grande questão é mostrar que nem a história, nem os

discursos de uma época, se organizam segundo uma continuidade indefinida. Organizam-se,

antes, como um jogo complexo de transformações e rupturas que não seguem um caminho

definido, nem uma temporalidade homogênea.

A título ilustrativo, podemos evocar os trabalhos que precederam “A arqueologia do

saber”, nas quais o autor buscou concretizar sua proposta arqueológica. Em “As palavras e as

coisas” (1999), trata-se de mostrar de que foi graças a uma série de transformações

descontínuas, que afetaram o conjunto das ciências da época clássica13, que tornou possível o

surgimento (também descontínuo) das ciências humanas. De modo similar, em “História da

loucura na idade clássica” (1978), aponta para modificações que permitiram não só o

surgimento da noção de doença mental como de uma disciplina médica que faz dela seu

objeto privilegiado: a psiquiatria. Por fim, em “O nascimento da clínica” (1977), das

transformações que permitem o surgimento da medicina moderna.

Se o autor chegou a conclusões, mais ou menos, plausíveis ou se abordou tais questões

com o devido rigor, não nos cabe dizer. Porém, vale notar que Foucault (1986) faz uma série

de apontamentos a respeito das fraquezas que apresentam enquanto aplicações da perspectiva

arqueológica. Em “História da loucura na idade clássica”, afirma ter se detido demais no nível

da experiência, evidenciando “o quanto permanecíamos próximos de admitir um sujeito

anônimo e geral da história” (FOUCAULT, 1986, p. 19) – no caso, o sujeito da loucura. Já em

13 Correspondendo, aqui, ao período que vai de 1660 ao fim do séc. XIX.

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“O nascimento da clínica” aponta problemas derivados da utilização do método estrutural, que

“ameaça subtrair a especificidade do problema colocado e o nível característico da

arqueologia” (FOUCAULT, 1986, p. 19). Por fim, em “As palavras e as coisas”, “a ausência

de balizagem metodológica permitiu que se acreditasse em análises em termos de totalidade

cultural” (FOUCAULT, 1986, p. 19).

Para além dessas retificações, acreditamos que é possível avaliar mais rigorosamente

algumas das questões-chave colocadas pela arqueologia a respeito do discurso e traçar

parâmetros para uma análise arqueológica do mesmo. Como íamos dizendo, isso implica levar

em conta a descontinuidade da história e dos acontecimentos discursivos. Logo, pressupõe

também tratar o discurso como uma dispersão, como algo que está fragmentado no mundo

social e que opera segundo diferentes temporalidades. Nesse escopo, emergem uma série de

questões, dentre as quais a principal parece ser: como, então, determinar unidades discursivas

que possam ser analisadas e comparadas entre si, para detectar possíveis transformações?

Ademais, como fazê-lo levando em conta os princípios da dispersão e da descontinuidade?

Uma parte considerável de “A arqueologia do saber” será dedicada a responder essas

questões. De início, Foucault (1986) tomará uma série de unidades discursivas

tradicionalmente aceitas, como o livro e a obra, para mostrar como elas elidem ou ignoram a

natureza dispersa dos discursos. Tenha-se em conta que o primeiro funda sua suposta unidade

a partir do fato de que abarca um número limitado de signos; já a segunda, ao atribuir certo

número de textos a um(a) mesmo autor(a), organizando-os em relação a este(a).

Entretanto, aponta Foucault (1986, p. 26), os limites de um livro não são jamais

definidos apenas por suas fronteiras materiais. Pelo contrário, trata-se muito mais do lugar que

ocupa em meio a uma dispersão: “além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além

de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso em um sistema de

remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede” (grifo nosso). No que

toca a obra, Foucault (1986, p. 26) propõe ir além daquilo que possui de mais simples, quer

seja: “uma soma de textos que podem ser denotados pelo signo de um nome próprio”. Em

seguida, questiona:

Será que basta juntar aos textos publicados pelo autor os que ele planejava editar e que só permaneceram inacabados pelo fato de sua morte? Será preciso incluir, também, tudo que é rascunho, primeiro projeto, correções e rasuras dos livros? Será preciso reunir esboços abandonados? E que importância dar às cartas, às notas, às conversas relatadas, aos propósitos transcritos por seus ouvintes, enfim, a este imenso formigamento de vestígios verbais que um indivíduo deixa em torno de si, no momento de morrer, e que falam, em um entrecruzamento indefinido, tantas linguagens diferentes? (FOUCAULT, 1986, p. 26-27).

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O autor sublinha que essa unificação só se faz possível “porque a supomos definida

por uma certa função de expressão” (FOUCAULT, 1986, p. 27). Em outras palavras, em vista

da ideia de que, por detrás da dispersão aparente dos dizeres, existiria um princípio unificador

que é dado pela subjetividade de um autor: sua trajetória biográfica, suas obsessões

particulares, sua genialidade única. Portanto, tratam-se de critérios um pouco frágeis, pelo

menos no que diz respeito à sua adequação aos princípios teóricos que norteavam o trabalho

de Foucault (1986).

Num segundo momento, ele se remete a determinados temas que reiteram a

continuidade daquilo que é dito ao longo da história, afetando, portanto, a possibilidade de

construir unidades descontínuas. De um lado, será questionado o entendimento segundo o

qual não há acontecimento verdadeiro no discurso, pois tudo está sempre ligado a uma origem

mais ou menos remota na história. Com isso, fica excluída a possibilidade de qualquer

acontecimento que seja verdadeiro no sentido de que seja um rompimento nessa continuidade,

que, desse modo, “condena a análise histórica do discurso a ser busca e repetição de uma

origem que escapa a toda determinação histórica” (FOUCAULT, 1986, p. 28).

Esse tema se liga a outro, “segundo o qual todo discurso manifesto repousaria

secretamente sobre um já-dito; e que este já-dito não seria simplesmente uma frase já

pronunciada, um texto já escrito, mas um ‘jamais dito’” (FOUCAULT, 1986, p. 28). Trata-se

aqui de uma relação de ambiguidade: a compreensão de que existe algo que determina o que é

dito e que é, ao mesmo tempo, ocultado pelo que foi dito. Análises feitas nesse sentido

buscariam interpretar o discurso para revelar aquilo que está escondido pela espessura das

palavras e práticas. Essa origem oculta e fugidia, para Foucault (1986), atuaria no sentido de

reinserir o discurso em diferentes cadeias de causalidade, de continuidade.

Para escapar tanto das unidades tidas como naturais quanto de concepções que

reiteram a continuidade, Foucault (1986, p. 30) propõe que nos limitemos a tratar de “uma

população de acontecimentos no espaço do discurso em geral”; a descrição desses

acontecimentos seria, por sua vez, o ponto de partida para encontrar unidades capazes de

abarcarem a dispersão dos dizeres e suas transformações na história. Isso passará por dois

pontos principais: primeiro, delimitar a menor unidade possível dessa população de

acontecimentos discursivos, o ponto mais estreito da descontinuidade do discurso. Segundo,

determinar de que modo se relacionam e como podem ser organizadas em unidades mais

robustas.

De forma resumida, essa primeira unidade será dada pelo enunciado; a segunda, mais

ampla, pela formação discursiva. O enunciado, para Foucault (1986), é compreendido como

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uma função – a função enunciativa – que se exerce sobre um conjunto qualquer de signos para

lhes permitir gerar um ou mais efeitos de sentido. Como tal, não estão implicados nos

próprios signos, numa relação significante-significado. São, ao invés disso, aquilo que

estabelece uma relação entre conjuntos significantes (palavras ou frases, imagens, sons etc.) e

o plano disperso do discurso na história, gerando, com isso, determinados efeito de sentido,

mais ou menos complexos. Na medida em que é descontínuo, o enunciado se repete no tempo,

sendo as relações que estabelece ou que lhe permitem surgir, se tornarem objeto de

investigação.

A respeito dos mecanismos específicos pela qual isso irá ocorrer, Foucault (1986)

destacará quatro eixos principais: o modo como o enunciado circunscreve de objetos de

discurso; como abre um espaço de posicionamento para os sujeitos; como mobiliza e coexiste

com outros enunciados; e quais as condições para que possa ser repetido. Tenha-se em mente

que esses pontos não esgotam o horizonte de pesquisa possível: são aqueles que foram

inicialmente propostos por Foucault (1986), em vista tanto de seus interesses de pesquisa (a

história do conhecimento) quanto daquilo que já havia desenvolvido em obras anteriores.

Em todo caso, estamos cientes de que, ainda assim, são uma definição bastante

abrangente, mas ela não é irrestrita, especialmente levando-se em conta que não nos voltamos

para fenômenos limítrofes, onde a existência do enunciado em relação ao signo pode ser

colocada em dúvida. No presente caso, os aspectos dos enunciados são relativamente visíveis

e estáveis. Ao descrever como operam para certo número de casos específicos, nos regulando

pela necessidade de apontar certo grau de regularidade no exercício dessa função

enunciativa14, suprimimos possíveis arbitrariedades ou abusos interpretativos.

A esse respeito, cabe indicar que Foucault (1986) não chegou a abordar o problema

que envolve a instância intermediária entre signo e enunciado. Em suma, trata-se de isolar o

papel da parte interpretante, de forma análoga a concepção de signo de Pierce, no qual este é

responsável por completar a relação significante-significado. Como dissemos, isso não chega

a ser um grande problema quando se tratam de enunciados que não comportam uma variedade

muito grande de interpretações (como no presente caso). Para demais casos, nos limitamos a

realizar um aceno aos estudos da cognição, da hermenêutica e da semiótica, que podem

auxiliar na construção de um aparato teórico que sane essa inconsistência.

Enquanto o enunciado responde a questão da descontinuidade, figurando como seu

elemento mínimo, a formação discursiva responde ao critério da dispersão. No desenrolar do

14 Doravante, enunciado e função enunciativa são tomados como sinônimos.

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exercício da função enunciativa, considerada nas quatro direções que citamos acima,

emergem certos padrões de funcionamento: regularidades no modo como criam objetos de

discurso, por exemplo. A formação discursiva diz respeito a essas relações comuns a um

grupo disperso de enunciados, sendo aquilo que rege sua interação e o surgimento de novos

enunciados. Permite, com isso, unificá-los sem remeter a formas prévias de continuidade.

Daí que Foucault (1986) proponha estudá-la a partir dos mesmos quatro eixos de

análise: designando o modo como esse campo forma os objetos da qual fala, como cria e

distribui posições aos sujeitos que nele falam, como liga vários enunciados entre si e como se

realiza desenvolvimentos estratégicos à partir da repetição de certos enunciados que permitam

avançar – ou atravancar – certos interesses. Nesses termos, o discurso, enquanto unidade, diz

respeito ao conjunto dos enunciados que podem ser remetidos a uma mesma formação

discursiva.

Partindo dessas definições iniciais, podemos agora avançar a um estudo mais

aprofundado desses termos, atentando para o modo como Foucault (1986) irá caracterizá-los.

Para tanto, é necessário retraçar o percurso de análise realizado pelo autor e que o levam, em

última instância, às definições que apresentamos acima. O intuito aqui não é sermos

repetitivos, mas esclarecer como as noções abstratas de descontinuidade e dispersão,

traduzidas no enunciado e na formação discursiva, eram compreendidas pelo referido autor.

2.2.1. As formações discursivas

Partamos da seguinte questão: se aceitarmos tratar de uma população de enunciados,

descontínuos e dispersos, como podemos unifica-los numa mesma unidade? Trata-se de

procedimento fundamental: antes de analisar um discurso, é necessário delimitar aquilo que

constitui, para efeitos de análise, “um” discurso.

Foucault (1986), a esse respeito, apresentou e posteriormente refutou quatro

possibilidades de organização dos conjuntos de enunciados: em função dos seus objetos, dos

seus modos de enunciação, dos seus conceitos e dos seus temas. Do fracasso desses critérios,

terão origem os quatro aspectos específicos da formação discursiva que apresentamos acima.

Tratemos, assim, de cada uma dessas hipóteses para ver como são posteriormente retificadas.

Primeira hipótese: “os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo,

formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto” (FOUCAULT, 1986, p.

36). No caso, o autor ilustra essa posição a partir da psicopatologia: a ideia é que seus

enunciados poderiam ser agrupados pelo fato de que se referiam a um mesmo objeto de

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discurso: a loucura. Entretanto, a unidade dada pela referência a um mesmo objeto logo se

mostra um critério frágil por dois motivos.

Em primeiro lugar, os objetos não preexistem aos discursos, sendo assim, possível

comparar como diferentes enunciados, em diferentes períodos da história humana, se

referiram a ele. Esse objeto ganha existência no próprio jogo dos enunciados que dele tratam,

na medida em que o nomeiam, descrevem, explicam e julgam. Em segundo lugar, não é

delineado da mesma forma conforme se trate de enunciados médicos, enunciados jurídicos ou

de medidas policiais. Em suma, se modifica na medida em que passa de um campo social a

outro. Conforme Foucault (1986, p. 36), a respeito mais uma vez da psicopatologia: “não se

trata das mesmas doenças, não se trata dos mesmos loucos”.

Assim, a abordagem inicial precisa ser modificada para abarcar a dispersão dos

objetos no discurso e o fato de que estes se transformam, se modificam, se contradizem. Na

prática, o autor chega a compreensão de que a “[...] unidade de um discurso é feita pelo

espaço onde diversos objetos se perfilam e continuamente se transformam, e não pela

permanência e singularidade de um objeto” (FOUCAULT, 1986, p. 37). Deste apontamento

inicial, alguns outros são desenvolvidos.

A unidade de um discurso, com relação aos seus objetos, se fundaria pela “regra de

emergência simultânea ou sucessiva dos diversos objetos que são aí nomeados, descritos,

analisados [...]” (FOUCAULT, 1986, p. 37). De modo mais geral, deve-se buscar “o jogo das

regras que tornam possível, durante um período dado, o aparecimento dos objetos”

(FOUCAULT, 1986, p. 37). Ademais, a unidade de um discurso seria dada pelo “jogo das

regras que definem as transformações desses diferentes objetos, sua não identidade através do

tempo, a ruptura que neles se produz, a descontinuidade interna que suspende sua

permanência” (FOUCAULT, 1986, p. 37).

Em outras palavras, será a regularidade do conjunto de relações que são empregadas

para criar e transformar objetos discursivos que valerá como critério de unificação dos grupos

dispersos de enunciados. Não, portanto, os próprios objetos. Podemos nos valer desse

entendimento para compreender que a formação discursiva neoliberal possui um modo

específico de construir os objetos de que trata – dentre os quais está justamente o mérito. No

caso, como resultado de uma configuração determinada de fatores relacionados à competição

entre indivíduos, emulando a lógica própria aos mercados.

A segunda hipótese era que se poderia definir a unidade de um discurso a partir de sua

estrutura formal de enunciação – caso ilustrado pelo autor através do discurso da medicina.

Foucault (1986, p. 38, grifos do autor) escreve: “Parecera-me, por exemplo, que a ciência

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médica, a partir do século XIX, se caracterizava menos por seus objetos ou conceitos do que

por certo estilo, um certo caráter constante da enunciação [...]”. Ou seja, a forma específica de

organização da linguagem – escolhas lexicais, formas descritivas, termos técnicos etc. –

poderia dar unidade a um grupo de enunciados.

Contudo, tal perspectiva é abandonada tão logo nota-se que, para além dos aspectos

formais ou estilísticos, o discurso médico é composto também de: “[...] uma série de hipóteses

sobre a vida e a morte, de escolhas éticas, de decisões terapêuticas, de regulamentações

institucionais, de modelos de ensino [...]” (FOUCAULT, 1986, p. 38). Por sua vez, tais

aspectos estão inter-relacionados e não podem ser tratados de modo isolado, levando à

conclusão de que as particularidades da enunciação utilizada nesse discurso não bastam para

individualizá-lo.

Paralelamente, essa hipótese se mostra problemática porque a forma mesma dessa

enunciação foi continuamente deslocada no interior do discurso da medicina. Seja porque,

conforme coloca Foucault (1986), a tecnologia permitiu modificar as escalas de descrição (por

exemplo, a partir do advento do microscópio); seja porque a massa documental

(enciclopédias, tratados, exames, artigos, dentre outros) que deve ser mobilizada pelo médico

modifica profundamente a forma e os requisitos para a inserção nesse discurso.

Portanto: “Se há unidade, o princípio não é, pois, uma forma determinada de

enunciados” (FOUCAULT, 1986, p. 39, grifo nosso), mas, sim, as relações que permitem o

surgimento de diferentes posicionamentos diante de um conjunto específico de fenômenos.

Com isso, abre-se o projeto de uma análise da dispersão das posições enunciativas ou

modalidades da enunciação que se mantém regulares dentro de um discurso. No caso da

medicina, isso envolve descrever:

[...] o conjunto das regras que tornaram possíveis, simultânea ou sucessivamente, descrições puramente perceptivas, mas, também, observações tornadas mediatas por instrumentos, protocolos de experiências de laboratórios, cálculos estatísticos, constatações epidemiológicas ou demográficas, regulamentações institucionais, prescrições terapêuticas” (FOUCAULT, 1986, p. 39).

No geral, a questão que se coloca é indicar como uma configuração específica de

fenômenos históricos pode inaugurar uma série de possibilidades de inserção dos sujeitos

nesse discurso específico. Porém, ainda, como detalharemos mais adiante, as condições que

cercam seu exercício: o estatuto de quem fala, os espaços legítimos no qual pode-se utilizar

tal discurso, quais os pontos através da qual pode analisar um objeto qualquer e as regras pela

qual deve fazê-lo. No caso do discurso neoliberal, esses diversos posicionamentos são dados,

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entre outras coisas, a partir da inserção do sujeito em diferentes mecanismos que visam

produzir ou atestar o mérito individual.

A terceira hipótese foi de que a unidade dos discursos poderia ser obtida “[...]

determinando-lhes o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que aí se encontram em

jogo” (FOUCAULT, 1986, p. 39). De fato, existem conjuntos de enunciados que se ligam a

conceitos que derivam uns dos outros, ocupando lugar numa mesma sequência dedutiva. Da

mesma forma, há conceitos que adquirem uso e conteúdo relativamente estáveis. Contudo, se

considerarmos que os conceitos expressam uma forma específica de coexistência entre

enunciados, mobilizados em conjunto para gerar efeito explicativo, a questão se torna bem

mais complexa.

Existem discursos no qual figuram conceitos incompatíveis entre si: como seria

possível, então, unificá-los? E quanto àqueles nos quais são objeto de disputa, concorrência,

refutação mútua? Ao tentar unificar o discurso pelo crivo de um sistema rigoroso de

conceitos, ignora-se, mais uma vez, a dispersão que lhe é característica. Em vista disso,

Foucault (1986, p. 40) indaga se não seria possível encontrar “[...] uma unidade discursiva se

a buscássemos não na coerência dos conceitos, mas em sua emergência simultânea ou

sucessiva, na distância que os separa e, eventualmente, em sua incompatibilidade”. Logo:

[...] não buscaríamos mais, então, uma arquitetura de conceitos suficientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzi-los no mesmo edifício dedutivo; tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão.” (FOUCAULT, 1986, p. 40).

Dessa maneira, a análise do sistema de formação dos conceitos não se volta apenas

para os pontos de coerência ou compatibilidade, nem para seu desenvolvimento contínuo ou

progressivo, nem para as supostas fronteiras de um campo conceitual. Ela se volta para as

relações que permeiam a coexistência entre enunciados, podendo dar origem a conceitos

divergentes ou mesmo incompatíveis, fundando nelas a sua unidade. No que tange a

influência do discurso neoliberal no debate sobre as cotas raciais, a mesma chave de leitura

histórica, centrada na competição entre diferentes grupos populacionais, permite a formulação

de dois conceitos excludentes: de dívida histórica e de vitimização15.

A última hipótese, posteriormente descartada, foi buscar a unidade de um grupo de

enunciados com base em seus conteúdos temáticos. Para exemplificar, Foucault (1986) se

remete ao tema da evolução no discurso da biologia e questiona se “[...] não se poderia, por

15 Ambos serão discutidos com maior profundidade mais adiante. Por agora, optamos por dar prosseguimento a nossa exposição teórica.

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exemplo, constituir como unidade tudo que, de Buffon16 a Darwin, constituiu o tema

evolucionista” (FOUCAULT, 1986, p. 40). Tal apontamento, no caso, se sustentava na

compreensão de que um tema, na qualidade de algo que se repete com pequenas variações,

seria capaz de exercer uma força difusa, orientando diversos discursos num mesmo sentido e

conferindo-lhes certa estabilidade. No entanto, um exame mais detido mostrou o contrário.

Conforme aponta Foucault (1986), embora o tema da evolução tenha direcionado

diversos estudos em diferentes áreas do conhecimento, ele sofre transformações ao longo da

história. O autor aponta:

No século XVIII a idéia evolucionista é definida a partir de um parentesco das espécies que forma um continuum prescrito desde o início (só as catástrofes da natureza o teriam interrompido, ou progressivamente constituído pelo passar do tempo). No século XIX, o tema evolucionista se refere menos à constituição do quadro contínuo das espécies que à descrição de grupos descontínuos e à análise das modalidades de interação entre um organismo, cujos elementos são solidários, e um meio que lhe oferece suas condições reais de vida. (FOUCAULT, 1986, p. 41, grifo do autor).

De modo simplificado, aponta-se aqui a diferença, no campo então nascente da

Biologia, entre duas concepções de evolução. De um lado, trataria da grande continuidade

entre espécies diferentes; de outro, mais recente, uma que designa o modo pela qual os

organismos vivos lidam com o meio em que se encontram e como essas pressões ambientais

guiam sua evolução. Como aponta Foucault (1986): “trata-se de um único tema, mas a partir

de dois tipos de discurso” (p. 41). Essa observação, entre outras, leva Foucault (1986, p. 42) a

sugerir que busquemos a unidade de um discurso, com relação ao seu conteúdo temático, na

“dispersão dos pontos de escolha que ele deixa livres”. Conforme o autor:

Mais do que buscar a permanência dos temas, das imagens e das opiniões através do tempo, mais do que retraçar a dialética de seus conflitos para individualizar conjuntos enunciativos, não poderíamos demarcar a dispersão dos pontos de escolha e definir, antes de qualquer opção, de qualquer preferência temática, um campo de possibilidades estratégicas? (FOUCAULT, 1986, p. 42).

Em suma, as relações que caracterizam uma formação discursiva abrem um horizonte

de possibilidades que podem, ou não, serem retomadas e desenvolvidas ao longo do tempo.

Logo, a questão é demarcar aquilo que permite o surgimento dos próprios pontos de

dissidência. A coincidência temática, ou a sua falta, seria, assim, efeito dessa inserção num

mesmo conjunto de possibilidades oferecidas por uma configuração específica da formação

discursiva que ganha, a esta altura do texto de Foucault (1986), sua conotação mais

16 Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707 – 1788). Naturalista francês que exerceu considerável influência na área da história natural.

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generalizada e abstrata, aproximando-se do que havia chamado de epistème: solo no qual se

fundamenta todo o saber de uma época.

Em nossa leitura, bem mais modesta, compreendemos que o discurso neoliberal atua a

partir da articulação temática entre liberdade e eficiência econômica, calcada na racionalidade

presumida da atividade humana frente aos mercados. Edificando, em torno dessa temática, a

constituição de posições diferentes a respeito da organização da sociedade e dos papéis

aceitáveis para o Estado. Entretanto, de forma distinta daquela que marca o liberalismo

clássico, justificando o emprego do prefixo neo, como buscamos detalhar nos capítulos

seguintes dessa dissertação.

Como podemos ver, uma a uma, as hipóteses iniciais de Foucault (1986, p. 42) foram

substituídas por outras, que nos reconduzem aos efeitos gerados pela descontinuidade e pela

dispersão. Ao ponderar sobre um possível domínio bem definido de objetos de um discurso,

nos deparamos com “séries lacunares e emaranhadas, jogos de diferenças, de desvios, de

substituições, de transformações”. Ao buscar um tipo constante de enunciação, encontram-se

“formulações de níveis demasiado diferentes e de funções demasiado heterogêneas para

poderem se ligar e se compor em uma figura única”.

Da mesma forma, ao buscar “um alfabeto bem definido de noções”, vimo-nos “na

presença de conceitos que diferem em estrutura e regras de utilização, que se ignoram ou se

excluem uns aos outros e que não podem entrar na unidade de uma arquitetura lógica”

(FOUCAULT, 1986, p. 42-43). Enfim, a busca de uma unidade fundada nas escolhas

temáticas resulta na descoberta de “possibilidades estratégicas diversas que permitem a

ativação de temas incompatíveis, ou ainda a introdução de um mesmo tema em conjuntos

diferentes” (FOUCAULT, 1986, p. 43).

A partir desses movimentos de revisão das pesquisas que havia empreendido até então

que Foucault (1986) chega à ideia de analisar as próprias dispersões do discurso, o modo pela

qual se distribuem e se relacionam ao longo da história. Parte, portanto, do entendimento de

que os discursos não existem, de modo independente, num plano ideal. Pelo contrário,

existem na concretude de práticas discursivas historicamente situadas; estão ancorados nas

instituições e processos (políticos, econômicos, sociais etc.) de um período determinado.

Levando-as em consideração, chega-se ao nível próprio da formação discursiva:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por

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convenção, que se trata de uma formação discursiva [...] (FOUCAULT, 1986, p. 43, grifo do autor).

A partir daí, podemos traçar algumas considerações importantes. De início, que

quando nos referimos a sistemas de relação, estão implicados um número indefinido de

fatores cuja ordem é diversa. Interessa, a uma análise arqueológica do discurso, o modo como

estes fatores são relacionados na regularidade de uma prática discursiva: conjunto de regras

anônimas, mais ou menos rígidas e historicamente situadas, que designam o modo pela qual é

possível inserir-se no discurso que está sendo estudado.

Em paralelo, alguns outros pontos precisam ser esclarecidos. Primeiro, é preciso

ressaltar que a formação discursiva e os quatro sistemas que a compõe não correspondem a

algo anterior: ela não se impõe nem determina o funcionamento de um discurso – até porque,

isso nos remeteria de volta à noção de continuidade, que Foucault (1986) deseja superar.

Como aponta o referido autor:

[...] esses sistemas de formação não devem ser tomados como blocos de imobilidade, formas estáticas que se imporiam do exterior ao discurso e definiriam, de uma vez por todas, seus caracteres e possibilidades. Não são coações que teriam sua origem nos pensamentos dos homens, ou no jogo de suas representações; mas não são, tampouco, determinações que, formadas ao nível das instituições ou das relações sociais ou da economia, viram transcrever-se, à força, na superfície dos discursos” (FOUCAULT, 1986, p. 81).

O que podemos compreender é que as formações discursivas são aquilo que há de

regular numa dispersão de enunciados conforme ela se apresenta. Trata-se, portanto, de uma

forma dinâmica, que está constantemente ameaçada pelo simples fato de que as pessoas falam

– não por menos, como analisou Foucault (2014), dando origem a uma variedade imensa de

procedimentos que visam controlar a inserção no discurso. Independentemente disso, a

arqueologia se volta para essa dimensão em busca daquilo que rege as práticas discursivas que

se concretizaram na história.

Ainda no que toca a esse processo, Foucault (1986, p. 84) destaca que não se propõe a

analisar aquilo que chama de “estados terminais do discurso”, compreendendo, com isso, o

produto-final de certa forma de organização da linguagem: textos, falas, livros etc. Segundo o

autor, a formação discursiva seria aquilo que pode ser definido pela variação dessas formas

mais bem acabadas:

Ora, o que se analisa aqui não são, certamente, os estados terminais do discurso, mas sim os sistemas que tornam possíveis as formas sistemáticas últimas; são regularidades pré-terminais em relação às quais o estado final, longe de constituir o lugar de nascimento do sistema, se define, antes, por suas variantes. (FOUCAULT, 1986, p. 84, grifos do autor).

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Uma última observação diz respeito a temporalidade própria à formação discursiva.

Conforme coloca Foucault (1986), ela não designa um retrato que capta o momento exato em

que as coisas ganham existência no plano do discurso. Sua dinâmica é dada por processos de

temporalidades distintas: acontecimentos que ocorrem em momentos próximos ou distantes,

mas que exercem, de toda forma, um papel conjunto na prática de um discurso. Assim, aquilo

que a formação discursiva delineia é:

[...] o sistema de regras que teve que ser colocado em prática para que tal objeto se transformasse, tal enunciação nova aparecesse, tal conceito se elaborasse, metamorfoseado ou importado, tal estratégia fosse modificada – sem deixar de pertencer a esse mesmo discurso; e o que delineia, também, é o sistema de regras que teve que ser empregado para que uma mudança em outros discursos (em outras práticas, nas instituições, relações, sociais, processos econômicos) pudesse ser transcrita no interior de um discurso dado [...] (FOUCAULT, 1986, p. 82).

Esses vários apontamentos se ligam a definição que foi dada ao termo discurso, no

sentido de uma unidade: conjunto dos enunciados que integram uma mesma formação

discursiva (FOUCAULT, 1986). Ao falarmos de um discurso neoliberal, temos em mente

essa natureza dinâmica, multifacetada e heterogênea, mas que, por outro lado, emprega certo

número de relações que remetem a uma certa concepção do funcionamento do mercado e da

Economia, ressaltando a possibilidade de estendê-las para outras áreas do mundo social, como

buscaremos mostrar no decorrer desta pesquisa. Por agora, propomos passar a uma discussão

mais detalhada do enunciado, nosso elemento básico de análise.

2.3. Os enunciados e a função enunciativa

No entendimento de Foucault (1986), ao decompormos o discurso até seu elemento

fundamental, o que podemos encontrar será aquilo que chama de enunciado. Como vimos

anteriormente, esse termo adquire aqui o sentido de uma função exercida exclusivamente

sobre os signos, situando-os no plano mais geral e permitindo a eclosão de efeitos complexos

de sentido. Precisamente porque define uma função específica, que se exerce segundo

parâmetros determinados, é que pode ser considerado um acontecimento: ainda que de modo

nebuloso e impreciso, o enunciado possui limites que demarcam sua extensão, seu início e seu

fim.

Tratado como função que se exerce sobre os signos, o enunciado é também, em certa

medida, indiferente às variações concretas ou físicas do signo: seu tamanho, suas cores, altura

ou volume não são necessariamente relevantes à arqueologia. O signo é, nessa medida, ponto

de partida para chegar-se ao nível do enunciado, aquilo que se exerce sobre eles de modo a

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colocá-los em relação aos domínios citados acima. Derivam, desse mote, certo número de

observações.

A principal delas, no que tange à análise do discurso, é dissociar enunciado e

enunciação. Esta última se volta para minúcias do processo empírico de inserção no campo da

linguagem. Como tal, a enunciação marca um acontecimento que é sempre único no tempo e

no espaço. O enunciado, como indicamos acima, tem a particularidade de ser repetível,

fazendo com que seu tempo não coincida com o momento da sua enunciação. Isso não

significa afirmar que existe enunciado sem enunciação. A questão é tão somente a de

diferenciar esses dois níveis para esclarecer que o projeto arqueológico se ocupa, a esse

respeito, apenas do enunciado.

Além disso, a função enunciativa perpassa diferentes estruturas sem se limitar a

nenhuma delas. Foquemos nos exemplos apresentados por Foucault (1986). Ela pode, ou não,

atualizar a estrutura formal da língua; pode, ou não, respeitar uma determinada estrutura

lógica; pode, ou não, ter um papel definido numa estrutura pragmática17. Inclusive, destaca

Foucault (1986), a possibilidade de analisar essas estruturas é dada pela própria flexibilidade

da função enunciativa. É em vista dela que é possível depreender as regras gramaticais ou um

sistema de axiomas lógicos, por exemplo.

Essa flexibilidade significa que o enunciado se caracteriza por ser ponto de

entrecruzamento ou de ligação entre práticas diversas. Pode ser, por exemplo, aquilo que liga

uma sentença jurídica a todo um campo conceitual da medicina, na medida em que se faz uma

alegação de insanidade mental. Também é o que permite ligar determinado entendimento a

respeito do funcionamento da economia – na qual o princípio de competição é crucial – e um

julgamento moral sobre quem, em tese, infringe esse princípio (caso comum no debate sobre

cotas raciais).

Com esses pontos em mente, retomemos agora os diferentes aspectos da função

enunciativa, começando pelo modo como se exerce no domínio dos objetos. Ao designar algo,

escreve Foucault (1986, p. 104), “instância de diferenciação”. De modo simplificado:

especifica um objeto de discurso, ou um aspecto do mesmo, em meio ao plano mais geral,

uma dispersão que lhe serve de referência. Se o enunciado pode designar algo, é porque esse

“algo” está cercado de outros objetos dos quais de diferencia. Na prática, remonta assim ao

contexto de uma formação discursiva e às regras que regem esse campo:

17 Por estrutura pragmática, referimo-nos ao estudo do enunciado ou da enunciação num contexto de fala específico. Portanto, liga-se a tendência teórica inaugurada por John Austin (1962) e sua teoria dos atos de fala.

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O referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade. (FOUCAULT, 1986, p. 104).

Do ponto de vista metodológico, investigar esse aspecto da função enunciativa

significa investigar tanto aquilo que cerca o objeto especificado quanto os procedimentos que

lhe permitem fazê-lo. Em ambos os casos, esse processo pode variar bastante caso se trate,

por exemplo, de um enunciado científico ou literário: referencial de um romance distingue

daquele de uma ciência, podendo ser julgado tanto verdadeiro como falso a depender do

contexto em que surge. Mais interessante ainda é que um mesmo referencial pode ser campo

de disputa pela construção do mesmo objeto, como é o caso do mérito, em sua relação com as

cotas raciais.

A função enunciativa também coloca um conjunto de signos em relação a um campo

de posições possíveis para o sujeito, individualizando-o perante o plano geral de um discurso.

Nessa medida, se exerce como uma função-sujeito: conjunto de parâmetros que permitem que

diferentes pessoas ocupem uma mesma posição subjetiva. Como é unidade descontínua, esse

sujeito não é o mesmo conforme se trate de um ou de outro enunciado propriedade que

permite a variabilidade das posições adotadas no nível do discurso – por exemplo, as que

podem ser ocupadas ao longo de um texto ou de uma conversa cotidiana.

Entretanto, as exigências da função enunciativa variam em termos de rigidez. Para se

tornar sujeito autorizado a dar um parecer médico, no geral, essas condições são muito mais

numerosas do que as de um enunciado mais corriqueiro, como um ditado popular. Essas

exigências revelam a íntima relação do discurso com o poder: ser sujeito de um enunciado

envolve assumir certas responsabilidades, gerar certas consequências, autorizar certas

práticas, anular ou reforçar certos entendimentos.

Esse aspecto da função enunciativa faz ainda com que um conjunto determinado de

signos possa ganhar estatuto específico: permite que seja ordem, sugestão, conselho, dentre

outros. Tomadas em sua regularidade, um conjunto determinado de posições possíveis no

campo do discurso indica o sistema de formação das modalidades enunciativas. Nessa medida

em que se ligam à dimensão específica da formação discursiva, esquadrinham um espaço

definido para o exercício de um discurso.

Dando prosseguimento à nossa exposição, voltemo-nos agora para o terceiro aspecto

da função enunciativa. Trata-se da forma pela qual ela coloca um conjunto qualquer de

enunciados em relação a outros enunciados. Portanto, daquilo que lhe determina um regime

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de coexistência cuja natureza é variável: enunciados que podem se complementar, figurar

como elementos de um diálogo, se ligarem numa relação de hipótese e comprovação.

Interessa-nos, aqui, que não há enunciado que não estabeleça relações específicas com

aqueles que lhe cercam:

Não basta dizer uma frase, nem mesmo basta dizê-la em uma relação determinado com um campo de objetos ou em uma relação determinada com um sujeito, para que haja enunciado –, para que se trate de um enunciado: é preciso relacioná-lo com todo um campo adjacente. Ou antes, visto que não se trata de uma relação suplementar que vem se imprimir sobre as outras, não se pode dizer uma frase, não se pode fazer com que chegue a uma existência de enunciado sem que seja utilizado um espaço colateral; um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados. (FOUCAULT, 1986, p. 112, grifos nossos).

Cabe destacar, contudo, que esse campo adjacente ao enunciado não se confunde com

o da situação ou contexto de fala, compreendendo, com isso, os elementos dêiticos ao qual se

refere. Essas questões remetem ao nível da enunciação, não do enunciado. Tomar essas duas

dimensões como equivalentes significaria desconsiderar o caráter descontínuo do enunciado,

remetendo-o à continuidade dialógica da enunciação. O domínio associado diz respeito ao

plano na qual dispersam-se os enunciados; não aquele no qual um indivíduo enuncia algo em

relação ao seu contexto18.

Na medida em que os enunciados se engajam com outros de maneiras regulares,

podem se integrar e formar conjuntos mais consistentes, até o ponto em que emergem certos

padrões que valem como regras para o modo específico dessa interação. Tratam-se, no caso,

de sistemas de formação de conceitos ou campos conceituais, que não necessariamente

precisam ser compatíveis entre si, tendo em vista que a regularidade não se estabelece

exclusivamente na coerência entre conjuntos de enunciados: podem haver relações regulares

de contestação, de anulação, de alternância.

Como indicamos anteriormente, o conceito é uma mobilização específica de

enunciados que, articulados em conjunto, produzem um efeito explicativo. Isso faz com que

novos enunciados que, porventura, venham a se acoplar a esse campo conceitual estejam

sujeitos a formas determinadas de interação. Em linhas gerais, no caso da articulação do

mérito no debate sobre cotas raciais, os enunciados se ligam na forma de um cálculo que visa

expressar a presença, ou não, do mérito individual – explicando, de formas distintas,

fenômenos de mobilidade ou estagnação social.

18 Em trabalhos futuros, seria interessante detalhar a maneira pela qual essas duas instâncias coincidem umas com as outras: elementos dêiticos que são transpostos para o nível enunciativo.

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É interessante notar que essa expressão inclui também o passado mais distante, para

incluir elementos da história de formas distintas – fazendo deles, em sua forma de conjunto,

elemento desse cálculo. Destacamos dois deles, que consideramos particularmente relevantes.

O enunciado pode se apoiar no campo conceitual delimitado pela noção de dívida histórica,

que subjaz, em parte, a defesa das cotas raciais. Podem, por outro lado, se ligar ao campo

regido pelo conceito de vitimização, que opera um cálculo histórico bem diferente e subscreve

o repúdio às cotas raciais. Têm em comum o fato de que servem para dar robustez aos dizeres,

amplificar sua potência ao invocar a força conjunta de vários enunciados que se integram em

um mesmo campo.

Resta agora um último aspecto da função enunciativa: o modo pelo qual dá a um

conjunto de signos uma materialidade repetível. Em suma, esse aspecto se exerce sobre os

signos de modo a materializar o nível enunciativo. É, portanto, o que faz o enunciado surgir

como elemento concreto e acessível à percepção humana, garantindo-lhe a possibilidade de

expressar sentidos complexos. A esse respeito, podemos destacar duas questões principais.

Em primeiro lugar, que ela é mais da ordem institucional do que propriamente física.

A título ilustrativo, comparemos duas edições de um mesmo livro: do ponto de vista

puramente material, constituem duas coisas diferentes. No entanto, do ponto de vista

enunciativo, são idênticos: porque sua materialidade deriva do caráter institucional do livro,

tomado como espaço de equivalência exata para enunciados (FOUCAULT, 1986). Não está,

portanto, dada no próprio signo. Como vimos, para a análise arqueológica, ele serve apenas

como ponto de acesso para a dimensão própria ao enunciado.

Em segundo lugar, deve-se atentar para o aspecto repetível dessa materialidade,

marcando a diferença do enunciado: “enquanto uma enunciação pode ser recomeçada ou

reevocada, enquanto uma forma (linguística ou lógica) pode ser reatualizada, o enunciado

tem a particularidade de poder ser repetido” (FOUCAULT, 1986, p. 121, grifos do autor). A

sua existência, portanto, não se esgota nem se limita ao momento de emissão dos signos. Isto

faz com que possa ser reutilizado em várias ocasiões; permite que sirva a fins e interesses

diversos, não raro conflitantes, ao longo de sua história.

Se, por um lado, esse caráter repetível dá ao enunciado determinada maleabilidade,

por outro, ele não se manifesta de modo irrestrito. Como vimos, trata-se de uma materialidade

que é preponderantemente institucional. Em vista disso, não basta simplesmente duplicar um

conjunto de signos para que se dupliquem, também, os enunciados. A repetição envolve

critérios outros, fato que a constitui como espaço permeado e moldado por práticas de poder:

interdições, censuras e regulações que limitam o acesso ao campo enunciativo.

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Isso faz com que os enunciados sejam um recurso escasso, adquirindo diferentes

valores na economia geral das coisas ditas. Esse é um dos motivos pelo qual determinados

discursos – isto é, conjuntos de enunciados – podem ganhar influência muito maior ou menor

numa dada sociedade. Ao mesmo tempo, também, alvos privilegiados de disputa: justamente

porque podem ser mobilizados e investidos em diferentes práticas, são capazes de servir aos

interesses de grupos diversos.

A regularidade dessas possibilidades de reinserção dos enunciados constitui um

domínio regular, descrito por Foucault (1986) como:

[...] um campo de estabilização que permite, apesar de todas as diferenças de enunciação, repeti-los em sua identidade; mas esse mesmo campo pode, também, sob as identidades semânticas, gramaticais ou formais, as mais manifestas, definir um limiar a partir do qual não há mais equivalência, sendo preciso reconhecer o aparecimento de um novo enunciado.” (FOUCAULT, 1986, p. 119, grifo do autor)

O estudo específico desse aspecto do enunciado nos leva, assim, até a delimitação do

sistema de formação das estratégias: aquele que rege os possíveis desenvolvimentos

estratégicos de um discurso, dos pontos que deixa abertos para serem retomados, mobilizados,

operacionalizados. Da dispersão própria dos enunciados, emergem formas regulares de

utilização e reutilização.

Ao analisarmos as quatro propriedades observadas por Foucault (1986) a respeito da

função enunciativa, são delineados, no mesmo sentido, os quatro aspectos gerais da formação

discursiva. Vimos como ambos jogam com a questão da descontinuidade, da dispersão e da

regularidade para se constituírem enquanto unidades de análise. Agora, nos cabe finalmente

dar uma razão de ser à exposição teórica que vem sendo feita até aqui. Em outras palavras,

indicar sua relevância e mobilizá-la no sentido de uma análise do debate sobre as cotas

raciais, em sua relação com o discurso neoliberal.

2.4. A análise arqueológica

Conforme coloca Foucault (1986), a correlação entre enunciado e formação discursiva

faz com que não haja ordem preferencial de análise, já que um remete ao outro. No presente

caso, optamos por ir da caracterização da formação discursiva à análise dos enunciados.

Especificamente, tentamos delinear uma formação discursiva neoliberal para, em seguida,

averiguar, até que ponto, certos conjuntos de enunciados coletados para análise se relacionam

com esse campo. Se conseguirmos determinar que esses enunciados se apoiam num mesmo

sistema de formação de objetos, modalidades de enunciação, conceitos e estratégias,

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poderemos determinar seu pertencimento a uma mesma formação discursiva – no caso, a

neoliberal.

A escolha por esse trajeto de análise se justifica pela relativa abundância de trabalhos

que tomam o neoliberalismo como objeto de estudo. Com efeito, essa bibliografia é, por

vezes, criticada devido à falta de consenso sobre o que constitui, ou não, o neoliberalismo.

Este é tomado ora como doutrina econômica, ora como forma de neocolonialismo, ora como

prática cotidiana e assim por diante (cf. BOAS, GANS-MORSE, 2009; FLEW, 2014;

VENUGOPAL, 2015; BARNETT, 2005).

Contudo, essa falta de consenso, para os termos desta pesquisa, está longe de constituir

uma fraqueza. Ao contrário, é especialmente positiva na medida em que corrobora a natureza

dispersa do discurso e nos ajuda a demarcar o espaço regular de sua formação. Assim,

mobilizamos esses estudos segundo os procedimentos de análise propostos por Foucault

(1986) para cada um dos quatro sistemas que compõe a formação discursiva. Em síntese, para

esboçar um “sistema de emergência dos objetos, de aparecimento e de distribuição dos modos

enunciativos, de posicionamento e de dispersão dos conceitos, de desenvolvimento das

escolhas estratégicas” (FOUCAULT, 1986, p. 89).

Isso não significa pintar um retrato mais ou menos definitivo do discurso neoliberal e

de seu funcionamento; menos ainda, compreendê-lo em sua ampla complexidade. Longe

disso, reafirmamos o caráter temporário e generalista da caracterização que realizamos, diante

da impossibilidade de captar a totalidade da dispersão: o discurso, em qualquer momento

dado da história, excede em muito o que podemos apreender dele. Porém, ainda que

incompletas, unidades como a formação discursiva permitem detectar formas regulares de

relação entre enunciados que figuram em processos específicos – como no caso do debate a

respeito das cotas raciais em universidades públicas brasileiras.

Resumidamente, compreendemos que a formação discursiva neoliberal se caracteriza

por dois pontos principais, que o diferenciam do liberalismo clássico. O primeiro é um

rompimento com o princípio de “laissez-faire” ou “deixar acontecer”. O neoliberalismo, como

aponta Foucault (2008), diz respeito a uma otimização – ao menos em tese – desse processo.

Nessa perspectiva, os mercados só podem funcionar corretamente quando artificialmente

construídos a partir de práticas determinadas - jurídicas, políticas, sociais. Não se trata, com

isso, de realizar uma intervenção direta, mas de uma série de procedimentos indiretos que

visam garantir seu funcionamento pleno: não incide sobre a liberdade do mercado, mas sobre

as condições de surgimento e exercício da mesma, visando aproximá-la de uma estrutura ideal

de mercado.

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Essa questão se liga diretamente ao segundo ponto. O neoliberalismo busca expandir a

lógica de funcionamento dos mercados para um número indefinido de campos sociais: em

parte porque isso contribui para projeto de construção de um mercado ideal, em parte porque

compreende-se que a sua lógica é a mais eficiente e justa para regular processos sociais

diversos. Essa lógica é compreendida, de forma bem sucinta, a partir de uma relação entre

oferta e demanda, reguladas pelo princípio da livre concorrência19. Da sua interação

complexa, emerge o sistema preços – ou valores – que é capaz de organizar o funcionamento

pleno de um mercado. Essa premissa, uma vez submetida às adequações cabíveis, é estendida

a vários campos do mundo social e realiza, dentre outras coisas, a produção discursiva do

mérito individual.

Estes dois aspectos se desdobram, de diferentes formas, nos quatro sistemas que

compõe a formação discursiva neoliberal. Caracterizam o modo como constitui seus objetos,

dentre os quais está o mérito, que surge como reflexo da competição – seja ela considerada

justa ou enviesada – entre indivíduos numa estrutura de mercado. Norteia a formação e

distribuição de posições subjetivas possíveis, expandindo a atuação do sujeito econômico –

aquele que se orienta com base na disputa por recursos escassos – para diversas áreas da vida:

família, religião, política, escola etc. Regulam a formação de campos conceituais que se

apoiam sobre essas noções para relacionar toda sorte de fenômenos sociais: da criminalidade

(FOUCAULT, 2008), autoajuda (McGEE, 2005) às políticas públicas de desenvolvimento de

um país. Por fim, orientam o desenvolvimento de diferentes estratégias, na medida em que se

ligam aos interesses de diferentes grupos – políticos, empresariais, nacionais etc. – que

disputam seu domínio, com consequências muito concretas na vida das pessoas.

Esses quatro sistemas de formação ganham corpo nos enunciados que figuram em

meio ao debate sobre as cotas raciais. Especificamente, se mostram no exercício da função

enunciativa: especificando um objeto em relação a um domínio de referência; abrindo um

espaço determinado para o sujeito; se ligando a um campo de coexistência com outros

enunciados; servindo a diferentes estratégias de desenvolvimento. Considerando que esse

processo se mantém estável a despeito das particularidades da enunciação, podemos descrevê-

lo com base em diferentes textos – comentários, reportagens, editoriais, enfim.

O motivo que nos levou a estudar aquilo que circula nos termos de um debate é que a

atividade argumentativa – por mais rudimentar que seja – geralmente se apoia em relações

19 A saber: o entendimento de que todas as pessoas ou organizações são livres para concorrer entre si dentro do mercado. Essa liberdade, vale lembrar, é puramente jurídica; cabe portanto às partes individuais (pessoas, empresas, enfim) obter os recursos necessários para concorrer num mercado específico.

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discursivas mais claramente demarcáveis. Incluem-se, nesse quesito, tanto premissas lógicas

quanto movimentos puramente retóricos – mecanismos de instauração da polêmica,

construção do ethos, falácias lógicas etc. Desse modo, o termo “debate” tem, aqui, conotação

bastante abrangente. No caso, abarca qualquer enunciado que se refira, de modo mais ou

menos explícito, ao debate sobre as cotas raciais.

A respeito desse campo, propomos tratá-lo como uma prática discursiva específica:

“conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que

definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou

linguística, as condições de exercício da função enunciativa.” (FOUCAULT, 1986, p. 136).

Em síntese: conjunto de regularidades que regem esse domínio onde diferentes enunciados

são mobilizados para debater as cotas raciais no Brasil.

Com isso em mente, visamos destacar como essa prática é caracterizada por uma

disputa contínua pela noção de mérito e surge nos termos daquilo que consideramos uma

formação discursiva neoliberal – o que nos traz de volta às nossas hipóteses iniciais, que

podem ser agora retomadas com maior riqueza de detalhes. Resumidamente, compreendemos

que esse processo envolve disputar o mérito: (I) enquanto um objeto que se delineia a partir

de diferentes enunciados; (II) como disputa em torno das condições necessárias para se tornar

sujeito discursivo desse mérito; (III) como processo que permite o surgimento de diferentes

campos conceituais conflitantes; (IV) como algo que é desdobrado em diferentes estratégias e

desenvolvimentos, podendo afetar os interesses concretos de diversos grupos dentro da

sociedade brasileira contemporânea.

A primeira hipótese diz respeito à disputa pelo mérito enquanto objeto demarcado

pelos diferentes enunciados que integram o debate sobre as cotas raciais. Em suma, essa

disputa gira em torno das condições que regem a possibilidade de existência, ou não, do

mérito. Logo, disputa pela determinação do campo referencial onde pode surgir: quais as

relações que devem ser colocadas em jogo para que se possa designá-lo no plano do discurso?

Enunciados contrários às cotas raciais condicionam sua existência à atuação irrestrita

dos mecanismos de competição, tomando-o como subproduto exclusivo do esforço individual.

Enunciados favoráveis, por outro lado, buscam delimitá-lo em meio a vários fatores que

deturpam o funcionamento dos mecanismos de competição e de atribuição do mérito

individual – dentre os quais o mais relevante, nesse caso, é o racismo. Tal conflito faz com

que esse objeto possa surgir segundo duas formas excludentes, a depender do referencial em

que se apoia.

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Entretanto, nos dois casos, não se busca colocar em xeque a importância ou existência

do mérito. Pelo contrário, esse impasse revela sua centralidade para o debate sobre as cotas,

traduzida pelo esforço geral no sentido de precisá-lo, esquadrinhá-lo, detectá-lo em instâncias

diversas. Assim, se encaixam no funcionamento geral de um sistema de formação dos objetos

do discurso neoliberal: compreende-se que, quando constituída em suas condições ideais, a

competição é de produzir naturalmente o mérito e justificar a distribuição de recursos escassos

– no caso, vagas em universidades públicas – com base neste último. A questão, tal como no

projeto de construção ideal do mercado, é determinar quais são essas condições.

Nossa segunda hipótese trata da disputa pela capacidade de se posicionar enquanto

sujeito discursivo do mérito. A nosso ver, o aspecto mais interessante desse processo diz

respeito à relação entre mérito e a condição de minoria. Esta última é tomada aqui em termos

qualitativos e designa uma série de fatores que reiteram a subordinação enviesada de um

grupo a outros grupos e instituições, gerando diversos efeitos negativos em diferentes esferas

da vida. No presente caso, trata-se da especificidade da população negra face aos efeitos

perenes do racismo e de como esta condição é relacionada a diferentes posicionamentos

discursivos a respeito das cotas raciais.

Assim, do lado contrário às cotas raciais, podemos observar o condicionamento do

mérito a determinada negação, por parte dos sujeitos, daquilo que caracteriza sua condição de

minoria. Não que se trate de simplesmente ignorar essa condição, mas de tomá-la como

irrelevante frente ao esforço individual. Logo, que não pode ser discursivamente utilizada

para justificar a existência de políticas públicas – como as cotas raciais – voltadas para um ou

outro grupo em vista de suas condições específicas de existência.

Em meio a essa dinâmica, deriva uma impossibilidade de se posicionar frente ao

mérito ao mesmo tempo em que se é beneficiário(a) dessas políticas. Ironicamente, a condição

de minoria só é relevante, nessa medida, para sobrevalorizar o mérito obtido sem auxílio –

fenômeno que se manifesta mais claramente nas narrativas biográficas de superação a todo

custo. Em conflito direto com este posicionamento, está a constituição do sujeito do mérito

face à especificidade da condição de minoria. Em especial, oposição ao que se delineia como

um sujeito do privilégio – econômico, racial, social, cultural –, cuja inserção no mérito ignora

a relevância ou impacto desses fatores que escapam à sua intervenção direta, mas lhe

beneficiam diretamente.

Nesse sentido, tornar-se sujeito do mérito e analisar sua existência, ou não, envolve se

colocar primeiro diante das particularidades históricas e sociais que tangem a população

negra. Estas, por sua vez, designam não só aquilo que incide diretamente sobre esse grupo –

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exclusão, preconceito, violência racial etc. – mas também sobre grupos que são beneficiados

por esse processo: inferiorizar o negro significaria, na prática, exaltar o branco e distorceria a

aferição, constituição ou distribuição do mérito a partir de critérios que não estão relacionados

à competência individual.

De todo modo, podemos notar como ambos se formam a partir de um mesmo conjunto

de relações que caracterizam a formação discursiva neoliberal: a articulação da competição

como princípio de formação do valor individual, aqui traduzido sob a forma geral do mérito, e

a organização da sociedade em torno deste princípio. A disputa discursiva que se desenrola

emerge de uma divergência a respeito do lugar devido do sujeito desse processo e não de um

questionamento a respeito do mérito em si. O que está em jogo é: pode-se, ou não, ser sujeito

do mérito ao mesmo tempo em que se é sujeito das cotas raciais?

Prosseguindo, nossa terceira hipótese diz respeito a uma disputa em torno de

conceitos, na medida em que se dispersam e organizam um campo de coexistência para

diferentes enunciados. Em suma, compreendemos que a disputa discursiva pelo mérito orienta

o surgimento de dois polos conceituais opostos: de um lado, favorável às cotas raciais, vemos

surgir formas de interação que se organizam em torno do conceito de dívida histórica; de

outro lado, contrário às cotas, desponta o conceito de vitimização ou, em sua forma mais

expressamente pejorativa, “coitadismo”. Com efeito, esses não são os únicos conceitos que

são expressos nesse processo, mas são os que consideramos mais relevantes para esta

pesquisa.

O conceito de dívida histórica é aquele que relaciona enunciados de vários campos

distintos – história, sociologia, economia, estatística etc. – no sentido de mostrar como as

condições específicas de existência da população negra, na atualidade, tem sua origem em

processos e arranjos sociais passados. Em especial, práticas sistemáticas de exclusão adotadas

durante a escravidão e no período posterior à Abolição.

Juntas, constituem aquilo que impediu, frustrou ou dificultou imensamente a

possibilidade de reconhecer os méritos logrados essa parcela da população, ao qual não foi

sequer dada a chance de entrar no jogo competitivo. Face a isso, políticas públicas que visam

beneficiá-la em sua especificidade – como no caso das cotas raciais –, sendo tomadas como

restituição tardia, que visa desobstruir seu caminho e restaurar a idoneidade do processo de

competição, historicamente corrompido.

O conceito de vitimização surge em conflito direto com o campo conceitual

organizado pela perspectiva de uma dívida histórica. Esse confronto se dá na medida em que

se compreende que as condições específicas de existência são, em maior ou menor escala,

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irrelevantes para o cálculo do mérito. Logo, o projeto desenvolvido a partir da noção de dívida

histórica é progressivamente deslegitimado, avançando a ideia de que a população negra se

projeta como vítima, tendo em vista a obtenção de benefícios considerados injustos – mais

uma vez, caso das cotas raciais.

Seguindo nesse sentido, seria ainda algo que permite a esse grupo se isentar de buscar

melhorar, por conta própria, suas condições de existência - fazendo com que o debate sobre os

efeitos do racismo seja tomado como um exercício constante de autocomiseração ou

“coitadismo”. Não surpreende, pois, que as únicas ações públicas consideradas válidas, dentro

dessa perspectiva, sejam aquelas que ignoram a especificidade de um ou outro grupo para dar

ênfase às ações de alcance universal. A pura e simples melhoria da educação pública como

substituto para as cotas raciais, por exemplo, é uma das soluções mais comumente

mencionadas.

De uma forma ou de outra, o que nos interessa é que esses conjuntos conceituais

opostos surgem de um mesmo conjunto de relações discursivas que remetem a disputa

discursiva pelo mérito. No caso da dívida histórica, busca-se conceituar o papel

desempenhado pelo espaço exterior ao indivíduo na obtenção do mérito e, consequentemente,

nos mecanismos de mobilidade social em uma economia neoliberal. No caso da vitimização,

essas mesmas condições são relativizadas frente à suposta supremacia do indivíduo na

obtenção do mérito. Mas, em um e outro caso, servem para organizar um campo disperso de

enunciados segundo princípios determinados pelo discurso neoliberal: atuando na interface

entre sujeito, competição e merecimento.

Enfim, uma quarta hipótese, relativa à materialidade repetível dos enunciados que

figuram nesse debate. Mais detidamente, trata-se de uma disputa pelas possibilidades de

repetição, inserção e utilização dos enunciados em diversos contextos sociais. O mérito, ainda

que discursivamente construído, é capaz de orientar práticas que afetam, de formas diversas, a

vida das pessoas. Nessa medida, fazer com que certos conjuntos de enunciados – e não outros

– se tornem amplamente repetíveis ou convencionalmente aceitos representa um importante

objetivo estratégico tanto para posicionamentos contrários quanto favoráveis às cotas.

Do lado favorável às cotas, interessa fazer com que os aspectos não-individuais do

mérito sejam considerados (ou seja, repetidos) em diferentes instâncias ou práticas. A questão

do mérito não se reduz ao simples ingresso na educação superior pública: para todos os

efeitos, o mercado continua livre para discriminar, desvalorizar ou excluir a população negra

dos postos qualificados de trabalho. Com isso, emerge a importância, para esse grupo, de

ampliar o alcance de enunciados que detalham suas condições específicas de existência. De

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modo mais ou menos direto, eles incidem sobre a percepção social do mérito e,

consequentemente, nas possibilidades de mobilidade social dentro de uma estrutura

neoliberal.

Do lado contrário, o esforço para tornar amplamente repetíveis os enunciados que

reiteram a supremacia do indivíduo frente às suas condições de existência contribui, em

termos práticos, para uma subversão do efeito planejado das cotas. Tal como no caso acima,

busca-se incidir nos mecanismos que estão além do simples ingresso e conclusão de um curso

superior. O pressionamento contra as cotas se daria, então, a partir da marginalização dos(as)

beneficiários(as) das cotas raciais em espaços exteriores às universidades. Notadamente,

buscando afetar a percepção do mérito no mercado de trabalho, de modo que a condição de

cotista possa surgir como possível empecilho – uma vez que traduziria uma suposta

incapacidade ou mesmo preguiça por parte dessas pessoas.

Entretanto, esses posicionamentos divergentes tem origem em um mesmo ponto.

Compreendemos que o debate sobre as cotas envolve retomar certas possibilidades abertas

pelo discurso neoliberal e mobilizá-las em um ou outro sentido. Assim, a meritocracia, que

não é mais que um sistema que organiza relações em torno do mérito, utilizando o mecanismo

específico da competição, deixa em aberto uma série de questões a respeito do que constitui

ou não esse mérito.

2.5. Considerações finais

Neste capítulo, buscamos expor as premissas teóricas que guiam nosso trabalho. Como

vimos, ela se sustenta sobre o projeto arqueológico de Foucault (1986), centrada nas noções

de formação discursiva e enunciado. Após discutir seu funcionamento, buscamos mobilizá-los

para construir uma proposta concreta de análise, centrada no debate a respeito das cotas

raciais e seu atravessamento pelo discurso neoliberal, traduzida na disputa discursiva pelo

mérito. Nesse sentido, retomamos as hipóteses apresentadas no capítulo introdutório, para

dar-lhes maior profundidade e respaldo teórico.

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CAPÍTULO 3 - A FORMAÇÃO DISCURSIVA NEOLIBERAL

3.1. Considerações iniciais

Nesse capítulo, nos propomos mobilizar nossas premissas teóricas para empreender

uma caracterização da formação discursiva neoliberal. Nessa medida, lançamos um olhar

disperso sobre esse fenômeno, buscando situá-lo principalmente em oposição ao liberalismo

clássico. Essas rupturas e reformulações, que tem início no campo da Economia, embasam a

maneira pela qual se desenvolveu, ao longo do século XX, o projeto que visa edificar uma

sociedade em torno de novas concepções a respeito da liberdade, do Estado, da mobilidade

social. A descrição que fazemos é abertamente superficial, tendo em vista a brevidade desse

trabalho. Entretanto, nos esforçamos para detalhar os aspectos de seu funcionamento que

consideramos mais cruciais para nossa proposta: os que tocam na produção discursiva do

mérito e sua relação com as cotas raciais.

3.2. Características do neoliberalismo

Em se tratando de uma perspectiva arqueológica, o neoliberalismo diz respeito a

determinada forma de saber sobre o mundo, a sociedade, as instituições e as práticas que

podem ou devem adotar. Portanto, é algo que repousa sobre uma forma regular de estabelecer

relações de ordem discursiva. Defini-lo, ao menos em suas nuances mais relevantes para este

trabalho envolve percorrer dois sentidos: o de seu rompimento histórico com o liberalismo e o

de seu funcionamento atual, atentando para as particularidades da realidade social brasileira.

Por se tratar de fenômeno complexo e descentralizado, optamos por tentar caracterizá-

lo sem apelo a uma definição central, que em tese funcione como seu eixo estruturante.

Atendo-nos à proposta foucaultiana da arqueologia, buscamos seguir o fluxo disperso de seu

funcionamento. Postura, aliás, adotada pelo próprio Foucault (2008), na análise que faz da

constituição e caracterização do pensamento neoliberal, buscando atentar, para aquilo que

poderia aí haver de novo, mas que fora deixado de lado por definições mais estreitas ou

tradicionais do neoliberalismo.

A esse respeito Foucault (2008, p. 179-180) citará três dessas definições, que

permanecem relativamente atuais. Ele pergunta: “Do ponto de vista econômico, o que é o

neoliberalismo? Nada mais que a reativação de velhas teorias econômicas já surradas”; “Do

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ponto de vista sociológico, o que é o neoliberalismo? Nada mais, que aquilo através do que

passa a instauração, na sociedade, de relações estritamente mercantis”. Finalmente, numa

perspectiva política “[...] nada mais é que uma cobertura apara uma intervenção generalizada

e administrativa do Estado, intervenção tanto mais pesada quanto mais insidiosa e quanto

mais se mascarar sob os aspectos de um neoliberalismo”.

Em síntese: “[...] é Adam Smith apenas um pouco reativado; segundo, é a sociedade

mercantil, a mesma que o livro I do Capital20 havia decodificado, denunciado; terceiro, é a

generalização do poder de Estado, isto é, é Soljenitsin21 em escala planetária.” (FOUCAULT,

2008, p. 180, grifo do autor). Todas essas perspectivas, lembra Foucault (2008), não permitem

ver no neoliberalismo nada que não houvesse sido mostrado ou criticado ao longo do último

século e meio, a respeito do capitalismo em geral.

A grande questão, para o autor, é mostrar que “o neoliberalismo é, no fim das contas,

outra coisa. Grande coisa ou pouca coisa, eu não sei, mas certamente alguma coisa. E é essa

alguma coisa na sua singularidade que eu gostaria de apreender” (FOUCAULT, 2008, p. 180).

Para dar conta dessa proposta, Foucault (2008) percorre um longo, abordando o

neoliberalismo pelos vários pontos que fazem dele um fenômeno específico e único. Sem

pretensão de fazer uma exposição exaustiva desse trajeto, apresentamos aqui alguns dos

pontos que consideramos mais relevantes a esse respeito.

3.3. Do liberalismo ao neoliberalismo

Como colocou Foucault (2008), o neoliberalismo não é simplesmente resgate do

liberalismo, mas uma reformulação deste – o que justifica o emprego do prefixo “neo”,

significando “novo”. De maneira sumária, o liberalismo foi uma corrente filosófica e

econômica que se desenvolveu, principalmente, entre os séculos XVII e XIX, apregoando a

importância da liberdade como princípio norteador das sociedades, das economias, dos

governos. Dentre seus principais expoentes estão Adam Smith, John Locke e John Stuart Mill.

A principal característica dessa tradição é buscar pelos espaços inalienáveis de

exercício da liberdade – que, por uma ou outra razão, poderiam ser comprometidos por forças

externas, gerando consequências indesejáveis em várias esferas da vida humana. Daí que o

termo laissez-faire (francês para “deixe-se fazer”) traduza, de modo bastante sintético, o

20 No caso, referindo-se a “O Capital”, de Karl Marx. 21 Alexander Soljenítsin, escritor russo e opositor ferrenho do Estado soviético, em especial no que diz respeito ao uso sistemático do encarceramento. Suas críticas lhe levaram à prisão, sendo eventualmente expulso do país. Dentre suas obras, a de maior destaque é “O Arquipélago Gulag”.

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pensamento liberal: deve-se deixar que a liberdade, onde é natural, possa funcionar sem

interferência.

O caso mais conhecido é, justamente, no que diz respeito à interferência do Estado na

economia: sendo o mercado um espaço natural de exercício da liberdade econômica, deve-se

deixá-lo funcionar por conta própria. Isto, sob pena de atravancar seu próprio funcionamento

– ou seja, instrumentalizá-lo levaria quase sempre a consequências contrárias às desejadas.

Como é considerado natural, é dotado também de uma lógica a priori – razão pela qual o

objetivo do Estado seria o de garantir, ou ao menos de não ir na contramão, do funcionamento

dessa lógica.22

Com isso em mente, podemos dizer – em linhas gerais – que a fronteira entre o

liberalismo e o neoliberalismo está na relação que cada um destes sistemas de pensamento

estabelece com a liberdade. No liberalismo clássico, a questão gira em torno de esquadrinhar

um espaço além da intervenção direta de um poder (monárquico, estatal, enfim), que é

precisamente o mercado. No entanto, lembra Foucault (2008):

[ ...] quando da economia de mercado você tira o princípio do laissez-faire, é que no fundo você ainda é prisioneiro do que se poderia chamar de uma "ingenuidade naturalista", isto é, você considera que o mercado, seja ele definido pela troca, seja ele definido pela concorrência, é de qualquer modo uma espécie de dado natural, algo que se produz espontaneamente e que o Estado deveria respeitar, na medida em que é um dado natural (p. 163)

Na reformulação neoliberal, os mercados não são tomados como dados naturais, muito

menos tem existência espontânea. São, pelo contrário, resultado da moldura institucional que

os produz. Como tal, podem surgir e operar de forma mais precária ou sofisticada, a depender

desse arranjo. Daí que o neoliberalismo se caracterize por ser uma proposta de reformulação

radical das sociedades: para que o mercado funcione em termos ideais, ou para que se

aproxime deles, é necessária uma configuração ideal de fatores. Princípio este que permeia

também o funcionamento da liberdade: não é algo cuja existência prévia deve ser respeitada,

mas algo que se pode e que se deve produzir.

Essa mudança de paradigma, por assim dizer, tem implicações profundas. Em primeiro

lugar, se tanto a liberdade quanto os mercados estão na dependência de certos fatores

controláveis, esses fatores podem se tornar objeto de um saber. Um saber que, diga-se de

passagem, não traça apenas os caminhos que levam a uma sociedade livre e economicamente

próspera, como também para aqueles que, em tese, levariam à servidão e a miséria. Foucault

22 Os detalhes, é claro, vão variar bastante conforme se passe de um a outro filósofo liberal. Entretanto, acreditamos que, para os efeitos dessa pesquisa, basta essa concepção mais superficial desse tipo de pensamento.

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(2008) chama atenção, assim, para duas frentes de atuação do projeto neoliberal: por um lado,

defesa por uma progressiva redução do escopo de atuação do Estado; por outro, substituição

de seu aparato repressivo ou regulatório por mecanismos de produção da liberdade.

Em segundo lugar, tem-se uma das propostas mais interessantes (ainda que

polêmicas) de Foucault (2008): se a liberdade é produzida por um arranjo específico, significa

que pode ser administrada. O neoliberalismo, ao incidir sobre o espaço no qual surge a

liberdade, dá corpo a um tipo inédito de dominação: uma que não se exerce nem pela

violência, nem pela disciplina, mas (ironicamente) pela própria liberdade que dispõe aos

sujeitos. Não, como indicou Foucault (2008), que ela seja a única, mas surge como aquela que

mais se perpetua no período contemporâneo.

Isso levará Foucault (2008) a chamar de “biopolítica” a modalidade de governo dos

Estados neoliberais: uma política que se exerce na própria existência dos sujeitos, intervindo

sobre ela não pela via da coerção, mas da liberdade23. As escolhas ficam a cargo de cada

um(a), mas frequentemente levam – no nível coletivo – à manutenção do próprio sistema.

Nesse sentido, a responsabilização individual ganha importância renovada: o sujeito é livre

para, por exemplo, se entregar ao ócio – mas as consequências de fazê-lo são suficientes para

que, no mais das vezes, isso não ocorra e o aparato de produção da liberdade não seja

ameaçado.

Voltando a questão principal, o que nos interessa a respeito do neoliberalismo é a

abertura de um horizonte discursivo que visa determinar as condições necessárias para que se

chegue a esse funcionamento ideal do mercado e se garanta a produção dos seus efeitos

positivos, desejáveis – que, em troca, justificam o próprio arranjo social adotado. A liberdade,

como o próprio termo sugere, será central nesse projeto, o que nos permite traçar alguns

consensos.

Nesse sentido, a diminuição progressiva do Estado e de sua capacidade de intervir,

participar ou, em especial, planificar a atividade econômica (portanto, consumindo liberdade),

é um desses pontos de estabilidade, como indicamos brevemente acima. Ao ponto de Foucault

(2008) como uma fobia do Estado: pânico diante da possibilidade de que ele aumente

indefinidamente seu alcance e anule, por completo, os mecanismos de produção da liberdade.

Nesse sentido, a tendência do Estado é caminhar no sentido contrário dessa sociedade ideal.

23 Poderia se argumentar que trata-se, aí, de “suposta” liberdade. Mas isso simplificaria a questão: presumiria a existência de uma “real” liberdade que, mesmo ideal, poderia ser usada como princípio de resistência ao neoliberalismo. Em outras palavras: bastaria buscar substituir a falsa liberdade por essa outra. A grande questão não é essa, mas como – ou melhor, “se” – é possível impor resistência a uma dominação que atua pela (paradoxal via da) não-dominação, que opera pelo aumento – não diminuição – do grau de liberdade.

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Isso não significa, contudo, que ele não tenha papel nessa estrutura. Até porque, isso

nos levaria de volta à concepção liberal de que o mercado tem existência espontânea, nesse

caso em função da anarquia. Cabe ao Estado garantir a moldura institucional: um corpo

jurídico, legislativo, fiscalizatório, enfim. No entanto, sua suposta tendência ao crescimento

deve ser constantemente colocada em xeque. Como tal, busca-se delimitar qual seria a menor

dosagem possível de presença do Estado, para garantir que não exceda esse limite – e no caso

dos Estados já consolidados, fazê-lo retroceder a esse nível mínimo. Em paralelo, isso

corresponderia a um avanço rumo ao máximo possível de liberdade.

Não surpreende que dessa dinâmica, apesar das divergências que permeiam o campo

neoliberal, os Estados constituídos sejam unanimemente considerados grandes demais. Na

prática, exemplos particularmente extremos são o da Inglaterra, sob o governo de Margaret

Thatcher (1979 – 1990) e dos Estados Unidos, durante a gestão do presidente Ronald Reagan

(1981 – 1989) (HARVEY, 2005), durante os quais foram desmantelados muitos dos

mecanismos estatais de seguridade social até então existentes. Nos dois casos, sob forte

influência do economista austríaco Friedrich Hayek, um dos maiores expoentes do

pensamento neoliberal (GANE, 2013).

Os casos acima, contudo, foram apresentados apenas em seu contorno mais

superficial. Isto porque, na prática, os detalhes do processo de desenvolvimento do

neoliberalismo irá variar bastante. Com efeito, o que podemos detectar são apenas

fragmentos, avanços e recuos pontuais no sentido de tentar concretizar esse projeto. Esbarra

em legislações nacionais, interesses corporativos, tramas políticas, divergências intelectuais –

sofre desvios de toda sorte. Remetendo ao mote foucaultiano, o que podemos observar são os

efeitos descontínuos de sua existência dispersa.

Não é de surpreender, nessa medida, que o termo “neoliberalismo” tenha sido usado

para se referir a uma verdadeira profusão de fenômenos, em várias áreas do conhecimento.

Paralelamente, dá conta de por que é difícil lhe dar uma dar definição precisa sem esbarrar em

um certo número de problemas, que vários(as) críticos(as) buscaram apontar. Com isso mente,

propomos apresentar algumas dessas (várias) concepções de neoliberalismo e das críticas

mais comuns que se fazem ao termo, para em seguida lhe dar uma definição funcional para os

termos dessa pesquisa.

3.4. Neoliberalismo: definições e críticas

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O neoliberalismo, enquanto ferramenta teórica, ocupa uma posição peculiar nos

estudos contemporâneos. Conforme apontam Boas e Gans-Morse (2009), embora amplamente

utilizado em diferentes áreas do conhecimento, existe pouquíssimo consenso a respeito

daquilo que constitui, ou não, esse fenômeno. Essa mesma crítica é ecoada por outros autores

(cf. BARNETT, 2005; FLEW, 2014; VENUGOPAL, 2015), que questionam sua usabilidade

ou potencial explicativo. De diferentes formas, buscam mostrar como uma suposta falta de

rigor no uso e aplicação do termo “neoliberalismo” levou, em última instância, ao seu

esgotamento teórico.

Partindo de uma extensiva análise de publicações na qual o neoliberalismo surge como

elemento central da análise, Boas e Gans-Morse (2009) apontam quatro usos mais recorrentes

do termo. A saber: um conjunto de políticas de reforma econômica; um modelo de

desenvolvimento; uma ideologia normativa e um paradigma acadêmico. No primeiro caso,

políticas que são geralmente tomadas como neoliberais visam, de forma mais ou menos

literal, liberalizar o funcionamento de uma economia. Isto, no sentido de ampliar ou espaço de

atuação dos agentes econômicos através de medidas como a suspensão de mecanismos

regulatórios e a privatização de empresas ou recursos públicos.

Quando retratado como modelo de desenvolvimento, o neoliberalismo diz respeito a

um conjunto integrado de estratégias que visam a prosperidade econômica, com implicações

nas esferas social e política. Nesse sentido, mantém uma estreita relação com um conjunto de

“teorias econômicas que conectam políticas diversas em uma receita coerente para o

crescimento ou modernização; prescrições sobre o papel devido de atores-chave como os

sindicatos, empresas privadas, e o Estado” (BOAS; GANS-MORSE, 2009, p. 6).24

Em sua terceira concepção, o termo é utilizado para denotar o que os autores

compreendem como uma ideologia25 (ibid., p. 6): conjunto de ideias de caráter normativo que

prescreve certos modos de atuação aos indivíduos e de diferentes coletividades (empresas,

governo, comunidades etc.). O quarto e último modo de utilização descrito por Boas e Gans-

Morse (2009) é um paradigma acadêmico: conjunto de percepções favoráveis ou positivas que

são reiteradas em publicações, conferências, simpósios. Remete, assim, ao desenvolvimento

de um aparato teórico que visa ressaltar as virtudes da economia de livre-mercado.

24 No original: “[...] involves a set of economic theories linking disparate policies together into a coherent recipe for growth or modernization; prescriptions for the proper role of key actors such as labor unions, private enterprise and the state.” (BOAS; GANS-MORSE, 2009, p. 6). 25 Nesse caso, o termo é utilizado com sentido bastante geral, sem grande aprofundamento teórico por parte dos autores.

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Em um levantamento similar, Venugopal (2015) aponta três tendências no que diz

respeito daquilo designado pelo termo neoliberalismo. Primeiramente, o uso que é feito do

termo para designar uma agenda de políticas de econômicas – nessa medida, fazendo coro a

Boas e Gans-Morse (2009). Por extensão, passou a designar também praticamente qualquer

lógica organizacional orientada pelo funcionamento do mercado (VENUGOPAL, 2015) – em

outras palavras, que se oriente por questões de oferta, demanda e concorrência. Em geral, essa

referência é usada em tom pejorativo ou acusativo.

Outro modo recorrente diz respeito a uma forma de autoritarismo do capital:

submissão de todos os valores sociais e instituições políticas ao interesse econômico de uma

minoria global, composta da parcela mais rica da população mundial. Medidas neoliberais

seriam, portanto, não aquelas planejadas e executadas por economistas, mas aquelas ditadas

de cima para baixo por uma elite que dita os rumos da economia global.

O terceiro uso, segundo Venugopal (2015), é para tratar do que veio a se conhecer

como neocolonialismo, que designa uma relação entre países economicamente desenvolvidos

e subdesenvolvidos. No qual os primeiros impõem aos segundos uma série de medidas que

instauram, em última instância, sua dependência para com as principais potências

econômicas. Assim, países em situação precária se veem forçados a limitar suas atividades

econômicas à extração e exportação de matérias-primas ou a oferta de mão de obra barata –

ocupando posição análoga a de uma colônia.

Isso serve para dar corpo à crítica segundo a qual existem definições demais para o

neoliberalismo para que seja possível demarca-lo como um único fenômeno pode parecer

correta. Atente-se ainda para outro problema indicado por Boas e Gans-Morse (2004): muitos

trabalhos deixam de definir, mesmo para que seus próprios termos, aquilo que está sendo

considerado “neoliberal”. Ao deixarem essa questão no ar, perpetuam a confusão a respeito do

termo e mesmo das conclusões que porventura apresentem.

Em decorrência dessas críticas, fazemos dois apontamentos. O primeiro é que essas

várias definições que o termo ganha tem em comum o fato de que se remetem, como viemos

argumentando, a um mesmo projeto ideal de sociedade, em seus diversos níveis e dimensões

(local, nacional, global etc.). Na medida em que tratamos esse processo na qualidade de uma

dispersão, é natural que ela comporte facetas muito diferentes e mesmo contraditórias – como

indicamos mais acima. Ademais, se é capaz de se manifestar de forma que carregam

diferenças consideráveis entre si, é porque o horizonte epistemológico para o qual se abre é

enorme.

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O segundo é que nos parece possível traçar uma definição que leve em conta

justamente esse aspecto disperso, através da mobilização do aparato teórico provido pela

arqueologia de Foucault (1986). Em outras palavras, falamos aqui de buscar descrever o

neoliberalismo enquanto formação discursiva: captar as relações que regem sua dispersão no

tempo e na história. Obviamente, isso envolveria um esforço de pesquisa que excede, em

muito, o que foi despendido nessa dissertação. Com isso em mente, nos limitamos a fornecer

uma definição provisória, mas que consideramos funcional: a formação discursiva neoliberal

diz respeito a um conjunto de relações discursivas que se orientam para a demarcação do

arranjo social que permite chegar o mais próximo possível do funcionamento ideal do

mercado, maximizando os efeitos positivos que gera. Esta definição, como vemos, é

construída na esteira daquilo que expusemos no item anterior, dedicado aos pontos de

diferenciação entre liberalismo e neoliberalismo. Ainda que abrangente, acreditamos que ela

se adequa ao estudo proposto; ademais, buscaremos dar-lhe corpo ao longo do restante desse

capítulo.

Vejamos como isso se liga a questão do mérito e da meritocracia. Se estivermos

falando de uma sociedade que permita o arranjo ótimo do mercado, redunda que, ao menos

em tese, que cada posto no seu interior seja ocupado por quem melhor cumpre a função que

lhe cabe. Ao mesmo tempo, por respeito ao princípio da liberdade, não se pode obrigar

ninguém a ocupar tal qual ou qual posto contra sua vontade26. Há que se estabelecer, então,

um critério não-arbitrário (logo, justo) e dinâmico, capaz de regular esse processo.

Eis aí razão porque esse modelo ideal de sociedade passa, com certo número de

variações, pelo estabelecimento de dispositivos que visem garantir o funcionamento pleno da

concorrência, lhe permitindo exercer seu poder de discernimento em praticamente todas as

instâncias do mundo social. Ela serve uma função reguladora, que opera tão bem quanto a

configuração social que lhe produz: o mérito, assim, surgirá como o produto dessa relação.

Sua validade, como tal, será relativa – mas sempre submetida aos processos que o fazem

surgir.

Em teoria, bastaria ao Estado fornecer condições de concorrência permanente e justa.

Não tanto por uma vocação benigna, mas porque teria um desperdício mínimo de recursos

humanos úteis e o máximo de aproveitamento dos talentos individuais, uma vez respeitado o

princípio da liberdade. Na prática, a discrepância entre um modelo idealizado e sua

implantação paulatina no mundo social implica em problemas de toda ordem. Mas abre a

26 Obviamente, estamos desconsiderando os casos em que se impõe uma restrição à liberdade como forma de punição criminal: encarceramento, prisão domiciliar, prestação de serviço comunitário etc.

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possibilidade de organizar um campo de saber que se dedica precisamente ao

desenvolvimento, implantação, crítica e apreciação desses mecanismos que visam produzir o

mérito através da concorrência.

Em paralelo, ele exerce uma função quase irrestrita de lastreio dos fenômenos de

mobilidade social. Como vimos, não em referência a ele mesmo, mas em referência ao arranjo

social que o produziu como tal; que decretou, para efeitos práticos, que uma pessoa detém

mais mérito do que outra. Mas que, em todo caso, pode tê-lo feito de maneira justa ou injusta,

criteriosa ou arbitrária etc.

Como havíamos destacado mais acima, trata-se de um processo descontínuo e

disperso, que nem de longe se manifesta de forma homogênea. Por isso é que nos detemos,

nesta pesquisa, no caso específico do uso de cotas raciais em processos seletivos de ingresso à

educação pública superior. Interesses locais à parte, o que emerge de regular nesse campo é

um considerável esforço no sentido de se aproximar de delinear, em toda parte, um

funcionamento ideal da meritocracia, seja ela considerada mais ou menos distante do

presente.

Como vimos no capítulo anterior, defensores(as) desse tipo de política indicarão como

o racismo corrompe tais mecanismos ao ponto de demandar uma intervenção que corrija seus

efeitos, tornando legítimo o mérito produzido. Pelo contrário, detratores(as) ressaltarão, por

uma série de motivos, que a questão racial não chega a ser um empecilho relevante ou

passível de ser considerada na aferição do mérito, subscrevendo diferentes medidas

alternativas – como as já citadas políticas racialmente não neutras – ou rejeitando a

necessidade de qualquer mudança no seu funcionamento.

Apesar dessa divergência, certas relações discursivas nos parecem comuns a esses

posicionamentos, nos permitindo avaliar como esse processo toma forma nos quatro eixos de

uma formação discursiva. Entretanto, antes de avançarmos nesse sentido, precisamos nos

voltar para uma breve discussão a respeito das noções de mérito e meritocracia, dando-lhes

uma definição final para os termos dessa dissertação.

3.5. Mérito e meritocracia: a problemática do merecimento

Muito se fala, atualmente, em mérito e meritocracia. Entretanto, não é raro que uma

interpretação bastante específica desses termos acabe ofuscando outras perspectivas a seu

respeito. Notadamente, nos referimos aqui ao entendimento de que mérito é sinônimo de

capacidade ou desempenho, sendo a meritocracia um sistema de organização social edificado

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em torno desses dois valores. Em nossa compreensão, mérito e meritocracia não se esgotam

nesses dois pontos, que compreendemos como facetas de um fenômeno discursivo mais

amplo.

Uma rápida pesquisa etimológica mostra que a palavra “mérito” veio do Latim

meritus/meritum, que designa “merecimento”. Ao longo da idade média foi integrado às

diferentes línguas modernas (inglês, francês, italiano, português, espanhol etc.), conservando

essa conotação na medida em que circulava por diferentes campos semânticos: pode designar

o merecimento de uma punição, no contexto jurídico; de uma honraria, no contexto militar; de

um favor divino, no contexto religioso (LATDICT, 2017; DIZIONARIO ETIMOLOGICO

ONLINE, 2017; DICCIONARIO ETIMOLÓGICO ESPAÑOL EM LÍNEA, 2017; ONLINE

ETYMOLOGY DICTIONARY, 2017).

Partindo do entendimento de que mérito designa, antes de qualquer outra coisa,

merecimento, a meritocracia pode ser compreendida como sistema de organização social que

preza pelo merecimento. Com efeito, muitas vezes irá se considerar que esse merecimento se

dá em vista de um resultado apresentado, de um desempenho específico, de uma aptidão ou

talento excepcional: todos eles, aferidos e hierarquizados em função de diferentes

mecanismos que visam dar-lhes respaldo.

Entretanto, do ponto de vista discursivo, a meritocracia e o mérito excedem os limites

dessa lógica, caracterizando um processo que propomos chamar de problemática do

merecimento. Logo, organização mais ou menos sistemática de um conjunto de problemas

derivados da seguinte questão: como organizar a sociedade com base no merecimento? Em

especial: diante da necessidade de distribuir certos recursos escassos, como determinar quem

merece mais e quem merece menos?

O debate sobre a legitimidade das cotas raciais é um exemplo concreto desse

fenômeno. Muito mais do que simplesmente se pautar pelos resultados apresentados por quem

participa dos processos seletivos à uma universidade pública, a questão principal é determinar

quem fez por merecer, ou não, essa vaga. Nesse ponto surgem e se desenvolvem toda uma

série de conflitos e disputas a respeito do mérito: qual a influência do racismo no

merecimento? Nos resultados apresentados pela população negra? Esse efeito pode ou não ser

corrigida por uma intervenção calculada no processo competitivo? Quais as implicações de

fazê-lo?

A diversidade de respostas dadas a essas perguntas dá origem a toda uma trama

discursiva que gira em torno do merecimento individual ou mesmo coletivo (no caso da

população negra, da população pobre, da população não-negra, etc.). Mostrando, com isso,

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que mérito e meritocracia, enquanto fenômenos discursivos, não devem ser estudados a partir

de um eixo único, mas em sua forma dispersa e não-consensual. No entanto, é comum vermos

justamente o contrário.

Em especial, análises que tratam a meritocracia como certa forma de fundamentalismo

do resultado: modelo defendido por um grande número de pessoas e criticado por tantas

outras mais, pois desconsidera o impacto de fatores fora do controle do indivíduo. Dentre

os(as) autores(as) que abordam a meritocracia a partir do eixo único do

resultado/desempenho, destacamos o trabalho Lívia Barbosa (2001), em vista da influência

que exerceu no meio acadêmico.

Partindo dessa concepção estrita, analisa como a sociedade brasileira, em tese, encara

o mérito, comparando-a com a realidades sociais dos Estados Unidos27. Ao contrário da

sociedade estadunidense, que em sua compreensão tem no mérito um valor fundante, no

Brasil ele figura algo que se defende na teoria, mas se rechaça na prática. Barbosa (2001, p.

48) argumenta que aquilo que chama de “meritocracia à brasileira” envolve criar justificativas

ou desculpas para o desempenho individual, ao invés de simplesmente acatá-lo – como, em

tese, se faz nos Estados Unidos.

Compreendemos que existem aí dois problemas: primeiro, que esse suposto respeito

irrestrito ao resultado, nos Estados Unidos, parece derivar de uma visão algo romântica

daquele país. Logo, aquilo que deveria marcar a especificidade da meritocracia no Brasil

deixa de ser uma especificidade e passa a ser um traço comum aos dois casos: diferenças à

parte, o processo discursivo que se desenrola remete a uma mesma problemática do

merecimento. Em ambos os casos, o mérito não é sinônimo do resultado puro e se insere em

disputas discursivas complexas.

O trabalho de Barbosa (2001), ao enfatizar demais que a sociedade estadunidense

colocou e coloca as conquistas e capacidades individuais acima de tudo, ignora o longo

histórico escravocrata dos Estados Unidos, assim como as tensões e arbitrariedades de cunho

racial que ainda hoje permeiam seu funcionamento. A escravidão, praticada desde o período

colonial, persistiu durante décadas após a fundação do país em 1776 – sendo oficialmente

encerrada apenas com o fim da Guerra Civil28, em 1863. Cerca de três décadas depois, teve

27 Seu trabalho inclui também uma comparação com o Japão. Como a influência social e política desse país, no Brasil, é significativamente menor do que a dos Estados Unidos, optamos por nos deter apenas no estudo que a autora faz desse último. 28 Guerra civil motivada justamente em vista da recusa, por parte dos estados do sul, em abandonar o modelo escravocrata, culminando com a tentativa (fracassada) de criação dos Estados Confederados da América. Motivo este pelo qual o conflito é também conhecido como Guerra de Secessão.

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início o período conhecido como Era Jim Crow29, em que a divisão racial foi

institucionalizada e a perseguição racial30 imperou com alarmante conivência da sociedade.

Essas questões não foram simplesmente deixadas de lado nos Estados Unidos,

substituídas pela pura e simples valorização dos resultados apresentados. Pelo contrário, tal

como no Brasil, a meritocracia despontou como fenômeno discursivo que levava em conta

fatores múltiplos, que distorcem sua aferição – paralelamente, que podem se tornar objeto de

saber e de intervenção. Esse fato se evidencia nas lutas de populações historicamente

silenciadas daquele país (negros, mulheres, homossexuais, imigrantes etc.), que, em repetidas

vezes, denunciaram a ambiguidade da meritocracia americana e exigiram medidas concretas

de intervenção no seu funcionamento, inclusive com ações afirmativas.

Reafirmar a noção de meritocracia algo pautado exclusivamente nos resultados seria

dizer que esses grupos não estão cientes ou não dão importância às múltiplas distorções do

mérito que se exercem a despeito de seus desempenhos individuais. A máxima, bem popular

nos Estados Unidos, segundo o qual as pessoas negras precisam ser duas vezes melhores em

tudo para ter o mesmo sucesso que uma pessoa branca, mostra que não é o caso. Ou será que

estariam, por outro lado, defendendo a tal meritocracia à brasileira?

Parece-nos muito mais plausível que as particularidades nacionais sejam, em certa

medida, irrelevantes frente ao contexto discursivo que circunda as noções de mérito e

meritocracia. Em outras palavras: a problemática do merecimento e sua ligação com um

projeto ideal de sociedade que tem, nelas, um de seus mecanismos centrais. Processo que,

como buscaremos mostrar adiante, se sustenta sobre um conjunto de relações discursivas

características do neoliberalismo. Por ora, nos limitemos a dar uma definição operacional para

“mérito” e “meritocracia”.

No primeiro caso, nós tratamos o mérito como tudo aquilo que manifesta o

merecimento – sem fazer restrição prévia aos elementos que podem ser articulados para

demonstrá-lo. Logo, consideramos que não existe a priori ou, se muito, apenas como forma

ideal: algo que só pode surgir e exercer seus efeitos mediante uma conjunção específica de

fatores que podem ou devem ser estabelecidos.31 A meritocracia, portanto, é aqui considerada

como um sistema de organização social que preze majoritariamente pelo mérito. Em sua

29 “Jim Crow” é o nome de um personagem que ficou famoso na década de 30 do século XIV. Interpretado por atores brancos, que pintavam seus rostos de negro, era uma caricatura extremamente pejorativa da população afro-americana. Com o tempo, passou a ser um termo comum para se referir à essa população de forma derrogatória. 30 A esse respeito, o linchamento de pessoas negras era uma prática comum. 31 Como, aliás, já havia destacado Foucault (2008, cf. p. 162 – 165) a respeito do fenômeno da concorrência no interior de uma economia e na atribuição do papel do Estado no contexto do neoliberalismo).

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forma de superfície, irá variar em função daquilo que valerá ou não como mérito; contudo,

sua essência e seu projeto final de mundo se mantêm.

Acreditamos que essas definições garantem um grau de flexibilidade compatível com

o que temos observado, em geral, no mundo contemporâneo e também na dimensão específica

do debate sobre cotas. É decididamente mais abrangente do que a definição que nos fornece o

senso comum, que os encara unicamente sob a ótica resultado. Contudo, nem por isso,

chegam a ser excessivamente abstratas ou inclusivas. Em nosso entendimento, são rígidas o

bastante sem, com isso, comprometer a natureza maleável, fluida, daquilo que designam.

A despeito das várias diferenças que emergem dessa problemática do merecimento,

quase todas parecem fazer referência, em alguma medida, a mecanismos que instauram a

competição para fazer aparecer o mérito individual. Isso não chega a nos surpreender, tendo

em vista que o mecanismo ideal da concorrência tem papel central no pensamento econômico

neoliberal: atuando como instância reguladora entre oferta e demanda, pressupõe disputa entre

entidades livres (pessoas, empresas, organizações etc.) ao mesmo tempo em que estimula a

eficiência no uso dos recursos, a inovação, a excelência.

Mérito e meritocracia visam, nesse sentido, emular esse sistema que, em tese, anularia

o papel exercido por fatores arbitrários para fazer aparecer o valor inerente do indivíduo,

fazendo dele o único mecanismo relevante de mobilidade social. A questão, como indicamos

acima, é estabelecer as condições necessárias para que isso ocorra. Esse é o ponto onde

começam a brotar as divergências que nos levam a falar de uma problemática do merecimento

ao invés de uma noção estrita de mérito como resultado ou desempenho.

Detendo-nos no caso específico desse trabalho, podemos citar o fato de que o processo

de inclusão nas instituições de educação superior passam necessariamente pelo

estabelecimento de um espaço de concorrência que, em tese, garanta o aparecimento dos(as)

candidatos(as) mais merecedores(as) dentre aquelas pessoas que tem interesse numa vaga.

Muitos dos posicionamentos que observamos no debate sobre as cotas giram em torno de

definir ou não esse grau de merecimento em face do mecanismo competitivo constituído pelos

processos seletivos do ENEM e do vestibular.

Essa dinâmica bem mais complexa do que a simples hierarquização dos resultados

apresentados numa avaliação, mostrando como o mérito é uma noção que, do ponto de vista

discursivo, não é facilmente delimitada. Contudo, por outro, sugerem que a referência ao

crivo da competição pode ser um ponto comum, um princípio inicial a partir do qual são

traçados diferentes entendimentos a respeito do merecimento individual.

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Em nossa compreensão, a forma e frequência desse processo remetem a influência

exercida pelo discurso neoliberal nos termos desse debate. Em outras palavras, esse campo

parece ser regido, de um lado a outro, por uma mesma formação discursiva neoliberal. Com

isso em mente, propomos agora descrevê-la em sua forma histórica mais geral para, depois,

estudá-la ao longo dos quatro eixos de análise apontados por Foucault (1986), apontando,

ainda, como esses eixos se ligam a questão do mérito e das cotas raciais em universidades

públicas brasileiras.

3.6. A formação discursiva neoliberal

Como vimos anteriormente, trabalhamos aqui com a compreensão de que o

neoliberalismo enseja uma reconstrução radical da sociedade, no sentido de aproximá-la de

um arranjo que permita o funcionamento ideal do mercado e maximize seus efeitos positivos.

Isso passa pelo estabelecimento da noção de mérito, tomada no sentido de merecimento, como

um dos critérios norteadores desse processo, que, como tal, se torna alvo de uma série de

dizeres que versam sobre ele e os mecanismos que podem ou devem constituí-lo; que, apesar

da validade relativa, tem peso simbólico considerável.

Partindo desses apontamentos, podemos agora direcionar nossa análise no sentido de

compreender como o neoliberalismo se constitui enquanto formação discursiva – um conjunto

de enunciados regidos por um conjunto regular de relações. Portanto, trata-se de determinar

qual a regularidade que lhe é característica, enquanto prática de natureza discursiva, e

algumas das relações que marcam o modo pela qual forma objetos, modalidades enunciativas,

conceitos e estratégias. Por sua vez, dando atenção especial a questão das cotas raciais e de

sua relação com o mérito.

3.6.1. Da formação dos objetos

Foucault (1986) sugere três direções para a análise do sistema de formação dos objetos

de um discurso: as superfícies de emergência; as instâncias de delimitação e as grades de

especificação. Inicialmente utilizadas por ele para descrever a formação do discurso

psiquiátrico, elas podem ser mobilizadas no sentido de uma compreensão do discurso

neoliberal. Vale lembrar que, ainda que descritos individualmente, esses sistemas não são

independentes entre si, mas se implicam e afetam mutuamente.

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Um dos pontos que caracteriza o discurso neoliberal é uma ampliação radical das

superfícies de emergência; ou seja, dos locais onde pode encontrar os objetos de que trata.

Não por menos: a circunscrição de um arranjo ideal de sociedade abarca um conjunto

muitíssimo vasto de fatores. Estes incluem os já referidos mecanismos de produção do mérito

individual com base no princípio de concorrência e a explicação de fenômenos de mobilidade

social também em função do mérito, em praticamente qualquer área do mundo social. Por

exemplo, objetos que derivam de uma transgressão ao princípio do mérito e do respeito à

competição, referindo-nos, com isso, a práticas como o nepotismo, o compadrio, o uso de

informações privilegiadas e o enriquecimento ilícito, as quais, por sua vez, podem emergir

enquanto objetos de um discurso jurídico (que determina punições a essas práticas) ou mesmo

moral (que as condena por violar um princípio socialmente aceito). De modo que, em cada

caso, busca-se determinar as minúcias de cada uma dessas formas de distorcer ou burlar o

funcionamento dos mecanismos de concorrência.

Esse tema se manifesta na questão do acesso à educação superior pública brasileira,

revestindo-a com esse saber. No nível mais básico, parte-se do seguinte problema: existe um

número limitado de vagas a serem preenchidas e é preciso fazê-lo da forma mais eficiente e

(em tese) democrática possível. Por outro lado, existe uma demanda que, na absoluta maioria

dos casos, excede essa oferta de vagas, de modo que os interesses de vários indivíduos

convergem num mesmo ponto. Por fim, cabe às instituições de educação superior intermediar

esse jogo entre uma oferta limitada e uma demanda que a extrapola.

Donde a resolução desse problema é a construção de um mecanismo de concorrência

que visa determinar, de forma dinâmica e detalhada, diferentes graus de merecimento: os

processos seletivos vestibulares (como a Fuvest) e o Sistema de Seleção Unificada (SiSU),

que utiliza como base a nota obtida no ENEM. Justamente para que apenas aqueles(as) mais

aptos(as) possam emergir dessa massa de candidatos(as), fazendo revelar o suposto mérito

acadêmico de cada um(a).

Em termos concretos, isso permite ao neoliberalismo dar corpo a todo um conjunto de

objetos que se apoiam no aspecto competitivo da educação, enquanto instrumento que permite

avançar ou recuar o projeto ideal de sociedade que discutimos anteriormente. Logo, que se

ligam ou se orientam aos próprios mecanismos que deverão produzir mérito, incluindo-se aí:

teorias e práticas que visam preparar os alunos(as) para o vestibular; técnicas para fazer

aprenderem mais em menos tempo, ou para aumentar a retenção de conteúdo; ferramentas

mentais para memorizar de dados, fórmulas, equações; modelos sistemáticos de redação

textual, raciocínio, leitura e interpretação. Porém, por outro lado, dão corpo a reflexões a

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respeito de fatores fora do alcance imediato dos(as) estudantes, de modo a avaliar e mensurar

o impacto que geram em sua competitividade. Por exemplo: a família, caso seja considerada

estável ou disfuncional; a situação socioeconômica, com as restrições que impõe; a própria

identificação racial, em que pesa o efeito do racismo. Todos ilustram a expansão da superfície

de surgimento dos objetos discursivos do neoliberalismo: como diferentes aspectos da vida

são analisados em função do efeito que geram na identificação e otimização do mérito

individual.

Contudo, apesar dessa expansão das superfícies de emergência dos objetos, o

neoliberalismo comportará diversas instâncias de delimitação. Trocando em miúdos:

diferentes campos se reservam o direito exclusivo de fazer surgir, com suas modalidades

específicas, os vários objetos que figuram no discurso neoliberal. Detendo-nos no caso

anterior, do acesso à educação superior pública. Apesar de a meta comum ser, eventualmente,

chegar a uma meritocracia que se acople a um funcionamento ideal do mercado, os caminhos

que passam pelo discurso da Educação estão fora do escopo de atuação, por exemplo, da

Economia.

É a primeira que ficará responsável por, dentre outras coisas, configurar o espaço e

determinar as condições para o aparecimento do mérito escolar: regras para realização de um

processo seletivo; aquilo que pode ou não ser avaliado no mesmo; os graus de dificuldade; os

conteúdos a serem explorados. Tudo isto difere daquilo que permite que o mérito surja, por

exemplo, num contexto profissional, onde outros fatores, mais próximos à Economia

propriamente dita (eficiência, flexibilidade, vendas, custo-benefício etc.), é que serão levados

em conta – e assim por diante, na medida em que surgem outros pontos de contato e

delimitação.

Um desenvolvimento particularmente ilustrativo é a maneira pela qual a Teoria de

Resposta ao Item (TRI) foi utilizada para formular as provas do Exame Nacional do Ensino

Médio (ENEM) a partir de 2009. O nome desse método decorre do fato de que se analisa cada

item que irá compor uma avaliação – e não a avaliação como um todo. Na prática, isso

permite ir além do simples número de acertos e detectar padrões de resposta, de ponderar a

possibilidade de acerto ao acaso (chute), de aferir diferentes habilidades numa mesma

questão.

Basicamente, serve, assim, para eliminar ao máximo possíveis imprecisões ou desvios

na aferição das competências individuais, com base nos princípios e habilidades o discurso da

educação considera mais relevantes em cada disciplina ou área do conhecimento. Mais

importante, permite fazer o mérito acadêmico aparecer como um objeto progressivamente

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mais complexo e cheio de nuances, na medida em que põe em jogo um número cada vez

maior de variáveis que ele deverá manifestar.

Enfim, o neoliberalismo produz diferentes grades de especificação dos objetos que

surgem ou podem surgir. No que tange unicamente o mérito individual, essas correspondem

aos mecanismos que permitem fazê-lo surgir em diferentes instâncias da vida: acadêmica,

profissional, econômica etc. Mas, ainda, por aqueles que permitem, no interior desses campos,

diferenciá-los ou hierarquizá-los segundo parâmetros diversos. Como veremos mais adiante,

um ponto interessante a esse respeito é como, no debate sobre cotas raciais, ocorre uma cisma

relativa aos possíveis princípios de equivalência entre méritos de cotistas e não-cotistas. Com

isso, embasando posicionamentos contrários ou favoráveis a essas políticas.

Essas três instâncias do processo de formação do mérito enquanto objeto de discurso,

que tem papel central no neoliberalismo, foram aqui apresentadas de forma bastante sucinta.

O que é necessário reter dessa breve discussão é o modo como a organização de um espaço

concorrencial surge como pedra de toque da construção do mérito: como havíamos dito, sua

validade está na dependência dos processos que o fazem surgir como tal. De onde temos a

preocupação, no caso do acesso à educação superior pública, com a configuração ideal desse

espaço e dos fatores que nele incidem.

Em geral, quem defende a utilização de cotas e demais ações afirmativas ressalta como

o mérito produzido por um sistema de concorrência pura ignora o fato de que o acesso à

educação de qualidade, que, posteriormente, se traduz em notas mais substanciais nos exames

de seleção, está restrito a quem pode pagar por uma educação privada. O mérito produzido

seria, assim, como objeto corrompido pela incapacidade do Estado fornecer educação de

qualidade. Tal validade poderia ser corrigida, provisoriamente, ao considerar o papel exercido

por essa discrepância entre educação pública e privada, separando-as em duas modalidades de

concorrência para buscar, em cada uma delas, os(as) melhores estudantes. O mesmo princípio

se aplica ao caso específico das cotas raciais: trata-se de considerar, nesse cálculo, o efeito

presumível do racismo e a incapacidade de garantir à população negra as mesmas condições

de vida dispensadas a população não-negra.

Por outro lado, quem se coloca contra esse tipo de medida ressalta que o mérito

individual se revela, inteiramente, no momento do exame: a despeito dos trajetos individuais e

da qualidade da educação pública, o resultado apresentado é que deverá prevalecer. Daí que

não existam, nesse caso, meios termos ou princípios de equivalência: compreende-se que não

há como recalcular esse merecimento para levar em conta a distorção gerada e que tentar fazê-

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lo levaria a uma invalidação do processo como um todo, ao dar preferência a um mérito que

se produz na teoria em detrimento daquele que está atestado na prática.

Não obstante essas divergências, o esforço no sentido de refinar a construção do

mérito enquanto objeto discursivo nos parece dizer bastante a respeito do apreço exercido por

essa noção para ambos os lados da contenda em torno das cotas raciais, mas revela também

sua proximidade com o neoliberalismo, na medida em que envolve configurar um espaço

ideal para o aparecimento do mérito e da distribuição de recursos escassos, como vagas em

universidades, em torno desse valor.

3.6.2. Da formação das modalidades enunciativas

As modalidades enunciativas dizem respeito às posições que podem ou devem ser

ocupadas pelos sujeitos que se inserem no discurso neoliberal. Mantendo-nos naquilo que

viemos formulando a seu respeito, podemos destacar dois aspectos principais. A própria

valorização do dizer que se projeta de um lugar de mérito e o detalhamento das condições

para se inserir nessa posição, tomando como referência os mecanismos que visam produzi-lo.

Para analisar essa dimensão, podemos nos reter nas três instâncias de análise sugeridas por

Foucault (1986): (I) o status dos sujeitos que falam; (II) os locais institucionais de obtenção e

exercício dessa fala; (III) os posicionamentos possíveis frente aos objetos e domínios que

surgem nesse campo discursivo (FOUCAULT, 1986).

A respeito do primeiro ponto, o status desses sujeitos parece envolver sua inserção

contínua em diferentes dinâmicas concorrenciais. Assim, é interessante notar como, no geral,

as pessoas consideradas mais aptas a darem um parecer sobre ele sejam justamente as que se

destacam em processos competitivos. A título ilustrativo, destacamos, aqui, uma matéria

jornalística coletada no site Pragmatismo Político: “Jovem que passou em 1º lugar na USP diz

que a "meritocracia é uma falácia"32 (PRAGMATISMO POLÍTICO, 2017). No caso, o

destaque dado à sua fala sobre a meritocracia repousa própria relação que ela estabelece com

esse mecanismo. Quer dizer: pelo fato de que foi aprovada em primeiro lugar no curso de

Medicina, historicamente o mais concorrido da Universidade de São Paulo (USP), que visa

justamente produzir ou atestar o mérito socialmente produzido.

Além disso, a própria crítica realizada pela aluna reinsere o sujeito no contexto do

mérito, mas agora sob a forma da falta de oportunidades para demonstrá-lo: “Eu me esforcei

32 Disponível em: <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/jovem-negra-e-pobre-que-passou-em-1o-lugar-no-curso-mais-cobicado-do-brasil.html>. Acesso em: 26 jun. 2017.

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muito, sim, mas não consegui só por causa disso, eu tive muito apoio. E é isso que a gente

tem que dá para quem não tem oportunidade. A gente perde muitos gênios por aí, inclusive

nas favelas porque não podem estudar” (PRAGMATISMO POLÍTICO, 2017, grifos nossos).

Logo, o problema não é a meritocracia enquanto horizonte ideal, mas o fato de que existem

distorções a serem corrigidas: talentos não reconhecidos porque foram negligenciados pelo

sistema público de ensino.

Esse mesmo processo de inserção no mérito através da concorrência rege o

funcionamento dos locais institucionais de obtenção ou exercício desses dizeres. O primeiro,

pois é basicamente o mesmo: o status deriva da posição de destaque numa estrutura de

produção do mérito; logo, seu local privilegiado de obtenção são os próprios processos

concorrenciais, os quais não se limitam, nesse sentido, aos processos seletivos vestibulares,

mas às várias instâncias de competição existentes em todas as esferas da sociedade. Isso nos

leva a sugerir que o culto ao sucesso, amplamente observável no mundo contemporâneo,

parece ser mais um culto ao mérito, ao merecimento excepcional face a uma concepção de

sociedade enquanto espaço generalizado de disputa por recursos escassos.

Voltando a questão dos processos seletivos vestibulares. Em que toque a possibilidade

de obtenção desse estatuto de sujeito do mérito, há uma relação bem próxima com aquilo que

observamos no nível da formação dos objetos. Nesse caso, o ponto chave era determinar

parâmetros para que o mérito pudesse surgir enquanto objeto ideal. No caso da obtenção desse

estatuto, isso passará pela adequação do sujeito a esses critérios, ao funcionamento desse

mecanismo específico.

Daí a consequente criação de toda uma série de práticas que visam dar-lhe acesso a

essa posição: as já referidas técnicas de memorização e retenção de conteúdo, exames

simulados, acompanhamento psicológico, técnicas de administração do tempo, por exemplo.

Todas elas visam fazer com que o(a) candidato(a) expresse, no processo seletivo, um

merecimento superior ao de outros(as) que com ele(a) competem. Que, em termos práticos,

lastreia a legitimidade de seu acesso ao ensino superior em detrimento de outras pessoas; que,

em termos discursivos, os permitirá ocupar posições distintas na estrutura discursiva do

mérito: no caso acima, como primeira colocada num curso concorridíssimo (Medicina).

Isso nos leva aos espaços de exercício desse estatuto discursivo de quem é sujeito de

mérito excepcional e que, como tal, pode dar um parecer supostamente mais relevante, mais

poderoso, a esse respeito – ou, como indicamos acima, a respeito do sucesso individual. De

forma geral, são exercidos nas próprias instâncias de concorrência e se direcionam a elas

mesmas, sem que sejam necessariamente as mesmas.

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Basta pensar, a esse respeito, nas palestras motivacionais e livros de autoajuda feitos

por atletas, empresários(as) de sucesso, especialistas em mercado de trabalho ou concursos

públicos: pessoas que se destacam em contextos altamente competitivos e que oferecem

orientações sobre como se posicionar nesses contextos, como superar os obstáculos que

impõe, como se destacar frente aos(às) demais. Seus dizeres extraem sua força, relevância e

impacto, em parte, do contexto onde são exercidos – empresas, cursinhos preparatórios,

encontros de vendedores(as), palestras motivacionais.

Até o momento, vimos que o status dos sujeitos que falam nesse discurso deriva de

sua posição no interior de uma dinâmica competitiva e do espaço de seu exercício. No

entanto, há que se considerar ainda o terceiro item de análise: as posições que os sujeitos

podem ocupar em relação aos objetos e domínios que surgem desse campo discursivo. Em

consideração ao mérito, uma das questões principais é questionar, em mais detalhes, quais são

esses posicionamentos que podem ou devem ser ocupados por seus sujeitos na estrutura

discursiva que visa produzi-lo.

A mais óbvia delas é a de quem se submete aos exames como o ENEM e a Fuvest,

para que eventualmente possa ocupar um lugar nessa hierarquia de merecimento a uma vaga

no ensino superior. Já tocamos brevemente, também, no esforço que o sujeito terá de

desprender para inserir-se no grupo seleto de futuro(a) estudante universitário(a). Mas essa

posição diz respeito apenas ao estado-final do processo, que de resto passa por um longo

processo de construção.

A esse respeito, podemos citar os(as) múltiplos(as) colaboradores(as) que cumprem a

função de produzir questões para a prova, colocando-se, de um lado, face às diretrizes

nacionais para o ensino básico e médio: o que está previsto para cada disciplina, quais os

conhecimentos mais simples e os mais complexos, o que é considerado conhecimento comum

e o que pode apontar uma erudição ou capacidade de raciocínio acima da média. Tais

construções de questões ocorrem, por outro lado, em meio a uma série de regulações e

restrições. Entretanto, nesse espaço estreito de atuação, permite-se pôr em jogo uma ou várias

questões, além de suas múltiplas escolhas de resposta, cada qual revelando um pouco a

respeito do provável mérito do(a) candidato(a) e, não raro, usando de respostas

propositalmente enganosas – as populares “pegadinhas”.

Mais uma vez remetendo a Foucault (2014), essas várias interdições na produção dos

elementos que, em sua forma de conjunto, remetem ao poder exercido pelo discurso. Motivo

pelo qual a criação dos elementos que irão compor um exame que, em tese, medirá o mérito

acadêmico, é cerceada por todos os lados: para que, quando os(as) estudantes se insiram na

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relação e deem razão de ser ao processo como um todo, o mérito se revele em sua forma mais

pura possível. Esse zelo na preparação do terreno onde se desenrola a competição, não é por

acaso: é, de ponta a ponta, afetado pelo projeto de mundo encabeçado pelo neoliberalismo.

O caso do posicionamento de quem irá se inserir nesse processo concorrencial na

condição de cotista configura um caso particularmente interessante. Retomemos o que foi

discutido no capítulo 1. Salvo os caso em que utiliza-se apenas o critério da autodeclaração,

quem deseja participar das cotas raciais deverá se submeter à avaliação de terceiros(as) que

irão julgar plausível, ou não, se essa identificação será considerada válida para fins de

participação no processo seletivo33. Isto, em vista justamente do grau de incidência de

fraudes, especialmente nos cursos mais concorridos, como Medicina. Nesse contexto, temos

pelos menos duas instâncias discursivas interessantes: a de quem tem sua identificação

avaliada e quem irá avaliá-la.

As pessoas que irão integrar essa comissão deverão ser selecionadas com base em

critérios como cor, gênero e naturalidade. Como tal instância tem competência deliberativa, o

objetivo dessa exigência de pluralidade parece ser garantir que diferentes posições-sujeito

(branco, negro, homem, mulher, indígena, brasileiro, estrangeiro etc.) se confrontem para

construir um parecer que seja, ao menos em tese, o menos enviesado possível. Em editais

como o da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), para o vestibular de 2017, estipula-se

ainda que a banca seja composta por integrantes que tenham envolvimento com a temática

étnico-racial (CAVALCANTI, 2017) – incluindo, assim, outra posição possível nesse aparato,

a de especialista.

Quem irá se submeter a esse tipo de banca deverá, nesse sentido, dar indicações e

responder eventuais questionamentos a respeito de sua identificação. Presumivelmente,

relacionando-as com as experiências pessoais com o racismo, com a exclusão, com a

discriminação – justamente aquilo que justifica a sua participação na reserva de vagas. Em

outras palavras, indicar à banca seu lugar em meio a um conjunto de fatores que lhe

obstruíram, ao longo da vida e de diferentes formas, as possibilidades de se movimentar no

interior de uma estrutura social pautada na competição.

Interessante notar como, da dinâmica entre essas duas instâncias (concorrentes e

comissão avaliadora) se produzirá, ou não, a posição formal de cotista. Vale lembrar, a esse

respeito, que nem sempre haverá uma coincidência entre a autodeclaração e o parecer da

33 Relembrando aqui, mais uma vez, que a questão não é avaliar identificação cultural ou ancestralidade, mas a presença de traços físicos (cor de pele, cabelo, nariz etc.) que, em geral, servem de gatilho para a ocorrência de atos discriminatórios de cunho racial. Por sua vez, esse parecer diz respeito apenas a uma adequação formal à política de cotas e não, como muitas vezes se alardeia, um tribunal racial.

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banca. Em especial, quando se leva em conta o grau de miscigenação da população brasileira

– alimentando o polêmicas a respeito da razoabilidade desse processo de avaliação.

Dos casos mais recentes, destacamos um concurso para seleção de professores da rede

de ensino do município de São Paulo, orientado pelo decreto municipal nº 57.557, de 21 de

dezembro de 2016 (SÃO PAULO (SP), 2016). Conforme detalha matéria do jornal Folha de

S. Paulo, 138 candidatos(as) foram desclassificados(as) do concurso após avaliação do comitê

responsável por conferir a autodeclaração. Nas palavras de uma delas: "Levei uma vida toda

para me afirmar como negra e agora sinto como se minha identidade tivesse sido roubada. E

todas as situações de racismo por que passei?” (SALDAÑA, 2017).

Outro caso polêmico envolve uma situação oposta: um candidato que não possui

traços fenotípicos que o façam ser socialmente identificado como negro foi aprovado, via

cotas, na primeira etapa do concurso do Instituto Rio Branco34. Segundo informações

publicadas pela edição digital do jornal O Globo, o candidato participa na modalidade de

cotas raciais desde que estas passaram a vigorar no concurso, em 2013. No caso, a crítica feita

à instituição é justamente no sentido de não averiguar a pertinência dessa autodeclaração.

Diga-se de passagem, em 2013, o candidato buscou justificar seu posicionamento ao evocar o

critério da ancestralidade – o fato de que sua árvore genealógica inclui pessoas negras.

Esses são apenas alguns exemplos dos vários espaços ocupados pelos sujeitos na

medida em que interagem com uma série de mecanismos que visam produzir o mérito. Isso se

mostra tanto nas diferentes formas pela qual lhes dão um status específico; pela qual lhes

fornecem espaços privilegiados para falarem; pela qual lhes permitem ocupar várias posições

no interior desse aparato institucional e discursivo. Por falta de termo melhor, digamos que é

aquilo que distribui lugares de fala no interior desse rascunho, constantemente redesenhado,

de uma meritocracia ideal.

3.6.3. Da formação dos conceitos

Aquilo que caracteriza uma formação discursiva, no que tange sua estrutura

conceitual, é a maneira pela qual organiza um campo de interação e coexistência entre

enunciados dispersos. Ao falarmos de uma formação discursiva neoliberal, temos, portanto,

de demarcar a configuração de um campo no qual os conceitos podem surgir, circular e gerar

34 Concurso que dá acesso à carreira diplomática no Brasil é historicamente considerado um dos exames mais difíceis do país.

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efeitos específicos em diferentes áreas do mundo social – com atenção especial para o papel

desempenhado pela noção de mérito.

Conforme coloca Abbagnamo (1998, p. 164), um conceito designa: “em geral, todo

processo que torne possível descrição, a classificação e a precisão dos objetos cognoscíveis”.

A noção que Foucault parece adotar é próxima a esta, embora enfatize sua contingência em

discursos e saberes específicos, de modo que, do ponto de vista discursivo, o horizonte de

fenômenos que podem ser explicados ou conectados por via de um mecanismo conceitual é

dado pela própria formação discursiva – ainda que esta esteja em constante mutação no

tempo. Nesses termos, o mérito despontará como uma ferramenta explicativa de processos de

mobilidade social cujo uso é praticamente irrestrito.

Parta-se do entendimento de que, numa sociedade como a nossa, vários e vários

mecanismos de concorrência estão em voga, trabalhando de modo autônomo para tentar

mostrar onde há ou não mérito e organizando relações sociais em torno de sua suposta

existência. Portanto, nos parece natural, para um projeto de mundo neoliberal, buscar

considerá-los uns em relação aos outros, unificando vários fatores díspares – esforço, apoio

familiar, escolaridade, habilidade, talento etc. – em um único fenômeno: o merecimento. Para

tanto, é necessário ponderá-los em função do papel que têm na produção conjunta desse

merecimento.

Paralelamente, isso ocorre ao passo que se desenvolve um corpo teórico que permita

dar respaldo teórico a esse cálculo e as múltiplas variáveis que põe em jogo, explicando como

tem incidência na mobilidade social das pessoas. Referimos-nos, com isso, a teoria do capital

humano, que propõe avaliar como fatores não-econômicos geram impacto nas condições

econômicas dos sujeitos e grupos sociais. O termo tem sua origem no trabalho do economista

Gary Becker, considerado um dos mais influentes na segunda metade do séc. XX.35 O capital

humano diz respeito ao conjunto inalienável das capacidades, habilidades e conhecimentos

que podem ser mobilizados por uma pessoa para gerar uma renda ou salário.

Como estão incluídos aí tanto elementos arbitrários (fora do controle do indivíduo)

quanto não-arbitrários (as escolhas que faz em vista de um contexto específico), Becker

(1962) compreende ser possível avaliar como diferentes fenômenos ou processos afetaram,

para mais ou para menos, a possibilidade de acumular capital humano e melhorar as próprias

condições de vida.

35 Foi um dos primeiros a utilizar a racionalidade econômica como chave de explicação para outros fenômenos: criminalidade, vício em drogas, relações familiares, dentre outros. Em 1992, foi laureado com o prêmio Nobel em Economia.

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Podemos seguir por esse caminho e inferir que, se alguém ocupa uma posição

altamente concorrida na estrutura produtiva neoliberal, é porque detém um grau compatível de

capital humano ou, caso contrário, que estamos diante de uma violação do jogo concorrencial.

Em todo caso, isso nos leva a compreender que o capital humano expressa uma faceta mais

palpável do princípio geral do mérito. Ao premiar esse capital humano e organizar a

sociedade em torno dele, visa-se o horizonte de uma meritocracia ideal.

Como bem alertou Foucault (2008) e reforçou Becker (BECKER, EWALD,

HARCOUT, 2012), o grande problema que se coloca ao Estado, num contexto como esse, é

administrar quais parcelas da população receberão mais ou menos investimento no seu capital

humano. Do mesmo modo, quais parcelas estão sendo prejudicadas ou beneficiadas. Isso

permite, dentre outras coisas, que essas escolhas de investimentos públicos se tornem objeto

de saber e de disputa política, na medida em que atuam como instrumentos de governo.36

Todas essas questões se implicam mutuamente e dão corpo a espaço de coexistência

os enunciados que se voltam para os estudos das relações raciais, que foram paulatinamente

integrados ao pensamento neoliberal em função do impacto que tem na constituição do capital

humano da população negra – e os efeitos que daí decorrem. Eventualmente, derivando deles

certos conceitos que explicam o mundo social em função da constituição, inclusive entre

gerações diferentes, de capital humano.

Tal é o caso com os conceitos de dívida histórica e de vitimização. Para ambos, a

questão é detectar, ou não, a existência de um desequilíbrio concorrencial que se perpetua no

tempo e a necessidade de se intervir sobre ele para aproximar a sociedade de seu arranjo ideal

– no neoliberalismo, aquele que permite a produção o funcionamento pleno do mercado e dos

seus benefícios que traz. Em outras palavras: se apoiam em um mesmo conjunto de relações

para chegar a resultados diferentes, que são dados pelo impacto exercido pela temática racial

no cálculo do mérito – portanto, ligando diferentes enunciados em função desse cálculo.

Ainda que não possamos dizer que a teoria do capital humano foi responsável pelo

surgimento nem dos conceitos de dívida histórica, nem de vitimização, essas perspectivas

parecem ter se integrado ao longo das últimas décadas. 37 Em decorrência, atualmente, as

cotas raciais visam justamente atuar sobre o racismo por meio de um aumento no nível de

investimento feito no capital humano da população negra. Igualmente, pelo modo como se

36 Gostaríamos de destacar que não estamos sublinhando, com isso, que as cotas são uma medida “eleitoreira”, no sentido de que visam tão somente angariar votos; nem que se trata de uma medida populista, no sentido pejorativo do termo. Trata-se de questão muito mais complexa, posto que remete a um jogo de forças e interesses conflitantes num contexto democrático. 37 A esse respeito, é bom indicar que Becker (2005) se posicionou contra qualquer medida de ação afirmativa ou reparação tardia por compreender que iam contra o princípio de uma meritocracia.

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argumenta o efeito concreto dessa dívida: desvantagem competitiva acumulada ao longo de

séculos de escravidão e posterior exclusão.

Em vista desses pontos, podemos nos aprofundar no processo de formação e

funcionamento desses conceitos, começando pela dívida histórica. Nós o entendemos como

aquele que liga enunciados sobre a história da população negra brasileira, num período

bastante longo, para expressar a necessidade de uma reparação coletiva, ainda que tardia. Isto,

visando mostrar como esse processo se perpetuou no sentido de inibir ou mesmo sabotar a

possibilidade de melhoria de suas condições de existência. Quando muito, incluindo essa

população somente nos postos mais precários da estrutura produtiva – aqueles, portanto, que

exigiam menor capital humano e davam um retorno igualmente baixo.

Nessa medida, o capital humano legado de geração a geração foi severamente

comprometido e isto explica a necessidade, no caso da educação superior, de organizar um

espaço de concorrência distinto porque trata-se de uma situação radicalmente distinta daquela

dos demais grupos. Por outro lado, porque esse ciclo tende a se manter caso não seja

interrompido por uma força externa: no caso, por meio do aumento no investimento feito no

capital humano da população negra, através de mecanismos como as cotas raciais, que

garantem a presença de um contingente mínimo, desse grupo, na educação superior.

Os enunciados que comportam se aglomeram para dar corpo a uma dívida cujo

impacto incide na população negra em geral, não em uma pessoa em específico – ela tem

caráter anônimo e difuso. Por sua vez, as trajetórias individuais e os fenômenos pontuais de

exclusão ou racismo são situados nesse contexto bem mais amplo: ponto mais recente de um

processo histórico de exclusão, que tem início no período da escravidão e se perpetua até hoje.

Por isso, no cálculo do mérito realizado pela dívida histórica, o fator racial ganha um peso tão

preponderante que não mais interessa se sua influência pode ser medida caso a caso: se apoia

num conjunto muito mais extenso, não nos aspectos sofridos individualmente.

Por outro lado, esse caráter anônimo da dívida histórica tem sido articulado, no

interior desse campo, para deslegitimar a aplicabilidade das cotas raciais. Como o impacto da

dívida histórica não é mensurável caso a caso – quer dizer, não é isolável em si mesmo –

questiona-se a possibilidade de tomá-la como alvo de uma política pública cujos benefícios se

dão individualmente. Questão, aliás, que se liga à possibilidade de determinar quem deve ser

(ou não) contemplado(a) por essa política – a identificação racial e os problemas que coloca,

como vimos no tópico anterior.

Cabe atentar para a sutileza desse argumento: não se trata de negar que existe uma

dívida histórica para com a população negra, mas de negar a possibilidade de que ela pode

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seja quitada sem distorcer os processos de atribuição do mérito individual. Sendo assim, a

alternativa comumente indicada é submetê-la a um critério primeiro, que seja empiricamente

verificável: a condição de pobreza, comprovada mediante documentação que demonstre uma

renda familiar mínima – atualmente, um salário mínimo e meio per capita.

Dois fenômenos conceituais derivam daí: um deles propõe que esse campo conceitual

da dívida histórica deve ser considerado, mas só quando conjugados a uma situação

econômica determinada. Essa é a modalidade segundo a qual funcionam as políticas de cotas

raciais regidas pela Lei nº 12.711 (Lei das Cotas), que, além disso, demanda que

beneficiários(as) das cotas raciais tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas

da rede pública. Logo, dá um ar de seletividade a esse mecanismo reparatório – justamente

para adequá-lo, de forma mais plausível, aos mecanismos de produção do mérito.

O outro também reconhecerá a existência e relevância do campo conceitual organizado

em torno da dívida histórica, mas recusando a plausibilidade de uma reparação direta: só

poderia ser sanada, nessa medida, por políticas que não toquem na questão racial. Por

exemplo, através da ação indireta das cotas por renda, que afetam tanto a população

identificada como negra, que é estatisticamente mais pobre – logo, beneficiada em maior

número – quanto branca. Em suma: as chamadas políticas universalistas ou racialmente não-

neutras.

Essa segunda abordagem, a qual compreende que o racismo e a dívida histórica, ainda

que reais, não podem ou devem figurar no cálculo do mérito, tem sido adotada

frequentemente adotada por veículos de comunicação brasileiros, como a Folha de S. Paulo.

Em editorial publicado em agosto de 2016, o jornal se posiciona a respeito das controvérsias

em torno do estabelecimento de comissões que visam verificar a autodeclaração de

candidatos(as) às cotas raciais, defende:

Todas as dificuldades seriam contornadas, porém, com o uso de cotas socioeconômicas, como defende a Folha. Elas beneficiariam pretos e pardos de modo automático, pois eles tendem a ser mais pobres, e seriam baseadas apenas em dados mensuráveis, sem recurso a duvidosos juízos subjetivos. (FOLHA DE S. PAULO, 2016, grifos nossos).

Assim, mesmo que se admita a carga negativa da dívida histórica e do racismo nas

possibilidades de mobilidade social, ela não chega a ser considerada suficientemente palpável

ou aferível para que nela se intervenha. Surge, portanto, como elemento nulo: não pode ser

levada em conta no mecanismo competitivo que dará acesso, ou não, ao ensino superior

público; nem ser objeto de política compensatória, visto que seu efeito será necessariamente

mal direcionado. Dessa maneira, o campo no qual interagem os inúmeros enunciados que dão

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corpo ao conceito de dívida histórica passa a pairar no plano de uma pura abstração – fora do

alcance de uma intervenção direta e concreta sobre seus efeitos.

O fato de que, nesse segundo caso, se reconhecem os empecilhos impostos por

questões raciais faz com que se diferencie do espaço conceitual delineado pela vitimização.

Nesse caso, compreende-se que somente a atuação irrestrita da competição é capaz de indicar

quem é mais ou menos merecedor(a) de uma vaga numa instituição pública de ensino

superior, justamente em vista do capital humano que pode ser mobilizado para a realização do

exame de acesso. Isso se liga ao entendimento, muito comum (mas enganoso), de que

estudantes que entram pelas cotas raciais estão menos preparados ou tem menos competência

para realizar, com sucesso, um curso superior.

Numa perspectiva conceitual, é interessante notar que esse campo se forma não ao

ignorar os incontáveis enunciados que detalham a especificidade de um ou outro grupo, assim

como as desigualdades ou privilégios a que estão sujeitos. Muito pelo contrário, trata-se de

colocá-los todos em relação com os outros: chegando não a conclusão de que podem ser

avaliados individualmente, mas ao entendimento de que não há possibilidade de aferi-los

racionalmente ou atenuá-los preventivamente. Por isso que apenas a concorrência, aqui

entendida num sentido talvez mais próximo do laissez-faire, seria capaz de levar tais fatores

em conta, mas de modo autóctone.

Isso faz com que esse campo conceitual se forme também enquanto simulação radical

da dinâmica de mercado. Tal como a concorrência entre empresas faz aparecer os melhores

produtos ou serviços, a competição irrestrita faria aparecer os(as) estudantes mais aptos(as) a

ocupar uma vaga na educação superior pública, mas não cabe, nessa consideração, discutir se

esse domínio se apoia em uma estrutura de privilégios ou em desigualdades arbitrárias ou se

perpetua formas sistemáticas de exclusão.

O ponto central a respeito desse posicionamento, a nosso ver, é que o componente

racial não poderia surgir como alvo de uma intervenção que equilibre os termos da

competição. Fazê-lo seria ir à contramão daquilo mesmo que a meritocracia deve produzir:

uma desigualdade racional, não-arbitrária, desejável. Logo, a defesa por medidas como as

cotas raciais ou socioeconômicas pode ser tomada como tentativa de burlar o funcionamento

(supostamente justo) desse processo e dos resultados que produz.

Do ponto de vista conceitual, é isso que explica a “vitimização”: os enunciados que

detalham o impacto que o racismo tem nos resultados apresentados – justificando a

legitimidade das cotas – não dariam corpo a uma dívida historicamente, mas a uma tentativa

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generalizada de obter vantagem (indevida) na disputa por vagas na educação superior. Logo,

reinsere o campo conceitual da dívida histórica de dúvida, relativizando seus impactos e, em

casos mais extremos, situando-o no interior de teorias conspiratórias: avanço insidioso dos

interesses da população negra.

Esse esforço para determinar o impacto de certos fatores que no cálculo do mérito,

sublinhando aqui, em particular, o peso daquilo que nos é legado pela história, vista sob a

ótica da concorrência e do capital humano, permite que conceitos como o de dívida histórica e

sua antítese, a vitimização, possam surgir e ter impacto concreto na vida das pessoas. Ambas,

nessa medida, contribuem para um mesmo projeto: ao circuncisar o espaço do mérito

individual em relação a outros fatores, notadamente o racial, visam fazê-lo aparecer sua forma

mais pura possível; justamente para que se premie, descontados esses fatores, tão somente o

que é merecido – ligando-se, uma vez mais, ao projeto de uma meritocracia ideal.

3.6.4. Da formação das estratégias

Vejamos agora o que caracteriza, do ponto de vista discursivo, as estratégias de

desenvolvimento do discurso neoliberal. Na arqueologia de Foucault (1986), isso significa

avaliar as escolhas feitas e os direcionamentos dados a um discurso em detrimento de outros

que seriam possíveis. A respeito do neoliberalismo, a questão é perguntar: qual é o horizonte

epistemológico para o qual se abre e como se orienta diante dele, na medida em que se

dispersa na história?

Para dar cabo dessa tarefa, o autor sugere que nos voltemos para longos períodos

históricos em busca de possíveis pontos de diferenciação teórica, de eventual

incompatibilidade e delimitação recíproca entre conjuntos de enunciados que retomam, cada

qual a seu modo, as possibilidades de desenvolvimento oferecidas por uma formação

discursiva. Entretanto, isso demanda um fôlego que excede o da atual pesquisa, motivo pela

qual optamos por uma análise mais circunstancial dessa questão.

Com isso em mente, sublinhamos apenas um dos mecanismos que consideramos

fundamentais para compreender o desenvolvimento histórico do neoliberalismo: a conjugação

dos temas da liberdade e da eficiência máxima na gestão de recursos escassos, tendo em vista

a construção do projeto de mundo que viemos discutindo ao longo deste capítulo. Isso

determina, dessa forma, que esse tema se diferencie daquele prefigurado no trabalho dos

liberais clássicos – do qual o exemplo mais notório é Adam Smith – na medida em que se

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passa do laissez-faire como forma ideal de mercado à criação de um arranjo social que

produza esse funcionamento ideal.

Dessa forma, uma das grandes questões que se abre para o neoliberalismo, enquanto

fenômeno discursivo, é determinar o grau ideal de liberdade e de intervenção para que se

assegure um nível ótimo de funcionamento do mercado – que, enfim, se traduziria numa

melhoria geral das condições de existência de uma população. Lembrando, contudo, que essa

última não pode se sobrepor a um grau mínimo de liberdade, sob pena de ensejar uma

incompatibilidade explícita.38 Um último ponto a se considerar é que o neoliberalismo

chamará para si a responsabilidade otimizar, também, a eficiência de processos não-

econômicos com base na racionalidade econômica.

A ferramenta mais comum para dar corpo a esse projeto é, como argumentamos, a

própria concorrência a ser produzida. Isto, tanto em vista dos resultados desejáveis que pode

gerar no funcionamento do mercado quanto por sua maleabilidade: em síntese, trata-se de um

princípio que se oferece muito facilmente às analogias. Não que, por esse motivo, ela deixe de

ter natureza complexa: não se trata de fazer uma pura e simples apologia. A questão é fazer

dela o polo positivo de um saber, usá-la de diferentes formas e em diferentes áreas para

cumprir a missão de configurar um espaço de exercício da liberdade individual que gere, por

efeito colateral, uma eficiência que seja sempre a máxima possível.

Isso permitiu que o neoliberalismo, no decurso de seu desenvolvimento discursivo,

pudesse fornecer diferentes soluções para toda sorte de problema social, sem que o sistema de

relações discursivas que emprega precisasse se modificar. Um caso notável são os diferentes

modos pelos quais a competição foi articulada para abordar o problema da igualdade. Ou,

como notamos anteriormente, para formular uma problemática do merecimento: definir, para

um determinado campo, em determinadas circunstâncias, qual é o grau normal ou justo de

desigualdade.

Interessante notar que, a partir daí, o neoliberalismo pode também integrar campos do

conhecimento que detalham diferentes formas de desigualdade, com especial atenção para as

condições específicas de grupos marginalizados. Isto, para avaliar, ao menos em tese, a carga

de responsabilidade individual a ser atribuída por uma eventual continuidade, melhoria ou

deterioração dessas condições. Além disso, para indicar como e quando intervir nessa

38 Um exemplo de discurso e prática política que colocará a eficiência na gestão de recursos acima da liberdade individual é o comunismo, conforme implantado em diversos países ao longo do séc. XX. No caso, através da figura de um Estado que rege a distribuição de tais recursos conforme aquilo que será considerado, ao menos em tese, mais benéfico para a coletividade – a despeito dos interesses individuais. Portanto, dando a eles o uso mais eficiente.

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desigualdade, para que restem apenas os seus aspectos considerados benéficos – conforme foi

discutido no tópico anterior.

Por isso, não nos surpreende que, na medida em que a desigualdade racial ganhou

relevância e respaldo (estatístico, sociológico, histórico, político, dentre outros), a solução

dada pelo neoliberalismo tenha sido justamente atenuar o impacto negativo do racismo no

processo competitivo, usando a concorrência e o incremento de capital humano como suas

ferramentas. Se isso se fará por meio de políticas direcionadas, como as cotas raciais, de

cunho universalista39 ou ainda de alguma combinação entre as duas, não é importante nesse

momento. O que é relevante é que todas se constituíram enquanto alternativas que surgem no

interior do próprio projeto neoliberal.

É relevante fazermos um breve parêntese a esse respeito. Não visamos desmerecer as

cotas raciais na medida em que as associamos com o neoliberalismo. Sua imbricação nesse

discurso não reduz em nada sua relevância enquanto ferramenta de combate ao racismo e

redução da desigualdade. Tampouco queremos sugerir que os estudos que se voltam para a

desigualdade sejam todos meras ramificações do neoliberalismo. O que gostaríamos de

indicar é a modalidade pela qual esses estudos, autonomamente considerados, foram

parcialmente atravessados pelo discurso neoliberal e integrados ao seu funcionamento. Cabe

lembrar que a imbricação e mútua influência de discursos é uma condição de seu

funcionamento, na medida em que não existem como unidades herméticas ou isoladas das

dinâmicas sociais.

Voltando a questão principal: na medida em que concretiza as múltiplas possibilidades

oferecidas pela articulação entre liberdade e eficiência, o neoliberalismo pode produzir efeitos

bem diferentes para um ou outro grupo. A defesa irrestrita da liberdade de competição entes

privados subjaz uma crítica à qualquer forma de cota – beneficiando, portanto, grupos

historicamente dominantes. Uma leitura mais moderada envolve abrir mão de alguma

liberdade competitiva para beneficiar certos grupos desfavorecidos com base em critérios

como renda, raça ou gênero – sem abrir mão do princípio competitivo.

A esse respeito, é relevante notar como a concorrência foi capaz de constituir um dos

poucos pontos de consenso no debate sobre as cotas raciais: seu caráter temporário. Ou seja, o

entendimento de que uma vez que o desequilíbrio competitivo seja sanado, elas deixam de ser

necessárias. Inclusive porque, nesse caso, a sua manutenção é que acarretaria uma distorção.

Isto se traduz de modo bem claro num excerto retirado da seção “Carta ao Leitor”, publicada

39 No sentido de que afetam a todos os grupos populacionais, e não um grupo em específico.

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pela revista Veja em 16 de agosto de 2017. Nele, faz um breve apanhado a respeito da política

de cotas, tema da matéria principal da edição:

As cotas, raciais ou sociais, são portanto um atalho para compensar um descaminho. O desejável, mesmo, é que elas sejam temporárias e, em seu lugar, o país abra escolas de qualidade para todos, negros e brancos, pobres e ricos, de tal modo que as oportunidades sejam iguais para todos – e o mérito de cada um, apenas o mérito, torne-se a medida do triunfo individual. (VEJA, 12 ago. 2017, grifo nosso).

Ainda que a revista em questão seja notoriamente conhecida por seu posicionamento

alinhado ao conservadorismo liberal40, esse posicionamento específico a respeito da não

perpetuidade das cotas raciais é generalizado. Sua relevância e pertinência estão atreladas à

existência de uma defasagem competitiva a ser corrigida: em momento algum no

desenvolvimento desta pesquisa, nos deparamos com a defesa das cotas enquanto política de

duração indeterminada.

O princípio-geral de uma articulação entre liberdade e eficiência também pode ser

usado para descrever as estratégias de desenvolvimento que do discurso neoliberal segundo os

três eixos de análise que foram propostos por Foucault (1986). A saber: (I) os pontos de

difração do discurso; (II) as instâncias específicas de decisão, onde puderam se efetivar essas

escolhas teóricas; (III) o papel desempenhado por esse discurso em relação a uma série de

práticas não discursivas.

Os pontos de difração designam aqueles momentos, na trajetória de um discurso, em

que ele dá origem a diferentes conjuntos: pontos no qual se divide, em vista de um conflito

teórico, de uma discordância conceitual etc. As instâncias específicas de decisão envolvem o

contexto no qual esses fenômenos de rompimento e de consolidação de escolhas estratégicas

ocorrem. No papel do discurso em relação às práticas não discursivas, trata-se de descrever

como se ligou a interesses de certos grupos, como serviu ou resistiu a esses processos, como

ocupou um lugar determinado em relação ao desejo e ao poder.

Comecemos pelo primeiro item. Foucault (1986, p. 73) destaca que os pontos de

difração surgem, inicialmente, como pontos de incompatibilidade – conjuntos de enunciados

que se refutam mutuamente, por exemplo. Depois, enquanto pontos de equivalência:

alternativas que se produzem pela aplicação de um mesmo conjunto de relações discursivas.

Finalmente, como pontos de uma sistematização: a partir dessas divergências, norteiam o

desenvolvimento de campos discursivos mais complexos e em certa medida autônomos entre

si.

40 Postura, algo paradoxal, que pode ser resumida na máxima: “liberal na economia, conservador nos costumes”.

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O debate sobre as cotas raciais constitui um ponto no qual o discurso neoliberal se

difrata em diferentes posicionamentos que se consolidam enquanto alternativas: maior ou

menor espaço para a competição irrestrita, adoção de critérios raciais ou socioeconômicos etc.

Finalmente, elas ligam os pontos de uma sistematização a ser realizada: direcionar esse

discurso no sentido de consolidar discursivamente essas alternativas, lhes dar embasamento e

profundidade a partir de estudos sociológicos, filosóficos, estatísticos, enfim. Buscamos

explorar esse processo ao longo dos tópicos anteriores.

Quanto ao item II, partamos do entendimento de que uma formação discursiva jamais

preenche todo o espaço discursivo que lhe é dado por direito. Quer dizer: do conjunto de todas

as possibilidades discursivas para o qual se abre, só algumas delas são efetivamente

concretizadas. Logo, por que certas possibilidades foram concretizadas, enquanto outras

não? Para dar conta desse processo, aponta Foucault (1986), é necessário se voltar para as

instâncias específicas na qual essas escolhas foram feitas. De modo mais simples: qual o papel

desempenhado por um discurso em relação a outros que lhe são contemporâneos,

direcionando as escolhas teóricas realizadas?

O modo como o discurso neoliberal adota certas premissas da economia para reaplicá-

las a outras áreas da vida faz com que ela exerça algo como o papel de um modelo para a

organização e análise dos processos sociais ou, por outro lado, como um repositório de

recursos teóricos a serem adaptados. Isso fez com que diferentes modalidades de intervenção

nos processos sociais fossem, pouco a pouco, sendo submetidas ao crivo da racionalidade

econômica. No presente caso, a partir da aplicação do mecanismo concorrencial, que fornece

uma solução econômica para um problema cultural e histórico: intervir no impacto do racismo

ao aumentar a competitividade da população negra, integrando-a à educação superior.

Finalmente, nos voltemos à relação com as práticas não discursivas e tomemos como

referência a disputa discursiva pelo mérito no contexto do debate sobre as cotas raciais. Esse

debate não se resume a um puro jogo de interesses, em torno dos quais se organizam várias

camadas discursivas. Aquilo que está em questão é o modo pela qual a busca por certos

interesses se adequou à premissa neoliberal de articular liberdade e eficiência, de jogar

legitimamente com a competição para alcançar esse interesse.

No que tange ao mérito, trata-se da possibilidade de administrar os efeitos concretos

que exerce na medida em que atua como mecanismo central de organização social, da busca

pelo poder de fazê-lo funcionar contra ou a favor de um objetivo ou interesse específico. Isso

terá implicações diferentes quer se trate das diferentes partes interessadas desse conflito.

Dentre outros, destacamos: a população negra, que visa solucionar uma desigualdade no

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acesso à educação superior de nível federal; os grupos que historicamente dominaram os

quadros universitários, que perdem parte de sua hegemonia graças às cotas.

3.7. Considerações finais

Neste capítulo, buscamos realizar uma caracterização do neoliberalismo, atentando

para sua dimensão discursiva a partir das premissas da arqueologia de Foucault (1986). Isso

envolveu, num primeiro momento, apresentar algumas definições provisórias e críticas a seu

respeito, além de indicar seus pontos de ruptura para com o liberalismo clássico. Com esses

pontos em mente, pudemos dar a ele uma definição funcional – ainda que abrangente. Em

seguida, realizamos uma discussão a respeito daquilo que, para efeitos desse trabalho, seria

compreendido pelos termos “mérito” e “meritocracia”.

Em seguida, buscamos detalhar seu funcionamento, com foco na questão do mérito e

das cotas raciais, ao analisá-lo na condição de uma formação discursiva. Isso foi feito partindo

dos quatro eixos sugeridos por Foucault (1986), visando detectar princípios de regularidade

no modo como fabrica objetos discursivos, distribui posições possíveis aos sujeitos, organiza

um campo de coexistência entre enunciados e realiza escolhas estratégicas de

desenvolvimento.

Desse estudo, pudemos notar que, longe de ser simples discurso de uma classe

dominante, o neoliberalismo é constituído por saberes que arregimentam e sublinham uma

vasta gama de campos discursivos, ligando-se a práticas de poder, de conhecimento, de

governo, de subjetividade. Como tal, foi capaz de produzir as próprias alternativas que podem

compor suas dinâmicas de dominação-resistência: no presente caso, fazendo se chocar dois

caminhos diferentes para se tentar chegar a uma meritocracia ideal.

Isso não significa, de forma alguma, que toda a discussão a respeito das cotas raciais

se resume a uma discussão sobre mérito; nem que a escolha por um ou outro caminho é

indiferente. Muito pelo contrário: na medida em que se tenta organizar o mundo social em

função do mérito, é necessário levar em conta as implicações que a escolha por outro caminho

gera na vida das pessoas – em especial, aquelas em situação de maior vulnerabilidade.

Portanto, o caminho escolhido importa e bastante.

Esse é um dos motivos pelo qual, ao abordarmos o debate sobre as cotas raciais, nos

deparamos frequentemente com a sua dimensão de disputa discursiva: como, de um lado a

outro, busca-se obter hegemonia sobre a noção de mérito e dos mecanismos que o produzem,

legitimam, validam. Ademais, como isso ocorre de maneira dispersa – em vários pontos do

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mundo social – e descontínua – ocorrendo segundo temporalidades próprias e distintas entre

si.

Entretanto, as análises que ora realizamos se detém no nível macro. Isso significa que

tentamos nos desprender de enunciados específicos para nos voltarmos para relações mais

amplas e abstratas, a fim de delinear o espaço de uma mesma formação discursiva. Porém,

uma análise arqueológica, como a que propõe Foucault (1986), deve se voltar também para as

minúcias desse fenômeno: os próprios enunciados que surgem no debate sobre cotas raciais.

Em vista disso, dedicamos o próximo capítulo a uma análise em nível micro, buscando

validar, ainda que de forma provisória e localizada, algumas dessas afirmações.

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CAPÍTULO 4 - ANÁLISE

4.1. Considerações iniciais

Levando em consideração o que foi exposto anteriormente, precisamos nos voltar

agora para questões de ordem mais concreta. Especificamente, determinar alguns parâmetros

de análise e procedimentos de pesquisa embasados por esses princípios. Isto, por sua vez,

considerando tanto a descrição das formações discursivas quanto dos enunciados e da função

enunciativa, que embasa a análise dos enunciados. Comecemos por uma breve recapitulação

da primeira, de natureza mais geral.

Conforme argumentamos, uma formação discursiva assemelha-se a um sistema regular

de relações entre enunciados, organizando o modo como se formam objetos, posições

subjetivas, conceitos e estratégias de desenvolvimento. A descrição do funcionamento dessas

quatro instâncias envolve, portanto, se voltar para um conjunto bastante amplo –

preferencialmente, diverso – de enunciados para verificar se há, entre eles, pontos de

regularidade – com todas as contradições ou diferenças que possam comportar.

No caso específico desta pesquisa, isso envolveu descrever o funcionamento da

formação discursiva neoliberal. Do ponto de vista metodológico, isso significou nos

voltarmos para estudos realizados em diferentes campos do conhecimento para que

buscássemos relações que se mantivessem constantes, de modo que, a partir delas,

pudéssemos investigar certos fenômenos discursivos em sua dimensão específica: no caso, o

debate sobre as cotas raciais e o modo como se imbrica nesse processo mais amplo.

Partimos do entendimento que uma das principais características do neoliberalismo é a

reorganização da esfera social para criar configurar um espaço no qual o mercado possa

funcionar de maneira mais próxima possível de sua idealidade – gerando, com isso, os efeitos

positivos que lhe são acreditados. No decorrer de nossa pesquisa, pontuamos de que uma das

formas mais comuns pela qual esse processo ganha corpo é por meio da instituição de

mecanismos concorrenciais e a referência, bem geral, mas constante, à ideia de mérito. Sendo

este último, tomado aqui como certa forma de merecimento socialmente reconhecido (mas

não-consensual) e que se produz em relação, mais ou menos direta, com essas dinâmicas

concorrenciais.

Com isso em mente, nos propusemos verificar se essa referência constante ao mérito e

a meritocracia se encontraria manifesta nos vários enunciados que surgem no contexto de um

debate sobre as cotas raciais. Ademais, se ela seria capaz de servir como chave de análise para

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esse debate, sendo mobilizada em função das quatro dimensões da formação discursiva

descritas por Foucault (1986). Portanto, foram necessárias quatro abordagens metodológicas

distintas, cada uma enfatizando um desses aspectos.

Ao nos voltarmos para o sistema de formação dos objetos de um discurso neoliberal,

buscamos investigar as circunstâncias em que ele poderia surgir como um objeto da qual se

fala, que pode ser descrito em diferentes graus, que pode ter forma ilusória ou distorcida, em

função dos procedimentos utilizados para aferi-lo. Num primeiro momento, partindo de

termos mais abstratos; num segundo, nos voltando para debates e discussões relativos ao caso

específico do debate sobre as cotas raciais.

O que pudemos observar, nas duas etapas, é que o mérito, enquanto objeto discursivo,

surgia sempre em referência a diferentes instâncias de concorrência, as quais podem, ou não,

produzir méritos equivalentes. Este fenômeno está na raiz da polêmica a respeito dos méritos

logrados por cotistas e não-cotistas: ambos(as) merecem igualmente as vagas que porventura

conquistam? As diferentes respostas para tal questão parecem revelar o apreço geral da

sociedade brasileira pela meritocracia, uma vez que se dispende um esforço bem grande no

sentido de precisar esses méritos, mostrar-lhes como equivalentes ou divergentes.

Em seguida, investigamos o sistema de formação das modalidades enunciativas: como

se desenhava o jogo de posições subjetivas que deveriam ser ocupadas para poder colocar em

cena certos dizeres a respeito do merecimento. Mais precisamente: quais as circunstâncias que

deveriam ser cumpridas para se declarar sujeito do mérito? Logo, nós nos voltamos para

diferentes materiais em busca de quem era considerado(a) digno(a) de uma vaga na educação

superior e quais as relações discursivas empregadas para fazê-lo.

Pudemos notar, no debate sobre as cotas raciais, os diferentes entendimentos a respeito

da possibilidade de se posicionar, simultaneamente, como sujeito do mérito e das cotas

raciais. Em estreita relação com o que pudemos observar no estudo dos objetos, o

posicionamento diferenciado em relação à um mecanismo competitivo (no caso, a condição

de cotista ou não-cotista) implicava em diferentes graus de mérito. As implicações desse

processo foram desenvolvidas mais adiante.

O passo seguinte foi nos focarmos na análise da formação dos conceitos do discurso

neoliberal. Tendo em vista a profusão de conceitos que o discurso neoliberal produz,

principalmente, na área da Economia, propriamente dita, optamos por nos deter apenas em

conceitos que nutrissem uma relação mais direta com o debate sobre as cotas raciais.

Descrever a formação discursiva neoliberal envolveu, nesse sentido, compreender o espaço no

qual vários enunciados interagiam segundo uma mesma modalidade explicativa – ou seja, um

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conceito que os agrupava. Em particular, fazendo-os interagir como elementos a serem

mobilizados num cálculo que tem, como produto final, a parcela estimada de mérito. Dois

conceitos principais surgem daí.

O primeiro deles é o de dívida histórica, que organiza um vasto campo de enunciados

oriundos da História para explicar as razões da precariedade das condições específicas de

existência da população negra. Logo, um conjunto de enunciados que se organiza no sentido

de uma contabilização das injustiças cometidas especificamente para com essa parcela da

população e que deve ser reparada, dentre outras coisas, por medidas que estimulem sua

inclusão nos espaços da qual foi historicamente excluída – dentre elas, as cotas raciais, de

modo que essa dívida tem um peso significativo no cálculo do mérito.

O segundo, que designamos de forma genérica como “vitimização”, irá situar as

mazelas e arbitrariedades que acometeram a população negra em relação às condições

precárias de outros grupos. Isto, no sentido de mostrar que não há especificidade que

justifique o conceito de dívida histórica: em suma, mostrar que a população negra não sofreu

tão mais do que outros grupos no período pós-Abolição.

O exemplo mais comum é o de imigrantes que chegaram ao Brasil em condições

precárias, mas que, nem por isso, se sentem no direito de reclamar alguma compensação

posterior. Em suma: as mazelas legadas da escravidão são relativizadas e equiparadas,

anulando, assim, a especificidade da dívida histórica para com a população negra. No mesmo

sentido, faz com que ela apareça como elemento neutro, ou indiferente, no cálculo do mérito:

não há reparação a ser feita, logo não há justificativa para as cotas raciais. Por conseguinte,

lutar por elas é uma forma de se projetar enquanto vítima de um crime que nunca ocorreu ou

que não tem lugar no período contemporâneo.

Ambas remetem, nessa medida, à constituição de um processo, historicamente situado,

de concorrência – que resultou em diferentes possibilidades de mérito e de mobilidade social,

mas também da formação da competitividade específica de certos grupos em detrimento de

outros. No caso da dívida histórica, um desnível competitivo que deriva de práticas racistas,

que afetaram profundamente a possibilidade de disputar recursos ou obter mérito. No caso da

vitimização, um desnível competitivo em tese justo, visto que a precariedade das condições de

existência não estava restrita à população negra, mas à todos(as) que viveram no Brasil pós-

Abolição.

Por fim, descrever o sistema de formação das estratégias do discurso neoliberal

envolveu levar em conta as possibilidades discursivas para o qual se abriu e para o qual se

orientou ao longo da história. Mais uma vez, foi necessário que restringíssemos nossa

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investigação a alguns aspectos principais, em vista da profusão de rumos que tomou e

estratégias que adotou. Concentramos-nos, assim, no seguinte problema: como explicar o

alastramento da concorrência enquanto princípio generalizado de organização social? Qual a

relação que poderia estar por trás de suas várias organizações?

Sem nutrir a expectativa de oferecer uma resposta definitiva a essa questão,

identificamos a articulação entre liberdade e eficiência máxima no uso de recursos escassos,

como um dos temas que direcionou o desenvolvimento histórico do neoliberalismo. Em

outras palavras: foi aquilo que, de forma dispersa e descontínua, pôde nortear seu projeto

ideal de mundo. Ambos os fatores são conjugados no princípio da concorrência: por um lado,

se realiza entre partes livres e formalmente iguais, pressionando-as a buscarem a máxima

eficiência.

Com isso em mente, os mecanismos concorrenciais despontaram como aqueles que

podem ser mais prontamente aplicados a praticamente qualquer área do mundo social. Por

fim, dando origem a uma vasta gama de saberes que visam determinar a melhor forma de

configurar os esses mecanismos. Por quê? Para que possam, justamente, produzir o

merecimento em sua forma mais pura. Logo, respeitando o princípio da liberdade e logrando

os melhores resultados possíveis em cada espaço do mundo social. Enfim, para que, acima de

qualquer suspeita ou divergência pontual, concretize o projeto neoliberal de uma sociedade

que produz o funcionamento ideal do mercado.

Esses foram os apontamos que buscamos desenvolver com mais detalhes no capítulo

anterior. No que diz respeito aos enunciados, ou de uma análise da função enunciativa,

adotamos, ao qual dedicamos esse capítulo, seguimos os seguintes procedimentos. O primeiro

foi considerar cada comentário de nosso material de análise como um enunciado. Isso se

presta a uma questão mais prática do que teórica: uma delimitação formal, de acordo com os

preceitos da arqueologia foucaultiana, se mostra excessivamente complicada para ser aqui

desenvolvida.

Logo, não nos propusemos a analisar com riqueza de detalhes cada um deles, tendo em

vista que seu teor é repetitivo suficiente para que pudéssemos nos deter apenas nos casos mais

ilustrativos dos fenômenos ora descritos. Partindo dessa premissa, nós os estudamos em vista

de cada uma das quatro propriedades descritas por Foucault (1986), adequando nossa

abordagem metodológica conforme cada uma dessas características.

Primeiramente, nós focamos o aspecto do enunciado que o permite demarcar objetos

em relação a um campo ao qual faz referência. Assim, nos voltando para um conjunto de

enunciados, tanto favoráveis quanto contrários às cotas raciais, buscamos identificar qual era

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esse espaço de referência na qual o mérito podia surgir. Adotamos uma postura bastante

similar em nossa análise das posições-sujeito que se abriam em enunciados individuais, na

qual buscamos mostrar quem era – e em especial, quem poderia ser – considerado sujeito

desse mérito.

No caso do espaço de coexistência dos enunciados, citamos diferentes comentários

que se integram no campo conceitual desenhado tanto pela dívida histórica quanto pelo da

“vitimização”. Buscamos, nesse sentido, mostrar como se apoiam num plano mais amplo de

coexistência para gerarem efeitos específicos no nível do debate sobre as cotas raciais.

Finalmente, como eram costurados uns aos outros para formarem esses campos distintos e

conflitantes, do qual derivam diferentes acepções a respeito do mérito individual e do

funcionamento ideal de uma meritocracia.

Finalmente, interrogamos certos enunciados no nível de sua materialidade repetível,

característica que lhes permite serem reutilizados e se ligarem aos interesses de diversos

grupos que são afetados pelas políticas de ação afirmativa. O procedimento de análise que

adotamos para fazê-lo foi no sentido de avaliar certas desinformações que são repetidas à

exaustão na Internet - em grande parte, graças à sua natureza anárquica e a velocidade pela

qual permite fazer circular dados numa estrutura de rede.

Por questão prática, nos detivemos no caso da falácia, muito difundida, de que a

existência de cotas raciais para negros(as) implica na inexistência de cotas que atendam

pessoas brancas pobres. Nossa indagação, a esse respeito, foi no sentido de questionar como

essa inverdade era articulada e repetida ao longo de vários enunciados. Por outro lado, no

sentido de ponderar quais os possíveis efeitos de sua repetição em outros contextos que

afetam a vida de quem é ou foi cotista.

O material a selecionado para análise foi coletado da seção de comentários presente

em quatro matérias que tratavam da aprovação das cotas raciais na Universidade de São Paulo

(USP), publicadas nos dias 3 de 4 de julho de 2017 pelos sites Folha de S. Paulo, Estado de S.

Paulo (Estadão), G1 e UOL. Ao todo, acumulam cerca de 300 comentários, dos quais

selecionamos apenas aqueles que consideramos representativos dos fenômenos descritos nos

capítulos anteriores. Elas estão reunidas nos anexos A, B, C e D. Os comentários que foram

analisados individualmente foram agrupados nos anexos E (Folha de S. Paulo), F (Estado de

S. Paulo), G (UOL) e H (G1); os nomes e fotos dos comentaristas foram omitidos para

resguardar sua privacidade.

A esse respeito, é importante lembrar que a quantidade de comentários, ou

enunciações, não deve ser confundida com o número de enunciados. Por detrás da profusão de

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coisas ditas sobre as cotas raciais, impera uma relativa pobreza: um punhado de argumentos,

analogias e refutações que se repetem indefinidamente. Todas, por outro lado, se apoiam num

mesmo modo regular de articular a concorrência como princípio de produção do mérito.

Razão essa pela qual nos reservamos a liberdade de nos determos apenas em alguns deles sem

sacrificar a pertinência deste estudo.

Embora o espaço de comentários não privilegie debates mais embasados ou

aprofundados, compreendemos que ele manifesta, por outro lado, a dimensão corriqueira,

cotidiana de um saber discursivo que se volta para as cotas raciais. Atente-se que o espaço

para comentários em portais de notícia é marcado pelo conflito, especialmente no que diz

respeito a temas considerados “polêmicos”.

Ademais, nos alinhamos com o que propõe Hoepfner (2014) sobre o funcionamento

do discurso de ódio na web: os espaços de interação on-line parecem suscitar certa

desinibição, decorrente de uma diluição das fronteiras entre público e privado; por sua vez,

isso contribui para que ali se encontrem expressas opiniões que, de outro modo, poderiam

ficar restritas a uma circulação privada – e não pública, como é o caso dos comentários aqui

analisados.

A esse respeito, podemos evocar também o trabalho de Suler (2004), A respeito

daquilo que designa como online disinhibition factor, ou fator de desinibição on-line, numa

tradução livre. Essa desinibição, que pode ser considerada uma característica do próprio

espaço on-line, implica na possibilidade de adotar uma variedade muito grande e flexível de

identidades. Isto, uma vez que, para o bem ou para o mal, as restrições impostas a sua criação

ou emulação são muito menores. Atuando na área da Psicologia, o autor listará uma série de

fatores que embasam essa desinibição, das quais destacamos a que consideramos mais

relevante para esta pesquisa, e que se liga ao que foi discutido por Hoepfner (2014): a questão

do anonimato. Em particular, o que ele chama de “anonimato dissociativo” (SULER, 2004, p.

332), o qual permite uma separação entre os comportamentos e identidades adotadas em

condições normais, em vista dos dizeres serem expressos sob uma máscara de anonimato, o

que isenta quem fala das consequências que normalmente seriam cabíveis –

constrangimentos, repreensões, exclusão etc. Essa isenção temporária de responsabilidade tem

impacto concreto naquilo que as pessoas estão dispostas a expressar em uma série de

contextos, dentre os quais os comentários em notícias.

Como lembra o autor, esse anonimato não precisa ser literal para que possa exercer

seus efeitos. Um nome de usuário(a), por exemplo, atua no sentido de identificar quem

escreve. Todavia, na prática, o efeito dissociativo do anonimato continua operando:

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dificilmente servirá para identificar e gerar consequências na vida de quem escreve sob essa

alcunha – para todos os efeitos, a pessoa permanece anônima e exerce sua fala como tal.

Esse é o caso dos comentários que coletamos: todos os sites exigem a criação de um

perfil, mas ele não é acessível a outros(as) usuários(as). A exceção é o Estado de S. Paulo, que

utiliza a conta da rede social Facebook. Entretanto, mesmo nesse caso, as informações que

são exibidas publicamente são geralmente restritas, impedindo o estabelecimento de uma

dinâmica de interação fora do espaço de comentários - a não ser que o(a) usuário se conecte à

pessoa em questão, ação que só se concretiza com a autorização da outra parte.

Outro aspecto importante é a natureza não-sincrônica dessa interação: o fato de que as

pessoas não interagem em tempo real ou mesmo a possibilidade de que não ocorra qualquer

interação, geram também um certo grau de desinibição nos sujeitos.41 Apesar da Internet

realizar uma expansão radical do número de pessoas com a qual se pode interagir, ela, ao

mesmo tempo, permite que essas interações, uma vez estabelecidas, sejam facilmente

abandonadas. Concomitantemente, a natureza não-presencial das dinâmicas estabelecidas

nesse contexto filtra as reações demonstradas pelas pessoas num contexto “real”42.

O último fator listado por Suler (2004) que gostaríamos de ressaltar é a minimização

do status e da autoridade no ambiente on-line. Na Internet, o efeito discursivo geralmente

desses fatores perde sua sustentação: em parte graças ao impacto difuso do anonimato, que

deixa aberta a possibilidade permanente de se tratar de um(a) impostor(a)43; em parte graças a

ausência de marcadores situacionais que possam corroborar essa suposta autoridade ou status.

Na prática, portanto, há um incremento considerável na liberdade de fala – ainda que venha

acompanhada de uma redução gradativa no peso conferido a essa fala e dos efeitos que ela

pode gerar. Enfim, a autoridade precisa de um alvo, de uma identidade concreta sobre a qual

possa exercer seus efeitos: por isso, o sujeito empiricamente anônimo está salvaguardado de

qualquer intimidação nesse sentido. Se não há consequências aplicáveis, ou sequer palpáveis,

a inibição causada pela autoridade perde força.

Cabe destacar que as observações feitas pelo autor referido acima datam de 2004, o

que significa precedem a ascensão de sites que hoje formam aquilo que ficou conhecido como

“redes sociais”, encabeçados por sites como Facebook, Twitter, Instragram. LinkedIn etc.

41 No caso das mensagens instantâneas, a instantaneidade diz respeito ao envio e a resposta não necessariamente será imediata. Além disso, o tempo que demora para ser construída pode variar bastante. Tudo isto a dinâmica diferente da interação face-a-face, que ocorre em tempo real. 42 No sentido de não-digital. 43 No caso, que se faz valer de uma falsa autoridade ou conhecimento de causa.

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Todos esses sites focam a intermediação digital de relações sociais, o que (em geral) implica a

identificação, ou não-anonimato, das partes envolvidas nessa dinâmica.

Entretanto, esse não é o caso dos comentários feitos nos próprios sites de notícias, que

ainda operam segundo a lógica que reinava antes das redes sociais. Por fim, leve-se em conta

o que isso impõe uma restrição adicional ao domínio de validade do nosso corpus: o fato de

que usuários(as) mais jovens provavelmente não sentem a necessidade de se expressarem no

espaço de comentários, uma vez que dispõe de seus perfis pessoais nos sites supracitados para

fazê-lo, implica que essa parcela da população não esteja fortemente representada no material.

4.2. Caracterização do material de análise

Centramos nosso estudo em comentários coletados feitos em matérias de quatro

portais de notícia: Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, G1 e UOL. Guardadas as

particularidades editoriais de cada um, todos esses portais são bastante populares no Brasil.

Os textos que originaram os comentários foram quase todos publicados no mesmo dia em que

o conselho da USP aprovou a implantação de cotas raciais nos processos seletivos da

instituição. A exceção é a publicada pelo UOL, que saiu um dia antes e trata de uma

manifestação que pedia justamente a implantação desse tipo de política na instituição.

A primeira matéria tem como título “Grupos estudantis criticam USP por cotas só para

alunos de escola pública” (MARTINS, 2017) e foi publicada pelo Portal UOL Educação em

03 de julho de 2017. No total, foram realizados 47 comentários. A segunda matéria, “USP

aprova cotas raciais e de escola pública na Fuvest pela primeira vez na história” (MORENO,

2017) foi publicada pelo portal G1, em 04 de julho de 2017. Foram realizados 147

comentários. Publicada pelo Estado de S. Paulo em 04 de julho de 2017, a terceira matéria foi

intitulada “Pela 1º vez, USP aprova cotas raciais e sociais no vestibular” (TOLEDO;

PALHARES, 2017). Gerou um total de 75 comentários. A quarta matéria, “Conselho da USP

aprova cotas sociais e raciais para vestibular de 2018” (NEVES, 2017), foi publicada pela

Folha de S. Paulo em 04 de julho de 2017 e gerou 31 comentários. Todos foram realizados

nos próprios sites dos portais de notícia.

O material submetido a análise individual foi transcrito para este trabalho como foram

publicados, mas a identidade dos(as) comentaristas foi ocultada em respeito a sua privacidade.

Ainda que não estejam em conformidade com as normas cultas da língua, compreendemos

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que as relações discursivas, mais profundas e relevantes para nossa pesquisa, se mostram

neles a despeito dessa inadequação gramatical. 44

A razão pela qual escolhemos comentários feitos a essas quatro notícias é que elas

mostram uma faceta mais recente do debate sobre cotas: a USP, como vimos, foi uma das

últimas universidades públicas de grande porte a aprovar a utilização de cotas para o

preenchimento de suas vagas. Dado o prestígio da instituição e a importância simbólica dessa

medida, é que decidimos por tomá-la como marco inicial.

Conforme indicado no capítulo introdutório, esses comentários não podem ser

considerados representativos do debate sobre as cotas raciais como um todo – este extrapola

em muito nosso material de análise. Por isso mesmo, não serve como comprovação

generalizada das observações que fizemos anteriormente; delimitam, entretanto, um domínio

de validade localizado, que buscamos detalhar a seguir. Há que se atentar para o fato de que

esses comentários foram feitos em quatro sites diferentes, mas que tendem – alguns mais,

outros menos – a se alinharem com uma perspectiva de centro-direita e conservadora.

Isso não chega a ser um problema para os comentários efetivamente produzidos nos

quatro sites: pudemos observar que são semelhantes o bastante para serem considerados como

parte de um mesmo conjunto. Ou seja, são representativos entre si: os comentários feitos na

Folha de S. Paulo refletem o que é dito no Estado de S. Paulo, que reflete o que é dito no G1,

que reflete o que é dito no UOL e vice-versa, fechando um ciclo que se retroalimenta.

Por isso, para efeitos dessa análise, trataremos deles como uma unidade mais ou

menos homogênea e articulamos, individualmente, aqueles que melhor representam tanto os

fenômenos que nos propusemos a analisar quanto as características gerais do conjunto. Cabe-

nos advertir, de início, que a presença de comentários contrários às cotas raciais é

preponderante em todos os quatro sites.

A grande questão são os comentários que não foram feitos: a pluralidade de

posicionamentos sobre as cotas raciais não se traduziu no material de análise, onde

preponderam comentários que são contra as cotas raciais. Como nos propusemos a avaliar

comentários tanto contrários quanto favoráveis às cotas raciais, nossa investigação não levou

em conta essa proporção. Assim, caso nosso texto passe a impressão de que a incidência

desses dois posicionamentos está próxima de um equilíbrio, ela deve ser posta de lado, pois é

44 A única ressalva que fazemos é com relação a eventuais marcações gráficas que não estão presentes nos comentários, mas que presumimos estarem presentes. O caso mais comum sendo a utilização de “e” no lugar de “é”, uma vez que se mostre implausível que a falta de acento tenha sido proposital, pois implicaria numa frase não-aceitável ou desprovida de sentido. O mesmo critério foi aplicado (e devidamente indicado) quando confrontados com casos similares.

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mero efeito colateral da proposta de analisar ambos os posicionamentos em busca das relações

estabelecidas com a noção de mérito.

Como indicaremos a seguir, isso provavelmente deriva do fato de que grande parte da

população em vulnerabilidade social não tem acesso à Internet e de que existe certa sintonia

entre os posicionamentos editoriais dos sites e os comentários realizados. No item seguinte,

propomos uma rápida contextualização a respeito desses dois fatores, em vista do impacto que

tem no domínio de validade de nossa análise.

4.2.1. Limitações do material de análise

Em certa medida, os comentários que foram feitos refletem a linha editorial dos

veículos em questão: existe certa sintonia entre as visões de mundo avançadas por ambas as

partes. Como isso constitui um fator adicional de limitação do domínio de validade do

material de análise, traçamos aqui algumas considerações a esse respeito. Nossa proposta não

é tanto a de atentar para a inclinação geral dos veículos – ressalvadas as eventuais vozes

dissonantes que neles se pronunciam –, mas de apontar posturas editoriais adotadas

especificamente com relação às cotas raciais.

A Folha de S. Paulo tem, historicamente, se posicionado contra essas políticas. O

primeiro editorial45 que encontramos a esse respeito data de 30 de agosto de 2001, véspera do

início da Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a

Intolerância Correlata. Na ocasião, a delegação brasileira – composta por representantes da

esfera civil e governamental – apresentou, dentre outras coisas, a proposta de utilização de

cotas raciais nas universidades públicas. O jornal se posicionou contra essa medida,

sublinhando que: “as cotas seriam encaradas como um vestibular de segunda classe”; que “no

Brasil não é muito fácil definir quem é negro e quem não é”; por fim perguntando sobre “o

que pensar do caso de uma família, branca, que amargue há gerações o círculo vicioso da

pobreza?” (FOLHA DE S. PAULO, 2001).

Outro editorial, publicado cinco anos depois, parece constituir certo avanço: o jornal,

antes contrário a qualquer forma de ação afirmativa, se declara agora aberto à sua utilização

para a inclusão de certos grupos, porém com ressalvas significativas. As cotas continuam fora

de cogitação, tendo em vista que veículo compreende que “representam uma ruptura

inadmissível do princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei” (FOLHA DE S.

45 O editorial é um tipo de texto jornalístico que visa apontar o posicionamento institucional do veículo em relação a um tema determinado.

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PAULO, 2006). Fora isso, prescreve o abandono a qualquer categoria racial na construção de

políticas dessa natureza. A partir de 2008, informa se posicionar de maneira favorável às cotas

socioeconômicas, mas não raciais – posição que, em seus editoriais, sustenta até hoje

(FOLHA DE S. PAULO, 2008; 2016).

O Estado de S. Paulo também se posicionou, no decorrer desse período, contra a

implantação das cotas raciais. Em diferentes momentos, referiu-se a política como

“demagógica” (ESTADO DE S. PAULO, 2009a), como um “princípio nefasto” (ESTADO

DE S. PAULO, 2009b) e acusou, em diversas ocasiões, seus “insuperáveis defeitos”

(ESTADO DE S. PAULO, 2012). Esse posicionamento, expresso em editoriais, também se

manteve constante ao longo dos anos e permanece até os dias atuais, alinhando-se com o

projeto editorial conservador do jornal – em relativo contraste com seu principal concorrente

paulista, a Folha de S. Paulo, que tem viés mais liberal.

No caso do portal UOL e do G1, é necessário fazer uma pequena ressalva. Nenhum

dos dois, na condição de veículos digitais, publica editoriais próprios – como ocorre nos

jornais impressos com versão on-line46. Entretanto, como são parte de conglomerados

midiáticos mais amplos, consideramos válido estender (em certa medida) as observações

feitas a respeito dos veículos impressos que lhe compõe. Esse é o caso do portal UOL, que

pertence ao Grupo Folha, responsável (dentre outras publicações) pela Folha de S. Paulo.

Ressalvadas suas particularidades e relativa autonomia editorial, o viés do portal UOL é bem

próximo ao da Folha de S. Paulo47.

Quanto ao G1, trata-se de uma das ramificações on-line do Grupo Globo, que inclui

também rádios, canais de TV (tanto públicos como privados) e várias publicações, das quais

uma das principais é o jornal impresso O Globo. Dados da Associação Nacional de Jornais o

citam como o segundo jornal pago de maior circulação no país, atrás apenas do tabloide belo-

horizontino Super Notícias48. Tendo em mente o grau de coerência editorial entre os

principais veículos jornalísticos do Grupo Globo, acreditamos que o posicionamento Editorial

d’O Globo pode ser também estendido ao G1.

O trabalho de Campos et al (2013) é especialmente relevante para melhor

compreender a postura do veículo frente a cobertura das cotas raciais. Nele, o autor se propõe 46 Deixamos em aberto a questão a respeito de por que a publicação de editoriais nunca se tornou prática corrente entre veículos nativos do meio digital. Nos limitamos a observar que, quando não se trata da versão on-line de uma publicação impressa, muito raramente encontramos texto de natureza similar. 47 Ressaltando que, com efeito, essa relação só poderia ser traçada com segurança e riqueza de detalhes à partir de um estudo que se voltasse especificamente para a relação entre os posicionamentos editoriais da Folha de S. Paulo e do Porta UOL, que – é bom lembrar – republica muito do conteúdo veiculado pela Folha. 48 Os dados são de 2015. Disponível em: <http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil/>. Acesso em 3 nov. 2017.

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a realizar um estudo da valência de textos opinativos publicados pelo veículo entre 2001 e

2008. A valência se expressa quando o(a) autor(a) em questão se posiciona de forma explícita

a respeito de uma determinada questão. No presente caso: contra, a favor, ambivalente49 ou

neutro50 em relação às políticas de cotas raciais. Ao considerar os 74 editoriais publicados

nesse período, em 68 (91,9%) o posicionamento adotado foi contrário às cotas raciais. Nos

outros seis textos, foi adotada postura considerada ambivalente (CAMPOS et al, 2013, p. 22).

Essa predileção por um posicionamento contrário às cotas afeta as dinâmicas de

construção dos comentários feitos às notícias, o que ajuda a explicar a predominância de

visões contrárias às cotas raciais nos comentários. Em paralelo, pode explicar também a

influência da noção de mérito nesse processo, articulada tanto para defender quanto para

rechaçar as cotas – ou seja, como aquilo em torno do qual se tenta edificar a justificação dada

para esses posicionamentos.

Diante desse problema, seria justo perguntar: por que, então, não foram buscados

comentários em sites ou portais de notícia mais alinhados com o espectro político de

esquerda? A razão primordial para tanto é que não fomos capazes de encontrar tal material,

com relação ao caso específico da USP. Veículos como Brasil de Fato, Carta Capital e Mídia

Ninja, para citar alguns, publicaram reportagens sobre o caso, mas não haviam quaisquer

comentários que se adequassem a um dos principais parâmetros de pesquisa adotados: de que

os comentários fossem feitos no próprio site. Não, portanto, em redes sociais como o

Facebook, cujas modalidades de interação são muito mais variadas e complexas – escapando,

por isso, ao alcance de nosso estudo.

Além disso, o acesso à Internet ainda é limitado às porções mais abastadas da

população brasileira, deixando de fora também regiões economicamente menos

desenvolvidas. Conforme indicado em pesquisa amostral feita pelo Centro Regional de

Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC) em 2015, apenas

cerca de 51% dos domicílios brasileiros possuem acesso à Internet. Ao passo que o acesso é

praticamente universalizado nas classes mais abastadas, está presente em apenas metade dos

domicílios pertencentes às faixas mais pobres – totalizando de 30 milhões de domicílios

(CETIC, 2016). A presença bem mais tímida da população em situação de vulnerabilidade,

contraposta pela presença majoritária da população mais abastada, contribui para uma

49 Por ambivalência, compreenda-se que os(as) autores(as): “[...] assumem uma posição ao mesmo tempo temerosa e esperançosa em relação às cotas” (CAMPOS et al, 2013, p. 20). 50 Por neutro, compreendas-se que o(a) autor(a): “[...] declara não ter posição formada em relação às ações afirmativas raciais” (CAMPOS et al, 2013, p. 20).

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possível distorção do grau de apreço pela noção de mérito por parte de quem se insere no

debate sobre as cotas raciais.

Outro ponto a ser levar em conta é que o comentário, via de regra, remete sempre a

outro texto que toma como referência. Entretanto, atualmente os comentários feitos em portais

de notícia parecem estar no limiar desse gênero: em muitos casos, não fazem qualquer

referência ao texto em si, mas ao contexto mais geral dos temas que lhe são tangentes. Em

parte, isso explica porque, no caso específico do material que coletamos, as informações

apontadas nas matérias são frequentemente ignoradas.

Portanto, o espaço disponibilizado para a realização de comentário passa a operar, na

prática, como espaço para veiculação de opiniões particulares sobre um tema qualquer, sem

necessariamente se referir ao texto original. Esse descolamento entre texto original e

comentários faz com que muito do que deveria balizar ou restringir o debate seja

desconsiderado, favorecendo a incidência de argumentações baseadas tão somente no senso

comum ou em dados arbitrários.

4.3. Procedimentos de análise

Essa investigação será direcionada em função de cada um dos quatro aspectos gerais

do enunciado, conforme delineados por Foucault (1986). No primeiro capítulo desta

dissertação, tocamos por alto na definição foucaultiana de enunciado, compreendido como

função enunciativa. Trata-se daquilo que permite dar ao signo ou conjunto significante uma

modalidade de existência específica. Em linhas gerais, podemos considerar que ela é aquilo

que permite situar um enunciado no plano geral de um discurso, emprestando-lhes sentido ao:

especificar um objeto em relação a outros; localizar o sujeito numa certa posição; estabelecer

formas de interação com outros enunciados; ser dotado de uma materialidade específica.

Foucault (1986) se aprofundará no funcionamento de cada um desses aspectos da

função enunciativa para, em última instância, tentar captar sua existência na qualidade de

acontecimentos que se repetem na história do discurso. Como esse funcionamento se liga

aquele da formação discursiva, é possível isolar alguns desses enunciados para investigar

como manifestam, em alguma medida, esse funcionamento de conjunto. Conforme coloca

Foucault (1986):

Descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos (não sendo esta forçosamente gramatical nem logicamente estruturada) uma existência, e uma existência específica. Essa a faz aparecer não como um simples traço, mas como relação com um domínio de objetos; não como resultado de uma

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ação ou de uma operação individual, mas como um jogo de posições possíveis para um sujeito; não como uma totalidade orgânica, autônoma, fechada em si e suscetível de – sozinha – formar sentido, mas como um elemento em um campo de coexistência; não como um acontecimento passageiro ou um objeto inerte, mas como uma materialidade repetível. (FOUCAULT, 1986, p. 125, grifos nossos).

Tendo esses pontos em mente, podemos avançar agora a um estudo do material que

foi coletado, a começar pelas relações que estabelecem com um domínio de objetos. Isso

envolve compreender que, por mais superficial que seja o debate sobre as cotas raciais em

comentários em notícias on-line, ele se desenrola em meio a espaço referencial que lhe

permite diferenciar os objetos discursivos uns dos outros.

No presente caso, esse referencial remete aos próprios mecanismos de concorrência

que, bem ou mal, fazem aparecer diferentes formas e graus de mérito. Integra-se, nesse

sentido, ao sistema de formação dos objetos de um discurso neoliberal, conforme buscamos

demonstrar no capítulo anterior. Essa relação fica mais clara quando tomamos

individualmente alguns dos enunciados que foram coletados em nosso material de análise,

abarcando tanto posicionamentos favoráveis quanto contrários às cotas raciais.

4.4. O mérito enquanto objeto

Neste item, propomos nos voltar para o modo como a função enunciativa é exercida

no sentido de localizar, de detectar a presença ou não do mérito em função desse espaço de

referência, que é o de uma sociedade largamente organizada em torno da concorrência.

Assim, a função enunciativa é exercida no sentido de diferenciar, uns dos outros, diferentes

tipos de mérito em função dos mecanismos que o produzem. O que permite que esse processo

abarque embates, conflitos etc., em torno de quem tem ou não mérito – compreendido aqui

como merecimento – suficiente para ter direito a uma vaga no ensino superior público. Em

síntese, a concorrência atua como princípio de diferenciação entre diferentes méritos, na

qualidade de objetos discursivos.

O que nos chama atenção a respeito desse fenômeno é o modo como os enunciados se

organizam no sentido de encontrar princípios de equivalência entre diferentes méritos. Ou

seja, aquilo que permite dizer que, apesar de diferentes, são equivalentes entre si; que

expressam um mesmo merecimento. Isso está na raiz de uma série de conflitos, na medida em

que se aceite, ou não, que o componente racial pode constituir um princípio de equivalência;

ou mesmo que tal princípio seja sequer possível.

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No caso desse último posicionamento, como vimos, o mérito verdadeiro não pode

surgir fora de um espaço de concorrência irrestrita, uma vez que consideram-se relevantes

apenas os resultados apresentados, a despeito de fatores externos. Esse tipo de postura, ao

menos no que diz respeito às cotas é, hoje, raro. Uma pesquisa do Ibope, publicada pelo

Estado de S. Paulo, estima que apenas 16% dos brasileiros(as) são contra qualquer tipo de

cota nas universidades. Entretanto, no caso específico de nosso material de análise, pudemos

observar uma relativa saturação desse posicionamento.

A esse respeito, podemos nos deter no seguinte comentário, na matéria publicada pelo

G1: “O que é a cota, afinal, a não ser pegar um cara despreparado e botar ele na marra

dentro da universidade? Isso para mim é demagogia e não resolve o problema de ninguém -

nem do aluno e nem da universidade” (grifo nosso). Posicionamento compartilhado por outro

usuário, que comenta na notícia publicada pelo Estado de S. Paulo: “Ser negro ou pobre não

dá direitos diferentes para ninguem. Eu sou filho de analfabeto e consegui fazer a USP. Qual

é a diferença? Ralei para caramba, deixei muita coisa de lado” (grifo nosso).

Nos dois casos, o mérito surge enquanto objeto discursivo que só pode existir,

verdadeiramente, face à atuação irrestrita da competição. No primeiro caso, a transgressão a

esse princípio produz algo diferente, fora da ordem da meritocracia: premia a mediocridade e

o despreparo. No segundo caso, independe das desigualdades que se expressam

desproporcionalmente em certos grupos: o mérito é acessível a todos(as), mas somente

mediante um certo grau de esforço, persistência e foco – que, presume-se, falta aos(às)

cotistas.

Assim, qualquer medida que atenue as condições de competição contribui apenas para

corromper o projeto de meritocracia: elas não produzem o verdadeiro merecimento, mas um

merecimento menor, menos legítimo. Por isso mesmo, que não pode ser equiparado ao mérito

que surge em referência à ampla-concorrência: formam-se aí objetos discursivos diferentes,

entre os quais não há princípio de equivalência possível.

Vários comentários, partindo desse princípio, especulam a respeito dos impactos

gerados por essa suposta distorção, por essa não-equivalência dos méritos, chamando atenção

para como se exercem a longo prazo. Tomemos este comentário feito em matéria publicada

pela Folha de S. Paulo:

Quem vai querer ser operado por um médico que entrou na faculdade pelo sistema de cotas? Francamente, como contribuinte, acho que a USP pode criar cotas, desde que as escolas de medicina também sejam só para cotistas. Não é certo rejeitar candidatos com potencial, que estudaram e se prepararam, por outros cujo único

"crédito" é a cor de sua pele ou ter estudado em escola pública. (Grifos nossos).

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Logo, a suposta não-equivalência entre os méritos logrados no acesso à educação

superior – via Fuvest ou ENEM – se traduziriam na formação de profissionais não

qualificados. Isto a despeito do fato de que todos(as) os(as) aprovados(as) receberem a mesma

formação após ingressarem na universidade. Portanto, a suposta falta de mérito na seleção de

estudantes teria uma natureza contínua: presume-se, ela acompanharia, como um fantasma, a

trajetória profissional de quem, porventura, entrar pelas cotas; de modo que seriam tanto

incapazes de se tornarem bons(as) profissionais quanto pela possível discriminação em vista

de sua condição de cotista.

Isso não parece ocorrer por acaso, uma vez que muitas pessoas encaram que as cotas

são um atalho, uma forma de se desprender da necessidade de abrir mão de certos prazeres em

detrimento do trabalho e do estudo. Conforme comenta este usuário do portal G1:

[...] Também tenho amigos que vieram de escolas públicas e se formaram na própria USP, destacando-se inclusive de muitos colegas. Raça ou condição social nada tem a ver com esforço e dedicação. Só se progride com esforço, nunca com "facilidades".

Partindo do pressuposto de que esforço e dedicação não tem relação com a condição

racial ou socioeconômica, estabelece-se mais uma vez a impossibilidade de lograr mérito

verdadeiro ao organizar espaços de concorrência restritos a esses grupos. Logo, não há

espaço para determinar princípios de equivalência entre eles.

Outro efeito comumente apontado, que decorreria da inclusão de pessoas

consideradas não merecedoras seria a queda na qualidade geral do ensino na USP. Por

exemplo, este comentarista escreve, em resposta à matéria publicada pela Folha, que:

Não é através de "cotas" que haverá inclusão mesmo porque esses "cotistas" ou não acompanharão o desempenho de seus colegas ou forçaram a universidade a nivelar por baixo (o que determinaria o fim da USP como universidade de excelência ). Se quiserem fazer "inclusão" que invistam na escola pública de qualidade para aí então fazê-los competir em igual condições através da FUVEST.

Foquemos no trecho em que o autor cita o fim da USP como universidade de

excelência. Pois bem, o que a caracteriza como tal é o fato de que é um espaço privilegiado de

circulação do mérito: em tese, seu vestibular selecionaria apenas os(as) melhores dos(as)

melhores. Contudo, a introdução de um mecanismo concorrencial diferenciado (as cotas,

raciais ou não) significaria o fim desse espaço de circulação exclusiva do mérito. Ao deixar de

produzir o mérito verdadeiro, para usá-lo como critério de acesso, a instituição perderia sua

condição de excelência.

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Todavia, nem todos(as) que se inserem no debate são tão radicais na defesa irrestrita

da concorrência. Um posicionamento mais moderado, ainda que contrário às cotas raciais, é

aquele no qual o princípio de equivalência entre os diferentes méritos produzidos pode ser

dado pela condição socioeconômica. Por este termo, compreendam-se tanto pessoas em

situação de vulnerabilidade econômica – pessoas pobres, no geral – ou que realizaram a maior

parte de seus estudos em escolas públicas.

Assim, diferentes méritos (objetos discursivos) podem ser recortados em referência a

diferentes instâncias de concorrência: uma em que a disputa se dá de forma generalizada e

outra em que ela se dá entre pessoas com uma condição socioeconômica mais frágil. De modo

que uma que se pauta pelo resultado puro e outra pela atenuação das desigualdades. No

entanto, apesar disso, ambos são considerados equivalentes entre si: nos dois casos, o

merecimento é considerado legítimo, verdadeiro. Vejamos alguns comentários que avançam

nesse sentido.

Um usuário comenta na matéria publicada no Portal UOL, a respeito de um grupo de

estudantes que realizou protesto a favor da inclusão das cotas étnico-raciais no processo

seletivo da USP:

Eu sou USPIANO51. E portanto conheço essa turma muito bem! São mal intencionados! Eles sabem que as cotas sociais é que são justas. Que cotas para a escola pública são as únicas, que além de não serem inconstitucionais, são justas. Mas querem tumultuar. Eu tenho rido das reivindicações desses caras, algumas são infantis. Parem com isso, e procurem algo útil para fazer. Deixem a USP em paz! (Grifos nossos).

O que podemos depreender desse comentário é que existem instâncias justas de

diferenciação, capazes de dar legitimidade às cotas: a concorrência não precisa ser

generalizada para que se efetive uma aferição adequada do mérito individual, a saber, por

meio das cotas sociais. Por outro lado, a introdução de um critério racial no funcionamento de

um mecanismo concorrencial resultaria na produção de um falso-mérito, um não

merecimento. Tanto que a defesa das cotas raciais é caracterizada como um ataque à

integridade da instituição, cristalizado no imperativo: “Deixem a USP em paz!”.

Um caso similar pode ser observado nesse comentário no G1, que afirma ser:

[...] totalmente contra cotas raciais e totalmente a favor de cotas sociais, para pessoas pobres, sejam amarelas, vermelhas, negras, brancas etc... Acho a divisão por cor imoral, conheço pessoas brancas que deram muito duro a vida toda em escola pública, ou que passaram para escolas particulares mas viveram uma vida de sacrifício, estudaram muito enquanto trabalhavam também, e tem muito menos vantagens que os negros. (Grifo nosso).

51 Termo coloquial, utilizado para designar estudantes da USP.

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Uma vez que a segmentação promovida pelas cotas é considerada “imoral”, ela é

também incapaz de produzir um mérito a ser considerado legítimo ou equiparável a outros,

pois exclui certos grupos (pessoas não-negras) em benefício de outros grupos (população

negra). Desse modo, mesmo que a competição selecione os mais aptos entre os(as)

beneficiários das cotas raciais, essa perspectiva irá ressaltar o entendimento de que não há ali

mérito a ser reconhecido, apenas uma arbitrariedade a ser corrigida para fazer aparecer, em

sua forma pura, o mérito individual.

Por fim, atente-se ao trecho: “[...] conheço pessoas brancas que deram muito duro a

vida toda em escola pública, ou que passaram para escolas particulares mas viveram uma vida

de sacrifício [...] e tem muito menos vantagens que os negros.” Ele é interessante, pois seu

espaço de referência é de certa forma inverso ao que normalmente se observa. Isto, pois

compreende que existe um desnível competitivo entre os grupos sociais e étnicos, mas no

sentido de favorecer a população negra, fazendo, portanto, com que os méritos logrados por

meio das cotas raciais sejam ainda mais questionáveis, tendo em vista que surgem em

referência a uma estrutura que, acredita-se, privilegia a população negra52. Nessa medida,

traduz muito sucintamente a lógica do racismo reverso: ideia segundo a qual os grupos

historicamente dominantes é que são atualmente perseguidos ou execrados pelas minorias.

Em relação a esse plano de referência, no qual as engrenagens competitivas giram

secretamente contra a população branca, o componente racial impossibilita o surgimento do

objeto discursivo “mérito”.

Outros(as) comentaristas estabelecem alguns requisitos para que o mérito de cotistas

socioeconômicos possa ser equiparado ao de quem participa da ampla concorrência. Algumas

das que foram citadas por um comentarista, em matéria publicada pelo UOL, incluem: “[...]

que o aluno quotista tenha acrescido no seu curriculum um ano a mais para reforço das

matérias aprendidas na escola e tenha ainda, tolerância menor à repetência. Se "ganhou" a

quota faça por merecê-la.”

Em outras palavras, mostra-se aberto a ideia de aliviar as condições de concorrência

para certos grupos desfavorecidos, mas compreendendo que isso terá o efeito concreto de

introduzir pessoas menos preparadas, menos merecedoras, na universidade pública.

Consequentemente, esse desnível gerado no âmbito do processo seletivo (e o mérito que

produz) deveria ser compensado por uma carga adicional de esforço e tempo de formação,

52 Estamos cientes de que isso contraria a esmagadora maioria dos estudos tanto quantitativos quanto qualitativos sobre as condições de existência da população negra.

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fazendo, enfim, com que o mérito logrado por essas pessoas se iguale, no longo prazo, ao de

quem não fez uso das políticas de cotas.

Num outro sentido, há a possibilidade de negar a existência de um princípio de

equivalência dos méritos de quem se utiliza das cotas raciais porque elas implicariam que as

pessoas negras são incapazes de triunfar por conta própria. Um exemplo é este comentário,

feito na matéria do UOL:

Adotar cota racial é querer esfregar na cara do negro que ele não tem capacidade de concorrer com o branco, então o estado "facilita" pra ele passar no vestibular. Essa atitude é ridícula. Cota racial é reivindicação infundada desses "coletivos". O aluno não precisa disso pra entrar na faculdade, precisa estudar, e nesse ponto a cota por escola pública se faz necessária e é sim justa. Mas racial não. É discriminatória, além de nivelar os alunos por baixo, e não por cima. (Grifos nossos).

Diante do fato de que todas as pessoas tem a mesma capacidade de aprendizado, não

havendo desnível entre elas em função de uma suposta raça, não há porque corromper o

mecanismo concorrencial através do uso de cotas raciais. Nesse sentido, é bom indicar que se

ignora que o racismo – e não a ideia de raça – seja aquilo que justifica a existência de

programas de ação afirmativa.

O trecho final também é particularmente ilustrativo: a competição entre estudantes de

escolas públicas é capaz de produzir o objeto discursivo mérito, mas não a competição entre

estudantes negros(as). Esta serviria para abaixar o nível-geral dos(as) ingressantes: logo, não

pode ser equivalente ao de quem utiliza cotas sociais ou quem disputa pela ampla

concorrência. Assim, ao tocar na questão racial, abre-se mão da legitimidade dos méritos que

se produzam.

Vejamos agora alguns comentários que tocam no mérito enquanto objeto discursivo

que se pode produzir a partir das cotas raciais, levando em consideração a especificidade da

população negra. Um leitor do G1 comenta:

A pessoa branca pobre se esforça, mas quando ela formar vai ter melhor acesso a empregos, e ninguém vai desconfiar da fonte de renda dela se ela for rica, e ninguém vai fechar portas pra ela só por causa da cor. Branco pobre no Brasil é trabalhador, negro pobre é o favelado criminoso marginal. Não tem essa de "cota social resolve. (Grifos nossos).

A esse respeito, ele destaca a ambiguidade do reconhecimento social do mérito, quer

trate-se de uma pessoa negra e de uma pessoa branca. Logo, a melhoria das condições de

existência e consequente mobilidade social ascendente, é encarada de formas distintas:

desperta admiração, caso se trate de pessoa branca; mas desconfiança e estranheza de outro,

caso se trate de uma pessoa negra.

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Compreendendo que essa desigualdade se expressa nos mais diversos contextos, é que

as cotas raciais – e não simplesmente sociais – são capazes de compensar essas distorções no

reconhecimento do mérito, intervindo sobre o fato de que a sociedade brasileira possui dois

pesos e duas medidas. Daí que o princípio de equivalência que as iguala seja o impacto

exercido de forma estrutural pelo racismo: trata-se de um fator externo tão significativo que

justifica a intervenção calculada no mecanismo concorrencial que selecionará futuros(as)

estudantes. Outro usuário do G1 avança num sentido similar:

Cotas são uma oportunidade para a equiparação profissional e social das raças, visto que enquanto brancos possuíam engenhos os negros levavam chibatadas para trabalhar de graça, e isso gerou uma disparidade social refletida nos dias de hoje. (Grifos nossos).

Nesse sentido, o mérito produzido pela disputa entre cotistas raciais se mostra válido,

legítimo e equiparável ao de não cotistas, na medida em que se consideram as condições

históricas que antecedem a realização do processo seletivo. Referimos-nos, com isso, ao fato

de que durante séculos a população negra foi privada da mera possibilidade de disputar

recursos ou participar, na condição de pessoas livres, da organização produtiva nacional.

Fatos que devem ser computados na diferença entre os resultados apresentados nos processos

seletivos e que caracterizam, mais uma vez, um princípio de equivalência do mérito.

Outro leitor do Estadão colocará esses diferentes méritos em pé de igualdade, mas

tomando como base não o resultado único do vestibular, mas o rendimento apresentado após

o ingresso no ensino superior:

Temos que analisar fatos e dados e não simplesmente opiniões baseadas em dogmas. E o fato é que os alunos de cotas têm na média desempenho superior ou igual aos não cotistas. Essas universidades são altamente seletivas, todo mundo que passa ali, pelas cotas ou pelo sistema universal está igualmente capacitado.

Ao contrário de outros(as) que comentam sobre o tópico e buscam desenhar o mérito

enquanto objeto discursivo, esse comentarista não presume que um rendimento menor na

disputa pela vaga implique num rendimento inferior ou questionável durante a realização do

curso. O princípio de equivalência do mérito, nesse caso, está no fato de que, após

selecionados(as), cotistas e não-cotistas possuem rendimento similar e, por isso, são

igualmente merecedores(as); que diante do mesmo ensino e submetidos às mesmas provas,

exames, trabalhos, apresentam resultados similares, dando, enfim, legitimidade ao

funcionamento das cotas como um todo.

Compreendemos que os pontos levantados até o momento reforçam a caracterização

que fizemos dos mecanismos de formação dos objetos do discurso neoliberal na medida em

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que o mérito, enquanto objeto discursivo, parece ser concebido de forma indissociável dos

mecanismos de concorrência que o produzem. A função enunciativa, nesse sentido, atua para

designar “um” mérito em vista dos diferentes outros graus e modalidades que pode ter – em

síntese, surge em referência a “outros” méritos que podem existir. Nessa medida, permite que

eles sejam comparados, diferenciados, questionados ou, como tentamos mostrar, colocados

em relação de equivalência.

Apesar das diferenças, o apreço pela noção de mérito se mantém constante. Como

argumentamos, se há essa preocupação em determinar onde há ou não merecimento, é porque

ela tem valor significativo para os sujeitos que o fazem. Ademais, porque o poder de

constituir o mérito enquanto objeto discursivo implica ter um poder que se exerce de modo

concreto no mundo social. Como vimos, tudo isso se liga a um processo bem mais amplo de

construção de uma ordem neoliberal, no qual os méritos individuais são rigorosamente

detectados e recompensados, para garantir que o mercado, e seus efeitos positivos, possam se

manifestar de forma próxima a ideal.

Esses pontos nos levam de volta a hipótese que havíamos citado no início deste

trabalho, a respeito do mérito enquanto objeto do qual se fala. Havíamos proposto que,

enquanto objeto discursivo, ele se constrói em relação direta com o estabelecimento de

mecanismos de concorrenciais e engendra, assim, uma disputa discursiva em torno dos

princípios de equivalência entre eles – mormente, o mérito de cotistas versus o de não-

cotistas. Detendo-nos no caso do material analisado, acreditamos que a hipótese se mostrou

pertinente. Apesar dessa comprovação parcial, pende avaliar, ao longo de outros trabalhos,

qual a extensão dessa validade para além do nosso material de análise.

4.3. Os sujeitos do mérito

Voltemos-nos agora para o exercício da função enunciativa naquilo que tange o “jogo

de posições possíveis para um sujeito” (FOUCAULT, 1986, p. 125), tomando como base

nosso material de análise. Em síntese, partimos da hipótese de que existe uma disputa em

torno da possibilidade de se situar enquanto sujeito discursivo do mérito, ao mesmo tempo em

que se ocupa a posição de cotista racial. Nessa medida, esse fenômeno está em estreita relação

com o que discutimos no item anterior, a respeito das condições que envolvem fazer, ou não,

o mérito surgir enquanto objeto discursivo. Isto porque não se pode ser sujeito do mérito onde

não se reconhece a possibilidade de sua existência.

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As duas principais vertentes a respeito de quem está autorizado a ser sujeito do mérito

são: uma que submete a existência do mérito a uma negação, ao menos formal – quer dizer,

para efeitos de organização de um espaço de concorrência – da condição de minoria. Portanto,

contrária às cotas raciais. A outra, favorável às cotas raciais, situa o sujeito em relação às

particularidades históricas que regem cada grupo, sendo o mérito indissociável desses

desequilíbrios que afetam sua competitividade e devem ser corrigidos, na medida do possível.

No primeiro caso, a condição diferenciada na estrutura concorrencial do vestibular faz

com que o sujeito não possa se posicionar enquanto detentor legítimo de mérito – nem, por

conseguinte, usufruir legitimamente dos seus benefícios. Não por menos, esse suposto

paradoxo entre ser sujeito do mérito e das cotas dá origem a toda uma série de ataques morais:

que tais pessoas são preguiçosas, oportunistas, em geral menos merecedoras do que aquelas

que ingressam pela ampla concorrência. Logo, nota-se aí certa fobia tanto aos(às)

beneficiários(as) das políticas de ação afirmativa quanto às políticas de auxílio em geral.

Como buscamos indicar em Salmerón (2016), a respeito do programa Bolsa-Família,

avança-se no sentido de produzir um constrangimento generalizado entre as pessoas que

recebem auxílios públicos. Isto ocorre, em parte, porque trata-se a pobreza como resultado de

um fracasso moral e individual: são pobres porque querem ou porque tem aversão ao trabalho,

ao passo que fatores externos (a inexistência de postos de trabalho, por exemplo) são

ativamente ignorados ou tomados como irrelevantes.

Essa marginalização e desqualificação de beneficiários(as) do Bolsa Família contribui,

dentre outras coisas, para pressionar essas pessoas a abrirem mão do auxílio na medida em

que instauram um conflito interno: aceitar essa ajuda pública seria atestar a própria

incapacidade, incompetência, fraqueza de espírito. As cotas, tanto raciais quanto sociais ou

econômicas, representam um caso semelhante: segundo essa visão, participar da disputa na

reserva de vagas envolveria aceitar a própria inferioridade e abrir mão da possibilidade de

conquistar o verdadeiro merecimento.

Assim, diversos comentários avançam no sentido daquilo que pode ser compreendido

como uma apologia ao constrangimento. Tomemos como exemplo este comentário, feito no

G1: “SE eu fosse negro,indio,mulato ou de qualquer cor que fosse privilegiada por cota em

uma universidade ou serviço publico, eu sentiria vergonha de sentar ao lado de um colega

que lutou para chegar até ali.” (Grifos nossos). O espaço que se abre para os sujeitos cotistas

não é, portanto, o do merecimento, mas o da vergonha, por terem se utilizado de mecanismos

escusos para lograr sucesso, forçando outros(as), supostamente mais merecedores(as), a

ficarem de fora da universidade pública.

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Outros comentários avançam no mesmo sentido, como este, coletado na matéria do

G1: “Sou negro e digo c sinceridade: A cota é uma forma de de mascarar o racismo e

segregação racial em nossa sociedade, uma esmola barata imposta pelo governo de esquerda

hipocrita. Não as cotas!” (Grifos nossos). Nesse caso, o auxílio oferecido pelas cotas surge

praticamente como uma afronta, como uma ofensa a quem é (presumivelmente) elegível à

política de ação afirmativa. Se submeter a uma seleção embasada por um critério racial

significaria abrir mão da dignidade e do merecimento que só podem ser gerados por uma

atuação irrestrita da concorrência – uma que ignore, portanto, fatores fora do controle

individual, como o efeito do racismo.

Outra comentarista do G1 evoca uma situação semelhante: “Saudades dos tempos que

meus vizinhos e amigos que eram negros, pobres e vindo de escolas públicas estudaram em

universidades federais por capacidade própria, por estudarem e não por cotas.” (Grifos

nossos.) Aqui, a impossibilidade de se posicionar enquanto sujeitos do mérito deriva do

entendimento de que o acesso à universidade foi garantido não pelo esforço próprio, mas pela

simples condição de minoria social ou racial. Como pularam uma etapa que, segundo esse

raciocínio, provavelmente barraria o ingresso dessas pessoas na universidade, seu

merecimento torna-se aberto a questionamentos e desqualificações.

De modo similar, os sujeitos da cota não poderiam ser também sujeitos do mérito

porque são a parte beneficiada de determinada inversão do mecanismo concorrencial. Ou seja:

no lugar de recompensar a excelência e o esforço, elas seriam recompensadas pela

mediocridade e a preguiça. Conforme escreveu este usuário do G1: “Posso não ser o ser

humano mais inteligente, mas acredito que cotas estão sendo usadas para beneficiar quem

não se esforça, pois as questões são as mesmas nas provas de "brancos" e "negros"” (Grifos

nossos).

Logo, as cotas funcionariam no sentido de desequilibrar um mecanismo que situa

todos(as) numa mesma posição (a de candidato(a) em potencial), na medida em que relativiza

os resultados logrados. Haveria, então, os sujeitos do mérito, que são os da ampla

concorrência e haveriam os sujeitos que entraram pela popular “porta dos fundos”, não

podendo por isso ocuparem a mesma posição subjetiva que seus(as) colegas.

Em todos esses casos que discutimos acima, a anulação da condição formal de

marginalização aparece como requisito para o mérito: apenas uma competição entre partes

“iguais” (no sentido de indiferenciadas) poderia designar méritos iguais ou ao menos

próximos. Porém, uma competição entre partes diferentes (cotistas e não-cotistas) pressupõe

posições diferentes em relação ao mérito. Como não haveria princípio de equivalência entre

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esses méritos (como discutimos no tópico anterior), a condição de cotista excluiria a

possibilidade de se posicionar como sujeito discursivo do mérito.

Entretanto, há quem se oponha a esses entendimentos, ressaltando que há mérito

também entre cotistas. A esse respeito, tomemos este comentário feito na matéria publicada

pelo Estadão, que é particularmente ilustrativo:

[...] Será que os contrários as cotas pensam que é chegar e entrar??? Já passou pela cabeça que também será exigido mérito e competência? Não o mérito de poderem se habilitarem em cursinhos e escolas que só tem essa finalidade, mas o mérito de concorrerem com o mesmo afã as vagas disponibizadas pelo estado, a todo cidadão. Competência para acompanhar o sistema letivo, pois é sabido do bom desempenho de cotistas em universidades públicas federais. Afinal, só vai correr atrás das cotas, quem sabe e anseia pelo acesso ao ensino público de qualidade, então, não se preocupem com o nível, ele se manterá, pois nosso sistema capitalista é muito mais seletivo.

O esforço, nesse sentido, é o de indicar como as cotas não subtraem o mérito de quem

é contemplado por elas, pois não eliminam a instância concorrencial – a seccionam, para que

pessoas em condições semelhantes possam disputar entre si. Portanto, não avalia o mérito de

terem tido acesso a recursos privados que lhe dessem uma vantagem competitiva – cursinhos

e escolas que tem essa finalidade – mas o de ter extraído o máximo possível diante dos

recursos que tinham à sua disposição e que são, em geral, mais precários. Por isso mesmo, são

tão merecedores(as) quanto quem disputa pela ampla concorrência: se a obtenção do mérito é

negativamente afetada pelas condições de existência, impondo restrições à grupos

desfavorecidos, a recíproca deve ser verdadeira.

Quer dizer, o acesso a um maior número de recursos (ensino particular de ponta,

cursos pré-vestibulares, dedicação exclusiva ao estudo...) também interfere na obtenção do

mérito, se tomarmos este como pura expressão do desempenho numa avaliação. As cotas

serviriam, assim, a função de corrigir essas distorções que afetam, para mais ou para menos, a

aferição da capacidade individual, corrigindo aquilo que está fora do controle individual.

Permitem, com isso, que tanto cotistas quanto não-cotistas sejam colocados(as) num mesmo

patamar de merecimento, permitindo que ambos(as) ocupem a posição sujeitos discursivos do

mérito.

Por outro lado, isso se apoia no fato de que a condição de merecimento se mostra não

apenas em função do resultado obtido no processo seletivo, mas ao longo da trajetória

acadêmica e profissional. Nesse sentido, cotistas e não-cotistas continuam submetidos(as) ao

crivo da competência mesmo após o ingresso na universidade. Devem ter, por exemplo, um

aproveitamento mínimo para avançarem no curso – e o comentarista destaca os bons

resultados apresentados por cotistas até então. Como apontou o comentarista, após

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formados(as), deverão novamente comprovar sua competência através da concorrência no

mercado de trabalho: muito mais seletivo, ele garantiria a manutenção do nível de formação

dos(as) profissionais – tenham sido cotistas ou não.

Portanto, a condição de minoria, traduzida na condição de cotista, não pressupõe, aqui,

a impossibilidade de se posicionar enquanto sujeito do mérito. Em relação a quem diz que

somente um grupo (não-cotistas) entra na universidade pela proverbial “porta da frente”, este

posicionamento indica que não há “porta dos fundos”. Quer dizer: não há apenas uma forma

legítima de ingresso, mas várias, que se adequam às especificidades de cada grupo; que

levam, no fim das contas, aos mesmos lugares e aos mesmos méritos.

O que é interessante, do ponto de vista discursivo, é que o mérito e a meritocracia

surgem como o inquestionável: aquilo que não pode ser violado, o princípio ao qual todos(as)

devem se submeter e em torno do qual surgem as diferentes posições subjetivas que buscamos

descrever. Ainda, que elas se produzem face a diferentes maneiras de se no interior de uma

dinâmica concorrencial, mas conservando o entendimento de que ela é capaz (ou, de todo

modo, necessária) para discriminar quem é mais ou menos merecedor de um recurso escasso –

no caso, vagas em universidades públicas.

Nessa medida, a condição de minoria, tanto de um lado como de outro, é

reconfigurada num sentido mais puramente econômico: ser minoria, no sentido neoliberal, é

ser sujeito de uma desvantagem competitiva, de uma arbitrariedade coletiva com implicações

privadas, de um sequestro dos merecimentos legitimamente conquistados. Não queremos

dizer que isso inclui tudo aquilo que envolve ser parte de uma minoria. Mas que essa é uma

das principais características no que toca as posições subjetivas constituídas no interior do

neoliberalismo: ou seja, naquilo que toca sua integração com a questão das minorias –

incluindo-se aqui a população negra.

Em nosso entendimento, tal processo de adequação da condição de minoria ao impacto

competitivo que produz desponta como um dos marcos do debate sobre as cotas raciais em

universidades públicas brasileiras, revelando, dessa maneira, a influência exercida pelo

discurso neoliberal, conforme caracterizado no capítulo anterior: trata-se aí de separar o que é

mérito individual daquilo que, para mais ou para menos, o distorce. Eventualmente,

determinando princípios capazes de corrigir essas distorções e garantir que todos(as) sejam

posicionados(as) a posição subjetiva que lhes cabe no interior de uma ordem meritocrática.

Como vimos, não apenas por uma prerrogativa moral, mas porque isso colaboraria

para o projeto de mundo neoliberal, que aproxima a sociedade de sua forma ideal: por sua

vez, aquela que permite um funcionamento ideal do mercado. Por isso mesmo, dá origem a

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profusão de condições tanto institucionais quanto discursivas para restringir a inserção no

mérito: a ideia é que as múltiplas barreiras, que jogam com o mecanismo concorrencial,

impeçam a todo custo a atribuição de um merecimento indevido. Razão essa da disputa, como

observamos acima, para determinar qual a forma ideal de fazê-lo.

No presente caso, isso passa por uma eventual anulação ou afirmação da própria

condição de minoria em relação ao mecanismo concorrencial que produz o mérito necessário

para ingressar, de forma socialmente legitimada, numa universidade pública. Logo, a

passagem de uma posição contrária a uma posição favorável às cotas raciais envolve transitar

de uma não referência aos contextos individuais ou especificidades históricas dos grupos que

competem entre si, a uma contextualização mais precisa dos mesmos, indicando como afetam

sua competitividade para mais ou para menos. Em vista disso, consideramos que nossa

segunda hipótese mostrou-se válida para os termos do corpus ora analisado.

4.4. Mérito, dívida histórica e vitimização

Ao analisar a função enunciativa, Foucault (1986) sugere que compreendamos os

enunciados “não como uma totalidade orgânica, autônoma, fechada em si e suscetível de –

sozinha – formar sentido, mas como um elemento, em um campo de coexistência” (p. 125,

grifo nosso). Significa, com isso, atentarmos para a dimensão específica na qual vários

enunciados podem coexistir sob a tutela de um mesmo campo conceitual, que lhes permite

interagir segundo uma mesma modalidade explicativa.

O que estamos buscando, portanto, é o conjunto de enunciados que se avizinham ou

que são acionados por outro para conferir-lhe certo sentido, poder ou respaldo. No presente

caso, chamamos atenção para o conflito entre enunciados que fazem isso ao se integrarem aos

campos conceituais desenhados pelas noções de dívida histórica e da vitimização, discutidos

no capítulo 3 desta dissertação. Respectivamente, remetem à defesa e o rechaço às políticas de

ação afirmativa.

Tomemos, como marco inicial, esse comentário feito na matéria publicada pelo

Estadão. Diante da aprovação das cotas raciais na USP, escreve:

Reparação de injustiças , é obrigação do estado sanar as mazelas sociais causadas por atrocidades históricas, um processo genocída ocorreu no Brasil , suas consequências são perceptivéis ; o negro excluído e marginalizado vitíma de uma limpeza etnica. (Grifos nossos).

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Sem a necessidade de trazer algum relato ou estudo específico a respeito do período da

escravidão e pós-Abolição, fica claro aqui como a defesa das cotas repousa no entendimento

de que existe, no Brasil, a necessidade de reparar as sequelas deixadas por esse período.

Caberia ao Estado, nesse sentido, o ônus dessa reparação – que viria, dentre outras coisas,

através das cotas raciais.

A “limpeza étnica” citada ao fim do comentário provavelmente se refere a não

integração da população negra na esfera produtiva da sociedade brasileira, tanto antes quanto

depois do fim da escravidão. Isto, no sentido de privilegiar um projeto de colonização e

transição produtiva (do escravismo para o capitalismo) focado na importação de mão de obra

europeia. Em contrapartida, considerando a população negra (antes escrava, depois liberta)

como inferior ou mesmo incapaz de contribuir para o avanço civilizatório brasileiro (cf.

SEYFERTH, 2002; FERNANDES, 1972).

A esse respeito, o comentário remete ao entendimento (consolidado na literatura

especializada) de que vigorou no Brasil, ao longo dos séculos XIX e XX, um projeto de nação

que visava “embranquecer” a população nacional através da emigração europeia.

Consequentemente, deixando a população negra à mercê tanto do racismo, que a considerava

inapta para o trabalho livre, quanto da ativa indiferença por parte do Estado brasileiro,

preocupado em atrair povos “civilizados” para consolidar o desenvolvimento da nação.

É dessas referências, que se acumulam no campo da história, que o enunciado

relativamente simples, que analisamos acima, pode ganhar a potência necessária para

justificar as cotas raciais. Ainda que não liste atrocidades da época da escravidão, ou entre em

detalhes sobre o longo processo de exclusão dos(as) negros(as) do desenvolvimento social

brasileiro, esse pequeno comentário encontra lugar no interior do espaço conceitual que

descreve, em detalhes, esse processo.

Outro comentário, este feito no G1 como resposta a um usuário que acusa as cotas de

serem uma forma de racismo, faz um levantamento de alguns dos fatores que dizem respeito

especificamente à constituição histórica da população negra:

[...] Você sabia que brancos nunca foram escravizados no Brasil? Que brancos nunca foram alvo de teorias que relacionavam eles a macacos e "provavam" a burrice deles? Que ninguém estranha se um branco tem um bom carro, ninguém pensa que ele roubou? E que cota é algo pra igualar oportunidades porque negro não consegue acessar o cursinho ou o colégio elite que o branco consegue? Que tem muito menos negro na universidade do que a proporção na sociedade? Branco acha que estão separando negros do resto da sociedade, mas quem fez isso foram os brancos há 400 anos, só queremos consertar isso. (Grifos nossos).

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Primeiramente, é interessante notar como a escravidão é (corretamente, a nosso ver)

destacada como um fenômeno a parte de todos aqueles que afligiam outros grupos

desfavorecidos. Além disto, o fato de que essa população foi o polo negativo do discurso da

eugenia (cujo polo positivo era o europeu germânico) teve consequências duradouras em sua

exclusão tanto formal (institucionalizada) quanto informal (em práticas e dizeres cotidianos).

Esses fatores, que pesaram e que pesam no reconhecimento histórico dos méritos

logrados por essas pessoas, poderiam, assim, ser parcialmente corrigidas no presente através

das cotas raciais. Não por meio de uma reparação literal, mas através de um esforço público

para aliviar o efeito acumulado dessa dívida, que atravanca as condições de mobilidade social

daqueles(as) que são herdeiros(as) desse processo histórico de exclusão. Um esforço que vem

justamente no sentido de incrementar a competitividade desse grupo, de selecionar

aqueles(as) considerados(as) mais capazes de elevar as condições de existência do grupo

como um todo.

Mas há quem discorde desse entendimento, reforçando que a noção de uma dívida

histórica não só é incorreta, como moralmente questionável. Tomemos o seguinte trecho,

escrito por um comentarista, no Estadão: “Os negros não foram os únicos escravizados, mas

são os mais habilidosos em tirar proveito dessa triste página da História do Brasil.” (Grifo

nosso). Ainda que não negue a existência da escravidão, nem a tome como irrelevante, salta

aos olhos a afirmação de que a população negra, em geral, se aproveita desse fato para

conquistar vantagens indevidas. No presente caso, referindo-se às cotas raciais; em geral, toda

sorte de benefício que seja direcionado especificamente a esse grupo.

Entretanto, tal como nos casos anteriores, esse pequeno enunciado mobiliza uma série

de outros enunciados vizinhos, ligados pela maneira como interagem para dar corpo ao campo

conceitual da vitimização. Aliás, o próprio fato de que esse trecho não surge como o

incompreensível ou impensável, mas como manifestação de certo tipo de dizer, revela que sua

existência não é solitária. A questão é indicar qual é esse espaço de dizeres com o qual

convive.

A esse respeito, é interessante destacar o modo como se volta tanto para aquilo que

dizem signatários(as) da dívida histórica quanto de quem questiona sua existência, realizando

uma poderosa (mas infeliz) síntese. Por um lado, se volta para todo o intricado campo de

dizeres que detalham a constituição histórica da desigualdade racial no Brasil para expressar,

com rara precisão, aquilo que se diz no campo da vitimização: que a população negra se faz

de coitada; que a dívida histórica é uma ficção inspirada em fatos reais, utilizada à exaustão

para se isentar da responsabilidade pelas próprias condições de existência.

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Ademais, podemos destacar o trecho “Os negros não foram os únicos escravizados,

mas são os mais habilidosos em tirar proveito dessa triste página da História do Brasil” (grifo

nosso), para ilustrar a relação de ignorância ativa com relação aos enunciados que mostram a

vertiginosa predominância da escravidão entre negros africanos. É fato notório que, salvo o

caso dos povos nativos (escravidão indígena), menos duradoura e mais localizada53, nenhum

outro grupo foi sistematicamente submetido à escravidão no Brasil.

Outra possibilidade é que esse trecho se refira a povos escravizados fora do Brasil, a

maioria presumivelmente em tempos longínquos (pré-coloniais, medievais, período clássico).

Dado o enraizamento do catolicismo no Brasil, podemos especular que o paralelo

(relativamente comum) que foi traçado pelo comentário seja com a escravidão dos judeus no

antigo Egito, descrita no livro do Êxodo. Em todo caso, a ideia-chave é a de que a escravidão

é um fenômeno recorrente na história da humanidade, sendo a escravidão negra apenas mais

uma entre outras (portanto, não cabendo medidas de reparação).

Entretanto, podemos nos deter especificamente no modo como determinados

comentários relativizam o impacto da escravidão e do racismo em função da precariedade de

outros grupos situados no Brasil-colônia e no Império. O caso mais notável e recorrente é o de

imigrantes, principalmente, europeus ou asiáticos, que superaram as condições precárias que

aqui encontraram quando de sua chegada. Um exemplo particularmente ilustrativo é o citado

por este comentarista, na matéria publicada pelo Estadão:

Tá cheio de imigrantes, que chegaram ao país fugindo de guerras, sem dinheiro, sem falar a lingua, apenas com a roupa do corpo, e que TB sofreram de preconceito, Obviamente, se esforçaram e trabalharam muito, investindo em educação e cultura. HOJE SEUS DESCENDENTES são pessoas bem instruidas, vitoriosas e de sucesso.Até quando vão usar da escravidao para explicar a atual situação dos negros? Uma hora terão de engavetar esse discurso de "vitimas da sociedade opressora". Até pq já não cola, nem convence mais. (Grifos nossos).

O trecho se abre com a comparação entre as condições econômicas e sociais de

imigrantes recém-chegados(as) ao país, que são consideradas análogas às dos escravos e

libertos. Compreende, assim, haver relativa equivalência nas condições históricas de obtenção

do mérito, que neutralizam aquilo que pode haver de específico no caso da exclusão da

população negra das diversas instâncias da sociedade brasileira. Nessa medida, enunciados

que se ligam ao campo conceitual da dívida histórica são submetidos a uma forçosa igualdade

com aqueles que versam sobre as condições de existência de imigrantes europeus.

53 O que não significa que outras crueldades e injustiças históricas não tenham sido cometidas para com as populações originárias.

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Contudo, aquilo que marca a diferença entre um e outro grupo teria sido precisamente

a busca contínua pelo mérito: diante de uma cenário supostamente igual, um grupo se

esforçou, trabalhou muito, fez investimentos na educação e cultura de suas crianças. O outro

fica implícito, simplesmente não teve a agudez de espírito necessária para superar as

adversidades que se apresentavam – isto, para não se dizer que era simplesmente avesso ao

trabalho ou ao esforço. A consequência, finalmente, teria sido a de que os(as) descendentes de

imigrantes herdaram esse mérito acumulado ao longo de várias gerações; enquanto os(as)

descendentes de negros pagaram o preço pela presumida inépcia de seus ancestrais.

O projeto conceitual que se desenvolve nesse sentido, ao menos em tese, envolve

demarcar os pontos que designam aquilo que as pessoas negras deixaram de fazer (trabalhar,

estudar, investir, se esforçar), mas poderiam ou deveriam ter feito, ignorando, assim, as

restrições que lhes eram impostas e imaginando, onde efetivamente nunca houve, certo grau

de liberdade de escolha – que não era, nem de longe, o mesmo de quem vinha da Europa ou,

em menor grau, da Ásia. Na prática, o efeito é que enunciados que remetem à dívida histórica

sejam diluídos nessa fantasia e ressurjam, enfim, como fragmentos de um discurso de

vitimização.

O conflito estabelecido com o conjunto de enunciados que justificam as cotas raciais a

partir da noção de dívida histórica e aqueles que se apoiam no campo conceitual da

vitimização pode ser observado com relativa clareza no seguinte trecho:

Até quando vão usar da escravidao para explicar a atual situação dos negros? Uma hora terão de engavetar esse discurso de "vitimas da sociedade opressora". Até pq já não cola, nem convence mais.

Na medida em que a escravidão, mecanismo-chave no funcionamento conceitual da

dívida histórica, não pode ser utilizada para explicar a situação atual dos negros e negras, fica

presumida a existência de alguma outra coisa que explique a visível desigualdade que lhes

acomete. Diante da necessidade de que se abandone o “discurso de vítimas da sociedade” –

em outras palavras, fatores que estão fora do controle do sujeito – o que resta é

responsabilizar esse grupo pelas próprias condições de sua existência.

Do ponto de vista de um espaço de interação para enunciados, o vácuo aberto pela

negação de que a escravidão seja capaz de explicar fenômenos de mobilidade social é

ocupado por aqueles que reiteram a importância do mérito e da responsabilidade individual.

Tal enunciado abre-se, assim, para um espaço de coexistência com esses enunciados, que

sutilmente se colocam ao seu lado. Como efeito colateral, a afirmação da dívida histórica

pode mais uma vez ser considerada à partir do prisma de uma vitimização.

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Apesar de suas profundas diferenças, os dois lados do embate teórico protagonizado

pela dívida histórica e a vitimização parecem repousar sobre um mesmo conjunto de relações.

Partindo da necessidade de explicar fenômenos de mobilidade social no presente, se voltam

para o passado para analisar como o mérito se constituiu enquanto fenômeno histórico, com

temporalidade própria. Em suma: como o passado pode, ou não, explicar que certos grupos,

hoje, gozem de condições mais ou menos precárias de existência. Do ponto de vista

conceitual, ambos se apoiam nesse mesmo princípio.

É em vista da necessidade de justificar ou repudiar um fenômeno específico – as cotas

raciais – com base na referência conceitual à concorrência que esses dois posicionamentos

surgem. Será este o terreno no qual se apoiam, o cenário no qual se posicionam para entrar em

conflito e gerar efeitos, os mais diversos, no mundo social. Daí que, diante da necessidade de

avaliar o impacto que a história pode ter na aferição do mérito, ambos promovam uma leitura

dela enquanto história da competitividade acumulada – seja por vias consideradas justas ou

arbitrárias.

Mais uma vez, a questão fazer com que o mérito individual, e somente ele, possa

aparecer em sua medida mais exata possível. Daí que, para defensores(as) das cotas, isso

envolva corrigir o efeito de distorção causado pela dívida histórica, integrando esse elemento

no cálculo do mérito e dos mecanismos que visam produzi-lo; mas também que quem é contra

esse tipo de medida defenda que ela é que acabaria distorcendo a produção do mérito. Essa é a

razão pela qual se ligam a construção de um projeto ideal de meritocracia – aquela a se

construir progressivamente. Como tal, se ligando, por sua vez, ao processo mais amplo de

reorganização do mundo social engendrado pelo neoliberalismo.

Todos esses pontos nos levam a reiterar a validade local de nossa terceira hipótese –

ou seja, é válida no que diz respeito ao material de análise estudado. Ambos os conceitos

(dívida histórica e vitimização) promovem uma leitura histórica da concorrência e do acúmulo

(ou não) de mérito, tendo em vista explicar as condições de existência (precárias ou

privilegiadas) de grupos contemporâneos. Mas, das diferenças que surgem nesse percurso,

instauram-se diferentes entendimentos no que tange a legitimidade de políticas de ação

afirmativa.

4.5. A materialidade do mérito

Resta-nos, agora, analisar os enunciados “não como um acontecimento passageiro ou

um objeto inerte, mas como uma materialidade repetível.” (FOUCAULT, 1986, p. 125).

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Portanto, aquilo que permite ao enunciado sobreviver no tempo, se projetar na história e se

repetir em múltiplas enunciações individuais. Como essa materialidade é mais de ordem

institucional do que prática, sugerimos aqui trabalhá-la nos termos de um regime de repetição,

que nada mais são do que as condições necessárias para repetir (materializar) certo enunciado

e investi-lo em práticas diversas.

Por uma questão de ordem prática, propomos nos voltar o conflito entre a repetição de

informações corretas e incorretas, que podem afetar concretamente a realidade social e que se

relacionam com a disputa discursiva pelo mérito, embasando posicionamentos contrários ou

favoráveis às cotas raciais. A esse respeito, se ligam também, aos projetos e interesses dos

diferentes grupos que estão implicados nesse processo.

Uma das principais informações que, apesar de incorreta, embasa muitas críticas às

cotas, é a de que os brancos pobres ficariam em desvantagem ou seriam ignorados pela

política de cotas. Não é o caso, tendo em vista que a cota para negros(as) é recortada no

interior da cota, mais ampla, para alunos(as) de escolas públicas, no caso da USP, e também

por renda, no caso das instituições federais. Logo, o fato de que não há uma cota racial

específica para brancos(as) – que dificilmente poderiam se julgar vítimas de racismo no Brasil

– não significa que essas pessoas deixem de ter acesso a qualquer auxílio; muito menos que

tenham que disputar em ampla concorrência com candidatos(as) que estudaram em escolas

particulares. Simplesmente concorrerão na cota para estudantes de escolas públicas e/ou em

situação de fragilidade socioeconômica.

No entanto, a ignorância a respeito do funcionamento básico do sistema de cotas se

repete exaustivamente no debate sobre as cotas e gera efeitos preocupantes. Partir do

entendimento de que apenas pessoas negras são beneficiadas pela política de cotas, ou que o

são em detrimento de outros grupos, pode contribuir para o agravamento de processos de

exclusão e marginalização das suas demandas específicas, uma vez que implica na obtenção

de um mérito ilegítimo, conquistado em vista do prejuízo a outros grupos. Além disso, a

possibilidade de repetir esse tipo de desinformação num contexto de avaliação dos méritos

individuais – uma entrevista de emprego, por exemplo – pode afetar negativamente a vida

profissional de cotistas, pois o mercado continua livre para discriminar e excluir a população

negra, inclusive com base nessa premissa.

Um dos grandes problemas com esse tipo de informação errônea é que seu regime de

repetição é muito pouco rigoroso: não precisa ter respaldo no real, justamente porque o

reforço que oferece a certa visão de mundo basta para que possa circular livremente. Isso é

especialmente verdadeiro no contexto da Internet, que impõe pouquíssimas restrições àquilo

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que pode ser publicamente compartilhado. Tudo isso faz com que esse tipo de informação

errada se alastre com facilidade e de modo difuso, tornando difícil opor-lhe resistência. No

fim das contas, resulta em comentários como este, feito no Estadão:

Mais carteiras serão colocadas nas salas de aula para absorver esses alunos? Ah não...na verdade alunos que se prepararam muito para ter uma chance vão ser sacrificados. Bela justiça social. Que baita racismo. Coitado de quem nasceu branco. (Grifos nossos).

O trecho em destaque, no final, é praticamente o mesmo usado por outro comentarista

do Estadão: “Coitado de quem nasceu branco e pobre. Não vai entrar em universidade

pública nunca mais” (Grifo nosso). Em suma, a repetição da ideia de que não-negros seriam

ativamente prejudicados pelas cotas serve aqui para dar respaldo ao chamado racismo inverso,

que discutimos brevemente acima. Como vimos, trata-se da ideia segundo a qual está em

curso um processo de discriminação negativa contra as pessoas brancas, que seriam excluídas

pela via indireta, através do favorecimento, supostamente irrestrito, à população negra.

Assim, a repetição generalizada de um enunciado como “coitado de quem nasceu

branco e pobre”, para se referir às políticas de cotas raciais, contribui para deslegitimar o

mérito logrado por cotistas e correr a base de apoio das ações afirmativas. Paralelamente,

enquadra a população branca e pobre como vítima das cotas – compreendidas, nessa linha de

raciocínio, como artifício da população negra. Tudo isso serve a função de alavancar, por vias

indiretas, uma visão diferente de meritocracia e dos mecanismos de produção do mérito: uma

que não leve em conta o papel das relações raciais na constituição do mérito, mas tão somente

o resultado objetivo de um exame onde todos(as) são, formalmente, iguais.

Por outro lado, a repetição de enunciados desse tipo extrapola o simples debate sobre

as cotas e pode ter implicações muito concretas na vida profissional de quem foi cotista.

Tomemos o que foi escrito por esse comentarista, na matéria da Folha: “Em 2021 o diploma

da USP não será mais sinônimo de qualidade profissional. Como consumidor creio que tenha

o direito de ser informado de qual profissional se formou por quotas e qual não. Isso estará

no diploma?”

Por mais descabida que essa afirmação possa soar, há um projeto do MEC, divulgado

pela Folha de S. Paulo, de criar uma plataforma com os dados de cotistas, que ficaria acessível

a empresas “preocupadas em diversificar seus quadros de funcionários.” (FOLHA DE S.

PAULO, 22 mar. 2017). Ainda que a iniciativa, na teoria, seja louvável, na prática ela poderá

ter o efeito contrário: servir para discriminar quem entrou e quem não entrou via cotas sociais

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ou raciais, com prejuízo para quem foi beneficiado(a) por essas políticas. Tal como foi

sugerido pelo comentarista acima.

Outra informação incorreta, mas amplamente difundida, é a de que não há restrição ao

ingresso de negros(as) nas universidades – mais um fator que afeta negativamente a

construção e percepção social do mérito de quem tem se utiliza das cotas raciais. Conforme

escreve esse comentarista, na matéria do UOL: “Cotas raciais são absurdas! No Brasil, não

existe nenhum tipo de restrição ao ingresso do negro na universidade. A dificuldade, todos

sabem, é de cunho meramente sócio econômico...então, coitado dos brancos pobres! [...]”

(Grifos nossos).

Como já havíamos destacado, as cotas são marcadas justamente pelo fato de que

operam a inclusão por via da concorrência. Ao contrário do que escreve o comentarista acima,

há na verdade uma série de restrições ao ingresso da população negra na universidade. Para

além dos obstáculos que derivam do racismo estrutural, tem ainda que passar pelos mesmos

exames de seleção que não-cotistas. No caso de universidades como a UnB e UFU, tem ainda

de passar pelo processo de verificação da declaração.

Todos esses dizeres que se repetem visam, em última instância, anular a possibilidade

de reconhecer a existência de mérito entre cotistas raciais, já que ele é um dos principais

fatores a lastrear a legitimidade dessas políticas. Mas também, como indicamos em nosso

capítulo introdutório, afetar as possibilidades de mobilidade social de quem delas usufrui:

justamente, ao repetirem informações que não tem respaldo na realidade, mas que se tomadas

como corretas podem servir para embasar práticas discriminatórias no mundo profissional.

Por isso, também, que se desenvolveu o processo de resistência e combate a esse tipo

de enunciado. Isto busca inibir sua aceitabilidade e seu regime de repetição, impedindo-o de

ser inscrito em práticas concretas ou mesmo na discussão a respeito das cotas. Por exemplo,

ao contrapor informações incorretas ou julgamentos errôneos com aqueles que têm respaldo

na realidade. A esse respeito, podemos citar novamente um dos comentários feitos no

Estadão:

Será que os contrários as cotas pensam que é chegar e entrar??? Já passou pela cabeça que também será exigido mérito e competência? Não o mérito de poderem se habilitarem em cursinhos e escolas que só tem essa finalidade, mas o mérito de concorrerem com o mesmo afã as vagas disponibizadas pelo estado, a todo cidadão. Competência para acompanhar o sistema letivo, pois é sabido do bom desempenho de cotistas em universidades públicas federais.

Como dissemos acima, a questão aqui é opor resistência a algumas das pré-concepções

a respeito do mérito de cotistas que foram discutidas acima. Primeiramente, lembrando que as

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cotas não são garantia de acesso à educação superior, visto que precisam passar pelo mesmo

processo seletivo; mas também que a segmentação das instâncias concorrenciais é justa, tendo

em vista a discrepância entre o ensino público e o ensino privado de ponta. Por fim, que após

o ingresso os rendimentos se nivelam e deixam de ser relevantes. Nessa medida, visa anular o

possível efeito negativo gerado pela repetição de informações incorretas na vida de quem é

cotista.

Nos dois casos, o processo de repetição dos enunciados faz com que eles possam

também ser investidos em práticas diversas. Nesse sentido, o próprio debate sobre as cotas

raciais, assim como a instauração e modificação de mecanismos de produção do mérito,

repousa na materialidade repetível dos enunciados. Ou seja, o fato de que podem ser

continuamente reutilizados para gerar efeitos e serem, eles mesmos, avaliados: se são

pertinentes e por que, qual seu domínio de validade, se são rigorosos ou não, enfim.

A esse respeito, é interessante notar que tanto no caso de quem é favorável quanto de

quem é contra as cotas raciais, os enunciados que se repetem surgem como desenvolvimentos

do sistema de escolhas estratégicas abertas pelo discurso neoliberal. Como havíamos dito,

existem diferentes caminhos para se chegar naquilo que se concebe como uma meritocracia

ideal: cada um deles é progressivamente desenvolvido graças a natureza repetível do

enunciado. Nessa medida, avançam conforme surgem novas possibilidades estratégicas para

se desenvolverem – não apenas no nível discursivo, mas no nível institucional, político etc.

Com esses pontos em mente, podemos remeter à quarta e derradeira hipótese com a

qual havíamos começado: de que o que está em jogo no debate sobre cotas é a possibilidade

de limitar ou anular as concepções de mérito do grupo rival. Sendo que, na prática, isso

envolve inibir a aceitabilidade de certos dizeres que tocam a produção discursiva do mérito e

que tem potencial para afetar as possibilidades de mobilidade social de quem delas usufrui.

Levando em conta o material analisado, consideramos essa hipótese válida. Contudo, como

viemos argumentando, só uma investigação mais ampla poderá revelar se essa validade é

extensível a outras instâncias de debate sobre as cotas raciais.

4.6. Considerações finais Neste capítulo, nos dedicamos a avaliar a pertinência das hipóteses apresentadas no

início deste trabalho e dos apontamentos feitos no capítulo anterior, em função de um material

de análise coletado previamente. Chegamos, com isso, à consideração de que elas são válidas

para o domínio ora considerado: das relações discursivas que regem o debate sobre as cotas

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raciais em quatro grandes portais de notícia brasileiros. Nessa medida, pudemos notar que

existe certa correspondência entre o funcionamento das formações discursivas (nível macro) e

dos enunciados que surgiram nesse espaço de debate (nível micro). Em outras palavras, isso

sugere que o neoliberalismo afeta, de forma profunda, a discussão sobre cotas raciais,

especialmente no que tange o mérito: enquanto objeto discursivo, posição subjetiva,

mecanismo conceitual e estratégia de desenvolvimento que dá corpo a concepções distintas de

meritocracia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa pesquisa teve como objetivo central detectar se e como o neoliberalismo

influenciava o debate sobre as cotas raciais, considerado em uma instância específica: o

espaço de comentários de quatro grandes portais de notícia brasileiros. Ao longo desta

dissertação, buscamos mostrar que não só o neoliberalismo influencia profundamente o

funcionamento discursivo desse processo, como também a maneira pela qual isso ocorre:

através de diferentes articulações das noções de mérito e meritocracia.

Ao obtermos êxito nesse objetivo, fomos recompensados também com o cumprimento

de nossos objetivos complementares. O primeiro, estabelecer algumas bases e procedimentos

para a utilização do aparato teórico oferecido pela arqueologia de Foucault (1986), mostrando

que ela pode ser efetivamente utilizada para realizar estudos em análise do discurso. O

segundo, realizar uma descrição do neoliberalismo enquanto formação discursiva, nos

permitindo avançar à análise mais localizada (dos enunciados em relação a esse plano).

Finalmente, a de fornecer uma concepção de mérito e meritocracia que não os

reduzisse ao simples fundamentalismo do resultado - que, pelo contrário, os capta em sua

existência complexa: como elemento de uma problemática do merecimento, da qual todos(as)

nós participamos – muitas vezes, sem sequer nos darmos conta. Mas, também, que se liga aos

vários mecanismos, em voga na nossa sociedade, que visam produzir esse mérito e dissociá-lo

dos fatores que lhe distorcem.

Com esses pontos em mente, o principal resultado desse trabalho foi mostrar que, no

caso das cotas raciais, que o apreço pelas noções de mérito e meritocracia não é exclusividade

apenas de um dos lados do debate – sendo, em geral, associado a posicionamentos contrários

às cotas. De um lado e de outro do debate, é despendido um esforço considerável para isolar,

aferir e recompensar, de forma mais precisa, o mérito (merecimento) individual. O que nos

mostra que tais noções estão, talvez, muito mais enraizadas em nossa mentalidade do que

gostaríamos de imaginar.

Compreendemos que esses resultados representam uma contribuição relevante para o

campo acadêmico. Primeiro, ao fornecer uma visão diferente sobre o processo de debate sobre

as cotas raciais, agregando assim à já extensa bibliografia a respeito do tema, sendo o mesmo

válido para os estudos que se voltam para o funcionamento do neoliberalismo. Ao se voltar

para uma parcela da obra de Michel Foucault que é relativamente pouco explorada (a

arqueologia, enquanto perspectiva analítica), auxilia no entendimento de sua obra como um

todo. Por outro lado, acrescenta também ao campo da análise do discurso ao discutir, de

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forma mais aprofundada e direcionada, as premissas da perspectiva arqueológica e de seus

principais operadores analíticos (formação discursiva e enunciado).

Em outros termos, gostaríamos de destacar que a realização desse trabalho envolveu

diversos obstáculos, que buscamos superar da melhor maneira possível. A escolha por temas

polêmicos – cotas raciais e meritocracia – implicou a necessidade de um cuidado e rigor

adicional, que contribuíram em muito para o desenvolvimento dessa dissertação. Em mais de

uma ocasião, fomos levados a reconsiderar velhos (e confortáveis) entendimentos, muitas

vezes substituindo-lhes por outros mais incômodos, mas inevitáveis. Além disso, tal

desconforto pode ser indicativo da relevância dessa pesquisa: se gera desconforto, é porque

toca em pontos que são mais frágeis do que aparentam.

Outro grande obstáculo diz respeito ao arcabouço teórico utilizado. Ao formular sua

arqueologia, Foucault (1986) não se mostra excessivamente preocupado com as implicações

práticas do projeto – ainda que, em suma, se trate de uma obra metodológica. A esse respeito,

leve-se em conta que tal metodologia foi esboçada após as pesquisas terem sido realizadas54 e

foi abandonada logo em seguida. Não sabemos o que Foucault (1986) imaginava ser a

aplicação pura e concreta do que havia proposto. Enfim, acrescente-se a isso a prosa

hermética do autor, muitas vezes, enigmático em suas afirmações.

Esses pontos tiveram que ser contornados para dar a esse trabalho algum grau de

coerência teórica. Em parte, estamos satisfeitos com o resultado final, em especial

considerando foi realizado em nível de mestrado. Entretanto, gostaríamos de aproveitar a

ocasião para realizar algumas críticas, que podem vir a nos auxiliar em futuras empreitadas. A

principal delas diz respeito ao modo como utilizamos o aparato fornecido pela arqueologia de

Foucault (1986).

Acreditamos que tanto a caracterização de uma formação discursiva, quanto a análise

dos enunciados se beneficiaria de um estudo mais profundo, visando dar corpo a uma

utilização mais bem calibrada dessas ferramentas teóricas. O potencial explicativo da

arqueologia é imenso, especialmente no que diz respeito à análise do discurso. No entanto,

devida a curta duração do curso de mestrado e da produção desta dissertação, não fomos

capazes de dar a ela esse tratamento apropriado – que, por sinal, planejamos realizar em

pesquisas futuras.

54 No caso, nos referimos aos três primeiros livros de Michel Foucault. A saber: “História da loucura na idade clássica”, originalmente publicado em 1961; “O nascimento da clínica”, em 1963; “As palavras e as coisas”, em 1966.

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Isso é especialmente verdadeiro no que toca a análise dos enunciados. Foucault (1986)

escreve longamente sobre aquilo que constitui um enunciado e quais suas características

gerais, mas quase não faz menção ao modo como se daria sua análise. Dessa maneira, pode

ser que tenhamos nos desviado, em alguma medida, daquilo que Foucault (1986) imaginava

tinha em mente. Não obstante, um estudo mais aprofundado poderá revelar formas mais

rigorosas e bem-fundamentadas de estudá-los, a partir dos marcos teóricos que foram

efetivamente apresentados pelo autor.

Não significa, com isso, que as observações que fizemos sejam inválidas. Quer dizer

apenas que, uma vez resolvidos esses problemas, poderemos fazer análises cada vez mais

detalhadas e robustas, incrementando, assim, sua pertinência acadêmica. Mas o fato de que

esses trabalhos futuros podem vir a ter um respaldo maior não significa que o presente estudo

seja totalmente desprovido de sustentação teórica. Como dissemos: estamos satisfeitos com o

que foi desenvolvido aqui, considerando que se trata de uma aplicação provisória da

arqueologia, realizada em nível de mestrado.

Por fim, gostaríamos de encerrar este trabalho com um pequeno questionamento.

Consideremos a meritocracia como distribuição de recursos e posições sociais com base no

merecimento. Ao mesmo tempo, deixemos de lado as divergências a respeito do que

caracterizará esse merecimento. Será que, nessas condições, é possível fazer oposição a

meritocracia, em seu horizonte ideal? Afinal, há outro critério viável e justo para organizar a

sociedade, senão o merecimento? Esta é uma pergunta que, nem de longe, conseguimos

responder. Por um lado, isto revela a potência dessa ideia. Mas, por outro, não gera também

certa claustrofobia, na medida em que não conseguimos pensar para além dela?

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ANEXO A – Matéria publicada pela Folha de S. Paulo

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ANEXO B – Matéria publicada pelo Estado de S. Paulo

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ANEXO C – Matéria publicada pelo UOL

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ANEXO D – Matéria publicada pelo G1

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ANEXO E – Comentários feitos na matéria publicada pela Folha de S. Paulo

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ANEXO F – Comentários feitos na matéria publicada pelo Estado de S. Paulo

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ANEXO G – Comentários feitos na matéria publicada pelo UOL

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ANEXO H – Comentários feitos na matéria publicada pelo G1

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