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Monografia resumida sobre a concepção de separação entre ser e dever-ser em Kelsen
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Pergunta: Existe em sua opinião alternativa melhor à proposta Kelseniana de se
fundar um conhecimento científico do Direito? Justifique.
Ser e Dever-ser – fundamentos naturais da Moral e objeções à Teoria Pura do
Direito
Em meados do século XIX, Darwin formulou a teoria da evolução das espécies
pelo processo de seleção natural. Quase dois séculos depois, sua teoria se tornou central
para todas as ciências que lidam com a vida na terra de uma forma ou de outra.
Obviamente, para a Biologia, ela é a base sobre a qual tudo gira, desde os estudos de
genética molecular até os sobre polinização de flores por insetos. Para outras, como a
Fisiologia e a Neurociência, ela orienta a compreensão de como, respectivamente, as
estruturas fisiológicas e neurobiológicas do corpo foram formadas e quais são suas
funções. Mas, nos últimos tempos, também áreas como a Psicologia recepcionam cada
vez mais os pressupostos do darwinismo, ao criar campos de estudo como a Psicologia
Evolucionista ou a Psicologia Cognitiva, que objetivam compreender o comportamento
humano como um produto da evolução, buscando seus objetivos e causas de fundo1.
Mais ainda, em campos como a Moral também já há incursões de teóricos que veem a
influência da evolução no desenvolvimento do comportamento prescritivo humano.
Pesquisadores que aplicaram preceitos da Teoria dos Jogos na Teoria da Evolução
afirmam que os comportamentos de cooperação, que dão origem à sociedade, são
constructos dos agentes da evolução para aumentar suas chances de sobrevivência e
replicação, e podem ser satisfatoriamente explicados nas fórmulas da Teoria dos Jogos2.
Nesse sentido, prescrições morais surgiriam para regulamentar os desvios do
comportamento social cooperativo e preceitos como a lei de talião (olho por olho, dente
por dente) seriam resultados diretos desse objetivo evolutivo de fundo. De fato, a lei de
talião já é estudada e explicada pela Teoria dos Jogos com considerável sucesso há
muito tempo3.
1 Cf: PINKER, Steven. Tábula Rasa – a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo:
Companhia das Letras. 2004. 2 SINGER, Peter. A Darwinian Left – Politics, Evolution and Cooperation. Londres: Widenfeld &
Nicolson, 1999, capítulo 1. 3 Quanto a isso, conferir o excelente livro de Richard Dawkins, em seu capítulo 12: DAWKINS, Richard.
O Gene Egoísta. Tradução Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 291 e ss. Ver
Naturalmente, essas explicações não deixam de se estender e de impactar o
Direito, que também, afirmam, teria o papel evolutivo de manutenção da cooperação
social e da repreensão, talvez com mais violência e firmeza, de comportamentos
desviantes. Um aspecto decorrente e interessante dessa concepção evolutiva do
surgimento da Moral e do Direito é que ela, se não abole totalmente, ao menos relativiza
muito a distinção ser/dever-ser, classicamente adotada por filósofos em geral e filósofos
da Moral e do Direito, especificamente.
Formulada por David Hume (daí ser também chamada de Guilhotina de Hume),
ela tem a função de separar juízos descritivos de juízos prescritivos, como pertencentes
a planos absolutamente diversos4. Kelsen, seguindo os passos da tradição, adota, na
construção da sua Teoria Pura do Direito, essa separação, e afirma que a diferença
fundamental entre a Ciência do Direito (isso vale também para a Ética) e outras ciências
(como Biologia, Fisiologia e Psicologia) é de que as proposições das últimas descrevem
acontecimentos da esfera do ser, enquanto as proposições da primeira descrevem juízos
de dever-ser:
Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico
de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa
diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a
norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido
é um ser. Por isso, a situação fática perante a qual nos encontramos na
hipótese de tal ato tem de ser descrita pelo enunciado seguinte: um
indivíduo quer que o outro se conduza de determinada maneira. A
primeira parte refere-se a um ser, a o ser fático do ato de vontade; a
segunda parte refere-se a um dever-ser, a uma norma como sentido do
ato.
[...] A distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofundada.
É um dado imediato da nossa consciência. Ninguém pode negar que o
enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do qual
descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do
enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos uma norma – e
que da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim
também: Cooperação via estratégia Olho por Olho. Acesso em:
http://www.cienciadaestrategia.com.br/teoriadosjogos/capitulo.asp?cap=m8. 4 “Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo
o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos
assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais
usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou
não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve
expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria
preciso que se desse uma razão para algo que parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova
relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes.”
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução Débora Danowiski. São Paulo: Editora UNESP,
2000, p. 509.
como da circunstância de que algo deve ser se não segue que algo
seja.5
Parece, assim, haver um conflito entre a concepção de Kelsen, apoiada na
distinção tradicional, e a dos que afirmam os fundamentos naturais da Moral. Para os
últimos, como os comportamentos prescritivos humanos têm origem evolutiva, não há
que haver diferenciação, já que a evolução – processo que, obviamente, ocorre no plano
do ser – é tanto onde surge como para onde se objetivam nossos comportamentos e
juízos morais e jurídicos. Assim, podemos presumir que a resposta de um teórico que
defende os fundamentos naturais da Moral à pergunta do trabalho seria mais ou menos
como segue: “Podemos afirmar que existe uma alternativa melhor à teoria Kelseniana.
A alternativa melhor e mais cientificamente fundamentada será a de uma teoria do
Direito que não faça a separação radical entre proposições descritivas e proposições
prescritivas, que a Teoria Pura do Direito faz e que nós negamos, já que afirmamos que
ambas se encontram na esfera do ser, ou seja, vêm da evolução por seleção natural, e
não em uma esfera separada e autônoma do dever-ser”. De fato, a distinção entre ser e
dever-ser é fundamental na teoria de Kelsen, a tal ponto que temos a impressão de que o
autor a enxerga como autoevidente, axiomática, como podemos ler na passagem acima,
quando a chama de “um dado imediato da nossa consciência”. No entanto, os teóricos
que afirmam os fundamentos naturais da Moral não veem nada de autoevidente nisso e,
pelo contrário, negam a separação. Por sua importância, parece que se ela for realmente
negada a Teoria de Kelsen perderá boa parte de seu fundamento e ficará, talvez, com
problemas irremediáveis. Mas será que as críticas chegam a esse ponto e vão
diretamente contra o que Kelsen sustenta? Será que estamos compreendendo o que
Kelsen realmente quer dizer quando faz essa separação?
Acreditamos que não, e que as críticas até agora dirigidas ao autor austríaco,
apesar de poderem se aplicar a outros filósofos que defendem a diferenciação entre ser e
dever-ser6, não são inteiramente cabíveis contra ele. Isso ocorre porque parece haver
uma confusão sobre onde essa diferenciação ocorre para Kelsen. Os críticos tendem a
5 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 8ª Ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009, p. 6. 6 Como não poderia deixar de ser, vemos que o grande símbolo desse tipo de interpretação é Kant, que
estabelece a separação entre e empírico e racional, o a priori e o a posteriori. Na construção de sua teoria
moral, liga fundamentalmente a ação moral com a liberdade (como autonomia), que só pode ter seus
motivos escorados na razão e deve ser totalmente independente da experiência. No entanto, o próprio
Kelsen, em nota de seu livro, critica profundamente essas dicotomias de Kant. Cf: Ibidem. Notas do
Capítulo 3. Nota 24. pp. 411-414.
ver a distinção como ontológica, como se surgisse de um dualismo metafísico de planos,
o dos fatos e o dos valores. O plano do dever-ser, por se encontrar absolutamente fora
do ser, estaria, por decorrência, fora da influência dos componentes destes últimos,
como, por exemplo, os sistemas biológicos e a seleção natural.
Mas a diferenciação de Kelsen não se encontra aí. Uma pista nesse sentido é
atentarmos para a concepção do autor de liberdade. Tradicionalmente, o livre-arbítrio é
colocado pelos filósofos da moral que aceitam a diferenciação entre ser e dever-ser
como constante no, ou ao menos como formador das prescrições do segundo plano.
Assim, o homem que age de forma moralmente correta e que, portanto, por isso deve ter
seu mérito reconhecido, deve ser aquele que agiu livremente, que na sua práxis fez bom
uso da sua liberdade. Kelsen vai totalmente contra essa posição e aceita somente a
determinação causal. Kelsen nega o livre-arbítrio, é determinista.7 Vemos que há, então,
forte tendência monista em Kelsen. Isso, nos parece, indica como a distinção entre ser e
dever-ser do autor dificilmente será radical como o tradicionalmente corrente.
Por fim, para esclarecer onde ocorre, em nossa opinião, a separação entre ser e
dever-ser para Kelsen, precisamos analisar sua definição de norma, como esquema de
interpretação:
O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa.
7 “[S]egundo a concepção corrente, a liberdade é entendida como o oposto da determinação causal. Diz-
se livre o que não está sujeito à lei da causalidade. Costuma afirmar-se: o homem é responsável, isto é,
capaz de imputação moral ou jurídica, porque é livre ou tem uma vontade livre, o que, segundo a
concepção corrente, significa que ele não está submetido à lei causal que determina a sua conduta, na
medida em que a sua vontade é, deveras, causa de efeitos, mas não é ela mesma o efeito de causas. [...] A
verdade, porém, é que o pressuposto de que apenas a liberdade do homem, ou seja, o fato de ele não estar
submetido à lei da causalidade, é que torna possível a responsabilidade ou a imputação está em aberta
contradição com os fatos da vida social. A instituição de uma ordem normativa reguladora da conduta dos
indivíduos - com base na qual somente pode ter lugar a imputação - pressupõe exatamente que a vontade
dos indivíduos cuja conduta se regula seja causalmente determinável e, portanto, não seja livre. [...] Só
através do fato de a ordem normativa se inserir, como conteúdo das representações dos indivíduos cuja
conduta ela regula, no processo causal, no fluxo de causas e efeitos, é que esta ordem preenche a sua
função social. E também só com base numa tal ordem normativa, que pressupõe a sua causalidade
relativamente à vontade do indivíduo que lhe está submetido, é que a imputação pode ter lugar. Ibidem,
pp. 105-106.
Portanto, para Kelsen o elemento definidor da norma, o determinante que a faz
ter sua significação, é a interpretação do sujeito que se relaciona com ela. Norma é
sentido, sentido de um ato. E, continua:
Mas também na visualização que o apresenta como um acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretação, diferente da interpretação normativa: a interpretação causal. A norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma.
Aqui, por fim, começa a se delinear claramente o que autor quer dizer com e
onde ele entende que ocorre a separação entre ser e dever-ser: ela ocorre no processo de
atribuirmos sentido a um determinado ato ou acontecimento. É, portanto, uma distinção
psicológica, que tem lugar no procedimento mental interpretativo de quem lida com
“normas” ou “fatos”. Essa separação está longe de ser ontológica, ou seja, de ser em
relação a algo que acontece na natureza externamente e em realidades diferentes. Ao
contrário, percebemos que Kelsen tem uma forte tendência monista nesse sentido,
atribuindo tudo ao governo da causalidade, sem que nada lhe possa escapar, inclusive e
especialmente a Moral e o Direito.
Concluímos, então, que, em relação à pergunta desse trabalho, ao menos pela
linha de argumentação que apresentamos aqui, dos teóricos que afirmam fundamentos
naturais da Moral, nada há que incompatibilize a inclusão da Teoria Pura do Direito de
Kelsen em um mundo causalmente determinado e com influências biológicas e
evolutivas. Há apenas diferença de recorte neste caso: teorias como a da evolução fazem
afirmações sobre e se preocupam com os motivos de fundo, longínquos e mais lentos de
nosso comportamento; já teorias como a de Kelsen se preocupam mais com seus
motivos imediatos e seus fundamentos lógicos e psicológicos. Assim, a diferenciação
entre ser e dever-ser que o autor faz não se contradiz com o darwinismo ou qualquer
outra teoria da natureza que trate sobre nossos comportamentos morais e jurídicos e,
portanto, nesse caso, sua teoria não está impedida de trilhar seu caminho para a
construção de uma Ciência do Direito.