5
ARP 45 Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XVII, nº 66, pág. 45-49, Abr.-Jun., 2005 Casos Clínicos / Radiological Case Reports Recebido a 30/03/2005 Aceite a 05/07/2005 Angiomatose Quistica Cystic Angiomatosis Mónica Ataíde 1 , Ana Maria Nunes 1 , Miguel Tuscano Rico 2 , Regina Martins 3 , Conceição Matos Pernadas 4 1 Interna do Complementar de Radiologia 2 Interno do Complementar de Medicina Interna 3 Assistente Hospitalar de Radiologia 4 Assistente Graduado de Radiologia Serviço de Radiologia, Hospital de Curry Cabral Director: Dr. Nuno Carrilho Ribeiro Resumo A propósito de um caso clínico de Angiomatose Quistica, os autores fazem uma revisão dos aspectos clínicos e imagiológicos desta entidade e dos principais diagnósticos diferenciais de lesões osteoliticas expansivas. Palavras-chave Angiomatose Quistica; Radiografia; TC; RM; Cintigrafia; Biopsia. Abstract The authors report a case of Cystic angiomatosis and make a review of its most important clinical and imaging features. The discussion include the most relevant differential diagnosis of expansive ostheolitic lesions. Key-words Cystic Angiomatosis; radiography; TC; MR; Scintigraphy; Biopsy. Introdução Em 1953, Jacobs e Kimmestiel, aplicaram o termo “Angiomatose Quistica” a um processo patológico descrito em doentes com lesões ósseas quisticas, definidas histologicamente como “hemangio-hamartomas” [1]. Actualmente este termo define uma entidade em que coexistem múltiplas lesões quisticas, não só ósseas, como viscerais e de partes moles, que correspondem a malformações vasculares linfangiomatosas [2]. A etiologia é desconhecida, mas a teoria mais aceite é a congénita [3]. O mais frequente é ser diagnosticada incidentalmente em doentes entre os 10 e os 30 anos e do sexo masculino [4]. O prognóstico depende da localização das lesões viscerais [5]. Foram descritos casos de regressão espontânea com envolvimento ósseo isolado [4]. Imagiologicamente caracteriza-se por lesões osteoliticas, medulares, bem definidas, com zonas de esclerose óssea. As lesões são mais frequentes ao nível do esqueleto axial e apendicular proximal [3]. A Cintigrafia subestima a extensão das lesões [3]. Histologicamente caracteriza-se por dilatações quisticas recobertas de endotélio vascular, com características de benignidade [5]. O envolvimento visceral pode ocorrer em 60 a 70 % dos casos. Embora os resultados das biopsias sejam geralmente inconclusivos, alguns estudos têm demonstrado que a biopsia de costelas tem maior possibilidade de diagnóstico [4]. Os autores apresentam um caso de Angiomatose Quistica, revendo os aspectos clínicos e imagiologicos mais relevantes.

Angiomatose Quistica - sprmn.pt · da parede torácica e envolvendo vários arcos costais, o que sugeria massa a esse nível. Não eram evidentes alterações parênquimatosas ou

  • Upload
    vudien

  • View
    220

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

ARP 45

Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XVII, nº 66, pág. 45-49, Abr.-Jun., 2005

Casos Clínicos / Radiological Case Reports

Recebido a 30/03/2005Aceite a 05/07/2005

Angiomatose Quistica

Cystic Angiomatosis

Mónica Ataíde1, Ana Maria Nunes1, Miguel Tuscano Rico2, Regina Martins3, ConceiçãoMatos Pernadas4

1 Interna do Complementar de Radiologia2 Interno do Complementar de Medicina Interna3 Assistente Hospitalar de Radiologia4 Assistente Graduado de Radiologia

Serviço de Radiologia, Hospital de Curry CabralDirector: Dr. Nuno Carrilho Ribeiro

Resumo

A propósito de um caso clínico de Angiomatose Quistica, os autores fazem uma revisão dos aspectos clínicos e imagiológicosdesta entidade e dos principais diagnósticos diferenciais de lesões osteoliticas expansivas.

Palavras-chave

Angiomatose Quistica; Radiografia; TC; RM; Cintigrafia; Biopsia.

Abstract

The authors report a case of Cystic angiomatosis and make a review of its most important clinical and imaging features. Thediscussion include the most relevant differential diagnosis of expansive ostheolitic lesions.

Key-words

Cystic Angiomatosis; radiography; TC; MR; Scintigraphy; Biopsy.

Introdução

Em 1953, Jacobs e Kimmestiel, aplicaram o termo“Angiomatose Quistica” a um processo patológico descritoem doentes com lesões ósseas quisticas, definidashistologicamente como “hemangio-hamartomas” [1].Actualmente este termo define uma entidade em quecoexistem múltiplas lesões quisticas, não só ósseas, comoviscerais e de partes moles, que correspondem amalformações vasculares linfangiomatosas [2].A etiologia é desconhecida, mas a teoria mais aceite é acongénita [3].O mais frequente é ser diagnosticada incidentalmente emdoentes entre os 10 e os 30 anos e do sexo masculino [4].O prognóstico depende da localização das lesões viscerais[5].

Foram descritos casos de regressão espontânea comenvolvimento ósseo isolado [4].Imagiologicamente caracteriza-se por lesões osteoliticas,medulares, bem definidas, com zonas de esclerose óssea.As lesões são mais frequentes ao nível do esqueleto axiale apendicular proximal [3].A Cintigrafia subestima a extensão das lesões [3].Histologicamente caracteriza-se por dilatações quisticasrecobertas de endotélio vascular, com características debenignidade [5].O envolvimento visceral pode ocorrer em 60 a 70 % doscasos.Embora os resultados das biopsias sejam geralmenteinconclusivos, alguns estudos têm demonstrado que abiopsia de costelas tem maior possibilidade de diagnóstico[4].Os autores apresentam um caso de Angiomatose Quistica,revendo os aspectos clínicos e imagiologicos maisrelevantes.

46 ARP

Caso Clínico

Doente do sexo masculino, 71 anos de idade, caucasiano,reformado (comércio), internado por um quadro clinicocom um mês de evolução, caracterizado por dor espontâneae à compressão de tumefacção na grelha costal direita(presente desde há 10 anos), acompanhado de anorexia eperda ponderal.Laboratorialmente apenas havia a referir anemia ligeira(Hb = 11,5 mg/dl, com constantes globulares normais) eVS elevada ( VS = 44 mm/1ªh).Apresentava como antecedentes pessoais TuberculosePulmonar na infância, DPCO, HTA, DM tipo 2 etumefacção na grelha costal direita desde há 10 anos, querelacionava com traumatismos sofridos (acidente deviação)

O exame objectivo revelou palpação dolorosa da 2ª à 6ªcostelas direitas e tumefacção na 8ª costela, dolorosa,aderente e com bordos mal definidos.Neste contexto foram realizados vários examesimagiologicos, nomeadamente radiografia do Tórax e dacoluna cervical, TC torácico e da coluna cervical, RM dacoluna dorsal e grelha costal.A radiografia do tórax revelou uma opacidade projectadaao hemitorax direito, de contorno interno bem delimitado,com contorno externo ultrapassando o contorno teóricoda parede torácica e envolvendo vários arcos costais, oque sugeria massa a esse nível. Não eram evidentesalterações parênquimatosas ou pleurais. (Figs. 1 e 2)A radiografia da coluna cervical demonstrou múltiplaslesões líticas, envolvendo a apófise transversa direita deC7, as apófises espinhosas de C3 e C4 e costelas. (Figs. 3e 4)

O TC torácico revelou lesões osteoliticas expansivas dosprimeiros arcos costais à direita, com adelgaçamento einterrupção focal da cortical e zonas de esclerose. Eramevidentes lesões idênticas ao nível de vários corposvertebrais, apófises transversas e lâminas vertebrais depredomínio direito. O parênquima pulmonar nãoapresentava alterações. (Figs. 5 e 6)O TC da coluna cervical demonstrou a alternância de áreasosteolíticas e osteocondensantes envolvendo váriasvértebras cervicais, as maiores no corpo/massa lateraldireita de C2, lâmina esquerda e apófise transversa de C4e apófise transversa/extremidade interna da 1ª vértebradorsal à direita. (Figs. 7, 8 e 9)A RM da grelha costal, de difícil leitura devido a artefactosna metade inferior do hemitorax direito (possivelmente porbiopsia anterior), revelou alterações morfo-estruturais ede sinal de várias costelas direitas, com insuflação,apresentando hipersinal em T2 a nível do osso medular.(Figs. 10 e 11)A RM da coluna dorsal demonstrou alterações morfo-estrururais e de comportamento de sinal de múltiplos corposvertebrais dorsais, com características osteoliticas e comdestruição dos pedículos e apófises transversas direitas deD1 a D4 e erosão dos arcos costais adjacentes. Não existiam

Figs. 1 e 2 - Opacidade projectada ao hemitorax direito, sugestiva demassa da parede torácica.

Fig. 3 - Lesões líticas da apófisetransversa direita de C7 e costelas.

Fig. 4 - Lesões líticas das apófisesespinhosas de C3 e C4.

ARP 47

deformações ou moldagem da medula, nem alteraçõesfocais do respectivo sinal. (Fig.12)No seguimento deste estudo imagiológico realizouCintigrafia Óssea que revelou um padrão de distribuiçãodas lesões invulgar, envolvendo a metade superior da grelhacostal direita, coluna dorso-lombar e articulação sacroilíaca direita. (Figs.13 e 14)Visto não existir um diagnóstico definitivo, foi efectuada

punção aspirativa guiada por TC de lesão quistica do arcocostal direito, cuja histologia revelou formação quistica,com revestimento epitelial , sem células neoplásicas,confirmando o diagnóstico de Angiomatose Quistica doosso. (Figs.15 e 16)A radiografia do tórax de controle pós-biopsia apresentavanível hidro-aéreo na lesão. (Figs.17 e18)Os restantes exames descartaram envolvimento visceral.

Figs. 5 e 6 - Lesões osteoliticas expansivas dos primeiros arcos costais direitos.

Figs. 7, 8, e 9 - Alternância de áreas líticas e osteocondensantes envolvendo várias vértebras cervicais e apófise transversa/extremidade interna da1ª vértebra dorsal direita.

Figs. 10 e 11 - Alterações morfoestruturais e de sinal de várias costelas direitas, com insuflação, apresentando hipersinal em T2 a nível do ossomedular.

48 ARP

A etiologia continua desconhecida, contudo a teoria maisaceite é a das malformações vasculares serem de origemcongénita, devido à persistência de canais vascularesprimitivos. Outras teorias defendem os traumatismos e aobstrução dos vasos linfáticos como causas de lesõesadquiridas, havendo uma atrofia por pressão devido àdilatação dos canais linfáticos, produzindo fenómenososteoliticos [6].Apresenta-se habitualmente em crianças ou adultos jovens,existindo contudo casos descritos em todas as idades, compredomínio no sexo masculino (2:1) [5].O envolvimento visceral pode ocorrer em 60 a 70% doscasos, sendo os locais mais comuns, o baço, fígado, rins,membranas pleural e peritoneal, mesentério, retroperitoneue gânglios linfáticos [3]. O sistema nervoso central é oúnico local onde não existem casos descritos, devido àausência de vasos linfáticos [5]. É o envolvimento visceralque condiciona o prognóstico, que piora com a afecçãohepática e esplénica, não se alterando com a extensão daslesões ósseas [5].Os doentes com envolvimento ósseo isolado podemmanter-se assintomáticos ou apresentar dor [3]. Os locaisósseos mais afectados são o fémur, costelas, vértebras,crânio, úmero, omoplata, tíbia, rádio e clavícula [5].Imagiologicamente as lesões são líticas, bem definidas,na cavidade medular, com córtex intacto e com escleroseperiférica variável, podendo apresentar um aspecto em“favo de mel”. Tipicamente não existe reacção periosteal[4].

Discussão

A Angiomatose Quistica é uma entidade cuja patogeniareside numa alteração do sistema vascular e linfático, queocasiona o aparecimento de lesões quisticas esqueléticas,que podem associar-se ou não a lesões viscerais e dostecidos moles [5].

Figs. 17 e 18 - Controle pós biopsia – nível hidro-aéreo na lesão.

Fig. 12 – RM Axial T1. Lesões osteoliticas dos pedículos e apófisestransversas, com erosão dos arcos costais adjacentes.

Figs. 13 e 14 - Cintigrafia óssea com padrão invulgar de distribuiçãodas lesões.

Fig. 15 - (HE)-Formação quística com revestimento epitelial, sem célulasneoplásicas.

Fig. 16 - (HE)-Célula gigante multinucleada.

ARP 49

Histologicamente as lesões são idênticas a linfangiomasou hemangiomas. Contêm canais vasculares dilatados,formando múltiplos quistos, recobertos por célulasendoteliais.O diagnóstico patológico estabelece-se em associação comos achados radiológicos e clínicos, sendo a biopsia costala que tem maior valor, segundo vários autores [2].A TC e a RM podem permitir estabelecer um diagnósticodiferencial, sendo os aspectos típicos na RM quistos comausência de reforço central e fraco reforço periférico, apósa injecção de Gadolinio [5].Não existe tratamento especifico para as lesões ósseas (aradioterapia e a quimioterapia não alteram a evolução). Aexcisão cirúrgica é a terapêutica de eleição para as lesõesviscerais, existindo recorrência numa percentagem superiora 9% [5].A complicação mais grave é o derrame pleural maciço.Os principais diagnósticos diferenciais são o MielomaMúltiplo, as Metástases ósseas osteoliticas e o GranulomaEosinófilo [3]. Estas entidades têm em comum poderemapresentar-se com múltiplas lesões osteoliticas, bemdefinidas, envolvendo predominantemente o esqueletoaxial e apendicular proximal. Além disso é frequente emtodas os achados cintigráficos subestimarem osimagiológicos e poderem cursar com dor óssea, sobretudoquando existem fracturas patológicas.No Mieloma Múltiplo as lesões líticas tendem a tertamanho semelhante, a idade média de aparecimento é 60-70 anos, sendo raro antes dos 40 anos e existem váriasalterações analíticas, com anemia, proteinuria e um picode imunoglobulinas monoclonais.As Metástases ósseas produzem alterações cintigraficasmais exuberantes e não é habitual uma estabilidade daslesões a longo prazo.O Granuloma Eosinófilo (forma de Histiocitose de Célulasde Langerhans) é tipicamente unifocal, mas pode sermultifocal e atingir qualquer local ósseo. As lesões têmhabitualmente um aspecto lacunar, bem delimitado nocrânio e nos ossos longos apresentam erosão endosteal.Manifesta-se tipicamente antes dos 30 anos e pode existirreacção periosteal associada ás lesões osteoliticas.Outros diagnósticos diferenciais menos prováveis são aDisplasia Fibrosa Poliostotica e os Encondromas múltiplos.A primeira é tipicamente unilateral, está associada apigmentação cutânea anormal (manchas café com leite),as lesões têm um aspecto em “vidro despolido” nasradiografias e o envolvimento visceral é atípico. Nossegundos as lesões ósseas apresentam tipicamentecalcificações.

Conclusão

Lesões osteoliticas múltiplas, envolvendo o esqueleto axiale apendicular proximal, sugerem o diagnóstico deAngiomatose Quistica, quando a cintigrafia e aelectroforese sanguínea e urinária não revelam anomalias.O envolvimento visceral e a idade de apresentaçãosuportam o diagnóstico.

Bibliografia

1. Jacobs, J. E.; Kimmestiel, P. – Cystic Angiomatosis of the SkeletalSystem. J. Bone Joint Surg., 1953, 35:409-420.

2. Seckler, S. G.; Rubin, H.; Rabinowitz, J. G. – Systemic CysticAngiomatosis. Am. J. Med., 1964, 37:976-986.

3. Boyse, T.; Jacobson, J. – Case 45: Cystic Angiomatosis. Radiology,2002, 223:164-167.

4. Lateur, L.; Simeons, C. J.; Gryspeerdt, S. et al – Skeletal CysticAngiomatosis. Skeletal Radiology, 1996, 25:92-95.

5. Fernandez Jimenez, I.; Álvarez Munoz, V.; Pelaez Mata, D. e tal –Anales Espanõlez de Pediatria, 2000, vol 52, nº4:389-391.

6. Steiner, G. M.; Farman, J.; Lawson, J. P. – Limphangiomatosis ofBone. Radiology, 1969, 93:1093-1098.

Correspondência

Mónica AtaídeServiço de RadiologiaRua da Beneficiência,nº101050 Lisboa